LEVY, Pierre - O Que Virtual

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.Proponho, juntamente com outros, aproveitar esse rr10 mento raro em que se anuncia uma cultura nova para orien tar deliberadamente a evolu~ao em curso. Raciocinar em ter- mos de impacto e condenar-se a padecer. De novo, a tecnic;l prop6e, mas 0 homem disp6e. Cessemos de diabolizar 0 vir tual (como se fosse 0 ~ontrario do real!). A escolha nao e entre a nostalgia de urn real datado e urn virtual amea~ador Oil excitante, mas entre diferentes concepr;oes do virtual. A ;11 ternativa e simples. Ou 0 ciberespa~o reproduzini 0 mediatico, o espetacular, 0 consumo de informa~ao mercantil e a exclll sao numa escala ainda mais gigantesca que hoje. Esta C, ;l grosso modo, a tendencia natural das "supervias da inform;l ~ao" ou da "televisao interativa". Ou acompanhamos as tell dencias mais positivas da evolu~ao em curso e criamos urn pro jeto de civiliza~ao centra do sobre os coletivos inteligentcs ... cole~ao TRANS ISBN 85-732b-03b-X 911~~ ~~I~~II~ ~~~~~II editorall34 I I n Pierre Levy , o QUE E o VIRTUAL? editorall34

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.Proponho, juntamente com outros, aproveitar esse rr10mento raro em que se anuncia uma cultura nova para orientar deliberadamente a evolu~ao em curso. Raciocinar em ter-mos de impacto e condenar-se a padecer. De novo, a tecnic;lprop6e, mas 0 homem disp6e. Cessemos de diabolizar 0 virtual (como se fosse 0 ~ontrario do real!). A escolha nao e entrea nostalgia de urn real datado e urn virtual amea~ador Oilexcitante, mas entre diferentes concepr;oes do virtual. A ;11

ternativa e simples. Ou 0 ciberespa~o reproduzini 0 mediatico,o espetacular, 0 consumo de informa~ao mercantil e a exclllsao numa escala ainda mais gigantesca que hoje. Esta C, ;lgrosso modo, a tendencia natural das "supervias da inform;l~ao" ou da "televisao interativa". Ou acompanhamos as telldencias mais positivas da evolu~ao em curso e criamos urn projeto de civiliza~ao centra do sobre os coletivos inteligentcs ...

cole~ao TRANS

ISBN 85-732b-03b-X

911~~~~I~~II~~~~~~IIeditorall34

IIn

Pierre Levy

,o QUE Eo VIRTUAL?

editorall34

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Os computadores e as redesdigitais es-tao cada vez mais presentes em nossocoti-diano. A Internet - rede mundial que inter-liga milhoes de computadores e de usuari~s- nao para de crescer em urn ritmo vertigi-nosa, e incorporou a nosso vos;abulario umapalavra que, ha poucos anos, fazia parte dosdomini os da fic<;ao cientifica: 0 ciberespar;o,ou espar;o virtual. Alem disso, 0 constantedesenvolvimento de equipamentos e progra-mas destinados a simula<;ao faz com que sejapossivel, hoje, dar a urn usuario a sensa<;aode estar em outra realidade, em uma reali-dade virtual.

Mas 0 que e, exatamente, esse virtual, doqual tanto se fala?

Trata-se, clara mente, de uma revolu<;ao.Uma altera<;ao tadical na forma de concebero tempo, 0 espa<;o, e mesmo os relacionamen-tos. Ora, frente a toda revolu<;ao hi sempredois grupos antag6nicos que rapidamente sedefinem. Face ao processo de virtualiza<;ao,encontramos os "apocalipticos", que tememuma desrealiza<;ao geral, e os "integrados",que veem nas ultimas mudan<;as uma pana-ceia para os males do mundo.

Pierre Levy propoe, neste livro, uma ter-ceira possibilidade: "enquanto tal, a virtua-liza<;ao nao e nem boa, nem ma, nem neutra.Ela se apresenta como movimento mesmo do'devir outro' - ou heterogenese - do huma-no. Antes de teme-Ia, conden~-la ou lan<;ar-se as cegas a ela, proponho que se fa<;a 0 es-for<;o de apreender, de pensar, de compreen-der em toda a sua amplitude a virtualiza<;ao".

Acreditando que a virtualiza<;ao exprimeuma busca pela hominiza<;ao, 0 autor come-<;adesmontando aquilo que chama de "opo-si<;ao facil e enganosa entre real e virtual".A seguir; retrabalhando conceitos de ouq'ospensadores franceses contemporaneos - co-mo Gilles Deleuze e Michel Serres -, buscaanalisar "urn processo de transforma<;ao de

urn modo de ser num outro". 0 que ha derevolucionario nessa analise e 0 fato de que,ao contrario da tradi<;ao filos6fica, mesmo amais recente, ela· se propoe a estudar a vir-tualiza<;ao a contracorrente, remontando doreal ou do atual para 0 virtual.

Ap6s uma trajet6ria em que aborda a vir-tualiza<;ao sob 0 aspecto filos6fico (0 conceitode virtualiza<;ao), antropol6gico (a rela<;aoentre 0 processo de hominiza<;ao e a virtua-liza<;ao) e s6cio-politico ("compreender a mu-ta<;ao contemporanea para ter uma chance detornar-se ator dela"), Levy termina sua obraconclamando a uma "arte da virtualiza<;ao,a uma nova sensibilidade estetica que, nestestempos de grande desterritorializa<;ao, fariade uma hospitalidade ampliada sUa virtu decardinal".

Este livro foi publicado com 0 apoio doMinisterio das Rela<;oes Exteriores da Fran<;a.

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Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 ]ardim Europa CEP 01455-000Sao Paulo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777

Copyright © Editora 34 Ltda. (edi<;aobmsileira), 1996Qu'est-ce que Ie virtuel? © Editions La DcwlIverte, Paris, 1995

A FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO (I, ILECAL, E CONFIGURA UMA

. APROPRIA<;:Ao INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS I': I'ATRIMONIAIS DO AUTOR.

Titulo original:Qu'est-ce que Ie virtuel?

Capa, projeto grafico e editora<;ao eletronica:Bracher & Malta ProdUi;ao Grafica o QUE E 0 VIRTUAL?Revisao tecnica:Carlos Jrineu da Costa

Cataloga<;ao na Fonte do Departamento Nacional do Livro(Funda<;ao Biblioteca Nacional, R], Brasil)

Levy, Pierre, 1956-[Qu'est-ce que Ie virtuel? Portugues]

1.668£ 0 que e 0 virtual? / Pierre Levy; tradu~ao dePaulo Neves. - Sao Paulo: Ed. 34, 1996160 p. (Cole~ao TRANS)

Tradu~ao de: Qu'est-ce que Ie virtuel?Inclui bibliografia

ISBN 85-7326-036-X

reCVM 1. Realidade virtual. I. Titulo. II. Serie.

. NQ reg: '6 JlP& CDD - 003.3

,Hi! obrs :413S.Data: 4~,04 ,<18 <~Aqujs:cao: ~ \)~~Voa~ao: ~

Para Eden e Loup-Noe,a alegrla e a inocencia .

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1. 0 QUE EA VIRTUALIZA<,;AO?

o atual e 0 virtual........................................................... 15A atualiza~ao 16A virtualiza~ao 17Nao estar presente: a virtualiza~ao como exodo 19Novos espa~os, novas velocidades 22o efeito Moebius ·.. · 24

2. A VIRTUALIZA<,:Ao DO CORPO

Reconstru~6es 27Percep~6es 28Proje~6es 28Reviravoltas 29o hipercorpo 30Intensifica~6es 31Resplandecencia 33

3. A VIRTUALIZA<,:Ao DO TEXTO

A leitura, ou a atualiza~ao do texto 35A escrita, ou a virtualiza~ao da memoria 37A digitaliza<;:ao, ou a potencializa~ao do texto 39o hipertexto: virtualiza~ao do texto

e virtualiza~ao da leitura 41o ciberespa~o, ou a virtualiza~ao do computador 46A desterritorializa~ao do texto 47Rumo a urn novo impulso da cultura do texto 49

4. A VIRTUALIZA<,:Ao DA ECONOMIA

Uma economia da desterritorializa~ao 51o caso das finan~as 52

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Informa<;:ao e conhecimento: consumo naodestrutivo e apropria<;:ao nao exclusiva .

Desmaterializa<;:ao Oll virtualiza<;:ao:o que e uma in (orJll:l<,;ao? .

Dialetica do real e do possivel .o trabalho ......................................................................

A virtualiza<;:ao do 1l1l'rl'ado .Economia do virtllal l' illtl'ligencia coletiva .

S. As 'I'RFs VIRTIIAUZA<;:OES QUE

FI/.FI<i\M () IIIIMi\NO: A LINGUAGEM,

i\ 'I'r::CNICi\ F () CONTRATO

o nascimento das linguagells, Oila virtualiza<;:ao do prescnte .

A tecnica, ou a virtualiza<;:ao da a<,;ao .o contrato, ou a virtualiza<;:ao da violencia .A arte, ou a virtualiza<;:ao da virtualiza<;:ao .

6. As OPERA<;:OBS DA VIRTUALIZAc::Ao OU

o TRIVIO ANTROPOL6GICO

o trivio dos signos .o trivio das coisas ..........................................................o trivio dos seres ............................................................

A gramatica, fundamento da virtualiza<;:ao .A dialetica e a ret6rica, acabamento da virtualiza<;:ao .

7. A VIRTUALIZAc::Ao DA INTELIGENCIA

E A CONSTITUI<;:AO DO SU]EITO

A inteligencia coletiva na inteligencia pessoal:linguagens, tecnicas, institui<;:oes 97

Economias cognitivas...................................................... 99Maquinas darwinianas.................................................... 101As quatro dimensoes da afetividade 103Sociedades pens antes 108Coletivos humanos e sociedades de insetos 110

/\ ohietiv;l<,;ao do contexto p:lrt i1hado .() cortex de Antropia .

112115

8. A VIRTUALIZAc::Ao DA INTEucl:N(Ii\

E A CONSTITUIc::Ao DO OB]ETO

o problema da inteligencia coletiva .No estadio .Presas, territ6rios, chefes e sujeitos .Ferramentas, narrativas, cadaveres .o dinheiro, 0 capital , .A comunidade cientffica e seus objetos .o ciberespa<;:o como objeto .o que e urn objeto? .o objeto / 0 humano .

I 19121123125126127128130132

9. 0 QUADRIVIO ONTOL6GICO:

A VIRTUALIZAc::Ao, UMA

TRANSFORMA<;:AO ENTRE OUTRAS

Os quatro modos de ser .As qua tro passagens · ·Misturas ~ .Dualidade do acontecimento e da substancia .

136138141143

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"0 virtual possui uma plena realidade, enquanto virtual."Gilles Deleuze, Difference e repetition.

"A realidade virtual corrompe,a realidade absoluta corrompe absolutamente."

Roy Ascott, Premia Ars electronica 1995.

Urn movimento geral de virtualizac;:ao afeta hoje nao apenasa informac;:ao e a comunicac;:ao mas tambem os carpos, 0 funcio-namento economico, os quadros coletivos da sensibilidade ou 0

exercicio da inteligencia. A virtualizac;:ao atinge mesmo as moda-lidades do estar junto, a constituic;:ao do "n6s": comunidades vir-tuais, empresas virtuais, democracia virtual... Embora a digitali-zac;:ao das mensagens e a extensao do ciberespac;:o desempenhemurn papel capital na mutac;:ao em curso, trata-se de uma onda defundo que ultrapassa amplamente a informatizac;:ao.

Deve-se temer uma desrealizac;:ao geral? Uma especie de de-saparecimento universal, como sugere Jean Baudrillard? Estamosameac;:ados por urn apocalipse cultural? Por uma aterrorizanteimplosao do espac;:o-tempo, como Paul Virilio anuncia ha variosanos? Este livro defende uma hip6tese diferente, nao catastrofista:entre as evoluc;:oes culturais em andamento nesta virada do ter-ceiro milenio - e apesar de seus inegaveis aspectos sombrios eterrfveis -, exprime-se uma busca da hominizac;:ao.

Certamente nunc a antes as mudanc;:as das tecnicas, da eco-nomia e dos costumes faram tao rapidas e desestabilizantes. Ora,a virtualizac;:ao constitui justamente a essencia, ou a ponta fina,da mutac;:ao em curso. Enquanto tal, a virtualizac;:ao nao e nem

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boa, nem ma, nem neutra. Ela Sl"apresenta como 0 Illovimentomesmo do "devir outro" - ou IWlnogcnese - do humano. An-tes de teme-la, conden.i-Ia Oil IaIH,;lr-se as cegas a ela, propollhoque se fa~a 0 esforc,;o de apn'l'lllln, de pensar, de compreender ellltoda a sua amplitude a Virlll;t1i/.;ll,-;lO.

Como se ven! an IOllgo dl",ll' livro, 0 virtual, rigorosamentedefinido, tem SOIlH'lIll' 11111;\ pl'(jllena afinidade com 0 falso, 0 ilu-sorio ou 0 illlagill;irio, Tr;lta-Sl', ao contrario, de urn modo de serfeculldo l' podl'l'! ISO,(jIll' Pl'I(' ('III jogo processos de cria~ao, abrefuturos, pnilira plH'-OSde Sl'lItido sob a platitude da presen~a £1-sica illl<:dia(a.

Muitos fill)sofos --- e niio dos mCllores - ja trabalharamsobre a noc,;ao de virtual, incilisive alguns pens adores francesescontemporaneos como C;illes Ikleuze ou Michel Serres. Qual e,portanto, a ambi~ao da presentc obra? E muito simples: nao mecontentei em definir 0 virtual como urn modo de ser particular,quis tambem analisar e ilustrar um processo de transformar;ao deum modo de ser num outro. De fato, este livro estuda a virtuali-za~ao que retorna do real ou do atual em dire~ao ao virtual. Atradi~ao filosofica, ate os trabalhos mais recentes, analisa a pas-sagem do possivel ao real ou do virtual ao atual. Nenhum estudoainda, ao que eu saiba, analisou a transformar;ao inversa, em di-re~ao ao virtual. Ora, e precisamente esse retorno a montante queme parece caracteristico tanto do movimento de autocria~ao quefez surgir a especie humana quanto da transi~ao cultural acelera-da que vivemos hoje. 0 desafio deste livro e portanto triplo: filo·sofico (0 conceito de virtualiza~ao), antropologico (a rela~ao en-tre 0 processo de hominiza~ao e a virtualiza~ao) e socio-polltico(compreender a muta~ao contemporanea para poder atuar nela).Sobre este ultimo ponto, e preciso dizer que a alternativa maiornao coloca em cena uma hesita~ao grosseiramente alinhavada en-tre 0 real e 0 virtual, mas antes uma escolha entre diversas moda-lidades de virtualizac,;ao. Mais que isso, devemos distinguir entreuma virtua lizac,;ao em curso de inven~ao, de urn lado, e suas cari-caturas alienantes, reificantes e desqualificantes, de outro. Don-

.It-, a Illeu vcr, a urgente necessidaJe de uma cartografia do virtual

.1 qllal responde este "compendio de virtuali/,;ll,-ao".

No primeiro capitulo, "0 que e a virtualizac,;ao?", ddino osprincipais conceitos de realidade, de possibilidade, de atualidadec de virtualidade que serao utilizados a seguir, bem como as dife-rClltes transforma~6es de urn modo de ser em outro. Esse capitu-lo e tambem a oportunidade de urn come~o de analise da vir-tllaliza~ao propriamente dita, e em particular da "desterritoria-liza~ao" e outros fenomenos espa~o-temporais estranhos que Ihesan geralmente associados.

Os tres capftulos seguintes dizem respeito a virtualiza~ao docorpo, do texto e da economia. Os conceitos obtidos anteriormentesan aqui explorados em rela~ao a fenomenos contemporaneos epermitem analisar de maneira coerente a dinamica da muta~aoeconomica e cultural em curso.

o quinto capitulo analisa a hominizar;ao nos termos da teoriaILl virtualiza~ao: virtualiza~ao do presente imediato pela lingua-gem, dos atos £1sicos pela tecnica e da violencia pelo contrato.Assim, apesar de sua brutalidade e de sua estranheza, a crise del'iviliza~ao que vivemos pode ser repensada na continuidade daaventura humana.

o capitulo seis, "As opera~6es da virtualiza~ao", utiliza osIIlateriais empiricos acumulados nos capftulos precedentes parapi'lr em evidencia 0 nucleo invariante de operar;oes elementares!Irt'sentes em todos os processos de virtualizar;ao: os de uma gra-IILitica, de uma dialetica e de uma retorica ampliadas para abran-gn os fenomenos tecnicos e sociais.

Os setimo e oitavo capftulos examinam "A virtualiza~ao da1111digencia". Apresentam 0 funcionamento tecno-social da cog-Ili,i1o seguindo uma dialetica da objetiva~ao da interioridade e dasllhietiva~ao da exterioridade, dialetica que veremos ser tfpica davi rlualiza~ao. Esses capftulos desembocam em do is resultadospllilcipais. Em primeiro lugar, uma visao renovada da inteligen-,'01 coletiva em via de emergencia nas redes de comunica~ao digi-

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tais. A seguir, a constru(clo de um conceito de objeto (mediadorsocial, suporte tecnico l' 11(')das operac;:oes intelectuais) que vemrematar a teoria da virlu;t1iz:1~·;io.

o nono capitulo J'('SUlIll',sistcmatiza e relativiza os conhe-cimentos adquiridos all';lv('s da obra, e depois esboc;:a 0 projetode uma filosofia capa". dc allllhcr a dualidade do acontecimentoe da substiincia ljU('S('J';1('\aluillada, em filigrana, ao longo de todoo trabalho.

() cpilogo, ("dill), 1lllld:1ll1a a uma arte da virtualizac;:ao, alima lIova SI'IISIbilllLldc l'sl ('t ic] que, nestes tempos de grande des-territorializ;l~';IO, Llria dt' 1IIIIahospitalidade ampliada slla virtu-de cardinal.

Consideremos, para comec;:ar, a oposic;:ao facil e enganos~entre real e virtual. No uso corrente, a palavra virtual e emprega-da com freqiiencia para significar a pura e simples ausencia decxistencia, a "realidade" supondo uma efetuac;:ao material, umapresenc;:a tangfvel. 0 real seria da ordem do "tenho", enquanto 0

virtual seria da ordem do "teras", ou da ilusao, 0 que permitegeralmente 0 uso de uma ironia facil para evocar as diversas for-mas de virtualizac;:ao. Como veremos mais adiante, essa aborda-gem possui uma parte de verda de interessante, mas e evidentemen-tc demasiado grosseira para fundar uma teoria geral.

A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivadopor sua vez de virtus, forc;:a, potencia. Na filosofia escolastica, evirtual 0 que existe em potencia e nao em ato. 0 virtual tende aatualizar-se, sem ter passado no entanto a concretizac;:ao efetivaou formal. A arvore esta virtualmente presente na semente. Emtermos rigorosamente filos6ficos, 0 virtual nao se opoe ao real masao atual: virtualidade e atualidade san apenas duas maneiras deSl'r diferentes.

Aqui, cabe introduzir uma distinc;:ao capital entre possfvel evirtual que Gilles Deleuze trouxe a luz em Difference et repetition1.

( ) possfvel ja esta todo constitufdo, mas permanece no limbo. 0

I As referencias completas das obras citadas se encontram na biblio-gl'afia comentada no final deste volume (p. 151).

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possivel se realizara sem qlle nada mude em sua determina<,:ao nemem sua natureza. E Ulll real fantasmatico, latente. 0 possivel eexatamente como 0 real: S(')the falta a existencia. A realizac;:ao deum possivel nao e UIll;l l r1;l<,:ao,no sentido pleno do termo, poisa criac;:ao implica talllhl'lll ;1 produc;:ao inovadora de uma ideia oude uma forma. A diflT('II~;1 entre possivel e real e, portanto, pu-ramente logic a .

Ja 0 virtllaln;]o Sl' ('Ill Ie ao real, mas sim ao atual. Contraria-mente ao possivel, ('Sl:llll 0 e ja constituido, 0 virtual e como 0

complexo prohil'lll;il iUl, II Ill')de tendcncias ou de forc;:asque acom-panha 1I1llasiI1l;H..';10, 11111.Il'ontecimento, um objeto ou uma enti-dade qllalqlll'r, e qlle l'h.llila urn processo de resoluc;:ao: a atuali-zac;:ao. Esse COIllPil'xo plllhiematico pertence a entidade conside-rada e constitui indllsiv(' lima de suas dimens6es maiores. 0 pro-blema da sementc, pOl' l'x('mplo, e fazer brotar uma arvore. A se-mente "e" esse problem;l, mesmo que nao seja somente isso. Istosignifica que ela "conhl'cc" exatamente a forma da arvore queexpandira finalmente SU;lfolhagem acima dela. A partir das coer-c;:6esque Ihe sao proprias, devera inventa-Ia, coproduzi-Ia com ascircunstancias que encontrar.

Por um lado, a entidade carrega e produz suas virtualidades:urn acontecimento, por exemplo, reorganiza uma problematicaanterior e e suscetivel de receber interpretac;:6es variadas. Por outrolado, 0 virtual constitui a entidade: as virtualidades inerentes aurn ser, sua problematica, 0 no de tens6es, de coerc;:6es e de pro-jetos que 0 animam, as quest6es que 0 movem, sao uma parteessencial de sua determinac;:ao.

"IIl.11l:llgo Illais que a dotac;:ao de realidadc a 1I1llposslvl'l Oil 'I"I'11111,1('scolha entre U111conjunto predeterminado: 1I1ll;1prodll~';10.I,' '1".1lidades novas, uma transformac;:ao das idcias, llill vl'rILldl'iro.1'1'11'que alimenta de volta 0 virtual.

Por exemplo, se a execuc;:ao de urn programa infort1lat ilo,1"1I:llllcnte logica, tern a ver com 0 par possivel/real, a intera!.;;\l)"lilli' humanos e sistemas infarmaticos tern a ver com a dialeticatill vinual e do atual.

1\ montante, a redac;:ao de urn programa, por exemplo, tra-l.1 IlIlt problema de modo original. Cada equipe de programado-I"', redefine e resolve diferentemente 0 problema ao qual e con-1llIlll:lda. A jusante, a atualizac;:ao do programa em situac;:ao deIIIdll.;ll.;;'io,par exemplo, num grupo de trabalho, desqualifica cer-1.1'.l (liltpctcncias, faz emergir outros funcionamentos, desencadeia'"l1lliIOS, desbloqueia situac;:6es, instaura uma nova dinamica deI IILlhora<,:;1o... 0 programa contem uma virtualidade de mud an-',.1 '1"1' 0 grupo - movido ele tambem par uma configurac;:ao di-11,\1111,'.1de tropismos e coerc;:6es - atualiza de maneira mais ou

1I11'II1lSiltvcntiva.() real assemelha-se ao possivel; em troca, 0 atual em nada

',,' ,1·,·,('lltl'lha ao virtual: responde-lhe.

( :lIlltpreende-se agora a diferenc;:a entre a realizac;:ao (ocar-

1'"11.1tI(, Ilin cstado pre-definido) e a atualizac;:ao (invenc;:ao de uma',11111',,111n;igida par urn complexo problematico). Mas 0 que e a,",",tI',:d\,/()? Niio mais 0 virtual como maneira de ser, mas a, II11I,t111,1<,:IOcomo dinamica. A virtualizar,;ao pode ser definida, , '/II' I " III' 1/'ill1ento inverso da atualizar,;ao. Consiste em uma pas-

II" III till ,111Ialao virtual, em uma "elevac;:ao a potencia" da en-II' I." I, , IIlIsiderada. A virtualizac;:ao nao e uma desrealizac;:ao (aI' 111"j,11111.1<,:10de uma realidade num conjunto de possiveis), mas1i1l1,1llilll.It,,11lde identidade, urn deslocamento do centro de gra-

A atualizac;:ao aparece entao como a soluc;:ao de urn proble-ma, uma soluc;:ao que nao estava contida previamente no enuncia-do. A atualizac;:ao e criac;:ao, invenc;:ao de uma farma a partir deuma configurac;:ao dinamica de forc;:as e de finalidades. Acontece

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vidade ontolagico do objeto considerado: em vez de se definirprincipalmente por sua atualidade (uma "solw;:ao"), a entidadepassa a encontrar sua consistencia essencial num campo proble-matico. Virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobriruma questao geral a qual ela se relaciona, em fazer mutar a enti-dade em direc;:ao a cssa interrogac;:ao e em redefinir a atualidadede partida como res posta a uma questao particular.

Tomemos 0 caso, muito contemporaneo, da "virtualizac;:ao"de uma empresa. A organizac;:ao classica reune seus empregadosno mesmo prcdio Oll nllm conjunto de departamentos. Cada em-pregado oCllpa lJlll posto de trabalho precisamente situado e seulivro de ponto especifica os horarios de trabalho. Uma empresavirtual, em troca, serve-sc principalmente do teletrabalho; tendea substituir a presen<;a fisica de seus empregados nos mesmos 10-cais pela participac;:ao numa rede de comunicac;:ao eletronica e pelouso de recurs os e programas que favorec;:am a cooperac;:ao. Assim,a virtualizac;:ao da empresa consiste sobretudo em fazer das coor-denadas espac;:o-temporais do trabalho urn problema sempre re-pensado e nao uma solw;:ao estavel. 0 centro de gravidade da or-ganizac;:ao nao e mais urn conjunto de departamentos, de postosde trabalho e de livros de ponto, mas urn processo de coordena-c;:aoque redistribui sempre diferentemente as coordenadas espa-c;:o-temporais da coletividade de trabalho e de cad a urn de seusmembros em func;:ao de divers as exigencias.

A atualizac;:ao ia de urn problema a uma soluc;:ao. A virtuali-zac;:ao passa de uma soluc;:ao dada a urn (outro) problema. Elatransforma a atualidade inicial em caso particular de uma proble-matica mais geral, sobre a qual passa a ser colocada a enfase onto-lagica. Com isso, a virtualizac;:ao fluidifica as distinc;:oes instituldas,aumenta os graus de liberdade, cria urn vazio motor. Se a virtua-lizac;:ao fosse apenas a passagem de uma realidade a urn conjuntode posslveis, seria desrealizante. Mas elalimplica a mesma quanti-dade de irreversibilidade em seus efeitos, de indeterminac;:ao emseu processo e de invenc;:ao em seu esforc;:o quanto a atualizac;:ao.A virtualizac;:ao e urn dos principais vetores da criac;:ao de realidade.

Apos ter definido a virtualizac;:ao no que ela tern de maisgeral, vamos abordar agora uma de sllas principais modalidades:o desprendimento do aqui e agora. (:onlO assinalamos no come-C;:O, 0 senso comum faz do virtual, inapreensivcl, 0 complementardo real, tanglvel. Essa abordagem contcm lima indica<;ao que nnose deve negligenciar: 0 virtual, com muita freqilcncia, "nao estapresente" .

A empresa virtual nao pode mais ser situada precisamente.Seus elementos sao nomades, dispersos, e a pertinencia de suaposic;:ao geografica decresceu muito.

Estara 0 texto aqui, no papel, ocupando uma pon;:ao defi-Ilida do espac;:o fisico, ou em alguma organizac;:ao abstrata que seatualiza numa pluralidade de Hnguas, de versoes, de edic;:oes, det ipografias? Ora, urn texto em particular passa a apresentar-se(l )!TIO a atualizac;:ao de urn hipertexto de suporte informatico. EsteIdlimo ocupa "virtualmente" todos os pontos da rede ao qual estal"onectada a memoria digital onde se inscreve seu codigo? Ele se('st"cnde ate cada instalac;:ao de onde poderia ser copiado em al-l',llns segundos? Claro que e posslvel atribuir urn enderec;:o a urn"rquivo digital. Mas, nessa era de informac;:oes on line, esse en-(krcc;:o seria de qualquer modo transitorio e de pouca importan-(1'1. Desterritorializado, presente por inteiro em cada uma de suasVl'rS()es, de suas capias e de suas projec;:oes, desprovido de iner-

2 Nesta sec,:ao,Pierre Levy faz uma serie de jogos de palavra com 0 ter-11111 Iranees "Ia". Se, por urn lado, ha uma remissao explicita ao Dasein de11"I<!l'ggt'r,traduzido em partugues por "ser-ai" e traduzido literalmente emII ,1I1'('S por urn "etre-Ia", par outro a construc,:ao geral do texto em frances e1',I',I,lllll' co\oquial.

l'ar'l nao dificultar a leitura desta sec,:ao, optamos par traduzir "Ia", 1111111 "I'rcscn<;:a", termo mais adequado no contexto. Mantivemos, contu-till, ,I l'xl'rcssao "ser-ai" na passagem em que 0 auror cita explicitamente 0

I ,,,,,'/11 de Ilcidcgger.

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cia, habitante ubiquo do ciberespa<;:olo hipertexto contribui paraproduzir aqui e acola acontecimentos de atualiza<;:ao textual, denavega<;:ao e de leitura. Somente estes acontecimentos san verda-deiramente situados.)Embora necessite de suportes ffsicos pesa-dos para subsistir e atualizar-se, 0 imponderavel hipertexto naopossui urn lugar.

o livro de Michel Serres, Atlas, ilustra 0 tema do virtualcomo "nao-presen~a". A imagina<;:ao, a memoria" 0 conhecimento,a religiao sao vetores de virtualiza<;:ao que nos fizeram abando-nar a presen<;a muito antes da informatiza<;:ao e das redes digitais.Ao desenvolvcr esse tema, 0 autor de Atlas leva adiante, indire-tamente, uma polemica com a filosofia heideggeriana do "ser-at'."Ser-at' e a tradu<;ao literal do alemao Dasein que significa, emparticular, existencia no alemao filosofico classico e existencia pro-priamente humana - ser um ser humano - em Heidegger. Mas,precisamente, 0 fato de nao pertencer a nenhum lugar, de freqiien-tar urn espa<;:onao designavel (onde ocorre a conversa<;:ao telefo-nica?), de ocorrer apenas entre coisas claramente situadas, ou denao estar somente "presente" (como todo ser pensante), nada dissoimpede a existencia. Embora uma etimologia nao prove nada,assinalemos que a palavra existir vem precisamente do latim sis-tere, estar colocado, e do prefixo ex, fora de. Existir e estar pre-sente ou abandonar uma presen<;:a? Dasein ou existencia? Tudose passa como se 0 alemao sublinhasse a atualiza<;:ao e 0 latim avirtualiza<;:ao.

Uma comunidade virtual pode, por exemplo, organizar-sesobre uma base de afinidade por intermedio de sistemas de comu-nica<;:ao telematicos. Seus membros estao reunidos pelos mesmosnucleos de interesses, pelos mesmos problemas: a geografia, contin-gente, nao e mais nem urn ponto de partida, nem uma coer<;:ao.Apesar de "nao-presente", essa comunidade esta repleta de paix6ese de projetos, de conflitos e de amizades. Ela vive sem lugardereferencia estavel: em toda parte onde se encontrem seus membrosmoveis ... ou em parte alguma. A virtualiza<;:ao reinventa uma cul-tura nomade, nao por uma volta ao paleoHtico nem as antigas ci-

vili:l,;\l,'(iesde pastores, mas fazcndo surgir urn meio de intera<;:6essociais onde as rela~6es se reconfiguram com urn minimo de inercia.

Quando uma pessoa, uma coletividade, urn ato, uma infor-l11a<;:aose virtualizam, eles se tornam "nao-presentes", se des-territorializam.Uma especie de desengate os separa do espa<;:ofisico ou geografico ordinarios e da temporalidade do relogio edo calendario. E verdade que nao sao totalmente independentesdo espa<;:o-tempo de referencia, uma vez que devem sempre seinserir em suportes ffsicos e se atualizar aqui ou alhures, agoraou mais tarde. No entanto, a virtualiza<;:ao Ihes fez tomar a tan-gente. Recortam 0 espa<;:o-tempo classico apenas aqui e ali, esca-pando a seus lugares comuns "realistas": ubiqiiidade, simultanei-dade, distribui<;:ao irradiada ou massivamente paralela. A virtua-Iiza<;:aosubmete a narrativa classica a uma prova rude: unidadede tempo sem unidade de lugar (gra<;:as as intera<;:6es em temporeal por redes eletronicas, as transmiss6es ao vivo, aos sistemasde telepresen<;:a), continuidade de a<;:aoapesar de uma dura<;:aodescontfnua (como na comunica<;:ao por secretaria eletronica oupor correio eletronico). A sincroniza<;:ao substitui a unidade delugar, e a interconexao, a unidade de tempo. Mas, novamente, nempor isso 0 virtual e imaginario. Ell' produz efeitos. Embora naose saiba onde, a conversa<;:ao telefonica tern "Iugar", veremos deque maneira no capitulo seguinte. Embora nao se saiba quando,comunicamo-nos efetivamente por replicas interpostas na secre-uiria eletronica. Os operadores mais desterritorializados, maisdesatrelados de urn enraizamento espa<;:o-temporal preciso, oscoletivos mais virtualizados e virtualizantes do mundo contem-poraneo san os da tecnociencia, das finan<;:as e dos meios de co-l11unica<;:ao.Sao tambem os que estruturam a realidade social comIllais for<;:a,e ate com mais violencia.

Fazer de uma coer<;:ao pesadamente atual (a da hora e dageografia, no caso) uma variavel contingente tern aver clara mentecom 0 remontar i~ventivo de uma "solu<;:ao" efetiva em dire<;:ao;1 llma problematica, e portanto com a virtualiza<;:ao no sentido('m que a definimos rigorosamente mais acima. Era portanto pre-

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visivel encontrar a desterritorializa~ao, a saida da "presen~a", do"agora" e do "isto" como uma das vias regias da virtualiza~ao.

dllr:H;CIl'Sse op6em, interferem e se respondem. A multiplica~ao(lIlItcmporanea dos espa~os faz de nos nomades de urn novo es-t II( I: em vez de seguirmos linhas de errancia e de migra~ao dentrode lima extensao dada, saltamos de uma rede a outra, de urn sis-tellla de proximidade ao seguinte. Os espa~os se metamorfoseiam(' se hifurcam a nossos pes, for~ando-nos a heterogenese.

A virtualiza~iio por desconexiio em rela~iioa um meio par-(imlar nao come~ou com 0 humano. Ela esta inscrita na propriahist6ria da vida. Dos primeiros unicelulares ate as aves e mami-leros, os melhoramentos da locomo~ao abriram, segundo JosephReichholf, "espa~os sempre mais vastos e possibilidades de exis-Il'ncia sempre mais numerosas aos seres vivos" (Reichholf, 1994,p. 222). A inven~ao de novas velocidades e 0 primeiro grau dav irtualiza~ao.

Reichholf observa que "0 numero de pessoas que se deslo-cam atraves dos continentes nos periodos de ferias, hoje em dia,t' superior ao numero total de homens que se puseram a caminhono momento das grandes invasoes" (Reichholf, 199, p. 226). Aacelera~ao das comunica~6es e contemporanea de urn enormecrcscimento da mobilidade ffsica. Trata-se na verdade da mesmaonda de virtualiza~ao. 0 turismo e hoje a primeira industria mun-dial em volume de negocios. 0 peso economico das atividades queslistentam e mantem a fun~ao de locomo~ao ffsica (veiculos, in-fraestruturas, carburantes) e infinitamente superior ao que era nosscculos passados. A multiplica~ao dos meios de comunica~ao e 0

crescimento dos gastos com a comunica~ao acabado por substi-tllir a mobilidade ffsica? Provavelmente nao, pois ate agora os doiscrescimentos sempre foram paralelos. As pessoas que mais telefo-nam san tambem as que mais encontram outras pessoas em car-nc e osso. Repetimos: aumento da comunica~ao e generaliza~aodo transporte rapido participam do mesmo movimento de virtua-liza~ao da sociedade, da mesma tensao em sair de uma "presen~a".

A revolu~ao dos transportes complicou, encurtou e meta-morfoseou 0 espa~o, mas isto evidentemente foi pago com impor-tantes degrada~oes do ambiente tradicional. Por analogia com os

Mas 0 mesmo movimento que torna contingente 0 espa~o-tempo ordin:lrio ahre novos meios de intera~ao e ritmo das cro-nologias incditas. Antes de analisar essa propriedade capital davirtualizal;iio, cahe-nos primeiramente evidenciar a pluralidade dostempos e dos espal;os. Assim que a subjetividade, a significa~ao ea pertinencia entram em jogo, nao se pode mais considerar umaunica extensao ou uma cronologia uniforme, mas uma quantida-de de tipos de espacialidade e de dura<;:ao. Cada forma de vidainventa seu mundo (do micr6bio a arvore, da abelha ao elefante,da ostra a aye migratorial e, com esse mundo, urn espa~o e urntempo especificos. 0 universo cultural, proprio aos humanos,estende ainda mais essa variabilidade dos espa~os e das tempo-ralidades. Por exemplo, cada novo sistema de comunica~ao e detransporte modifica 0 sistema das proximidades praticas, isto e,o espa~o pertinente para as comunidades humanas. Quando seconstroi uma rede ferroviaria, e como se aproximassemos fisica-mente as cidades ou regioes conectadas pelos trilhos e afastasse-mos desse grupo ascidades nao conectadas. Mas, para os que naoandam de trem, as antigas disrancias ainda san validas. 0 mes-mo se poderia dizer do automovel, do transporte aereo, do tele-fone etc. Cria-se, portanto, uma situa~ao em que varios sistemasde proximidades e varios espa~os praticos coexistem.

De maneira analoga, diversos sistemas de registro e de trans-missao (tradi<,:ao oral, escrita, registro audiovisual, redes digitais)constr6em ritmos, velocidades ou qualidades de historia diferen-tes. Cada novo agenciamento, cada "maquina" tecnossocial acres-centa urn espa~o-tempo, uma cartografia especial, uma musicasingular a uma especie de trama elastica e complicada em que asextensocs se recobrem, se deformam e se conectam, em que as

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problemas da locomo<;ao, devemos nos interrogar sobre 0 pre<;oa ser pago pela virtualiza<;ao informacional. Que carburante equeimado, sem que ainda sejamos capazes de contabiliza-lo? 0que sofre desgaste e degrada<;ao? Ha paisagens de dados devasta-das? Aqui, 0 suportc final e subjetivo. Assim como a ecologia oposa reciclagem e as tccnologias adaptadas ao desperdfeio e a polui-<;ao, a ecologia humana devera opor a aprendizagem permanen-te e a valoriza~ao das cOlllpetencias a desqualifica<;ao e ao acumulode detritos humanos (aquclcs que chamamos de "exduidos").

Retenhamos dcssa mcdita~ao sobre a saida da "presen<;a"que a virtualiza<;ao nao se contenta em acelerar process os ja co-nhecidos, nem em colocar entre parenteses, e ate mesmo aniqui-lar, 0 tempo ou 0 espa<;o, como pretende Paul Virilio. Ela inven-ta, no gasto e no risco, velocidades qualitativamente novas, espa-<;os-tempos mutantes.

Alem da desterritorializa<;ao, urn outro carater e freqiien-temente associ ado a virtualiza<;ao: a passagem do interior ao ex-terior e do exterior ao interior. Esse "efeito Moebius" declina-seem varios registros: 0 das rela<;oes entre privado e publico, pro-prio e comum, subjetivo e objetivo, mapa e territorio, autor e lei-tor etc. Darei numerosos exemplos disso na continua<;ao deste livromas, para oferecer desde agora uma imagem, essa ideia pode serilustrada com 0 caso ja evocado da virtualiza<;aoda empresa.

o trabalhador classico tinha sua mesa de trabalho. Em tro-ca, 0 participante da empresa virtual compartilha urn certo nu-mero de recursos imobiliarios, mobiliarios e programas com ou-tros empregados. 0 membro da empresa habitual passava do es-pa<;o privado de seu domicflio ao espa<;o publico do lugar de tra-balho. Por contraste, 0 teletrabalhador transforma seu espa<;oprivado em espa<;o publico e vice-versa. Embora 0 inverso sejageralmente mais verdadeiro, ele consegue as vezes gerir segundo

ll'lll·rioS pUl';lmcntc pessoais uma temporalidade publica. Os li-mill's 11.10sao mais dados. Os lugares e tempos se misturam. AsIrtlntciras nftidas dao lugar a uma fractaliza<;ao das reparti<;oes.Sao as proprias no<;oes de privado e de publico que sao questio-11;ldas.Prossigamos: falei de "membro" da empresa, 0 que supoelllna atribui<;ao clara das rela<;oes de pertencimento. Ora, e pre-visamcnte isto que come<;a a criar problema, uma vez que entre 0assalariado classico com contrato indeterminado, 0 assalariadol'OIll contrato determinado, 0 free lancer, 0 beneficiario de medi-dns sociais, 0 membro de uma empresa associada, ou cliente ouI( lI'nccedora, 0 consultor esporadico, 0 independente fiel, to do urn(()lItinuum estende-se. E para cada ponto do continuum, a ques-Ll0 sc recoloca a to do instante: para quem estou trabalhando? Ossistcmas interempresas de gestao eletronica de documentos, assimC0l110os grupos de projetos comuns a varias organiza<;oes, tecemCOIllfreqiiencia liga<;oes mais fortes entre coletivos mistos que asq uc unem passivamente pessoas pertencendo oficialmente a mes-Ina cntidade juridica. A mutualiza<;ao dos recursos, das informa-~'(-)ese das competencias provoca claramente esse tipo de indeci-sao ou de indistin<;ao ativa, esses circuitos de reversao entre exte-l'ioridade e interioridade.

As coisas so tern limites claros no real. A virtualiza<;ao, pas-sagcm a p~oblematica, deslocamento do ser para a questao, e algoque necessariamente poe em causa a identidade classica, pensa-mento apoiado em defini<;oes, determina<;oes, exclusoes, inclusoesl' tcrceiros excluidos. Por isso a virtualiza<;ao e sempre hetero-gC'nese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade. Con-Vl-Illevidentemente nao confundir a heterogenese com seu con-Irj rio proximo e amea<;ador, sua pior inimiga, a aliena<;ao, quecu caracterizaria como reifica<;ao, redu<;ao a coisa, ao "real".

Todas essas no<;oes vao ser desenvolvidas e ilustradas nosclpitulos seguintes sobre tres casos concretos: as virtualiza<;oescontempodneas do corpo, do texto e da economia.

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Estamos ao mesmo tempo aqui e 1<i gra~as as tecnicas del"()munica~ao e de telepresen~a. Os equipamentos de vizualiza~aomedicos tornam transparente nossa interioridade organica. Os en-xertos e as pr6teses nos misturam aos outros e aos artefatos. Noprolongamento das sabedorias do corpo e das artes antigas da;dimenta~ao, inventamos hoje cern maneiras de nos construir, de1l0S remodelar: dietetica, body building, cirurgia plastica. Altera-mos nossos metabolismos individuais por meio de drogas ou me-dicamentos, especies de agentes fisiol6gicos transcorporais ou desccre~6es coletivas ... e a industria farmad~utica descobre regular-mcnte novas moleculas ativas. A reprodu~ao, a imunidade con-ITaas doen~as, a regula~ao das emo~6es, todas essas performancesclassicamente privadas, tornam-se capacidades publicas, inter-cambiaveis, externalizadas. Da socializa~ao das fun~6es somaticasau autocontrole dos afetos ou do humor pel a bioqufmica indus-trial, nossa vida ffsica e psfquica passa cada vez mais por uma"exterioridade" complicada na qual se misturam circuitos econo-micos, institucionais e tecnocientfficos. No final das contas, asbiotecnologias nos fazem considerar as especies atuais de plantasou de animais (e mesmo 0 genero humano) como casos particularesc talvez contingentes no seio de urn continuum biol6gico virtual111uitomais vasto e ainda inexplorado. Como a das informa~6es,dos conhecimentos, da economia e da sociedade, a virtualiza~aodus corpos que experimentamos hoje e uma nova etapa na aven-tura de autocria~ao que sustenta nos sa especie.

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Estudemos agora algumas fun<;:oessomatic as em detalhe paradesmontar 0 funcionamento do processo contemporaneo de vir-tualiza<;:ao do corpo. Comecemos pela percep<;:ao, cujo papel etrazer 0 mundo aqui. Essa func,:ao e claramente externalizada pelossistemas de telecomunicac,:ao. 0 telefone para a audi<;:ao, a televi-sao para a visao, os sistemas de telemanipula<;:oes para 0 tate e aintera<;:ao sensorio-motora, todos esses dispositivos virtualizam ossentidos. E ao faze-lo, organizam a coloca<;:ao em comum dos or-gaos virtualizados. As pessoas que veem 0 mesmo programa detelevisao, por exemplo, compartilham 0 mesmo grande olho co-letivo. Gra<;:as as maquinas fotograficas, as cameras e aos grava-dores, podemos perceber as sensa<;:oes de outra pessoa, em outromomento e outro lugar. Os sistemas ditos de realidade virtual nospermitem experimentar, alem disso, uma integra<;:ao dinamica dediferentes modalidades perceptivas. Podemos quase reviver a ex-periencia sensorial completa de outra pessoa ..

A fun<;:ao simetrica da percep<;:ao e a proje<;:ao no mundo,tanto da a<;:aocomo da imagem. A proje<;:ao da a<;:aoesta eviden-temente ligada as maquinas, as redes de transporte, aos circuitosde produ<;:ao e de transferencia da energia, as armas. Nesse caso,urn grande mimero de pessoas compartilham os mesmos enormesbra<;:os virtuais e desterritorializados. Inutil desenvolver longa-mente esse aspecto relacionado mais especificamente a analise dofenomeno tecnico.

A proje<;:ao da imagem do corpo e geralmente associada ano<;:ao de telepresen<;:a. Mas a telepresen<;:a e sempre mais que asimples proje<;:ao da imagem.

o telefone, por exemplo, ja funciona como urn dispositivode telepresen<;:a, uma vez que nao leva apenas uma imagem ou uma

Irpn'sl'lIlac,',\o cia voz: transporta a propria voz. 0 telefone sepa-m a v0'1. (Oll corpo sonoro) do corpo tangivel e a transmite a dis-Lll1cia. Meu corpo tangivel esta aqui, meu corpo sonoro, desdo-hrado, esta aqui e la. 0 telefone ja atualiza uma forma parcial deIIhiqiiidade. Eo corpo sonoro de meu interlocutor e igualmenteafetado pelo mesmo desdobramento. De modo que ambos esta-I\lOS, respectivamente, aqui e la, mas com urn cruzamento na dis-Iribui<;:ao dos corpos tangiveis.

Os sistemas de realidade virtual transmitem mais que ima-gens: uma quase presen<;:a. Pois os clones, agentes visiveis ou ma-rionetes virtuais que comandamos por nossos gestos, podem afe-tar ou modificar outras marionetes ou agentes visiveis, e inclusi-ve acionar a distancia aparelhos "reais" e agir no mundo ordina-rio. Certas fun<;:oesdo corpo, como a capacidade de manipula<;:aoligada a retroa<;:ao sensorio-motora em tempo real, sao assim cla-ramente transferidas a distancia, ao lunge de uma cadeia tecnicacomplexa cada vez mais bem controlada em determinados am bien-res industriais.

o que torna 0 corpo visivel? Sua superffcie: a cabeleira, apcle, 0 brilho do olhar. Ora, as imagens medicas nos permitemvcr 0 interior do corpo sem atravessar a pele sensivel, sem secio-liar vasos, sem cortar tecidos. Dir-se-ia que fazem surgir outraspcles, dermes escondidas, superficies insuspeitadas, vindo a tonado fundo do organismo. Raios X, scanners, sistemas deressonan-ria magnetic a nuclear, ecografias, cameras de positons virtualizam;1 superficie do corpo. A partir dessas membranas virtuais, pode-st' reconstruir modelos digitais do corpo em tres dimensoes e, apartir dai, maquetes solidas que ajudarao os medicos, por exem-plo, a preparar uma opera<;:ao. Pois todas essas peles, todos esseslorpos virtuais tern efeitos de atualiza<;:ao muito importantes nodiagnostico medico e na cirurgia. No reino c\o virtual, a analise e

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a reconstrw;,:ao do corpo nao implica mais a dor nem a morte.Virtualizada, a pele torna-se permeavel. Antes que tenham nasci-do, ja e possivel conhecer 0 sexo e quase 0 rosto dos filhos.

Cada novo aparelho acrescenta urn genero de pele, urn cor-po visivel ao corpo atual. 0 organismo e revirado como uma luva.o interior passa ao exterior ao mesmo tempo em que permanecedentro. Pelos sistemas de vizualiza~ao medicos, uma massa folhea-da de peliculas prolifera em dire~ao ao centro do corpo. Pela tele-presen~aecpelos sistemas de comunica~ao, os corpos visiveis, au-diveis e sensiveis se multiplicam e se dispersam no exterior. Comono universo de Lucrecio, uma quantidade de peles ou de espec-tros dermat6ides emanam de nosso corpo: os simulacros.

A virtuaIizac,;ao do corpo incita as via gens e a todas as tro-cas. Os transplantes criam uma grande circulac,;ao de 6rgaos en-tre os corpos humanos. De urn individuo a outro, mas tambementre os mortos e os vivos. Entre a humanidade, mas igualmentede uma especie a outra: enxertam-se nas pessoas cora~oes de ba-buino, figados de porco, fazem-nas ingerir hormonios produzidospor bacterias. Os implantes e as pr6teses confundem a fronteiraentre 0 que e mineral e 0 que esta vivo: 6culos, lentes de contato,dentes falsos, silicone, marca-passos, pr6teses acusticas, implan-tes auditivos, filtros externos funcionando como rins sadios.

Os olhos (as c6rneas), 0 esperma, os 6vulos, os embrioes esobretudo 0 sangue saD agora socializados, mutualizados e pre-servados em bancos especi~is. Urn sangue desterritorializado correde corpo em corpo atraves de uma enorme rede internacional daqual nao se po de mais distinguir os componentes economicos,tecnol6gicos e medicos. 0 fluido vermelho da vida irriga urn cor-po coletivo, sem forma, disperso. A carne e 0 sangue, postos emcomum, deixam a intimidade subjetiva, pass am ao exterior. Masessa carne publica retorna ao individuo transplantado, ao be-

Ill'lIri:irio de uma transfusao, ao consumidor de hormonios. 0I III"pOcoletivo acaba por modificar a carne primaria. As vezes,Il'sslIscita-a ou fecunda-a in vitro.

A constitui~ao de urn corpo coletivo e a partieipa~ao dosIlldividuos nessa comunidade fisica serviu-se por muito tempo delIIl'dia<;oes puramente simb6licas ou religiosas: "Isto e meu cor-po, isto e meu sangue". Hoje ela recorre a meios tecnicos.

Assim como compartilhamos desde 0 tempo dos afonsinosllllla dose de inteligencia e de visao do mundo com os que falam.1 Illesma lingua, hoje nos associamos virtualmente num s6 corpoI 011Ios que participam das mesmas redes tecnicas e medicas. Cada(lII"pO individual torna-se parte integrante de urn imenso hiper-(OI"pOhibrido e mundializado. Fazendo eco ao hiperc6rtex quel'Xpande hoje seus axonios pelas redes digitais do planeta, 0 hiper-II )rpo da humanidade estende seus tecidos quimericos entre as('pidermes, entre as especies, para alem das fronteiras e dos ocea-1I0S,de uma margem a outra do rio da vida.

Como se fosse para reagir a virtualizac,;ao dos corpos, nossa1'lHlCaviu desenvolver-se uma pratica esportiva que certamente1:lll1aisatingiu uma proporc,;ao tao grande da popula~ao. Nao falo;Iqlli dos corpos "sadios" e atleticos postos em cena pelos reg i-lilt'S politicos autoritarios ou promovidos pelas revistas de modaI' a publicidade, nem mesmo dos esportes de equipe, dos quaisIr:ltarei no capitulo sobre a virtualizac,;ao da inteligencia. Refiro-1 Ill' a esse esforc,;ode ultrapassar limites, de conquistar novos meios,dc intensificar as sensac,;oes, de explorar outras velocidades queS(' manifesta numa explosao esportiva especifica de nossa epoca.

Atraves da nata~ao (esporte muito pouco praticado antes doSI'Cldo XX), domesticamos 0 meio aquatico, aprendemos a per-der pc, experimentamos uma maneira nova de sentirmos 0 mun-do (' de sermos levados no espac,;o. pr,aticado como urn lazer, 0 mer-

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gulho submarino maximiza essa mudan<;:a de meio. A espeleologia,que conduz ao "centro da terra", era pouco praticada antes deJulio Verne. 0 alpinismo confronta os corpos ao ar rarefeito, aofrio intenso, a subida implacavel. E precisamente por isso que elese tornou praticamente urn esporte de massa. Em cada caso, tra-ta-se do mesmo movimento de safda da norma, de hibrida<;:ao, de"devires" que tendem quase a metamorfose. Tornar-se peixe, tor-nar-se cabra-sclvagem, tornar-se passaro ou morcego.

Os mais emblematicos dentre os esportes extremos de devire de tensao sao as praticas de queda (para-quedas, asa delta, saItocom elastico) e de deslizamento (esqui alpino, esqui aquatico, sur-fe e windsurfe). Em urn certo sentido, sao rea<;:6esa virtualiza<;:ao.Esses esportes, puramente individuais, nao necessitam de grandesequipamentos coletivos e com freqiiencia utilizam apenas artefa-tos discretos. Acima de tudo, intensificam ao maximo a presen<;:affsica aqui e agora. Reconcentram a pessoa em seu centro vital, emseu "ponto de ser" mortal. A atualiza<;:ao parece reinar aqui.

E no entanto, tal encarna<;:ao maxima neste lugar e nesta horaso se obtem estremecendo os limites. Entre 0 ar e a agua, entre aterra e 0 ceu, entre a base e 0 vertice, 0 surfista ou aquele que selan<;:ajamais esta inteiramente presente. Abandonando 0 chao eseus pontos de apoio, ele escala os fluxos, desliza nas interfaces,serve-se apenas de linhas de fuga, se vetoriza, se desterritorializa.Cavalgador de ondas, vivendo na intimidade da agua, 0 surfistacaliforniano se metamorfoseia em surfista da Net. Os vagalh6esdo Pacifico remetem ao diluvio informacional e 0 hipercorpo aohipercortex. Submisso a gravidade mas jogando com 0 equilfbrioatetornar-se aereo, 0 corpo em queda ou em deslizamento perdeuseu peso. Torna-se velocidade, passagem, sobrevoo. Ascensionalmesmo quando parece cair ou correr na horizontal, eis 0 corpoglorioso daquele que se lan<;:aou do surfista, seu corpo virtual.

I'ortanto 0 corpo sai de si mesmo, adquire novas velocidades,lllilquista novos espa<;:os.Verte-se no exterior e reverte a exterio-IId"de tecnica ou a alteridade biologica em subjetividade concre-Iii. 1\0 se virtualizar, 0 corpo se multiplica. Criamos para nos mes-IIIIISorganismos virtuais que enriquecem nosso universo senslvel~I'1I1uos impor a dor. Trata-se de uma desencarna<;:ao? Verifica-IIII1Scom 0 exemplo do corpo que a virtualiza<;:ao nao po de serIl'dul',iJa a uma processo de desaparecimento ou de desmateriali-',11,;10. Correndo 0 risco de sermos redundantes, lembremos queI'~S" virtualiza<;:ao e analisavel essencialmente como mudan<;:a de1I1t'111 idade, passagem de uma solu<;:aoparticular a uma problematicaHI'!';llllU transforma<;:ao de uma atividade especial e circunscrita emIlull'iollamento nao localizado, dessincronizado, coletivizado. Avll'lu;lliza<;:aodo corpo nao e portanto uma desencarna<;:ao mas umaII'U1Vl'll<;ao,uma reencarna<;:ao, uma multiplica<;:ao, uma vetoriza-,,10, uma heterogenese do humano. Contudo, 0 limite jamais estadl'j iuitivamente tra<;:ado entre a heterogenese e a aliena<;:ao, a atua-Illil,';lO e a reifica<;:aomercantil, a virtualiza<;:ao e a amputa<;:ao. EsseIilllill' illdeciso deve ser constantemente considerado, avaliado com1'~lc 11\0 renovado, tanto pelas pessoas no que diz respeito a sua vidaI'I"SI);1I,quanta pelas sociedades no ambito das leis.

Meu corpo pessoal e a atualiza<;:ao temporaria de urn enor-III" hipl'rCorpO hfbrido, social e tecnobiol6gico. 0 corpo contem-l'I)I,Ull'O assemelha-se a uma chama. Freqiientemente e minusculo,I'" ,LIlIII, separado, quase im6vel. Mais tarde, corre para fora de',I IIII'SIIIO,intensificado pelos esportes ou pel as drogas, funciona"""" 11111 satelite, lan<;:aalgum bra<;:ovirtual bem alto em dire<;:ao,1'" "11,;10 longo de redes de interesses ou de comunica<;:ao. Pren-.I" ',,' "lILio ao corpo publico e arde com 0 mesmo calor, brilha, 1)111 01 1IIl'Silla luz que outros corpos-chamas. Retorna em segui-01". II iUlsl'ormado, a uma esfera quase privada, e assim sucessiva-111"1111', lira aqui, ora em toda parte, ora em si, ora misturado. UrntlliI, 't'para-se completamente do hipercorpo e se extingue.

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Desde suas origens mesopotamicas, a texto e urn objeto vir-111;11, abstrato, in de pendente de urn suporte especffico. Essa en-IldaJe virtual atualiza-se em multiplas vers6es, tradw;;6es, edi-,nt's, exemplares e copias. Ao interpretar, ao dar sentido ao tex-1o aqui e agora, 0 leitor leva adiante essa cascata de atualiza~6es.I;alo especificamente de atualiza<;ao no que diz respeito a leitu-ra, c nao da realiza<;ao, que seria uma sele~ao entre possibilida-des preestabelecidas. Face a configura<;ao de estimulos, de coer-,"(ies e de tens6es que a texto prop6e, a leitura resolve de manei-1';1 inventiva e sempre singular a problema do sentido. A inteli-gencia do leitor levanta par cima das paginas vazias uma pai-sagem semantica movel e acidentada. Analisemos em detalhe esseIrabalho de atualiza<;ao.

Lemos ou escutamos urn texto. 0 que ocorre? Em primeirolugar, a texto e esburacado, riscado, semeado de brancos. Sao aspalavras, as membros de frases que nao captamos (no sentidoperceptivo mas tambem intelectual do termo). Sao as fragmentosde texto que nao compreendemos, que nao conseguimos juntar,que nao reunimos aos outros, que negligenciamos. De modo que,paradoxalmente, ler, escutar, e come<;ar a negligenciar, a deslerOl1 desligar a texto.

Ao me sma tempo que a rasgamos pela leitura au pela escu-la, amarrotamos 0 texto. Dobramo-Io sabre si mesmo. Relacio-llamas uma a outra as passagens que se correspondem. Os mem-hras esparsos, expostos, dispersos na superffcie das paginas au na

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linearidade do discurso, costuramo-Ios juntos: ler urn texto e reen-contrar os gestos texteis que the deram seu nome.

As passagens do texto mantem entre si virtualmente umacorrespondencia, quase que uma atividade epistolar, que atuali-zamos de urn jeito ou de outro, seguindo ou nao as instrw;:6es doautor. Carteiros do texto, viajamos de uma margem a outra doespac;:o do sentido valendo-nos de urn sistema de enderec;:amentoe de indicll,:i)t's que 0 autor, 0 editor, 0 tipografo balisaram. Maspodel11os desohedecer as instruc;:6es, tomar caminhos transversais,produzir dohras interditas, estabelecer redes secretas, clandesti-nas, fazer em<:rgir outras geografias semanticas.

Tal e 0 trahalho da leitura: a partir de uma linearidade oude uma platitude inicial, esse ato de rasgar, de amarrotar, de tor-cer, de recosturar 0 texto para abrir urn meio vivo no qual possase desdobrar 0 sentido. 0 espac;:o do sentido nao preexiste a lei-tura. E ao percorre-Io, ao cartografa-Io que 0 fabricamos, que 0

atualizamos.Mas enquanto 0 dobramos sobre si mesmo, produzindo as-

sim sua relac;:ao consigo proprio, sua vida autanoma, sua aurasemantica, relacionamos tambem 0 texto a outros textos, a outrosdiscursos, a imagens, a afetos, a toda a imensa reserva flutuantede desejos e de signos que nos constitui. Aqui, nao e mais a uni-dade do texto que esta em jogo, mas a construc;:ao de si, constru-c;:aosempre a refazer, inacabada. Nao e maiso sentido do textoque nos ocupa, mas a direc;:aoe a elaborac;:ao de nosso pensamento,a precisao de nossa imagem do mundo, a culminac;:ao de nossosprojetos, 0 despertar de nossos prazeres, 0 fio de nossos sonhos.Desta vez 0 texto nao e mais amarrotado, dobrado feito uma bolasobre si mesmo, mas recortado, pulverizado, distribufdo, avalia-do segundo criterios de uma subjetividade que produz a si mesma.

Do texto, propriamente, em breve nada mais resta. No me-lhor dos casos, teremos, grac;:as a ele, dado urn retoque em nos-sos modelos do mundo. Talvez tenha servido apenas para par emressonancia algumas imagens, algumas palavras que ja possufa-mos. Eventualmente, teremos relacionado urn de seus fragmen-

IllS, investido de uma intensidade especial, com determinada zonade nossa arquitetura mnemanica, urn outro com determinado tre-I h,) dc nossas redes intelectuais. Ele nos tera servido de interface,')111 nos mesmos. So muito raramente nossa leitura, nossa escu-1;1, ted por efeito reorganizar dramaticamente, como por uma"specie de efeito de limiar brutal, 0 novelo enredado de represen-I;H;ilcs e de emoc;:6es que nos constitui.

Escutar, olhar, ler equivale finalmente a construir-se. Na,I hertura ao esforc;:o de significac;:ao que vem do outro, trabalhan-do, esburacando, amarrotando, recortando 0 texto, incorporan-.10-0 em nos, destruindo-o, contribufmos para erigir a paisagemde sentido que nos habita. 0 texto serve aqui de vetor, de supor-II' ou de pretexto a atualizac;:ao de nosso proprio espac;:o mental.

Confiamos as vezes alguns fragmentos do texto aos povosdt' signos que nomadizam dentro de nos. Essas insfgnias, essasrcliquias, esses fetiches ou esses or<1culos nada tern a ver com asilltcnc;:6es do autor nem com a unidade semantica viva do texto,luas contribuem para criar, recriar e reatualizar 0 mundo de sig-llificac;:6es que somos.

Essa analise e provavelmente aplicavel a interpretac;:ao de,)ntros tipos de mensagens complexas que nao 0 texto alfabetico:Illcogramas, diagramas, mapas, esquemas, simulac;:6es, mensagensIl'onograficas ou fflmicas, por exemplo. Deve-se entender "texto"IH)sentido mais geral: discurso elaborado ou proposito deliberado.

Desde 0 infcio deste capftulo, voce ainda nao leu a palavra"hipertexto". No entanto, nao se tratou de outra coisa a nao ser.Iisl-o. Com efeito, hierarquizar e selecionar areas de sentido, te-l 'T ligac;:6esentre essas zonas, co nectar 0 texto a outros documen-I, .s, arrima-lo a toda uma memoria que forma como que 0 fundo',ohre 0 qual ell' se destaca e ao qual remete, sao outras tantasIillll.;oes do hipertexto informatic?

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Uma tecnologia intelectual, quase sempre, exterioriza, ob-jetiviza, virtualiza uma fun~ao cognitiva, uma atividade mental.Assim fazendo, reorganiza a economia ou a ecologia intelectualem seu conjunto c Illodifica em troca a fun~ao cognitiva que elasupostamente dcvcria apenas auxiliar ou refor~ar. As rela~6es entrea escrita (tecllologia intelectual) e a memoria (fun~ao cognitiva)estao al pa ra tcstclllllnha-lo.

o aparccilllcnto da escrita acelerou urn processo de artifi-cializa<;ilo, dc cxtcrioriza~ao e de virtualiza({ao da memoria quecertalllentc COIllC<;Ollcom a hominiza~ao. Virtualiza~ao e naosimples prolonga Illcnto; ou seja, separa~ao parcial de urn corpovivo, coloca<;ao Clll COlllum, heterogenese. Nao se pode reduzira escrita a um registro da fala. Em contrapartida, ao nos fazerconceber a lembrane,:a como urn registro, ela transformou 0 ros-to de Mnemosine.

A semi-objetiva~ao da memoria no texto certamente permitiuo desenvolvimento de uma tradi~ao critica. Com efeito, 0 escritocava uma distancia entre 0 saber e seu sujeito. E talvez porque naonao sou mais 0 que sei que posso recolocar este saber em questao.

Virtualizante, a escrita dessincroniza e deslocaliza. Ela fezsurgir urn dispositivo de comunica~ao no qual as mensagens muitofrequentemente estao separadas no tempo e no espa~o de sua fontede emissao, e portanto sao recebidas fora de contexto. Do ladoda leitura, foi portanto necessario refinar as praticas interpre-tativas. Do lado da reda~ao, teve-se que imaginar sistemas de enun-ciados auto-suficientes, independentes do contexto, que favore-ceram as mensagens que respondem a urn criterio de universali-dade, cientifica ou religiosa.

Com a escrita, e mais ainda com 0 alfabeto e a imprensa, osmodos de conhecimento teoricos e hermeneuticos passaram por-tanto a prevalecer sobre os saberes narrativos e rituais das socie-dades orais. A exigencia de uma verdade universal, objetiva e cri-tica so pode se impor numa ecologia cognitiva largamente es-truturada pela escrita, ou, mais exatamente, pela escrita sobresuporte estatico.

Pois 0 texto contclllporaneo, alimentando correspondencias1111 line e conferencias clctronicas, correndo em redes, fluido, des-1l'ITitorializado, mergulhado no meio oceanico do ciberespa~o, esseIl'xtO dinamico reconstitui, mas de outro modo e numa escalaIllfinitamente superior, a copresen~a da mensagem e de seu con-Il'xto vivo que caracteriza a comunica~ao oral. De novo, os crite-lios mudam. Reaproximam-se daqueles do dialogo ou da conver-":I<;ao:pertinencia em fun~ao do momento, dos leitores e dos lu-g:]res virtuais; brevidade, gra~as a possibilidade de apontar ime-diatamente as referencias; eficiencia, pois prestar servi~o ao lei-lor (e em particular ajuda-lo a navegar) eo melhor meio de serIl'conhecido sob 0 dihivio informacional.

o novo texto tern, antes de mais nada, caracteristicas tecni-cas que convem precisar, e cuja analise esta ligada, como veremos,:1 uma dialetica do possivel e do real.

o leitor de urn livro ou de urn artigo no papel se confrontacom urn objeto ffsico sobre 0 qual uma certa versao do texto estaintegralmente manifesta. Certamente ele pode anotar nas margens,fotocopiar, recortar, colar, proceder a montagens, mas 0 texto ini-cial esta la, preto no branco, ja realizado integralmente. Na lei-Iura em tela, essa presen~a extensiva e preliminar a leitura desa-parece. 0 suporte digital (disquete, disco rigido, disco otico) naocontem urn texto legivel por humanos mas uma serie de codigosinformaticos que serao eventual mente traduzidos por urn compu-tador em sinais alfabeticos para urn dispositivo de apresenta~ao.1\ tela apresenta-se entao como uma pequena janela a partir daqual 0 leitor explora uma reserva potencial.

Potencial e nao virtual, pois a entalhe digital e 0 programadc leitura predeterminam urn conjunto de possiveis que, mesmopodendo ser imenso, ainda assim e numericamente finito e 10-gicamente fechado. Alias, nao e tanto a quantidade que distingue

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o posslvel do virtual, 0 essencial esta em outro lugar: consideran-do-se apenas 0 suporte Illecanico (hardware e software), a infor-matica nao oferece seniio lima combinatoria, ainda que infinita,e jamais urn campo prohkm~1tico. 0 armazenamento em memo-ria digital e uma pOIl'llciali/,a<,:ao, a exibi<;ao e uma realiza<;ao.

Urn hipertexto t' llilla matriz de textos potenciais, sendo quealguns dell's viio St' reali/,ar sob 0 efeito da intera<;ao com urn usua-rio. Nenhulllil difl'l"t'IlI,'a se introduz entre urn texto posslvel dacOlllbin,l('lria e UIll lext'o real que sera lido na tela. A maior partedos progr;lmas siio Ill,iquinas de exibir (realizar) mensagens (tex-tos, imagens etc.) a parlir de urn dispositivo computacional quedetermina UIll universo de possiveis. Esse universo pode ser imen-so, ou fazer intervir procedimentos aleatorios, mas ainda assim einteiramente pre-conti do, calculavel. Deste modo, seguindo estri-tamente 0 vocabulario filos6fico, nao se deveria falar de imagensvirtuais para qualificar as imagens digitais, mas de imagens pos-slveis sendo exibidas.

o virtual so eclode com a entrada da subjetividade humanano circuito, quando num mesmo movimento surgem a indeter-mina<;ao do sentido e a propensao do texto a significar, tensaoque uma atualiza<;ao, ou seja, uma interpreta<;ao, resolvera na lei-tura. Uma vez claramente distinguidos esses dois pIanos, 0 do parpotencial-real e 0 do par virtual-atual, convem imediatamentesublinhar seu envolvimento recfproco: a digitaliza<;ao e as novasformas de apresenta<;ao do texto so nos interessam porque daoaces so a outras maneiras de ler e de compreender.

Para come<;ar, 0 leitor em tela e mais "ativo" que 0 leitorem papel: ler em tela e, antes mesmo de interpretar, enviar urncomando a urn computador para que projete esta ou aquela rea-liza<;ao parcial do texto sobre uma pequena superffcie luminosa.

Se considerarmos 0 computador como uma ferramenta paraproduzir textos classicos, ell' sera apenas urn instrumento maispratico que a associa<;ao de uma maquina de escrever mecanica,uma fotocopiadora, uma tesoura e urn tubo de cola. Urn texto im-presso em papel, em bora produzido por computador, nao tern

,'sl.llulo onto!<'lgico nem propriedade estetica fundamentalmente"i Ivrel1tes dos de urn texto redigido com os instrumentos do se-t 1110 XIX. Pode-se dizer 0 mesmo de uma imagem ou de urn fil-IIICfcitos por computador e vistos sobre suportes classicos. Mas'il' considerarmos 0 conjunto de todos os textos (de todas as ima-gClls) que 0 leitor pode divulgar automaticamente interagindo com11111 computador a partir de uma matriz digital, penetramos num11OVO universo de cria<;ao e de leitura dos signos.

Considerar 0 computador apenas como urn instrumento aIllais para produzir textos, sons ou imagens sobre suporte fixo(papel, pelfcula, fita magnetica) equivale a negar sua fecundidadepropriamente cultural, ou seja, 0 aparecimento de novos generosIigados it interatividade.

o computador e, portanto, antes de tudo urn operador deI}()tencializa({ao da informa({ao. Dito de outro modo: a partir de11m estoque de dados iniciais, de urn modelo ou de urn metatexto,Illn programa pode calcular urn numero indefinido de diferenteslllanifesta<;6es vislveis, audlveis e tanglveis, em fun<;ao da situa<;aol'lll curso ou da demanda dos usuarios. Na verdade e somente nalcla, ou em outros dispositivos interativos, que 0 leitor encontra anova plasticidade do texto ou da imagem, uma vez que, como jadisse, 0 texto em papel (ou 0 filme em pelfcula) for<;osamente jacsta realizado por completo. A tela informatica e uma nova "ma-quina de ler", 0 lugar on de uma reserva de informa<;ao POSSIVelvemse realizar por sele<;ao, aqui e agora, para urn leitor particular. Todakitura em computador e Ulna edi<;ao, uma montagem singular.

o HIPERTEXTO: VIRTUALIZA<;:Ao DO TEXTO

E VIRTUALIZA<;:Ao DA LEITURA

Pode-se dizer que urn ato de leitura e uma atualiza<;ao dassignifica<;6es de urn texto, atualiza<;ao e nao realiza<;ao, ja que ail1terpreta<;ao comporta uma parte nao eliminavel de cria<;ao. Ahipercontextualiza<;ao e 0 movimento inverso da leitura, no sen-

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tido em que produz, a partir de urn texto inicial, uma reserva tex-tual e instrumentos de composi~ao gra~as aos quais urn navega-dor podera projetar uma quantidade de outros textos. 0 texto etransformado em prohlematica textual. Porem, mais uma vez, soha problematica se considerarmos acoplamentos humanos-ma-quinas e nao processos informaticos apenas. Entao se pode falarde virtualizac;:ao e nao mais apenas de potencializa~ao. De fato, 0

hipertexto nao se deduz logicamente do texto Fonte. Ele resultade uma serie de decisoes: regulagem do tamanho dos nos ou dosmodulos elementares, agenciamento das conexoes, estrutura dainterface de navega~ao etc. No caso de uma hipercontextaliza~aoautomatica, essas escolhas (a invenc;:ao desse hipertexto particular)vao intervir ao nfvel da concep~ao e da sele~ao do programa.

Uma vez enunciadas essas constata~oes quase tecnicas, pa-rece muito diffeil falar da potencializa~ao e da virtualizac;:ao dotexto como fenomenos homogeneos. Muito pelo contrario, somosconfrontados a uma extrema diversidade que se deve essencial-mente a tres fatores misturados: a natureza da reserva digital ini-cial, a do programa de consulta e a do dispositivo de comunicac;:ao.

Urn texto linear classico, mesmo digitalizado, nao sera lidocomo urn verdadeiro hipertexto, nem como uma base de dados,nem como urn sistema que engendra automaticamente textos emfun~ao das intera~oes com as quais 0 leitor 0 alimenta.

o leitor estabelece uma relac;:ao muito mais intensa com urnprograma de leitura e de navega~ao que com uma tela. sera queo programa permite apenas urn desenrolar seqiiencial (como osprimeiros programas de tratamento de texto que durante algumtempo fizeram a leitura regredir a manipulac;:ao fastidiosa do an-tigo rolo, aquem inclusive das paginas do codex)? Que func;:oesde pesquisa e de orienta~ao 0 programa oferece? Ele permite cons-truir vfnculos automaticos entre diferentes partes do texto, podeconter anota~oes de diferentes tipos? Pode 0 leitor personalizarseu programa de leitura? Eis af uma serie de variaveis importan-tes que vao influir muito fortemente sobre as opera~oes intelec-tuais a que 0 lei tor se entregara.

Enfim, 0 sllporte digital permitc novos tipos de Icitur"" (cdt' escritas) coletivas. Urn continuum variado se estende assil11cntre" leitura individual de urn texto preciso e a navegac;:ao em vastasI('des digitais no interior das quais urn grande numero de pessoas"Ilota, aumenta, conecta os textos uns aos outros por meio de li-fl,;Ic;:oeshipertextuais.

Urn pensamento se atualiza num texto e urn texto numa lei-Ilira (numa interpreta~ao). Ao remontar essa encosta da atuali-/;Ic;:ao, a passagem ao hipertexto e uma virtualiza~ao. Nao pararl'tomar ao pensamento do autor, mas para fazer do texto atualIIIlla das figuras possfveis de urn campo textual disponfvel, mo-vel, reconfiguravel a vontade, e ate para conecta-Io e faze-Io en-Irar em composi~ao com outros corpus hipertextuais e diversosinstrumentos de auxflio a interpreta~ao. Com isso, a hipertex-Ilializac;:ao multiplica as ocasioes de produ~ao de sentido e per-Illite enriquecer consideravelmente a leitura.

Eis-nos portanto de volta ao problema da leitura. Sabe-se queos primeiros textos alfabeticos nao separavam as palavras. Foi soIlluito progressivamente que foram inventados os espa~os em bran-co entre os vocabulos, a pontua~ao, os paragrafos, as divisoesc1aras em capftulos, os sumarios, os fndices, a arte da paginac;:ao,a rede de remissao das enciclopedias e dicionarios, as notas de pede pagina ... em suma, tudo 0 que facilita a leitura e a consulta dosdocumentos escritos. Contribuindo para dobrar os textos, paraestrutura-Ios, para articula-Ios alem de sua linearidade, essas tec-11010gias auxiliares compoem 0 que poderfamos chamar de umaaparelhagem de leitura artificial.

o hipertexto, hipermfdia ou multimfdia interativo levainadiante, portanto, urn processo ja antigo de artificializac;:ao daleitura. Se ler consiste em selecionar, em esquematizar, em cons-truir uma rede de remissoes intemas ao texto, em associar a ou-tros dados, em integrar as palavras e as imagens a uma memoria

ipessoal em reconstru~ao permanentelentao os dispositivos hiper-textuais constituem de fato uma especie de objetivagao, de ex-teriorizagao, de virtualizagao dos processos de leituralAqui, nao

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consideramos mais apenas os processos tecnicos de digitalizac,;aoe de apresentac,;ao do texto, mas a atividade humana de leitura ede interpretac,;ao que integra as novas ferramentas.

Como vimos, a leitura artificial existe ha muito tempo. (~uediferenc,;a podemos estabelecer, entao, entre 0 sistema que haviase estabilizado nas paginas dos livros e dos jornais e 0 que se in-venta hoje em suportes digitais?

A abordagem mais simples do hipertexto que, insisto, naoexs:Jui nem os sons nem as imagens, e a de descreve-Io, por opo-sic,;ao a urn texto linear, como urn texto estruturado em rede. 0hipertexto seria constitufdo de nos (os elementos de informac,;ao,paragrafos, paginas, imagens, seqiiencias musicais etc.) e de liga-c,;oesentre esses nos (referencias, notas, indicadores, "botoes" queefetuam a passagem de urn no a outro).

A leitura de uma enciclopedia classica ja e de tipo hiper-textual, uma vez que utiliza as ferramentas de orientac,;ao que saGos dicionarios, lexicos, fndices, thesaurus, atlas, quadros de sinais,sumarios e remissoes ao final dos artigos. No entanto, 0 suportedigital apresenta uma diferenc,;a consideravel em relac,;ao aos hi-pertextos anteriores a informatica: a pesquisa nos fndices, 0 usodos instrumentos de orientac,;ao, de passagem de urn no a outro,fazem-se nele com grande rapidez, da ordem de segundos. Poroutro lado, a digitalizac,;ao permite associar na mesma mfdia emixar finamente os sons, as imagens animadas e os textos. Segun-do essa primeira abordagem, 0 hipertexto digital seria portantodefinido como uma colec,;ao de informac,;oes multimodais dispos-ta em rede para a navegac,;ao rapida e "intuitiva".

Em relac,;ao as tecnicas anteriores de leitura em rede, a di-gitalizac,;ao introduz uma pequena revoluc,;ao copernicana: nao emais 0 navegador que segue as instruc,;oes de leitura e se deslocafisicamente no hipertexto, virando as paginas, transportando pe-sados volumes, percorrendo com seus passos a biblioteca, masdoravante e urn texto movel, caleidoscopico, que apresenta suasfacetas, gira, dobra-se e desdobra-se a vontade diante do leitor.Inventa-se hoje uma nova arte da edic,;ao e da documentac,;ao que

tenta explorar ao maximo uma nova velocidade de navegac,;ao emmeio a massas de informac,;ao que saG condensadas em volumesa cada dia menores.

De acordo com uma segunda abordagem, complementar, atendencia contemporanea a hipertextualizac,;ao dos documentospode ser definida como uma tendencia a indistinc,;ao, a mistura dasfunc,;oes de leitura e de escrita. Tocamos aqui 0 problema da vir-tualizac,;ao propriamente dita, que tern por efeito, como ocorre comfreqiiencia, colocar em loop a exterioridade e a interioridade, nocaso a intimidade do autor e a estranheza do leitor em relac,;ao aotexto. Essa passagem contfnua de dentro para fora, como num anelde Moebius, caracteriza ja a leitura classica, pois, para compreen-der, 0 leitor deve "recriar" 0 texto mentalmente e portanto en-trar dentro dele. Ela diz respeito tambem a redac,;ao, uma vez quea dificuldade de escrever consiste em reler-se para corrigir-se, por-tanto em urn esforc,;o para tornar-se estranho ao proprio texto.Ora, a hipertextualizac,;ao objetiva, operacionaliza e eleva a po-tencia do coletivo essa identificac,;ao cruzada do leitor e do autor.

Consideremos primeiro a coisa do lado do leitor. Se definir-omos urn hipertexto como urn espac,;o de percursos de leitura pos-sfveis, urn texto apresenta-se como uma leitura particular de urnhipertexto. 0 navegador participa assim da redac,;ao ou pelo me-nos da edic,;ao do texto que ele "Ie", uma vez que determina suaorganizac,;ao final (a dispositio da antiga retorica).

o navegador pode se fazer autor de maneira mais profun-da do que percorrendo uma rede preestabelecida: participandoda estruturac,;ao do hipertexto, criando novas ligac,;oes. Algunssistemas registram os caminhos de leitura e reforc,;am (tornammais visfveis, por exemplo) ou enfraquecem as ligac,;oes em fun-c,;aoda maneira como elas saG percorridas pela comunidade dosnavegadores.

Enfim, os leitores podem nao apenas modificar as ligac,;6esmas igualmente acrescentar ou modificar nos (textos, imagcnsetc.), conectar urn hiperdocumento a outro e fazer assini de d(lishipertextos separados urn unico documento, ou trac,;ar lig,HJ)CS

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hipertextuais entre uma serie de documentos. Sublinhemos queessa pratica encontra-se hoje em pleno desenvolvimento na Inter-net, notadamente na World Wide Web. Todos os text os publicosacessfveis pel a rede Internet doravante fazem virtualmente partede urn mesmo imenso hipertexto em crescimento ininterrupto. Oshiperdocumentos acessiveis pOl' uma rede informatica sao poc1e-rosos instrumentos de escritil-!eitura coletiva.

Assim a escrita e a Icitllra trocam seus papeis. Todo aqueleque participa da estrlltllra~'ilo do hipcrtexto, do tra<;:ado pontilhadodas possfveis dobras do selHido, j,\ C llln lcitor. Simctricamcnte,quem atualiza um pcrcllrso Oll manifesta este Oll aquele aspectoda reserva documental contrihlli para a red,H;ilo, COllcilii !l1omen-taneamente uma escrita intcrmin,\vel. As cosluras e remissoes, oscaminhos de sentido originais que 0 lcitor inventa podem ser in-corporados a estrutura mesma dos corpus. A partir do hipertcxto,toda leitura tornou-se urn ato de escrita.

lado, componentes de material informatico (captadores, memo-rias, processadores etc.) podem se achar noutras partes que naoem computadores propriamente ditos: em cartoes eletronicos, emdistribuidores automaticos, robos, aparelhos eletrodomesticos, nosde redes de comunica<;:ao, fotocopiadoras, faxes, cameras de vfdeo,telefones, radios, televisoes ... onde quer que a informa<;:ao digitalseja processada automaticamente. Enfim, e sobretudo, urn com-putador ramificado no hiperespa<;:o pode recorrer as capacidadesde memoria e de calculo de outros computadores da rede (que,por sua vez, fazem 0 mesmo), bem como a diversos aparelhosdistantes de captura e de apresenta<;:ao de informa<;:ao. Todas asfun<;:oesda informatica (captura, digitaliza<;:ao, memoria, tratamen-to, apresenta<;:ao) sao distribufveis e, cada vez mais, distribufdas.o computador nao e urn centro mas urn peda<;:o, urn fragmentoda trama, urn componente incompleto da rede calculadora uni-versal. Suas fun<;:oes pulverizadas impregnam cada elemento dotecnocosmo. No limite, so ha hoje urn unico computador, urnunico suporte para texto, mas tornou-se impossfvel tra<;:ar seuslimites, fixar seu contorno. E urn computador cujo centro esta emtoda parte e a circunferencia em nenhuma, urn computador hi-pertextual, disperso, vivo, pululante, inacabado, virtual, urn com-putador de Babel: 0 proprio ciberespa<;:o.

Terfamos somente uma visao parcial da virtualiza<;:ao con-temporanea do texto e da leitura se a focalizassemos unicamentena passagem do papel a tela do computador. 0 computador comosuporte de mensagens potenciais ja se integrou e quase se dissol-veu no ciberespa<;:o, essa turbulenta zona de transito para signosvetorizados. Antes de abordar a desterritorializa<;:ao do texto,evoquemos portanto a virtualiza<;:ao do computador.

Durante muito tempo polarizada pela "maquina", balca-nizada ate recentemente pelos programas, a informatica contem-poranea - soft e hardware - desconstroi 0 computador para darlugar a urn espa<;:ode comunica<;:ao navegavel e transparente cen-trado nos fluxos de informa<;:ao.

Computadores de marcas diferentes podem ser montados apartir de componentes quase identicos, e computadores da mes-ma marca con tern pe<;:asde origens muito diferentes. Por outro

Milhoes de pessoas e de institui<;:oes no mundo trabalham naconstru<;:ao e na disposi<;:ao do imenso hipertexto da Wodd WideWeb. Na Web, como em todo hiperdocumento, e preciso distin-guir conceitualmente dois tipos de memorias diferentes. De urn lado,a reserva textual ou documental multimodal, os dados, urn esto-que quase amorfo, suficientemente balisado, no entanto, para queseus elementos tenham urn endere<;:o. De outro, urn conjunto deestruturas, percursos, vfnculos ou redes de indicadores, que repre-senta organiza<;:oes particulares, seletivas e subjetivas do estoque.

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Cada individuo, cada organiza~ao sao incitados nao apenas a au-mentar 0 estoque, mas tambem a propor aos outros cibcrnautasurn ponto de vista sobre 0 conjunto, uma estrutura subjctiva. Es-ses pontos de vista subictivos se manifestam em particular nas li-ga~6es para 0 exterior associadas as home pages afixadas pOI' urnindividuo ou grupo. No ciberespa~o, como qualquer ponto c di-retamente acess,'ivcl a partir de qualquer outro, sera cada vez maiora tendencia a substituir as capias de documentos por ligalSocs hi-pertextuais: no limite, basta que 0 texto exista fisicamente uma unicavez na mCI1l<>riadc UI1lcomputador conectado a rede para que elefa~a parte, gra~as a urn conjunto de vinculos, de milhares ou mes-mo de milh6es de percursos ou de estruturas semanticas diferen-tes. A partir das home pages e dos hiperdocumentos on line, pode-se seguir os fios de diversos universos subjetivos.

No mundo digital, a distin~ao do original e da copia ha muitoperdeu qualquer pertinencia. 0 ciberespa~o esta misturando asno~6es de unidade, de identidade e de localiza~ao.

Os vinculos podem remeter a endere~os que abrigam nao urntexto definido mas dados atualizados em tempo real: resultadosestatisticos, situa~6es politicas, imagens do mundo transmitidaspor satelite ... Assim, como 0 rio de Heraclito, 0 hipertexto jamaise duas vezes 0 mesmo. Alimentado pOI' captadores, ele abre umajanela para 0 fluxo cosmico e a instabilidade social.

Os dispositivos hipertextuais nas reeies digitais desterritoria-lizaram 0 texto. Fizeram emergir urn texto sel1l fronteiras nitidas,sem interioridade definivel. Nao ha mais l1l11texto, discernivel eindividualizavel, mas apenas texto, assim como nao ha uma aguae uma areia, mas apenas agua e areia. 0 texto e posto em movi-mento, envolvido em urn fluxo, vetorizado, I1lctamorfico. Assimesta mais proximo do proprio movimcnto do pensamento, ou daimagem que hoje temos deste. Perdendo sua afinidade com as ideiasimutaveis que supostamente dominariam 0 ll1undo sensivel, 0 textotorna-se analogo ao universo de processos ao qual se mistura.

o texto continua subsistindo, mas a p5gina funou-se. A pa-gina, isto e, 0 pagus latino, esse campo, esse territorio cercado pelo

branco das margens, lavrado de linhas e semeado de letras e decaracteres pelo autor; a pagina, ainda carregada da argila me-sopotamica, aderindo sempre a terra do neolitico, essa paginamuito antiga se apaga lentamente sob a inunda~ao informacional,seus signos soltos vao juntar-se a torrente digital.

Ecomo se a digitaliza~ao estabelecesse uma especie de imensoplano semantico, acessivel em todo lugar, e que todos pudessemajudar a produzir, a dobrar diversamente, a retomar, a modificar,a dobrar de novo ... Ha necessidade de sublinhar isto? As formaseconomicas e juridicas herdadas do periodo precedente impedemhoje que esse movimento de desterritorializa<;:ao chegue a seu termo.

A analise vale igualmente para as imagens que, virtualmen-te, nao constituem mais senao urn unico hipericone, sem limites,caleidoscopico, em crescimento, sujeito a todas as quimeras. E asmusicas, elevando-se dos bancos de efeitos sonoros, dos reperto-rios de timbres organizados em amostras, dos programas de sin-tese, de seqiienciamento e de arranjo automaticos, as l1lusicas dociberespa<;:o comp6em juntas uma inaudivel polifonia ... ou se per-dem em cacofonia.

A interpreta~ao, isto e, a produ~ao do sentido, doravante naoremete mais exclusivamente a interioridade de uma inten<;:ao, nema hierarquias de significa~6es esotericas, mas antes a apropria<;:aosempre singular de urn navegador ou de uma surfista. 0 sentidoemerge de efeitos de pertinencia locais, surge na intersec~ao de urnplano semiotico desterritorializado e de uma trajetoria de efica-cia ou prazer. Nao me interesso mais pelo que pensou urn autorinencontravel, pe<;:oao texto para me fazer pensar, aqui e agora.A virtualidade do texto alimenta minha inteligencia em ato.

Se ler consiste em hierarquizar, selecionar, esquematizar,construir uma rede semantica e integrar ideias adquiridas a umamemoria, entao as tecnicas digitais de hipertextualiza<;:ao e de

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navegac;:ao constituem de fato uma especie de virtualizac;:ao tec-nica ou de exteriorizac;:ao dos processos de leitura.

Grac;:as a digitalizac;:ao, 0 texto e a leitura receberam hoje urnnovo impulso, e ao mesmo tempo uma profunda mutac;:ao. Pode-se imaginar que os livros, os jornais, os documentos tecnicos eadministrativos impressos no futuro serao apenas, em grande par-te, projec;:oes temporarias e parciais de hipertextos on line muitomais ricas e sempre ativos. Posto que a escrita alfabetica hoje emuso estabilizou-se sobre urn suporte estatico, e em func;:ao dessesuporte, e legitimo indagar se 0 aparecimento de urn suporte di-namico nao poderia suscitar a invenc;:ao de novos sistemas de es-crita que explorariam melhor as novas potencialidades. Os "ico-nes" informaticos, certos videogames, as simulac;:ocs graficas in-terativas utilizadas pelos cientistas representam os prilllciros passosem dircl.;ao a uma futura ideografia dinalllica.

A lllultipliGll.;30 Jas tclas anuncia 0 filll do cscrito, como daoa entendcr ccrtos profctas dn dcsgral.;a? Essa idcia e muito prova-velmente errCmca. C:crtnlllcntc 0 tcxto digitalizado, fluido, re-configuravel a vontaJe, que sc organiza dc Ulll modo nao linear,que circula no interior de redes locais ou Illundiais das quais cadaparticipante e urn autor e urn editor potencial, esse texto diferen-cia-se do impresso classico.

Mas convem nao confundir 0 texto nem com 0 modo dedifusao unilateral que e a imprensa, nem com 0 suporte estaticoque e 0 papel, nem com uma estrutura linear e fechada das men-sagens. A cultura do texto, cam 0 que ela implica de diferido naexpressao, de distancia critic a na interpretac;:ao e de remissoes cer-radas no interior de urn universo semantico de intertextualidadee, ao contrario, levada a urn imenso desenvolvimento no novoespac;:o de comunicac;:ao das redes digitais. Longe de aniquilar 0

texto, a virtualizac;:ao parece faze-lo coincidir com sua essenciasubitamente desvelada. Como se a virtualizac;:ao contemporanearealizasse 0 devir do texto. Enfim, como se saissemos de uma certapre-hist6ria e a aventura do texto comec;:asse realmente. Como seacabassemos de inventar a escrita.

A economia contemporanea e uma economia da desterri-torializac;:ao ou da virtualizac;:ao. 0 principal setor mundial emvolume de neg6cios, lembremos, e 0 do turismo: viagens, hoteis,restaurantes. A humanidade jamais dedicou tantos recursos a naoestar presente, a comer, dormir, viver fora de sua casa, a se afas-tar de seu domicilio. Se acrescentarmos ao volume de neg6ciosdo turismo propriamente dito 0 das industrias que fabricam vei-culos (carros, caminhoes, trens, metros, barcos, avioes etc.), car-burantes para os veiculos e infraestruturas (estradas, aeropor-tos ... ), chegaremos a cerca de metade da atividade economic amundial a servic;:odo transporte. 0 comercio e a distribuic;:ao, porsua vez, fazem viajar signos e coisas. Os meios de comunicac;:aoeletronicos e digitais nao substituiram 0 transporte fisico, muitopelo contrario: comunicac;:ao e transporte, como ja sublinhamos,fazem parte da mesma onda de virtualizac;:ao geral. Pois ao setorda desterritorializac;:ao fisica, cum pre evidentemente acrescentaras telecomunicac;:oes, a informatica, os meios de comunicac;:ao,que sao outros setores ascendentes da economia do virtual. 0ensino e a formac;:ao, bem como as industrias da diversao, traba-lhando para a heterogenese dos espiritos, nao produzem outracoisa senao 0 virtual. Quanto ao poderoso setor da saude -medicina e farmacia -, como vimos num capitulo precedente,ele virtualiza os corpos.

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Como funcionam os mercados financeiros? Os raciociniosdos operadores financeiros baseiam-se essencialmente no racio-dnio dos outros operadores financeiros, como numa multidao emque cada membro praticasse a psicologia das multidoes. Os "ar-gumentos" desses raciocinios sao sobretudo os indicadores eco-nomicos publicados pelos governos e pelos organismos de esta-tisticas, bem como os prec;:os, cotac;:oes e taxas dos diferentes pa-peis, ac;:oese instrument os financeiros. Ora, esses prec;:os, cotac;:oese taxas sao eles proprios "conclusoes" a que chega 0 mercado aposurn raciocinio coletivo, paralelo e distribuido. 0 mercado finan-ceiro certamente leva em conta dados "exteriores" a seu propriofuncionamento (guerras, eleic;:oesetc.), mas trabalha antes de tudode urn modo recursivo a partir dos resultados de suas propriasoperac;:oes. Mais: conforme vimos, cada urn de seus "processa-dores" elementares simula grosseiramente 0 funcionamento doconjunto.

Podedamos arriscar urn paralelo com boa parte da arte con-temporanea, que faz muito mais referencia a si me sma e a suapropria historia que a qualquer outra coisa: citac;:oes, derrisoes,diferenciac;:oes, trabalhos sobre 0 limite ou a identidade da arteetc. Do mesmo modo que nas financ;:as, as principais operac;:oesda arte contemporanea incidem sobre 0 julgamento dos outros,a obra intervindo como vetor, indicador ou comutador na dina-mica recursiva do julgamento coletivo.

Para voltar a virtualizac;:ao da economia, os bancos de da-dos on line, sistemas especialistas e outros instrumentos infor-maticos tornam cada vez mais transparentes a si mesmos os "ra-ciocinios do mercado". As financ;:as internacionais desenvolvem-se em estreita simbiose com as redes e as tecnologias de suportedigital. Elas tendem a uma especie de inteligencia coletiva distri-buida para a qual 0 dinheiro e a informac;:ao progressivamente seequivalem.

Claro que se trata de uma inteligencia coletiva grosseira, umavez que conhece urn unico criterio de avaliac;:ao ou, se preferirem,urn unico "valor". Por outro lado, sua din arnica global, mesmo

o setor financeiro, Cor;1<;;10pulsante da economia mundial,e sem duvida uma das atividadcs mais caractedsticas da escaladada virtualizac;:ao.

A moeda, quc (' a hasc das financ;:as, dessincronizou e des-localizou em grandl' cscaLl 0 trabalho, a transac;:ao comercial e 0consumo, quc pOl' nluito tTIllPO intervieram nas mesmas unida-des de tempo c dc lugar. Enquanto objeto virtual, a moeda e evi-dentcmcntc Illais f:kil dc trocar, de partilhar e de existir em co-mum quc cntidadcs nwis concretas como terra ou servic;:os. Reen-contralllos na invl'n,;lo c no desenvolvimento da moeda (e dosinstrlllllcnt"os finanCl'iros IIIa is complexos) os trac;:os distintivos davirtllaliz;1<';;10,quc SolOn;lo apenas 0 arrancar-se ao aqui e agoraou a JestclTitori;llil',o1<,;;IO,Illas igualmente a passagem ao publico,ao anl>nimo, a possihilidadc de partilha e de troca, a substituic;:aoparcial do jogo inccssantc das negocia<;:6es e das relac;:oes de for-c;:aindividllais pOl' 11mmccanismo impessoal. A letra de cambiofaz circular 1I11lreconhccimento dc divida de uma moeda a outrae de uma pessoa a outra, 0 contrato de seguro mutualiza os ris-cos, a sociedade por ac;:oeselabora a propriedade e 0 investimen-to coletivo. Outras tantas invenc;:oes que prolongal1l as da 11l0edae que acentuam a virtualizac;:ao da economia.

Atualmente, as financ;:as (bancos, seguradoras) constituementre 5% e 7% do PIB dos paises industrializados (Goldfinger,1994). Os fluxos financeiros mundiais sao superiores aos docomercio internacional e, no interior mesmo do setor financei-ro, 0 crescil1lento dos produtos derivados (especies de segurossobre os produtos classicos e virtuais por excelencia) e mais acen-tuado que a media. De maneira mais geral, a primazia crescenteda economia monetaria e dos imperativos financeiros e uma dasmanifestac;:oes mais notaveis da virtualizac;:ao em curso. Em nu-meros absolutos, 0 maior l1lercado do mundo e 0 da propriamoeda, 0 mercado cambial, mais importante que 0 dos tttulos eo das ac;:oes.

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sendo caotica, com freqi"lcllcia imprevisfvel e sujeit::t a arrebata-mentos, seria antes cOllvergellte, no sentido em que (contra ria men-te a evolw;:ao biol6gica, pOl' exemplo) nao mantem simultanea-mente abertos varios cOlmin!Jos de diferencia<;;ao. Pode-se sOllharcom uma atividade fillOlllceira ainda mais inteligente, capaz deexplorar varias hip{)tesl's de avalia<;;ao ao mesmo tempo, que da-ria prova de imaginOl<.;iioe projetaria varios futuros em vez de reagirprincipallllellte de LlIllmodo reflexo.

INFORMAc,:AO E CONHECIMENTO: CONSUMO NAoDESTRUTIVO E APROPRIAc,:Ao NAo EXCLUSIVA

Alem dos setores da virtualiza<;;ao proprialllente dita, comoo turismo, as comunica<;;6es e as finan<;;as, 0 conjunto das ativi-dades depende hoje, a montante, dos bens econC>micos muito par-ticulares que san as informa<;;6es e os conhecimelltos.

A informa<;;ao e 0 conhecimento, de fato, san doravante aprincipal fonte de produ<;;ao de riqueza. Poder-se-ia retorquir queisto sempre foi assim: 0 ca<;;ador, 0 campones, 0 Illercador, 0 arte-sao, 0 soldado deviam necessariamente adquirir certas compe-tencias e se informar sobre seu ambiente para executar suas ta-refas. Mas a rela<;;ao com 0 conhecimento que experimentamosdesde a Segunda Guerra mundial, e sobretudo depois dos anossetenta, e radicalmente nova. Ate a segullda metade do seculoXX, uma pessoa praticava no final de sua carreira as competen-cias adquiridas em sua juventude. Mais do que isto, transmitiageralmente seu saber, quase inalterado, .1 seus fiIhos ou a apren-dizes. Hoje, esse esquema esta em gra Ilde pa rte obsoleto. As pes-soas nao apenas san levadas a mudar v.irias vezes de profissaoem sua vida, como tambem, no interior da mesma "profissao",os conhecimentos tern urn ciclo de renova<.;ao cada vez mais cur-to (tres anos, ou ate menos, em inforll1<ltica, por exemplo). Tor-nou-se dificil designar as competencias "de base" num domfnio.Novas tecnicas ou novas configura<;;6es socio-economicas podem

Oltodo momenta recolocar em questao a ordem e a importanciados conhecimentos.

Passou-se portanto da aplica~ao de saberes estaveis, que cons-tituem 0 plano de fundo da atividade, a aprendizagem perman en-te, a navega<;;ao continua num conhecimento que doravante se pro-jeta em primeiro plano. 0 saber prendia-se ao fundamento, hojese mostra como figura move!' Tendia para a contempla<;;ao, parao imutavel, ei-Io agora transformado em fluxo, alimentando asopera~6es eficazes, ell' proprio opera<;;ao. Alem disso, nao e maisapenas uma casta de especialistas mas a grande massa das pessoasque san levadas a aprender, transmitir e produzir conhecimentosde maneira cooperativa em sua atividade cotidiana.

As informa<;;6es e os conhecimentos passaram a constar en-tre os bens economicos primordiais, 0 que nem sempre foi verda-de. Ademais, sua posi<;;ao de infraestrutura - fala-se de infos-trutura -, de fonte ou de condi<;;.ao determinante para todas asoutras formas de riqueza tornou-se evidente, enquanto antes semantinha na penumbra.

Ora, os novos recurs os chaves san regidos por duas leis quetomam pelo avesso os conceitos e os raciocfnios economicos clas-sicos: consumi-Ios nao os destroi, e cede-Ios nao faz com que se-jam perdidos. Quem da urn saco de trigo, urn carro, uma hora detrabalho ou uma soma em dinheiro perdeu alga em proveito deurn outro. Quer se fabrique farinha, se ande de carro, se exploreo trabalho de urn operario ou se gaste dinheiro, urn processo irre-versfvel efetua-se: desgaste, gasto, transforma<;;ao, consumo.

A economia repousa largamente sobre 0 postulado da rari-dade dos bens. A propria raridade se funda sobre 0 carater des-truidor do consumo, bem como sobre a natureza exclusiva ouprivativa da cessao ou da aquisi<;;ao. Ora, uma vez mais, se trans-mito a voce uma informa<;;ao, nao a perco, e se a utilizo, nao adestruo. Como a informa<;;ao e 0 conhecimento estao na fonte dasoutras formas de riqueza e como figuram entre os bens economi-cos principais de nossa epoca, podemos considerar a emergenciade uma economia da abundancia, cujos conceitos, e sobretudo as

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praticas, estariam em profunda ruptura com 0 funcionamento daeconomia cblssica. Na verdade, vivemos ja mais ou menos sob esseregime, mas continuamos a 1l0Sservir dos instrumentos doravanteinadequados da CCOIlOllliade raridade (Goldfinger, 1994).

DESMATFRIAI.I/,Al.Al) ()II VWl'lrALIZAc;:Ao:

o QUF (: IrMA INI:()I(MAl,:A()? '

o qlll', Ila llallll'l'~,;1da IlllorJll;1I,':10Cdo conhecimento, IhescOllfcrc proprit'd;llks l'COIHllllic;lS (;10 particulares? A primeirarcspos(;\ (jilt' Vl'lll ao l'spil'ito l' (jilt' St' Il'a(a dt' hcns "imateriais".Exalllilll'lllOS alt'll(allll'lllt't'SS;1 pI'OpOSil,;ao.I,ll SIIPOCem primeirolugar 11111;1111l'lafisica da slIhs(;'IIlCi;l, IL\vt'l'ia coisas "materiais"e coisas "imateriais". ()I';I, IlIl'SIIlOOSht'lls dilos Illateriais valemprincipalrnente por silas Ie II'l1laS,SII;ISt'sl rill IIras, silas propriedadesem contexto, ou seja, l'llI hill dt' ('OIlLIS, pOl' slia dimensao "ima-terial". Rigorosamentl' L1L1I1do,elllre os hellS pllramente mate-riais so se encontrariam as m;llt'ri;ls,pl'illlas. Illvcrsamente, nao sepode separar as informalJ>cs de UllI Sllpo 1'1 L'fisico qualquer, sobpena de destrui-Ias. Claro qllc t' possivcll'ccopi:i-Ias, transmiti-Ias,multiplica-Ias facilmente. Mas, sc lodos os Iligares de inscri~ao"material" desaparecessem, a inform:H;ilo dl'saparl'ccria para sem-pre. Quanto ao conhecimento quc 11111scr hliltlallO possui, ell' estaainda mais ligado a "materia", pois SUpl-IL'11111corpo vivo e unsdois quilos de massa cinzenta e umida L'I11cOlldil,/ll's de funciona-mento. Mas, dira voce, 0 ponto esscncial aqui c quc 0 conhecimen-to possa passar de urn cerebro a outro, quc ('Ie 1l;~Oesteja neces-sariamente ligado a uma unica pessoa. PrccisalllL'lltC: 0 conheci-mento e a informa~ao nao sao "imateriais" c Silll desterritoria-lizados; longe de estarem exclusivamente prcsos a um suporteprivilegiado, eles podem viajar. Mas informa<,:ao e conhecimentotampouco sao "materiais"! A alternativa do material e do imaterialvale apenas para substiincias, coisas, ao passo que a informa~aoe 0 conhecimento sao da ordem do acontecimento ou do processo.

Segundo a teoria materna tic a da comunica~ao, uma infor-ma~ao e urn acontecimento que provoca uma redu~ao de incer-teza acerca de urn ambiente dado. Nessa teoria, nao se consideraque urn universo de signos e a ocorrencia de cad a signo numamensagem estejam associados a uma informa~ao mensuravel. Porexemplo, a ocorrencia de cada letra deste texto traz uma infor-ma~ao, que sera tanto maior quanta mais improvavel ela for. Ora,uma ocorrencia nao e uma coisa. Nao e material como uma ma~a,nem imaterial como uma alma imortal. Simetricamente, uma coisanao e nem provavel nem improvavel. Somente urn acontecimen-to ou urn "fato" pode estar ligado a uma probabilidade, e por-tanto ser informativo, como por exemplo, justamente, 0 fato detal coisa estar presente agora ou nao existir. Intuitivamente, sen-timos claramente que a informa~ao esta ligada a uma probabili-dade subjetiva de ocorrencia ou de aparecimento: urn fato intei-ramente previsivel nada nos ensina, enquanto urn acontecimentosurpreendente nos traz realmente uma informa~ao.

Estudemos agora cuidadosamente a natureza da informa~ao.Suponhamos que uma elei~ao tenha se realizado num certo pais.Essa elei~ao produziu-se num certo lugar e num momenta preci-so. Enquanto tal, esse acontecimento e indissociavel de urn "aquie agora" particular. Diz-se justamente que a elei~ao teve "Iugar".Diremos que se trata de urn acontecimento atual. Numa primei-ra aproxima~ao, quando as agencias de notfcias a anunciam ou acomentam, elas nao difundem 0 acontecimento propriamente dito,mas uma mensagem que the diz respeito. Diremos que, se 0 acon-tecimento e atual, a produ~ao e a difusao de mensagens a seu res-peito constituem uma virtualizar,;ao do acontecimento, provida detodos os atributos que ate aqui associamos a virtualiza~ao: des-prendimento de urn aqui e agora particular, passagem ao publicoe sobretudo heterogenese. Com efeito, as mensagens que virtua-lizam 0 acontecimento sao ao mesmo tempo seu prolongamento,elas participam de sua efetua~ao, de sua determina~ao inacabada,fazclll parte dela. Gra~as a imprensa e a seus comentarias, 0 re-sultado da elei~ao repercute desta au daquela maneira sobre a

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mercado financeiro de urn pais estrangeiro. Em determinado dia,na Bolsa de determinada capital econ6mica, transa<;:oes singula-res se produziram: 0 acol1tecimento continua a se atualizar emtempos e lugares particlilares. Mas essa atualiza<;:ao adquire elamesma a forma de prodlll,;i"io de mensagens e de informa<;:oes, demicro-virtualiza~()es. Rel'l1colll"ralllos al nosso tema do anel deMoebius: a mcnsagem sohre () acol1tccimento e ao mesmo tempoe indissoluvclmel1ll' lima scqiil"l1cia do acontecimento. 0 mapa (amensagcm) fa 1', parle do Il'I'ril(')rio (0 acontecimento) eo territo-rio e Iargaml'lllc constitllido de lima adi~ao indefinida, de umaarticllla~ilo din.lmica, de ll111arede de mapas em expansao. Ditode olltro modo, tudo 0 que c da ordem do acontecimento tern avel' com uma dinamica da atualiza<;ao (territorializa<;:ao, instan-cia<;:ao aqui e agora, solu<;:ao particular) e da virtualiza<;:ao (des-territorializa<;:ao, desprendimento, coloca<;:ao em comum, eleva-<;:aoa problematical. Acontecimentos e informa<;:oes sobre os acon-tecimentos trocam suas identidades e suas fun<;:oes a cada etapada dialetica dos processos significantes.

Por que 0 consumo de uma informa<;:ao nao e destrutivo esua posse nao e exclusiva? Porque a informa<;:ao e virtual. Confor-me ja sublinhamos amplamente, urn dos principais caracteres dis-tintivos da virtualidade e seu desprendimento de urn aqui e ago-ra particular, e por isso posso dar urn bem virtual, por essenciadesterritorializado, sem percle-Io. Por outro lado, lembremo-nosde que 0 virtual pode ser assimilado a urn problema e 0 atual auma solu<;:ao. A atualiza<;:ao nao e portanto uma destrui<;:ao mas,ao contrario, uma produ<;:ao inventiva, urn ato de cria<;:ao. Quan-do utilizo a informa<;:ao, ou seja, quando a interpreto, Iigo-a a

, outras informa<;:oes para fazer sentido ou, quando me sirvo delapara tomar uma decisao, atualizo-a. Efetuo portanto urn atocriativo, produtivo. 0 conhecimento, por sua vez, e 0 fruto deuma aprendizagem, ou seja, 0 resultado de uma virtualiza<;:ao daexperiencia imediata. Em sentido inverso, este conhecimentopode ser aplicado, ou melhor, ser atualizado em situa<;:oes dife-rentes daquelas da aprendizagem inicial. Toda aplica<;:ao efetiva

de ll111saher e lima resolu<;:ao inventiva de urn problema, umapequena cria<;:ao.

Voltemos agora a nossos sacos de trigo e nossos carros. Suaprodu<;:ao e seu consumo esta menos ligada a uma dialetica daatualiza<;:ao e da virtualiza<;:ao que a uma alternativa do POSSIVele do real. Em vez de permanecer fascinado por sua natureza "mate-rial", deve-se ten tar compreender 0 tipo de dinamica no qual seins creve seu uso. Os bens cujo consumo e destrutivo e a apropria-<;:aoe exclusiva sao reservatorios de possibilidades, "potenciais".Seu consumo (comer 0 trigo, conduzir 0 carro) equivale a umarealiza<;:ao, isto e, a uma escolha exclusiva e irreverslvel entre osposslveis, a uma "queda de potencial". A realiza<;:ao so confereexistencia a certas possibilidades em detrimento de outras. Osposslveis sao candidatos e nao urn campo problematico, a realiza-<;:aoe uma elei<;:aoou uma sele<;:aoe nao uma resolu<;:ao inventivade urn problema. 0 bem virtual coloca urn problema, abre urncampo de interpreta<;:ao, de resolu<;:ao ou de atualiza<;:ao, enquantourn envoltorio de possibilidades presta-se apenas a uma realiza<;:aoexclusiva. Potencial de realidade, 0 bem destrutivel e privativo naopode estar ao mesmo tempo aqui e la, desprendido do aqui e agora.Ele e regido pela lei da exclusao mutua: ou ... ou ... Nao fosse as-sim, poderia se realizar de duas maneiras diferentes em do is lu-gares e dois momentos distintos, 0 que, por defini<;:ao, e... impos-slvel. As reservas de posslveis, os bens cujo consumo e uma reali-za<;:ao, nao podem portanto ser separados de seu suporte flsico.

Para evitar qualquer malentendido, sublinhemos de imediatoque se trata aqui de distin<;:oes conceituais e nao de urn princlpiode classifica<;:ao exclusivo. Uma obra de arte, por exemplo, pos-sui simultaneamente aspectos de possibilidade e de virtualidade.Enquanto fonte de prestigio e de aura ou como puro valor mer-cantil, urn quadro e uma reserva de posslveis (0 "original") que

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mercado financeiro de urn pais estrangeiro. Em determinado dia,na Bolsa de determinada capital economica, transa<;:6es singula-res se produziram: 0 acontecimento continua a se atualizar emtempos e lugares particulares. Mas essa atualiza<;:ao adquire elamesma a forma de produ<;:ao de mensagens e de informa<;:6es, demicro-virtualiza<;:6es. Reencontramos ai nos so tema do anel deMoebius: a mensagem sobre 0 acontecimento e ao mesmo tempoe indissoluvelmente uma sequencia do"acontecimento. 0 mapa (amensagem) faz parte do territorio (0 acontecimento) e 0 territo-rio e largamente constituido de uma adi<;:ao indefinida, de umaarticula<;:ao dinamica, de uma rede de map as em expansao. Ditode outro modo, tudo 0 que e da ordem do acontecimento tern avcr com uma dinamica da atualiza<;:ao (territorializa<;:ao, instan-cia~iio aqui e agora, solu<;:ao particular) e da virtualiza<;:ao (des-tcrritorializa~ao, desprendimento, coloca<;:ao em comum, eleva-~iio a problcll1~ltica). Acontecimentos e informa<;:6es sobre os acon-tccimcntos trocam suas identidades e suas fun<;:6es a cada etapada dialetica dos proccssos significantes.

Por que 0 consumo de uma informa<;:ao nao e destrutivo esua posse nao e exc1usiva? Porque a informa<;:ao e virtual. Confor-me ja sublinhamos amplamente, urn dos principais caracteres dis-tintivos da virtualidade e seu desprendimento de urn aqui e ago-ra particular, e por isso posso dar urn bem virtual, por essenciadesterritorializado, sem perde~lo. Por outro lado, lembremo-nosde que 0 virtual pode ser assimilado a urn problema e 0 atual auma solu<;:ao. A atualiza~ao nao e portanto uma destrui<;:ao mas,ao contrario, uma produ~ao inventiva, urn ato de cria~ao. Quan-do utilizo a informa<;:ao, ou seja, quando a interpreto, ligo-a aoutras informa<;:6es para fazer sentido ou, quando me sirvo delapara tomar uma decisao, atualizo-a. Efetuo portanto urn atocriativo, produtivo. 0 conhecimento, por sua vez, e 0 fruto deuma aprendizagem, ou seja, 0 resultado de uma virtualiza~ao daexperiencia imediata. Em sentido inverso, este conhecimentopode ser aplicado, ou melhor, ser atualizado em situa~6es dife-rentes daquelas da aprendizagem inicial. Toda aplica<;:ao efetiva

de urn saber e uma resolu~ao inventiva de urn problema, uma

pequena cria~ao.

Voltemos agora a nossos sacos de trigo e nossos carros. Suaprodu~ao e seu consumo esta menos ligada a uma dialetica daatualiza~ao e da virtualiza~ao que a uma alternativa do possivele do real. Em vez de permanecer fascinado por sua natureza "mate-rial", deve-se tentar compreender 0 tipo de dinamica no qual seins creve seu uso. Os bens cujo consumo e destrutivo e a apropria-<;:aoe exclusiva sao reservatorios de possibilidades, "potenciais".Seu consumo (comer 0 trigo, conduzir 0 carro) equivale a umarealiza<;:ao, isto e, a uma escolha exclusiva e irreverslvel entre ospossiveis, a uma "queda de potencial". A realiza<;:ao so confereexistencia a certas possibilidades em detrimento de outras. Ospossiveis sao candidatos e nao urn campo problematico, a realiza-<;:aoe uma elei<;:aoou uma sele<;:aoe nao uma resolu<;:ao inventivade urn problema. 0 bem virtual coloca urn problema, abre urncampo de interpreta<;:ao, de resolu<;:ao ou de atualiza<;:ao, enquantourn envoltorio de possibilidades presta-se apenas a uma realiza<;:aoexclusiva. Potencial de realidade, 0 bem destrutivel e privativo naopo de estar ao mesmo tempo aqui e la, desprendido do aqui e agora.Ele e regido pela lei da exclusao mutua: ou ... ou ... Nao Fosse as-sim, poderia se realizar de duas maneiras diferentes em dois lu-gares e dois momentos distintos, 0 que, por defini<;:ao, e... impos-sivel. As reservas de possiveis, os bens cujo consumo e uma reali-za<;:ao, nao podem portanto ser separados de seu suporte fisico.

Para evitar qualquer malentendido, sublinhemos de imediatoque se trata aqui de distin~6es conceituais e nao de urn principiode classifica<;:ao exclusivo. Uma obra de arte, por exemplo, pos-sui simultaneamente aspectos de possibilidade e de virtualidade.Enquanto Fonte de prestigio e de aura ou como puro valor mer-cantil, urn quadro e uma reserva de posslveis (0 "original") que

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nao podem se realizar (exposic.;ao, venda) simultaneamente aquie ali. Enquanto portador de uma imagem a interpretar, de umatradic.;ao a prosseguir ou a contradizer, enquanto acontecimentona hist6ria cultural, urn quadro e urn objeto virtual do qual 0

original, as c6pias, gravuras, fotos, reproduc.;oes, digitalizac.;oes,colocac.;oes em rede interativa sao outras tantas atualizac.;oes. Cadaefeito mental ou cultural produzido por uma dessas atualizac.;oese, por sua vez, uma atualizac.;ao do quadro.

Na instituic.;ao c1<issica do trabalho, tal como foi fixada noseculo XIX, 0 operario vende sua forc.;a de trabalho e recebe urnsalario em troca. A forp de trabalho e urn trabalho possivel, urnpotencial ja determinado pel a organizac.;ao burocratica da produ-c.;ao. E urn potencial, ainda, ja que uma hora dada e irremedia-velmente perdida. 0 trabalho assalariado e uma queda de poten-cial, uma realizac.;ao, por isso pode ser medido por hora.

Em contrapatida, 0 trabalhador contemporaneo tende a ven-der nao mais sua forc.;a de trabalho, mas sua competencia, oumelhor, uma capacidade continuamente alimentada e melhoradade aprender e inovar, que pode se atualizar de maneira imprevisivelelll contextos va ri~iveis. A for<,:ade trahalho do assalariado clas-sico, U111potcncial, sucede portanto uma competencia, urn saber-ser, ou llleSIllO UIll sahcr-devir, que tem a ver com 0 virtual. Comotoda virtualidadc, e cOIlt"rarialllente ao potencial, a competencianao se consollle qU~lI1doutili/,ada, Illuito pelo contnirio. E al estao centro do problema: a ntualiza<,:iio da competcncia, ou seja, aeclosao de uma qualidade no cOlltexto vivo, <: hem mais dificil deavaliar que a realiza<,:ao de U111afor<,:ade trabalho.

Em verdade, 0 trabalho ja111ais foi pura execw;ao. 5e podeser tornado como uma queda de potencial, uma realizac.;ao, foiapenas em conseqiiencia de uma violcncia social que negava (em-bora utilizando) seu carater de atualiza<,:ao criadora.

Uma coisa <: certa, a hora uniforme do rel6gio nao e mais aunidade pertinente para a medida do trabalho. Essa inadequac;;aoha muito era flagrante para a atividade dos artistas e dos intelec-tuais, mas hoje se estende progressivamente ao conjunto das ati-vidades. Compreende-se por que a reduc.;ao do tempo de traba-Iho nao pode ser uma soluc;;ao a longo prazo para 0 problema dodesemprego: ela pereniza, com urn sistema de medida, uma con-cepc.;ao do trabalho e uma organizac.;ao da produc.;ao condenadaspela evoluc.;ao da economia e da sociedade. 56 se pode medir - eportanto remunerar -legitimamente urn trabalho por hora quan-do se trata de uma forc.;a de trabalho-potencial (ja determinado,pura execuc.;ao) que se realiza. Urn saber alimentado, uma com-petencia virtual que se atualiza, e uma resoluc.;ao inventiva de urnproblema numa situac.;ao nova. Como avaliar a reserva de inteli-gencia? Certamente fiao pelo diploma. Como medir a qualidadeem contexto? Nao sera usando urn rel6gio. No dominio do tra-balho, como alhures, a virtualizac.;ao nos faz viver a passagem deuma economia das substancias a uma economia dos acontecimen-tos. Quando irao as instituic.;oes e as mentalidades acolher os con-ceitos adequados? Como aplicar os sistemas de medida que acom-

panham essa mutac.;ao?o salario remunerava 0 potencial, os novos contratos de

trabalho recompensam 0 atual. Na economia do futuro, as socie-dades bem-sucedidas reconhecerao e alimentarao em prioridadeo virtual e seus portadores vivos. Com efeito, dois caminhos seabrem aos investimentos para aumentar a eficacia do trabalho:ou a reificac.;ao da forc;;a de trabalho pela automatizac.;ao, ou avirtualizac.;ao das competencias por dispositivos que aumentem ainteligencia coletiva. Num caso, pensa-se em termos de substitui-c.;ao: 0 homem, desqualificado, e substituido pela maquina. No

.caminho da virtualizac.;ao, em troca, concebe-se 0 aumento deeficacia em termos de coevoluc.;ao homem-maquina, de enrique-cimento das atividades, de acoplamentos qualificadores entre asinteligencias individuais e a mem6ria din arnica dos coletivos.

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1l11:Jiarios parasitas da informa<;ao (jornalistas, editores, profes-sores, medicos, advogados, funcionarios medios) ou da transa<;ao(comerciantes, banqueiros, agentes financeiros diversos) e tern seuspapeis habituais amea<;ados. Esse fen6meno e chamadoa "de-sintermedia<;ao". As institui<;oes e profissoes fragilizadas pela de-sintermedia<;ao e 0 crescimento da transparencia so poderao so-breviver e prosperar no ciberespa<;o efetuando sua migra<;ao decompetencias para a organiza<;ao da inteligencia coletiva e doauxflio a navega<;ao.

A transparencia crescente de urn mercado cada vez mais di-ferenciad6 e personalizado permite aos produtores ajustar-se emtempo real as evolu<;oes e a variedade da demanda. No limite,pode-se imaginar urn acoplamento em fluxo tenso entre redes de"retromarketing" e fabricas flexfveis, a pilotagem da produ<;aopassando quase inteiramente as maos dos consumidores (De Ros-nay, 1995).

Todo ato registravel cria efetivamente ou virtual mente in-forma<;ao, ou seja, numa economia da informa<;ao, riqueza. Ora,o ciberespa<;o e por excelencia 0 meio em que os atos podem serregistrados e transformados em dados exploraveis. Por isso 0 con-sumidor de informa<;ao, de transa<;ao ou de dispositivos de comu-nica<;ao nao cessa, ao mesmo tempo, de produzir uma informa-<;aovirtualmente cheia de valor. 0 consumidor nao apenas se tornacoprodutor da informa<;ao que consume, mas e tambem produ-tor cooperativo dos "mundos virtuais" nos quais evolui, bem co-mo agente de visibilidade do mercado para os que exploram osvestfgios de seus atos no ciberespa<;o. Os produtos e servi<;os maisvalorizados no novo mercado sao interativos, 0 que significa, emtermos econ6micos, que a produ<;ao de valor agregado se deslo-ca para 0 lado do "consumidor", ou melhor, que convem substi-tuir a no<;ao de consumo pela de coprodu({ao de mercadorias oude servi<;os interativos. Assim como a virtualiza<;ao do texto nosfaz assistir a indistin<;ao crescente dos papeis do leitor e do au-tor, tambem a virtualiza<;ao do mercado poe em cena a mistl;lrados generos entre 0 consumo e a produ<;ao.

Nos discursos politicos, 0 tema das "super-vias da informa-<;ao" e acompanhado com freqiiencia pela evoca<;ao de "novosmercados", que supostamcnte dariam novo impulso ao crescimen-to e criariam emprcgos. Aqui, 0 erro consiste em dirigir 0 foco paraos novos proJutos, os novos servi<;os, os novos empregos, ou seja,para uma ahordagcm quantitativa (produtos a mais e empregossuplementares), SCIll pcrceber que as no<;oes classicas de merca-do e dc trnhalho csti]o prestes a mudar. 0 ciberespa<;o abre de fatourn mercndo novo, so que se trata menos de uma onda de consu-mo por vir que <.Inemergencia de urn espa<;o de transa<;ao quali-tativamente diferente, no qual os papeis respectivos dos consu-midores, dos produtores e dos intermediarios se transformamprofundamente.

o mercado on line nao conhece as distancias geograficas.Todos os seus pontos estao em principio igualmente "proximos"uns dos outros para 0 comprador potencial (telecompra). 0 con-sumo e a demanda nele sao captados e perseguidos em seus me-nores detalhes. Por outro lado, os servi<;os de orienta<;ao e devisibiliza<;ao das ofertas se multiplicam. Em suma, 0 cibermercadoe mais transparente que 0 mercado classico. Em principio, essatransparencia deveria beneficiar os consumidores, os pequenosprodutores e acelerar a desterritorializa<;ao da economia.

A consulta a bancos de dados medicos e jurfdicos on line pornao especialistas progride continuamente. Os indivfduos podemassim questionar urn diagnostico ou urn conselho dado por urnprofissional "de vizinhan<;a", e ate mesmo ter acesso direto a in-forma<;ao pertinente junto aos melhores especialistas mundiais porintermedio de bancos de dados, de sistemas especialistas ou desistemas hipermfdia concebidos para ser consultados pelo gran-de publico.

Como os produtores primarios e os requerentes podem en-trar diretamente em contato uns com os outros, toda uma classede profissionais corre doravante 0 risco de ser vista como inter-

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Munida de um cOll1putador, de um modem e de programasde filtragem e de explora<;ilo dos dados, associado a outros usua-rios em redes de trocas cooperativas de servic;:os e de informac;:6esquase gratuitas, 0 lIsll,lrio final esta cada vez melhor equipado pararefinar a inform,H •.•.io. () "produtor" habitual (professor, editor,jornalista, prodlltor de programas de televisao) luta assim paranao se ver rclegado ao papel de simples fornecedor de materia-prima. De ollde a batalha, do lado dos "produtores de conteu-dos", pam rcinstallrar tanto quanta possivel, no novo espac;:o deillteratividade, 0 papel que eles ocupavam no sistema unilateraldas Il1fdias Oll Ila forma rfgida das instituic;:6es hierarquicas. Mas,do lado da oferta, 0 novo ambiente economico e muito mais fa-vonivel aos fornecedores de espac;:os, aos arquitetos de comuni-dades virtuais, aos vendedores de instrumentos de transac;:ao e denavegac;:ao que aos classicos difusores de conteudos.

Quanta a explorac;:ao economica dos conteudos em questao,as maneiras habituais de valorizar a propriedade sabre a infor-mac;:ao (compra do suporte flsico da informac;:ao ou pagamentode direitos autorais classicos) sao cada vez menos adaptadas aocarater fluido e virtual das mensagens. Abandonar totalmentequalquer pretensao a propriedade sabre as programas e a infor-mac;:ao, como certos ativistas da rede prop6em, seria arriscar-sea voltar aquem da invenc;:ao do dire ita autoral e da patente, a epocaem que as ideias suadas dos trabalhadores intelectuais podiam serbloqueadas por monop6lios au apropriadas sem contra partida porpotencias economicas ou polfticas.

Mas na epoca da economia da informac;:ao e do conhecimen-to, em vez de abandonar as direitos de propriedade sabre todasas formas de bens de software, 0 que equivaleria a uma espolia-c;:aodescarada dos produtores de base, dos novos proletarios quesao os trabalhadores intelectuais, a tendencia parece antes se orien-tar no sentido de uma sofisticac;:ao do direito autoral. Esse aper-feic;:oamento se desenvolve em duas direc;:6es: passagem de urndireito territorial a urn direito de fluxo e passagem do valor detroca ao valor de uso.

Hoje, se quisermos utilizar uma foto num servic;:o multimi-dia on line, e preciso antes de mais nada pagar direitos ao pro-prietario da foto. A foto e como urn microterrit6rio. Esta fora dequestao utiliza-Io sem ter comprado au alugado a terreno previ-amente. Essa coerc;:ao bloqueia consideravelmente a inovac;:ao eco-nomica e cultural no ciberespac;:o. 0 pequeno empreendedor ino-vador simplesmente nao possui as meios de pagar as direitos, eneste caso a proprietario nao ganha nada; 0 autor ve sua ideia con-finada a urn drculo restrito e a surfista da Net fica privado da ima-gem. A soluc;:ao consistiria, portanto, nao em suprimir completa-mente a direito auroral, mas em substitui-Io por sistemas de con-tagem continua do consumo de informac;:6es pelos usuarios finais.A aquisic;:ao da informac;:ao sobre a usa poderia ser feita, par exem-plo, no momenta da decodificac;:ao da mensagem. Deste modo 0

proprietario nao seria lesado, e a fornecedor de servic;:os poderiacontar com a foto (par exemplo) sem ter que desembolsar de an-temao uma soma da qual geralmente nao disp6e. Pagar-se-ia as-sim a informac;:ao da mesma maneira que a agua ou a eletricida-de: por debito em conta. Mas com uma diferenc;:a significativa, poisseria como se cada gota de agua comportasse seu pr6prio micro-contador. Assim, a foto poderia ser copiada, empregada, difun-dida 0 quanta se quisesse, sem nenhuma limitac;:ao. S6 que seriaacionado automaticamente com a imagem, doravante lfquida eubiqua, a pequeno programa que registra a decodificac;:ao e efe-tua automaticamente urn debito minusculo na conta do consumi-dor e urn credito infima na do autor ou do proprietario.

Essa medida dos fluxos de consumo pode ser aperfeic;:oadapelo que poderfamos chamar provisoriamente de pagamento do"valor de usa". Par exemplo, na rede americana AMIX, a infor-mac;:ao vendida e paga em func;:ao de sua data de origem e da de-manda de que e objeto. Mais do que uma revista de informac;:oescujo prec;:o e fixado pelo vendedor, a AMIX funciona como umaBalsa na qual a demanda contribui em tempo real para a fixac;:aodo prec;:o (Goldfinger, 1994). Numerosos servic;:os oferecidos nociberespac;:o funcionam nesse espirito, registrando as usos, as na-

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vega<;:6es e as avalia<;:oes individuais para devolver aos usuariosuma avalia<;:ao cooperativa ou urn auxilio a orienta<;:ao persona-lizada. Citemos, por exell1plo, na World Wide Web, Fish-Wrapque diz respeito a doculllentos, Ringo++ dedicado aos titulos mu-sicais, ou Idea Futures que organiza uma especie de mercado dasideias cientfficas e tecllol6gicas.

Esses servi\os, 110 entanto, nao tern, em 1995, uma tradu<;:aomoneta ria diret;l. l.es ;Hbres de connaissances® [As arvores de£o-nhecimentoJ (Authier, Levy, 1992), com seu programa Gingo®3,constituem igualmente urn dispositivo de medida do valor de usodas c0ll1pet2ncias (ou dos documentos, ou de qualquer tipo de in-forma<;:ao), varia vel conforme os contextos e os momentos. Gingoincorpora UIl1sistema completo de fixa<;:aodo valor de uso por meiode uma moeda especial chamada de SOL (standard open learning).

Evocamos a passagem de uma propriedade territorial rfgi-da a retribui<;:ao de flutua<;:6es desterritorializadas, e a transfor-ma<;:ao de uma economia do valor de troca em economia do va-lor de uso. Na verdade, essas formula<;:6es sao mais uma metafo-ra do que uma caracteriza<;:ao conceitualmente rigorosa. Estrita-mente falando, eu diria que, quando compro urn livro ou urn dis-co, pago algo real, 0 suporte fisico da informa<;:ao. 0 livro quenao leio me custa tao caro quanto 0 que leio. A quantidade delivros e limitada: urn livro que esta em minha biblioteca nao estana sua. Estamos ainda no dominio dos recursos raros. Se com-pro direitos, nao pago mais por algo real, mas algo potencial, apossibilidade de realizar ou de copiar a informa<;:ao quantas ve-zes eu quiser. Ora, 0 novo mercado on line, 0 cibermercado, ternnecessidade de meios ineditos para tratar cia dialetica do virtuale do atual. Os sistemas de medida e de valoriza<;:ao do real e dopotencialnao sao mais adaptados. Antes de sua leitura, a informa-<;:aoque corre no ciberespa<;:o nao e potencial, mas sim virtual, na

3 "Les arbres de connaissances®" e "Gingo®" sao marcas registradas

da Tri Vium®.

medida em que pode assumir significa<;:6es diferentes e impre-visiveis conforme se insira em determinado hiperdocumento ouem outro. Virtual porque aquilo que esta em jogo nao e a reali-za<;:ao(copia, impressao etc.), mas a atualiza<;:ao, a leitura, isto e,a significa<;:ao que ela pode assumir em contexto, significa<;:ao in-dissociavel da participa<;:ao deliberada de pelo menos urn ser hu-mano consciente. Virtual porque sua reprodu<;:ao, sua copia, naocustam praticamente nada, salvo 0 custo geral de manuten<;:ao dociberespa<;:o. Virtual porque posso dar urn documento sem perde-10 e reempregar partes dele sem destruir 0 original. No ciberespa<;:o,o documento torna-se tao impalpavel e virtual quanto as infor-ma<;:6es e as proprias ideias.

A solu<;:ao que parece delinear-se para 0 problema da eco-nomia do virtual e do atual e a seguinte: 0 bem virtual seria con-tabilizado, tra<;:ado e representado, mas gratuito, inteiramente li-vre para circular sem obstaculo e para se misturar a outros bensvirtuais. 0 pre<;:oda atualiza<;:ao seria indexado conforme 0 con-texto corrente, dependendo do ambiente e do momento. Esse valorpoderia ser fixado cooperativamente por grupos de usuarios emmercados livres ou Bolsas da informa<;:ao e das ideias. A forma danova economia dependera em grande parte, portanto, dos siste-mas de delineamento do virtual e de medida do atual que seraoinventados nos proximos anos.

Dada a nova economia do virtual e do acontecimento, as no-<;:6esde produ<;:ao e de consumo (muito ligadas a ordem da sele-<;:aoexclusiva do par real-possivel) nem sempre sao as mais perti-nentes para compreender os processos em andamento. Uma guerranao e nem material nem imaterial, urn amor, uma inven<;:ao, umaaprendizagem tampouco. Aumentos, diminui<;:6es, reorganiza<;:6es,nascimentos, desaparecimentos: alguma coisa acontece. Onde?Para quem? Ecomo se fossem opera<;:6es de pensamento, emo<;:6es,

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conflitos, entusiasmos Oil csqllecimentos no seio de uma maqui-na pensante hibrida, ao IIlt'SlllOtempo cosmica, human a e tecnica.

Talvez convcllha ,'ollsidcrar as opera<;:oes da economia dovirtual como acollI'ccillll'II1os 110illterior de uma especie de me-gapsiquismo social, par;I 0 slljci\o de uma inteligencia coletiva emestado nascente, IksCllvolvcrclllos mais adiante esse tema da in-teligencia coletiva, Illas j;i podclllos esbo<;:ar uma analise de seusdeterminantes Cssclll'iais, () Illanopsiquismo pode se decomp6f"'segundo qll:Hro dillll'I1S0l'S C(lillpicmentares:

- lima l'(lllc,'livid:lllc Oll lIlll "espa<,:o" em transforma<;:aoconstantc: :lSS(K'ia~'lH's,villndos l' C:lI11inhos;

- lIllla Sl'llli('l\il'a, islO l", 11111sistTma aberl"o de representa-<,:rles,dc il11agl'ns, dc signos de t'odas as formas e de todas as ma-tcrias qllc circlIl:lI11 no cspal.;o das conexoes;

- lima axiologia ou "valores" que determinam tropismospositivos ou negativos, qualidades afetivas associadas as represen-ta<,:oes ou as zonas do espa<;:opsiquico;

- uma energetica, enfim, que especifica a for<;:ados afetosligados as imagens.

o psiquismo social pode entao ser concebido como urn hi-pertexto fractal, urn hipercortex que se reproduz de maneira se-melhante em diferentes escalas de grandeza, passando por psi-quismos transindividuais de pequenos grupos, almas individuais,espiritos infrapessoais (zonas do cerebro, "complexos" inconscien-tes). Cada no ou zona do hipercortex contem por sua vez urnpsiquismo vivo, uma especie de hipertexto dinamico atravessadode tensoes e de energias, colorido de qualidades afetivas, anima-do de tropism os, agitado de conflitos.

No seio desse megapsiquismo social, as opera<;:oes consistem

- agir sobre a conectividade: montar redes, abrir portas,difundir ou, ao contrario, reter a informa<;:ao, manter barreiras,filtrar a informa<;:ao, ou ainda garantir a seguran<;:a do conjunto(comunica<;:oes, transportes, comercio, forma<;:oes, servi<;:ossocia is,policia, exercitos, governos etc.);

- criar ou modificar representa<;:oes, imagens, fazer evoluirde uma maneira ou de outra as linguagens em uso e os signos emcircula<;:ao (artes, ciencias, tecnicas, industrias, meios de comuni-Gl<;ao etc.);

- criar, transformar ou manter os tropismos, os valores, osafetos sociais: 0 bem e 0 mal, 0 util e 0 prejudicial, 0 agradavel eo penoso, 0 belo e 0 feio etc. (educa<;:ao, religiao, filosofia, mo-ral, artes ... );

- modificar, deslocar, aumentar, diminuir a for<;:ados afe-tos ligados a esta ou aquela representa<;ao em circula<;ao (meio decomunica<;ao, publicidade, comercio, retorica ... ).

Todo acontecimento participa em maior ou menor grau, demodo molecular, do conjunto desses aspectos da vida do megapsi-quismo coletivo, mesmo aqueles nao registrados em nenhuma tran-sa<;:aomercantil. Cada urn, a todo instante, contribui para 0 pro-cesso da inteligencia coletiva. Uma vez mais, para uma economiado virtual, que aceita explicitamente esse quadro de pensamento,mesmo 0 consumo e produtor. Vimos que a atualiza<;:ao (0 "con-sumo") de uma informa<;:ao era simultaneamente uma pequenacria<;:ao (uma interpreta<;:ao). Contudo, ha mais: 0 consumo des-trutivo classico, tao logo e captado e devolvido ao produtor, aovendedor, a uma instancia qualquer de regula<;:ao ou de medida,torna-se ele tambem, ipso facto, cria<;:ao de informa<;:ao, contribuipara urn aumento da inteligencia social global. Essa ideia pode sergeneralizada assim: todo ate e virtualmente produtor de riquezasocial via sua participa<;:ao na inteligencia coletiva. Qualquer atehumano e urn momento do processo de pensamento e de emo<;:aode urn megapsiquismo fractal e poderia ser valorizado e ate remu-nerado enquanto tal. Se todos os atos pudessem ser captados, trans-mitidos, integrados a circuitos de regula<;ao e devolvidos a seusprodutores, e participassem deste modo de uma melhor informa-<;:aoglobal da sociedade sobre si mesma, a inteligencia coletiva co-nheceria uma enorme muta<;:ao qualitativa da maior importancia.

Tal perspectiva praticamente so se tornou possivel depois daexistencia dos microprocessadores, dos nanocaptadores, da infor-

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matica distribufda em rcdc, funcionando em tempo real e provi-da de interfaces amigavcis(imagem, voze etc.). 0 mercado atualpode ser considerado como 0 cmbriao ainda imperfeito, grossei-ro, demasiado unidimcnsional, de urn sistema geral de avalia<;:aoe de remunera<;:ao dos ,ll'os dc cada urn por todos. Para que essaperspectiva nao sc transforlllc cm pesadelo, convem imediatament~precisar que, nCSS;lCOIlCL'P\'i'io,as avalia<;:oes devem permaneceranonimas, c quc cad,l ato e Ili'io apenas avaliado mas avalt~~te.o sistema dc inl'egra\"i'io, dc Illcdida e de regula<;:ao aqui conside-rado, uma cspecie dc "Illcta mcrcado" integrado ao ciberespa<;:oe, antes dc mais nada, 0 instrumento de uma avalia<;:ao coopera-tiva, distribuida e multicriterial da sociedade por ela mesma.

5. AS TRES VIRTUALIZA<;OES QUE FIZERAM 0HUMANO: A LINGUA GEM, A TECNICA E 0 CONTRATO

A virt4aliza<;:ao dos corpos, das mensagens e da economiailustra urn movimento contemporaneo muito mais geral em dire-<;:aoao virtual. Proponho pensar esse movimento como a buscade uma hominiza<;:ao continuada. Com efeito, nossa especie, comoyou tentar mostrar neste capitulo, constituiu-se na e pela virtua-liza<;:ao. Sendo assim, a muta<;:ao contemporanea pode ser enten-dida como uma retomada da autocria<;:ao da humanidade.

o NASCIMENTO DAS LrNGUAGENS,

OU A VIRTUALIZA<:;:AO DO PRESENTE

Tres processos de virtualiza<;:ao fizeram emergir a especiehumana: 0 desenvolvimento das linguagens, a multiplica<;:ao dastecnicas e a complexifica~ao das institui<;:oes.

A linguagem, em primeiro lugar, virtualiza urn "tempo real"que mantem aquilo que esta vivo prisioneiro do aqui e agora. Comisso, ela inaugura 0 passado, 0 futuro e, no geral, 0 Tempo comourn reino em si, uma extensao provida de sua propria consisten-cia. A partir da inven<;:ao da linguagem, nos, human os, passamosa habitar urn espa<;:ovirtual, 0 fluxo temporal tornado como urntodo, que 0 imediato presente atualiza apenas parcialmente, fu-gazmente. Nos existimos.

o tempo humano nao tern 0 modo de ser de urn parametroou de uma coisa (ell' nao e, justamente, "real"), mas 0 de umasitua<;:ao aberta. Nesse tempo assim concebido e vivido, a a<;:aoeo pensamento nao consistem apenas em selecionar entre possfveis

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ja determinados, mas em reelaborar constantemente uma confi-gura<;:ao significante de objetivos e de coer<;:6es, em improvisarsolu<;:6es,em reintrepreta r deste modo uma atualidade passada quecontinua a nos com pro meter. Por isso vivemos 0 tempo como pro-blema. Em sua conexilo viva, 0 passado herdado, rememorado,reinterpretado, 0 !m'scll!c ativo e 0 futuro esperado, temido ousimplesmente il1lagill:ldo, san de ordem psfquica, existenciais. 0tempo como extellsilO cOlllpleta nao existe a nao ser virtualmenre.

Claro que forl1las elaboradas de memoria e de aprendizagemja san praticadas e11l"reanimais superiores, mesmo entre os quenao disp(-)elll de linguagens complexas. No entanto, pode-se cons-truir a hip6tese de que, na vida animal, a memoria se reduz prin-cipalmente a uma Illodifica<;:ao atual do comportamento ligado aacontecimentos passados. Por outro lado, gra<;:as a linguagem,temos acesso "direto" ao passado sob a forma de uma imensacole<;:ao de lembran<;:as datadas e de narrativas interiores.

Os signos nao evocam apenas "coisas ausentes" mas cenas,intrigas, series completas de acontecimentos ligados uns aos ou-tros. Sem as lfnguas, nao poderfamos nem colocar quest6es, nemcontar historias, duas bel as maneiras de nos desligarmos do pre-sente intensificando ao mesmo tempo nossa existencia. Os sereshumanos podem se desligar parcialmente da experiencia corren-te e recordar, evocar, imaginar, jogar, simular. Assim eles deco-lam para outros lugares, outros momentos e outros mundos. Naodevemos esses poderes apenas as lfnguas, como 0 frances, 0 in-gles ou 0 wolof, mas igualmente as linguagens plasticas, visuais,musicais, matematicas ete. Quanto mais as linguagens se enrique-cern e se estendem, maiores sao as possibilidades de simular, ima-ginar, fazer imaginar urn alhures ou uma alteridade.

Neste ponto, reencontramos mais uma vez urn carater im-portante da virtualiza<;:ao: ao liberar 0 que era apenas aqui e ago-ra, ela abre novos espa<;:os,outras velocidades. Ligada a emergenciada linguagem, surge uma nova rapidez de aprendizagem, umaceleridade de pensamento inedita. A evolu<;:ao cultural anda maisdepress a que a evolu<;:ao biologica. 0 proprio tempo bifurca-se

em dire<;:aoa temporalidades intern as a linguagem: tempo proprioda narrativa, ritmo endogeno da musica ou da dan<;:a.

A passagem do privado ao publico e a tranforma<;:ao reei-proca do interior em exterior sao atributos da virtualiza<;:ao quetambem podem ser muito bem analisadas a partir do operadorsemiotico. Uma emo<;:ao posta em palavras ou em desenhos po deser mais facilmente compartilhada. 0 que era interno e privadotorna-se externo e publico. Mas isto e igualmente verdade no outrosentido: quando escutamos musica,olhamos urn quadro ou lemosurn poema, internalizamos ou privatizamos urn item publico.

A partir do momenta em que falamos, as entidades eminen-temente subjetivas que sao as emo<;:6escomplexas, os conhecimen-tos e os conceitos sao externalizadas, objetivadas, intercambiadas,podem viajar de urn lugar a outro, de urn tempo a outro, de urnespfrito a outro.

As linguagens humanas virtualizam 0 tempo real, as coisasmateriais, os acontecimentos atuais e as situa<;:6es em curso. Dadesintegra<;:ao do presente absoluto surgem, como as duas facesda mesma cria<;:ao, 0 tempo e 0 fora-do-tempo, 0 anverso e 0 re-verso da existencia. Acrescentando ao mundo uma dimensao nova,o eterno, 0 divino, 0 ideal tern uma historia. Ell'S crescem com acomplexidade das linguagens. Quest6es, problemas, hipotesesabrem buracos no aqui e agora, desembocando, do outro lado doespelho, entre 0 tempo e a eternidade, na existencia virtual.

A virtualiza<;:ao, vamos repetir mais uma vez, nao e neces-sariamente acompanhada por urn desaparecimento. Ao contrario,acarreta com freqiiencia urn processo de materializa<;:ao. Isto podeser facilmente ilustrado no caso da virtualiza<;:ao tecnica, que noscabe agora analisar.

De onde vem as ferramentas? Primeiro, uma fun<;:ao ffsicaou mental dos seres vivos (bater, pegar, caminhar, voar, calcular)

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e identificada. Depois, essas fun<;;oes sao separadas de urn agre-gada particular de ossos, carne e neuronios. Assim elas sao se-paradas, ao mesmo tempo, de uma experiencia interior, subjeti-va.,A fun<;;ao abstrata e materializada sob outras formas que naoo gesto habitual. 0 corpo nu e substitufdo por dispositivos hfbri-dos, outros suportcs: 0 martelo para a batida; a armadilha, 0 an-zol ou a rede para a captura; a roda para 0 andar; 0 balao infla-do de ar, as asas dc aviiio ou as pas de helicoptero para 0 voo; 0

abaco ou a rcglla de dlculo para as opera<;;oes matematicas ...Gra<;;as a essa matl'l'ializa<.;iio, 0 privado torna-se publico, parti-lhado. 0 que era indissociclvel de uma imediatidade subjetiva, deuma intcrioridade organica, agora passou por inteiro ou em par-te ao exterior, para um objeto. Mas, por uma especie de espiraldialetica, a exterioridade tecnica muitas vezes so ganha eficaciase for internalizada de novo. A fim de utilizar uma ferramentadeve-se aprender gestos, adquirir reflexos, recompor uma identi~dade mental e ffsica. 0 ferreiro, 0 esquiador, 0 motorista de au-tomovel, a ceifeira, a tricotadora ou a ciclista modificaram seusmusculos e seus sistemas nervosos para integrar os instrumentosem uma especie de corpo ampliado, modificado, virtualizado. E,como a exterioridade tecnica e publica ou partilhavel, ela contri-bui em troca para forjar uma subjetividade coletiva.

Entretanto, a dinamica tecnica se alimenta de seus propriosprodutos, opera combina<;;oes transversais, rizomaticas, e conduzfinalmente a maquinas, a arranjos complexos muito afastados defun<;;oes corporais simples. Urn barco a vela, urn moinho movidoa agua, urn relogio ou uma central nuclear virtualizam fun<;;oesmotoras, cognitivas ou termostaticas, mas - voltaremos a esseponto - nao podem ser compreendidos como prolongamentosde corpos individuais. Eles so sao plenamente reintegrados ouinteriorizados de volta na escala de megamaquinas sociais hfbri-das ou de hipercorpos coletivos.

A concep<;;ao de uma nova ferramenta virtualiza uma combi-na<;;aode orgaos e de gestos que so aparece, entao, como uma solu-<;;aoespecial, local, momentanea. Ao conceber uma ferramenta ,

mais do que nos concentrarmos sobre determinada a<;;aoem cur-so, i<;;amo-nos a escala bem mais elevada de urn conjunto indeter-minado de situa<;;oes. 0 surgimento da ferramenta nao respondea urn estfmulo particular mas materializa parcialmente uma fun-<;;aogeneric a, cria urn ponto de apoio para a resolu<;;ao de umaclasse de problemas. A ferramenta que seguramos na mao e umacoisa real, mas essa coisa da acesso a urn conjunto indefinido deusos possfveis.

De acordo com 0 que toi proposto por Marshall McLuhane Andre Leroi-Gourhan, diz-se as vezes que as ferramentas saocontinua<;;oes ou extensoes do corpo. Essa teoria nao me parecefazer justi<;;aa especificidade do fenomeno tecnico. Voce pode darpedras talhadas a seus primos. Pode produzir milhares de bifaces4.

Mas Ihe e impossfvel multiplicar suas unhas ou empresta-las a seuvizinho. Mais que uma extensao do corpo, uma ferramenta e umavirtualiza<;;ao da a<;;ao. 0 martelo pode dar a ilusao de urn pro-longamento do bra<;;o; a roda, em troca, evidentemente nao e urnprolongamento da perna, mas sim a virtualiza<;;ao do andar.

Ha poucas virtualiza<;;oes da a<;;aoe muitas atualiza<;;oes dasferramentas. 0 martelo pode ter sido inventado tres ou quatrovezes ao longo da historia. Digamos tres ou quatro virtualiza<;;oes.Mas quantas marteladas foram dadas? Bilhoes e bilhoes d~ atua-liza<;;oes.A ferramenta, a permanencia de sua forma sao uma me-moria do momenta original de virtualiza<;;ao do corpo em ato. Aferramenta cristaliza 0 virtual.

A tecnica nao virtualiza apenas os corpos e as a<;;oes,mastambem as coisas. Antes que os seres humanos houvessem apren-dido a entrechocar pedras de sflex acima de uma pequena acen-dalha, eles so conheciam 0 fogo presente ou ausente. Depois dainven<;;ao das tecnicas de acendimento, 0 fogo pode tambem servirtual. Ele e virtual onde quer que haja fosforos. A presen<;;a oua ausencia do fogo era urn fato com 0 qual se era obrigado a con-

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tar, agora e uma eventualidade aberta. Uma coen;:ao foi transfor-mada em variavel.

Em suma, 0 meStllOobjeto tecnico pode ser considerado se-gundo quatro modos dc ser. Enquanto problematiza~ao, dester-ritorializa~ao, passagctll ;10 publico, metamorfose e recomposi~aode uma fun~ao corporal, 0 obieto tecnico e urn operador de vir-tualiza~ao. Tal lll;lI'lclo [lirtualiza quando 0 consideramos comomemoria da itlVClll,.;\Odo martelo, vetor de urn conceito, agentede hibri,h,.ao do corpo. Entao, 0 martelo existe e faz existir.

A cada golpe de marreta ou de camartelo, 0 martelo virtua-lizante, testelllunha hoie do que foi urn dia 0 surgimento de umanova Illaneir,) de bater, atualiza-se. Ao atualizar, 0 martelo con-duz a a<.;ao.Tal configura~ao, tal hibrida~ao desse corpo, acon-tece efetivamente por meio dele, aqui e agora, e cada vez dife-rentemente. Cada marte!ada e uma ocorrencia, uma tentativa deresolu~ao de problema em escala molecular, alias malograda devez em quando: pode-se bater mal, com demasiada for~a ou forado alvo.

o marte!o real e essa marreta, esse ma~o, esse martelo deescultor: a coisa com seu pre~o, seu peso, seu cabo de madeira,

Ifsua cabe~a de metal, sua forma 'precisa. 0 martelo real deve serfori ado, montado, realizado pelo fabricante, armazenado, prote-gido. 0 marte!o resiste ou subsiste.

o martelo, enfim, encerra urn potencial, uma potencia, urnpoder. Considerado como potencial, 0 martelo se revela pereci-vel, e uma reserva fin ita de golpes, de usos particulares. Nao maisvetor de metamorfose do corpo, abertura de uma nova rela~aoffsica com 0 mundo (0 marte!o virtualizante), nao mais condutorde urn ato singular aqui e agora (0 marte!o batedor atualizante),nao mais coisa material (0 martelo real), mas reservatorio de pos-slveis. Assim, 0 potencial de urn martelo novo e maior que 0 deurn ve!ho, e 0 martelinho do sapateiro nao tern 0 mesmo poten-cial qualitativo que 0 do vidraceiro. 0 marte!o insiste.

A humanidade emerge de tres processos de virtualiza~ao. 0primeiro esta ligado aos signos: a virtualiza~ao do tempo real. 0segundo e comandado pelas tecnicas: a virtualiza~ao das a~6es,do corpo e do ambiente ffsico. 0 terceiro processo cresce com acomplexidade das re!a~6es sociais: para designa-Io da maneiramais sintetica posslve!, diremos que se trata da virtualiza~ao daviolencia.

Os rituais, as re!igi6es, as morais, as leis, as normas econo-micas ou pollticas sao dispositivos para virtualizar os relaciona-mentos fundados sobre as rela~6es de for~as, as puls6es, os ins-tintos ou os deseios imediatos. Uma conven~ao ou urn contra to,para tomar urn exemplo privilegiado, tornam a defini~ao de l1ll1

relacionamento independente de uma situa~ao particular; indepen-dente, em principio, das varia~6es emocionais daqueles que ()con-trato envolve; independente da flutuar;ao das relar;oes de f()r~:a.

Uma lei envolve uma quantidade indefinida de detalhes vir-tuais dos quais somente urn pequeno numero e explicitamenteprevisto em seu texto. Numa dada sociedade, urn ritual (digamosurn casamento ou uma cerimonia de inicia~ao) aplica-se a uma va-riedade indefinida de pessoas. A mudan~a de estatuto ("a partirde agora, sois casados", "agora, sois urn adulto") e automatica eidentica para todos. Nao somos obrigados a reinventar e negociaralgo de novo em cada situa~ao particular. Os exemplos da inicia-~ao, do casamento ou da venda mostram que a virtualiza~ao dosrelacionamentos e dos impulsos imediatos, ao mesmo tempo queestabiliza os comportamentos e as identidades, tambem fixa pro':cedimentos precisos para transformar os relacionamentos e osestatutos pessoais.

Atraves da linguagem, a emo~ao virtualizada pela narrati-va voa de boca em boca. Gra~as a tecnica, a a~ao virtualizada pelaferramenta passa de mao em maa,. Do mesmo modo, n3;esfera dasrela~6es socia is, pode-se organizar 0 movimento ou a desterri-torializa~ao de relacionamentos virtualizados. Urn tItulo de pro-

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priedade, a~oes de uma companhia ou urn contrato de seguro sevendem e se transmitem. Urn reconhecimento de divida, uma le-tra de cambio ou uma ohriga~ao, que na origem diziam respeitoa apenas duas partes, podcm circular entre urn numero indefini-do de pessoas. Podc-sc do mesmo modo eleger urn porta-voz,ensinar uma ora<,:uo Ol1 comprar urn fetiche.

Relacionamcntos virtuais coagulados, como e 0 caso doscontratos, suo cntidades publicas e compartilhadas no seio deuma socicdadc. Novos procedimentos, novas regras de compor-tamento sc articulam sobre as precedentes. Urn processo conti-nuo de virtualiza<,:ao de relacionamentos forma aos poucos acomplexidade das culturas humanas: religiao, etica, direito, po-lItica, economia. A concordia talvez nao seja urn estado natural,uma vez que, para os humanos, a constru<,:ao social passa pelavirtualiza~ao.

Por que a arte interessa a tanta gente embora seja tao diffeilde descrever? Porque ela representa, por mais de uma razao, urnapice da humanidade. Nenhuma especie animal jamais praticouas belas-artes. E nao sem motivo: a arte esta na confluencia dastres grandes correntes de virtualiza~ao e de hominiza~ao que saoas linguagens, as teenicas e as eticas (ou religioes). A arte e diffeilde definir por estar quase sempre na fronteira da simples lingua-gem expressiva, da tecnica ordinaria (0 artesanato) ou da fun~aosocial muito claramente designavel. Ela fascina porque poe empratica a mais virtualizante das atividades.

Com efeito, a arte da uma forma externa, uma manifesta-~ao publica a emo~oes, a sensa~oes experimentadas no mais inti-mo da subjetividade. Embora sejam impalpaveis e fugazes, senti-mos nao obstante que essas emo~oes sao 0 sal da vida. Ao torna-las independentes de urn momenta e de urn lugar particular, oupelo menos (para as arte$,;ivas) ao dar-Ihes uma dimensao cole-

tiva, a arte nos faz compartilhar uma maneira de sentir, uma qua-lidade de experiencia subjetiva.

A virtualiza~ao, em geral, e uma guerra contra a fragilida-de, a dar, 0 desgaste. Em busca da seguran~a e do controle,per-seguimos 0 virtual porque nos leva para regioes ontologicas queos perigos ordinarios nao mais atingem. A arte questiona essa ten-dencia, e portanto virtualiza a virtualiza~ao, porque busca nummesmo movimento uma saida do aqui e agor~" e sua exalta~aosensual. Retoma a propria tentativa de evasao em suas voltas ereviravoltas. Em seus jogos, con tern e libera a energia afetiva quenos faz superar 0 caos. Numa ultima espiral, denunciando assimo motor da virtualiza~ao, problematiza 0 esfor~o incansavel, asvezes fecundo e sempre fadado ao fracasso, que empreendemospara escapar a morte.

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6. AS OPERAc;:OES DA VIRTUALIZAc;:AoOU () TRIVIO ANTROPOLOGICO

Ha urn nucleo invariante das opera~6es de virtualiza~iio, umareceita do virtual? Arriscaremos uma resposta positiva a essa ques-tiio, mas apenas parcial e bastante geral. Ela niio dispensa, em cadacaso particular, nem uma descoberta audaciosa, nem uma cons-tru~iio coletiva longa e trabalhosa. A teoria que vamos apresen-tar, portanto, se permite reconhecer urn caso de virtualiza~iio aposteriori, analisa-lo e apresenta-lo claramente, infelizmente niioe urn guia de inven~iio infalfvel.

Comecemos examinando 0 caso da lingua gem. Para isto va-mos seguir 0 curso do trIvio. A trip lice via, ou trivio, constituia abase do ensino liberal na Antigiiidade e na Idade Media. Com-preendia a gramatica (saber ler e escrever corretamente), a diale-tica (saber raciocinar) e a ret6rica (saber compor discursos e con-veneer). Estabelecemos a hip6tese de que cada uma das tres "vias"envolve opera~6es quase sempre empregadas nos processos devirtualiza~iio.

Em primeiro lugar a gramatica. A partir do continuum dossons, uma lfngua isola ou separa fonemas, especies de elementosprimarios niio significantes. As unidades significantes (palavras,frases ou "falas") apresentam-se a analise como seqiiencias de ele-mentos desprovidos de sentido neles mesmos (os fonemas). Cadacombina~iio de elementos tera urn sentido diferente e os elemen-tos adquirem urn valor distinto em cada combina~iio. A gramati-

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ca e a arte de compor pequenas unidades significantes com ele-mentos nao significantcs c grandes unidades significantes (frases,discursos) com pequcnas. Notemos que as opera<;:oes "gramati-cais" de separa<;:ao e de arranjo de elementos nao dizem respeitoapenas a lingua mas tal11bem a escrita, inclusive as escritas naoalfabeticas.

Depois da gramatica, a dialetica. Inicialmente arte do dia-logo, a dialetica passou a designar a ciencia da argumenta<;:ao e,na universidade medieval, a logica e a semantica. A gramatica diziarespeito a articula<;:ao intema da lingua, a manipula<;:ao das fer-ramentas lingufsticas e escriturais. A dialetica, em troca, estabe-lece uma rela<;:ao de reciprocidade entre interlocutores, pois naoha esfor<;:o argumentativo que nao subentenda uma especie deparidade intelectual. Com isso, a dialetica conecta urn sistema designos e urn mundo objetivo, colocado pel~s interlocutores emposi<;:ao de mediador. Serao as proposi<;:oes verdadeiras ou falsas,e por que? De que maneira elas correspondem a urn estado domundo? A dialetica implica ao mesmo tempo 0 relacionamentocom 0 outro (a argumenta<;:ao) e a rela<;:ao com 0 "exterior" (asemantica, a referencia). Nao ha lingua sem essas opera<;:oes deestabelecimento de correspondencia, ou de substitui<;:ao conven-cional entre uma ordem dos signos e uma ordem das coisas.

Enfim, a retorica designa a arte de agir sobre os outros e 0

mundo com 0 auxflio dos signos. No estagio retorico ou pragma-tico, nao se trata mais apenas de representar 0 estado das coisas,mas igualmente de transforma-lo, e mesmo de criar inteiramenteuma realidade safda da linguagem; ou seja, em termos rigorosos,urn mundo virtual: 0 da arte, da fic<;:ao,da cultura, do universomental humano. Esse mundo gerado pela linguagem servira even-tualmente de referencia a opera<;:oes dialeticas ou sera reempregadopor outros projetos de cria<;:ao. A linguagem so al<;:avao no esta-gio retorico. Entao ela se alimenta de sua propria atividade, im-poe suas finalidades e reinventa 0 mundo.

Minha hipotese e que as opera<;:oes gramaticais, dialeticas eretoricas, chaves da capacidade virtualizante da linguagem, carac-terizam igualmente a tecnica e a complexidade dos relacionamen-tos. Longe de mim a ideia de "reduzir tudo a linguagem"! Aocontrario, trata-se de par em evidencia, por tras da eficacia dasllnguas, uma estrutura abstrata, neutra, que caracteriza igualmenteoutros tipos de atividades humanas capazes de nos fazer escaparao aqui e agora.

Para a tecnica, a gramatica consiste no recorte de gestos ele-mentares que poderao ser empregados em diversas seqiiencias, oua<;:oesem situa<;:ao. Que se pense na maneira como aprendemos aginastica, a dan<;:a, 0 tenis, a esgrima, as artes marciais e numero-sas habilidades profissionais. Poder-se-ia afirmar, com base nostrabalhos de Michel Foucault, que esse recorte em gestos elemen-tares e urn fenameno recente, aparecido na Europa na era classi-ca, e que tern a ver com uma abordagem disciplinar do corpo. Cer-tamente. Mas, por urn lado, nao e sem importancia que possamosrecortar assim nossos atos ffsicos e que isto nos confira em geralurn acrescimo de eficacia, pelo menos na aprendizagem de mas-sa. Por outro lado, 0 fato de tal recorte se tomar explicito (parasi) em determinada cultura nao significa que nao esteja atuandoimplicitamente (em si) nas outras. 0 caso das linguas nos mostraisso de maneira evidente. Nao hi gramatica como disciplina cons-titufda antes da escrita, e a quase totalidade dos seres humanosaprende a falar sem ter a menor no<;:aodisso. 0 que nao impedeas palavras de serem realmente combina<;:oes de fenamenos, nemimpede que cada lingua seja (entre outras coisas) uma especie desistema combinatorio que obedece a regras especiais de constitui-<;:aode seqiiencias sonoras.

A gramatica tecnica nao diz respeito apenas aos gestos, mastambem a modulos materiais elementares que podem ser combi-nados para compor gamas de artefatos ou de ferramentas. A tf-tulo de exemplo, 0 mesmo cabo pode servir a montagem de uma

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pa au de uma picareta, e tijolos identicos podem ser usados naconstru~ao de casas muito diversas.

Se nao e muito dificil admitir uma especie de gramatica tec-nica, ja uma dialetica das coisas parece problematica. A lingua-gem refere-se ao mundo real, permite produzir proposi~6es ver-dadeiras au falsas, suscita emo~6es au ideias. Em suma, ela sig-nifica. Em troca, a tccnica parece pertencer a uma outra ardemque nao a da significa~ao: a da a~ao eficaz, da operacionalidade.A linguagem provoca estados mentais, a ferramenta desloca ma-teria. Como poderia haver uma dialetica dos instrumentos? E, naoobstante, tambem a tecnica faz sentido.

No centro da significa~ao acha-se a opera~ao de substitui-~ao. Se a palavra "arvare" significa, e sobretudo porque, em cer-tas circunstancias e para usos determinados, ela faz as vezes da

, arvore real. Ora, e quase do mesmo modo, urn dispositivo tecni-co vale por urn outro dispositivo, nao tecnico au de uma tecni-cidade menos complexa. Par exemplo, a sistema moderno de aguacorrente em todos as andares substitui a balde que vai a fonte. Afonte instalada na pra~a, par sua vez, substitui a caminhada atea nascente au a ria. As torneiras da cozinha e do banheiro "de-notam" a "significa~ao" seguinte: voce nao precis a mais trazer aagua do po~o au alugar as servi~os de urn carregador. Outro exem-plo: a bicicleta so e urn objeto tecnico porque substitui uma ca-minhada sem equipamento mecanico au urn cavalo demasiadooneroso. Via de regra, 0 sentido de urn artefato ou de uma ferra-menta e a dispositivo que serfamos obrigados a empregar paraobter a mesmo resultado se ele nao tivesse sido inventado. 0 objetotecnico nao apenas cumpre, como a signo, uma fun~ao de substi-tuir,;ao, como tambem opera, alem disso, 0 mesmo tip a de abstra-r,;ao.A palavra "arvore" nao remete apenas a esta figueira em meujardim, a esta betula na floresta, mas a qualquer arvore particu-lar e, mais ainda, ao conceito geral de arvore. Do mesmo modo,uma bicicleta nao substitui especialmente estas pernas em via deandar au este cavalo na estrebaria. Vale par uma fUlll;ao geral detransporte, uma fun~ao abstrata, desligada a priori deste au da-

quele "referente" particular, remetendo portanto a uma quanti-dade indeterminada de situa~6es au de dispositivos concretos dedeslocamento.

Finalmente, a tecnica possui - ela tambem - sua retorica,no sentido em que seu movimento nao se limita em acumularartefatos au ferramentas "praticas" e "uteis", que fazem ganhartempo e energia. A inven~ao tecnica abre possibilidades radical-mente novas cujo desenvolvimento acaba par fazer crescer urnmundo autanomo, cria~ao proliferante que nao po de mais serexplicada par nenhum criteria estatico de utilidade. De fato, senao fassemos alem da dialetica tecnica, poderfamos ainda confi-nar as ferramentas no reino dos meios. Os fins de beber au de ira aldeia vizinha permanecendo inalterados, as tecnicas de adu~aode agua au do velocipede servem para atingi-Ios mais depressa ecom menor custo. Mas a produ~ao de artefatos atinge a estagioretorico quando ela participa da cria~ao de novas fins. Par exem-pia, as calculadoras eletranicas aperfei~adas nos anos quarentapermitiram efetuar opera~6es aritmeticas mil vezes mais rapida-mente que as calculadoras eletromecanicas e analogicas anterio-res. Mas seus inventores nao se contentaram em fazer as novasmaquinas efetuar mais depressa as mesmas opera~6es que as a~-tigas. Exploraram essa velocidade acrescida para modificar radi-calmente a concep<;:aodas maquinas de calcular. Em vez de cons-truir instrumentos especializados na computa~ao deste au daquelegenera de opera~ao, conceberam calculadoras universais, pro-gramaveis, capazes de executar qualquer tip a de tratamento deinforma<;:ao. Isto so foi posslvel gra~as a velocidade adquirida pelaeletranica, que permitiu otimizar a disposi~ao material dos circui- .tos em fun~ao das opera~6es requeridas. Foi assim que nasceu ainformatica e que 0 universo do software se pas a proliferar. .

Uma visao estreita da informatica, limitada a dialetica, areduz a urn conjunto de ferramentas para calcular, escrever, con-ceber e comunicar mais depressa e melhor. A plena abordagemretorica descobre nela urn espa~o de produ~ao e de circula~ao qossignos qualitativamente diferente dos anteriores, no qual as regras

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de eficicia e os critl'rios de avalia<;:ao da utilidade mudaram. Nossaespecie lan<;:ou-se senl retorno nesse novo espa<;:o informacional.A questao portanto n:lo l"avaliar sua "utilidade" mas determinarem que dire<;:ao prossl'guir llm processo de cria<;:ao cultural ir-reverslvel. Poder-se-ia di/Tr 0 mesmo do conjunto dos meios detransporte, que lIl11ito Inais metamorfosearam a geografia e dis-solveram as ,lilt ig:ls distin<,:()es entre cidade e campo do que ace-leraram os vl'il'ldos a cavalo e os barcos a vela. 0 automovel ecertamcnte lJlll 11Il'iode transporte, porem mais ainda e 0 princi-pal operador urhanistico contemporaneo.

A Illedida que se desenvolve 0 tecnocosmo, seus elementosse fundelll no lTn:irio, se naturalizam, entram na dialetica dos finsrecebidos e dos Illeios que se aperfei<;:oam. Mas em sua fronteiraavan<,:ada, na interface m(lvel da cria<;:ao e do desconhecido, aatividade tecnica ahre lll11ndos virtuais nos quais se elaboram no-vos fins.

processo virtualizante da Hngua que do is sons distintos exem-plificam 0 mesmo fonema. 0 mesmo vale para classes de senti-mentos ou de atos sociais, todos diferentes num plano psicologi-co estrito, mas que nao obstante servem de instancia para 0 mes-mo atomo de relacionamento no jogo de constru<;:ao da comple-xidade social. A partir dos elementos de base vao ser elaboradasuma quantidade infinita de sequencias de intera<;:oes, uma espe-cie de texto ou de hipertexto relacional.

Ja abordamos mais acima a dimensao dialetica da etica, to-mada aqui no sentido geral de complexidade relacional e com-portamental. Urn contrato substitui uma rela<;:ao de for<;:aou umadiscussao permanente; urn ritual economiza a negocia<;:ao de urndesejo ou de uma identidade. Como no caso da linguagem e datecnica, uma cadeia de atos pode remeter a outras constru<;:oeseticas, e isto recursivamente ate formar urn amontoado de signi-fica<;:oes simultaneas, como uma dimensao harmonica do vIncu-lo social. Uma opera<;:ao simbolica substitui urn sacriffcio animal;urn sacriffcio animal vale por urn sacriffcio humano; urn sacrifl-cio humano economiza uma guerra civil.

No estagio retorico, deve-se finalmente constatar 0 cresci-mento de urn universo relacional autonomo nos pIanos legal, ins-titucional, poHtico, comercial, moral e religioso. De novo, a ques-tao da utilidade, da fun<;:aoou da referencia da lugar ao poder defazer sentido, ou melhor, de fazer mudar 0 sentido, de criar uni-versos de significa<;:ao radicalmente novos: inven<;:oes do mono-tefsmo, do direito romano, da democracia, da economia capitalista ...

Enfim, a complexidade dos relacionamentos tern aver igual-mente com urn trlvio antropologico generalizado. Na etapa gra-matical, foi preciso identificar e separar elementos capazes deentrar em composi<;:ao nos arranjos contratuais, legais, sociais, po-Hticos, morais ou religiosos. Esses elementos recombinaveis, no-temo-Io, sao tao convencionais e nao-significantes quanto os fo-nemas: sentimentos, paixoes, atomos de relacionamentos, de ges-tos, partes da alma, sujeitos, pessoas, eis al outros tantos tijolosde base para os comportamentos, os relacionamentos e as identi-dades sociais.

E preciso que haja elementos invariaveis como a salva<;:ao,a colera, a of ens a, a promessa ou a homenagem, reconhecfveisnuma variedade infinita de circunstancias, para que a vida cole-tiva possa se estabilizar e se complexificar. De urn ponto de vistaestritamente ffsico, todos os sons sao diferentes. E somente no

Por que os tres estagios do trIvio formam urn caminho devirtualiza<;:ao? Retomemos as tres etapas uma por uma.

As opera<;:oes de gramatiza<;:ao recortam urn continuum for-temente ligado a presen<;:as aqui e agora, a corpos, a rela<;:oes ousitua<;:oes particulares, para obter afinal elementos convencionais

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ou padrao. Esses ,1tollloS silo destacaveis, transferfveis, indepen-dentes de contextos vivos . .fa formam 0 grau mfnimo do virtualna medida em que cada UIll pode ser atualizado numa variedadeindefinida de ocorrellcias, todas qualitativamente diferentes, masno entanto rccollheclveis como exemplares do mesmo elementovirtual. Portal1fo Ilao se trata de atom os reais ou substanciais. Esseponto cleve Sl'l' suhlillhado, pois ell' faz toda a diferen<;:a entre aanalise a l1loda ca rtesiana, que separa partes reais, e a grama-tiza<;:ilo que cria particulas virtuais. Sua propriedade de nao-sig-nificancia autoriza 0 reemprego de urn conjunto limitado de tijo-los de base, livres e destacaveis, para construir uma quantidadeinfinita de scqi-iencias, de cadeias ou de compostos significantes.A significa<;:ao de urn composto nao pode ser deduzida a priori dalista de seus elementos: trata-se de uma atualiza<;:ao criadora emcontexto.

o destino da escrita ilustra particularmente bem a grama-tiza<;:ao; 0 que a etimologia confirma: gramma, em grego antigo,e a letra. A fala e antes de mais nada indissociavel de urn sopro,de uma presen<;:a viva aqui e agora. A escrita (a gramatiza<;:ao dafala) separa a mensagem de urn corpo vivo e de uma situa<;:aoparticular. A impressao leva adiante esse processo ao padronizara grafia, separando 0 texto lido do tra<;:o direto de uma perfor-mance muscular. 0 aspecto virtualizante da impressao e 0 ca-ractere m6vel. Reencontraremos em quase todos os processos devirtualiza<;:ao 0 equivalente de urn "caractere movel", liberado,descolado das situa<;:6es concretas, reprodutfvel e circulante.

A informatiza<;:ao acelera 0 movimento iniciado pela escritaao reduzir todas as mensagens a combina<;:6es de do is sfmboloselementares, zero e urn. Esses caracteres sao os menos significantespossfveis, identicos em todos os suportes de memoria. Seja qualfor a natureza da mensagem, ell's comp6em sequencias tradutfveisem e por qualquer computador. A informaica e a mais virtualizantedas tecnicas por ser tambem a mais gramaticalizante. Sabe-se quea Ifngua se caracteriza por uma dupla articula<;:ao, a que junta osfonemas e as unidades significantes (as palavras) e a que junta as

palavras entre si para produzir frases. No que concerne a infor-matica, poder-se-ia falar de uma articula<;:ao de n termos: codi-gos eletronicos de base, linguagens-maquinas, linguagens de pro-grama<;:ao, linguagens de alto nfvel, interfaces e opera do res detradu<;:6es multiplas para finalmente chegar a escrita classic a, alingua gem, a todas as formas visuais e sonoras, a novos sistemasde signos interativos.

A rela<;:ao entre os fenomenos contemporaneos de dester-ritorializa<;:ao e de mundializa<;:ao, de urn lado, e a padroniza<;:ao(a virtualiza<;:ao) de elementos de base recombinaveis, de outro, eevidente. A padroniza<;:ao permite a compatibilidade entre siste-mas de informa<;:ao, sistemas economicos, sistemas de transportedistintos. Ela autoriza deste modo a constitui<;:ao de espa<;:oseco-nomicos, informacionais ou ffsicos abertos, de circula<;:ao livre,cujas figuras salientes (carras, avi6es, computadores) cobrem naverdade uma superffcie coordenada, flutuante e contfnua de com-ponentes articulaveis. Assim como as computadores acabaram parse fundir no crescimento do ciberespa<;:o, tambem as avi6es naosao mais que as modulos aparentes de urn sistema internacionalintegrado de transporte aereo cujo nucleo e a coordena<;:ao entreas aeroportos.

Apos os signos e a tecnica, vejamos agora alguns exemplosno domfnio das formas sociais. De que modo a gramatiza<;:ao fazsurgir novos tip as de contratos e de comportamentos? A obra deSteven Shapin e Simon Schaffer, Leviathan and the Air Pump[Leviara e a bomba de ar], reconstitui a nascimento da comuni-dade cientffica moderna no seculo XVIII atraves da polemica entreHobbes e Boyle. Boyle quer definir as regras que devem reger 0

coletivo dos "experimentalistas", e em particular a estrita sepa-ra<;:ao entre, de urn lado, fatos que reunam a consenso, repro-dutfveis em laboratorio e constataveis por testelllunhas dignas defe e, de outro, hip6teses, teorias au explica<;:6es causais, sabre asquais a concordancia da comunidade cientffica nao e necessaria.Hobbes, em contrapartida, se recusa a admitir essa separa<;:ao dosfatos e das explica<;:6es causais. Se 0 nucleo da atividade "filoso-

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fica" nao for a explica<,:Jo pelas causas, ele nao ve a utilidade dis-so. Alem do mais, slIhlinha que na realidade e impossivel separara constata<;:ao dos btos t' a formula<;:ao das hip6teses ou interpre-ta<;:oesque orienta III e formam 0 olhar. Hobbes esta portanto emcondi<;:oesfavor(]vcis para desmontar os "fatos" obtidos por Boyle,mostrando sell ca r;iter cOllvencional e construido. Num certo sen-tido, Hobbbes tTIll raZJo: a separa<;:ao dos fatos "sem significa-<;:ao"e das ex plic;llJlL's e artificial. Mas sera 0 problema essencialde Boyle e dos cxperilllentalistas 0 de ter razao, ou seja, 0 de ater-se ao real? 0 problema dell's nao seria antes montar urn disposi-tivo capaz de isolar do silber uma parte virtual, m6vel, repro-dutivel, illdependelltt' das pessoas, ainda que seja apenas no seioda rede restrita dos laborat<>rios providos dos meios de refazer asexperiencias? Aqui, 0 caracter m6vel, destacavel, nao-significan-te e circulante, e 0 fato. 0 esfor<;:o para instituir a ciencia comomaquina virtualizante foi provavelmente mais fecundo que a von-tade de ater-se ao real ou de dizer a verdade.

Urn exemplo privilegiado ilustrara, para terminar, a poten-cia virtualizante da gramatiza<;:ao. Evocarei agora nao mais a vir-tualiza<;:ao do conhecimento pela comunidade cientifica, mas a doreconhecimento dos saberes e das competencias pela sociedade emseu conjunto. Num sentido profundo, as competencias dos indi-viduos sao unicas, ligadas a seu trajeto de vida singular, inse-paraveis de urn corpo sensivel e de urn mundo de significa<;:oespessoais. Isto e e continuara sendo verdade. Todavia, para as ne-cessidades da vida economica e social, mas igualmente para asatisfa<;:ao simb6lica dos individuos, essas competencias devem seridentificadas e reconhecidas de maneira convencional. A necessi-dade de reconhecimento e de identifica<;:ao e tanto mais premen-te na medida em que, como sublinhamos num capitulo anterior,competencias e conhecimentos sao hoje a fonte da maior parte deriqueza. Ora, 0 modo classico de reconhecimento dos saberes -o diploma - e ao mesmo tempo:

- deficiente: nem todos tern diploma, em bora cada urn sai-ba alguma coisa;

_ terrivelmente grosseiro: as pessoas que tern 0 IllL'Sl110di-ploma nao tern as mesmas competencias, sobretudo por causa de

suas experiencias diversas; ._ e, finalmente, nao padronizado: os diplomas estao vin-

culados a universidades ou, no maximo, a Estados, e nao ha sis-tema geral de equivalencia entre diplomas de paises diferentes.

o c6digo oficial de reconhecimento dos saberes nao of ere-ce dupla articula<;:ao, nem, alias, qualquer outra forma de articu-la<;:ao.Os diplomas nao sao compostos de elementos mais simplese reempregaveis numa outra seqiiencia de elementos qualquer. Saoagregados molares indecomponiveis. Varios diplomas nao formamuma unidade significante de nivel superior, mas apenas uma jus-

taposi<;:ao bruta.Face a essa situa<;:ao, 0 sistema das arvores de conhecimen-

tos foi imaginado e desenvolvido para virtualizar a rela<;:ao comos saberes e as competencias (Authier, Levy, 1992). Assim, elepermite aos grupos e aos individuos identificar-se e orientar-sefinamente num universo de conhecimentos em fluxo.

As arvores de conhecimentos propoem uma verdadeira gra-matiza<;:ao do reconhecimento dos saberes. As particulas elemen-tares de reconhecimentos, ou breves, nao tern significa<;:ao com-pleta nelas mesmas, mas somente em brasoes, que sao seqiienciasde breves (curricula) obtidos por urn individuo e projetados so-bre a arvore de conhecimentos de uma comunidade. Urn conjun-to de breves pode servir para compor uma quantidade infinita decaminhos de aprendizagem diferentes. 0 mesmo curriculum in-dividual adquire uma significa<;:ao e urn valor diferentes na ar-yore de uma ou de outra comunidade.

Obtem-se claramente urn sistema de dupla articula<;:ao. Pri-meiramente, entre os breves e os curricula individuais (como en-tre os fonemas e as palavras). Segundo, entre os curricula e asarvores: uma arvore emerge dos percursos de aprendizagem dosmembros de uma comunidade e os estrutura em troca na formade brasoes (como entre as palavras e as frases: a frase e feita depalavras com valor semantico indeterminado e atualiza Cill I roca

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o sentido das palavras que a compoem). A priori, qualquer breve- com maior ou mellor sucesso - pode se integrar em qualquercurriculum, e qualquer curriculum - com fortunas diversas _pode se introduzir em qualquer arvore. 0 breve e 0 caracter mo-vel da identificac;ao dos S,lheres. Esse funcionamento gramaticalem dupla articula<,:ao e a mndi<,:ao de possibilidade de uma pa-dronizac;ao, de uma desterritorializa<,;ao, de uma virtualiza<,;ao dosaber reconhecido. Especil' de fonema da identifica<,;ao das com-petencias, 0 breve represellta uma particula virtual de competen-cia. E inteiramcllte necess;lrio, portanto, que ele seja estereotipa-do, indepcndellte das pessoas, dos lugares ou dos estudos. Poroutro lado, um hras.lo lluma .'irvore exprime os saberes de urnindivlduo nUIll cOlltexto dado; ell' oferece uma imagem - sem-pre singular - da atualizar;ao das competencias de uma pessoaem situac;ao.

Essa abordagem e racional e pratica. Permite resolver nume-rosos problemas que sao ao mesmo tempo prementes e concretos.No entanto, ela "cheira a enxofre" pela razao mesma que faz dissouma inven<,;ao: 0 reconhecimento das competencias e inteiramentedesconectado de qualquer hipotese particular sobre a ordem dossaberes. Sao os caminhos de aprendizagem dos coletivos, semprediferentes, que fazem emergir classifica<,;oes de conhecimentosvariadas, visualizadas por arvores. Alguma coisa foi liberada.

l'lltra em novas combina<,;oes, e arrebatada num processo de he-tcrogenese. E a mesma capacidade de interpretar ou inventar sen-tidos que se pratica na linguagem e na tecnica, na bricolagem ena leitura.

Assim como ha uma dialetica dos signos e uma dialetica dascoisas, a dialetica das pessoas, por sua vez, nos obriga mutuamentea integrar 0 ponto de vista do outro, a significarmo-nos recipro-camente nas negocia<,;oes, nos contratos, nas conven<,;oes, nos tra-tados, nos acordos, nas regras da vida publica em geral. Ao co-locarmo-nos (virtualmente) no lugar do outro, entregamo-nos aojogo dialetico da substitui<,;ao.

Caberia falar da dialetiza<,;ao como de uma operac;iio ativa.Dialetizar, como vimos, e organizar uma correspondencia: trocaredproca de argumentos entre sujeitos, mas tambem rela<,;iioen-tre entidades que se poem de subito a significar-se mutuamente.Ao contrario de uma grande divisiio entre os signos e as coisas, adialetica virtualizante estabelece rela<,;oes de significac;iio, de as-sociac;iio ou de remissiio entre uma entidade e uma outra qualquer.T oda coisa pode passar a significar; simetricamente, cada signodepende de uma inscri<,;iio flsica, de urn material de expressiio.Arrastados nesse processo dialetico, os seres se desdobram: poruma parte, permanecem eles mesmos, por outra, siio vetores deurn outro. Com isso, ja nao siio mais eles mesmos, embora suaidentidade seja precisamente 0 fundamento de sua capacidade designificar. 0 si e 0 outro formam urn loop, 0 interior e 0 exteriorpass am continuamente a seu oposto, como num anel de Moebius.

A opera<,;iio dialetica funda 0 virtual porque abre, sempre deuma forma diferente, urn segundo mundo. 0 mundo publico oureligioso surge do proprio seio da intera<,;iio dos sujeitos privadosque 0 social por sua vez produz. 0 tecnocosmo cresce como umacomplexifica<,;iio fractal da natureza. 0 mundo das ideias, enfim,imagem das imagens, lugar dos arquetipos, modela a experiencianuma face e reflete a realidade na outra.

o segundo mundo de que falamos nao preexiste a opera<,;iiodialetica, niio e, justamente, "real" e estatico. Ele nasce e renasce

Urn homem pre-historico ve urn galho. Reconhece-o pelo quee. Mas a historia niio termina ai, po is 0 homem, ao dialetizar, veuma imagem duplicada. Ele envesga os olhos sobre 0 galho e 0

imagina como bastiio. 0 galho significa 0 bastiio. 0 galho e urnbastiio virtual. Substituic;iio. Toda a tecnica esta fundada nessacapacidade de tor<,;iio, de desdobramento ou de heterogenese doreal. Uma entidade real, imersa em sua identidade e sua fun<,;ao,desprende subitamente uma outra fun<,;iio,uma outra identidade,

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sem cessar, semprc no esrado nascente - e sempre como urn outroainda urn outro mundo - de urn processo infinito de desdobra~mento, de remissao e de correspondencia.

As opera<;oes gramaricais multiplicam as graus de liberda-de. No terreno flexihilizado pela gramatica, a dialerica impele ascadeias de desvios e os processos rizomaticos do sentido abrin-do assim 0 caminho aos mundos virtuais que a retorica habita efaz crescer com roda a autonomia.

Gram,irica, dialetica e retorica sucedem-se apenas numa or-dem logica de exposi<;ao. Nos processos concretos de virtualiza<;ao,sao sil11ultaneas, ou mesmo puxadas pela retorica. A gramaticasepara elementos e organiza seqiiencias. A diaIetica faz funcionarsubstitui<;oes e correspondencias. A retorica separa seus objetosde toda combinatoria, de toda referencia, para desdobrar 0 vir-tual como urn mundo autonomo. A retorica geral que invocamosaqui reune as opera<;oes de cria<;ao do mundo humano, tanto naordem da lingua gem quanto na ordem tecnica ou relacional: in-ven<;ao, composi<;ao, estilo, memoria, a<;ao. Jorro ontologico bru-to, a cria<;ao situa-se alem da utilidade, da significa<;ao ou da ver-dade. Mas 0 movimento mesmo que carrega essa positividadeescava os atratores e caminhos que the cedem a passagem. 0 atoretorico, que diz respeito a essencia do virtual, coloca questoes,dis~oe tensoes e propoe finalidades; ele as poe em cena, as poeem Jogo no processo vital. A inven<;ao suprema e a de urn proble-ma, a abertura de urn vazio no meio do real.

7. A VIRTUALIZA<;:Ao DA INTELIGENCIAE A CONSTITUI<;:Ao DO SUJEITO

Apos ter examinado, no capitulo precedente, as operac;i5esda virtualiza<;ao, evocarei, no capitulo seguinte, seu objeto, aumelhor, a surgimento do objeto como conclusao da virtualiza<;ao.Mas, a fim de chegar ate 0 objeto por uma progressao logica, le-varei 0 lei tor a uma explora<;ao previa da virtualiza<;ao da inteli-gencia. Tres temas serao entrela<;ados neste capitulo e no seguin-te: a parte coletiva da cogni<;ao e da afetividade pessoal, a ques-tao do "coletivo pensante" en quanta tal, e a inteligencia coletivacomo utopia tecnopolltica. A trama da questao do objeto e a dainteligencia coletiva so podera se justificar no curso da discussaoa segmr.

Nos, seres humanos, jamais pensamos sozinhos au sem fer-ramentas. As institui<;oes, as llnguas, as sistemas de signos, astecnicas de comunica<;ao, de representa<;ao e de registro informamprofundamente nossas atividades cognitivas: toda uma socieda-de cosmopolita pensa dentro de nos. Par esse motivo, nao obstantea permanencia das estruturas neuronais de base, 0 pensamento eprofundamente historico, data do e situado, nao apenas em seuproposito mas tambem em seus procedimentos e modos de a<;ao.

Se a coletivo pensa dentro de nos, pode-se afirmar que exis-te urn pensamento atual, efetivo, dos coletivos humanos? Pode-se falar de uma inteligencia sem consciencia unificada ou de urnpensamento sem subjetividade? Ate que ponto e preciso redefiniras no<;oes de pensamento e de psiquismo para que se tornem con-gruentes com as sociedades? Tornamo-nos, dizem, os neuroniosde urn hipercortex planetaria, portanto e urgente esclarecer essesproblemas e marcar as diferen<;as entre especies de inteligencia co-

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letiva, em particular as que separam as sociedades human as dosformigueiros e das colmeias.

o desenvolvimento da comunica<;ao assistida por computa-dor e das redes digitais planetarias aparece como a realiza<;ao deurn projeto mais ou menos bem formulado, 0 da constitui<;aodeliberada de novas formas de inteligencia coletiva, mais flexiveis,mais democraticas, fundadas sobre a reciprocidade e 0 respeitodas singularidades. Neste sentido, poder-se-ia definir a inteligen-cia coletiva como uma inteligencia distribuida em toda parte, con-tinuamente valorizada e sinergizada em tempo real. Esse novo idealpoderia substituir a inteligencia artificial como mito mobilizadordo desenvolvimento das tecnologias digitais ... e ocasionar, alemdisso, uma reorienta<;ao das ciencias cognitivas, da filosofia doespirito e da antropologia para as questoes da ecologia ou da eco-nomia da inteligencia.

Ao explorar esses problemas, farei trabalhar os conceitos devirtual e de atual obtidos nos capitulos precedentes, bem como ateoria da antropogenese por virtualiza<;ao. Tornaremos a encon-trar especialmente as opera<;6es de eleva<;ao a problematica, dedesterritorializa<;ao, de coloca<;ao em com urn, de constitui<;ao re-cfproca da interioridade e da exterioridade que foram associadasa virtualiza<;ao desde 0 infcio deste livro.

Ap6s ter evocado 0 papel capital das linguagens, das tecni-cas e das institui<;6es na constitui<;ao do psiquismo individual, ireiexpor brevemente os temas centrais da ecologia ou da economiacognitiva. Num segundo momenta, tentarei formular uma defi-ni<;ao do psiquismo compatfvel com a ideia de pensamento cole-tivo. Isto me levara a examinar as concep<;6es darwinianas dainteligencia, e depois a completar essas no<;6es por uma aborda-gem afetiva, que de conta da dimensao de interioridade do espi-rito. Num terceiro momento, descreverei as novas formas de inte-ligencia coletiva possibilitadas pelas redes digitais interativas e asperspectivas que elas abrem para uma evolu<;ao social positiva.A analise do funcionamento do ciberespa<;o tera servido para pre-parar a ultima parte, consagrada a analise do operador "objeto"

na constitui<;ao dos coletivos inteligentes, do mercado l'apll" 1t~1,1

ao enigma da hominiza<;ao. Veremos finalmente que 0 ohj{'lo,

chave da inteligencia coletiva, suporte por excelencia da virtu"lidade, opoe-se a coisa "real" como a seu duplo tenaz e perverso.

A INTELIGENCIA COLETIVA NA INTELIGENCIA PESSOAL:

LINGUA GENS, TECNICAS, INSTITUI<;:0ES

Chamo "inteligencia" 0 conjunto canonico das aptidoes cog-nitivas, a saber, as capacidades de perceber, de lembrar, de apren-der, de imaginar e de raciocinar. Na medida em que possuem es-sas aptidoes, os individuos humanos sao todos inteligentes. Noentanto, 0 exercfcio de suas capacidades cognitivas implica umaparte coletiva ou social geralmente subestimada.

Antes de mais nada, jamais pensamos sozinhos, mas semprena corrente de urn dialogo ou de urn multidialogo, real ou imagi-nado. Nao exercemos nossas faculdades mentais superiores senaoem fun<;ao de uma implica<;ao em comunidades vivas com suasheran<;as, seus conflitos e seus projetos. Em plano de fundo ou emprimeiro plano, essas comunidades estao sempre presentes nomenor de nossos pensamentos, quer elas forne<;am interlocutores,instrumentos intelectuais ou objetos de reflexao. Conhecimentos,val ores e ferramentas transmitidos pela cultura constituem 0 con-texto nutritivo, 0 caldo intelectual e moral a partir do qual ospensamentos individuais se desenvolvem, tecem suas pequenasvaria<;oes e produzem as vezes inova<;oes importantes.

Iremos nos deter especialmente sobre os instrumentos, emprimeiro lugar. E impossivel exercermos nossa inteligencia inde-pendentemente das lfnguas, linguagens e sistemas de signos (no-ta<;oes cientfficas, c6digos visuais, modos musicais, simbolismos)que herdamos atraves da cultura e que milhares ou miJh()es deoutras pessoas utilizam conosco. Essas linguagens arrastam con-sigo maneiras de recortar, de categorizar e de perceber 0 mundo,contem metaforas que constituem outros tantos filtros daquilo que

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e dado e pequenas l11aquinas de interpretar, carregam toda umaheran~a de julgal11cntos implkitos e de linhas de pensamento jatra~adas. As Hnguas, as linguagens e os sistemas de signos indu-zem nossos funcional11cntos intelectuais: as comunidades que osforjaram e fizeral11 cYoluir lentamente pens am dentro de nos. Nos-sa inteligencia possui uma dimensao coletiva consideravel porquesomos seres de Iinguagem.

Por Olltro Indo, as ferramentas e os artefatos que nos cercamincorporam a memoria longa da humanidade. Todas vez que osutilizamos, recorremos portanto a inteligencia coletiva. As casas,os carros, as televisoes e os computadores resumem linhas secu-lares de pesquisa, de inven~oes e de descobertas. Cristalizam igual-mente os tesouros de organiza~ao e de coopera~ao empregadospara produzi-Ios efetivamente.

Mas as ferramentas nao sao apenas memorias, sao tambemmaquinas de perceber que podem funcionar em tres nlveis dife-rentes: direto, indireto e metaforico. Diretamente, lentes, micros-c6pios, telescopios, raios-X, telefones, maquinas fotograficas, ca-meras, televisoes ete. estendem 0 alcance e transformam a natu-reza de nossas percep~oes. Indiretamente, os carros, os avioes ouas redes de computadores (por exemplo) modificam profundamen-te nossa rela~ao com 0 mundo, e em particular nossas rela~oes como espa~o e 0 tempo, de tal modo que se torna imposslvel decidirse eles transformam 0 mundo humano ou nossa maneira de per-cebe-Io. Enfim, os instrumentos e artefatos materiais nos of ere-cern muitos modelos concretos, socialmente compartilhados, apartir dos quais podemos apreender, por metafora,fenomenos ouproblemas mais abstratos. Assim, Aristoteles refletia sobre a cau-salidade a partir do exemplo do oleiro, as pessoas do seculo XVIIrepresentavam 0 corpo como uma especie de mecanismo, e nosconstrulmos hoje modelos computacionais da cogni~ao: Os arte-fatos fazem 0 imenso trabalho dos homens e sua inteligencia lon-ga participar de nossa percep~ao do mundo, aqui e agora.

o universo de coisas e de ferramentas que nos cerca e quecompartilhamos pensa dentro de nos de mil maneiras diferentes.

Deste modo, mais uma vez, participamos da inteligencia coletivaque as produziu.

Enfim, as institui~oes sociais, leis, regras e costumes queregem nossos relacionamentos influem de modo determinantesobre 0 curso de nossos pensamentos. Assim, conforme uma pes-soa seja pesquisador em flsica de altas energias, sacerdote, chefede urn servi~o publico ou operador financeiro, sera favorecida, emcada caso, uma ou outra qualidade intelectual em vez de umaterceira. A comunidade cientlfica, a Igreja, a burocracia de Esta-do ou a Boisa encarnam, cada uma, formas diferentes de inteli-gencia coletiva, com seus modos de percep~ao, de coordena~ao,de aprendizagem e de memoriza~ao distintos. Presidindo aos ti-pos de intera~ao entre indivlduos, as "regras do jogo" social mo-delam a inteligencia coletiva das comunidades humanas assimcomo as aptidoes cognitivas das pessoas que nelas participam.

Cada indivlduo humano possui urn cerebro particular, quese desenvolveu, a grosso modo, sobre 0 mesmo modelo que 0 dosoutros membros de sua especie. Pela biologia, nossas inteligenciassao individuais e semelhantes (embora nao identicas). Pel a cultura,em troca, nossa inteligencia e altamente variavel e coletiva. Comefeito, a dimensao social da inteligencia esta intimamente ligadaas linguagens, as tecnicas e as institui~oes, notoriamente diferen-tes conforme os lugares e as epocas.

Com as institui~oes e as "regras do jogo", passamos dasdimensoes coletivas da inteligencia individual a inteligencia docoletivo enquanto tal. E posslvel, com efeito, considerar os gru-pos humanos como "meios" ecol6gicos ou economicos nos quaisespecies de representa~oes ou de ideias aparecem e morrem, sepropagam ou regridem, competem entre si ou vivem em simbiose,conservam-se ou transformam-se. Nao falamos apenas das ideias,representa~oes, mensa gens ou proposi~oes individuais, mastam-

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bem de suas especies: generos literarios ou artisticos, modos deorganiza<,:ao dos conhecimentos, tipos de argumenta<,:6es ou de"logicas" em uso, estilos e suportes das mensagens. Urn coletivohumano e 0 pa ko de uma economia ou de uma ecologia cogniti-va no seio das quais evoluem especies de representa<,:6es (Sperber).

Formas sIH:iais, institui<,:6es e tecnicas modelam 0 ambientecognitivo dc lalllHldo que certos tipos de ideias ou de mensagenstern mais chal1l'l' dc se reproduzir que outros. Entre todos os fatoresque coagel11 a iUI-eligencia coletiva, as tecnologias intelectuais quesao os sistcmas de comunica<,:ao, de escrita, de registro e de tra-tamento cia informa<,:ao desempenham urn papel consideravel. Defato, certos tipos de representa<,:6es dificilmente podem sobrevi-ver ou mesmo aparecer em ambientes desprovidos de certas tecno-logias intelectuais, ao passo que prosperam em outras "ecologiascognitivas". Por exemplo, as listas de numeros, os catalogos, osconhecimentos organizados de modo sistematico nao podem serfacilmente transmitidos em culturas sem escrita. Em troca, as socie-dades orais favorecem a codifica<,:ao das representa<,:6es sob for-ma de narrativas, que podem ser retidas e transmitidas mais fa-cilmente na ausencia de urn suporte escrito. Para tomar um exem-plo mais contemporilneo, uma parte crescente de conhecimentosse exprime hoje por modelos digitais interativos e simula<,:6es, 0

que era evidentemente impensavel antes dos computadores cominterfaces graficas intuitivas. Os tipos de representa<,:6es que pre-valecem nesta ou naquela "economia cognitiva" favorecem mo-dos de conhecimento distintos (mito, teoria, simula<,:6es), com osestilos, os criterios de avalia<,:ao, os "valores" que lhes corres-pondem, de modo que as mudan<,:as de tecnologias intelectuais oude meios de comunica<,:ao podem indiretamente ter profundasrepercuss6es sobre a inteligencia coletiva.

As infraestruturas de comunica<,:ao e as tecnologias intelec-tuais sempre estabeleceram estreitas rela<,:6es com as formas deorganiza<,:ao economic as e polfticas. Recordemos a esse respeitoalguns exemplos bem conhecidos. 0 nascimento da escrita estaligado aos primeiros Estados burocraticos de hierarquia piramidal

e as primeiras formas de administra<,:ao economica centralizada(imposto, gestao de grandes dominios agricolas). 0 aparecimentodo alfabeto na Grecia antiga e contemporilneo da emergencia damoeda, da cidade antiga e sobretudo da inven<,:ao da democracia:ao difundir-se a pratica da leitura, todos podiam tomar conheci-mento das leis e discuti-las. A impressao tornou possivel uma largadifusao dos livros e a propria existencia dos jornais, fundamentoda opiniao publica. Sem ela, as democracias modernas nao teriamnascido. Por outro lado, as graficas representam a primeira indus-tria de massa, e 0 desenvolvimento tecnocientifico que elas favo-receram foi urn dos motores da revolu<,:ao industrial. As midiasaudiovisuais do seculo xx (radio, televisao, discos, filmes) parti-ciparam da emergencia de uma sociedade do espetaculo que sub-verteu as regras do jogo tanto na vida polftica quanta no merca-do (publicidade, economia da informa<,:ao e da comunica<,:ao).

Importa no entanto sublinhar que 0 aparecimento ou a exten-sao de tecnologias intelectuais nao determinam automatic amen-te este ou aquele modo de conhecimento ou de organiza<,:ao social.Distingamos portanto cuidadosamente as a<,:6esde causar ou dedeterminar, de urn lado, e as de condicionar ou tornar possivel,de outro. As tecnicas nao determinam, elas condicionam. Abremurn largo leque de novas possibilidades das quais somente urnpequeno numero e selecionado ou percebido pelos atores sociais.Se as tecnicas nao fossem elas mesmas condensa<,:6es da inteligenciacoletiva humana, poder-se-ia dizer que a tecnica prop6e e que oshomens disp6em.

A no<,:ao de inteligencia coletiva nao e uma simples metafo-ra, uma analogia mais ou menos esclarecedora, mas de fato urnconceito coerente. Vamos agora tentar construir tal conceito. Pre-cisamos encontrar uma defini<,:ao de urn "espirito" que seja intei-ramente compativel com urn sujeito coletivo, isto e, com uma

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inteligencia cujo slIit'ito st'ia ao mcsmo tempo multiplo, hetero-geneo, distribufdo, t:oopt'rntivo!t:ompetitivo e que estejaconstan-temente engajado 1H1Il1prot't'SSo auto-organizador ou autopoietico.o conjunto dessns t:Ol1dil,.Cll'Sl'limina automaticamente os mode-los calculatorios ou il1fol'111;lticosdo tipo "maquina de Turing",que nao tern a propl'il'dadt' de autocriac;:ao.

Em trot:n, os l1lodt'los il1spirados na biologia parecem me-lhores candidat"os, l'slwt.'iaIl1lel1tea abordagem "darwiniana". POI'definic;:ao, os prindpios "darwinianos" aplicam-se a populac;:6es.Eles fazem atuar 11111j.;l'rador de variabilidade ou de novidade:mutac;:oes genctit:as, uso de lima nova conexao neuronal, inven-c;:6es,criac;:uo de empresa ou de produtos etc. Acoplada a seu am-biente, a maquina darwiniana seleciona entre as novidades inje-tadas pelo gerador. Sua escolha e sobretudo limitada pela viabi-lidade e a capacidade de reproduc;:ao dos indivfduos ou das sub-populac;:6es providas do novo carater. Os sistemas darwinianosapresentam uma capacidade de aprendizagem nao dirigida ou (0que da no mesmo do ponto de vista de uma teoria do espfrito) deuma capacidade de autocriac;:ao contfnua. Pelo jogo dialetico dasmutac;:6es, das selec;:6es e da transmissao dos elementos seleciona-dos, as maquinas darwinianas arrastam consigo seus ambientesno caminho de uma historia irreversfvel. As maquinas darwinianasencarnam a seu modo a memoria des sa historia.

Os prindpios dos sistemas darwinianos aplicam-se ao mes-mo tempo a ecologia das especies vivas, entre os grupos huma-nos considerados como meios de desenvolvimento das represen-tac;:6es, a economia de mercado (populac;:6es de produtores, de con-sumidores de bens), ao psiquismo individual entendido como so-ciedade de pensamentos e de modulos cognitivos; aplicam-se aofuncionamento do cerebro, enfim, compreendido segundo os prin-dpios do darwinismo neuronal. Acrescentemos que os sistemascapazes de aprendizagem nao dirigida podem ser, junto com seusambientes, simulados por computador. Os algoritmos geneticose diversos sistemas de "vida artificial" permitem imaginal' que 0

software, simbioticamente ligado ao meio tecnologico e humano

do ciberespac;:o, poderia em breve representar 0 mais novo dossistemas darwinianos capazes de aprendizagem e de autocriac;:ao.

A maquina darwiniana e ainda mais inteligente se funciona"fractalmente", em varias escalas ou nfveis de criac;:ao encaixados.POI'exemplo, 0 mercado po de ser considerado como uma maquinadarwiniana, mas ele e mais "inteligente" se as empresas e os con-sumidores que 0 animam forem, pOl' sua vez, maquinas darwi-nianas (organizac;:6es que aprendem, associac;:6es de consumido-res). Urn cerebro e ao mesmo tempo 0 resultado de urn processodarwiniano na escala da evoluc;:ao biologic a e na escala da apren-dizagem individual. Ademais, ele integra varios tipos de "popu-lac;:6esque aprendem" de escalas diferentes: grupos de neur6nios,mapas extensos de zonas sensoriais, sistemas de regulac;:6es glo-bais ete. (Edelman, 1992).

Embora 0 fato de ser urn sistema darwiniano seja uma con-dic;:ao necessaria para ser urn espfrito, nao e, em nossa opiniao,uma condic;:ao suficiente. E na intencionalidade ou no fato de sereferir a entidades exteriores ao espfrito que estara 0 problema,como nos debates a favor ou contra a inteligencia dos computa-dores? Nao, pois as maquinas darwinianas de modo algum fun-cionam em circuitos fechados, sao pOl' definic;:ao acopladas a urnambiente. Sua natureza e traduzir 0 Dutro em si ou implicar emsua propria organizac;:ao a historia de suas relac;:6es com seu am-biente. Em compensac;:ao, nada, na definic;:ao geral das maquinasdarwinianas, imp liea necessariamente a experiencia subjetiva, adimensao de interioridade da sensac;:ao, isto e, em ultima analise,a afetividade. Convem distinguir com cui dado entre a afetividadee a consciencia. Urn espfrito pode ser inconsciente, como 0 espf-rito de certos animais, como uma parte consideravel do espfritohumano e, conforme veremos, como os "espfritos" que emergemde coletivos inteligentes. Quanto a afetividade, que pode ser con-

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fusa, inconsciente, m{dtipla, heterogenea, ela constitui - contra-riamente a consciencia - lima dimensao necessaria do psiquismoe talvez ate sua essenci:1. Sell1 afetividade, 0 sistema consideradoretorna a insensibilidade, :Iextcrioridade e a dispersao ontologicado simples mecaniSlllO. lJlll espirito deve ser afetivo, ele nao enecessariamentc cOlIscil'l1l"e.1\ consciencia e 0 produto da sele<;;ao,da lineariza<;ao e da 1ll:lllifest:ll;ao parcial de uma afetividade a qualela deve tudo.

Intcrcssa Illl'II0S a nosso prop<'>sito decidir 0 que tern e 0 quenao tem a vcr COlli 0 psillllisl1lo do que dar uma defini<;;ao dopsiquismo que possa se aplicar tanto a urn espirito humano indi-vidual qllantll a lima inteligcncia coletiva: urn conceito de espiri-to que seja inteiramente compativcl com urn sujeito coletivo.

Urn pSiqllislllo integral, portanto capaz de afeto, pode seranalisado segundo quatro dimcnsoes complementares: uma to-pologia, uma semiotica, uma axiologia e uma energetica. Ja evo-quei essas quatro dimensoes no capitulo sobre a virtualiza<;;ao daeconomia, desenvolvo-as agora mais extensamente.

1.Uma topologia. 0 psiquismo e estruturado a cada instantepar uma conectividade, sistemas de proximidades ou urn "espa-<;;0" especifico: associa<;;oes, liga<;;oes, caminhos, portas, comu-tadores, filtros, paisagens de atratores. A topologia do psiquismoesta em transforma<;;ao constante, certas zonas sendo mais moveise outras mais fixas, algumas mais densas e outras mais frouxas.

2: Uma semiotica. Hordas mutantes de representa<;;oes, deimagens, de signos, de mensagens de todas as farmas e todas asmaterias (sonoras, visuais, tateis, proprioceptivas, diagramaticas)povoam 0 espa<;;odas conexoes. Ao circularem pelos caminhos eao ocuparem as zonas da topologia, hordas de signos modificama paisagem de atratores psiquicos. Por isso os signos, ou gruposde signos, podem tambem ser chamados agentes. Simetricamen-te, as transforma<;;oes da conectividade influem sobre as popula-<;;oesde signos e de imagens. A topologia e ela mesma 0 conjuntodas conexoes ou rela<;oes, qualitativamente diferenciadas, entreos slgnos, mensagens ou agentes.

3. Uma axiologia. As represent:ll;lleS e as zonas do espa<;opsiquico estao ligadas a "valores" positivos Oll negativos segundodiferentes "sistemas de mediJas". Esses valores determinam tro-pismos, atra<;;oes e repulsas entre imagens, polaridades entre zonasou grupos de signos. Os valores S:lOpor n:1l"lIrczam<'>veise muta-veis, embora alguns tambcm possam delllonstrar lima estabilidade.

4. Uma energetica. Os tropisl1los Oll valores associados asimagens podem ser intensos ou fracos. 0 movimento de um gru-po de representa<;;oes pode veneer certas barreiras topologicas(afrouxar certas liga<;oes, criar outras, modificar a paisagem deatratores) ou, par falta de "for<;;a", permanecer aquem delas. 0conjunto do funcionamento psiquico e assim irrigado e animadopor uma economia "energetica": deslocamentos ou imobiliza<;;oesde far<;;as, fixa<;;ao ou mobiliza<;;ao de valores, circula<;;oes ou cris-taliza<;;oes de energia, investimento ou desinvestimento em repre-senta<;;oes, conexoes etc.

Resulta do modelo que acabamos de esbo<;;ar em linhas ge-rais que 0 funcionamento psiquico e paralelo e distribuido em vezde seqiiencial e linear. Urn afeto, ou uma emo<;ao, pode ser defi-nido como urn processo ou urn acontecimento psiquico que poeem jogo pelo menos uma das quatro dimensoes que acabamos demencionar: topologia, semiotica, axiologia e energetica. Mas, sen-do essas quatro dimensoes mutuamente imanentes, urn afeto e, demaneira mais geral, uma modifica<;;ao do espirito, urn diferencialde vida psiquica. Simetricamente, a vida psiquica manifesta-secomo urn fluxo de afetos.

Esse modelo, sublinhemos, e compativel ao mesmo tempocom os liltimos dados da psicologia cognitiva (em particular noque diz respeito a organiza<;;ao "semantica" da memoria de lon-go prazo), com as tesesprincipais da psicanalise, e mesmo daesquizoanalise, sem contradizer tampouco a experiencia intros-pectiva ou a fenomenologia.

Ele e igualmente compativel com a abordagem darwiniana,uma vez que as configura<;;oes do espa<;;opsiquico abstrato de quatrodimensoes sao continuamente modificadas par contribui<;;oes "ex-

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teriores" e redistrihllidas pelas dinamicas proprias do meio psiquico.E possivel tra<;ar lima C( llTeSpondencia entre essas transforma<;oesconstantes e os cfeitos do "gerador de variedade" da maquina dar-winiana. Acoplado ascII ambiente, 0 sistema psiquico "seleciona"dinamicas afctivas vi;lvcis ao longo de uma his tori a ou de uni ca-minho evolutivo irrcvlTsivel: constitui<;ao da "personalidade" in-dividual Oll colct iva, aprclldizagens, inven<;oes, obsolescencia delinguagcns, illvcst i1l11'111os ou desinvestimentos afetivos.

() psiqllismo l'llllstillii lima interioridade. Com efeito, suatopologi'l 11.10t' 11111rccipicntc neutro, urn sistema puro de coor-dcnadas, Ill.ISSilll 1I111CSP;li;0qualitativo, diferenciado, cujas partesestuo cm rel,H;;lo lllllas com as outras e compoem figuras, ou ar-ranjos figllr;ls/fulldos. Adclllais, os signos e mensagens, ao circu-larell1 c povoa rCIll 0 cspa\,o, ao se remeterem mutuamente, aoatualizarcm a COIH'clividadc, forjam igualmente a interioridade doespirito. POl'sua Vl"l., os valorcs se entre-determinam e formam sis-tema. Enfim, a cllcrgia quc in'iga 0 espirito nao abandona urn lugarsenao para ocupar OUtTO,cOlHrihuindo para uma forma de co or-dena<;ao, dc codcpclld21lcia c dc unidade no seio do psiquismo.

Mas a unidadc do psiquismo c a de uma multiplicidade fer-vilhante e sua illtcrioridade "a fetiva" nao e em absoluto urn fe-chamento. COIllO diz (;illcs Delcuze, 0 interior e uma dobra doexterior. Vimos que os psiquislllos silo tambem maquinas dar-winianas, isto e, idcntificam-se COIllurn processo de transforma-<;ao-tradu<;ao do outro elll lll11si, Ulll si jamais dcfinitivamentefechado mas sempre em desequilihrio, em posi<;ao de abertura, deacolhimento, de muta<;ao; urn si cuja ponta fina e talvez a quali-dade singular do processo de assimila<;ilo do outro e de hetero-genese. Essa abertura come<;a na simples sensa<;ao, passa pelaaprendizagem e 0 dialogo, culmina com 0 devir: quimeriza<;ilo outransi<;ao para uma outra subjetividade.

o modelo que propusemos do psiquismo pode se aplicar aurn texto, urn filme, uma mensagem ou uma obra qualquer. Comcfeito, no caso de uma mensagem complexa, temos:

- uma cole<;ao de signos ou de componentes da mensagem;

- conexoes, remissoes, ecos entre as partes da mensagem;- uma distribui<;ao de valores positivos ou negativos sobre

os elementos, zonas e liga<;oes, bem como urn valor que emergedo conjunto;

- e enfim uma energia diferentemente investida em certasliga<;oes, em certos valores: "linhas de for<;a", uma estrutura.

o conjunto cia mensagem, se nos ativermos a sua significa-<;ao, funciona como uma configura<;ao dinamica, uma especie decampo de for<;a instavel (diversamente interpretavel) e que reme-te evidentemente a seu exterior para funcionar: outras mensagens,rcferentes "reais", interpretes.

A mensagem e ela mesma urn agente afetivo para 0 espfritode quem a interpreta. Se 0 texto, a mensagem ou a obra funcio-nam como urn espirito, e porque ja sao lidos, traduzidos, compreen-didos, introduzidos, assimilados numa materia mental e afetiva.Urn sujeito transmutou uma serie de acontecimentos fisicos emmensagem significante, ou melhor, assim como 0 rei Midas que nadapodia tocar sem transforma-lo em ouro, 0 espirito jamais podeapreender algo que nao se transforme, exatamente por isso, emmovimentos e dobras de urn rico tecido colorido: em afetos. 0 queacabamos de dizer aqui das mensagens se aplica precisamente damesma maneira a todos os elementos de nossa experiencia, ao pro-prio mundo. Para nos, 0 mundo, nosso mundo humano, e urn cam-po problematico, uma configura<,:ao dinamica, urn imenso hiper-texto em con stante metamorfose, atravessado de tensoes, cinzen-to e pouco investido em certas zonas, intensamente investido e lu-xuosamente detalhado em outras. As proximidades geograficas, asconexidades causais classicas sao apenas urn pequeno subconjuntodas liga<,:oesde significa<,:ao, de analogi a e de circula<,:ao afetiva queestruturam nosso universo subjetivo. 0 universo fisico e urn casoparticular do mundo subjetivo que 0 cerca, 0 impregna e 0 susten-ta. 0 sujeito nao e outra coisa senao seu mundo, com a condi<,:aode entender-se por este termo tudo 0 que 0 afeto envolve. Assim epouco afirmar que 0 psiquismo esta aberto para 0 exterior; ele eapenas 0 exterior, mas urn exterior infiltrado, tensionado, compli-

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linguagens, os artefatos e as institui<;:6es sociais que pensam den-tro de nos, mas 0 conjunto do mundo humano, com suas linhasde desejo, suas polaridades afetivas, suas maquinas mentais hfbri-das, suas paisagens de senti do forradas de imagens. Agir sobre seumeio, por pouco que seja, mesmo de urn modo que se poderiapretender puramente tecnico, material ou fisico, equivale a erigiro mundo comum que pensa diferentemente dentro de cada urn denos, equivale a secretar indiretamente qualidade subjetiva e tra-balhar no afeto. Que dizer entao da produ<;:ao de mensagens oude re1acionamentos? Eis af 0 no da moral: vivendo, agindo, pen-sando, tecemos 0 tecido mesmo da vida dos outros.

E compreendemos assim por que coletivos humanos enquantotais podem ser ditos inte1igentes. Porque 0 psiquismo e, desde 0

infcio e por defini<;:ao, coletivo: trata-se de uma multidao de sig-nos-agentes em intera<;:ao, carregados de valores, investindo comsua energia redes move is e paisagens mutaveis.

Os coletivos humanos sao especies de megapsiquismos, naoapenas por serem percebidos e afetivamente investidos por pessoas,mas porque podem ser adequadamente mode1ados por uma topo-logia, uma semiotica, uma axiologia e uma energetic a mutua menteimanentes. Mega-sujeitos sociais, embora sem consciencia lineari-zante, sao, enquanto tais, atravessados de afetos. Urn imenso jogoafetivo produz a vida social. Urn pa pel de sele<;:aoe de apresenta<;:aoseqiiencial desempenhado pela consciencia nas pessoas e cumpridode urn jeito au de outro nas coletividades por estruturas polfticas,religiosas au midiaticas que habitam em troca as sujeitos individuais.Mas a compara<;:ao entre as servi<;:osprestados ao indivfduo par suaconsciencia e aque1es que as mfdias centralizadoras au as porta-vozesprestam aos coletivos nem sempre e em prove ita destes ultimos.

E verdade que a inteligencia e fractal, au seja, se reproduz demaneira comparavel em diferentes escalas de grandeza: macro-sociedades, psiquismos transindividuais de pequenos grupos, in-divfduos, modulos infra-individuais (zonas do cerebro, "comple-xos" inconscientes), agenciamentos transversais entre modulos in-fra-individuais de pessoas diferentes (re1a<;:6essexuais, neuroses

cado, transubstanciado, animado pe1a afetividade. 0 sujeito e urnmundo banhado de selHido e de emo<;:ao.

A imagem qlle ;lcahamos de tra<;:ar da inteligencia viva audo psiquismo c, identic;llllente, a do virtual. Por natureza, e em-bora esteja sell1pre conectado a seu corpo, a sujeito afetivo sedesdobra pam fora do espa<;:o fisico. Desterritorializado, dester-ritorializante, ell' existe, isto e, cresce de fato para alem do "af".o psiquisl11o, pm constru<;:ao, transforma a exterior em interior(0 lado de denIm C lima dobra do lado de fora) e vice-versa, umavez que 0 nllllHlo percebido esta sempre mergulhado no e1emen-to do afeto. Enfim, a paisagem psfquica tal como procurei des-creve-In C: dOlordel11 da configura<;:ao dinamica. Ela e a propria vidade Lllnn{) de fon,:as, de coen,:oes e de finalidades, a intimidade deum agregado de tensoes, a imagem do campo instave1 de atratoresheterogcneos qlle define toda situa<;:ao problematica aberta.

o elemento psiquico oferece um exemplo canonico do virtual.Como se atualiza esse virtual? Atraves dos afetos. Mais uma vez,as afetos designam aqui os atos psfquicos, seja qual for sua natu-reza. A qualidade de urn afeto depende do meio mental que the dasentido e que e1e contribui para determinar. Devido a implica<;:aoreciproca entre uma subjetividade e seu mundo, as qualidades afe-tivas sao tambem dependentes das qualidades do ambiente, urn meioexterior que nao cessa de oferecer novas objetos, novas configura-<;:6espraticas au esteticas a investir. Assim, nao existem limites apriori para a ec1osao de novas tipos de afetos, como tampoucoexistem limites para a prodw;:ao de objetos au de paisagens ineditas.Poder-se-ia mesmo falar de uma inventividade afetiva. A c1assifica-<;:aoordinaria das emo<;:6es (medo, amor etc.) apresenta portantoapenas uma lista restrita e bastante simplificada dos tipos de afetos.

Compreende-se melhor, agora, par que a inteligencia e atra-vessada de uma dimensao coletiva: e porque nao sao apenas as

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complementarl's ... ). (:ad;] 11<') Oll zona do hipercortex coletivo con-tern por sua Vl'Z UIII psiquislllo vivo, uma especie de hipertextodinamico atravessoldo de leIlS()l'S e de energias tingidas de quali-dades afetivas, allillladas de tropismos, agitadas de conflitos. Noentanto, por sua lig;H,';]Oa llll1corpo mortal e a sua consciencia, apersona manifl"sl a llllla IOllalidade psiquica e uma intensidade afe-tiva absolutallH'llle sillglliares.

Em conlTaparlida, ha uma qualidade difundida em diversosgraus em todos os tipos de espiritos mas que as sociedades hu-manas (e niio 111 a is os individuos) exemplificam melhor que as ou-tras: a de re f1clir 0 todo do espirito coletivo, cada vez diferente-mente, elll cada uma de suas partes. Os sistemas inteligentes SaG"hologrMicos" l' os grupos humanos SaGos mais holograficos dossistemas inteligentes. Como as monadas de Leibniz ou as ocasioesatuais de Whitehead, as pessoas encarnam, cada uma delas, umasele<;:ao,uma versao, uma visao particulares do mundo comum oudo psiquismo global.

Isto equivale a dizer, de uma maneira mais trivial, que 0

homem e (antes de tudo) inteligente, enquanto a formiga e, rela-tivamente ao humano, estupida. A formiga nao so mente recebemenos que 0 humano da inteligencia social, como tambem, sime-tricamente, contribui para ela apenas numa fraca medida. Vmamulher ou urn homem, no quadro de uma cultura, e capaz deaprender, de imaginar, de inventar e finalmente de fazer evoluir,mesmo que muito modestamente, as linguagens, as tecnicas, asrela<;:oes sociais que vigoram em seu ambiente, 0 que uma formi-ga - estritamente submetida a uma programa<;:ao genetica -dificilmente e capaz de fazer. Entre os insetos, somente a socie-dade pode resolver problemas originais, ao passo que, entre oshumanos, os individuos SaG em geral mais inventivos que certosgrupos tais como as multidoes ou as burocracias rfgidas. A inte-ligencia das sociedades humanas e variavel e, no melhor dos ca-sos, evolutiva, gra<;:asa natureza dos individuos que a compoeme, 0 que e a outra face de uma mesma realidade, das liga<;:oes,geralmente livres ou contratuais, que a tecem. Em troca, no qua-dro de uma determinada especie de formigas, 0 funcionamentodo formigueiro e fixo.

o estatuto do individuo num e noutro tipo de sociedadecristaliza e resume 0 conjunto das diferen<;:as que os opoem. 0Iligar e 0 papel de cada formiga estao definitivamente fixados. Noseio de uma especie particular, os tipos de comportamentos ou asdiferentes morfologias (rainhas, operarias, guerreiras) SaGimuta-veis. As formigas (como as abelhas e os cupins) estao organiza-das em castas e as formigas da mesma casta SaG intercambiaveisselll perda. Em troca, as sociedades humanas nao cessam de in-veniaI' novas categorias, os individuos passam de uma classe a(IllITa e, sobretudo, e na verdade impossivel reduzir uma pessoa.\ sell pertencimento a uma classe (ou a urn conjunto de classes),pois cada individuo humano e singular. As pessoas, tendo seuproprio caminho de aprendizagem, encarnando respectivamente1I11llldosafetivos e virtualidades de muta<;:ao social (mesmo mini-111.\) d iI'erentes, nao SaG intercambiaveis. Os individuos humanos

A no<;:ao de inteligencia coletiva evoca irresistivelmente 0

funcionamento das sociedades de insetos: abelhas, formigas, cu-pins. No entanto, as comunidades humanas diferem profundamen-te dos cupinzeiros.

Primeira diferen<;:a, da qual decorrem todas as outras, a in-teligencia coletiva pensa dentro de nos, ao passo que a formiga euma parte quase opaca, quase nao holografica, urn elo inconscientedo formigueiro inteligente. Podemos usufruir inteligentemente dainteligencia coletiva, que aumenta e modifica nossa propria inte-ligencia. Contemos ou refletimos parcialmente, cada urn a sua ma-neira, a inteligencia do grupo. A formiga, em troca, tern apenasuma pequenissima frui<;:ao ou visao da inteligencia social. Naoobtem dela um acrescimo mental. Obediente beneficiaria, parti-cipa somente as cegas dessa inteligencia.

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seio de coletividades desterritorializadas muito vastas que chama-remos "comunica~ao todos-todos". E posslvel experienciar issona Internet, nos chatsS (BBS), nas conferencias ou f6runs eletro-nicos, nos sistemas para 0 trabalho ou a aprendizagem coopera-tivos, nos groupwares, nos mundos virtuais e nas arvores de co-nhecimentos. Com efeito, 0 ciberespa~o em via de constitui~ao au-toriza uma comunica~ao nao mediatica em grande escala que, anosso ver, representa urn avan~o decisivo rumo a formas novas emais evoluldas de inteligencia coletiva.

Como se sabe, os meios de comunica~ao classicos (relaciona-mento um-todos) instauram uma separa~ao nltida entre centrosemissores e receptores passivos isolados uns dos outros. As mensa-gens difundidas pelo centro realizam uma forma grosseira de uni-fica~ao cognitiva do coletivo ao instaurarem urn contexto comum.Todavia, esse contexto e imposto, transcendente, nao resulta daatividade dos participantes no dispositivo, nao pode ser negocia-do transversalmente entre os receptores. 0 telefone (relacionamen-to urn-urn) autoriza uma comunica~ao reclproca, mas nao permitevisao global do que se pass a no conjunto da rede nem a constru-~ao de urn contexto comum. No ciberespa~o, em troca, cada urne potencialmente emissor e receptor num espa~o qualitativamentediferenciado, nao fixo, disposto pelos participantes, exploravel.Aqui, nao e principalmente por seu nome, sua posi~ao geografi-ca ou social que as pessoas se encontram, mas segundo centrosde interesses, numa paisagem comum do sentido ou do saber.

Segundo modalidades ainda primitivas, mas que se aperfei-~oam de ana a ano, 0 ciberespa~o oferece instrumentos de cons-tru~ao cooperativa de urn contexto comum em grupos numero-sos e geograficamente dispersos. A comunica~ao se desdobra aquiem toda a sua dimensao pragmatica. Nao se trata mais apenas de

contribuem, cada LUll difcrcntemente e de maneira criativa, paraa vida da inteligencia colctiva que os ilumina em troca, ao passoque uma formiga ohcdccc cegamente ao papel que the dita suacasta no seio de LillI vaslo tllccanismo inconsciente que a ultrapassaabsolutamentc.

Certas civiliz~HJ)es, certos regimes pollticos tentaram apro-ximar a intcligencia coletiva humana da dos formigueiros, trata-ram as pcssoas como membros de uma categoria, fizeram crer queessa redu<,:aodo humano ao inseto era posslvel ou desejavel. Nossaposi~ao filosMica, moral e polltica e perfeitamente clara: 0 pro-gresso humano rumo a constitui~ao de novas formas de inteligen-cia coletiva se opae radicalmente ao p610 do formigueiro. Esseprogresso deve, ao contrario, aprofundar a abertura da conscienciaindividual ao funcionamento da inteligencia social e melhorar aintegra~ao e a valoriza~ao das singularidades criadoras que osindivlduos e os pequenos grupos humanos formam nos proces-sos cognitivos e afetivos da inteligencia coletiva. Tal progresso demaneira nenhuma e garantido, esta sempre amea~ado de regres-saes. Antes de ser uma lei da hist6ria, trata-se de urn projet~ trans-mitido, enriquecido, reinterpretado a cada gera~ao e infelizmen-te suscetfvel de esclerose ou de esquecimento.

A reatualiza~ao contemporanea desse projeto passa prova-velmente por urn usa judicioso das tecnicas de comunica~ao desuporte digital. As tecnologias intelectuais e os dispositivos decomunica~ao conhecem neste fim do seculo xx muta~aes massivase radicais. Em conseqiiencia, as ecologias cognitivas estao em viade reorganiza~ao rapida e irreverslvel. A brutalidade da deses-tabiliza~ao cultural nao deve nos desencorajar de discernir as for-mas emergentes mais positivas socialmente e de favorecer seu de-senvolvimento. Como urn dos principais efeitos da transforma-~ao em curso, aparece urn novo dispositivo de comunica~ao no

5 Chat: servi<;o oferecido na comunica<;ao que permite a participa<;aosimulranea, atraves de urn texto ou mesmo voz, de divers os usmirios em umamesma conversa ou debate. (N. do revisor tecnico)

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uma difusao ou de um transporte de mensagens, mas de uma in-tera~ao no seio de uma situa~ao que cada urn contribui para mo-dificar ou estabilizar, de lima negocia~ao sobre significa~6es, deurn processo de reconhecimento mutuo dos individuos e dos gru-pos via atividade de comunica~ao. 0 ponto capital e aqui a ob-jetiva~ao parcial do mundo virtual de significa~6es entregue apartilha e a reinterpreta<,:ao dos participantes nos dispositivos decomunica<,:ao todos-todos. Essa objetiva<,:ao dinamica de urn con-texto coletivo e um operador de inteligencia coletiva, uma especiede liga~ao viva que funciona como uma memoria, ou conscienciacomum. Uma subjetiva~ao viva remete a uma objetiva<,:ao dina-mica. 0 objeto comum suscita dialeticamente urn sujeito coletivo.

Vejamos alguns exemplos de tal processo. A World WideWeb, tal como foi descrita no capitulo 3, e urn tapete de sentidotecido por milh6es de pessoas e devolvido sempre ao tear. Dapermanente costura pelas pontas de milh6es de universos subje-tivos emerge uma memoria dinamica, comum,. "objetivada", na-vega vel. Descobrem-se assim paisagens de significa<,:6es que emer-gem da atividade coletiva nos MUDS (Multi-users dungeons anddragons), especies de jogos de papeis (role-playing games) em for-ma de mundos virtuais de linguagem, elaborados em tempo realpor centenas ou milhares de jovens dispersos pelo planeta. De urnmodo menos elaborado, temos igualmente as memorias comunssecretadas coletivamente nas conferencias eletronicas dos gruposde chat, ou os news groups da Internet, cuja lista mutavel dese-nha urn mapa dinamico dos interesses de comunidades vibrio-nantes. Nos melhores casos, esses dispositivos constituem algosimilar a enciclopedias vivas. As respostas aos frequently askedquestions (FAQ) de alguns foruns eletronicos evitam as repeti~6ese permitem a cada urn inscrever-se no dialogo com urn minimode conhecimentos basicos sobre 0 tema em questao. Os individuossao assim incitados a participar da maneira mais pertinente pos-sivel na inteligencia coletiva.

Encontramos ainda as paisagens de significa~6es partilhadasnas arvores de conhecimentos, mercados livres de uma nova eco-

nomia do saber, que of ere cern a cada participante de uma coleti-vidade uma visao sintetica da variedade das competencias de seugrupo e the permitem reconhecer sob forma de imagem sua iden-tidade em espa<,:os de saber. Nas arvores de conhecimentos, a in-forma~ao e sempre apresentada em contexto, segundo a rela<,:aovisual figuralfundo, a figura sendo a informa~ao e 0 fundo mani-festando 0 contexto. Assim a me sma informa~ao oferece urn as-pecto, uma imagem ou uma mascara diferente conforme se encon-tre num contexto ou noutro. Quanto ao contexto (a arvore, suasformas, suas cores), ele emerge dinamicamente dos atos de apren-dizagem e de transa<,:ao do saber cfetuados pelos participantes e,de maneira mais geral, dos corpus de informa<,:ao considerados ede sua utiliza<,:ao por uma comunidade.

A transmissao e a partilha de uma memoria social sao taovelhas quanto a humanidade. Narrativas, passes de magica e sa-bedorias passam de gera~ao a gera~ao. Entretanto, 0 progressodas tecnicas de comunica<,:ao e de registro ampliou consideravel-mente 0 alcance do estoque compartilhavel (bibliotecas, discote-cas, cinematecas). Hoje, a informa~ao disponivel on line ou nociberespa<,:o em geral compreende nao apenas 0 "estoque" des-territorializado de textos, de imagens e de sons habituais, masigualmente pontos de vista hipertextuais sobre esse estoque, ba-ses de conhecimentos com capacidades de inferencia autonomase modelos digitais disponiveis para todas as simula~6es. Alemdessas massas de documentos estaticos ou dinamicos, paisagensde significa<,:6es compartilhadas coordenam as estrutura~6es sub-jetivas variadas do oceano informacional. A memoria coletivaposta em ato no ciberespa~o (dinamica, emergente, cooperativa,retrabalhada em tempo real por interpreta<,:6es) deve ser claramen-te distinguida da transmissao tradicional das narrativas e das com-petencias, bem como dos registros estaticos das bibliotecas.

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Para alem da mcmoria, os softwares sao outros tantos micro-m6dulos cognitivos automaticos que vem se imbricar ao dos hum a-nos e que transformam ou aumentam suas capacidades de calculo,de raciodnio, de imagina<;ao, de cria<;ao, de comunica<;ao, de apren-dizagem ou de "navega<;ao" na informa<;ao. Toda vez que e pro-duzido um novo programa, acentua-se 0 car<iter coletivo da inteli-gencia. COIll cfcito, se 0 fornecimento de informa<;ao aumenta ape-nas 0 estoqu(' COIllUIll(ou enriquece sua estrutura<;ao), 0 progra-ma, propriamente, representa urn acrescimo aos m6dulos operat6-rios compartilhados. A programa<;ao cooperativa do software nociberespa<;o ilustra de maneira evidente a autopoiese (ou produ-<;aode si) da intcligcncia coletiva, especial mente quando 0 programavisa ell' pn'>prio a melhorar a infraestrutura de comunica<;ao digital.

o ciherespa<.;o favorece as conex6es, as coordena<;6es, assinergias entre as inteligencias individuais, e sobretudo se urn con-texto vivo for Illelhor compartilhado, se os individuos e os gru-pos puderem se situar mutuamente numa paisagem virtual de in-teresses e de competcncias, e sc a diversidade dos m6dulos cog-nitivos comuns ou mutuamentc compativcis aumentar.

Sahe-se que em cada cpoca hist6rica os humanos tiveram 0

sentimento de viver lima "virada" capital. Isto relativiza todaimpressao da mesma ordelll que diga respeito ao perfodo contem-poraneo. Nao consigo porclll desfazcr-me da ideia de que vive-mos hoje uma muta<;ao maior nas forl11as da inteligencia coleti-va. A objetiva<;ao dinamica do contexto el11ergente, 0 comparti-lhar em massa e sempre crescente de opcradores cognitivos varia-dos e a interconexao em tempo real independentemente da dis-tancia geogratica parecel11 refor<;ar mutual11ente seus efeitos. Umadas caracteristicas mais salientes da nova inteligencia coletiva e aacuidade de sua reflexao nas inteligencias individuais. Os atos dopsiquismo de uma fra<;ao crescente da humanidade tornam-se qua-se diretamente sensiveis as pessoas. Algumas formas de mundosvirtuais permitem quase exprimir, cartografar em tempo real oscomponentes topo16gicos, semi6ticos, axio16gicos e energeticos depsiquismos coletivos.

A imagem via satelite de nosso planeta, as informa<;6es quenos chegam por uma quantidade de redes mundiais de captadores,os modelos informatizados que integral11 esses dados, as simula-<;6es que nos deixam adivinhar as rea<;6es da Terra, sua hist6ria,a inimaginavel intimidade de sua vida de uma infinita lentidao,opaca, enorme e dispersa, tudo isso faz aos poucos surgir, ou res-surgir, no espirito dos humanos a Figura arcaica de Gaia. Face aantiquissima deusa, ainda misturada a sua substancia, pode-seagora quase ouvir ou ver pensar, crescendo a nossos olhos, rapi-do, crepitante, 0 grande hiperc6rtex de sua filha, Antropia.

Tanto quanta a pesquisa utilitaria de informa<;ao, e essa sen-sa<;ao vertiginosa de mergulhar no cerebro comum e dele partici-par que explica 0 entusiasmo pela Internet. Navegar no ciberes-pa<;o equivale a passear urn olhar consciente sobre a interioridadeca6tica, 0 ronronar incansavel, as banais futilidades e as fulgura<;6esplanetarias da inteligencia coletiva. 0 acesso ao processo intelec-tual do to do informa 0 de cada parte, individuo ou grupo, e ali-menta em troca 0 do conjunto. Passa-se entao da inteligencia co-letiva ao coletivo inteligente.

Apesar de numerosos aspectos negativos, e em particular 0

risco de deixar no acostamento da auto-estrada uma parte des-qualificada da humanidade, 0 ciberespa<;o manifesta proprieda-des novas, que fazem dele urn precioso instrul11ento de coordena-<;ao nao hierarquica, de sinergiza<;ao rapida das inteligencias, detroca de conhecimentos, de navega<;ao nos saberes e de autocria<;aodeliberada de coletivos inteligentes.

Proponho, juntamente com outros, aproveitar esse momentararo em que se anuncia uma cultura nova para orientar deli be-radamente a evolu<;ao em curso. Raciocinar em termos de imp actoe condenar-se a padecer. De novo, a tecnica prop6e, mas 0 ho-mem disp6e. Cessemos de diabolizar 0 virtual (como se Fosse 0

contrario do real!). A escolha nao e entre a nostalgia de urn realdatado e urn virtual amea<;ador ou excitante, mas entre diferen-tes concep<;oes do virtual. A alternativa e simples. Ou 0 ciberespa<;oreproduzira 0 mediatico, 0 espetacular, 0 consumo de informa-

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<;aomercantil e a exclusao numa escala ainda mais gigantesca quehoje. Esta e, a grosso modo, a tendencia natural das "superviasda informa<;ao" ou da "televisao interativa". Ou acompanhamosas tendencias Illais positivas da evolu<;ao em curso e criamos urnprojeto de civiliza<,:ilo centrado sobre os coletivos inteligentes:recria<;ao do vinculo social mediante trocas de saber, reconheci-mento, cscuta e valoriza<;ao das singularidades, democracia maisdireta, mais pa rticipativa, enriquecimento das vidas individuais,invenc,:ao de formas novas de coopera<;ao aberta para resolver osterrfvcis problemas que a humanidade deve enfrentar, disposi<;aodas infracstrutums informaticas e culturais da inteligencia coletiva.

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8. A VIRTUALIZAc;Ao DA INTELIGENCIAE A CONSTITUIc;AO DO OBJETO

o problema da inteligencia coletiva e simples de enunciarmas diffcil de resolver. Grupos humanos podem ser coletivamen-te mais inteligentes, mais instruidos, mais sabios, mais imagina-tivos que as pessoas que os compoem? Nao apenas a longo prazo,na dura<;ao da hist6ria tecnica, das institui<;oes e da cultura, masaqui e agora, no curso dos acontecimentos e dos atos cotidianos.

Como coordenar as inteligencias para que se multipliquemumas atraves das outras ao inves de se anularem? Ha meio de in-duzir uma valoriza<;ao redproca, uma exalta<;ao mutua das capa-cidades menta is dos individuos em vez de submete-las a uma nor-ma ou rebaixa-las ao menor denominador comum? Poder-se-iainterpretar toda a hist6ria das formas institucionais, das linguagense das tecnologias cognitivas como tentativas mais ou menos feli-zes de resolver esses problemas. '

Pois se as pessoas sao todas inteligentes a sua maneira, osgrupos decepcionam com freqiiencia. Sabe-se que, numa multi-dao, as inteligencias das pessoas, longe de se adicionar, tendem ase dividir. A burocracia e as formas de organiza<;ao autoritariasasseguram uma certa coordena<;ao, mas as custas da supressao dasiniciativas e do aplainamento das singularidades.

Sem duvida, boas regras de organiza<;ao e de escuta mutuasao suficientes para a valoriza<;ao redproca das inteligencias nospequenos grupos. Mas acima de uma ordem de grandeza da de-zena de milhares de pessoas, a planifica<;ao hierarquica e a ges-tao do humano por categorias de massa pareceram por muito

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tempo inevit,lvcis. Tra<;o aqui a hipotese, em concordancia comurn numero crcscclltl' de atores politicos, econamicos e artisticos,que as tecnicas dc cOlllunicas;ao contemporilneas poderiam mO-dificar a antiqi'lissima distribuis;ao de cartas antropologica quecondenava as gr;llldcs coletividades a formas de organizas;ao po-liticas muito afastadas dos coletivos inteligentes.

Por quc 0 "mundo da cultura", no sentido burgues do ter-mo, ou scja, os grupos human os que produziram e desfrutaram acieJlcia, ,1 filosofia, a literatura e as belas-artes, exerceu por tantotempo tal atrativo? Provavelmente porque se aproximou, a suamaneira clitista c impcrfeita, de urn ideal da inteligencia coletiva.Eis algumas das normas sociais, valores e regras de comportamen-to que regeriam (idealmente) 0 mundo da cultura: avalias;ao per-manente das obras pelos pares e pelo publico, reinterpretas;aoconstante da herans;a, inaceitabilidade do argumento de autori-dade, incitas;ao a enriquecer 0 patrimanio com urn, cooperas;aocompetitiva, educas;ao contInua do gosto e do senso crltico, va-lorizas;ao do julgamento pessoal, preocupas;ao com a variedade,encorajamento a imaginas;ao, a inovas;ao, a pesquisa livre. Tere-mos comes;ado a resolver numerosos problemas cruciais do mundocontemporilneo quando passarmos a par em pratica urn funcio-namento "culto" fora dos domlnios e dos meios restritos onde estegeralmente se instala. Urn dos melhores sinais da proximidadeentre esse mundo da cultura e os coletivos inteligentes e seu com-promisso (de princfpio) de colocar 0 poder entre parenteses. 0ideal da inteligencia coletiva nao e evidentemente difundir a cienciae as artes no conjunto da sociedade, desqualificando ao mesmOtempo outros tipos de conhecimento ou de sensibilidade. E reco-nhecer que a diversidade das atividades humanas, sem nenhumaexclusao, pode e deve ser considerada, tratada, vivid a como "cul-tura", no sentido que acabamos de evocar. Em conseqiiencia, cadaser humano poderia, deveria ser respeitado como urn artista ouurn pesquisador numa republica dos esplritos.

Tal program a soa ut6pico. No entanto, a chave da fors;a eco-namica, politica ou mesmo militar reside hoje precisamente na

capacidade de produzir coletivos inteligentes. Nao nego a existenciadas relas;oes de poder ou de dominas;ao, tento apenas designa-Iaspelo que sao: obstaculos a fors;a. Pois uma sociedade inteligenteem toda parte sera sempre mais eficiente que uma sociedade inte-ligentemente dirigida. 0 problema nao e decidir entre ser a favorou contra a inteligencia coletiva, mas escolher entre suas diferentesformas. Emergente ou imposta de cima? Respeitosa das singularida-des ou homogeneizante? Inteligencia que valoriza e poe em sinergiaa diversidade dos recursos e das competencias ou que os desqualificaem nome de uma racionalidade ou de urn modelo dominante?

Como, portanto, passar da inteligencia coletiva, que e ine-rente a condis;ao de humanidade, aos coletivos inteligentes, queotimizam deliberadamente seus recursos intelectuais aqui e ago-ra? Como fazer sociedade de maneira flexlvel, intensa e inventi-va sem no entanto fundar 0 coletivo sobre 0 6dio ao estrangei-,ro, nem sobre urn mecanismo vitimizador, nem sobre a relas;aocom uma revelas;ao transcendente ou com urn chefe providencial?Como par em sinfonia os atos e os recursos das pessoas sem sub-mete-Ias a uma exterioridade alienante? Tal regime nao se decre-ta, e certamente requer mais do que boa vontade.

Michel Serres nos ensinou a ler nos estadios alguns teoremasde antropologia fundamental. Seja dada uma partida de futebolou de rugby. Escutemos primeiramente 0 som que sobe das ar-quibancadas. Os torcedores da mesma equipe gritam quase todosjuntos as mesmas coisas no mesmo momento. Os atos dos indi-viduos mal se distinguem, nao chegam a se entrelaS;ar para fazerhistoria ou memoria, nao se entrosam em nenhuma bifurcas;aoirreverslvel. 0 indivlduo e afogado na massa dos torcedores, noruldo de fundo da multidao. Ora, a inteligencia dessa massa (capa-cidade de aprendizagem, de imaginas;ao, de raciocfnio) e notori-amente pequena, quer se manifeste no estadio ou na saida.

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Vejamos agora 0 que se passa no campo. Cada jogador efe-tua a~6es nitidamcnte distintas dasdos outros. Todavia, todas asa~6es vis am a coordena~ao, tent am se responder, querem fazersentido umas em rcla~ao as outras. Os atos dos jogadores, con-trariamente aos dos torcedores, intervem numa historica coleti-va, orientam, cada urn diferentemente, 0 cursu de uma partidaainda nao dccidida. As equipes empregam estrategias, improvi-sam, arriscam. Cada urn dos jogadores deve estar atento nao ape-nas ao que fazem seus adversarios mas igualmente ao que se tra-ma em seu proprio campo, para que os movimentos efetuados porseus companheiros nao tenham sido tentados em vao. 0 jogo se"constroi" .

Os espectadores nao podem agir sobre 0 espetaculo que osreune, todos tern a mesma fun~ao face ao ponto alto, ou ao pon-to baixo, de qualquer maneira fora de alcance, que e 0 campo. 0elo (0 espetaculo do jogo) e transcendente em rela~ao as pessoasque comp6em 0 coletivo. Nas arquibancadas, fazer sociedade eser a favor e contra, torcer por urn time, aplaudir os seus, vaiaros outros.

No campo, ao contrario, nao e suficiente detestar 0 timeadversario. E preciso estuda-lo, adivinha-lo, preve-lo, compreende-10. Sobretudo e preciso coordenar-se com a propria equipe emtempo real, reagir de maneira fina e rapida "como urn so homem",embora sejam varios. Ora, essa sinergiza~ao espontanea das com-petencias e das a~6es so e possivel gra~as a bola. No campo, amedia~ao social abandona sua transcendencia. A liga~ao entre osindividuos cessa de estar fora de alcance, ela se estabelece, ao con-trario, entre as maos (ou os pes) de todos. A animada unidade dosjogadores se organiza em torno de urn objeto-liga~ao imanente.Passando pelo desvio de urn ser que circula, de urn centro movelque designa sucessivamente cada urn como piv6 transitorio dogrupo, 0 grupo inteligente dos jogadores e em si sua propria refe-rencia. Os espectadores tern necessidade de jogadores, as equipesnao tern necessidade de espectadores. Semi-sagaz, urn proverbiochines diz que 0 dedo mostra a lua e que 0 idiota olha 0 dedo.

Sagazes, os jogadores fazem da bola ao mesmo tempo urn indi-cador que gira entre os sujeitos individuais, urn vetor que permitea cada urn designar cada urn, e 0 objeto principal, a liga~ao dina-mica do sujeito coletivo. Consideraremos a bola como urn proto-tipo do objeto-liga~ao, do objeto catalisador de inteligencia cole-tiva. Fa~o a hipotese de que tal objeto, que chamarei doravante epor conven~ao simplesmente a abjeta, e desconhecido dos animais.

Os mamiferos superiores, e mais particularmente os primatassociais de que descendemos, nao tern objetos. Claro que conhe-cern as presas, como todos os animais. Num certo sentido, a pre-sa e urn proto-objeto. A ca~a pode dar ensejo a coopera~ao. Apresa capturada suscita rivalidades ou com bates. Assim ela e, defato, urn operador primitivo de socializa~ao. Mas a presa desti-na-se a ser devorada, incorporada, reabsorvida finalmente numsujeito. Acaso vemos os jogadores lacerarem, dividirem entre si edepois comerem a bola que pegaram?

Os animais conhecem tambem rela~6es fortes com os terri-t6rias, cada sociedade defendendo 0 seu contra a invasao dosoutros. A sociedade animal define sua identidade sobretudo porsua rela~ao com urn territorio particular. Os caes, os gatos e nu-merosos outros animais marcam seu territorio com seu odor cor-poral. As aves 0 ocupam por meio de seu canto. Por que 0 terri-torio ainda nao e urn objeto? Porque ele funciona no modo daapropria~ao ou da identifica~ao exclusiva. Voce jamais vera urnJogador plantando sua bandeira sobre uma bola e pretendendosua posse exclusiva. 0 verdadeiro fundador da sociedade civil foiaquele que renunciou a encerrar uma por~ao do universo ffsico edeclarou pela primeira vez: isto e urn objeto. Para desempenharseu papel antropologico, 0 objeto deve passar de mao em mao,de sujeito a sujeito, e subtrair-se a apropria~ao territorial, a iden-tifica~ao a urn nome, a exclusividade ou a exclusao.

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Os primatas sociais, enfim, conhecem tambem as rela~oesde dominancia, qut' desempenham urn papel essencial na regula~aode suas intera<,:()t's. Notemos alias que as rela~oes estaveis de do-mina~ao, com grad,l~'()eS de postos e hierarquias sutis, so existementre os vertehmdos. Nao as encontramos entre os insetos sociaisque, em troca, conhecem a polietia (comportamentos muito tfpi-cos segundo ;IS castas) e a polimorfia (diferen~as anatomicas emfunc,:iio da divisiio social do trabalho). As rela~oes sociais hierar-quicas, que escapam a programac,:ao genetica, se decidem comfreqiicncia atraves de combates abertos. Elas devem certamenteser associadas com as aptidoes a autonomia individual mais mar-cada dos l11al11iferosem rela~ao aos insetos. Os etologos as con-sideram iguall11ente como urn modo de regula~ao da agressividadeentre memhn·)s do mesmo grupo social, urn tipo de agressividadeque e muito raro entre os insetos. 0 indivfduo dominante exerceuma func,:ao de unifica~ao e de coordenac,:ao da sociedade ao ini-bir a agressividade dos indivfduos entre si, ao polarizar a aten-~ao dos outros membros, ao impor as grandes orienta~oes (cac,:a,migra~ao). De novo, nem 0 sujeito dominante, nem 0 sujeito sub-misso sao objetos. No entanto, a bola tern alguma afinidade coma rela~ao de dominancia, por ser ao mesmo tempo submissa ecentro da aten~ao. Num certo sentido, ela substitui 0 chefe, 0

subordinado ou a vitima, mas virtualizando-os. Longe de fixaruma rela~ao estavel de dominancia, a bola mantem, ao contra-rio, uma rela~ao cooperativa (na mesma equipe) e competitiva(entre as equipes) igualitaria e sempre aberta. Claro que 0 jogosagra campeoes e deixa vencidos, mas esses estatutos duram ape-nas entre as partidas. Nenhuma hierarquia institufda pesa duranteo jogo: a circula~ao da bola as suspende.

A rela~ao com 0 objeto resulta de uma virtualizafao das re-lac,:oesde predac,:ao, de dominancia e de ocupa~ao exclusiva. 0 de dodesigna a vitima, mostra 0 sujeito dominante, indica a presa oucircunscreve 0 territorio. 0 idiota olha 0 dedo e inventa 0 objeto.

A bola ilustra maravilhosamente 0 conceito de objeto. Ela etfpica de sua fun~ao de hominiza~ao, ja que uma aptidao espe-cial para 0 jogo e uma das principais caracterfsticas de nossa es-pecie. Nenhum animal joga coletivamente com uma bola ou comalgo analogo. Os jogos animais sao na maioria das vezes simula-c,:oesde combate, de predac,:ao, de domina~ao ou de rela~oes se-xuais que poem os corpos diretamente em contato sem passar porurn intermediario objetivo. Mas ha evidentemente outros tipos deobjetos, que correspondem em maior ou menor grau ao tipo idealtao bem representado pela bola. Citemos em particular: a ferra-menta, 0 material ou 0 artefato que pass am de mao em mao du-rante os trabalhos coletivos; as narrativas imemoriais que se trans-mitem e sao transformadas de boca a ouvido e de gera~ao a gera-~ao, cada elo da corrente escutando e contando por sua vez; 0

cadaver durante e apos os ritos funerarios.Reconhece-se 0 objeto atraves de seu poder de catalise das

rela~oes sociais e de induc,:ao da inteligencia coletiva. A inteligen-cia tecnica e a coopera~ao no que diz respeito as ferramentas; ainventividade coletiva dos mitos, das lendas e do f6lclore no quediz respeito a circulac,:ao das narrativas. Esses dois casos eviden-tes nao requerem comentario particular. 0 exemplo do cadavere menos imediato. 0 despojo mortal remete ao ritual e ao queagora chamamos de religiao, formas arcaicas mas poderosas dainteligencia coletiva. Durante os funerais, 0 grupo gira em tornode seu morto, cerca-o, lava-o, veste-o, chora-o, reconstroi-o atravesdos panegfricos, toca-o pOI' meio de flores ou punhados de terrainterpostos, enterra-o ou queima-o. Mesmo impuro ou intocavel,o morto ritualizado, objetivado, permanece urn operador de so-cializa~ao. Ao contrario, se 0 cadaver nao e levado a urn jogofunebre que faz dele 0 objeto de urn coletivo, se e tratado comouma simples coisa, se a carne em decomposi~ao nao e virtualizadacomo corpo do morto, isto e 0 sinal certo da desintegrac,:ao de urngrupo, de sua desumanizac,:ao. E tentador ver na rela~ao com 0

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cadaver a virtualiza~ao original, a transi~ao do sujeito da do-minancia ao objeto: corpo mumificado do chefe ou cranio do ven-cido convertido em trofeu. A cabe~a reduzida dos jivaros, quedesempenha efetivamente urn papel complexo de refunda~ao docoletivo, seria uma especie de precursor monstruoso da bola?

se ha vagos esbo~os de ferramentas, de linguagens ou de ritosfunerarios em certas sociedades animais, nada se assemelha ne-las a moeda e menos ainda ao capital.

A comunidade cientifica e urn outro exemplo de coletivointeligente unido pela circula~ao de objetos. Esses objetos sao, emprincipio, "estudados por eles mesmos", de urn modo desinteres-sado: isto equivale a dizer que nao sao nem territorios, nem presas,nem sujeitos submissos ou reverenciados. T ais objetos emergemde uma dinamica de inteligencia coletiva que virtualiza certasmanifesta~oes particulares (frutos da observa~ao, da experiencia,da simula~ao) para fazer existir problemas consistentes: 0 eletron,o buraco negro, determinado virus ...

A circula~ao e constitutiva ao mesmo tempo do objeto e dacomunidade: urn fenomeno evidenciado num laboratorio so setorna "cientifico" se for reproduzido (ou, no limite, reprodutivel)em outros lab oratorios. Urn laboratorio que nao acolhe mais -e nao remete mais aos outros centros de pesquisa - os instrumen-tos, os protocolos experimentais e finalmente os "objetos" dacomunidade (astros, particulas elementares, moleculas, fenome-nos fisicos ou biologicos, simula~oes) nao e mais urn membra ativodesta. A inventividade cientifica consiste em fazer surgir verda-deiros objetos, isto e, veto res de comunidades inteligentes, capa-zes de interessar outros grupos que irao colocar em circula~ao,enriquecer, transformar e ate mesmo fazer proliferar 0 objetoinicial transformando assim sua identidade na comunidade. Como,no caso do futebol, 0 papel de cada urn e singular e deve se-lo (urnartigo cientifico tern que ser original), 0 jogo e ao mesmo tempocooperativo e competitivo, as a~oes se "constroem" umas sobreas outras, contribuindo para instaurar uma historicidade, umairreversibilidade complexa. As disciplinas fixam em territorios adialetica aberta dos objetos e dos coletivos cientificos.

A moeda no regime capitalista constitui certamente urn dosobjetos mais eficazes. Se cada urn guardasse seu dinheiro num cofrepessoal, 0 jogo economico contemporaneo se desmantelaria brus-ca e completamente. Em troca, se cada proprietario conservar suaterra, nenhuma conseqiiencia catastr6fica resultaria para a agri-cultura. Fluida, partilhavel, anonima, a moeda e a antitese do ter-rit6rio. It 0 que exprime de maneira figurada 0 famoso proverbiosegundo 0 qual 0 dinheiro nao tern cheiro. Nenhum individuo, pormais malcheiroso que seja, pode marcar 0 dinheiro com sua iden-tidade ou com seus atos. A moeda nao existe enquanto tal e naotern fun~ao economica positiva a nao ser por sua circula~ao. Ela eo marcador, 0 vetor e 0 regulador das rela~oes economicas.

o dinheiro nao e a riqueza, mas sua virtualidade. Por para-doxal que isto possa parecer, ele e inapropriavel, ou melhor, porsua incessante circula~ao, transforma 0 publico em privado e 0

privado em publico, fazendo cada urn, e cada urn diferentemen-te, participar da inteligencia coletiva do mercado capitalista. 0dinheiro pode ser evidentemente uma alavanca para 0 poder e adomina~ao, mas catalisa igualmente for~as sociais desterritoria-lizantes que nao respeitam nenhuma hierarquia instituida. Atra-yes das fronteiras, apesar dos antagonism os, 0 dinheiro contribui,para 0 melhor e para 0 pior, para coordenar, para regular semautoridade central inumeraveis atividades. Arrastando atras de sios meios de trans porte e de comunica~ao, e de fato 0 dinheiro domercado capitalista, nas maos de bilhoes de seres humanos, quetece atualmente a sociedade mundial. Inutil insistir neste ponto:

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Certamcl1te 0 jogo cientffico esta submetido a coen5:oes econo-

micas, sociais, politicas, particularmente sob 0 aspecto dos "meios"necessarios e dos "a poios" antecipados ou efetivos. Poder-se-ia dizero mesmo do fllt'chol pro fissional. Mas se a tecnociencia se redu-zisse a cocn,;()l's, a rela<;()es de for<;;ae a jagos de alian<;;as, mesmano meio hihrido dos coletivas homens-coisas, sua criatividade sin-gular, assim como sua influencia sabre 0 mundo, falhariam. Seriaurn pouco COJllO se resolvessemos explicar a amor apenas com ascOl1cep<;(-)('Sda marquesa de Merteuil [personagem de As liga({oesperigosas, de Laclos]. Criticamos aqui menos as teorias da novaescola de al1tropologia das ciencias e .das tecnicas (Latour, 1989,1993) do que as caricaturas as vezes geradas por algumas de suasformula<,:6es.

Nem simples rela<;;aoentre humanos, nem preda<;;ao ou apro-pria<;;ao das coisas, 0 empreendimento cientifico poe em loop aconstitui<;;ao redproca de coletivos inteligentes e de objetos deconhecimento. Longe de preexistir a suas "descobertas", ou deconstituir referentes transcendentes para verda des absolutas, osobjetos da ciencia sao imanentes aos procedimentos tecnicos queos canstroem, aos coletivos que os fazem circular. Mas nem porisso sao arbitrarios ou puramente relativos. Pois ell'S se arriscamem process os de sele<;;aoque os qualificam e que, por sua vez, elesjulgam. De todas as proposi<;;oes de objetos que sao emitidas, muitopoucas sao finalmente capazes de impor a pertinencia das provasque lhes permitiraa "ser objeto" (Stengers, 1993).

de nao-separa<;;ao por ter sido fabricado, ampliado, melhoradopelos informatas que a prindpio eram seus principais usuarios.Ele faz uma liga<;;aopor ser ao mesmo tempo 0 objeto comum deseus produtores e de seus exploradores (Huitema, 1995).

o ciberespa<;;o oferece objetos que rolam entre os grupos,mem6rias compartilhadas, hipertextas comunitarios para a cons-titui<;;ao de coletivos inteligentes. Deve-se distingui-Io, em primeirolugar, da televisao, que nao cessa de designar poderosos ou viti-mas a massas de individuos separados e impotentes. Convem so-bretudo nao confundi-Io, a seguir, com seu duplo perverso, a su-pervia eletronica, que pOl' em cena urn territorio (as redes fisicas,os servi<;;oscom pedagio) em vez e no lugar de abjetos comuns. Asupervia eletronica degrada em coisa apropriavel 0 que era urnobjeto circulante. Se 0 ciberespa<;;o resulta de uma virtualiza<;;aodos computadores, a supervia eletronica reifica esse virtual. Aaspereza dos debates em torno do carater mercantil ou nao mer-cantil da Internet tern profundas implica<;;6es antropol6gicas. Urndos orgulhos da comunidade que fez crescer a Net e ter inventa-do, ao mesmo tempo que urn novo objeto, uma maneira ineditade fazer sociedade inteligentemente. A questao nao e portantobanir a comercio da Internet (por que proibi-Io?), mas preservaruma maneira original de constituir coletivos inteligentes, diferentedaquela que 0 mercado capitalista induz. Os cibernautas nao ternnecessidade de dinheiro porque sua comunidade ja disp6e de urnobjeto constitutivo, virtual, desterritorializado, produtor de vin-culo e cognitivo por sua propria natureza. Mas, por autro lado,o ciberespa<;;o e perfeitamente compativel com 0 dinheiro ou ou-tros mediadores imanentes, ele inclusive faz crescer consideravel-mente a for<;;avirtualizante e a velocidade de circula<;;ao dos obje-tos monetarios e cientificos. Ao acolher nas liga<;;6es circulantescoletivas inteligentes, a Net e urn acelerador de objetos, urn vir-tualizador de virtuais. No que se refere a isto, provavelmente aindanao se viu nada igual.

Gra<;;as aos produtos da atividade ecanomica e cientifica, eapoiando-se nos meios do ciberespa<;;a, as rela<;;6es de preda<;;aa,

A extensao do ciberespa<;;o representa a ultimo dos grandessurgimentos de objetos indutores de inteligencia coletiva. 0 quetorna a Internet tao interessante? Dizer que ela e "anarquista" eurn modo grosseiro e falso de apresentar as caisas. Trata-se de urnobjeto com urn, dinamico, construfdo, ou pelo menos alimentado,por tadas os que 0 utilizam. Ele certamente adquiriu esse carater

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de apropriac;:ao c dc podcr ganham novo impulso, numa escalaainda maior. Dc lodo 0 rcillo animal, e 0 homem que pratica emmais alto grau 0 itupcri;llislllo territorial, a cac;:a impiedosa e aimplac;ivel dOlllill;ll;;io. Mas c tambem no homem que esses tiposde relacionalllclllo s;io 1ll0lllcntaneamente suspensos grac;:as a re-lac;:ao COIll 0 ohjclo.( :crtalllcnte a tecnociencia, 0 dinheiro e 0

ciberespa,'o l"al',('111do hOlm'1ll urn cac;:ador, urn proprietario, urndomilladOl' Illais alrrrOl'izalltc que nunca. Mas os grandes obje-tos cOlltclllpOr;ll1COSS(')Ihc conferem esses poderes forc;:ando-o asublllctcr-sc " cxpcril-Ilcia propriamente humana da renuncia apresa, da dcscn;iio do podcr c do abandono da propriedade, Aexperieneia da virtualizac;:ao.

E tempo agora de esclarecer os caracteres gerais do objetoantropologico, objeto-ligac;:ao ou mediador de inteligencia cole-tiva. Esse objeto deve ser 0 mesmo para todos. Mas, ao mesmotempo, e diferente para cada urn, no sentido em que cada urn seencontra, em relac;:aoa ele, numa posic;:ao diferente. 0 objeto marc aou trac;:a as relac;:6es mantidas pelos indivfduos uns frente aos ou-tros. Ele circula, ffsica ou metaforicamente, entre os membros dogrupo. Encontra-se, simulatanea ou alternadamente, nas maos detodos. Por esse motivo, cada urn pode inscrever nele sua ac;:ao,suacontribuic;:ao, seu impulso ou sua energia. 0 objeto permite naoapenas levar 0 to do ate 0 indivfduo mas tambem implicar 0 indi-vfduo no todo. Conti do e control ado pelos grupos que constitui,o objeto permanece no entanto exterior, "objetivo", uma vez quenao e membro do grupo como urn outro sujeito. Ele coloca emfuncionamento, portanto, uma especie de transcendencia girato-ria, pondo, de maneira alternada e passageira, cada localidade queele contata numa posic;:ao de agente central. Essa transcendenciadistribufda, esse centro deslocado de urn lugar a outro, constituicertamente uma das figuras maiores da imanencia. Finalmente, 0

objeto so se mantem ao ser mantido por todos e 0 grupo so se cons-titui ao fazer circular 0 objeto.

o objeto sustenta 0 virtual: desterritorializado, operador dapassagem recfproca do privado ao publico ou do local ao global,nao destrufdo por seu uso, nao exclusivo, ele trac;:a a situac;:ao,transporta 0 campo problematico, 0 no de tens6es ou a paisagempsfquica do grupo. Essa virtualidade em urn suporte objetivo atua-liza-se normalmente em acontecimentos, em processos sociais, ematos ou afetos da inteligencia coletiva (passes da bola, enunciac;:6esde uma narrativa, compras ou vendas, novas experiencias, liga-c;:6esacrescentadas a Web). Mas 0 objeto, em vez de conduzir atos,po de tambem degradar-se em coisa, em sujeito ou em substfmcia,reificar"se em presa, em territorio. Conforme a func;:ao que lhefazemos desempenhar, a mesma entidade pode ser coisa ou objeto.

o funcionamento de urn objeto como mediador de inteligenciacoletiva implica sempre urn contrato, uma regra do jogo, uma con-venc;:ao. Mas convem sublinhar que, por urn lado, a maior partedos contratos nao dizem respeito a circulac;:ao dos objetos e que,por outro, urn contra to (respectivamente: uma regra, uma conven-c;:ao,uma lei ... ) jamais e suficiente por si so para fazer emergir in-teligencia coletiva. 0 acontecimento raro nao e a imposic;:ao de urncontra to ou 0 estabelecimento de uma regra, mas a eclosao de urnobjeto. A titulo de exemplo, nao ha evidentemente objetos cientf-ficos sem convenc;:6es nem regras de metodo, mas e muito mais faci!proclamar receitas epistemologicas que fazer uma descoberta!

Poder-se-ia contar a historia da humanidade, a comec;:ar porseu nascimento, como uma sucessao de aparecimentos de obje-tos, cada urn deles indissociavel de uma forma particular de di-namica social. Entao se veri a que todo novo tipo de objeto induzurn estilo particular de inteligencia coletiva e que toda mudanc;:asocial consequente implica uma invenc;:ao de objeto. Na durac;:aoantropologica, os coletivos e seus objetos sao criados pelo mes-mo Illovimcnto. Dimensionada pel a circulac;:ao e 0 porte de seusobjctos (os do eiberespac;:o, da economia e da tecnociencia), euniea, IlCSSCC;lSO,em todo 0 reino animal, a especie humana ten-

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de a constituir uma s{>sociedade. Nao tendo os coletivos senao ainteligencia de sellS objetos, a humanidade devera aperfeic,;oar osseus, e ate mesmo inventar novos a fim de enfrentar a nova esca-la dos problemas. Esses objetos-mundo por vir, vetores de inteli-gencia coletiva, deverao tomar sensivel a cada individuo os efei-tos coletivos de sllas ac,;5es. Capazes de trazer a vida a imensidaojunto ao individllo, eles deverao sobretudo implicar cada urn, le-var em conta cada localidade singular na intotalizavel dinamicado conjunto. A objetividade na escala do mundo so surgira se formantida por todos, se circular entre as nac,;5es e fizer a humani-dade crescer em cultura.

A terra meteorologica, a terra dos tremores, a terra dos ele-fantes e das baleias, a terra do Amazonas e do Artico, a terra so-brevoada pelos sateIites, a terra enorme e pacifica, a Terra e azulcomo uma bola.

Explicamos anteriormente que a humanidade havia se cons-tituido ao virtualizar a violencia pelo contra to, 0 aqui e agora pelalinguagem e suas func,;5es organic as pela tecnica. Ora, 0 objeto,transversal, vem completar e unificar as tres virtualizac,;5es darelac,;ao com os seres, da relac,;ao com os signos e da relac,;ao comas COlsas.

Podemos acrescentar agora que a virtualizac,;ao da violencianao passa apenas pelo contrato mas tambem, e sobretudo, peloobjeto, que induz ligac,;5es sociais nao violentas porque escapama predac,;ao, a apropriac,;ao exclusiva e a dominancia.

Por outro lado, a virtualizac,;ao do aqui e agora operada pelalinguagem estende, como vimos, 0 tempo e 0 espac,;o para alemda imediatez sensorial. Mas esse processo de virtualizac,;ao so secompleta com a construc,;ao do objeto, urn objeto independentedas percepc,;5es e dos atos do sujeito individual, urn objeto cujaimagem sensivel, cujo manejo, cujo efeito causal ou cujo concei-

to possa ser compartilhado por outros sujeitos. 0 mundo objeti-vo que emerge na linguagem ultrapassa amplamente qualquermundo material que fosse povoado apenas por coisas. Tal e aquestao da linguagem: a existencia de urn mundo objetivo que,na mesma operac,;ao, liga os individuos e constitui os sujeitos.

Enfim, a tecnica virtualiza a ac,;aoe as func,;5esorganicas. Ora,a ferramenta, 0 artefato, nao sao apenas coisas eficazes. Os obje-tos tecnicos pass am de mao em mao, de corpo a corpo, como tes-temunhas. Eles induzem usos comuns, tomam-se vetores de com-petencias, mensageiros de memoria coletiva, catalisadores de coo-perac,;ao. Desde 0 primeiro biface ate os aeroportos e as redes di-gitais, da cabana original as metro poles sulcadas por vias expressase plantadas com arranha-ceus, objetos tecnicos e artefatos sao acola que mantem os homens juntos e implica 0 mundo fisico aomais intimo de sua subjetividade.

Assim, 0 objeto atravessa as tres virtualizac,;5es fundamen-tais da antropogenese, ele e constitutivo do humano como sujei-to social, sujeito cognitivo e sujeito pratico. Ele entrelac,;a e unifi-ca as subjetividades tecnica, da linguagem e relacional.

Se voce nao e urn animal, se sua alma e mais virtual, maisseparada da inercia que a de urn macaco ou de urn bisao, certa-mente e porque ela pode atingir a objetividade. Nossa subjetivi-dade se abre ao jogo dos objetos comuns que tecem num mesmogesto simetrico e complicado a inteligencia individual e a inteli-gencia coletiva, como 0 anverso e 0 reverso do mesmo tecido,bordando em cada face a marca indelevel e flagrante do outro.

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9.0 QUADRfvIO ONTOLOGICO: A VIRTUALIZAc.=Ao,UMA TRANSFORMAc.=Ao ENTRE OUTRAS

Chegou 0 momento de recapitular nossas descobertas. Avirtualiza<;ao, ou passagem a problern<itica, nao e de modo algumurn desaparecimento no ilusorio, nem uma desmaterializa<;ao.Convem antes assimiLi-la a uma "dessubstancia<;ao", como pu-demos verificar nos exemplos do corpo-chama, do texto-fluxo eda economia dos acontecimentos. Essa dessubstancia<;ao pode serdeclinada em muta<;6es associadas: a desterritorializa<;ao, 0 efei-to Moebius - que organiza 0 loop sem fim do interior e do exte-rior -, a coloca<;ao em comum de elementos privados e a in-tegra<;ao subjetiva inversa de itens publicos. Esse fenomeno depassagem ao coletivo e de retorno do comum ao individual foiestudado em detalhe nos dois capitulos precedentes sobre a vir-tualiza<;ao da inteligencia.

Chamemos subjetivagZio a implica<;ao de dispositivos tec-nologicos, semioticos e sociais no funcionamento psiquico e so-matico individual. Simetricamente, a objetivagZio sera definidacomo a implica<;ao mutua de atos subjetivos ao longo de urn pro-cesso de constru<;ao de urn mundo comum. Subjetiva<;ao e ob-jetiva<;ao sao assim dois movimentos complementares da virtua-liza<;ao. Com efeito, quando consideramos 0 que eles fazem, nemo sujeito nem 0 objeto sao substancias, mas nos flutuantes deacontecimentos que se interfaceiam e se envolvem reciprocamente.

Embora vivamos hoje sua acelera<;ao, a virtualiza<;ao nao eurn fenomeno recente. Como tentei mostrar ao analisar os desen-volvimentos da linguagem, da tecnica e das institui<;6es sociaiscomplexas, a especie humana se construiu na e pela virtualiza<;ao.o processo de virtualiza<;ao pode ser analisado em opera<;6es:

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- "gramat"iClis", rccorte de elementos virtuais, seqiiencia-memos, dupla articlIla<,;:lo;

- "diah~ticas", sllhstitui<;:oes, coloca<;:oes em corresponden-cia, processos rizolll:llicos de desdobramento' ,

- e "retoricas", clllcrgencia de mundos autonomos, cria<;:aode agenciamemos dc signos, de coisas e de indivlduos indepen-dentemente de qualqucr referencia a uma "realidade" previa e dequalquer utilidade. Atra ves das opera<;:oes retoricas, a virtualiza<;:aodesemboca na inven<;;lo dc novas ideias ou formas, na composi-<;:aoe recomposi<;:ao dessas ideias, no surgimento de "maneiras"originais, no crescimento de maquinas com memoria, no desen-volvimento de sistemas de a<;:ao.

Esta livro e consagrado a virtualiza<;:ao, ou seja, a contra-corrente da atualiza<;:ao, aos divers os movimentos e processos queconduzem ao virtual. Todavia, 0 real, 0 posslvel, 0 atual e 0 vir-tual san complementares e possuem uma dignidade ontologicaequivalente. Nosso proposito nao e certamente jogar 0 virtualcontra os outros modos de ser. Indissociaveis, ell'S formam jun-tos uma especie de dialetica de quatro palos, que vamos agoraexaminar. Antes de come<;:ar, gostaria no entanto de justificar 0

titulo deste capItulo. 0 termo quadrivio, ou via quadrupla, foiforjado por Boecio no seculo VI d.C. para designar os estudoscientlficos que deviam seguir 0 trivio (gramatica, dialetica e reto-rica), a saber: a aritmetica, a geometria, a musica e a astronomia.Esse prograllla de estudo, trivia e quadrivio - os sete pilares dasabedoria -, foi seguido pelas "faculdades das artes" da IdadeMedia europeia durante seculos. Apos esse desvio filol6gico, vol-temos a nossa questao das rela<;:oes entre posslvel, real, atual evirtual.

Posslvel e virtual tem evidentemente um tra<;:ocomum queexplica sua confusao tao freqiiente: ambos sao latentes, nao ma-

nifestos. Anunciam antes urn futuro do que oferecem uma pre-sen<;:a.0 real e 0 atual, em troca, sao um e outro patentes e ma-nifestos. Desdenhando as promessas, estao presentes e claramen-te presentes. De que maneira, entao, compreender a clivagem quesepara 0 posslvel l'oreal, de um lado, e 0 virtual e 0 atual, de

outro?Na esteira de Gilles Deleuze, eu escrevi no primeiro capItu-

lo que 0 real assemelha-se ao posslvel enquanto 0 atual respondeao virtual. Problematico por essencia, 0 virtual e como uma si-tua<;:ao subjetiva, uma configura<;:ao dinamica de tendencias, defor<;:as, de finalidades e de coer<;:oes que uma atualiza<;:ao resolve.A atualiza<;:ao e um acontecimento, no sentido forte da palavra.Efetua-se um ato que nao estava pre-definido em parte alguma eque modifica por sua vez a configura<;:ao dinamica na qual ell'adquire uma significa<;:ao.A articula<;:ao do virtual e do atual animaa propria dialetica do acontecimento, do processo, do ser comocriar,;Clo.

Em troca, a realiza<;:ao seleciona entre posslveis predetermi-nados, ja definidos. Poder-se-ia dizer que 0 posslvel e uma formaa qual uma realiza<;:ao confere uma materia. Essa articula<;:ao daforma e da materia caracteriza um polo da substcmcia, oposto ao

polo do acontecimento.Obtem-se assim urn quadro simples de quatro posi<;:oes em

que as duas colunas do latente e do manifesto cruzam-se com asduas linhas da substancia e do acontecimento. Posslvel, real, vir-tual e atual assumem naturalmente um lugar em suas respectivascasas. Cada um dell'S apresenta uma maneira de ser diferente.

o real, a substiincia, a coisa, subsiste ou resiste. 0 possivelcontem formas nao manifestas, ainda adormecidas: ocultas nointerior, essas determina<;:oes insistem. 0 virtual, como foi suficien-temente desenvolvido neste livro, nao esta aI, sua essencia esta nasaida: ell' existe. Enfim, manifesta<;:ao de urn acontecimento, 0 atualacontece, sua opera<;:ao e a ocorrencia.

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Latente cente. Postado junto a uma janelinha que separa dois comparti·mentos de urn recipiente fechado cheios de urn gas igualment(morno, esse minusculo demonio imaginario s6 deixa passar par"urn dos compartimentos as moleculas mais rapidas. Desta maneiraquase sem dispendio de energia, obter-se-ia ao cabo de certo tempeurn compartimento cheio de gas quente e outro de gas frio. A diferen'ra assim produzida e ela mesma uma fonte de energia potencial. A desordem ou a mistura indiferenciada sao combatidaipela capacidade de triagem ou de sele'rao fina do demonio e pOIurn dispositivo que assegura a irreversibilidade das referidas opera'roes (a janelinha). A potencializa'rao faz mais ou menos 0 trabalho do demonio de Maxwell. Em escala molecular, par ordenou reconstituir potenciais energetic os e a mesma coisa. 0 POsS!vel, ou diferen'ra de potencial, e identicamente uma forma, urn,estrutura ou uma reserva.

Realiza'rao e potencializa'rao pertencem ambas a ordem d,sele'rao: escolha molar entre os poss!veis, para a realiza'rao. Triagem molecular e reconstitui'rao de uma forma, para a potencializa'rao. Oponho aqui essa ordem da sele'rao a outro registro d,transforma'rao completamente diferente, 0 da cria'rao ou do devirao qual pertencem a atualiza'rao e a virtualiza'rao.

A atualiza'rao inventa uma solu'rao ao problema colocado pelcvirtual. Com isso, nao se contenta em reconstituir recursos, nenem colocar uma forma a disposi'rao de urn mecanismo de realiza<;ao. Nao: a atualiza<;ao inventa uma forma. Ela cria uma informa'rao radicalmente nova. Colocamos a causalidade eficiente do ladeda atualiza'rao porque 0 operario, 0 escultor, 0 demiurgo, sendlurn ser vivo e pensante, jamais pode ser reduzido a urn simpleexecutante: ele interpreta, improvisa, resolve problemas. A temporalidade da atualiza<;ao e ados processos. Para alem da descida dentropia (realiza<;ao) e seu retorno a contra-corrente (potencializa<;ao), 0 tempo criativo da atualiza<;ao tra'ra uma hist6ria, tramcreve uma aventura do sentido constantemente reposta em jogc

A virtualiz;H;i'io, enfim, passa do ato - aqui e agora - a,problema, aos Ilc')Sde coer<;oes e de finalidades que inspiram 0

Substancia

Acontecimento

Ora, essas maneiras de ser passam constantemente de umapara a outra, donde a defini<;ao de quatro movimentos ou trans-formafoes principais, que correspondem cada uma a formas decausalidade e de temporalidade diferentes. Vou agora sugerir umaanalogia entre 0 quadrivio onto16gico e as quatro causas de Aris-t6teles. Brevemente ilustrados no caso de uma estatua, eis quaiseram os tipos de causalidade distinguidos pelo Estagirita. A cau-sa material designa 0 marmore; a causa formal se une aos con-tornos do kouros [guerreiro nobre] que dormem na pedra ou noespirito do escultor antes que resplande<;am sob 0 sol de Delos; 0

pr6prio escultor, agente da a'rao, e a causa eficiente; enfim, a causafinal da estatua remete a seu uso, a sua utilidade: 0 culto de Apolo,por exemplo.

A realizafao, como ja sugerimos, pode ser assimilada a cau-salidade material: ela nutre de materia uma forma preexistente.Paralelamente, a realiza<;ao encarna uma temporalidade linear,mecanica, determinista. Dissipando irreversivelmente a energia uti-lizavel ou os recursos dispon!veis, a realiza'rao segue a encosta dosegundo principio da termodinamica, segundo 0 qual 0 crescimen-to da entropia num sistema fechado e inevitavel. A temporalidaderealizante cons orne, faz cair 0 potencial.

Lan<;ando-se do real ao possivel, a potencializafao, ou cau-sa formal, pode ser assimilada a uma subida a contra-corrente daentropia. A potencializa<;ao produz ordem e informa<;ao, recons-titui os recursos e reservas energeticos. Pode-se comparar sua ope-ra<;ao a do demonio imaginado pelo ffsico James Clerk Maxwell,que devia ser capaz de mudar a dire<;ao da lei da entropia cres-

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atos. ClassificarrnlOs, portanto, a causalidade final, a questao doporque, do lado da virtualizac;:ao. Na medida em que existem tan-tas temporaJidades quantos problemas vita is, a virtualizac;:ao mo-ve-se no tempo dos tcmpos. A virtualizac;:ao sai do tempo para en-riquecer a cternidadc. Ela e Fonte dos tempos, dos processos, dashistorias, j;i que comanda, sem determina-las, as atualizac;:oes.Criadora pOI"excclcncia, a virtualizac;:ao inventa questoes, proble-mas, dispositivos geradores de atos, linhagens de processos, ma-quinas de dcvi r.

Transforma<,:ao Defini<;:ao Ordem Causalidade Temporalidade

Realiza<;:ao Elei<;:ao, Sele<;:ao Material Mecanismoqueda depotencial

Potencializa<;:ao Produ<;:ao SeIe<;:ao Formal Trabalhode recursos

Atualiza<;:ao Resolu<;:ao Cria<;:ao Eficiente Processode problemas

Virtualiza<;:ao Inven<;:aode Cria<;:ao Final Eternidadeproblemas

As quatro transformac;:oes sao aqui distinguidas conceitual-mente. Se devessemos analisar, como as vezes foi feito ao longodeste Iivro, urn fenomeno particular, descobrirfamos uma misturainextricavel das quatro causas, dos quatro modos de ser, dasquatro passagens de uma maneira de ser a outra. Se a virtua-Iizac;:ao for bloqueada, a alienac;:ao se instala, os fins nao podemmais ser reinstituidos, nem a heterogenese cumprida: maquina-c;:oesvivas, abertas, em devir, transformam-se de subito em me-canismos mortos. Se for cortada a atualizac;:ao, as ideias, os fins,os problemas tornam-se bruscamente estereis, incapazes de resul-

tar na ac;:ao inventiva. A inibic;:ao da potencializac;:ao conduz in-falivelmente ao sufocamento, ao esgotamento, a extinc;:ao dosprocessos vivos. Se for impedida a realizac;:ao, enfim, os proces-sos perdem sua base, seu suporte, seu ponto de apoio, eles sedesencarnam. Todas as transformac;:oes saG necessarias e comple-

mentares umas das outras.

Longe de constituir os termos de uma classificac;:ao exclusi-va, a oposic;:ao possivellvirtual nunc a se encontra definitivamen-te resolvida e se recria a cada nova distinc;:ao. Por analogia, quandose corta urn [ma em dais, nao se obtem urn ima que repele e ou-tro que atrai, mas do is pequenos [mas completos, cada urn tendoseu polo positivo e negativo. Par exemplo, uma bigorna sera apro-ximada do polo do real (pois tern a ver com a subsrancia ou comaquilo que "resiste"), ao passo que a frase "No ana 2010 todosos carros que circulam na cidade serao eletricos" (relacionada aocorrencia) sera associada ao polo do atual. Mas posso, se dese-jar, decompor a Erase em dois elementos: uma questao implicita("Vamos realmente continuar a nos deixar envenenar desta ma-neira?") e a proposic;:ao que responde a essa questao ("Nao, ja queno ana 2010, etc."). A questclO sera dita virtualizante e a propo-sic;:aoantes potencializante, ja que pode adquirir varios valores deverdade predeterminados. Prosseguindo 0 trabalho de fragmen-tac;:ao, pode-se ainda dividir a proposic;:ao no surgimento de umahip6tese, que tern a ver com uma virtualizac;:ao: "No ano 2010,todos os carros, ete.", e em urn julgamento: "Esta hipotese e ver-dadeira", que e uma especie de realizac;:ao. 0 mesmo ocorre coma bigorna. Ela sera virtual como suporte de bricolagem inventivae de desvio, mas potencial como reserva de ferro, ferramenta ca-

paz de desgaste ete.Real, posslvel, atual e virtual saG quatro modos de ser dife-

rentes, mas quase sempre operando juntos em cada fenomeno

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concreto que se pode analisar. Toda situa<;ao viva faz funcionaruma especie de motor ontologico a quatro tempos e portantojamais deve ser "guardada" em bloco num dos quatro compar-timentos.

Estou escrevendo em meu computador COm0 auxilio de urnprograma de processamento de texto. Sob 0 aspecto puramentemednico, uma dialetica do potencial e do real esta operando,pois, de urn lado, as possibilidades do program a e da maquinase realizam e urn texto e apresentado (se realiza) na tela, resul-tante de toda uma serie de codifica<;6es e tradu<;6es bem deter-minadas. De outro lado, a energia eletrica potencializa a maqui-na e eu potencializo 0 texto ao selecionar codigos informaticospor intermedio do teclado.

Paralelamente, atualizo problemas, ideias, intui<;6es, coer<;6esde escrita ao redigir esse texto, cuja releitura modifica em troca 0espa<;o virtual de significa<;6es ao qual ele responde (0 que cons-titui portanto uma virtualiza<;ao).

Ve-se que os process os de potencializa<;ao e de realiza<;ao soadquirem sentido pela dialetica da atualiza<;ao e da virtualiza<;ao.simetricamente, os modos de realiza<;ao e de potencializa<;ao dotexto (0 aspecto puramente tecnico ou material, se preferirem)condicionam e influenciam fortemente a cria<;ao de uma mensa-gem significante (dialetica da virtualiza<;ao e da atualiza<;ao). Cap-turada pelo real, a dialetica do virtual e do atual e reificada. Re-tomada pelos process os de virtualiza<;ao e de atualiza<;ao, possi-vel e real san objetivados ou subjetivados. Assim, 0 polo do acon-tecimento nao cessa de implicar 0 p610 da substancia: comple-xifica<;ao e deslocamento dos problemas, montagem de maquinassubjetivantes, constru<;6es e circula<;6es de objetos. E deste modoque 0 mundo pensa dentro de nos. Mas, em troca, 0 polo da subs-tancia envolve, degrada, fixa e se alimenta do p610 do aconteci-mento: registro, institucionaliza<;ao, reifica<;ao.

Acontecimentoenvolvido

Substanciaenvolvida

Acontecimentoenvolvente

Virtualizac;:aoAtualizac;:ao

Subjetivac;:aoObjetivac;:ao

Substanciaenvolvente

Reificac;:aoInstitucionalizac;:ao

Realizac;:aoPotencializac;:ao

o aparente dualismo entre a substancia e 0 acontecimentoesconde talvez uma profunda unidade. Na filosofia de Whitehead,os term os ultimos da analise filos6fica - aquilo que e verdadei-ramente - san acontecimentos, chamados ocasi6es atuais. Asocasi6es atuais san especies de monadas transit6rias, processos depercep<;ao elementares, geralmente inconscientes, que recebemcertos dados de precedentes ocasi6es atuais, os interpretam, trans-mitem a outros sua sintese e desaparecem. Ainda que estejamosdispostos a admitir que as ocasi6es atuais sejam a ultima palavraem "acontecimento" da realidade, mesmo assim somas obriga-dos a constatar que ha de fato, pelo menos em aparencia, subs-tancias permanentes, coisas duraveis. Whitehead resolve 0 pro-blema explicando nossa experiencia das co isas duraveis em ter-mos de sociedades coordenadas de acontecimentos, que compar-tilham e transmitem entre si caracteres particulares. Uma pedra,por exemplo, e uma sociedade de ocasi6es atuais semelhantes, queherd am linearmente umas das outras seus dados e suas maneirasde reagir, 0 que explica que, num curto intervalo de tempo, a pedraconserve mais ou menos a mesma cor, a mesma dureza etc.

Para estabelecer a ponte entre a substancia e 0 acontecimen-to, poder-se-ia criar a hip6tese de que 0 acontecimento seria umaespecie de substancia molecular, miniaturizada, fragmentada ateo ato pontual. Simetricamente, a substancia nao seria senao aaparencia de uma sociedade de acontecimentos, uma multidao

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coordenada de microexperiencias grosseiramente agregadas naimagem de uma "coisa": em suma, acontecimento molar.

Alias, por Illais duraveis que sejam, nao podem as coisasmais estaveis ser itltcrpretadas como acontecimentos em relac;:aoa uma durac;:ao que as ultrapassa, como a existencia de monta-nhas na escala da historia da Terra? 0 raciocfnio po de evidente-mente se inverter: 0 que e urn acontecimento senao 0 desapare-cimento ou 0 surgimento de uma substancia, ou mesmo umasubstancia evanescente?

Talvez caiba considerar 0 dualismo da substancia e do acon-tecimento como 0 yin e 0 yang na filosofia chinesa classica: ha-veri a passagem, transformac;:ao perpetua de urn no outro. Cadaurn deles exprime uma face nao eliminavel e complementar dosfenomenos, como a onda e a partfcula na fisica quantica.

Polo do Processo Polo doIatente manifesto

Ordem daselec;:ao

!o POTENCIAL OREAL

[/)~Conjunto de Coisas'ul::

possibilidades persistentes e<~...,[/)

predeterminadas resistentes..0;:l[/)

INSISTE prodw;:iio de SUBSISTErecurs os

Ordem dacriac;:ao

Soluc;:ao particulara urn problema,

aqui e agora

Problemas.Nos de tendencias,

de coerc;:6es, deforc;:as e de

objetivos remontar inventivo

EXISTE de uma solu~iio a ACONTECEL-~~~~~~~---" uma problematica L~~~~~~~---"

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EpflogoBENVINDOS AOS CAMINHOS DO VIRTUAL

Gosto do que e fragil, evanescente, unico e carnal. Aprecioas seres e as lugares singulares, insubstitufveis, as atmosferas liga-das para sempre a situa~6es e a momentos. Estou convencido deque parte essencial da moral consiste simplesmente em aceitar existirno mundo, em nao fugir, em estar presente para as outros e parasi. Mas a assunto deste livro era a virtualiza~ao. Tratei portantoda virtualiza~ao. Isto nao implica a esquecimento das outras fa-ces do ser; e incito evidentemente, se houver necessidade disso, aleitora, a leitor a nao negligencia-Ias. E justamente porque a atuale tao precioso que devemos com a maior urgencia pensar e aclimatara virtualiza~ao que a desestabiliza. Creio que a sofrimento de sub-meter-se a virtualiza~ao sem compreende-Ia e uma das principaiscausas da loucura e da violencia de nosso tempo.

Quis mostrar neste livro que a virtualiza~ao e a movimentopelo qual se constituiu e continua a se criar nossa especie. Noentanto, ela e frequentemente vivida como inumana, desumani-zante, como a mais aterradora das alteridades em curso. Ao ana-lisa-Ia, ao pensa-Ia, ao enaltece-Ia as vezes, tentei humaniza-Ia,inclusive no que diz respeito a mim. Muitos intelectuais atualmen-te, orgulhosos de seu papel "crftico", acreditam fazer alga dignoao espalhar a confusao e a panico a respeito da civiliza~ao emer-gente. Quanta a mim, por urn trabalho de coloca~ao em palavras,de constru~ao de conceitos e de integra~ao a cultura, quis acom-panhar alguns de meus contemporaneos em seu esfor~o para vi-ver com urn pouco menos de medo e de ressentimento. Quis pro-par ferramentas, atraves de uma cartografia do virtual, aquelesque, como eu, tent am com grande dificuldade se tamar atores.

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A virtualidade nilo tern absolutamente nada a ver com aquiloque a televisao mostra sohre ela. Nao se trata de modo algum deurn mundo falso ou imaginario. Ao contrario, a virtualiza\=ao e adin arnica mesma do Illundo comum, e aquilo atraves do qual com-partilhamos UIWl realidade. Longe de circunscrever 0 reino damentira, 0 virtual c precisamente 0 modo de existencia de quesurgem tanto a verdade como a mentira. Nao h:i verdadeiro e falsoentre as forllligas, os peixes ou os lobos: apenas pistas e engodos.Os animais nao tern pensamento proposicional. Verdade e falsi-dade silo indissociaveis de enunciados articulados; e cada enun-ciado subentende uma questao. A interroga\=ao e acompanhadade uma estranha tensao mental, desconhecida entre os animais.Esse vacuo ativo, esse vazio seminal e a essencia me sma do virtual.Lan\=o a hipotese de que cada saito a urn novo modo de virtua-liza\=ao, cada alargamento do campo dos problemas abrem novosespa\=os para a verdade e, por conseqiiencia, igualmente para amentira. Viso a verdade logica, que depende da linguagem e daescrita (dois grandes instrument os de virtualiza\=ao), mas tambemoutras formas de verdade, talvez mais essenciais: as que sao ex-pressas pela poesia, religiao, filosofia, ciencia, tecnica, e finalmenteas humildes e vitais verdades que cada urn de nos testemunha emsua existencia cotidiana. Uma das mais interessantes entre as viasabertas as pesquisas artisticas contemporaneas e provavelmentea descoberta e a explora\=ao das novas formas de verda de obscu-ramente arrastadas pela dinamica da virtualiza\=ao.

A arte po de tornar perceptivel, acessivel aos sentidos e asemo<;<-)es° salto vertiginoso para dentro da virtualiza<;ao que efe-tuamos tao freqiientemente as cegas e contra nossa vontade. Masa arte pode tambem intervir ou interferir no processo. A arquite-tura e 0 design fundamentais de nosso tempo acaso nao sao osdo hipercorpo, do hipercortex, da nova economia dos aconteci-mentos e da abundancia, do flutuante espa\=o dos saberes? Os ar-tistas supostamente exprimiram a si proprios apenas durante urnperiodo muito curto da historia da arte. Muitas pesquisas esteti-cas contemporaneas retornam a praticas arcaicas que consistem

em dar consistencia, em ceder uma voz a criatividade cosmica.Assim, para 0 artista, trata-se menos de interpretar 0 mundo deque permitir que processos biologicos atuais ou hipoteticos, queestruturas matematicas, que dinamicas socia is ou coletivas tomemdiretamente a palavra. A arte nao consiste mais, aqui, em com-por uma "mensagem", mas em maquinar urn dispositivo que per-mita a parte ainda muda da criatividade cosmica fazer ouvir seuproprio canto. Urn novo tipo de artista aparece, que nao contamais historia. E urn arquiteto do espa\=o dos acontecimentos, urnengenheiro de mundos para bilhoes de historias por vir. Ele es-

cui pe 0 virtual.Falo de arte e de estetica porque, como muitos, a conster-

na\=ao me invade assim que considero a instancia polftica tradicio-nal. Mas trata-se, no fim de contas, de fazer prevalecer uma preo-cupa({iio artistica, criterios propriamente esteticos (os que acaba-mos de evocar), urn espirito de cria\=ao no seio mesmo da a\=aopolftica, assim como na engenharia mais "puramente tecnica" ou- por que nao? - nas praticas economicas.

Por que essa arte transversal deve intervir ativamente nadinamica da virtualiza\=ao? Porque a atualiza\=ao tende com fre-qiiencia para a realiza\=ao. Porque a heterogenese pode degenerarem aliena\=ao. Porque a inven\=ao de uma nova velocidade se de-teriora facilmente em simples acelera\=ao. Porque a virtualiza\=aoacaba as vezes por desqualificar 0 atual. Porque a coloca\=ao emcomum, que e a opera\=ao caracterfstica da virtualiza\=ao, oscilamuito freqiientemente entre 0 confisco e a exclusao. E preciso umasensibilidade de artista para perceber em estado nascente essasdiferen\=as, essas defasagens, nas situa\=oes concretas. Quando 0

possive! esmaga 0 virtual, quando a substancia sufoca 0 aconte-cimento, 0 pape! da arte viva (ou arte da vida) e restabe!ecer 0

equilfbrio.A for\=a e a ve!ocidade da virtualiza\=ao contemporanea sao

tao grandes que exilam as pessoas de seus proprios saberes, ex-pulsam-nas de sua identidade, de sua profissao, de seu pais. Aspessoas sao empuradas nas estradas, amontoam-se nos barcos,

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acotovelam-se nos aeroportos. Outros, ainda mais numerosos,verdadeiros imigrados da subjetividade, sao fon;:ados a urn no-madismo do interior. Como responder a essa situa~ao? Resistin-do a virtualiza~ao, crispando-se sobre os territorios e as identi-dades amea~adas? Este e 0 erro fatal que nao deve ser cometidode forma alguma. Pois a conseqiiencia so pode ser, com 0 tempo,o desencadeamento da violencia brutal, como os terremotos de-vastadores que resultam da inelasticidade e do bloqueio mantidopor demasiado tempo por alguma placa da crosta terrestre. De-vemos antes tentar acompanhar e dar sentido a virtualiza~ao,inventando ao mesmo tempo uma nova arte da hospitalidade. Amais alta moral dos nomades deve tornar-se, neste momenta degrande desterritorializa~ao, uma nova dimensao estetica, 0 pro-prio tra~o da cria~ao. A arte, e portanto a filosofia, a politica e atecnologia que ela inspira e atravessa, deve opor uma virtualiza~aorequalificante, inclusiva e hospitaleira a virtualiza~ao pervertidaque exclui e desqualifica.

Preste aten~ao a interpela~ao desta arte, desta filosofia, destapolitica inedita: "Seres humanos, pessoas daqui e de toda parte,voces que sao arrastados no grande movimento da desterrito-rializa~ao, voces que sao enxertados no hipercorpo da humanidadee cuja pulsa~ao ecoa as gigantescas pulsa~6es deste hipercorpo,voces que pensam reunidos e dispersos entre 0 hipercortex dasna~6es, voces que vivem capturados, esquartejados, nesse imen-so acontecimento do mundo que nao cessa de voltar a si e de re-criar-se, voces que sao jogados vivos no virtual, voces que saopegos nesse enorme salto que nossa especie efetua em dire~ao anascente do fluxo do ser, sim, no nucleo mesmo desse estranhoturbilhao, voces estao em sua casa. Benvindos a nova morada dogenero humano. Benvindos aos caminhos do virtual!"

AUROUX,Sylvain. La revolution technologique de la grammatisation, Mar-daga, Liege, 1994.Uma engenhosa analise das operac;:6es de exteriorizac;:ao e de forma-lizac;:aodos atos de comunicac;:ao, por urn historiador da lingiiistica.

AUTHIER,Michel e LEVY,Pierre. Les arbres de connaissances, La Decouverte,

Paris, 1992.Como introduzir a dupla articulac;:ao e a liberdade do virtual no reco-nhecimento dos saberes? "Les arbres de connaissances" sao uma mar-ca registrada da sociedade TriVium.

AUTHIER,Michel. "IIne manque que Ie ballon!", documento fotocopiado damissao Universidade da Franc;:a, 1991,4 p.Texto fulgurante que contem em potencia as arvores de conhecimen-to como "quase-objetos" das sociedades contemporaneas e que proje-ta 0 esboc;:ode urn "equivalente geral" para 0 saber.

BALPE,Jean-Pierre. Hyperdocuments, hypertextes, hipermedias, Eyrolles,Paris, 1990.Urn obra ja classica sobre hipertextos por urn dos melhores especialis-

tas franceses.

BATESON,Gregory. Vers une ecologie de l'esprit (2 voL), Seuil, Paris, 1980.BATESON,Gregory. La Nature et la Pensee, Seuil, Paris, 1984.

Gregory Bateson, antrop6logo, cibernetico, epistem6logo, foi urn dosprimeiros a pensar a dimensao "ecoI6gica" do psiquismo. Seus traba-lhos influenciaram profundamente a escola contemporanea de terapia

familiar.

BERARDI,Franco. Mutazione e cyberpunk, Costa & Nolan, Genova, 1994.Uma analise original da mutac;:ao cultural contemporanea relacionadaao desenvolvimento do ciberespac;:o. Franco Berardi evidencia a novi-dade radical da relac;:ao contemporanea com a informac;:ao.

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DEBRAY,Regis. Manili'sit's lIIediologiques, Gallimard, Paris, 1994.Arrazoado em favor de uma tomada de consciencia das dimensoes"materiais" das ideias e cia cultura.

GOLDFINGER,Charles. L'utile et Ie futile. L'economie de l'immateriel, OdileJacob, Paris, 1994.Urn livro muito bem documentado sobre a muta\=ao atual da econo-mia. Meu capitulo sobre a virtualiza\=ao da economia Ihe deve muito.Contesto, to davia, 0 conceito de "imaterialidade", que me parece pro-ceder de uma metafisica inadequada para a compreensao das evolu-\=oesem curso.

DE KERCKHOVE,Derrick. Hrainframes. Technology, Mind and Business, Bosh& Keuning BSO/ORIGIN, Utrecht, 1991.Urn brilhante ensaio de "psicotecnologia" pelo digno sucessor de Mar-shall McLuhan na universidade de Toronto.

DE ROSNAY,Joel. L'Homme symbiotique, Seuil, Paris, 1995.Uma impressionante descri\=ao da emergencia de uma inteligencia co-letiva da humanidade nas redes digitais de comunica\=ao. Lamenta-se

, 'porem, um uso demasiado exclusivo das metaforas biologicas, queImpedem as vezes Joel de Rosnay de situar claramente a dimensaopropriamente humana da inteligencia coletiva. Do formigueiro a cul-tura ha mais do que uma diferen\=a de grau.

DELEUZE,Gilles. Difference et repetition, PUF, Paris, 1968.Aprendi nessa obra a diferen\=a entre 0 possivel e 0 virtual, sobretudonas paginas 169 a 176.

DELEUZE,Gilles e GUATTARI,Felix. L'Anti-CEdipe, Minuit, Paris, 1972.DELEUZE,Gilles e GUATTARI,Felix. Milles plateaux, Minuit, Paris, 1980.

L 'Anti-CEdi/Je e Mille plateaux figuram entre as grandes obras filoso-ficas do seculo xx. Nelas se encontram desenvolvidos, em particular,os conceitos de rizoma, de desterritorializa\=ao e a distin\=ao entre proces-sos molares l' ll10lcculares de que usei e abusei em varios de meus livros.

DESCOLA,Philippe. I,es Lances du crepuscule, Pion, Paris, 1993.Bclo est'lido sohre a cliitura jivaro. Da cabe\=areduzida do inimigo comoprecursora da hola.

GOODY, Jack. La Raison graphique, Minuit, Paris, 1979.GOODY, Jack. La Logique de l'ecriture, £lUX origines des societes humaines,

Armand Colin, Paris, 1986.La raison graphique e La logique de l'ecriture analisam as mudan\=asculturais ligadas a passagem da oralidade a escrita. Por. urn grandeantropologo, autor do conceito de "tecnologia intelectual".

GUATTARI,Felix. Chaosmose, Galilee, Paris, 1992.Em particular, encontra-se neste pequeno livro urn sistema (ja apre-sentado nas Cartographies schizoanalytiques) dos "quatro functoresontologicos" baseado no cruzamento do virtual, do atual, do real e dopossivel.

Phylum tecnicos, oudiscursividade maquinica

Universos de val ores e dereferencia, ou complexidadeincorporal

Fluxo, ou discursividadeenergetico-espa\=o-temporal

Territorios existenciais,ou encarna\=ao caosmica

EDELMAN,(;l'rald. Hiologie de la conscience, Odile Jacob, Paris, 1992. Ree-ditaclo elll livro de ho!so pela Seuil em 1994. Edi\=ao original: BrightAir, Brillianl Fire: on the Matter of Mind, Basic Books, 1992.A hip6tese do darwinismo neuronal explicada por um de seus criado-res, premjo Nohel de meclicina.

ETTIGHOFFER,Denis. L 'entreprise virtuelle ou les nouveaux modes de travailOdile Jacoh, Paris, 1992. 'Sobre 0 teletrahalho e a empresa em rede.

EUROTECHNOPOLISINSTITUT,soh a dire\=ao de Gerard BLANC.Le Travail auXXle siixle, Dunod, Paris, 1995.Sobre as muta\=oes contemporaneas do trabalho.

HEIDEGGER,Martin. Etre et temps (tradu\=ao francesa de Fran\=ois Vezin),Gallimard, Paris, 1986. Primeira edi\=ao alema: Sein und Zeit, 1927.A existencia concebida como "ser ai". Ontologia contestada por MichelSeres em Atlas.

HUITEMA,Christian. Et Dieu crea !'Internet, Eyrolles, Paris, 1995.Uma divertida desmistifica\=ao da rede das redes por um de seus me-Ihores conhecedores.

LATOUR,Bruno. La Science en action, La Decouverte, Paris, 1989.Um classico da nova antropologia das ciencias e da tecnica. sera inte-ressante aproximar a no\=ao de "move! imutavel" desenvolvida em LaScience en action da no\=ao de objeto construida em meu livro.

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LATOUR,Bruno. La Clef de Berlin, La Decouverte, Paris, 1993.Estudos de antropologia das ciencias e tecnicas por urn ourives no as-sunto. Os dois primeiros capitulos do livro tratam especialmente so-bre 0 funcionamcnto da substituic;:ao e da combinac;:ao no fato tecnico.

LEOPOLDSEDER,Hannes e SCHOPF, Christine. Prix Ars electronica 95, In-ternational compendium of the computer arts, ORF, Linz, 1995.Encontra-se nesta obra coletiva urn artigo-manifesto de Roy Ascott, pio-neiro das artes em rede, "a favor de uma estetica do aparecimento",bem como urn texto de Derrick de Kerckhove que analisa a arte da Webe a Web como arte.

McLuHAN, Marshall. La Galaxie Gutenberg. Face a ['ere electronique, HMHLtee, Montreal, 1967.Urn dos livros que fizeram compreender 0 papel capital das tecnicasde comunicac;:ao na evoluc;:ao cultural e na formac;:ao do psiquismo.Critico sua abordagem demasiado unilateral dos meios de comunica-c;:aocomo "prolongamento dos sentidos".

RASTIER,Franc;:ois. "La triade semiotique, Ie trivium et la semantique lin-guistique", Nouveaux Actes semiotiques, no 9, 54 p., 1990.Por urn dos melhores lingiiistas franceses, urn estudo engenhoso daanalogia entre a classificac;:ao moderna "sintaxe, semantica e pragma-tica" eo antigo trivio "gramatica, dialetica e retorica". Franc;:oisRastiermostra a relac;:ao entre essas tripartic;:6es e a tria de semiotica de base:significante, significado, referente, ou ainda vox, conceptus e res. Mi-nha concepc;:ao do trivio antropologico deriva da leitura desse artigo.

REICHHOLF,Joseph. Mouvement animal et evolution. Courir, voler, nager,sauter, Flammarion, Paris, 1994. Edic;:aooriginal em alemao pela Deut-scher Taschenbiicher Verlag, Munique, 1992.Movimento, locomoc;:ao e velocidade, no mundo animal e vivo. A vir-tualizac;:ao pela mobilidade.

RHEINGOLD,Howard. Les Communautes virtue lies, Addison Wesley, Paris,1995. Ed. original: Virtual Community, Addison Wesley, Nova York,

1993.Howard Rheingold participou ele proprio, durante dez anos, de umacomunidade virtual. 0 livro contem, em particular, urn precioso his-torico da comunicac;:ao assistida por computadores e urn estudo inte-ressante dos MUDS, jogos de papeis em redes de computadores.

RHEINGOLD,Howard. La Realite virtuelle, Dunod, Paris, 1993. Edic;:aoori-ginal: Virtual Reality, Simon & Schuster, Nova York, 1991.Uma das melhores obras sobre 0 assunto para 0 grande publico, comvulgarizac;:ao tecnica, historica e apresentac;:ao dos atores.

SERRES,Michel. Le Parasite, Grasset, Paris, 1980.Urn grande livro de antropologia filosofica. Michel Serres trata sob 0

mesmo angulo de relac;:6es sociais, biologia, teoria da comunicac;:ao emetafisica. E em Le Parasite que se acha enunciada pela primeira veza teoria do quase-objeto que, ao circular, constitui 0 coletivo.

SERRES,Michel. Statues, Franc;:ois Bourin, Paris, 1987.Excelente meditac;:ao sobre a passagem continua do objeto ao sujeito edo sujeito ao objeto.

LEROI-GOURHAN,Andre. Le Geste et la parole, tomos 1 e 2, Albin Michel,Paris, 1965.Uma referencia inevitavel da antropologia e da filosofia da tecnica. Devomuito a seu paralelismo da evoluc;:aoda linguagem e da tecnica ao longoda hominizac;:ao. Pode-se, no entanto, criticar uma concepc;:ao demasia-do simplista da ferramenta como prolongamento dos orgaos.

LEVY,Pierre. De la programmation consideree comme un des beaux-arts, LaDecouverte, Paris, 1992.Coletanea de estudos critic os de ecologia cognitiva. Analise detalha-da, sobre quatro casos concretos, do trabalho inventivo e criativo quee a programac;:ao informatica "artesanal".

LEVY,Pierre. Les Technologies de ['intelligence. L'avenir de la pensee a ['ereinformatique, La Decouverte, Paris, 1990. Reedic;:ao em livro de bol-so: Seuil, Paris, 1993.Uma abordagem filosofica do hipertexto, dos group wares e da simu-lac;:ao.0 livro analisa relac;:6es entre tecnologias intelectuais e formasculturais a luz das ciencias cognitivas, e enuncia 0 program a de pes-quisa de uma "ecologia cognitiva".

LEVY,Pierre. L'Inteligence collective. Pour une anthropologie du cyberspace,La Decouverte, Paris, 1994.A inteligencia coletiva como projeto de civilizac;:ao,recolocado em pers-pectiva por uma teoria dos quatro espac;:osantropologicos: Terra, Ter-ritorio, Mercadoria, Saber.

MAYERE,Anne. Pour une economie de ['information, Editions du CNRS,Paris, 1990.A economia da informac;:ao do ponto de vista dos documentalistas edos bibliotecarios.

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SERRES,Michel. Atl'ls, .Iulliard, Paris, 1994.Urn belo livro sohre a nova civiliza"iio ligada a informatica e a muta-"iio das cOl11unica~i)cs.A obra apresenta igualmente uma analise inte-ressante do virtual como "fora-do-ai". Pen a que Michel Serres niiotenha se dado 0 trahalho de distinguir entre os diferentes dispositivosde COl1llll1il';l~'iio,os cfeitos da televisiio sendo com freqliencia mistu-rados aos da Internet!

SHAPIN, Stl~ven e SCl lAFFER,Simon. Leviathan et la pompe Ii air, La De-couverte, Paris, 1993. Edi"iio original: Leviathan and the Air Pump,Princeton University Press, 1985.A conslTlH,iio movimentada da comunidade cientifica "experimenta-lista" no scculo XVII. Na qual percebemos que a ciencia contempora-nea se constituiu ao produzir para si objetos comuns.

SPERBER, Dan. "Anthropology and psychology, towards an epidemiologyof representations", Man, NS, n° 20, p. 73-89.Poe em cena a analogia entre virus e representa"oes mentais. A epi-demiologia das representa"oes varia, evidentemente, conforme os sis-temas de comunica"iio presentes no ambiente cultural. Esse artigo per-mitiu-me pensar em urn mesmo "plano de imanencia" os dispositivosmateriais e as fun"oes psiquicas.

STENGERS,Isabelle. L'Invention des sciences modernes, La Decouverte, Pa-ris, 1993.A ciencia e com preen did a aqui como inven"oes de provas capazes desuscitar coletivos. Este livro de Isabelle Stengel's permite uma aprecia-"ao do valor unico da ciencia moderna sem, contudo, desqualificaroutros modos de conhecimento e de interroga"iio do real. Do humorcomo fundamento sem fundamento da etica do conhecimento.

STENGERS,Isabelle, (arg.). L'Effet Whitehead, Vrin, Paris, 1994.Obra coletiva que constitui uma boa introdu"iio a leitura de Whitehead.Descobre-se uma grande filosofia do acontecimento e da criatividade.

TOFFLER,Alvin. Les Nouveaux pouvoirs, Fayard, Paris, 1991. Edi"ao origi-nal: Powershift, Bantham Books, Nova Yark, 1990.Urn pouco confuso mas repleto de informa"oes sobre a virtualiza"iiocontemporanea da economia e da sociedade.

TOFFLER,Alvin e Heidi. Guerre et contre-guerre, Fayard, Paris, 1994. Edi-"iio original: War and Anti-War, Little, Brown & Co, Nova York, 1993.A virtualiza"ao da guerra como reveladora da muta"ao em andamento.

WHITEHEAD,Alfred North. Aventures d'idees, Le Cerf, Paris, 1993. Edi"iiooriginal: Adventures of ideas, Macmillan, 1933. _o progresso da civiliza"iio visto C0l110a vit6ria da persuasao sobre afor"a, com urn resumo do sistema metafisico do autor.

WHITEHEAD,Alfred North. Procr!s et realite, Gallimad, Paris, 1995. Edi"aooriginal: Process and Reality, Macmillan, 1929. .,'A ocasiiio atual, acontecimento elemental', gota de exper~ncla, f1~xomicrosc6pico de percep"ao afetiva (a distinguir da sensa"ao .consclen-tel como realidade ultima. Filosofia do acontecimento e da cnatlVldade

c6smica.