Pierre Levy - AS TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA

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7/27/2019 Pierre Levy - AS TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA http://slidepdf.com/reader/full/pierre-levy-as-tecnologias-da-inteligencia 1/165 AS TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA Pierre Levy AS TECNOLOGIAS DA INTELIGENCIA O Futuro do Pensamento na Era da Informática LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência ¥Zintelig1.txt## Um dos principais agentes de transforma  ão das sociedades atuais a tcnica. Ou me lhor, as tcnicas, sob suas diferentes formas, com seus usos diversos, e todas as implicaões que elas tm sobre nosso cotidiano e nossas atividades. Por tr s daquilo que ¢bvio, es tas tcnicas trazem consigo outras modifica  ões menos percept¡veis, mas bastante per vasivas: alteraões em nosso meio de conhe cer o mundo, nas forma de representar este conhecimento, e na transmissão destas repre sentaões atravs da linguagem. Dentre a grande quantidade de tcnicas existentes, L vy decidiu privilegiar, nesta an lise, as tcnicas de transmissão e de tratamen to das mensagens, uma vez que são as que transformam os ritmos e modalidades da co municaão de forma mais direta, contribuin do para redefinir as organizaões. Em um momento dado, a significaão e o papel de uma configuraão tcnica não po dem ser separados de um projeto social mais amplo que move esta configuraão. impor tante tambm compreender o est gio atual das tcnicas como resultado de uma srie de disputas entre os diversos atores sociais, de projetos rivais constantemente em choque, de novas descobertas imprevistas que podem al terar radicalmente o uso, e portanto o senti do e o destino de um dado objeto "tcnico". Uma certa configuraão de tecnologias intelectuais em um dado momento abre cer tos campos de possibilidades (e não outros) a uma cultura. Quais possibilidades? O que   a tcnica, e como influencia os diferentes aspectos de nossa sociedade? Em que medi da indiv¡duos ou projetos singulares conse guem alterar os usos e sentidos da t cnica? A tcnica necessariamente racional e utilit ria? L vy propõe aqui o fim da pretensa oposi  ão entre o homem e a m quina. Ataca tam bm o mito da "tcnica neutra", nem boa, nem m . Mostra como ela est sempre associada a Pierre Levy AS TECNOLOGIAS DA INTELIGENCIA

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AS TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIAPierre Levy

AS TECNOLOGIASDA INTELIGENCIA

O Futuro do Pensamento na Era da Informática

LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência

¥Zintelig1.txt## Um dos principais agentes de transforma  ão das sociedades atuais a tcnica. Ou me

lhor, as tcnicas, sob suas diferentes formas,com seus usos diversos, e todas as implicaõesque elas tm sobre nosso cotidiano e nossasatividades. Por tr s daquilo que ¢bvio, estas tcnicas trazem consigo outras modifica

  ões menos percept¡veis, mas bastante pervasivas: alteraões em nosso meio de conhecer o mundo, nas forma de representar esteconhecimento, e na transmissão destas representaões atravs da linguagem.Dentre a grande quantidade de tcnicas

existentes, Lvy decidiu privilegiar, nesta an lise, as tcnicas de transmissão e de tratamento das mensagens, uma vez que são as quetransformam os ritmos e modalidades da comunicaão de forma mais direta, contribuindo para redefinir as organizaões.Em um momento dado, a significaão e

o papel de uma configuraão tcnica não podem ser separados de um projeto social maisamplo que move esta configuraão. importante tambm compreender o est gio atualdas tcnicas como resultado de uma srie dedisputas entre os diversos atores sociais, de

projetos rivais constantemente em choque, denovas descobertas imprevistas que podem alterar radicalmente o uso, e portanto o sentido e o destino de um dado objeto "tcnico".Uma certa configuraão de tecnologias

intelectuais em um dado momento abre certos campos de possibilidades (e não outros)a uma cultura. Quais possibilidades? O que

  a tcnica, e como influencia os diferentesaspectos de nossa sociedade? Em que medida indiv¡duos ou projetos singulares conseguem alterar os usos e sentidos da tcnica? Atcnica necessariamente racional e utilit ria?

Lvy propõe aqui o fim da pretensa oposi  ão entre o homem e a m quina. Ataca tambm o mito da "tcnica neutra", nem boa, nemm . Mostra como ela est sempre associada a

Pierre Levy

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O Futuro do Pensamento na Era da Informática

TraduãoCarlos Irineu da Costa

Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 jardim Europa CEP O1455000São Paulo SP Brasil Tel/Fax (011) 8166777

Copyright O Editora 34 Ltda. (edião brasileira), 1993Les technologies de l'intelligence (D éditions La Dcouverte, Paris, 1990

A FOTOC¢PIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO ILEGAL, E CONFIGURA UMA

APROPRIAÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Titulo original:Les tecbnologies de l'intelligence

Capa, projeto gr fico e editoraão eletr"nica:Bracber & Malta Produão Gr fica

 Revi o tcnica:]vana Bentes

  Revisão:Wendell Set£bal

 V Edião 1993, 6" Reimpressão 1998

 CIP Brasil. Cata logaãonafonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

 Lvy, Pierre, 1956

L65t As tectiologias da inteligncil / Pierre Lvy; traduaode Carios Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993208 p. (Cole...o TRANS)

  Traduo de : Les technologies de l'intelligence 

ISBN 8585490152 

1. Inform tica Aspectos sociais 2. Intelignciaartificial. 3. Cincia Filosofia. 1. T¡tulo. 11. Srie.

 930543

 CUD 303.483CDU O07.5

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AS TECNOLOGIAS DA INTELIGÒNCIAO Futuro do Pensamento na Era da Inform tica

 Introduão

Face ... Tcnica 7

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 I

A METµFORA Do HIPERTEXTO 

1. Imagens do Sentido 212. O Hipertexto 28

3. Sobre a Tcnica Enquanto Hipertexto O Computador Pessoal 434. Sobre a Tcnica Enquanto Hipertexto A Pol¡tica das Interfaces 51

5. O Groupware 626. A Met fora do Hipertexto 70

 il

Os TRÒs TEMPOS Do ESPIRITC:A ORALIDADE PRIMµRIA, A ESCRITA E A INFORMµTICA

 7. Palavra e Mem¢ria 76

8. A Escrita e a Hist¢ria 879. A Rede Digital 10110. O Tempo Real 114

11. O Esquecimento 130 

IIIRumo · UMA EcoLo(;IA COGNITIVA

 

12. Para Alm do Sujeito e do Objeto 13513. As Tecnologias Intelectuais e a Razão 15214. As Coletividades Pensantes e o Fim da Metafisica 163

15. Interfaces 176 

ConclusãoPor uma Tecnodemocracia 185

 Bibliografia Geral 199

INTRODUÇO:FACE · TCNICA

 Novas maneiras de pensar ede conviver estão sendo elaboradas

no mundo das telecomunicaões e da inform tica. As relaões entre

os homens, o trabalho, a pr¢pria inteligncia dependem, na verdade,da metamorfose incessante de dispositivos informacionais de todos ostipos. Escrita, leitura, visão, audião, criaão, aprendizagem são capturados por uma inform tica cada vez mais avanada. Não se podemais conceber a pesquis~i cient¡fica sem uma aparelhagem complexaque redistribui as antigas divisões entre experincia e teoria. Emerge,neste final do sculo XX, um conhecimento por simulaão que os epistemologistas ainda não inventariaram.

Na poca atual, a tcnica uma das dimensões fundamentaisonde est em jogo a transformaão do mundo humano por ele mes~

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mo. A incidncia cada vez mais pregnante das realidades tecnoecon"micas sobre todos os aspectos da vida social, e tambm os deslocamentos menos visiveis que ocorrem na esfera intelectual obrigamnos a reconhecer a tcnica como um dos mais importantes temas filos¢ficos e pol¡ticos de nosso tempo. Ora, somos forados a constatar o distanciamento alucinante entre a natureza dos problemas colocados ... coletividade humana pela situaão mundial da evoluãotcnica e o estado do debate "coletivo" sobre o assunto, ou antes dodebate medi tico.

Uma razão hist¢rica permite compreender esse distanciamento.A filosofia pol¡tica e a reflexão sobre o conhecimento cristalizaramse em pocas nas quais as tecnologias de transformaão e de comunicaão estavam relativamente est veis ou pareciam evoluir em uma direão previs¡vel.

Na escala de uma vida humana, os agenciamentos sociotcnicosconstitu¡am um fundo sobre o qual se sucediam os acontecimentospol¡ticos, militares ou cient¡ficos, Apesar de algumas estratgias poderem cristalizarse explicitamente em torno de uma inovaão tecni

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ca, este era um caso excepcional [771 '. Tudo comeou a mudar com arevoluão industrial, mas apesar das an lises de Marx e alguns outros,o segredo permaneceu bem guardado. O sculo XX s¢ elaborou reflexões profundas sobre motores e m quinas operatrizes, enquanto quea qu¡mica, os avanos da impressão, a mecanografia, os novos meiosde comunicaão e de transporte, a iluminaão eltrica transformavama forma de viver dos europeus e desestabilizavam os outros mundos.O ru¡do dos aplausos ao progresso cobria as queixas dos perdedorese mascarava o silncio do pensar.

Hoje em dia, ningum mais acredita no progresso, e a metamorfose tcnica do coletivo humano nunca foi tão evidente. Não existe maisfundo sociotcnico, mas sim a cena das m¡dias. As pr¢prias bases dofuncionamento social e das atividades cognitivas modificamse a umavelocidade que todos podem perceber diretamente. Contamos em termos de anos, de meses, Entretanto, apesar de vivermos em um regimedemocr tico, os processos sociotcnicos raramente são objeto de deliberaões coletivas expl¡citas, e menos ainda de decisões tomadas peloconjunto dos cidadãos. Uma reapropriaão mental do fen"meno tcn¡co nos parece um prrequisito indispens vel para a instauraão progressiva de uma tecnodernocracia. para esta reapropriaão que desejamoscontribuir aqui, no caso particular das tecnologias intelectuais.

Algum talvez objete que a evoluão da inform tica não mui

to adequada a qualquer tipo de debate democr tico ou a decisões "pol¡ricas". Parecenos, entretanto, que a informatizaão das empresas, acriaão da rede telem tica ou a "introduão" dos computadores nasescolas podem muito bem prestarse a debates de orientaão, dar margem a m£ltiplos conflitos e negociaões onde tcnica, pol¡tica e projetos culturais misturamse de forma inextrinc vel. Tomemos o caso dainform tica escolar na Frana. Durante os anos oitenta, quantias con

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ar com

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s outrolaborouiquanto q

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,ovos meiossformavamos mundos.perdedoresa metamor

 sider veis foram gastas para equipar as escolas e formar os professores. Apesar de diversas experincias positivas sustentadas pelo entusiasmo de alguns professores, o resultado global deveras decepcionante. Por qu? certo que a escola uma instituião que h cincomil anos se baseia no falar/ditar do mestre, na escrita manuscrita doaluno e, h quatro sculos, em um uso moderado da impressão. Uma

 ' Os n£meros entre colchetes remetem ... bibliografia geral que est no fim

do livro. Alm disso, no final de cada cap¡tulo h a menão dos t¡tulos citados ouusados em cada um deles.

  8 

Pierre L&vy# 

o fim

os ou e L6vy

 verdadeira integraão da inform tica (como do audiovisual) supõe portanto o abandono de um h bito antropol¢gico mais que milenar, o quenão pode ser feito em alguns anos. Mas as "resistncias" do social tmbons motivos. O governo escolheu material da pior qualidade, perpetuamente defeituoso, fracamente interativo, pouco adequado aos usospedag¢gicos. Quanto ... formaão dos professores, limitouse aos rudimentos da programaão (de um certo estilo de programaão, porque existem muitos deles ... ), como se fosse este o £nico uso poss¡velde um computador!

Foram tiradas liões das multas experincias anteriores neste assunto? Foram analisadas as transformaões em andamento da ecologia cognitiva e os novos modos de constituião e de transmissão do sabera fim de orientar a evoluão do sistema educativo a longo prazo? Não,apressaramse em colocar dentro de sala as primeiras m quinas que chegaram. Em vez de conduzir um verdadeiro projeto pol¡tico, ao mesmotempo acompanhando, usando e desviando a evoluão tcnica, certoministro quis mostrar a imagem da modernizaão, e não obteve, efetivamente, nada alm de imagens. Uma concepão totalmente err"neada tcnica e de suas pretensas "necessidades", ...s quais acreditouse (ou

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fezse acreditar) que era necess rio "adaptarse", impediu o governoe a direão da Educaão nacional de impor fortes restriões aos construtores de material e aos criadores de programas. Eles não foram foradosa inventar. Seus comandat rios parecem não ter entendido que a pol¡tica e a cultura podem passar pelo detalhe de uma interface material,ou por cen rios de programas bem concebidos.

Ora, tentarei mostrar neste livro que não h inform tica em geral, nem essncia congelada do computador, mas sim um campo de novastecnologias intelectuais, aberto, conflituoso e parcialmente indeterminado. Nada est decidido a priori. Os dirigentes das multinacionais, osadministradores precavidos e os engenheiros criativos sabem perfeitamente (coisa que a direão da Educaão nacional parecia ignorar) queas estrategias vitoriosas passam pelos m¡nimos detalhes "tcnicos", dosquais nenhum pode ser desprezado, e que são todos inseparavelmentepol¡ticos e culturais, ao mesmo tempo que são tcnicos...

Não se trata aqui, portanto, de uma nova "cr¡tica filos¢fica datcnica", mas antes de colocar em dia a possibilidade pr tica de umatecnodemocracia, que somente poder ser inventada na pr tica. A filosofia pol¡tica não pode mais ignorar a cincia e a tcnica. Não somente a tcnica uma questão pol¡tica, mas ainda, e como um todo,

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uma micropol¡tica em atos, como veremos em detalhes no caso dasinterfaces inform ticas.

A questão da tcnica ocupa uma posião central. Se por um ladoconduz a uma revisão da filosofia pol¡tica, por outro incita tambm arevisitar a filosofia do conhecimento. Vivemos hoje uma redistribuiãoda configuraão do saber que se havia estabilizado no sculo XVII coma generalizaão da impressão. Ao desfazer e refazer as ecologias cog

nitivas, as tecnologias intelectuais contribuem para fazer derivar asfundaões culturais que comandam nossa apreensão do real. Mostrarei que as categorias usuais da filosofia do conhecimento, tais como omito, a cincia, a teoria, a interpretaão ou a objetividade dependemintimamente do uso hist¢rico, datado e localizado de certas tecnologias intelectuais. Que isto fique claro: a sucessão da oralidade, da escrita e da inform tica como modos fundamentais de gestão social doconhecimento não se d por simples substituião, mas antes por complexificaão e deslocamento de centros de gravidade. O saber oral eos gneros de conhecimento fundados sobre a escrita ainda existem, claro, e sem d£vida irão continuar existindo sempre. Não se trata aqui,portanto, de profetizar uma cat strofe cultural causada pela informatizaão, mas sim de utilizar os trabalhos recentes da psicologia cognitiva

e da hist¢ria dos processos de inscrião para analisar precisamente aarticulaão entre gneros de conhecimento e tecnologias intelectuais.Isto não nos conduzir a qualquer versão do determinismo tecnol¢gico,mas sim ... idia de que certas tcnicas de armazenamento e de processamento das representaões tornam poss¡veis ou condicionam certasevoluões culturais, ao mesmo tempo em que deixam uma grande margem de iniciativa e interpretaão para os protagonistas da hist¢ria.

Finalmente, a uma interrogaão sobre as divisões mais funda~mentais do ser que nossa reflexão sobre as tecnologias intelectuais irnos conduzir. O que acontece com a distinão bem marcada entre o

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sujeito e o objeto do conhecimento quando nosso pensamento encontrase profundamente moldado por dispositivos materiais e coletivossociotcnicos? Instituiões e m quinas informacionais se entrelaamno ¡ntimo do sujeito. A progressão multiforme das tecnologias da mentee dos meios de comunicaão pode ser interpretada como um processometaf¡sico molecular, redistribuindo sem descanso as relaões entresujeitos individuais, objetos e coletivos. Quem pensa? o sujeito nu emon dico, face ao objeto? São os grupos intersubjetivos? Ou ainda asestruturas, as l¡nguas, as epistemes ou os inconscientes sociais que pen

sam em n¢s? Ao desenvolver o conceito de ecologia cognitiva, irei defender a idia de um coletivo pensante homenscoisas, coletivo dinmico povoado por singularidades atuantes e subjetividades mutantes,tão longe do sujeito exangue da epistemologia quanto das estruturasformais dos belos dias do "pensamento 68".

Em seu livro Entre dire et faire [9 81, Damel Sibony mostrou at queponto o objeto tcnico e mais geralmente a imensa maquinaria do "fazer" contemporneo encontravamse impregnados de desejo e subjetividade. Sem negar a abordagem inteiramente apaixonante tentada por Si

bony, persegui o objetivo contr rio: mostrar a quantidade de coisas e tcnicas que habitam o inconsciente intelectual, at o ponto extremo no qualo sujeito do pensamento quase não se distingue mais (mas se distingueainda) de um coletivo cosmopolita2 composto por dobras e volutas doqual cada parte , por sua vez, misturada, marmoreada ou matizada desubjetividade branca ou rosa e de objetividade negra ou cinza.

Seguindo esta concepão da inteligncia, multas vezes deixei atcnica pensar em mim (como fizeram meus ilustres predecessores LewisMuniford e Gilbert Simondon) ao invs de debruarme sobre ela oucritic la. Que o fil¢sofo ou o historiador devam adquirir conhecimentos tcnicos antes de falar sobre o assunto, o m¡nimo. Mas precisoir mais longe, não ficar preso a um "ponto de vista sobre..." para a brirse a possiveis metamorfoses sob o efeito do objeto. A tcnica e as tec

nologias intelectuais em particular tm muitas coisas para ensinar aosfil¢sofos sobre a filosofia e aos historiadores sobre a hist¢ria.Quanto valeria um pensamento que nunca fosse transformado

por seu objeto? Talvez escutando as coisas, os sonhos que as precedem, os delicados mecanismos que as animam, as utopias que elastrazem atr s de si, possamos aproximarnos ao mesmo tempo dos seresque as produzem, usam e trocam, tecendo assim o coletivo misto,impuro, sujeitoobjeto que forma o meio e a condião de possibilidade de toda comunicaão e todo pensamento.

 ' A palavra cosmopolits, que significa cidadão do mundo (do cosmos), foi

cunhada pelos til¢sofos c¡nicos e retomada pelos est¢icos. Longe de considerar ape

nas o fato de pertencer ... comunidade pol¡tica ateniense ou romana, o s bio est¢icose sabia e se desejava cidadão de uma cidade da dimensão do universo, não excluindo nada nem ningum, nem o escravo, nem o b rbaro, nem o astro, nem a flor.Preconizase nesta obra um retorno ... grande tradião antiga do cosmopolitismo

nãosomente por razões de simples humanidade, mas tambm em vista de uma plenaintegraão das dimensões tcnicas e ecol¢gicas na reflexão e aão pol¡ticas.

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 Il

SOBRE O MAU USO DA ABSTRAÇO 

Antes de abordar o tema principal deste livro, que o papel das tecnologias da informaão na constituião das culturas e inteligncia dosgrupos, pareceme necessario esclarecer um certo n£mero de idias sobre a tcnica em geral, tcnica que hoje objeto de muitos preconceitos.

Nestes £ltimos anos, efetivamente, numerosas obras de reflexãosobre este assunto foram publiCadas em l¡ngua francesa. Entre elas, destacase um grupo importante que compartilha uma orientaão globalmente antitcnica. Jacques Eflul, Gilbert Hottois, M¡chei Henry e, talvez em menor grau, Dominique Janicaud tm em comum a concepãode uma cincia e de uma tcnica separadas do dev¡r colet¡vo da humanidade, tornandose aut"nomas para retornarem e imporemse sobreo social com a fora de um destino cego. A tcnica encarna, para eles,a forma contempornea do mal. Infelizmente, a imagem da tcnica comopotncia m , inelut vel e isolada revelase não apenas falsa, mas catas

tr¢fica; ela desarma o cidadão frente ao novo pr¡ncipe, o qual sabe muitobem que as redistribuiões do poder são negociadas e disputadas em todos os terrenos e que nada definitivo. Ao exprimir uma condenaãomoral a priori sobre um fen"meno artificialmente separado do devir coletivo e do mundo das significaões (da "cultura"), esta concepão nospro¡be de pensar ao mesmo tempo a tcnica e a tecnodernocracia.

No momento em que dezenas de trabalhos emp¡ricos e te¢ricosrenovam completamente a reflexão sobre a tecnocincia não maisposs¡vel repetir, com ou sem variantes, Flusserl, Heidegger ou E11u1.A cincia e a tcnica representam uma questão pol¡tica e cultural excessivamente importante para serem deixadas a cargo dos irmãos inimigos (cientistas ou cr¡ticos da cincia) que concordam em ver no objetode seus louvores ou de suas censuras um fen"meno estranho ao funci

onamento social ordin rio.Não existe uma "Tcnica" por tr s da tcnica, nem "Sistematcnico" sob o movimento da ind£stria, mas apenas indiv¡duos concretos situaveis e dat veis. Tambm não existe um "C lculo", uma"Metaf¡sica", uma "Racionalidade ocidental", nem mesmo um "Mto~do" que possam explicar a crescente importncia das cincias e dastcnicas na vida coletiva. Estas vagas entidades transh¡st¢ricas, estespseudoatores na realidade são desprovidos de qualquer efic cia e nãoapresentam simetricamente qualquer ponto de contato para a mimma aão real. Frente a estas abstraões, evidentemente ningum pode

 12 Pierre Uvy

 

~, esreto

CIOndv,

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negociar nem lutar. Mesmo com as melhores intenões do mundo, todateoria, explicaão ou projeto que faa apelo a estes macroconceitosespetaculares e ocos não pode fazer outra coisa senão despistar, engrossar a cortina de fumaa que abriga os pr¡ncipes modernos de olhares e desencorajar os cidadãos a se informarem e agirem.

Tambm não h maior progresso em direão a an lises concretas quando se explica o desdobramento da tecnocincia pela economia, sociedade, cultura ou ideologia. Obtemse então estes famososesquemas nos quais a Economia determina a sociedade, que determina a ideologia da qual faz parte a cincia, que aplicada sob a formade tcnica, a qual modifica o estado das foras produtivas, que por suavez determina a economia, etc.

Mesmo um diagrama tecido por estrelas entrecruzadas e munido de todos os anis de retroaão desejados ainda seria mistificador.Porque aquilo que ligar¡amos por setas seriam dimensões de an lise,ou pior: pontos de vista congelados em disciplinas.

Pela voz de Heidegger, a faculdade de filosofia acredita controlar a faculdade de cincias: a verdade das cincias est na metaf¡sica.Mas as outras faculdades tambm querem sua parte, e logo as cin

cias estão sitiadas pelas faculdades de teologia, de hist¢ria, de sociologia, de ling¡stica, de economia, pelas escolas de engenharia, laborat¢rios de antropologia, etc. Podemos imaginar todas as permutaõesque quisermos nos papis de sitiados e sitiantes: a tcnica ou a religião determinando a economia, esta £ltima determinando a metaf¡sica, e assim por diante.

E por isto que não h mais sentido em sustentar que a essnciada tcnica ontol¢gica (Heidegger), que a essncia do capitalismo religiosa (Max Weber) ou que a metaf¡sica depende da economia em£ltima instncia (marxismo vulgar). Nem a sociedade, nem a economia, nem a filosofia, nem a religião, nem a l¡ngua, nem mesmo a cincia ou a tcnica são foras reais, elas são, repetimos, dimensões de anãl¡se, quer dizer, abstraões. Nenhuma destas macroentidades ideais

pode determinar o que quer que seja porque são desprovidas de qualquer meio de aão.Os agentes efetivos são indiv¡duos situados no tempo e no espa

  o. Abandonamse aos jogos de paixões e embriaguez, ...s artimanhasdo poder e da seduão, aos refinamentos complicados das alianas edas reviravoltas nas alianas. Transmitem uns aos outros, por um semn£mero de meios, uma infinidade de mensagens que eles se obrigam a

 Vy As Tecnologias da Inteligncia 13

truncar, falsear, esquecer e reinterpretar de seu pr¢prio leito. Trocamentre si um n£mero infinito de dispositivos materiais e objetos (eis atcnica!) que transformam e desviam perpetuamente.

No rio tumultuoso do devir coletivo, poss¡vel discernir v riasilhas, acumulaões, irreversibilidades, mas por sua vez estas estabilidades, estas tendncias longas mantmse apenas graas ao trabalhoconstante de coletividades e pela reificaão eventual deste em coisas(eis de novo a tcnica!) dur veis ou facilmente reproduz¡veis: constru

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  ões, estradas, m quinas, textos em papel ou fitas magnticas...A servio das estratgias vari veis que os opõem e os agrupam,

os seres humanos utilizam de todas as formas poss¡veis entidades eforas não humanas, tais como animais, plantas, leveduras, pigmentos, montanhas, rios, correntes marinhas, vento, carvão, eltrons, m quinas, etc. E tudo isto em circunstncias infinitamente diversas. Vamos repetir, a tcnica apenas a dimensão destas estrategias que passam por atores não humanos.

 A TCNICA PARTI(APA ATIVAMENTE DA ORDEM CULTURAL, SIMB¢LICA,

 ONTOL¢GICA OU AXIOLàGICA

 Não h nenhuma distinão real bem definida entre o homem e a

tcnica, nem entre a vida e a cincia, ou entre o s¡mbolo e a operaaoeficaz ou a poisis e o arrazoado. sempre poss¡vel introduzir distin

  ões para fins de an lise, mas não se deve tomar os conceitos que acabamos de forjar para certos fins precisos como sendo regiões do serradicalmente separadas.

Podemos distinguir, por exemplo, como fez Karit, entre um do~m¡nio emp¡rico (aquilo que percebido, que constitui a experincia)e um dom¡nio transcendental (aquilo atravs de que a experiencia eposs¡vel, que estrutura a percepão). Em sua Cr¡tica da razão pura, Karitatribuiu esta funão de estruturaão do mundo percebido a um sujei

to transcendental a~hist¢rico e invari vel. Hoje, ainda que caracterisricas cognitivas universais sejam reconhecidas para toda a espcie humana, geralmente pensase que as formas de conhecer, de pensar, desentir são grandemente condicionadas pela poca, cultura e circunstncias. Chamaremos de transcendental hist¢rico aquilo que estrutura a experincia dos membros de uma determinada coletividade. Certamente podemos ressaltar a diferena entre as coisas em sua mate

 14

 Pierre L6vy

idade utilit ria e as narrativas, s¡mbolos, estruturas imagin rias eas de conhecer que as fazem parecer aquilo que elas são aos olhoss membros das diversas sociedades consideradas.Mas quando colocamos de um lado as coisas e as tcnicas e do outrohomens, a linguagem, os s¡mbolos, os valores, a cultura ou o "rnundovida", então o pensamento comea a resvalar. Uma vez mais, reificamos uma diferena de ponto de vista em uma fronteira separando as

proprias coisas. Uma entidade pode ser ao mesmo temPo objeto da experincia e fonte instituinte, em particular se ela diz respeito ... tcnica.O c£mulo da cegueira atingido quando as antigas tcnicas são de

claradas culturais e impregnadas de valores, enquanto que as novas sãodenunciadas como b rbaras e contr rias ... vida. Algum que condena ainform tica não pensaria nunca em criticar a impressão e menos aindaa escrita. Isto porque a impressão e a escrita (que são tcnicas!) o constituem em demasia para que ele pense em apont las como estrangeiras.Não percebe que sua maneira de pensar, de comunicarse com seus semelhantes, e mesmo de acreditar em Deus (como veremos mais adiante

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neste livro) são condicionadas por processos materiais.Mais profundamente, a tcnica toma parte plenamente no trans

cendental hist¢rico. Para citar apenas este exemplo cl ssico, sabemosque o espao e o tempo tal como os percebemos e vivemos hoje na Europa ou na Amrica do Norte não resultam apenas de discursos ou deidias sobre o tempo e o espao, mas igualmente de todo um imenso agenciamento tecnico que compreende os rel¢gios, as vias de comunicaãoe transporte, os procedimentos de cartografia e de impressão, etc.Michel Serres sugeriu em La Distribution [97] que a m quina a

vapor era não apenas um objeto, e um objeto tcnico, mas que podiamos ainda analis la como o modelo termodinmico atravs do qualautores como Marx, Nietzsche ou Freud pensavam a hist¢ria, o psiquismo, ou a situaão do fil¢sofo. Eu mesmo tentei mostrar, em LaMachine Univers [71], que o computador havia se tornado hoje umdestes dispositivos tcnicos pelos quais percebemos o mundo, e istonão apenas em um plano emp¡rico (todos os fen"menos apreendidosgraas aos c lculos, percept¡veis na tela, ou traduzidos em listagens pelam quina), mas tambm em um plano transcendental hoje em dia, pois,hoje, cada vez mais concebemos o social, os seres vivos ou os processos cognitivos atravs de uma matriz de leitura inform tica.A experincia pode ser estruturada pelo computador. Ora, a lis

ta dos objetos que são ao mesmo tempo estruturas transcendentais  

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infinitamente longa. O telgrafo e o telefone serviram para pensar acomunicaão em geral. Os servomecanismos concretos e a teoria matem tica da informaão serviram como suporte para a visão cibernti

ca do mundo, etc. Os produtos da tcnica moderna, longe de adequaremse apenas a um uso instrumental e calcul vel, são importantesfontes de imagin rio, entidades que participam plenamente da instituião de mundos percebidos.

Se algumas formas de ver e agir parecem ser compartilhadas porgrandes populaões durante muito tempo (ou seja, se existem culturas relativamente dur veis), isto se deve ... estabilidade de instituiões,de dispositivos de comunicaão, de formas de fazer, de relaões como meio ambiente natural, de tcnicas em geral, e a uma infinidade indeterminada de circunstncias. Estes equil¡brios são fr geis. Basta que,em uma situaão hist¢rica dada, Cristovão Colombo descubra a Amrica, e a visão europia do homem encontrase transtornada, o mundo prcolombiano da Amrica est ameaado de arruinarse (não

somente o imprio dos Incas, mas seus deuses, seus cantos, a belezade suas mulheres, sua forma de habitar a terra). O transcendental hist¢rico est ... merc de uma viagem de barco. Basta que alguns grupossociais disseminem um novo dispositivo de comunicaão, e todo oequil¡brio das representaões e das imagens ser transformado, comovimos no caso da escrita, do alfabeto, da impressão, ou dos meios decomunicaão e transporte modernos.

Quando uma circunstncia como uma mudana tcnica desestabiliza o antigo equil¡brio das foras e das representaões, estratgiasinditas e alianas inusitadas tornamse poss¡veis. Uma infinidade he

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terognca de agentes sociais exploram as novas possibilidades em proveito pr¢prio (e em detrimento de outros agentes), at que uma novasituaão se estabilize provisoriamente, com seus valores, suas moraise sua cultura locais. Neste sentido, a mudana tcnica uma das principais foras que intervm na dinmica da ecologia transcendental. Atcnica não sin"nimo de esquecimento do ser ou de deserto simbõlico, ao contr rio uma cornuc¢pia de abundncia axiol¢gica, ou umacaixa de Pandora metaf¡sica.

Iniciada no fim do sculo XVIII, a presente mutaão antropol¢gica somente pode ser comparada ... revoluão neol¡tica que viu surgirem, em poucos sculos, a agricultura, a criaão de animais, a cidade,o Estado e a escrita. Dentre todas as transformaões fundamentais queafetaram os pa¡ses desenvolvidos na poca atual, ressaltemos o desa

4,11 

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  I 

parecimento do mundo agr¡cola, o apagamento da distinão cidade/campo e consequente surgimento de uma rede urbana ompresente, umnovo imagin rio do espao e do tempo sob a influncia dos meios detransporte r pidos e da organizaão industrial do trabalho, o deslocamento das atividades econ"micas para o terci rio e a influncia cadavez mais direta da pesquisa cient¡fica sobre as atividades produtivas eos modos de vida. As conseqncias a longo prazo do sucesso fulminante dos instrumentos de comunicaão audiovisuais (a partir do fim

da Segunda Guerra Mundial) e dos computadores (a partir do fim dosanos setenta) ainda não foram suficientemente analisadas. Uma coisa  certa: vivemos hoje em uma destas pocas lim¡trofes na qual toda a

antiga ordem das representaões e dos saberes oscila para dar lugar aimaginarios, modos de conhecimento e estilos de regulaão social aindapouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em que, apartir de uma nova configuraão tcnica, quer dizer, de uma nova relaão com o cosmos, um novo estilo de humanidade inventado.

Nenhuma reflexão sria sobre o devir da cultura contemporneapode ignorar a enorme incidncia das m¡dias eletr"nicas (sobretudo atelevisão) e da inform tica. Em La Machine univers, como neste livro,restringi minhas reflexões aos computadores.

Não ser encontrada aqui, portanto, nem uma apologia nem uma

cr¡tica da inform tica em geral, mas sim um ensaio de avaliaão dasquestões antropol¢gicas ligadas ao uso crescente dos computadores:o transcendental hist¢rico ameaado pela proliferaão dos programas.

 Razões de duas ordens diferentes levaramme a empreender a

redaão desta obra apenas dois anos ap¢s a publicaão de La Machineunivers, sobre um tema bastante pr¢ximo. Em primeiro lugar, no planodas idias, um certo n£mero de cr¡ticas justificadas foram feitas a meutrabalho precedente. Tal como estava descrita em La Machine univers,a evoluão tcnica parecia obedecer, por isomorfismo ou analogia, a

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uma estrutura abstrata e separada dos acasos do devir hist¢rico: o"c lculo". Alm disso, esta estrutura calculante foi identificada como Ocidente. Eu havia institu¡do a cultura ocidental, a partir de suaorigem grega, em uma posião de realce, uma posião "calculante",precisamente, em vez de analis la como resultado provis¢rio de umadinmica ecol¢gica complexa e do encadeamento contingente de circunstncias hist¢ricas. O problema das traduões, das mediaões concretas pelas quais a essncia calculante da cultura grega teria chegado

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at n¢s, amplificandose e endurecendose em tcnica e depois em inform tica, este problema fundamental infelizmente não foi colocado,ou o foi de forma excessivamente alusiva. Isto quer dizer que este novolivro seria pura e simplesmente a cr¡tica do primeiro? Não, pois eucontinuo defendendo a maior parte das teses desenvolvidas em LaMachine univers, sobretudo a cr¡tica das teorias formais e tecnicistas

do pensamento e do cosmos. Desejo apenas sinalizar ao leitor que otrabalho sobre as implicaões culturais da inform tica foi retomadoa partir do ponto mais fraco da obra anterior, aquele que se refere ...stransmissões, ...s traduões e ...s deformaões que modelam o devirsocial. Eis aqui portanto um livro sobre as interfaces.

Quanto ... segunda ordem de razões, est relacionada com umamudana de posião do analista em relaão a seu objeto. O autor deLa Machine univers decerto havia desenvolvido um longo e minucioso trabalho de pesquisa sobre a inform tica, sua teoria, suas realiza

  ões e seus usos; mas o fazia enquanto soci¢logo, historiador ou fil¢sofo, quer dizer, querendo ou não, do exterior. O autor da presenteobra, por outro lado, participou da realizaão de dois sistemas especialistaS3 enquanto engenheiro do conhecimento, e encontrase ativa

mente envolvido em diversos projetos de multim¡dia interativa de suporte inform tico. Ao tornarse um ator da evoluão tcnica (por poucoque seja), ele descobriu que a margem de liberdade neste dom¡nio eramuito maior do que geralmente dito. As pretensas "necessidadestcnicas" na maior parte do tempo são apenas m scaras de projetos,de orientaões deliberadas ou de compromissos estabelecidos entrediversas foras antagonistas, das quais a maior parte não tem nada de"tcnica". Ora, a perspectiva de La Machine univers era um pouco paradoxal, j que, indeterminista e antimecanicista nas ordens f¡sica,biol¢gica e cognitiva, mantinha ares de necessidade na ordem cultural, ... qual pertence a tcnica.

Ao abandonar uma posião de observador externo, não estariaeu arriscado a perder ao mesmo tempo todo recuo, todo esp¡rito cr¡

tico? Muito pelo contr rio, j que, como veremos, os cr¡ticos maisradicais e mais eficazes da corrente principal da evoluão da inform tica situaramse precisamente no terreno da tcnica. Os inventores,engenheiros, cientistas, empres rios e investidores que contribuem para

 3 LVY Pierre, L'Idographie dynamique, La Dcouverte, Paris, 1991.

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edificar o tecnocosmos onde viveremos daqui em diante são impulsionados por verdadeiros projetos pol¡ticos rivais, eles fazem referncia aos i . magi . nari . os antagonistas da tcnica e das relaões sociais. Seo devir da cidade contempornea depende pelo menos tanto da evoluão tecnocient¡fica quanto do resultado das eleiões, eu não estavadeixando o dom¡nio da cr¡tica social ou da interrogaão filos¢fica aome aproximar do cerne da atividade tcnica.

A primeira parte deste livro, "A met fora do hipertexto", consagrada ... inform tica de comunicaão naquilo que ela tem de maisoriginal em relaão ...s outras m¡dias. Veremos em particular que ohipertexto (cujo conceito ser amplamente definido e ilustrado) representa sem d£vida um dos futuros da escrita e da leitura. Mas, longede limitaremse a uma simples pintura das novas tcnicas de comunicaão de suporte inform tico, as p ginas que se seguem entrelaamsempre um fio reflexivo ao fio descritivo. O que a comunicaão? Oque o sentido? Ao acompanharmos a hist¢ria do computador pessoal, veremos que a criaão tcnica pode ser pensada dentro do modelo da interpretaão e da produão de sentido, que por sua vez re

mete a uma teoria hipertextual da comunicaao.Não a primeira vez que a aparião de novas tecnologias intelectuais acompanhada por uma modificaão das normas do saber. Nasegunda parte deste livro: "Os trs tempos do esp¡rito, oral idade, escrita, inform tica", tomaremos uma certa distncia em relaão ...s evolu

  ões contemporneas, ressituandoas em uma continuidade hist¢rica.De que lugar julgamos a inform tica e os estilos de conhecimen

to que lhe são aparentados? Ao analisar tudo aquilo que, em nossaforma de pensar, depende da oralidade, da escrita e da impressão, descobriremos que apreendemos o conhecimento por simulaão, t¡picoda cultura inform tica, com os critrios e os reflexos mentais ligados...s tecnologias intelectuais anteriores. Colocar em perspectiva, relativizar as formas te¢ricas ou cr¡ticas de pensar que perdem terreno hoje,

isto talvez facilite o indispens vel trabalho de luto que permitir abrirmonos a novas formas de comunicar e de conhecer.A tese defendida neste livro referese a uma hist¢ria mais funda

mental que a das idias: a hist¢ria da pr¢pria inteligncia. Os coletivoscosmopolitas compostos de indiv¡duos, instituiões e tcnicas não sãosomente meios ou ambientes para o pensamento, mas sim seus verdadeiros sujeitos. Dado isto, a hist¢ria das tecnologias intelecruais condiciona(sem no entanto determin la) a do pensamento. Este o tema princi

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pai da ecologia cognitiva, cujo programa esboamos na terceira e £ltima parte deste livro. Ao propor uma abordagem ecol¢gica da cognião,minha maior esperana a de contribuir para renovar o debate em andamento sobre o devir do sujeito, da razão e da cultura.

 

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Paris, 1958. 

20 

Pierre L6vy# 

I.A METµFORA DO HIPERTEXTO

 1. IMAGENS DO SENTIDO

 PRODUZIR O CONTEXTO

 Seria a transmissão de informaões a primeira funão da comu

nicaão? Decerto que sim, mas em um n¡vel mais fundamental o ato

de comunicaão define a situaão que vai dar sentido ...s mensagenstrocadas. A circulaão de informaões , muitas vezes, apenas umpretexto para a confirmaão rec¡proca do estado de uma relaão. Quando, por exemplo, conversamos sobre o tempo com um comerciante denosso bairro, não aprendemos absolutamente nada de novo sobre achuva ou o sol, mas confirmamos um ao outro que mantemos boasrelaões, e que ao mesmo tempo nossa intimidade não ultrapassou umcerto grau, j que falamos de assuntos an¢dinos, etc.

Não apenas quando declaramos que "a sessão est aberta", ouem certas ocasiões excepcionais, que agimos ao falar. Atravs de seus

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aros, seu comportamento, suas palavras, cada pessoa que participa deuma situaão estabiliza ou reorienta a representaão que dela fazemos outros protagonistas. Sob este aspecto, aao e comunicaao sãoquase siri"nimos. A comunicaão s¢ se distingue da aão em geralporque visa mais diretamente ao plano das representaões.

Na abordagem cl ssica dos fen"menos de comunicaão, os interlocutores fazem intervir o contexto para interpretar as mensagens quelhes são dirigidas. Ap¢s v rios trabalhos em pragm tica e em microsociologia da comunicaão, propomos aqui uma inversão da problem tica habitual: longe de ser apenas um auxiliar £til ... compreensãodas mensagens, o contexto o pr¢prio alvo dos atos de comunicaão.Em uma partida de xadrez, cada novo lance ilumina com uma luz novao passado da partida e reorganiza seus futuros poss¡veis; da mesma

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 21

22

  forma, em uma situaão de comunicaão, cada nova mensagem recoloca em jogo o contexto e seu sentido. A situaão sobre o tabuleirode xadrez em determinado momento certamente permite compreender um lance, mas a abordagem complementar segundo a qual a sucessão dos lances constr¢i pouco a pouco a partida talvez traduza aindamelhor o esp¡rito do jogo.

O jogo da comunicaão consiste em, atravs de mensagens, precisar, ajustar, transformar o contexto compartilhado pelos parceiros.Ao dizer que o sentido de uma mensagem uma "funão" do contexto, não se define nada, j que o contexto, longe de ser um dado est vel, algo que est em jogo, um objeto perpetuamente reconstru¡do enegociado. Palavras, frases, letras, sinais ou caretas interpretam, cada

um ... sua maneira, a rede das mensagens anteriores e tentam influirsobre o significado das mensagens futuras.O sentido emerge e se constr¢i no contexto, e sempre local, da

tado, transit¢rio. A cada instante, um novo coment rio, uma nova interpretaão, um novo desenvolvimento podem modificar o sentido que hav¡amos dado a uma proposião (por exemplo) quando ela foi emitida...

Se estas idias são de alguma forma v lidas, as modelizaões sistmicas e cibernticas da comunicaão em uma organizaão são no m¡nimoinsuficientes. Elas consistem quase sempre em designar um certo numero de agentes de emissão e recepão, e depois em traar o percurso defluxos inforniacionais, com tantos anis de retroaão quanto se desejar.

Os diagramas sistmicos reduzem a informaão a um dado inerte e descrevem a comunicaão como um processo unidimensional de

transporte e decodificaão. Entretanto, as mensagens e seus significados se alteram ao deslocaremse de um ator a outro na rede, e de ummomento a outro do processo de comunicaão.

O diagrama dos fluxos de informaão apenas a imagem congelada de uma configuraão de comunicaão em determinado instante, sendo geralmente uma interpretaão particular desta configuraão,um 1arice" no jogo da comunicaão. Ora, a situaão deriva perpetuamente sob o efeito das mudanas no ambiente e de um processo ininterrupto de interpretaao coletiva das mudanas em questão. Identidade, composião e objetivos das organizaões são portanto periodi

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palavras da frase tiverem ativado ao mesmo tempo; neste caso: asimagens e os conceitos ligados ... comida e ... diettica. Se fosse "a maãda disc¢rdia" ou a "maã de Newton", as imagens e os modelos mentais associados ... palavra "maã" seriam diferentes. O contexto designaportanto a configuraão de ativaão de uma grande rede semntica emum dado momento. Reiteremos aqui a conversão do olhar j tentadapara a abordagem macrosc¢pica da comunicaão: podemos certamenteafirmar que o contexto serve para determinar o sentido de uma palavra; ainda mais judicioso considerar que cada palavra contribui paraproduzir o contexto, ou seja, uma configuraão semntica reticular que,quando nos concentramos nela, se mostra composta de imagens, demodelos, de lembranas, de sensaões, de conceitos e de pedaos dediscurso. Tomando os termos leitor e texto no sentido mais amploposs¡vel, diremos que o objetivo de todo texto o de provocar em seuleitor um certo estado de excitaão da grande rede heterognea de suamem¢ria, ou então orientar sua atenão para uma certa zona de seumundo interior, ou ainda disparar a projeão de um espet culo multim¡dia ria tela de sua imaginaão.

N~o somente cada palavra transforma, pela ativaão que propaga ao longo de certas vias, o estado de excitaão da rede semntica, mastambm contribui para construir ou remodelar a pr¢pria topologia darede ou a composião de seus n¢s. Quando ouvi Isabela declarar, ao abriruma caixa de ravi¢lis, que não se preocupava com diettica, eu haviaconstruido uma certa imagem de sua relaão com a comida. Mas ao des

cobrir que ela comia uma maã "por suas vitaminas", sou obrigado areorganizar uma parte da rede semntica a ela relacionada. Em termosgerais, cada vez que um caminho de ativaão percorrido, algumas conexões são reforadas, ao passo que outras caem aos poucos em desu~so. A imensa rede associativa que constitui nosso universo mental cricontrase em metamorfose permanente. As reorganizaões podem sertempor rias e superficiais quando, por exemplo, desviamos momentaneamente o n£cleo de nossa atenão para a audião de um discurso, ouprofundas e permanentes como nos casos em que dizemos que "a vida"ou "uma longa experincia" nos ensinaram alguma coisa.

O sentido de uma palavra não outro senao a guirlanda cintilantede conceitos e imagens que brilham por um instante ao seu redor. A reminiscncia desta claridade semntica orientar a extensão do grafo lumi

noso disparado pela palavra seguinte, e assim por diante, at que umaforma particular, uma imagem global, brilhe por um instante na noite 

24 

Pierre Uvy# 

dos sentidos. Ela transformar , talvez imperceptivelmente, o mapa do

cu, e depois desaparecer para abrir espao para outras constelaões. SEIS CARACTER¡STICAS DO HIPERTEXTO

 Cada um em sua escala, os atores da comunicaão ou os elemen

tos de uma mensagem constroem e remodelam universos de sentido.Inspirando~nos em certos programas contemporneos, que descreveremos abundantemente na continuaão desta seão, chamaremos estes mundos de significaão de hipertextos.

Como veremos, a estrutura do hipertexto não d conta somente

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da comunicaão. Os processos sociotcnicos, sobretudo, tambm tmuma forma hipertextual, assim como v rios outros fen"menos. O hipertexto talvez uma met fora v lida para todas as esferas da realidadeem que significaões estejam em jogo.

A fim de preservar as possibilidades de m£ltiplas interpretaõesdo modelo do hipertexto, propomos caracteriz lo atravs de seis princ¡pios abstratos.

 1. Princ¡pio de metamorfoseA rede hipertextual est em constante construão e renegociaão.

Ela pode permanecer est vel durante um certo tempo, mas esta estabilidade em si mesma fruto de um trabalho. Sua extensão, sua composião e seu desenho estão permanentemente em jogo para os atoresenvolvidos, sejam eles humanos, palavras, imagens, traos de imagensou de contexto, objetos tcnicos, componentes destes objetos, etc.

 2. Princ¡pio de heterogeneidadeOs n¢s e as conexões de uma rede hipertextual são heterogne

os. Na mem¢ria serão encontradas imagens, sons, palavras, diversassensaões, modelos, etc., e as conexões serão l¢gicas, afetivas, etc. Nacomunicaão, as mensagens serão multim¡dias, multimodais, anal¢gicas, digitais, etc. O processo sociotcnico colocar em jogo pessoas,grupos, artefatos, foras naturais de todos os tamanhos, com todos ostipos de associaões que pudermos imaginar entre estes elementos.

  3. Princ¡pio de multiplicidade e de encaixe das escalasO hipertexto se organiza em um modofractal", ou seja, qualquer

 As Tecnologias da Inteligncia

n¢ ou conexão, quando analisado, pode revelarse como sendo composto por toda uma rede', e assim por diante, indefinidamente, ao lon

go da escala dos graus de precisão. Em algumas circunstncias cr¡ticas,h efeitos que podem propagarse de uma escala a outra: a interpreta  ão de uma v¡rgula em um texto (elemento de uma microrrede de do

cumentos), caso se trate de um tratado internacional, pode repercutirna vida de milhões de pessoas (na escala da ma

crorrede social). 

4. Princ¡pio de exterioridadeA rede não possui unidade orgnica, nem motor interno. Seu cres

cimento e sua diminuião, sua composião e sua recomposião permanente dependem de um exterior indeterminado: adião de novos elementos, conexões com outras redes, excitaão de elementos terminais (cap

tadores), etc. Por exemplo, para a rede semntica de uma pessoa escutandoum discurso, a dinmica dos estados de ativaão resulta de uma fonteexterna de palavras e imagens. Na constituião da rede sociotcnica intervm o tempo todo elementos novos que não lhe pertenciam no instante anterior: eltrons, micr¢bios, raios X, macromolculas, etc.

 S. Princ¡pio de topologiaNos hipertextos, tudo funciona por proximidade, por vizinhan

  a. Neles, o curso dos acontecimentos uma questão de topologia, decaminhos. Não h espao universal homogneo onde haja foras de

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ligaão e separaão, onde as mensagens poderiam circular livremente. Tudo que se desloca deve utilizarse da rede hipertextual tal comoela se encontra, ou então ser obrigado a modific la. A rede não estno espao, ela o espao.

 6. Princ¡pio de mobilidade dos centrosA rede não tem centro, ou melhor, possui permanentemente di

versos centros que são como pontas luminosas perpetuamente m¢veis,saltando de um n¢ a outro, trazendo ao redor de si uma ramificaão infinita de pequenas ra¡zes, de rizomas, finas linhas brancas esboandopor um instante um mapa qualquer com detalhes delicados, e depoiscorrendo para desenhar mais ... frente outras paisagens do sentido.

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 Pierre Uvy

A~ Tecnologias da Inteligncia 

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2. O HIPERTEXTO 

MEMEX 

A idia de hipertexto foi enunciada pela primeira vez por Vannevar Bush em 1945, em um clebre artigo intitulado "As We MayThink" [621. Bush era um matem tico e f¡sico renomado que haviaconcebido, nos anos trinta, uma calculadora anal¢gica ultrar pida,e que tinha desempenhado um papel importante para o financiamen

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to do Eniac, a primeira calculadora eletr"nica digital. Na poca emque o artigo foi publicado pela primeira vez, nosso autor encontravase na chefia do organismo encarregado de coordenar o esforo deguerra dos cientistas americanos, sob as ordens do Presidente Roosevelt.

Por que "As we may tbink"? Segundo Bush, a maior parte dos sistemas de indexaão e organizaão de informaões em uso na comunidade cient¡fica são artificiais. Cada item classificado apenas sob uma£nica rubrica, e a ordenaão puramente hier rquica (classes, subclasses,etc.). Ora, diz Vannevar Bush, a mente humana não funciona desta forma,mas sim atravs de associaões. Ela pula de uma representaão para outraao longo de uma rede intrincada, desenha trilhas que se bifurcam, teceuma trama infinitamente mais complicada do que os bancos de dadosde hoje ou os sistemas de informaão de fichas perfuradas existentes em1945. Bush reconhece que certamente não seria poss¡vel duplicar o processo reticular que embasa o exerc¡cio da inteligncia. Ele propõe apenas que nos inspiremos nele. Imagina então um dispositivo, denominado Memex, para mecanizar a classificaão e a seleão por associaão paralelamente ao princ¡pio da indexaão cl ssica.

Antes de mais nada, seria preciso criar um imenso reservat¢riomultim¡dia de documentos, abrangendo ao mesmo tempo imagens,sons e textos. Certos dispositivos perifricos facilitariam a integraaor pida de novas informaões, outros permitiriam transformar automaticamente a palavra em texto escrito. A segunda condião a serpreenchida seria a miniaturizaão desta massa de documentos, e para

isto Bush previa em particular a utilizaão do microfilme e da fitamagntica, que acabavam de ser descobertos naquela poca. Tudo istodeveria caber em um ou dois metros c£bicos, o equivalente ao volume de um m¢vel de escrit¢rio. O acesso ...s informaões seria feito atravs de uma tela de televisão munida de altofalantes. Alm dos aces

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 Pierre Uvy

sos cl ssicos por indexaão, um comando simples permitiria ao felizpropriet rio de um Memex criar ligaões independentes de qualquerclassificaão hier rquica entre uma dada informaão e uma outra. Umavez estabelecida a conexão, cada vez que determinado item fosse visualizado, todos os outros que tivessem sido ligados a ele poderiamser instantaneamente recuperados, atravs de um simples toque em umbotão. Bush retrata o usu rio de seu dispositivo imagin rio traandotrilhas transversais e pessoais no imenso e emaranhado continente dosaber. Estas conexões, que ainda não se chamavam hipertextuais, materializam no Memex, espcie de mem¢ria auxiliar do cientista, umaparte fundamental do pr¢prio processo de pesquisa e de elaboraão

de novos conhecimentos. Bush chegou mesmo a imaginar uma novaprofissão, uma espcie de engenharia civil no pa¡s das publicaões, cujamissão seria a de ordenar redes de comunicaão no centro do corpusimenso e sempre crescente dos sons, imagens e textos gravados.

 XANADU

 No in¡cio dos anos sessenta, os primeiros sistemas militares de

teleinform tica acabavam de ser instalados, e os computadores aindanão evocavam os bancos de dados e muito menos o processamento de

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textos. Foi contudo nesta poca que Theodore Nelson inventou o termo hipertexto para exprimir a idia de escrita/leitura não linear emum sistema de inform tica. Desde então, Nelson persegue o sonho deuma imensa rede acess¡vel em tempo real contendo todos os tesourosliter rios e cient¡ficos do mundo, uma espcie de Biblioteca de Alexandria de nossos dias. Milhões de pessoas poderiam utilizar Xanadu,para escrever, se interconectar, interagir, comentar os textos, filmes egravaões sonoras dispon¡veis na rede, anotar os coment rios, etc.Aquilo que poder¡amos chamar de estado supremo da troca de mensagens teria a seu encargo uma boa parte das funões preenchidas hojepela editoraão e o jornalismo cl ssicos. Xanadu, enquanto horizonte idegl ou absoluto do hipertexto, seria uma espcie de materializaãodo di logo incessante e m£ltiplo que a humanidade mantm consigomesma e com seu passado.

Ainda que milhares de hipertextos tenham sido elaborados e consultados ap¢s as primeiras visões de Vannevar Bush e Theodore Nelson, at o momento nenhum deles tem a amplitude quase c¢smica ima

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ginada por estes pioneiros, e h trs razões para isto. Em primeiro lugar, em um plano estritamente inform tico, não se sabe ainda comoprogramar bancos de dados acima de uma certa ordem de grandeza.Os algoritmos que são eficazes abaixo de um certo limite para geriruma grande quantidade de informaões revelamse impotentes paratratar as gigantescas massas de dados implicadas em projetos comoXanadu ou Memex. Em segundo lugar, a indexaão, a digitalizaão ea formataão uniforme de informaões hoje dispersas em uma infinidade de diferentes suportes pressupõem o emprego de meios materiaisavanados, a reunião de multas competncias e sobretudo muito tempo;

o que equivale a dizer que ela seria extremamente cara. Enfim, e estanão uma dificuldade menor, a constituião de hipertextos gigantessupõe um minucioso trabalho de organizaão, de seleão, de contextualizaão, de acompanhamento e de orientaão do usu rio, e isto emfunão de p£blicos bastante diversos. Ora, quem, em 1990, possui ascompetncias necess rias no plano da concepão de hipertextos comvocaão universal, j que, no dom¡nio da multim¡dia interativa, tudo,ou quase tudo, ainda est para ser inventado?

Hoje, portanto, não encontramos hipertextos universais, mas simsistemas de porte modesto, voltados para dom¡nios bem particulares,como a edião de obras de caracter¡stica enciclopdica em CDROM(o compact disc digital), o aprendizado e diversos programas de auxilio ao trabalho coletivo. Eis aqui dois exemplos do que poss¡vel rea

lizar hoje. MOTOR!

 Um aprendiz de Inecnico v surgir na tela ... sua frente o esque

ma tridimensional de um motor. Com a ajuda de um cursor coman~dado por um mouse, ele seleciona uma determinada pea do motor.A pea muda de cor enquanto seu nome carburador, por exemplo aparece na tela. O jovem mecnico clica outra vez o mouse sobre ocarburador. A pea então ampliada at ocupar toda a tela. O apren

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diz escolhe no menu a opão "animaão". Um filme did tico, em cmera lenta, passa a mostrar o interior do carburador em funcionamento, os fluxos de gasolina, de ar, etc., sendo representados em coresdiferentes, de forma que sela f cil compreender seus respectivos papis. Enquanto o filme exibido, uma voz em off explica o funciona

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mento interno do carburador, expõe seu papel na organizaão geraldo motor, cita os poss¡veis defeitos, etc.

O mecnico interrompe o filme e retorna ... visão inicial do motor escolhendo a opão "retorno ao in¡cio" no menu. Agora, em vezde comear sua exploraão selecionando a imagem de um ¢rgão (oque lhe permitia conhecer o nome deste ¢rgão, e depois descobrir seufuncionamento), escolhe a opão "mostre" e digita no teclado: "o balancirn". O balancim então colorido de maneira a contrastar com oesquema do conjunto do motor, e o aprendiz pode continuar sua ex

ploraão... Se tivesse escolhido a opão "simulaão de defeitos" nolugar de "mostre", teria assistido a um pequeno filme mostrando umcliente trazendo seu carro ... oficina e descrevendo os diversos barulhos estranhos e irregularidades de funcionamento que o fizeram procurar o mecnico. Depois disto nosso aprendiz poderia escolher entre alguns testes, experincias e verificaões para determinar com pre~cisão o defeito e consert lo. Se ele tivesse decidido "fazer rodar o motor em marcha lenta e escutar", por exemplo, teria realmente ouvidoo barulho de um motor com o defeito a ser descoberto. Se o aprendiznão tivesse achado o problema ap¢s um n£mero estabelecido de tentativas e erros, o sistema teria indicado os procedimentos a seguirpara determinar a natureza exata do defeito, teria mostrado no esquema do motor, eventualmente utilizando sequncias animadas, a rela

  ão entre os sintomas e a disfunão do carro, terminando pela demonstraão dos reparos a serem efetuados. Em 1990, todos os dadosnecess rios ao funcionamento de um destes sistemas de aux¡lio aoaprendizado da mecnica de autom¢veis podem residir em um compact disc com poucos cent¡metros de dimetro e rodar em um microcomputador de alta performance. Podemos imaginar bancos de dados interativos como este nas diversas especialidades da engenhariaou da medicina.

 CICERO

 O professor de civilizaão latina ped¡u ... turma que preparasse o

tema de diversões em Roma para a semana seguinte. Uma estudante

est diante de um terminal de tela grande em uma das salas do campus,a não ser que esteja sentada em casa frente a seu microcomputadorpessoal, ligado por modem ... rede da universidade.

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Ap¢s ter chamado o programa C¡cero, diversos ¡cones dispos 

tos sobre a tela indicamlhe as poss¡veis formas de explorar a ciVilizaão romana: periodos, personagens hist¢ricos, textos, visita guiada a Roma... A estudante escolhe a visita guiada. O programa pergunta então qual o tema da visita. Ap¢s ter digitado "as diversões",um mapa de Roma no sculo 11 d.C. aparece, com os parques indicados em verde, as termas em azul, os teatros em amarelo e os circosem vermelho. O nome de cada local colorido est indicado em mai£sculas. A jovem latinista clica então sobre o teatro de Marcelo, a oeste do campo de Marte, porque nota que neste setor h uma forte concentraão de teatros: l se encontram tambm os teatros de Pompeue de Baibino. Atravs deste gesto simples, nossa estudante desce nacidade, aterrissando no local preciso que ela havia selecionado. Perto do teatro de Marcelo h algumas pessoas em trajes romanos: umguia, um explicador de latim, um quiosque de livros... Ela escolhe oguia e lhe pede uma introduão geral ... arte dram tica em Roma. Gra

  as a uma srie de esquemas e planos arquitet"nicos comentados pelavoz do gula, ela descobre, por exemplo, a diferena entre as constru

  ões gregas e as romanas, porque muitos dos teatros romanos tm onome de pol¡ticos famosos, quais são os grandes autores de comdias e tragdias, e suas contribuiões ... hist¢ria do teatro. Ap¢s umasrie de informaões gerais deste tipo, o gula contalhe os detalhes da

construão do templo de Marcelo, mostrandolhe depois as peculiaridades arqultet"nicas do monumento enquanto visitamno (umamicrocmera havia filmado a maquete do teatro reconstitu¡do). Depois, andando pelo campo de Marte, dirigemse para o teatro dePompeu...

Ap¢s ter visitado cinco teatros desta forma, a estudante rel asnotas que tomou durante sua visita: os planos arquitet"nicos dos teatros romanos, o texto de certas passagens do coment rio do guia, umalista bibliogr fica de textos antigos ou modernos relacionados ao teatro. Todas estas notas são diretamente transferidas para seus arquivos pessoais de textos e imagens, e ela poder servirse delas ou cit Ias em um ensaio ou exerc¡cio escolar. Na bibliografia que seu guialhe forneceu ou que ela obteve em um dos quiosques de livros que en

controu durante sua visita, os textos marcados com uma estrela estãodiretamente dispon¡veis a partir de C¡cero, os outros devendo ser procurados na biblioteca da universidade. Nossa estudante decide ler oAnfitrião, de Plauto, que est marcado com uma estrela. Um analiSador

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sint tico e morfol¢gico assim como um dicion rio latimfrancs (o

"Gaffiot eletrânico") permitem que ultrapasse rapidamente as dificuldades apresentadas pelo texto. Enquanto l a pea de Plauto, ela escreve "na margem" alguns coment rios que serão invis¡veis para ospr¢ximos leitores, mas que poder encontrar na tela e ampliar na pr¢xima leitura. Abandonando o texto antes que terminasse de llo, deixauma marca que lhe permitir voltar automaticamente ... £ltima passagem que leu. Na pr¢xima aula de civilizaão latina, cada estudante teralguma coisa diferente para dividir com os outros: um ter visitadoas termas, outro ter lido e comentado no C¡cero trechos de obrasmodernas sobre os jogos de circo em Roma, etc.

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Os sistemas educativos e de documentaão que acabamos de descrever não existem ainda, sob esta forma, em 1990. O primeiro condensa diversos programas j prontos ou em curso de desenvolvimento. O segundo prefigura a realizaão daquilo que por enquanto apenas um projeto dirigido pelo professor Bernard Frisher da Universidade da Calif¢rma em Los Angeles [21. A terminologia para a deno~minaão de tais sistemas ainda não foi definida. Devemos falar de multlfn¡dia interativa? De hiperm¡dia? De hipertexto? Escolhemos aqui otermo hipertexto, deixando claro que ele não exclui de forma algumaa dimensão audiovisual. Ao entrar em um espao interativo e reticularde manipulaão, de associaão e de leitura, a imagem e o som adquirem um estatuto de quasetextos.

Tecnicamente, um hipertexto um conjunto de n¢s ligados porconexões. Os n¢s podem ser palavras, p ginas, imagens, gr ficos oupartes de gr ficos, seqncias sonoras, documentos complexos quepodem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informaao não sãoligados linearmente, como em uma corda com n¢s, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular.Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um percursoem uma rede que pode ser tão complicada quanto poss¡vel. Porque cadan¢ pode, por sua vez, conter uma rede inteira.

Funcionalmente, um hipertexto um tipo de programa para aorganizaão ~e conhecimentos ou dados, a aquisião de informaõese a comunicaão. Em 1990, sistemas de hipertexto para o ensino e a

comunicaão entre pesquisadores estão sendo desenvolvidos experimentalmente em cerca de vinte universidades da Amrica do Norte,bem como em v rias grandes empresas. Estes hipertextos avanadospossuem um grande n£mero de funões complexas e rodam em com

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putadores grandes ou mdios. Existem ainda no comrcio uma deze

na de programas para computadores pessoais que permitem a seususu rios a construão de seus pr¢prios hipertextos. Estes programasmais rudimentares permitem, entretanto, a construão de bases dedados com acesso associativo, muito imediato, intuitivo, combinando som, imagem e texto. Em 1990, a maior parte dos usos registrados destes sistemas de hipertexto para computadores pessoais estavarelacionada ... formaão e ... educaão.

 ALGUMAS INTERFACES DA ESCRITA

 O hipertexto retoma e transforma antigas interfaces da escrita.

A noão de interface, na verdade, não deve ser limitada ...s tcnicasde comunicaão contemporneas. A impressão, por exemplo, ... pri

meira vista sem d£vida um operador quantitativo, pois multiplicaas c¢pias. Mas representa tambm a invenão, em algumas dcadas,de uma interface padronizada extremamente original: p gina de t¡tulo, cabealhos, numeraão regular, sum rios, notas, referncias cruzadas, Todos esses dispositivos l¢gicos, c lassificat¢ rios e espaciais sustentamse uns aos outros no interior de uma estrutura admiravelmente sistem tica: não h sum rio sem que haja cap¡tulos nitidamentedestacados e apresentados; não h sum rios, ¡ndice, remissão a outras partes do texto, e nem referncias precisas a outros livros sem quehaja p ginas uniformemente numeradas. Estamos hoje tão habitua

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dos com esta interface que nem notarnos mais que existe. Mas nomornento em que foi inventada, possibilitou uma relaão com o texto e com a escrita totalmente diferente da que fora estabelecida como manuscrito: possibilidade de exame r pido do conte£do, de acessonão linear e seletivo ao texto, de segmentaão do saber em m¢dulos,de conexões m£ltiplas a uma infinidade de outros livros graas ...snotas de p de p gina e ...s bibliografias. talvez em pequenos dispositivos "materiais" ou organizacionais, em determinados modos dedobrar ou enrolar os registros que estão baseadas a grande maioriadas mutaões do "saber".

A impressão, por sua vez, se estrutura sobre um grande n£merode caracter¡sticas de interface estabilizadas antes do sculo XV e quenão são ¢bvias: a organizaão do livro em c¢dex (p ginas dobradas ecosturadas juntas) e não em rolos; emprego do papel e não do papiro,

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da tabuinha de argila, ou do pergaminho; a existncia de um alfabetoile de uma caligrafia comuns ... maior parte do espao europeu, sem1d£vida graas ... reforma caligr fica imposta autoritariamente por AIcu¡no na poca de Carlos Magno (os problemas de padronizaão e decompatibilidade não datam de hoje).A mutaão da impressão em si foi completada por uma transforniaão do tamanho e peso dos incun bulos. Na Idade Mdia os livroseram enormes, acorrentados nas bibliotecas, lidos em voz alta no atril.Graas a uma modificaão na dobradura, o livro tornase port til edifundese maciamente. Em vez de dobrar as folhas em dois (in folio),comeouse a dobr las em oito (in octavo). Mas para que o Timeu

ou a Eneida coubessem em um volume tão pequeno, Aldo Manucio,o editor veneziano que promoveu o inoctavo, inventou o estreito ca~ractere it lico e decidiu livrar os textos do aparelho cr¡tico e dos coment rios que os acompanhavam h sculos... Foi assim que o livrotornouse f cil de manejar, cotidiano, m¢vel, e dispon¡vel para a apropriaão pessoal [ 111. Como o computador, o livro s¢ se tornou umam¡dia de massa quando as vari veis de interface "tamanho" e "massa" atingiram um valor suficientemente baixo. O projeto pol¡ticocul~tural de colocar os cl ssicos ao alcance de todos os leitores em latirrinão pode ser dissociado de uma infinidade de decisões, reorganizaõese invenões relativas ... rede de interfaces "l¡vro~'.O agenciamento complexo que o documento impresso constitu¡acontinuou a se disseminar e a ramificar ap¢s o sculo XV. A bibliote

ca moderna, por exemplo, surgiu no sculo XVIII. As coleões de fichas classificadas em ordem alfabtica, constru¡das a partir das p ginas de apresentaão e dos ¡ndices dos livros, nos permitem considerara biblioteca como um tipo de niegadocumento relativamente bem sinalizado, no qual poss¡vel deslocarse facilmente para achar aquiloque se procura, com um minimo de treinamento.O jornal ou revista, refugos da impressão bem como da biblioteca moderna, são particularmente bem adaptados a uma atitude deatenão flutuante, ou de interesse potencial em relaão ... informaão.Não se tratade caar ou de perseguir uma informaão particular, mas

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de recolher coisas aqui e ali, sem ter uma idia preconcebida. O verboto browse ("recolher", mas tambm "dar uma olhada") empregadoem ingls para designar o procedimento curioso de quem navega emuni hipertexto. No territ¢rio quadriculado do livro ou da biblioteca,precisamos de mediaões e mapas como o ¡ndice, o sum rio ou o fi

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ch rio. Ao contr rio, o leitor do )ornal realiza diretamente uma navegaão a olho nu. As manchetes chamam a atenão, dando uma primeira idia, pinamse aqui e ali algumas frases, uma foto, e depois,de repente, isso, um artigo fisga nossa atenão, encontramos algo quenos atrai... S¢ podemos nos dar conta realmente do quanto a interfacede um jornal ou de uma revista se encontra aperfeioada quando tentamos encontrar o mesmo desembarao num sobrev"o usando a telae o teclado. O jornal encontrase todo em open field, j quase inteiramente desdobrado. A interface inform tica, por outro lado, nos colo

ca diante de um pacote terrivelmente redobrado, com pouqu¡ssima superf¡cie que seja diretamente acess¡vel em um mesmo instante. A manipulaão deve então substituir o sobrev"o.

 O SUPORTE INFORMATICO DO HIPERTEXTO

 Estes inconvenientes da consulta atravs da tela são parcialmen

te compensados por um certo n£mero de caracter¡sticas de interfacesque se disseminaram em inform tica durante os anos oitenta e quepoder¡amos chamar de princ¡pios b sicos da interaão amig vel:

a representaão figurada, diagram tica ou ic"nica das estruturas de informaão e dos comandos (por oposião a representaoescodificadas ou abstratas);

o uso do "mouse" que permite ao usu rio agir sobre o queocorre na tela de forma intuitiva, sensoriomotora e não atravs do enviode um seqncia de caracteres alfanumricos;

os "menus" que mostram constantemente ao usu rio as operaões que ele pode realizar;

a tela gr fica de alta resoluão.Foi neste reduto ecol¢gico da interaão amig vel que o hipertexto

p"de ser inicialmente elaborado e depois disseminarse.Realizando o sonho de Vannevar Bush, mas atravs de tcnicas

diferentes daquelas imaginadas em 1945, os suportes de registro ¢tico como o compact disc oferecem uma enorme capacidade de armazenaniento em um volume bastante pequeno, Eles certamente terão umpapel importante na edião e distribuião de quantidades muito grandes

de informaão sob forma hipertextual. Leitores laser miniaturizadose telas planas ultraleves tornarão estes hipertextos tão f ceis de consultar na cama ou no metr" quanto um romance policial.

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NAVEGAR 

Partindo de traos tomados de emprstimo de v rias outras in¡dias, o hipertexto constitui, portanto, uma rede original de interfaces.Algumas particularidades do hipertexto (seu aspecto dinmico e multim¡dia) devemse a seu suporte de inscrião ¢tica ou magntica e aseu ambiente de consulta do tipo "interface amig vel". As possibili

1dades de pesquisa por palavraschave e a organizaão sublacente dasinformaões remetem aos bancos de dados cl ssicos. O hipertextotambm desvia em seu proveito alguns dispositivos proprios da impressão: indice, thesaurus, referncias cruzadas, sum rio, legendas... Ummapa ou esquema detalhado com legendas j constitui um agencia~mento complexo para uma leitura não linear. A nota de p de p ginaou a remissão para o gloss rio por um asterisco tambm quebram aseqencialidade do texto. Uma enciclopdia com seu thesaurus, suasimagens, suas remissões de um artigo a outro, por sua vez uma interface altamente reticular e "multim¡dia". Pensemos na forma deconsultar um dicion rio, onde cada palavra de uma definião ou deum exemplo remete a uma palavra definida ao longo de um circuitoerr tico e virtualmente sem fim.O que, então, torna o hipertexto espec¡fico quanto a isto? A velo

cidade, como sempre. A reaão ao clique sobre um botão (lugar da telade onde poss¡vel chamar um outro n¢) leva menos de um segundo. Aquase instantancidade da passagem de um n¢ a outro permite generalizar e utilizar em toda sua extensão o princ¡pio da nãolinearidade. Istose torna a norma, um novo sistema de escrita, uma metamorfose da leitura, batizada de navegaão. A pequena caracter¡stica de interface "velocidade" desvia todo o agenciamento intertextual e document rio para outro dom¡nio de uso, com seus problemas e limites. Por exemplo, nos perdemos muito mais facilmente em um hipertexto do que em uma enciclopdia. A referncia espacial e sensoriomotora que atua quando seguramos um volume nas mãos não mais ocorre diante da tela, onde somente temos acesso direto a uma pequena superf¡cie vinda de outro espao,como que suspensa entre dois mundos, sobre a qual dif¡cil projetarse.

  como se explor ssemos um grande mapa sem nunca podermosdesdobr lo, sempre atravs de pedaos min£sculos. Seria preciso entãoque cada pequena fraão de superf¡cie trouxesse consigo suas coordenadas, bem como um mapa em miniatura com uma zona acinzentadaindicando a localizaão desta fraão ("Voc est aqui"). Inventase hoje

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toda uma interface da navegaão, feita de uma infinidade de microdispositivos de interface deformados, reutilizados, desviados.

 MAPAS INTERATIVOS

 Podemos representar de v rias maneiras a conectividade de um

hipertexto. A visualizaão gr fica ou diagram tica , evidentemente,o meio mais intuitivo. Mas quais serão as extensões, as escalas, os

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princ¡pios de organizaão destes mapas de conexões, destas b£ssolasconceituais nas redes de documentos?

Um mapa global não estaria arriscado a tornarse ileg¡vel a par~tir de uma certa quantidade de conexões, a tela cobrindose de linhasentrecruzadas, em meio as quais não seria poss¡vel distinguir mais nada?Algumas pesquisas contemporneas parecem mostrar que representa

  ões de conexões em trs dimensões seriam menos embaraadas e maisf ceis de consultar, dada uma mesma quantidade, que as representa

  ões planas. O usu rio teria a impressão de entrar em uma estruturaespacial, e nela deslocarse como dentro de um volume.

Podemos tambm construir mapas globais em duas dimensões, masque mostram apenas os caminhos dispon¡veis a partir de um £nico n¢:seja ele o documento de partida, a raiz do hipertexto, ou então o documento ativo tio momento. Imaginemos um mapa das estradas francesasno qual estariam representadas apenas as estradas que levassem de Bordeaux ...s outras cidades quando estivssemos em Bordeaux, de Toulouse...s outras cidades quando estivessemos em Toulouse, etc. A cada momento,a complexidade visual ficaria assim reduzida ao m¡nimo necess rio.

  poss¡vel ainda focalizar detalhadamente a informaão maisimportante em determinado momento, representando em pontilhadoou em escala menor a informaão marginal. Trabalhar¡amos então comlupas, sistemas de zoom, e escalas graduadas sobre uma representa~

  ão diagram tica ou esquem tica do hipertexto.Podemos deixar que o usu rio represente apenas o subconjunto

do hipertexto que considere pertinente. Ele consultaria ou modificaria mais freqentemente a estrutura de seu pr¢prio "novelo de conexões" do que o do megadocumento. Teria a impressão de estar percorrendo a sua subrede privada, e não a grande rede geral.

Para ajudar a orientar os que se aventuram nas vias tortuosas dosdispositivos hipertextuais ou multim¡dias, pensase tambm em colo

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Zcar m¢dulos inteligentes ou pequenos sistemas especialistas em algunsde seus desvioS4. Estes sistemas especialistas poderiam tambm forne

lf cer informaões mais refinadas ...queles que não se contentassem com¡uma simples navegaão. j existem geradores de sistemas especialistascapazes de se conectar de forma simples em hipertextos padrão para microcompu ta dores. Os pr¢prios sistemas especialistas podem ser considerados como um tipo particular de hipertexto: uma manta discursivacondensada ou redobrada (a base de conhecimentos) desdobrada sob

mil facetas diferentes pela m quina de inferncia de acordo com o problema espec¡fico com o qual se confronta seu usu rio. Hipertextos, agenciamentos multim¡dias interativos e sistemas especialistas tm em comum esta caracter¡stica multidimensional, dinmica, esta capacidadede adaptaão fina ...s situaoes que os tornam algo alm da escrita est ticae linear. Eis por que estes diferentes modos de representaão que utilizam um suporte inform tico combinamse facilmente, tornamse rede.Esta descrião das soluões imaginadas para orientar o usu rio erepresentar a organizaão dos caminhos poss¡veis entre diferentes documentos de um hipertexto est incompleta, mas d uma idia do tipo

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de soluão que se tem eiri mente em 1990. Estudos de ergonomia e depsicologia cognitiva sobre a compreensão de documentos escritos mostram que, para entender bem e memorizar o conte£do dos textos, indispens vel que os leitores depreendam sua macroestrutura conceitual [49].Mas construir esquemas que abstraiam e integrem o sentido de um textoou, de forma mais geral, de unia configuraão inforniacional complexa, uma tarefa dif¡cil. As representaões do tipo cartogr fico ganhamhoje cada vez mais importncia nas tecnologias intelectuais de suporte inform tico, justamente para resolver este problema de construao

 4 Os sistemas especialistas sSo programas de computador capazes de subs

tituir (ou, na maior parte dos casos, ai udar) um especialista humano no exerc¡cio

de suas funões de, diagn¢stico ou aconselhainento. O sistema contm, em uma"base de regras", os conhecimentos do especialista humano sobre um dom¡nio emparticular; a "base de fatos" contm os dados (provIs¢rios) sobre a situaão particular queest sendo analisada; a "ry) quina de inferncia" aplica as regras

aosfatos para chegar a uma conclusão ou a um diagn¢stico. Os sistemas especialistassão utilizados em dom¡nios tão diversos quAinto bancos, seguradoras, inedicilia,produão industrial, etc. Sistemas especialistas minto pr¢ximos daqueles que niencionainos aqui auxiliam usu rios pouco experientes a orientaremse no ddalo d

osbancos de dados e das linguagens de pesquisa sempre que eles precisam achar

ra pidamente (sem um longo treinamento prvio) uma informaão on ]me. 

As Tectiologias da hiteligncia 

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de esquemas. Diagramas dinmicos são empregados em software bouses

(aux¡lio ... programaão), em sistemas de aux¡lio ... concepão, ... escrita, ... gestão de projetos, etc. Os esquemas interativos tornam explicitamente dispon¡veis, diretamente vis¡veis e manipul veis ... vontade asmacroestruturas de textos, de documentos multim¡dias, de programasinform ticos, de operaões a coordenar ou de restriões a respeitar. Ossistemas cognitivos humanos podem então transferir ao computadora tarefa de construir e de manter em dia representaões que eles antesdeviam elaborar com os fracos recursos de sua inem¢ria de trabalho,ou aqueles, rudimentares e est ticos, do l pis e papel. Os esquemas, mapas ou diagramas interativos estão entre as interfaces mais importantes das tecnologias intelectuais de suporte inform tico.

A mem¢ria humana estruturada de tal forma que n¢s compre~endemos e retemos bem melhor tudo aquilo que esteja organizado de

acordo com relaões espaciais. Lembremos que o dom¡nio de unia reaqualquer do saber implica, quase sempre, a posse de uma rica representaão esquem tica. Os hipertextos podem propor vias de acesso einstrumentos de orientaão em um dom¡nio do conhecimento sob aforma de diagramas, de redes ou de mapas conceituais manipul veise dinmicos. Em um contexto de formaão, os hipertextos deveriamportanto favorecer, de v rias maneiras, um dom¡nio mais r pido e maisf cil da matria do que atravs do audiovisual cl ssico ou do suporteimpresso habitual.

O hipertexto ou a multim¡dia interativa adequamse particular

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mente aos usos educativos. bem conhecido o papel fundamental doenvolvimento pessoal do aluno no processo de aprendizagern. Quanto mais ativamentc uma pessoa participar da aquisião de um conhecimento, mais ela ir integrar e reter aquilo que aprender. Ora, a multim¡dia interativa, graas ... sua dimensão reticular ou não linear, favorece urna atitude explorat¢ria, ou mesmo l£dica, face ao material aser assimilado. , portanto, um instrumento bem adaptado a umapedagogia ativa.

 RQUIEM PARA UNÖA PµGINA

 Quando um leitor se desloca na rede de microtextos e imagens

de uma enciclopdia, deve traar fisicamente seu caminho nela, manipulando volumes, virando p ginas, percorrendo com seus olhos as

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colunas tendo em mente a ordem alfabtica. Os volumes da Britannicaou da Universalis são muito pesados, inertes, imoveis. O hipertexto dinmico, est perpetuamente em movimento. Com um ou dois cliques,obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mostra ao leitoruma de suas faces, depois outra, um certo detalhe ampliado, uma estrutura complexa esquematizada. Ele se redobra e desdobra ... vontade, muda de forma, se multiplica, se corta e se cola outra vez de outraforma. Não apenas uma rede de microtextos, mas sim um grandemetatexto de geometria vari vel, com gavetas, com dobras. Um par rafo pode aparecer ou desaparecer sob uma palavra, trs cap¡tulos9sob uma palavra do par grafo, um pequeno ensaio sob uma das pala

1 vras destes cap¡tulos, e assim virtualmente sem fim, de fundo falso em

fundo falso.Na interface da escrita que se tornou est vel no sculo XV e foisendo lentamente aperfeioada depois, a p gina a unidade de dobraelementar do texto. A dobradura do c¢dex uniforme, calibrada, numerada. Os sinais de pontuaão, as separaões de cap¡tulos e de paragrafos, estes pequenos amarrotados ou marcas de dobras, não tm,por assim dizer, nada alm de uma existncia l¢gica, j que são figurados por signos convencionais e não talhados na pr¢pria matria dolivro. O hipertexto informatizado, em compensaão, permite todas asdobras imagin veis: dez mil signos ou somente cinqenta redobradosatr s de uma palavra ou ¡cone, encaixes complicados e vari veis, adapt veis pelo leitor. O formato uniforme da p gina, a dobra parasita dopapel, a encadernaão independente da estrutura l¢gica do texto não

tm mais razão de ser. Sobra, sem d£vida, a restrião da superf¡cie limitada da tela. Cabe ...queles que concebem a interface fazer desta telanão um leito de Procusto, mas sim uma ponte de comando e de observaão das metamorfoses do hipertexto. Ao ritmo regular da p gina se sucede o movimento perptuo de dobramento e desdobramentode um texto caleidosc¢pico.

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3. SOBRE A TECNICA ENQUANTO HIPERTEXTOO COMPUTADOR PESSOAL 

DESORDEM E CAOS: SILICON VALLEY 

Na metade da dcada de setenta, uma pitoresca comunidade dejovens californianos ... margem do sistema inventou o computadorpessoal. Os membros mais ativos deste grupo tinham o projeto maisou menos definido de instituir novas bases para a inform tica e, aomesmo tempo, revolucionar a sociedade. De uma certa forma, esteobjetivo foi atingido.

Silicon Valley, mais do que um cen rio, era um verdadeiro meioativo, um caldo primitivo onde instituiões cient¡ficas e universit rias,

ind£strias eletr"nicas, todos os tipos de movimentos hippies e de contestaão faziam confluir idias1 paixões e objetos que iriam fazer comque o conjunto entrasse em ebulião e reagisse.

No in¡cio dos anos setenta, em poucos lugares no mundo haviatamanha abundncia e variedade de componentes eletr"nicos quantono pequeno c¡rculo radiante, medindo algumas dezenas de quil"metros, ao redor da universidade de Stanford. L podiam ser encontrados artefatos inform ticos aos milhares: grandes computadores, jogosde v¡deo, circuitos, componentes, refugos de diversas origens e calibres... E estes elementos formavam outros tantos membros dispersos,

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arrastados, chocados uns contra os outros pelo turbilhão combinat¢rio,experincias desordenadas de alguma cosmogonia primitiva.

No territ¢rio de Silicon Valley, nesta poca, encontravamse implantadas, entre outras, a NASA, HewlettPackard, Atari e Intel. Todas as escolas da região ofereciam cursos de eletr"nica. Exrcitos deengenheiros volunt rios, empregados nas empresas locais, passavamseus fins de semana ajudando os jovens fan ticos por eletr"nica quefaziam bricolagem nas famosas garagens das casas califormanas.

Vamos seguir, como exemplo, dois destes jovens, Steve Jobs e SteveWozni4c, enquanto eles realizavam sua primeira maquina, a blue box,uma espcie de aux¡lio ... pirataria, um pequeno dispositivo digital paratelefonar sem pagar. Ambos cresceram em um mundo de sil¡cio e de circuitos. Evolu¡ram em uma reserva ecol¢gica, indissoluvelmente mate~rial e cognitiva, excepcionalmente favor vel ... briColagem high tech. Tudoestava ao alcance de suas mãos. Poder¡amos encontr los em um apar

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tamento de São Francisco, ouvindo as explicaões de um pirata telef"nico em contato (gratuito) com o Vaticano. Ou então pesquisando emrevistas de eletr"nica, tomando nota de idias, levantando bibliografias. Continuavam suas pesquisas na biblioteca de Stanford. Faziam compras nas lojas de sobras de componentes eletr"nicos. Graas a um amigopertencente a Berkeley, desviaram os computadores da universidade paraefetuar os £ltimos c lculos para seus circuitos. Finalmente, algumas dezenas de exemplares da blue box foram constru¡das e os dois Steve ganharam algum dinheiro, antes de perceber que a M fia estava ficandointeressada no assunto e abandonar o jogo.

Milhares de jovens divertiamse desta forma, fabricando r dios,amplificadores de alta fidelidade e, cada vez mais, dispositivos de te

lecomunicaão e de c lculo eletr"nico. O nec plus ultra era construirseu pr¢prio computador a partir de circuitos de segunda mão. As m quinas em questão não tinham nem teclado, nem tela, sua capacidadede mem¢ria era ¡nfima e, antes do lanamento do Basic em 1975 pordois outros adolescentes, Bill Gates e Paul Allen, elas tambm não tinham linguagem de programaão. Estes computadores não serviampara quase nada, todo o prazer estava em constru¡los.

O campus de Berkeley não ficava muito longe; a paixão pelabricolagem eletr"nica se misturava então a idias sobre o desvio da altatecnologia em proveito da "contracultura" e a slogans tais como Coinputers for the people (computadores "para o povo" ou "ao servio daspessoas"). Entre todos os grupos da nebulosa underground que trabalhavam para a reapropriaão das tecnologias de ponta, o Homebrew

Computer Club, do qual Jobs e Wozniac faziam parte, era um dos maisativos. Fica subentendido que seus membros mais ricos dividiam suasm quinas com os outros e que ningum tinha segredos para ningum.As reuniões do clube eram no audit¢rio do acelerador linear de Stanford. Este era o lugar para fazer com que os outros admirassem oucriticassem suas £ltimas realizaões. Trocavamse e vendiamse componentes, programas, idias de todos os tipos. Assim que eram constru¡dos, logo ap¢s emitidos, objetos e conceitos eram retomados, transformados pelos agentes febris de um coletivo denso, e os resultadosdestas transformaões, por sua vez, eram reinterpretados e reempre

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gados ao longo de um ciclo r pido que talvez seja o da invenão. Foideste ciclone, deste turbilhão de coisas, pessoas, idias e paixões quesaiu o computador pessoal. Não o objeto definido simplesmente porseu tamanho, não o pequeno computador de que os militares j dis

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punham h muito tempo, mas sim o complexo de circuitos eletr"nicos e de utopia social que era o computador pessoal no fim dos anos

~setenta: a potncia de c lculo arrancada do Estado, do exrcito, dosmonstros burocr ticos que são as grandes empresas e restitu¡da, enfim, aos indiv¡duos.

 UMA INTERFACE AP¢S A OUTRA

 Estudando o caso Apple, tal como foi descrito por Jeffrey Yoting15], veremos que o computador pessoal foi sendo constru¡do progres

sivamente, interface por interface, uma camada recobrindo a outra, cadaelemento suplementar dando um sentido novo aos que o precediam, permitindo conexões com outras redes cada vez mais extensas, introduzindopouco a pouco agenciamentos inditos de significaão e uso, seguindoo pr¢prio processo de construão de um hipertexto.

Wozniac, como tantos outros, criou um computador dotado de circuitos originais. Jobs queria vendlo, e para isto os dois amigos funda~ram urna empresa: a Apple. Em 1975, floresciam em Silicon Valley diversas outras empresas de microinform tica cuj os nomes evocativos estãohoje completamente esquecidos: The Sphere, Golemics, Kentucky FriedComputer... No momento em que Jobs e Wozniac montaram sua sociedade, o grande sucesso comercial da microinform tiCa era o Altair, vendido em peas separadas e cuja primeira versão vinha sem monitor nem

teclado. Afinal, quem iria comprar um computador todo montado?A Byte Shop, primeira loja de inform tica pessoal, abriu em finsde 1975 e procurava produtos para vender. Seu propriet rio, Paul Terrel,aceitou o Apple 1, mas pediu a jobs que o montasse. A montagem foio primeiro principio de interface com os usu rios dos novos computa~dores. Essa caracter¡stica da interface implicava uma modificaão nosignificado da m quina: o essencial não era mais mont la, mas sim us Ia. Ainda se fazia bricolagem, mas haviase atingi o um novo est gio.A segunda interface, desenvolvida por WoznÖac, era o gravador cas~sete q¯ permitia caeregar o Basic. Na verdade, a primeira versão doApple 1 não possu¡a um gravador cassete, sendo preciso dig¡tar a linguagem de programaão ... mão cada vez que o computador era ligado, antes de comear a programar qualquer outra coisa. Mal haviam

decidido seguir este caminho, Jobs e WoznJac viramse confrontadosa um terceiro problema de interface, o da compatibilidade, j que a versão 

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de Basic que rodava no Apple 1 não era a mesma do Altair. Os programas feitos para um deles não poderiam rodar no outro. (Quinze anosdepois, a Apple ainda enfrenta esta questão da compatibilidade.) Entre outras coisas, foi para compensar essa desvantagem atravs de melhores interfaces com o ser humano que Jobs e Wozmac iniciaram aconcepão de um novo computador: o Apple 2.

No Apple 1, a linguagem de programaão (Basic) era uma peaadicional que deveria ser caeregada atravs de um gravador. No Apple2, estava diretamente gravada em uma mem¢ria ROM. A interfacehavia se tornado um componente interno. Resultado: passou a serposs¡vel fazer algo com o computador a partir do momento em quefosse ligado. Alm disso, havia uma conexão que permitia usar umatelevisão a cores comum como monitor (tela) do computador.

Em sua versão do in¡cio de 1976, o Apple 2 possibilitava duasatividades principais: programar em Basic e jogar. Não fora aindadeixado totalmente para tr s o mundo dos adolescentes apaixonadospor eletr"nica. Mas quando, no outono de 1976, Steve Jobs voltou daprimeira exposião de microinform tica de Atlantic City, estava con~vencido de que havia uni mercado de massa para o computador pessoa]. Se a Apple quisesse sobreviver, deveria dirigirse a um p£blicoamplo, e isto significava a integraão de novas interfaces ... maquina:a partir de então, o Apple 2 seria vendido com uma fonte, um gabine

te protetor de pl stico r¡gido e um teclado.Para os fundadores da Apple, o computador era o circuito b sico. A fonte, o gabinete, os diversos perifricos não eram nada almde uma fonte de atraão ou de publicidade para fazer com que as pessoas utilizassem os circuitos. preciso perdoar os informaras, pois nãoperceberam de imediato o significado da microinform tica, ou seja,que o computador estava se tornando uma m¡dia de massa. Mesmopara os criadores da microinform tica quando comearam, tudo aquiloque se afastasse, ainda que muito pouco, da concepão da unidade aritmtica e l¢gica do computador não era realmente inform tica.

Uma m quina constitu¡da de camadas sucessivas, aparentementecada vez menos "tcnicas", cada vez menos "duras", e que se assemelham cada vez mais a jogadas publicit rias, a uma srie de operaões

de relaões p£blicas com os clientes potenciais. Mas estes suplementos publicit rios aos poucos vão sendo integrados ... m quina, terminam fundindose ao n£cleo r¡gido da tcnica. Ora, o que a publicidade se não a organizaão de uma relaão, de uma interface com o

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p£blico? Tanto assim que, invertendo o olhar, tambm podemosconsiderar um objeto tecnico no caso o computador pessoal comouma srie de jogadas publicit rias mais ou menos bem articuladas umascom as outras, sedimentadas, reificadas, endurecidas em um objeto.Se o objeto realmente um construto de interfaces, então não h , entre publicidade e dispositivo material, nada alm de uma diferena defluidez ou de distncia em relaão ao n£cleo solidificado do agenciamento tecnico. Dependendo do ponto de vista, tudo engenhariaou tudo marketing. A questão sempre a de estender, por meio de

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conexões e traduões, a rede sociotcnica que passa pela m quina.No exato momento em que decidiu fornecer o Apple 2 com uma

fonte, um gabinete e um teclado incorporados, Jobs procurava encontrar um logotipo sedutor, cuidava da aparncia do estande da Applenas exposioes, preparava a redaão de manuais e instruões lis¡veis elanava a primeira grande operaão publicit ria da empresa na PlayBoy. Tudo aquilo que interfaceia conta.

Foi justamente um perifrico que tornou o Apple 2 o maior sucesso da inform tica pessoal no final dos anos setenta e comeo dos oitenta: a unidade de discos desenhada por Wozmac. Por que esta interfaceteve um papel tão importante? Para que um computador funcione, sãonecess rios programas compostos por centenas de instruões. Ou bemestas instruões deviam ser digitadas manualmente (como era o caso noApple 1), ou então precisavam ser gravadas sobre um suporte que pudesse ser lido pela m quina. Os computadores de grande porte utilizavam fitas magnticas ou disquetes. Mas, em 1977, estas soluões eramcaras demais para o mercado de microinform tica, devido ao custo doscomponentes envolvidos na fabricaão de unidades de fita magnetica oude disquetes. Utilizavase então unidades de leitura de fitas de papel perfurado ou de cassetes. Entretanto, estes suportes de informaão eramfr geis e sua leitura muito lenta.

Wozmac transformou os dados do problema ao conceber umcircuito de controle para sua unidade de disquetes que continha cercade dez vezes menos componentes que os circuitos então usados na

inform tica pesada e que, alm disso, era muito menos volumoso e deconstruao mais simples.Os disquetes padrão usados no drive do Apple 2 tinham uma

capacidade de mem¢ria infinitamente superior ... das fitas cassete. Gra  as ao novo perifrico, os tempos de leitura e de acesso ...s informa  ões tornaramse tambm muito menores em relaão aos dos outros 

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microcomputadores da poca. Como resultado, numerosos programadores, tanto aprendizes como mestres, comearam a produzir programas no e para o Apple 2. A disponibilidade de uma grande quantidade de programas incitou os amadores a equiparemse com o computador que os aceitava. Um processo cumulativo de retroaão positivadesencadeouse e, em 1979, as vendas do Apple 2 dispararam. A interface material o dr¡ve de disquetes permitiu a multiplicaão dasinterfaces l¢gicas os programas. Esta interface de duplo efeito abriuum campo de usos e conexões pr ticas aparentemente sem limites.

Em 1979 surgiram, entre outros, um dos primeiros processadores

de texto (Apple Writer) para microcomputadores, assim como a primeira planilba (Visicalc, programa de simulaão e de tratamento integrado de dados cont beis e financeiros), sem contar com as in£meras linguagens de programaão, jogos e programas especializados.

O microcomputador fora composto por interfaces sucessivas, emum processo de pesquisa cega, no qual foram negociados, aos poucos,acessos a redes cada vez mais vastas, at que um limite fosse rompidoe a conexão fosse estabelecida com os circuitos sociotcnicos da educaão e do escrit¢rio. Simultaneamente, estes mesmos circuitos come~

  avam a se redefinir em funão da nova m quina. A "revoluão da

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inform tica" havia comeado. 

ICONES 

O surgimento do Apple Macintosh, em 1984, acelerou a integra  ão da inform tica ao mundo da comunicaão, da edião e do audio

visual, permitindo a generalizaão do hipertexto e da multim¡dia interativa. Numerosas caracter¡sticas de interface t¡picas do Macintoshforam em pouco tempo retomadas por outros fabricantes de computadores e hoje, em 1990, não podemos mais conceber a inform tica"amig vel" sem "¡cones" e "mouse".

Muitas vezes, na literatura especializada, foi narrada a "cenaprimitiva" semilegend ria que orientou o nascimento da nova maquina.Quando Steve Jobs e alguns de seus colaboradores visitaram os laborat¢rios do PaloAlto Research Center (PARC) da Xerox, e viram pelaprimeira vez como era poss¡vel interagir com um computador de forma intuitiva e sensoriornotora, sem o intermdio de c¢digos abstratos, souberam imediatamente que iriam seguir aquele caminho.

1 d Sob a direão de Al

an Kay, Larry Tessler e sua equipe do PARCtrabalhavam no desenvolvimento de uma interface inform tica quesimulasse o ambiente do escrit¢rio. Fazendo deslizar um pequeno aparelho (o mouse) sobre uma superf¡cie plana, era poss¡vel selecionar,na tela do computador, ideogramas (¡cones) que representavam documentos, pastas, instrumentos de desenho, ou partes de textos e gr ficos. Apertando os botões do mouse ("clicando"), podiase efetuardiversas operaões sobre os objetos selecionados. Em vez de ser obri~gado a digitar, no teclado, c¢digos de comandos que precisavam ser

decorados, bastava que o usu rio consultasse os "menus" e selecionasse, atravs do mouse, as aões desejadas. O usu rio tinha sempre... vista os diferentes planos nos quais se desenvolvia seu trabalho,bastando abrir ou fechar as "janelas" vis¡veis na tela para passar de

 uma atividade a outra.

 Jobs reverteu em proveito da Apple as idias da Xerox e parte

de seu pessoal. Mas os ¡cones e o mouse não bastam para explicar orelativo sucesso do Macintosh. O pequeno impacto do Star da Xeroxe do Lisa da Apple, que no entanto incorporavam estas mesmas ca

 racter¡sticas, nos provam isto a contrario.

  O Macintosh reuniu outras caracter¡sticas de interface que remetem umas ...s outras, redefinemse e valorizamse mutuamente, como

 os textos e imagens interconectados de um hi ertex

 Entre todas estas caracter¡sticas da interface, preciso levar em

conta a velocidade de c lculo do computador, seu tamanho, sua aparncia, a independncia do teclado, o desenho dos ¡cones e das janelas, etc., sem esquecer do preo da m quina (que remete, por sua vez,

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... elegncia de sua concepão e portanto ... facilidade de sua fabrica  ão). Os mais ¡nfimos detalhes, desde os aspectos aparentemente mais

,,tcnicos", at o que poderia ser visto como sendo apenas floreios estticos indignos de uma discussão entre engenheiros, passando peloproprio nome da m quina (o de um tipo de maã), tudo foi discutido

 apaixonadamente pela equipe que concebeu o Macintosh.

 Isto porque cada caracter¡stica da interface remete ao exterior,

esenhando em pontilhado as conexões pr ticas que poderão ser efetuadas em outras redes sociotcnicas, tanto no plano das representa

  ões (o nome, a forma dos ¡cones) quanto no dos agenciamentos pr ticos (o tamanho, o preo, etc.). A largura da tela, por exemplo, foicalculada a partir do formato padrão de uma folha de papel, de fora que textos ou gr ficos vistos na tela nudesse ter exata ente a

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mesma dimensão que teriam quando impressos. Um outro exemplo:decidiuse que o Mac conteria em mem¢ria ROM (prprogramada)as ferramentas necess rias aos desenvolvedores de programas, de forma que todos os futuros aplicativos utilizassem a mesma interface como usu rio. Assim, não seria preciso adquirir novos reflexos a cada vezque se mudasse de programa, e nos sentir¡amos sempre "em casa"usando o Macintosh.

Apesar de todos os esforos daqueles que o conceberam, a aventura do Macintosh quase terminou em um fracasso comercial. Se achegada inesperada das impressoras laser de baixo preo não tivesseredefinido a m quina como elo essencial de uma cadeia de publica

  ão auxiliada por computador, ela talvez tivesse permanecido como

o brinquedo para amadores esclarecidos que parecia ser quando foilanada. Mais uma vez, um uso imprevisto tinha transformado, a partirdo exterior e a posteriori, o significado de uma m quina. Em urna redesociotcnica, como em um hipertexto, cada nova conexão recompoea configuraao semantica da zona da rede ... qual est conectada.

 BIBLIOGRAFIA

 YOUNG jeffrey S., Steve jobs, un destin fulgurant, ditions Micro Appli

cation, 58, rue du FbgPoissonnire, 75010 Paris, 1989 (edio original: Stevejobs.

The journey is the Reward, Scott Foresman and Compagny, New York,1987). 

50 Pierre L6vy

4. SOBRE A TCNICA ENQUANTO HIPERTEXTO

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A POUTICA DAS INTERFACES 

DOUGI.AS ENGELBART OU A ENGENHARIA DA COLETIVIDADE 

As idias que orientaram a construão do Macintosh vinham delonge. Desde a metade dos anos cinquenta, Dotiglas Engelbart, diretot d o Augmentation Research Center (ARC) do Stanford ResearchInstitute, tinha imaginado programas para comunicaão e trabalhocoletivos, chamados hoje de groupwares. No ARC foram testados pelaprimeira vez...

a tela com m£ltiplas janelas de trabalho; a possibilidade de manipular, com a ajuda de um mouse, com~

plexos informacionais representados na tela por um s¡mbolo gr fico; as conexões associativas (hipertextuais) em bancos de dados

ou entre documentos escritos por autores diferentes; os grafos dinmicos para representar estruturas conceituais (o

"processamento de idias"); os sistemas de ajuda ao usu rio integrados aos programas [21.

Diversas demonstraões p£blicas de groupwares que reuniam todasestas caracter¡sticas de interface foram organizadas no fim dos anos sessenta. Elas tiveram uma recepão muito fraca na poca entre os construtores e vendedores de computadores. A inform tica ainda era tida comouma arte de automatizar c lculos, e não como tecnologia intelectual.Como vimos antes, algumas das idias de Dotiglas Engelbart e sua equipe

acabaram sendo postas em pr tica e comercializadas pela Xerox, Apple,e tambm pela Sun Computers na metade dos anos oitenta, sobretudopor intermdio de engenheiros que haviam colaborado no ARC.Durante a Segunda Guerra Mundial, Dotiglas Engelbart havia

trabalhado em um sistema de radar, um dos primeiros dispositivoseletr"nicos que implicava uma interaao estreita entre um homem euma tela cat¢dica. Alguns anos mais tarde, observando os primeirosmonstrus inform ticos entrincheirados em salas refrigeradas, alimentados por cartões perfurados e cuspindo listagens em um crepitar infernal, ele teve a visão (irreal na poca) de coletividades reunidas pelanova maquina, de homens diante de telas falando com as imagensanimadas de interlocutores distantes, ou trabalhando em silncio frentea te as onde danavam s¡mbolos.

  As Tecnologias da Inteligncia# 

A miCropol¡tica das interfaces ... qual Douglas Engelbart tinhadecidido dedicarse conecta finamente, por mil canais diferentes, osconstrutos heter¢clitos que os aparelhos eletr"nicos constituem (apesar cle seu aspecto compacto) e a rede de m¢dulos d¡spares que compõem o sistema cognitivo do ser humano. O princ¡pio de coerncia das

interfaces, sobre o qual j falamos um pouco, ilustra bem esta noãode micropol¡tica. Nos sistemas de cooperaao auxiliada por computador desenvolvidos no ARC, as mesmas representaões e os mesmoscomandos eram sistematicamente usados em v rias aplicaões. Porexemplo, os procedimentos eram iguais, fosse para eliminar um objeto gr fico quando se desenhava, fosse para apagar uma palavra quandose escrevia. Desta forma, quanto mais se houvesse dominado determinados aplicativos, mais a aprendizagem dos outros tornavase r pidae f cil, uma vez que a experincia adquirida podia ser reempregada.Graas a idias extremamente simples como esta, o usu rio sentiase

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em um mundo familiar mesmo quando executava uma operaao pelaprimeira vez. Ele era então estimulado a explorar as possibilidades queo sistema lhe oferecia em vez de deix las de lado e empregar seus canais habituais.

O objetivo de Douglas Engelbart era o de articular entre si doissistemas cognitivos humanos atravs de dispositivos eletr"nicos inteligentes. A coerncia das interfaces, uma espcie de caracter¡stica deinterface elevada ao quadrado, representa um princ¡pio estratgicoessencial em relaão a esta visão a longo prazo. Ela seduz o usu rioem potencial e o liga cada vez mais ao sistema. O princ¡pio que acabamos de enunciar, assim como a crena na necessidade de uma comunicaão com o computador que fosse intuitiva, metaf¢rica e sensoriomotora, em vez de abstrata, rigidamente codificada e desprovida de sentido para o usu rio, contribu¡ram para "humanizar a mãquina". Ou seja, essas interfaces, essas camadas tcnicas suplementarestornaram os complexos agenciamentos de tecnologias intelectuais em¡dias de comunicaão, tambm chamados de sistemas inform ticos,mais am veis e mais imbricados ao sistema cognitivo humano.

Apesar de ser engenheiro, ou justamente por ser engenheiro nosentido pleno da palavra, Douglas Engelbart foi um participante ativo do debate sobre os usos sociais da inform tica [21. Segundo ele, osdiversos agenciamentos de m¡dias, tecnologias intelectuais, linguagense mtodos de trabalho dispon¡veis em uma dada poca condicionamfundamentalmente a maneira de pensar e funcionar em grupo vigente

  Pierre Uvy# 

em uma sociedade. No prolongamento de uma longa evoluão cultural que comea com as primeiras palavras articuladas pelos neandertais,ele via no computador um instrumento adequado para transformar

positivamentel Para "aumentar" segundo suas pr¢prias palavras o funcionamento dos grupos. Mas, para que haja um verdadeiro "aumento", preciso acompanhar e dirigir com brandura, passo a passo,a coevoluão dos humanos e das ferramentas. Est fora de questão

1conceber um groupwares de A a Z, a priori, independentemente de umaexperimentaao cont¡nua envolvendo grupos de usu rios reais. A perfeita adaptaão das interfaces ...s peculiaridades do sistema cognitivohumano, a extrema atenão ...s m¡nimas reaoes e propostas dos usu rios de prot¢tipos, a nfase colocada sobre os mtodos (lentos e progressivos) para instalar novas tecnologias intelectuais nos grupos detrabalho caracterizam o estilo tecnol¢gico de Douglas Engelbart.No decorrer de sua pr tica, dos artigos publicados e confernci

as proferidas, o antigo diretor do Augmentation Research Center talvez tenha esboado o destino pr¢ximo da inform tica. A futura disciplina estaria encarregada dos equipamentos coletivos da inteligncia,

4 contribuindo para estruturar os espaos cognitivos dos indiv¡duos edas organizaões, assim como os urbanistas e os arquitetos definem oespao f¡sico no qual se desenvolve boa parte da vida privada e dasatividades sociais. Continuando com a met fora, as futuras equipesde arquitetos cognitivos não irão construir novas cidades em campoaberto para indiv¡duos male veis e sem passado. Muito pelo contr rio, deverão levar em conta particularidades sensoriais e intelectuais

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empresa. Não nos referimos a erros de programaão, mas sim a uma incompetncia tcnica, no sentido deste termo que estamos tentando definir.

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 Pierre L6vy

Por outro lado, o sucesso de alguns programas de microcomputadores deveuse a certas intuiões muito profundas sobre comodeveria ser a interface com o usu rio para determinado uso (Visicalc,Mac Paint). Na alta de uma iluminaão genial, a equipe de desenvolvimento pode concentrar sua atenão no conforto do usuario, em seush bitos, em suas necessidades, sobre as cr¡ticas feitas ...s versões precedentes... O conhecimento das entranhas de uma m quina ou de umsistema operacional ser então usado com o objetivo de tornar o produro final amig vel. O virtuosismo tcnico s¢ produz seu efeito completo quando consegue deslocar os eixos e os pontos de contacto dasrelaões entre homens e maquinas, reorganizando assim, indiretamente,a ecologia cognitiva como um todo. Separar o conhecimento das m

quinas da competncia cognitiva e social o mesmo que fabricar artificialmente um cego (o informata "puro") e um paral¡tico (o especialista "puro" em cincias humanas), que se tentar associar em seguida; mas ser tarde demais, pois os danos j terão sido feitos.

Aqueles que lanaram a microinform tica ou o groupware nãosão, de forma alguma, "tcnicos puros". Dever¡amos, antes, considerar os grandes participantes da "revoluão da inform tica" como homens pol¡ticos de um tipo um pouco especial. O que os distingue ofato de trabalharem na escala molecular das interfaces, l onde se organizam as passagens entre os reinos, l onde os microfluxos são desviados, acelerados, transformados, as representaões traduzidas, londe os elementos constituintes dos homens e das coisas se enlaam.

Contrariamente ao que geralmente pensamos, os agenciadores de

inovaões tcnicas não estão interessados apenas nas engrenagens complicadas das coisas. São antes de tudo movidos pela visão de novosagenciamentos na coletividade mista formada pelos homens, seus artefatos e as diversas potncias c¢smicas que os afetam. Os engenheiros, agenciadores e vision rios que ligam seu destino a determinadatcnica são movidos por verdadeiros projetos pol¡ticos, contanto quese admita que a cidade contempornea seja povoada por m quinas,por microrganismos, por foras naturais, por equipamentos de sil¡cioe de cimer~to tanto quanto por humanos.

Retomemos a comparaão entre inform tica e arquitetura ouurbanismo. Em vez de estruturar o espao f¡sico das relaões humanas e da vida cotidiana, o informara organiza o espao das funõescognitivas: coleta de informaões, armazenamento na mem¢ria, ava

liaão, previsão, decisão, concepão, etc. As Tecnologias da Inteligncia

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Os arquitetos estudaram a resistncia dos materiais e a mecnica, conhecem todas as propriedades do cimento. Mas seus conhecimentos, como todos sabem, não se limitam ... vertente objetiva de sua profissão. Que dir¡amos de urbanistas que não tivessem nenhuma noãosobre sociologia, esttica ou hist¢ria da arte? Entretanto, a maioria dosinformatas se encontra hoje em situaão an loga a esta. Eles intervmsobre a comunicaão, a percepão e as estratgias cognitivas de indiv¡duos e de grupos de trabalho; apesar disto, não encontramos em seucurr¡culo nem pragm tica da comunicaão, nem psicologia cognitiva,hist¢ria das tcnicas ou esttica. Como acordar os futuros informaraspara a dimensão humana de sua missão? Somos forados a constatarque o ensino superior produz hoje, na maioria dos casos, "especialistas em m quinas".

O trabalho de engenharia do conhecimento desenvolvido porcertas empresas de inteligncia artificial pode servir de guia para repensar a funão do informata. O engenheiro de conhecimentos nãotraz sua soluão "racional" totalmente pronta para os empregados deuma empresa. Ao contr rio, ele passa meses em campo, presta umaminuciosa atenão ...s habilidades concretas dos futuros usu rios (muitas vezes bem diversas dos mtodos prescritos); ele demonstra um respeito irrestrito ... sua experincia.

Ao se aproximar dos etn¢grafos e dos artistas, os criadores de programas e os analistas de sistemas descobrir~o a tica que falta ... sua jovem

profissão. Talvez a inform tica v enfim tornarse urna tcnica. MAQUINAS DESEJAVEIS

 Uma versão puramente ergon"mica ou funcional da relaão entre

hurnanos e computadores não daria conta daquilo que est em jogo. Oconforto e a performance cognitiva não são as £nicas coisas em causa.O desejo e a subjetividade podem estar profundamente implicados emagenciamentos tcnicos. Da mesma forma que ficamos apaixonados poruma moto, um carro ou uma casa, ficamos apaixonados por um computador, um programa ou uma linguagem de programaão.

A inform tica não intervm apenas na ecologia cognitiva, mastambm nos processos de subjetivaão individuais e coletivos. Algu

mas pessoas ou grupos constru¡ram uma parte de suas vidas ao redorde sistemas de troca de mensagens (BBS), de certos programas de aju 

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Pierre L6vy# 

da ... criaão musical ou gr fica, da programaão ou da pirataria rias

redes [ 17, 631. Mesmo sem ser pirata ou backer, poss¡vel que algumse deixe seduzir pelos dispositivos de inform tica. H toda uma d¡men~são esttica ou art¡stica na concepão das m quinas ou dos programas, aquela que suscita o envolvimento emocional, estimula o desejode explorar novos territ¢rios existenciais e cognitivos, conecta o computador a movimentos culturais, revoltas, sonhos. Os grandes atoresda hist¢ria da inform tica, como Alan Touring, Douglas Engelbart ouSteve Jobs, conceberam o computador de outra forma que não umaut"mato funcional. Eles trabalharam e viveram em sua dimensãosubjetiva, maravilhosa ou proftica.

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Com o passar dos anos, os primeiros agenciamentos tcnicoorganizacionais informatizados talvez nos paream tão estranhos, inumanos, tão arqueol¢gicos em seu gnero quanto aquelas cidades industriais do sculo XIX, cinza, uniformes, sem hist¢ria, desprovidasde parques ou praas, centradas em torno de alguma enorme usina invadida por vapores nocivos ou reverberando o estrondo inonstruosodos bateestacas. O espao das interaões sen soriointel ectu ais, a ecologia cognitiva que enquadra a vida mental dos indiv¡duos, talvez sejamenos percept¡vel, de imediato, que o espao f¡sico, mas ainda assimtemos o dever de torri la habit vel. Sonhamos e talvez por vezes otenhamos atingido, sobretudo ap¢s a metade da dcada de oitenta com um ambiente operacional desej vel, aberto ...s exploraões, ...sconexões com o exterior e ...s singularizaões.

 SOBRF O USO

 Os cr¡ticos da inform tica acreditaram, ingenuamente, nos in

formaras que sustentavam, at cerca de 1975, que a "m quina" erabin ria, r¡gida, restritiva, centralizadora, que não poderia ser de outra forma. Atravs de suas cr¡ticas, subscreveram a idia err"nca deuma essncia da inform tica. Na realidade, desde o comeo dos anossessenta, ongenheiros como Douglas Engelbart conduziam pesquisasna direão de unia inform tica da comunicaão, do trabalho cooperativo e da interaão amig vel. As grandes empresas de inform tica

s¢ deram esta guinada vinte anos depois, para não serem ultrapassadas pelos recmchegados da microinform tica, muito agressivos co~mercialmente.

 As Tecnologias da Inteligncia

 57

A verdadeira cr¡tica não op"s o homem e a m quina, em um facea face raivoso, cada um dos dois termos congelado em sua pretensaessncia, mas antes situouse no pr¢prio terreno tcnico, transformandoa substncia das coisas: quer dizer, tanto os computadores quanto asecologias cognitivas onde estes estavam inseridos.

Não eram os agenciamentos concretos de metal, de vidro e desil¡cio que era preciso combater, mas sim as m quinas burocr ticas ehier rquicas que os assombravam.

A "m quina", macia e fascinante, foi substitu¡da por um agenciamento inst vel e complicado de circuitos, orgaos, aparelhos diversos,camadas de programas, interfaces, cada parte podendo, por sua vez, decomporse em redes de interfaces. Na medida em que cada conexão suplementar, cada nova camada de programa transforma o funcionamento

e o significado do conjunto, o computador emprega a estrutura de umhipertexto, como talvez seja o caso de todo dispositivo tcnico complexo. E os usos do computador constituem ainda conexões suplementares, estendendo mais longe o hipertexto, conectando~o a novos agenclamemos, reinventando assim o significado dos elementos conectados.

O que o uso? O prolongamento do caminho j traado pelasinterpretaões precedentes; ou, pelo contr rio, a construão de novosagenciamentos de sentido. Não h uso sem torao scinantica inventiva, quer ela seja min£scula ou essencial.

Em 1979, quando Daniel Bricklin e Robert Frankston lanaram a

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primeira planilha, o Visicalc, eles usaram o Apple 2. Ao mesmo tempo,entretanto, eles reinventaram a microinform tica ao permitir aos executivos e aos pequenos etiipresµrios que fizessem previsões cont beis efinanceiras sem que precisassem programar. A partir de então, os clientes comprariam Apples, Corrimodores ou Tandys para ter acesso ao Visicalc. A planilha abriu a porta da microinform tica ...s empresas 129 1.

Toda criaão equivale a utilizar de maneira original elementospreexistentes. Todo uso criativo, ao descobrir novas possibilidades,atinge o plano da criaão. Esta dupla face da operaão tcnica podeser encontrada em todos os elos da cadeia inform tica, desde a construão de circuitos impressos at o manejo de um simples processadorde textos. Criaão e uso são, na verdade, dimensões complementaresde uma mesma operaão elementar de conexão, com seus efeitos dereinterpretaão e construão de novos significados. Ao se prolongarem reciprocamente, criaão e uso contribuem alternadamente parafazer ramificar o hipertexto sociotcnico.

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 Pierre L6vy

TECNOPOIJTICA 

Muitas vezes ouvimos dizer que a tcnica em si mesma não neboa nem m , e que tudo o que conta o uso que fazemos dela. Oraao repetir istog não nos apercebemos que um circuito impresso j u~4uso"; o uso de uma matriaprima (o silicone), de diversos princ¡piosl¢gicos, dos processos industriais dispon¡veis, etc. Um determinadocomputador cristaliza algumas escolhas entre os usos possiveis de seuscomponentes, cada um deles sendo, por sua vez, a conclusão de umalonga cadela de decisões. Um programa resulta de uma utiliza5o espec¡fica de um computador e uma linguagem de programaão. O pro

grama, por sua vez, ser usado de uma forma particular, e assim pordiante. Esta an lise pode ser repetida para todas as escalas de observaão, e ao longo de todas as linhas da grande rede sociotcnica, paracima, para baixo, seguindo in£meras conexões laterais e rizomaticas,sem que jamais achemos um objeto em estado bruto, um fato inicialou final que j não seja um uso, uma interpretaão. O uso do "usu rio final", ou seja, do sujeito que consideramos em determinado instante, não faz nada alm de continuar uma cadeia de usos que prrestringe o dele, condicionao sem contudo determin lo completamente. Não h , portanto, a tcnica de uni lado e o uso de outro, mas um£nico hipertexto, uma imensa rede flutuante e complicada de usos, ea tecnica consiste exatamente nisto.

O debate a respeito da natureza opressiva, antisocial, ou ao con

tr rio benfica e amig vel da inform tica nunca ficou confinado aoc¡rculo dos soci¢logos, dos fil¢sofos, dos jornalistas ou dos sindicalistas (os pretensos especialistas das finalidades dos usos e dasrelaões entre os homens). Ele comea com os cientistas, os engenheiros, os tecnicos, com os assim chamados profissionais das relaões entreas coisas, aqueles que supostamente cuidariam apenas dos meios, dasferramentas. A distinão abstrata e bem dividida entre fins e meios nãoresiste a uma an lise precisa do processo sociotcnico no qual, na realidade, as mediaões (os meios, as interfaces) de todos os tipos se entre~interpretam em relaão ...s finalidades locais, contradit¢rias e per

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 AMBRON Sueann et HOOPER Kristina (sous la direction de), Interactive

Multimedia, Microsoft Press, Redmond, Washington, 1988.Chaos Computer Club (sous la direction de Jrgen WlEcKMANN), Danger

pirates informatiques, Plon, Paris, 1989 (dition originale: Das Chaos Computer

Club, Rowohlt Verlag GmbH, Reinbek bei Hamburg, 1988)."Dix ans de tableur", dossier de Sciences et vie micron, ri' 68, janvier

1990.LANDRETH Bill, Out of the Inner Circle (2e dition), Tempus Book, Micro

soft Press, Redmond, Washington, 1989.LVY Pierre, "L'invention de l'ordinateur" in lements d'histoire des science

s(sous la direction de Michel SERRES), Bordas, Paris, 1984.

 As Tecnologias da Inteligncia

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5. O GROUPWARE A jovem manipula um ¡cone representando uma chama. Com a

ajuda de um cursor comandado por um mouse, aproxima o ¡deogramado fogo de um outro ideograma, representando um cubo de gelo. Ap¢salguns instantes, o ¡cone do cubo de gelo pisca em v¡deo reverso edepois, bruscamente, metamorfosease em outro ideograma: trs tra

  os ondulados representando a gua. Esta jovem uma especialista empsicologia do ensino e trabalha em Lyon. Ela participa de um projetoeuropeu multidisciplinar envolvendo as tecnologias educativas. O objetivo desenvolver os princ¡pios de uma ideografia inform tica dinmica para ensino e formaão. Um iniciante em uma disciplina cient¡fica ou em uma esfera de conhecimento pr tico dever ser capaz de

adquirir um bom n£mero de informaões apenas atravs da manipulaão dos ideogramas que representam os principais objetos de umdeterminado dom¡nio, e atravs da observaão de suas interaões.

Ap¢s terminar a preparaão de sua demonstraao, a psic¢logadecide expor seu argumento, graas ao sistema de hipertexto quepermite aos pesquisadores da equipe dialogarem sobre seus prol . etos.Ela clica no "ponto de zoom" da janela de trabalho. A zona onde osideogramas ¡nteragiam diminui então at ocupar apenas unia arcam¡nima da tela. A superf¡cie cintilarite encontrase quase que inteiramente recoberra por uma espcie de rede ramificada. R¢tulos de diversas cores cricontramse interconectados por fios tambm multicoloridos. Os r¢tulos verinelhos correspondem aos diversos problemasque a equipe de pesquisa enfrenta. A cada um deles estão conectados

v rios r¢tulos azuis, que remetem ...s diferentes posioes que os problemas suscitam. Finalmente, diversos argumentos representadospor etiquetas verdes vm apoiar ou combater (dependendo da cor dalinha) as posiões.

A jovem clica na zona dos "problemas de interface". Esta parteda rede ampliada, mostrando novos detalhes, e passa a ocupar ocentro da tela. Tendo localizado o problema:Qualaparncia visual?",ela prolonga um fio a partir deste r¢tulo, cria um novo r¢tulo vermelho, correspondendo a um subproblerna, no qual escreve: "... precisousar cores?" Associa um novo r¢tulo, azul, a este £ltimo, indicando

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portanto unia posião: "Sim". Depois cria um r¢tulo verde de argurriento conectado ... posião "Sini", que chama provisoriamente de:

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 Pierre L6vy

"Compreensão intuitiva". Então, clica duas vezes sobre "Compreensão intuitiva"; uma janela aberta automaticamente, deixandoa livre para desenvolver seu argumento. Ela explica por escrito que, paraindicar a mudana de estado ou a proximidade da metamorfose de umobjeto, mudanas progressivas na cor dos ideogramas seriam mais

teficazes que o ato dele piscar. De acordo com a filosofia geral do projeto, os pesquisadores devem usar na interface, tanto quanto poss¡vel,met foras pr¢ximas ... vida cotidiana. Ela cria uma conexão com apequena demonstraão que acabou de programar e que mostra, sucessivamente, o cubo de gelo piscando sob o efeito da chama, antesde transformarse em gua, e o ¡cone do gelo passando progressiva

mente do azul ao vermelho, antes de metamorfosearse em ideogramada gua. Ela deseja ainda criar uma conexão com o trecho de seu contrato de pesquisa onde est claramente especificado que eles deverãoutilizar sistematicamente os s¡mbolos ambientes da cultura europia,e não inventar novos, a fim de facilitar a compreensão intuitiva e evitar aprendizagens in£teis. (0 azul e o vermelho são s¡mbolos de frio equente em todos os banheiros.) Para localizar este trecho em um longo documento de quase sessenta p ginas, realiza uma pesquisa comas palavraschave: "s¡mbolos, compreensão, intuitivo". Tendo obtido o trecho que procurava, conectao a seu argumento. Atravs destamesma pesquisa, obtm um trecho das minutas de uma reunião ocorrida em Bruxelas entre a equipe e os funcion rios europeus que administram os projetos de educaão. Ap¢s ter lido seu conte£do (pois es

tava ausente desta reunião), ela tambm conecta este documento a seuargumento.Todos os documentos, artigos de revistas, minutas de reuniões,

entrevistas com usu rios ou criadores de sistemas de CAIS, etapas doprojeto j completadas (demonstraões, blocos de programa inform tico ... ) encontramse dispon¡veis para consulta imediata pelos membros da equipe atravs de uma simples pesquisa por palavraschave oude um ¡ndice geral de documentos. Estes documentos podem estar ligados, seja por inteiro ou apenas em parte, a qualquer item (problema, posião, argumento) daredede discussão racional".

Algumas horas depois, nas margens do Tei o, um informata lisboetapercebe um pequeno aumento de densidade na "rede de discussão ra

 

1 Computer Aided Instruction: instru~So auxiliada por computador. (N. do T.) As Tecnologias da Inteligncia

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cional " da equipe de pesquisa, na rea dos problemas de interface. Eleusa um zoorn sobre esta região e descobre imediatamente o novo problema e a posião conectada a ele, graas ... sua habilidade em decodificaras redes de r¢tulos e suas cores. Ap¢s ter lido os argumentos da psic¢loga de Lyon, bem como todos os documentos e o Programa de demonstraão ligados a eles, cria uma posião: "Não", quanto ... cor dos ideogramas. Seu argumento diz r"peito ... grande quantidade de terminaismonocrom ticos ainda em uso. Conecta a este argumento alguns trechos de documentos especificando que a interface de ideografia dinmica deve ser compat¡vel, tanto quanto poss¡vel, com o estado atual doequipamento de inform tica para fins educativos instalado na Europa.

Mais tarde o chefe do projeto, a partir de seu terminal em Genebra, ir propor uma nova posião: monocrom tico para as duas primeiras fases do projeto, cores para a £ltima fase, com dois argumentos: primeiro, eles fazem parte de um projeto que, no fim das contas, de pesquisa; segundo, parece interessante explorar a idia de uma escrita ondea cor desempenhe um papel; alm disso, razo vel pensar que a situa

  ão do equipamento na Europa ter evolu¡do em dez anos.Quando a discussão estiver suficientemente madura, quando cada

um dos membros da equipe tiver tido a chance de dar sua opinião etempo para estudar a configuraão das posiões e argumentos, o problema ser resolvido por consenso durante uma de suas reuniões "emcarne e osso".

A ajuda ao trabalho em equipe representa uma aplicaão particidarmente promissora dos hipertextos: ajuda ao racioc¡nio, a arguinenraão, ... discussão, ... criaão, ... organizaão, ao planejamento, etc. Ousu rio destes programas para equipes explicitamente um coletivo.

O groupware que acaba de ser citado est em uso atualmente emAustin, Texas, em uma versão um pouco menos completa. O Gibis(Graphical Issue Based Information System) foi desenvolvido em 1988por Michael Begeman e Jeff CorikIin, no mbito de um programa oficial de desenvolvimento da tecnologia de programaão 147, 551.

A elaboraão de tecnologias intelectuais não pode ser dissociadada pesquisa emp¡rica em ecologia cognitiva. Conhecemos muito pouco a forma pela qual são realmente trocadas informaões no interiordos grupos, porque idias de pessoas diferentes podem combinarse de

maneira eficaz e criativa ou, pelo contr rio, bloquearemse mutuamente.Como pensar um sujeito cognitivo coletivo? De quais instrumentos conceituais n¢s dispomos para apreender a inteligncia dos grupos?

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 Pierre Uvy

AS REDES DE CONVERSAC~¢ES DE WINOGRAD E FLORES Em uma obra publicada em 1986, Terry Winograd e Fernando Flo

res propuseram uma leitura das organizaões enquanto redes de conversaões [1131. Pedidos e compromissos, ofertas e promessas, assentimentos

1 e recusas, consultas e resoluões se entrecruzam e se modificam de for~r1 .

ma recorrente nestas redes. Todos os membros da organizaão partici7, pam da criaão e da manutenão deste p

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tas vezes provoca malentendidos e falsos debates.Os groupwares de aux¡lio ... concepão e ... discussão coletiva,

como o que apresentamos no in¡cio deste cap¡tulo, ajudam cada interlocutor a situarse dentro da estrutura l¢gica da discussão em andamento, pois fornecemlhe uma representaão gr fica da rede de arguinentos. Permitem tambm a ligaão efetiva de cada argumento comos diversos documentos aos quais ele se refere, que talvez at o tenhamoriginado, c que formam o contexto da discussão. Este contexto, aocontr rio do que ocorre durante urna discussão oral, encontrase agoratotalmente explicitado e organizado.

Os hipertextos de aux¡lio ~ inteligncia cooperativa garantem odesdobramento da rede de questões, posiões e argumentos, ao invsde valorizar os discursos das pessoas tomados como um todo. A representaão hipertextual faz romper a estrutura agon¡stica das argumentaões e contraargumentaões. A ligaão das idias a pessoas tornase nebulosa. Em uma discussão comum, cada iiitervcqão aparece comoum microacontecimento, ao qual outros irão responder sucessivamente,corno em um drama teatral. O mesmo ocorre quando dois ou mais autoresdiscutem atravs de textos intercalados. Com os groupwares, o debatese dirige para a construao progressiva de uma rede de argumentaãoe documentaão que est sempre presente aos olhos da comunidade, podendo ser manipulada a qualquer momento. Não mais "cada um nasua vez" ou "um depois do outro", mas sim uma especie de lenta escrita coletiva, dessincronizada, desdramatizada, expandida, como se cres

  Pierre L# 

por conta pr¢pria seguindo uma infinidade de linhas paralelas, ecesseportanto sempre dispon¡vel, ordenada e objetivada sobre a tela. Ogroupware talvez tenha inaugurado uma nova geometria da comunicaao.

Em 1990, uma equipe da universidade do Colorado dirigida por

Paul Smolensky completou a construão de um programa de hipertextoespecialmente concebido para a redaão e consulta de discursos racionais [491. Uma vez que as discussões tivessem sido analisadas em dezenas de questões e de posiões, poss¡vel descer ainda mais na microestrutura da conversa. O programa Euclid permite que cada argumento seja representado como uma rede de proposiões apoiadas porentidades (provas, analogias, hip¢teses de trabalho) que são em simesmas argumentos, at que se tenha atingido as hip¢teses ou fatosderradeiros. Euclid oferece a seu usu rio um certo numero de esquemas de argumentos prconstru¡dos (como o argumento por analogia,ou a fortiori, ou aquele que consiste em invalidar as premissas doadvers rio). Propõe tambm ferramentas de visualizaão da estrutura l¢gica do discurso. Desta forma tornase poss¡vel examinar alter

nadamente, sem se perder, a linha geral de um argumento e os detalhes relativos a uma subproposião em particular. A qualquer momentoda redaão ou do exame de uni argumento, o programa permite queo usu rio saiba se uma dada proposião est apoiada por outra ou simplesmente suposta, se determinado grupo de proposiões coerente,O programa pode, se necess rio, enumerar quais as teses que perderão suas bases se determinada proposião for negada, ou indicar asproposiões das quais depende a parte essencial da conclusão.

 O HIPERTEXTO, MATFRIALIZA(~AO DO SABER COMUM

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 O groupware elaborado pela equipe de Douglas Engelbart rio Stan

ford Rescarch Institute era mais que um simples programa de aux¡lio... argumentaão e ao di logo cooperativo. Ele continha tambm utilit rios para desenho, programaão, processamento de textos e diversoscat logo~ de docunientos e de referncias pertinentes para o grupo decolaboradores. Um "jourrial,,6 continha os trabalhos publicados pelosmembros da comunidade (n¢s estamos no meio universit rio), que podiam

 1 Em ingls no original. (N. do T.)

 As Tecnologias da Inteligncia

ser lidos e anotados por todos. Assim, quando um leitor julgava necess rio, suas observaões a respeito dos trabalhos de seus colegas não ficavam mais confinadas ao exemplar pessoal de uma xerox de artigo. Graasao "journal" de estrutura hipertextual, os coment rios tornavamse publicos, da mesma forma como na Idade Mdia as glosas que ornavamas margens do texto manuscrito pertenciam ao livro por direito.

Ummanualeletr"nico destinavase a manter o conjunto dos conhecimentos especiais da comunidade atualizado e apresent lo de maneira coerente. Em qualquer instante, este manual fornecia a quem o consultasse uma espcie de fotografia.do saber que o grupo possu¡a. O manual,talvez mais do que os outros aspectos do groupware, tinha uma fun

  ão de Öntegraão. Em princ¡pio, o distanciamento intelectual entre osmembros da equipe era anulado, j que todos seriam imediatamente informados assim que algum tivesse descoberto uma nova idia, um novoprocesso ou uma referncia essencial a seus trabalhos. Alm disso, osrecmchegados dispunham de um instrumento de formaão de valorinestim vel. Enfim, esta objetivaão do saber comum era concebida comoum objeto e um tema de discussão, j que, segundo as palavras de DouglasEngelbart:Umacomunidade ativa estar constantemente envolvida

em um di logo a respeito do conte£do de seu inanual.Algumas universidades americanas estão experimentando sistemas de hipertexto que permitem aos professores e aos estudantes dividir o conjunto de um corpus de documentos pertinentes. Por exemplo,os estudantes podern consiiltar e anotar os trabalhos de seus amigos ouacessar todos os materiais que seu professor utilizou para preparar ocurso. De forma a encontrarse na complexa estrutura conceitual de seumestre, um estudante de literatura pode pedir a lista de todas as conexões que o professor tiver traado ap¢s uma certa data e cuja descri

  ão inclua, por exemplo, as palavraschave: "Victor Hugo" e "epopia".Guardadas as devidas proporões, a indexaão e catalogaão das conexões nos hipertextos representam, no dom¡nio das tecnologias intelectuais, um avano compar vel ...quele que ocorreu no dom¡nio da ma

tem tica quando comeouse aconsiderar as operaões como objetos.Uma vez que uma atividade intelectual (neste caso, a relaão) esteja representada de forma declarativa, objetivada, ela pode ser objeto de processos de classificaão, transformaão, traduão, agregaão e desagregaão anal¡tica. Aquilo a que chamamos de abstraao muitas vezes não

  nada mais do que esta colocaão em signos de procedimentos signos que, por sua vez, serão objetos de outras manipulaões.

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Pierre L6vy# 

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tion, PUF, 1988 (V edi~5o arnericana: Understanding Computers and Cognition,Ablex, Norwood, New Jersey, 1986).

 

As Tecnologias da Inteligncia 69

A METµFORA DO HIPERTEXTO 

COMO O PENSAMENTO ATINGE AS COISAS 

A escrita em geral, os diversos sistemas de representaão e nota  ão inventados pelo homem ao longo dos sculos tm por funão semiotizar, reduzir a uns poucos s¡mbolos ou a alguns poucos traos osgrandes novelos confusos de linguagem, sensaão e memoria que formam o nosso real. As experincias que temos sobre as coisas misturamse com imagens em demasia, ligamse por um numero excessivode fios ao inextric vel emaranhado das vivncias ou ... indiz¡vel qualidade do instante: não nos poss¡vel orden las, compar las, dominaIas. Uma vez que as entidades singulares e m¢veis do concreto tenhamsido descoloridas e aplainadas, quando a lava espessa do futuro tiversido projetada sobre os poucos estados poss¡veis de um sistema simples e mane vel, então nossa conscincia m¡ope e dbil, em vez de perderse nas coisas, poder finalmente dominar, mas apenas atravs des

tas sombras min£sculas que são os signos.A evoluão biol¢gica fez com que desenvolvssemos a faculdade de imaginar nossas aões futuras e seu resultado sobre o meio externo. Graas a esta capacidade de simular nossas interaoes com oinundo atravs de modelos mentais, podemos antecipar o resultado denossas intervenões e usar a experincia acumulada. Alm disso, aespcie humana dotada de uma habilidade operacional superior ... dasoutras espcies animais. Talvez a combinaão destas duas caracter¡sticas, o dom da manipulaão e a imaginaão, possa explicar o fato deque quase sempre pensemos com o aux¡lio de met foras, de pequenos

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7 0 termo psicanal¡tico traduzido em portugus como "recalque". No texto,autor faz referncia a seu outro sentido em francs, que o de refluxo. (N. do T.

As Tecnologias da Inteligncia 

71# 

ea

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 a

 

s ESBOO DE UMA TEORIA HERMENÒUTICA DA COMUNICAÇO

 Por sua vez, o groupware ou o hipertexto, alm de ser uma ferra

menta eficaz para a comunicaão e a inteligncia coletivas, poderia tambm servir como met fora esclarecedora. Como met fora para pensar o qu? A comunicaão, justamente, pois ela j passou tempo demaisendo representada pelo famoso esquema telef"nico da teoria de Shannon. Voltamos, assim, ao assunto inicial desta primeira parte.

  sabido que a teoria matem tica da comunicaão, elaboradnos anos quarenta, mede a quantidade de informaão atravs da improbabilidade das mensagens de um ponto de vista estat¡stico, sem

levar em conta seu sentido. As cincias humanas, entretanto, necessitam de uma teoria da comunicaão que, ao contr rio, tome a significaão como centro de suas preocupaões.

0 que a significaão? Ou, antes, para abordar o problema dum ponto de vista mais operacional, em que consiste o ato de atribuir sentido? A operaão elementar da atividade interpretativa associaão; dar sentido a um texto o mesmo que lig lo, conectlo a outros textos, e portanto o mesmo que construir um hipertexto. sabido que pessoas diferentes irão atribuir sentidos por vezes opostos a uma mensagem idntica. Isto porque, se por um lado texto o mesmo para cada um, por outro o hipertexto pode diferir completamente. 0 que conta a rede de relaões pela qualmensagem ser capturada, a rede semi¢tica que o interpretante usa

rã para capt la.Voc talvez conecte cada palavra de uma certa p gina a dez referncias, a cem coment rios. Eu, quando muito, a conecto a umapoucas proposiões. Para mim, esse texto permanecera obscuro, enquanto que para voc estar formigando de sentidos.

Para que as coletividades compartilhem um mesmo sentido, portanto, não basta que cada um de seus membros receba a mesma mensagem. 0 papel dos groupwares exatamente o de reunir, não apenas os textos, mas tambm as redes de associaões, anotaões e coment rios ...s quais eles são vinculados pelas pessoas. Ao mesmo tem

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RASTIER Franois, Smantique interprtative, PUF, Paris, 1987. 

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Pierre L6vy# 

OS TRÒS TEMPOS DO ESP¡RITO:A ORALIDADE PRIMµRIA, A ESCRITA E A INFORMµTICA

 As possibilidades interativas e os diversos usos dos hipertextos

foram expostos na primeira parte deste livro. Mas os hipertextossão apenas um dos aspectos da grande rede digital que dentro embreve ir reunir todos os setores da ind£stria de comunicaão, daedião cl ssica ao audiovisual. A pr¢xima parte, portanto, ser dedicada sobretudo a uma descrião geral das tcnicas contemporneas de comunicaão e processamento da informaão por computador (cap¡tulo 9: "A rede digital"). A idia no entanto não foi a deficar preso a uma descrião fascinada dos programas e das redes.Na primeira parte, a imagem do hipertexto serviunos como met

fora do sentido e como fio condutor para uma an lise do processosociotcnico. Da mesma forma, nesta segunda parte, partiremos dedados tcnicos para fazer um questionamento sobre a temporalidade social e os modos de conhecimento inditos que emergem do usodas novas tecnologias intelectuais baseadas na inform tica (cap¡tulo10: "0 tempo real"). Mas se alguns tempos sociais e estilos de saber peculiares estão ligados aos computadores, a impressão, a escrita e os mtodos innemotcnicos das sociedades orais não foram deixados de lado. Todas estas "antigas" tecnologias intelectuais tiveram, e tm ainda, um papel fundamental no estabelecimento dos referenciais intelectuais e espaotemporais das sociedades humanas.Nenhum tipo de conhecimento, mesmo que pareanos tão natural,por exemplo, quanto a teoria, independente do uso de tecnologias

intelectuais.Para compreender o que est em jogo e coloc la em perspectiva, era preciso portanto resituar a an lise das evoluões contempo~rneas sob o imprio da inform tica na continuidade de uma hist¢riadas tecnologias intelectuais e das formas culturais que a elas estão ligadas. Este o principal objetivo dos cap¡tulos 7 ("Palavra e mem¢ria") e 8 ("A escrita e a hist¢ria"), que abrem esta segunda parte.

 As Tecnologias da Inteligncia

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PWI 

7. PALAVRA E MEM¢RIA 

Se a humanidade construiu outros tempos, mais r pidos, maisviolentos que os das plantas e animais, porque dispõe deste extraor

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palavra viva, as palavras que "se perdem no vento", destacase sobreo fundo de um imenso corpus de textos: "os escritos que permanecern".0 mundo da oralidade prim ria, por outro lado, situase antes dequalquer distinão escrito/falado.

Numa sociedade oral prim ria, quase todo o edif¡cio cultural estfundado sobre as lembranas dos indiv¡duos. A inteligncia, nestas sociedades, encontrase muitas vezes identificada com a mem¢ria, sobretudo com a auditiva. A escrita sumria, ainda muito pr¢xima de suas origens orais, denota a sabedoria representando uma cabea com grandesorelhas. Na mitologia grega, Mnemosina (a Mem¢ria) tinha um lugarbastante privilegiado na genealogia dos deuses, j que era filha de Uranoe Gaia (o Cu e a Terra), e mãe das nove musas. Nas pocas que antecediam a escrita, era mais comum pessoas inspiradas ouvirem vozes (joanad'Arc era analfabeta) do que terem visões, j que o oral era um canal habitual da informaão. Bardos, acdos e griots8 aprendiam seu of¡cio escutando os mais velhos. Muitos milnios de escrita acabarão por desvalorizar o saber transmitido oralmente, pelo menos aos olhos dos letrados.Spinoza ir coloc lo no £ltimo lugar dos gneros de conhecimento.

Como e por que diferentes tecnologias intelectuais geram estilosde pensamento distintos? Passar das descriões hist¢ricas ou antropo~

 8 Griot um negro africano, pertencente a uma casta especial, ao mesmo

tempo poeta, m£sico e feiticeiro. (N. do T.) 

As Tecnologias da Inteligncia 77

l¢gicas habituais a uma tentativa de explicaão requer uma an liseprecisa das diversas articulaões do sistema cognitivo humano com astcnicas de comunicaão e armazenamento. Eis por que os dados dapsicologia cognitiva contempornea serão abundantemente mobiliza

dos na seqncia deste livro.Nas sociedades sem escrita, a produão de espaotempo est quasetotalmente baseada na mem¢ria humana associada ao manejo da lingua~gem. Portanto, essencial para nosso objetivo determinar as caracter¡sticas dessa mem¢ria. 0 que pode ser Ö . nscrito na mente, e como?

 A MEMORIA HUMANA: CONTRIBUIOES DA PSICOLOGIA COGNITIVA

 Da mesma forma que o racioc¡nio espontneo não tem muito a

ver com uma "razão" hipottica fixada em sua essencia, nossa mem¢rianão se parece em nada com um equipamento de armazenamento e recuperaão fiel das informaões. E, antes de mais nada, de acordo coma psicologia cognitiva contempornea, não h apenas uma, mas diver

sas mem¢rias, funcionalmente distintas. A faculdade de construir autornatismos sensoriomotores (por exemplo, aprender a andar de bicicleta,dirigir um carro ou jogar tnis) parece colocar em jogo recursos nervosos e ps¡quicos diferentes da aptidão de reter proposioes ou imagens. Mesmo no interior desta £ltima faculdade, que chamamos demem¢ria declarativa, podemos ainda fazer a distinão entre mem¢riade curto prazo e mem¢ria de longo prazo.

A mem¢ria de curto prazo, ou mem¢ria de trabalho, mobiliza aatenão. Ela usada, por exemplo, quando lemos um n£mero de telefone e o anotamos mentalmente at que o tenhamos discado no apa

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relho. A repetião parece ser a melhor estratgia para reter a informaãoa curto prazo. Ficamos pronunciando o n£mero em voz baixa indefinidamente at que tenha sido discado. 0 estudante que esteja preocupado apenas com sua nota no exame oral ir reler sua lião peladcima vez antes de entrar em sala neste dia.

A mem¢ria de longo prazo, por outro lado, usada a cada vezque lembramos de nosso n£mero de telefone no momento oportuno.Supõese que a mem¢ria declarativa de longo prazo armazenada emuma £nica e imensa rede associativa, cujos elementos difeririam somente quanto a seu conte£do informacional e quanto ... fora e n£niero das associaões que os conectam.

 78

 Pierre Uvy

Quais são as melhores estratgias para armazenar informaõesna mem¢ria de longo prazo e encontr las quando precisarmos, talvez anos mais tarde? Muitas experincias em psicologia cognitiva pare

cem mostrar que a repetião, neste caso, não ajuda muito, ou ao menos que esta não a estratgia mais eficiente. 

ARMAZENAMENTO E PESQUISA NA MEM¢RIA DE LONGO PRAZO 

Quando uma nova informaão ou um novo fato surgem diantede n¢s, devemos, para grav lo, construir uma representaão dele. Nomomento em que a criamos, esta representaão encontrase em estado de intensa ativaão no n£cleo do sistema cognitivo, ou seja, estem nossa zona de atenão, ou muito pr¢xima a esta zona. Não temos,portanto, nenhuma dificuldade em encontr la instantaneamente. 0problema da mem¢ria de longo prazo o seguinte: como encontrarum fato, uma proposião ou uma imagem que se achem muito longe

de nossa zona de atenão, uma informaão que h muito tempo nãoesteja em estado ativo?A ativaão mobiliza os elementos mnsicos para os processos

controlados, aqueles quc envolvem a atenao consciente. imposs¡vel ativar todos os n¢s da rede mnem"nica ao mesmo tempo, j queos recursos da mem¢ria de trabalho e dos processos controlados sãolimitados. Cada vez que n¢s procuramos uma lembrana ou uma informaão, a ativaão dever propagarse dos fatos atuais at os fatosque desejamos encontrar. Para isto, duas condiões devem ser preenchidas. Primeiro, uma representaão do fato que buscamos deve tersido conservada. Segundo, deve existir um caminho de associaõesposs¡veis que leve a esta representaão. A estratgia de codif¡caão, isto

  , a maneira pela qual a pessoa ir construir uma representaão do fato

que deseja lembrar, parece ter um papel fundamental em sua capacidade posterior de lembrarse deste fato.Diversos trabalhos de psicologia cognitiva permitiram detalhar

as melhores estratgias de codificaão [3, 6, 1041. Certas experincias,por exemplo, mostraram que quando era pedido a algumas pessoasque decorassem listas de palavras, repetindoas, a lembrana da informaão alvo persistia por vinte e quatro horas, mas depois tendia aapagarse. Por outro lado, quando lhes era sugerido que se lembrassem da lista construindo pequenas hist¢rias ou imagens envolvendo

 

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79# 

as palavras a serem lembradas, as performances eram mdias a curtoprazo, mas persistiam por um longo tempo. A esta segunda estratgiadamos o nome de elaboraão.

As elaboraões são acrscimos ... informaão alvo. Conectam entresi itens a serem lembrados, ou então conectam estes itens a idias iaadquiridas ou anteriormente formadas. No pensamento cotidiano, osprocessos elaborativos ocorrem o tempo todo. 0 que acontece, porexemplo, quando lemos um ensaio sobre as tecnologias da inteligenela? juntamos as proposiões que encontramos pela primeira vez ...sproposiões encontradas anteriormente no texto. Tambm as associamos a proposiões eventualmente contradit¢rias de outros autores, a im como a perg idias ou reflexões pessoais. Este tra

ss, untas, 1 1balho elaborativo ou associat¡vo , indissociavelmente, uma forma decompreender e de memorizar.

As multas experincias feitas em psicologia cognitiva sobre estetema da elaboraão mostraram que, quanto mais complexas e numerosas fossem as associaões, melhores eram as performances mnem"n¡cas.

A ativaão de esquemas (espcie de fichas ou dossis mentais es~tabilizados por uma longa experincia) durante a aquisião de informaões influi positivamente sobre a mem¢ria. Os esquemas ou rotei~ros estereotipados, que descrevem as s¡tuaões correntes de nossa vidacotidiana, representam na verdade elaboraões j prontas, imediatamente dispon¡veis. sabido que retemos melhor as informaões quando elas estão ligadas a situaões ou dom¡nios de conhecimento quenos sejam familiares.

Como explicar estes efeitos da elaboraão? Ela permite semd£vida acoplar a informaão alvo ao restante da rede atravs de um

grande n£mero de conexões. Quanto mais conexões o item a serlembrado possuir com os outros n¢s da rede, maior ser o n£merode caminhos associativos poss¡veis para a propagaão da ativaaono momento em que a lembrana for procurada. Elaborar uma proposião ou uma imagem , portanto, o mesmo que construir vias deacesso a essa representaão na rede associativa da mem¢ria de longo prazo.

Esta explicaão permite compreender o papel dos esquemas namem¢ria. A associaão de um item de informaão com um esquemapreestabelecido uma forma de "compreensão" da representaão emquestão. tambm uma maneira de fazer com que ela se beneficie dadensa rede de comunicaão que irriga o esquema.

 

80 Pierre Uvy

As elaboraões envolvendo as causas ou efeitos dos fatos evo

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cados em uma frase são mais eficazes de um ponto de vista innem"nico do que elaboraões que constroem conexões mais fracas. Foitambm demonstrado que a quantidade e pertinncia das conexõesnão eram as £nicas coisas que contavam nos mecanismos mnem"nicos. A intensidade das associaões, a maior ou menor profundidadedo n¡vel dos processamentos e dos processos controlados que acompanharam a aquisião de uma representaão tambm desempenhamum papel fundamental. Lembramonos melhor, por exemplo, daquilo que pesquisamos, ou da informaão que resultou de um esforoativo de interpretaão. A implicaão emocional das pessoas face aositens a lembrar ir igualmente modificar, de forma dr stica, suasperformances mnem"nicas. Quanto mais estivermos pessoalmente envolvidos com uma informaão, mais f cil ser lembr la.

 INCONVENIENTES DAS DUAS ESTRATGIAS DE CODIFICAÇO

 A mem¢ria humana est longe de ter a performance de um equi

pamento ideal de armazenamento e recuperaão das informaões jque, como acabamos de ver, ela extremamente sens¡vel aos processos elaborativos e ... intensidade dos processamentos controlados queacompanham a codificaão das representaões. Em particular, parece que temos muita dificuldade para discriminar entre as mensagensoriginais e as elaboraões que associamos a elas. Nos casos jur¡dicos,por exemplo, h muito tempo j foi observado que as testemunhas

misturam os fatos com suas pr¢prias interpretaões, sem conseguirdistinguilos. Quando os fatos são interpretados em funão de esquemas preestabelecidos, as distorões são ainda mais fortes. As informa

  ões originais são transformadas ou foradas para se enquadrar o maisposs¡vel no esquema, e isto qualquer que seja a boa f ou honestidadedas testemunhas. E o pr¢prio funcionamento da mem¢ria humana queesta em jogo aqui.

 AS ESTRATGIAS MNEMâNICAS NAS SOCIEDADES ORAIS

 Essas liões da psicologia cognitiva sobre a mem¢ria nos permi

tem compreender melhor como sociedades que não dispõem de meios 

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s sassa 1.

 es

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 a

 de armazenamento como a escrita, o cinema ou a fita magntica codificaram seus conhecimentos.

Quais são as representaões que tm mais chances de sobrevivenas ecologias cogn¡tivas essencialmente compostas por mem¢rias humanas? Sem d£vida aquelas que atenderem melhor aos seguintes critrios

1. As representaões serão ricamente interconectadas entre elas, oque exclui listas e todos os modos de apresentaão em que a informa

  ão se encontra disposta de forma muito modular, muito recortada;2. As conexões entre representaões envolverão sobretudo rela

  ões de causa e efeito;3. As proposiões farão referncia a dom¡nios do conhecimento

concretos e familiares para os membros das sociedades em questãode forma que eles possam lig ~los a esquemas preestabelecidos;

4. Finalmente, estas representaões deverão manter laos estreitos com "problemas da vida", envolvendo diretamente o sujeito e fortemente carregadas de emoão.

Acabamos de enumerar algumas das caracter¡sticas do mito. 0mito codifica sob forma de narrativa algumas das representaões quparecem essenciais aos membros de uma sociedade. Dado o funcionamento da mem¢ria humana, e na ausncia de tcnicas de fixaãoda informaão como a escrita, h poucas possibilidades que outro

gneros de organiza5o das representaões possam transmitir conhecimentos de forma duradoura.Não h portanto como opor um "perisamento m gico" ou "sel

vagem" a um "pensamento objetivo" ou "racional". Face ...s cultura'~primitivas", na verdade orais, estamos simplesmente diante de umclasse particular de ecologias cognitivas, aquelas que não possuem onumerosos meios de inscrião externa dos quais dispõem os homendo fim do sculo XX. Possuindo apenas os recursos de sua memoride longo prazo para reter e transmitir as representaões que lhes parecem dignas de perdurar, os menibros das sociedades orais exploraram ao m ximo o £nico instrumento de inscrião de que dispunham

Dramatizaão, personalizaão e artif¡cios narrativos diversos nãovisam apenas dar prazer ao espectador. Eles são tambm condiões sin

qua non da perenidade de um conjunto de proposiões em uma cultura oral. Podese melhorar ainda mais a lembrana recorrendo ...mem¢rias musicais e sensoriomotoras como auxiliares da mem¢riasemntica. As rimas e os ritmos dos poemas e dos cantos, as danasos rituais tm, como as narrativas, uma funão rimernotcnica. Par

evitar qualquer vis teleol¢gico, poder¡amos apresentar a mesma idiada seguinte maneira: as representaões que tm mais chances de so

breviver em um ambiente composto quase que unicamente por memorias humanas são aquelas que estão codificadas em narrativas dram ticas, agrad veis de serem OUVIdas, trazendo uma forte carga emotivae acompanhadas de m£sica e rituais diversos.

Os membros das sociedades sem escrita (e portanto sem escola)não são, portanto, "irracionais" porque crem em mitos. Simplesmenteutilizam as melhores estratgias de codificaão que estão ... sua disposião, exatamente como n¢s fazemos.

Sabemos que existe uma tendncia natural a reduzir acontecimentos singulares a esquemas estereotipados. Isto pode explicar a sensa

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  ão de "eterno retorno" que muitas vezes emana das sociedades semescrita ou das que não fazem um uso intenso dela. Ap¢s um certo tempo, a personalidade e os atos dos ancestrais se fundem aos tipos her¢icos ou m¡ticos tradicionais. Não h nada de novo sob o sol. 0 quequer dizer: dif¡cil lembrarse do espec¡fico e do singular sem reduzilos a cen rios ou formas preesta belec idas, "eternas". Platao teria, nostalgicamente, hipostasiado em suas idias os esquemas orais da mem¢ria de longo prazo, no momento em que uma nova eco ogia cognitiva fundada sobre a escrita comeava a desestabiliz los.

 0 TEMPO DA ORAHDADE: CiRCULO E DEVIR

 A forma cari"nica do tempo nas sociedades sem escrita o c¡r

culo. Evidentemente, isto não significa que não haja qualquer conscincia de sucessão ou irreversibilidade nas culturas orais. Alm domais, especulaões importantes sobre o car ter c¡clico do tempo ocorreram em civilizaões que possu¡am a escrita, como na ¡ndia ou naGrcia Antiga. Queremos apenas enfatizar aqui que um certo tipo decircularidade cronol¢gica secretado pelos atos de comunicaão queocorrem majoritariamente nas sociedades orais prim rias.

Nestas culturas, qualquer proposião que não seja periodicamenteretomada e repetida em voz alta est condenada a desaparecer. Não existe nenhum modo de armazenar as representaões verbais para futurareutilizaão. A transmissão, a passagem do tempo supõem portanto um

incessante movimento de recomeo, de reiteraão. Ritos e mitos são retidos, quase intocados, pela roda das geraões. Se o curso das coisas su 

As Tecnologias da Inteligncia 

83# 

postamente retorna periodicamente sobre si mesmo, porque os ciclos

sociais e c¢smicos ecoam o modo oral de comunicaão do saber.0 tempo da oralidade prim ria tambm o devir, um devir semmarcas nem vest¡gios. As coisas mudam, as tcnicas transformamseinsensivelmente, as narrativas se alteram ao sabor das circunstncias,pois a transmissão tambm sempre recriaão, mas ningum sabemedir essas derivas, por falta de ponto fixo.

A oralidade prim ria tambm est ligada ao devir pela forma"conto" ou "narrativa" que uma parte de seu saber toma. Os mitossão tecidos com os fatos e gestos dos ancestrais ou dos her¢is; neles,cada entidade atuante ou encontrase personalizada, capturada emuma espcie de devir imemorial, ao mesmo tempo £nico e repetitivo.

A mem¢ria do oralista prim rio est totalmente encarnada emcantos, danas, nos gestos de in£meras habilidades tcnicas. Nada e

transmitido sem que seja observado, escutado, repetido, imitado, atuado pelas pr¢prias pessoas ou pela comunidade como um todo. Almda mudana sem ponto de referncia, a aão e a participaão pessoaisonipresentes contribuem portanto para definir o devir, este estilo cronol¢gico das sociedades sem escrita.

 A PERSISTÒNCIA DA ORALIDADE PRIMµRIA

 A persistncia da oralidade primaria nas sociedades modernas não

se deve tanto ao fato de que ainda falemos (o que est relacionado com

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a oralidade secund ria), mas ... forma pela qual as representaões e asmaneiras de ser continuam a transmitirse independentemente dos circuitos da escrita e dos meios de comunicaão eletr"nicos.

A maior parte dos conhecimentos em uso em 1990, aqueles deque nos servimos em nossa vida cotidiana, nos foram transmitidosoralmente, e a maior parte do tempo sob a forma de narrativa (hist¢rias de pessoas, de fam¡lias ou de empresas). Dominamos a maior partede nossas habilidades observando, imitando, fazendo, e não estudando teorias na escola ou princ¡pios nos livros.

Rumores, tradiões e conhecimentos emp¡ricos em grande parteainda passam por outros canais que não o impresso ou os meios decomunicaão audiovisuais.

Alm disso, a oralidade sobreviveu paradoxalmente enquantom¡dia da escrita. Antes da Renascena, os textos religiosos, filosõfi

 94

 Pierre Uvy

1 cos ou jur¡dicos eram quase que obrigatoriamente acompanhados def coment rios e de interpretaões orais, sob a pena de não serem compreendidos. A transmissão do texto era indissoci vel de uma cadeiaininterrupta de relaões diretas, pessoais.4 Alguns aspectos da oralidade sobreviveram nos pr¢prios textos.Platão, Galileu e Hume compuseram di logos. São Tom s organizousua suma teol¢gica sob a forma de perguntas, respostas e objeões,estilizando assim as discussões orais dos universit rios de seu tempo.

Finalmente, a literatura, pela qual a oralidade prim ria desapareceu, hoje tem talvez como vocaão paradoxal a de reencontrar a foraativa e a magia da palavra, essa eficincia que ela possu¡a quando aspalavras ainda não eram pequenas etiquetas vazias sobre as coisas ouidias, mas sim poderes ligados ... tal presena viva, tal sopro... A lite

ratura, tarefa de reinstituião da linguagem para alm de seus usosprosaicos, trabalho da voz sob o texto, origem da palavra, de um garidioso falar desaparecido e no entanto sempre presente quando os verbos surgem, brilham repentinamente como acontecimentos do mundo, emitidos por alguma potncia imemorial e an"iiiina.

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86 

Pierre L&vy# 

8. A ESCRITA E A HIST¢RIA

  Com a escrita, abordamos aqueles que ainda são os nossos modos de conhecimento e estilos de temporalidade majorit rios. 0 eterno retorno da oralidade foi substitu¡do pelas longas perspectivas dahist¢ria. A teoria, a l¢gica e as sutilezas da interpretaão dos textosforam acrescentadas ...s narrativas m¡ticas no arsenal do saber humano. Veremos finalmente que o alfabeto e a impressão, aperfeioamentosda escrita, desempenharam um papel essencial no estabelecimento dacincia como modo de conhecimento dominante.

As formas sociais do tempo e do saber que hoje nos parecem seras mais naturais e incontest veis baseiamse, na verdade, sobre o usode tcnicas historicamente datadas, e portanto transit¢rias. Compreender o lugar fundamental das tecnologias da comunicaão e da inte

ligncia na hist¢ria cultural nos leva a olhar de uma nova maneira arazão, a verdade, e a hist¢ria, ameaadas de perder sua preeminnciana civilizaão da televisão e do computador.

 1 EMPO DA ESCRITA, TEMPO DA AGRICULTURA

 Quando uma comunidade de camponeses semeia o campo, est

confiando sua vida ... terra e ao tempo. A colheita s¢ ir ocorrer ap¢sdiversas lunaões. A invenão da agricultura, elemento fundamental daquilo a que chamamos de revoluão neol¡tica, tambm a exploraão

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de uma nova relaão com o tempo. Não que os homens do paleol¡ticotenham desconhecido o ato de postergar ou a previsão de eventos a longoprazo. Mas, com a agricultura, a pr¢pria sobrevivncia da comunidade que passa a depender da lenta inatura5o dos grãos no solo, daexistncia de estoques enquanto se espera a colheita.

A escrita foi inventada diversas vezes e separadamente nas grandes civilizaões agr¡colas da Antigidade. Reproduz, no dom¡nio dacomunica~ão, a relaão com o tempo e o espao que a agriculturahavia introduzido na ordem da subsistncia alimentar. 0 escriba cavasinais na argila de sua tabuinha assim como o trabalhador cava sulcos no barro de seu campo. a mesma terra, são instrumentos demadeira parecidos, a enxada primitiva e o c lamo distinguindosequase que apenas pelo tamanho. 0 Nilo banha com a mesma gua a

 As Tecnologia da Inteligncia

 87

cevada e o papiro. Nossa p gina vem do latim pagus, que significa o

campo do agricultor.Caando ou colhendo, obtmse imediatamente as presas ou colheita desejadas. 0 fracasso e o sucesso são decididos na hora. A agricultura, pelo contr rio, pressupõe uma organizaão pensada do tempo delimitado, todo um sistema do atraso, uma especulaão sobre asestaões. Da mesma forma, a escrita, ao intercalar um intervalo detempo entre a emissão e a recepão da mensagem, instaura a comunicaão diferida, com todos os riscos de malentendidos, de perdas e errosque isto implica. A escrita aposta no tempo.

 A ESCRITA E 0 ESTADO

 Os senhores dos primeiros Estados inscreviam sua nova po

tncia sobre o solo, erigindo os muros das cidades e dos templos.Esta fixaão no espao uma garantia de durabilidade, anuncia ofim de um certo devir sem marcas, o decl¡nio do tempo n"made.Reduplicando a inscrião urbana, a escrita pereniza sobre o granitodos santu rios ou o m rmore das estelas as palavras dos padres edos reis, suas leis, as narrativas de seus grandes feitos, as faanhasde seus deuses. A pedra fala sempre, inalter vel, repetindo incansavelmente a lei ou narrativa, retomando textualmente as palavrasinscritas, como se o rei ou o padre estivessem l em pessoa e para

 sempre.

Atravs da escrita, o poder estatal comanda tanto os signosquanto os homens, fixandoos em uma funão, designandoos para

um territ¢rio, ordenando~os sobre uma superf¡cie unificada. Atravsdos anais, arquivos administrativos, leis, regulamentos e contas, oEstado tenta de todas as maneiras congelar, programar, represar ouestocar seu futuro e seu passado. E perseguindo o mesmo objetivoque manda construir monumentos, dep¢sitos e muralhas nascidades, e que mantm, a um alto custo, os silos, os canais de irrigaão

 A escrita serve para a gestão dos grandes dom¡nios agr¡colas

para a organ zaão a corv ia e os impostos. Mas não se contenem servir ao Estado, ... agricultura planificada ou ... cidade: ela traduz

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para a ordem dos signos o espaotempo instaurado pela revoluão# 

A TRADIQAO HERMEN~UTICA 

A escrita permite uma situaão pr tica de comunicaão radicalmente nova. Pela primeira vez os discursos podem ser separados dascircunstncias particulares em que foram produzidos. Os hipertextosdo autor e do leitor podem portanto ser tão diferentes quanto poss¡veis. A comunicaão puramente escrita elimina a mediaão humanano contexto que adaptava ou traduzia as mensagens vindas de um outrotempo ou lugar. Por exemplo, nas sociedades orais prim rias, o contador adaptava sua narrativa ...s circunstncias de sua enunciaão, bemcomo aos interesses e conhecimentos de sua audincia. Da mesmaforma, o mensageiro formulava o pensamento daquele que o enviarade acordo com o humor e a disposião particulares de seu destinat rio. A transmissão oral era sempre, simultaneamente, uma traduão,uma adaptaão e uma traião. Por estar restrita a uma fidelidade, a

uma rigidez absoluta, a mensagem escrita corre o risco de tornar~seobscura para seu leitor.Talvez o £nico equivalente ... leitura de um texto, nas sociedades

orais Primarias5 seja a recepão de uma palavra proftica ou a interpretaão de vatic¡nios de or culos. Como o exegeta dos aforismos daP¡tia, o leitor encontra~se subitamente frente a assuntos de um outrolong¡nquo, cula intenão permanecer sempre incerta, sem que umintermedi rio que estivesse presente tanto ...s circunstncias de emissão quanto ...s de recepão viesse estabelecer uma conexão viva entreos atores da comunicaão.

Quando mensagens fora de contexto e amb¡guas comeam acircular, a atribuião do sentido passa a ocupar um lugar central no processo de comunicaão. 0 exerc¡cio de interpretaão tem tanto mais im

portncia quanto mais as escritas em questão são dif¡ceis de decifrar,como e o caso, por exemplo, dos sistemas de hier¢glifos ou cunciformes.Desde o terceiro milnio antes de Cristo, toda uma tradião da Ieitura havia se constitu¡do no Egito e na Mesopotmia. A atividade hermeneutica, por sinal, não se exercia apenas sobre papis e tabuinhas,mas tambm.sobre uma infinidade de sintomas,.signos e press gios, nocu estrelado, em peles, nas entranhas dos animais... Desde então, o niundose oferece como um grande texto a ser decifrado.

De geraão em geraão, a distncia entre o mundo do autor e odo leitor não p ra de crescer, novamente preciso reduzir a distncia, diminuir a tensão semantica atravs de um trabalho de interpre

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taao ininterrupto. A oralidade ajustava os cantos e as palavras paraconform los ...s circunstncias, a civilizaão da escrita acrescenta novas

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interpretaões aos textos, empurrando diante de si uma massa de es 

A simples persistncia de textos durante v rias geraões de leirores j constitui um agenciamento produtivo extraordin rio. Uma redpotencialmente infinita de coment rios, de debates, de notas e de exeeses ramifica a artir dos livros originais Transmitido de uma gera

  ão a outra o manuscrito parece secretar espontaneamente seu hi 

pertexto. A leitura leva a conflitos, funda escolas rivais, fornece suaautoridade a pretensos retornos ... origem, como tantas vezes aconteceu na Europa ap¢s o triunfo da impressão. Apesar de visar diminuira distncia entre o momento da redaão e o da leitura, a interpreta

  ao produz estas diferenas, este tempo, esta hist¢ria que ela desejavaanular. j que, ao deitar a exegese sobre o papel, quando em certosentido escrevese uma leitura, constr¢ise uma irreversibilidade Ossucessores de Averr¢is não poderão mais ler Ar¡st¢teles como seuspredecessores. A leitura fonte de urna temporalidade paradoxal, poisri(> exato momento ern que aproxima o liermenetita da origem do texto,

 aparecimento de saberes cujos autores geraliriente pretenderam quefossem independentes das situaões singulares em que foram elaborados e ut¡fizados: as teorias. A separaão do ernissor e do receptor,a impossibilidade de interagir no contexto para construir uni h¡pertexto comum são os principais obst culos da comunicaão escrita. A

ambião te¢rica transforma estas dificuldades em restriões fecundas.j que o texto encontrase isolado das condiões particulares de suacriaão e recepão, tentarse construir discursos que bastem a si

 A intenão te¢rica na cincia ou na filosofia implica a autono

mia em relaão ... tradião, que a transmissão pessoal sobre o fundode uma experincia conipartilbada. Maspodenios,comoll'aul Feyerabend1361, duvidar da possibilidade de satisfazer este programa. Existem re

almente mensagens sem mem¢ria de sua origem, independentes das circunstncias de sua emissão>

Constituiuse, por outro lado, tradiões te¢ricas paradoxais (escolas, colgios invis¡veis, filiaões intelectuais). No seio dessas microculturas, a interpretaão dos escritos tem exatamente a funão derevestilos com um tecido de circunstncias, de experincias e discursos que possa darlhes um sentido, com o risco de que o hipertextoassim reconstru¡do tenha muito poucas relaões com o dos autorescomentados enquanto estavam vivos.

Estas observaões sobre as teorias cient¡ficas ou filos¢ficas podemser estendidas ... religião. Jack Goody observa que as religiões universalistas, aquelas que em princ¡pio são independentes dos modos de vida

e do lugar geogr fico, são todas baseadas em textos [431. Poder¡amosdizer o mesmo sobre as sabedorias ou ticas que se ap¢iam sobre princ¡pios universais e uma argumentaão racional, como o estoicismo oucertas formas de budismo: são morais escritas. Voc pode converterse ao islamismo ou adotar os princ¡pios do estoicismo em Berlim, Novalorque ou Hong Kong. Por outro lado, se desejar praticar a religião oua forma de viver dos Boror¢s ou dos Azende (cuja cultura puramenteoral), voc não tem qualquer alternativa a não ser viver com eles.

Vimos que a escrita, ao separar as mensagens das situaões ondesão usados e produzidos os discursos, suscita a ambião te¢rica e as

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pretensoes a universalidade. H ainda outras razões que ligam a escrita ... ascensão do gnero te¢rico e ao decl¡nio do modo de transmissão e de organizaão dos conhecimentos atravs da narrativa. Em particular, a notaão escrita torna muito mais comoda a conservaão e atransmissão de representaões modulares separadas, independentes deritos ou narrativas.

Contrariamente ao sinal mnsico, o vest¡gio escrito literal. Nãosofre as deformaões provocadas pelas elaboraões. Não h risco queos esquemas da grande rede semntica da mem¢ria de longo prazo venhama dissolver suas singularidades. Por suas caracter¡sticas, a escrita e o armazenamento em geral se aproximam bastante da mem¢ria de curto prazo. E um p*ouco como se a tabuinha de argila, o papiro, o pergaminhoou a fita magntica repetissem incansavelmente, mecanicamente, aquiloque confiamos a eles; sem tentar compreendlo, sem conect lo a outroselementos de informaão, sem interpret lo. A escrita uma forma deestender indefinidamente a mem¢ria de trabalho biol¢gica. As tecnologias intelectuais ocupam o lugar de auxiliares cognitivos dos proces

 A Tecnologias da Inteligiicia

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sos controlados, aqueles que envolvem a atenão consciente e dispõemde tão poucos recursos no sistema cognitivo humano. Desta forma, astecnologias intelectuais servem como paliativo para certas fraquezas dosprocessos autom ticos como as heur¡sticas de racioc¡nio e os mecanismos esquematizantes da mem¢ria de longo prazo.

Com a escrita, as representaões perduram em outros formatosque não o canto ou a narrativa, tendncia ainda maior quando passamos do manuscrito ao impresso e ... medida em que o uso dos signosescritur rios torna~se mais intenso e difundido na sociedade.

Ao invs de estarem mais intimamente conectadas entre si para

responder ...s restriões da mem¢ria de longo prazo humana, as representaoes passam a poder ser transmitidas e durar de forma aut"noma. A partir de então os n£meros e as palavras podem ser dispostosem listas e tabelas. Das primeiras observaões astron"micas dos padres da Sumria ou de Akkad ...s sries de n£meros armazenados pelos computadores dos observat¢rios astrof¡sicos, das primeiras contas sobre tabuinhas ...s cotaões da Bolsa via Minitel, as tecnologiasintelectuais de fundamento escritur rio permitem a circulaão de microrepresentaões 1ivres", não envoltas em uma narrativa. Com seusbancos de dados de todos os tipos armazenados em mem¢ria ¢tica oumagntica, a inform tica apenas aumenta a quantidade socialmentedispon¡vel de informaões modulares e fora de contexto.

A partir do momento em que a tarefa da mem¢ria não mais se refere

somente ...s lembranas humanas, os longos encadeamentos de causase efeitos perdem uma parte de seus privilgios de conectar representa  ões entre si. A encenaão da aão, as apresentaões "dram ticas" cedem

lugar, em parte, a disposiões "sistem ticas". Encontramos, por exemplo, nos tratados de medicina ou de adivinhaão mesopotmicos, sries ordenadas de preceitos do tipo:se... [for encontrado tal sinal], então ... [ preciso fazer tal diagn¢stico 1 ". Neste caso, podemos falar de disposião sistem tica, j que estas listas de regras saturam todos os casos poss¡veis no dom¡nio estudado. A forma hipotticodedutiva, ou ainda as cadeias de inferncias destinadas a encontrar todas as conseqncias

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de um pequeno n£mero de principlos são outras formas sistem ticas dedisposião das representaões. Podemos pensar, por exemplo, nos Elementos de Euclides. Não existe teoria enquanto gnero de conhecimentosocialmente estabelecido seiri um uso regular da escrita. De forma maisgeral, a escrita permite transinitir de forma duradoura a prosa e os assuntos prosaicos, aqueles que estão longe dos grandes problemas da vida

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 Pierre Levy

humana e que não perturbam as emoões. 

sabido que os primeirosusos da escrita na Mesopotmia eram relacionados com a contabilidadee os invent rios dos templos.

 RETORNO AO PROBLEMA DA RACIONALIDADE

 

Uma pesquisa realizada no Usbequistão e no Quirguizistão pelo etn¢logo Luria no in¡cio do sculo XX, poca na qual a alfabetizaão estava apenas comeando, trouxe ... tona certos efeitos da escrita enquanto tecnologia intelectual. Frente ... lista "serra, lenha, plaina, machado",os camponeses de cultura puramente oral não pensavam em classificara lenha separadamente, enquanto que as crianas, assim que aprendiama ler, observavam imediatamente que a lenha não uma ferramenta.

Isto quer dizer que as pessoas educadas em culturas orais nãopossuem l¢gica, enquanto que, ao tornaremse letradas, aprenderiama raciocinar? Na verdade, diversos trabalhos de antropologia demonstraram que os indiv¡duos de culturas escritas tm tendncia a pensarpor categorias enquanto que as pessoas de culturas orais captam primeiro as situaões (a serra, a lenha, a plaina e o machado pertencem

todos ... mesma situaão de trabalho da madeira). Os oralistas pre~ferimos este termo do que analfabetos, que remete ...s sociedades ondea cultura se encontra parcialmente estruturada pela escrita não sãoportanto menos inteligentes nem menos razoaveis que nos, apenaspraticam uma outra forma de pensar, perfeitamente ajustada a suascondiões de vida e de aprendizagem (não escolar).

Quando, durante iiiriicros testes e manipulaões, psic¢logosexperimentais medem as capacidades de racioc¡nio e de mem¢ria debatalhões de estudantes, raramente permitido que eles discutam suasrespostas com os vizinhos ou usem papel e l pis para ajudar. 0 homemnu,tal como ele estudado e descrito pelos laborat¢rios depsicologia cognitiva, sem suas tecnologias intelectuais nem o aux¡liode seus semelhantes, recorre espontaneamente a um pensamento de tipo

oral, centrado sobre situaões e modelos concretos [581. 0 "pensamento l¢gico" corresponde a um estrato cultural recente ligado ao alfabeto e ao tipo de aprendizagem (escolar) que corresponde a ele.

Segundo autores como Goody, Havelock e Svenbro, um certo tipode pensamento racional ou cr¡tico s¢ pode desenvolverse ao se relacionarcom a escrita. 0 alfabeto fontico grego teria desempenhado um pa

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pel fundamental quanto a isto, ao fazer com que os textos "falassem"realmente, enquanto que os primeiros sistemas de escrita envolviam apenas signos rimernotcnicos mais ou menos f ceis de decifrar.

Havelock prop"s uma interpretaão para o nascimento da filosofia baseada na passagem de uma cultura oral para uma cultura escrita. Quando o problema da transmissão das narrativas fundadoras

  resolvido, somente então pode ser colocado, em toda sua amplidão,o da fundaão racional do discurso. Uma educaão pela experiencia,a mem¢ria, a poesia, a rcita dos mitos, iria ser substitu¡da por umensino onde o treinamento para o exame dialtico das idias teria opapel principal. S¢crates certamente um oralista, embora não use maisa palavra para exerc¡cios de mem¢ria potica, mas sim como um instrumento prosaico adequado para quebrar o charme da tradião pi

 ca ou l¡rica, graas ao manejo de uma sintaxe e de um vocabul rio

 Platão rejeita o saber potico de tipo oral que Homero, Hes¡odo

os tr gicos transmitiam. Ele quer substitu¡lo por seu pr¢prio ensi

no em prosa e seu estado de esp¡rito "escritural". A desconfiana erelaão ... escrita exibida no Fedro seria uma negaão do projeto fundamental deste escritor. Ali s, as caracter¡sticas positivas atribu¡das ...palavra oral rio di logo em questão referemse mais ... oralidade secund ria do que ... oralidade prim ria, esta £ltima, vale a pena lembrar,tendo como objetivo principal a gestão da mem¢ria social, mais do que

 · medida aue r)assamos da ideografia ao alfabeto e da caligra

 fia a impressão, o tempo tornase cada vez mais linear, hist¢rico. Aordem seqencial dos signos aparece sobre a p gina ou monumento.A acumulaão, o aumento potencialmente infinito do corpus transmiSs¡vel distendem o c¡rculo da oralidade at quebr lo. Calend rios, da

tas, anais, arquivos, ao instaurarem referncias fixas, permitem o nascimento da bist¢ria se não como disciplina, ao menos como gnero l¡ter rio. Ap¢s o triunfo da impressão, graas a um imenso trabalho decomparaão e de harmonizaão das tabelas cronol¢gicas, das observaões astron"micas e das indicaões das antigas cr"nicas, ser poss¡vel reconstruir, retrospectivamente, "o" tempo da hist¢ria, caeregan

do em uma mesma corrente uniforme, ordenando em uma lista mo

n¢tona os anos e as idades, as dinastias e os sonhos, os reinos e as erasinumer veis que secretavam seu proprio tempo e se ignoravam soberanamente desde sempre. A hist¢ria um efeito da escrita.

Repetindo, uma vez que a obsessão mnemotcnica da oralidadeprimaria não tem mais objeto, a forma narrativa perde muito de suanecessidade. Havelock observa que a justia de Hes¡odo ainda umapessoa que age, sofre e afetada. Em Platão um conceito. As pes~soas ou os her¢is da oralidade prim ria, sujeitos de aventuras m¡ticas,são traduzidos pela cultura alfabtica grega nascente em idias ou princ¡pios abstratos e imut veis. Ao de vir das sociedades sem escrita, que

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era como um rio sem bordas, um movimento sem velocidade defin¡vel,sucedese a nova problem tica do ser. Novamente, a hist¢ria pode serconstitu¡da, fruto da dialtica do ser e do devir. Mas tratase, agora,de um devir secund rio, relativo ao ser, capaz de desenhar uma progressão ou um decl¡nio. Um devir que traa uma linha aberta.

A partir de então, a mem¢ria separase do sujeito ou da comunidade tomada como um todo. 0 saber est l , dispon¡vel, estocado,consult vel, compar vel. Este tipo de mem¢ria objetiva, morta, impessoal, favorece uma preocupaão que, decerto, não totalmente nova,mas que a partir de agora ir tomar os especialistas do saber com umaacuidade peculiar: a de uma verdade independente dos sujeitos que acomunicam. A objetivaão da mem¢ria separa o conhecimento daidentidade pessoal ou coletiva. 0 saber deixa de ser apenas aquilo queme til no diaadia, o que me nutre e me constitui enquanto serhumano membro desta comunidade. Tornase um objeto suscet¡vel dean lise e exame. A exigncia da verdade, no sentido moderno e cr¡tico da palavra, seria um efeito da necrose parcial da mem¢ria socialquarido ela se v capturada pela rede de signos tecida pela escrita.

N5o preten

demos aqui explicar a filosofia ou a racionalidadeatravs da escrita, mas simplesmente sugerir que a escrita, enquantotecnologia intelectual, condiciona a existncia destas formas de pensamento. Se a escrita uma condião necess ria para o projeto ra

cionalista, nem por isso se torna uma condião suficiente. A hist¢riado pensamento não pode, de forma alguma, ser deduzida do aparecimento desta ou daquela tecnologia intelectual, j que os usos que delairão fazer os atores concretos situados na hist¢ria não são determinados com esta aparião. Seria inclusive f cil mostrar que a escrita teveusos diversos de acordo com as culturas e os per¡odos hist¢ricos.

 As Teciiologias da Inteligticia

Resta dizer que a prosa escrita não um simples modo de expressão da filosofia, das cincias, da hist¢ria ou do direito. Ela os constitui, j que estes dom¡nios do conhecimento, tal como os conhecemoshoje, não preexistem a ela. Sem escrita, não h datas nem arquivos,não h listas de observaões, tabelas de n£meros, não h c¢digos legislativos, nem sistemas filos¢ficos e muito menos cr¡tica destes sistemas. Estar¡amos no eterno retorno e na deriva insens¡vel da culturaoral. Ora, a prosa, destronada pelas formas de representaao que ainform tica traz, poderia adquirir em breve o mesmo sabor arcaico debeleza gratuita e de inutilidade que a poesia tem hoje. 0 decl¡nio daprosa anunciaria tambm o decl¡nio da relaão com o saber que elacondiciona, e o conhecimento racional oscilaria rumo a uma figura

antropol¢gica ainda desconhecida. 0 TEMPO DA IMPRESSÇO: TµBULAS RASAS E SISTEMAS

 A impressão transformou profundamente o modo de transmis

são dos textos. Dada a quantidade de livros em circulaão, não seriamais poss¡vel que cada leitor fosse introduzido ...s suas interpretaõespor um mestre que tivesse, por sua vez, recebido um ensino oral. 0destinat rio do texto agora um indiv¡duo isolado que l em silncio.Mais que nunca, a exposião escrita se apresenta como autosuficien

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ser deduzidos da prensa mecnica inventada por Gutenberg. 

AsTecriologias da Iiiteligiicia 

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0 TFMPO DA IMPRESS·O: 0 PROGRESSO 

Os textos antigos comearam a ser impressos a partir do fim dsculo XV. Para tal, foram despojados dos coment rios, digressões, ddesordem de detalhes advent¡cios e notas de escoliastas conduzidasaumentadas pelas sucessivas c¢pias at a poca moderna. 0 plano ge

ral e a coerncia dos grandes monumentos jur¡dicos, filos¢ficos e cient¡ficos da Antigidade reapareceram.A impressão permitiu que as diferentes variantes de um texto fossem

facilmente comparadas. Colocou ... disposião do erudito traduões e dicion rios. As cronologias comearam a unificarse. A cr¡tica hist¢rica e filol¢gica comeou, portanto, a ser exercida, inclusive sobre os textos sagrados

A vontade de reencontrar o passado em sua pureza, sem anacronismo, o "sentido hist¢rico", não pode ser separada dos meios fornecidos pela impressão. Decerto que o passado pode ser percebido de forma mais clara (e exposto ainda ... admiraão ou imitaão), mas agoracomo passado terminado, morto, e nao como palavra original que umcadeia viva teria transmitido at n¢s.

Coin a impressão, o teina do progresso adquiriu uma nova impor

tncia. 0 Passado, n¢s j vimos, reflui rumo a sua antiguidade, aliviando assim o peso do presente, diminuindo a carga da mem¢ria. Mas sobretudo, como sublinha Elisabeth Eisenstein, o futuro parece prometemais I iiz do que o passado. Efetivamente, a impressão transformou de ma

1 1 1 dos letrados. Algumaneira radical o dispositivo de comunicaão no grupovezes h toda uma rede internacional de correspondentes e de cr¡ticos colaborando em ediões sucessivas de certo texto religioso ou de uma obrde geografia. No lugar de c¢pias raras cada vez mais corrompidas, os errosobrepostos uns aos outros, passouse a dispor de ediões periodicament

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9. A REDE DIGITAL 

0 primeiro computador, o Emac dos anos 40, pesava v rias toneladas. Ocupava um andar inteiro em um grande prdio, e paraprogram lo era preciso conectar diretamente os circuitos, por intermdio de cabos, em um painel inspirado nos padrões telef"nicos.Nos anos cinqenta, programavase os computadores transmitindo... m quina instruões em c¢digo bin rio atravs de cartões e fitasperfuradas. Os cabos ainda existiam, mas recolheramse no interiorda m quina, cobertos por uma nova pele de programas e dispositivos de leitura. Com o surgimento das linguagens assembler e sobretudo de linguagens evolu¡das como o Fortran, o c¢digo binariO, porsua vez, refluiu para o n£cleo de sombra do computador para deixara tarefa das trocas com o mundo exterior a cargo de uma nova camada de programa. Aquilo que ontem fora interface tornase ¢rgãointerno.

As telas, cujo uso sO generalizouse no fim dos anos setenta, foram durante muito tempo consideradas como "perifricos": os pri

meiros microcomputadores eram vendidos sem os tubos cat¢dicos aosquais estamos habituados hoje. Desde então, tornouse impens velusar um computador sem tela, a tal ponto que o monitor e o tecladopassaram a simbolizar a pr¢pria m quina.

Um computador concreto constitu¡do por uma infinidade dedispositivos materiais e de camadas de programas que se recobrem einterfaceiam umas com as outras. Grande n£mero de inovaões importantes no dom¡nio da inform tica provm de outras tcnicas: eletr"nica, telecomunicaões, laser... ou de outras cincias: matem tica,l¢gica, psicologia cognitiva, neurobiologia. Cada casca sucessiva vemdo exterior, heterognea em relaão ... rede de interfaces que recobre, mas acaba por tornarse parte integrante da m quina.

Como tantas outras, a invenão do computador pessoal veio de fora;

não apenas se fez independentemente dos grandes fabricantes da rea, mascontra eles. Ora, foi esta inovaão imprevis¡vel que transformou a inform tica em um meio de massa para a criaão, comunicaão e simulaão.

Est destinada ao fracasso toda e qualquer an lise da informatizaão que esteja fundada sobre uma pretensa essncia dos computadores, ou sobre qualquer n£cleo central, invariante e imposs¡vel deencontrar, de significaão social ou cognitiva.

 As Tecnologias da Inteligncia

 101

Bin ria, a inform tica? Sem d£vida, em um certo n¡vel de funcionamento de seus circuitos, mas faz tempo que a maioria dos usu rios não mais tem qualquer relaão corri esta interface. Em que um programa de hipertexto ou de desenho "bin rio"?

A atividade de programaão não invariante melhor que a pretensa binariedade. Claro, quando se compravam Altairs ou AppIes 1

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no meio dos anos setenta, s¢ podia ser pelo prazer de programar. Mas,em 1990, a maioria dos usu rios de computadores pessoais nunca escreveu uma linha de c¢digo.

Não h identidade est vel na inform tica porque os computadores, longe de serem os exemplares materiais de uma imut vel idia plat"nica, são redes de interfaces abertas a novas conexões, imprevisiveis,que podem transformar radicalmente seu significado e uso. 0 aspecto da inform tica mais determinante para a evoluão cultural e as atividades cognitivas sempre o mais recente, relac¡onase com o £ltimo envolt¢rio tcnico, a £ltima conexão poss¡vel, a camada de programa mais exterior. Eis por que nossa analise da informatizaao nãoestar fundada sobre uma definião da inform tica. Partiremos antesdas redes e de sua evoluão.

A principal tendncia neste dom¡nio a digitalizaão, que atinge todas as tcnicas de comunicaão e de processamento de informa

  ões. Ao progredir, a digitalizaão conecta no centro de um mesmotecido eletr"nico o cinema, a radiotelevisão, o jornalismo, a edião, am£sica, as telecomunicaões e a inform tica. As diferentes categoriasprofissionais envolvidas enfrentavam os problemas de apresentaão econtextualizaão de acordo com tradiões pr¢prias, com a especific¡dade de seus suportes materiais. Os tratamentos f¡sicos dos dadostextuais, ic"nicos ou sonoros tinham cada qual suas pr¢prias particularidades. Ora, a codificaão digital relega a um segundo plano o temado material. Ou melhor, os problemas de composião, de organiza

  ão, de apresentaão, de dispositivos de acesso tendem a libertarse desuas aderncias singulares aos antigos substratos. Eis por que a noãode interface pode ser estendida ao dom¡nio da comunicaao como umtodo e deve ser pensada hoje em toda sua generalidade.

A codificaão digital j um princ¡pio de interface. Compomoscom bits as imagens, textos, sons, agenciamentos nos quais imbricamos nosso pensamento ou nossos sentidos. 0 suporte da informaãotornase infinitamente leve, m¢vel, male vel, inquebr vel. 0 digital uma matria, se quisermos, mas uma matria pronta a suportar to

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 Pierre Uvy

das as metamorfoses, todos os revestimentos, todas as deformaões.  como se o fluido numrico fosse composto por uma infinidade de

pequenas membranas vibrantes, cada bir sendo uma interface, capazde mudar o estado de um circuito, de passar do sim ao não de acordo com as circunstncias. 0 pr¢prio tomo de interface j deve terduas faces.

Mais que nunca, a imagem e o som podem tornarse os pontos

de apoio de novas tecnologias intelectuais. Uma vez digitalizado, aimagem animada, por exemplo, pode ser decomposta, recomposta,indexada, ordenada, comentada, associada no interior de hiperdocumentos multim¡dias. poss¡vel (ser poss¡vel em breve) trabalharcom a imagem e o som, tão facilmente quanto trabalhamos hoje coma escrita, sem necessidade de materiais de custo proibitivo, sem umaaprendizagem excessivamente complexa. Discos oticos ou programasdispon¡veis na rede poderão funcionar como verdadeiros kits de simulaão, cat logos de mundos que poderão ser explorados empirica~mente, atravs de imagens e sons sintetizados. Os imensos bancos de

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imagens reunidos pelas companhias de produão cinematogr fica etelevisivas serão indexados e acess¡veis a partir de qualquer terminalda mesma forma que os bancos de dados de hoje. Estas massas deimagens ¢ticas ou simuladas poderão ser filtradas, reempregadas, coladas, desviadas para todos os usos heterodoxos ou sistem ticos imagin veis. Em breve estarão reunidas todas as condiões tcnicas paraque o audiovisual atinja o grau de plasticidade que fez da escrita aprincipal tecnologia intelectual.

No centro da rede digital em formaão, podemos localizar quatro p¢los funcionais (cf. esquema) que substituirão em breve as antigas distinões fundadas sobre os suportes (tais como a imprensa, a edi

  ão, a gravaão musical, o r dio, o cinema, a televisão, o telefone, etc.).Estas quatro grandes funões são:

a produão ou composião de dados, de programas ou de representaões audiovisuais (todas as tcnicas digitais de ajuda ... criaão);

a seleão, recepão e tratamento dos dados, dos sons ou dasimagens (os,terminais de recepão "inteligentes");

a transmissão (a rede digital de servios integrados e as m¡diasdensas como os discos ¢ticos);

finalmente, as funões de armazenamento (bancos de dados,bancos de imagens, etc.).

Todos estes p¢los funcionam como complexos de interfaces. 

As Tecnologias da Inteligiicia

  103# 

DO LADO DA CRIAÇO: SONS, IMAGENS, TEXTOS, PROGRAMAS 

Do lado da criaão, podemos distinguir as tcnicas relacionadasao som, ... imagem, aos programas e aos textos.

 

o somA pr tica musical foi profundamente transformada pelo trio:seqenciador, sampler, sintetizador.

0 sampler permite gravar qualquer timbre e reproduzilo emtodas as alturas e em todos os ritmos desejados. Assim, o som caracter¡stico de um instrumento ou de um cantor pode ser usado para tocar um trecho que o instrumentista ou cantor nunca interpretou "realmente", o que coloca problemas delicados de direitos autorais. Esramos na fronteira da gravaão, do processamento e da s¡ntese de som.

0 seqenciador uma espcie de processador de texto musical.Permite ao m£sico manipular e gravar uma srie de c¢digos digitais quepoderão controlar a execuão de v rias seqncias sonoras sincronizadas,em um ou mais sintetizadores. Isto s¢ tornouse poss¡vel em escala de

massa graas ... interface MIDI, que significa Musical Instrument Digital Interface, norma internacional que permite a qualquer computadorcontrolar uma seqncia sonora em qualquer s¡ntetizador. o mesmoprinc¡pio da p¡anola. 0 trabalho do m£sico no sequenciador pode sercomparado ao da pessoa furando o'rolo que comandar o plano. Aosubstituir o piano por sintetizadores com diversas vozes, e o exerc¡ciopenoso de perfurar o papel pelo uso da interface amig vel de um microcomputador e de programas de ajuda ... composião, temos uma boa idiado trabalho que realizam os compositores modernos atravs dos seqenciadores. Uma vez seqenciado, um trecho musical não precisa mais ser

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tocado por um intrprete humano, ele executado diretamente por instrumentos digitais ou sintetizadores.

0 sintetizador permite o controle total do som, bem diverso daqueleque permitiam os instrumentos materiais. Podese, por exemplo, passar de forma cont¡nua do som de uma harpa para o de um tambor. poss¡vel programar independentemente timbre, altura, intensidade e duraão dos sons, j que estamos lidando com c¢digos digitais, e não maiscom vibraões de um ou mais instrumentos materiais.

A conexão do seqenciador, do sintetizador e do sampler no novoest£dio digital permite reunir em uma s¢ todas as funões musicais:composião, execuão e processamento em est£dio inulticanal.

 104

 Pierre Levy

A Circulaão das Interfaces no Comeo do Terceiro Milnio 

S¡ntese de

imagemfotodigital 

Gr ficdigitai

 Ideogr iav¡deo igital

 Reconhecimento da fala

 Interatividade

 

S¡ntese de voz Processamento deimagem e som

 Tela HD planaultra~leve e

Hipertextos sens¡vel ao toque 

Diagramaão Processamento Seleãoautom tica de textos inteligente das

informaõesMontagem

inteligente S¡ntese Code som autom tica CI)ROSeqenciadores SUPORTES TERMINAIS

INTELIGENTES 

RDST 

programas

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 Linguagensmuito avanadas

 FERRAMENTASDE COMPOSIÇO

 As Tecnologias da Inteligncia

 DENSOS

 ~ Rede de super

 POTÒNCIA DE CµLCULO

 Bancos de dados

 Bancos de conhecimentos

 Bancos de imagens e de efeitos visuaisBancos de efeitos sonoros

 Bancos de programas

 

ARMAZENAMENTO 105

certo que nos falta recuo para avaliar de forma plena todas asconseqncias desta mutaão tecnol¢gica sobre as profissões e sobrea economia da m£sica, sobre as pr ticas musicais e sobre a apariãode novos gneros. A maior parte dos observadores, entretanto, est deacordo quanto a ver, no surgimento dos instrumentos digitais queacabamos de descrever, uma ruptura compar vel ... da invenão danota o ou ao surgimento do disco.

 A IMAGEM

0 dom¡nio da imagem tambm tem passado por uma evoluãoespetacular, e em alguns pontos paralela ... do som. Ao sampler, por

exemplo, corresponderia ... digitaliza~ão da imagem. Uma vez digitalizada, a foto ou desenho podem ser reprocessada e desviada ... vontade, os parmetros de cor, tamanho, forma, textura, ete. podendo sermodulados e reempregados separadamente. A foto e o v¡deo digitalde alta resoluão tornarão obsoleta, a mdio prazo, a fase de digitalizaão propriamente dita, j que a imagem j estar dispon¡vel emformato digital. Antes mesmo desta digitalizaão integral, o endere

  amento digital das imagens permite, hoje, novos processos de montagem e sincronizaão, para a realizaão de filmes, que se parecemmuito com o processamento de textos.

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0 controle independente das vari veis que definem a mensagem¡c"nica praticado atravs da s¡ntese de imagem, exatamente como as¡ntese sonora e pelos mesmos motivos: a separaão do suporte f¡sico.

Os programas de inteligncia artificial que lidam com a estruturaão e animaão das imagens por objetos poderiam igualmente ser aproximados do princ¡pio do seqenciador. Uma vez definido um roteiroe atores, ou talvez deixando que interagissem apenas objetosprogramas, a seqncia animada poderia ser gerada automaticamente,

A infografia, que re£ne todas as tcnicas de tratamento e de criaãode imagens, representa certamente algo a mais que uma automatizaãoda pintura ou do desenho. Como a luneta astron"mica, o microsc¢pio ouos raios X, a interface digital alarga o campo do vis¡vel. Ela permite vermodelos abstratos de fen"menos f¡sicos ou outros, visualizar dados numricos que, sem isso, permaneceriam soterrados em toneladas de listagens. A imagem digital tambm o complemento indispens vel da simulaão, e sabemos o papel que esta £ltima tem hoje na pesquisa cient¡fica.

Em alguns decnios, todos os terminais terão interfaces gr ficasavanadas. Neste momento mesmo, est nascendo sob nossos olhos

 106

 Pierre L~vy

uma nova ideografia; algo como uma escrita dinmica ... base de ¡cones,de esquemas e de redes semnticas. Estamos na fronteira, cada vez maistenue, entre o dom¡nio da imagem e o da inform tica, esperando a livreassociaão das interfaces.

 0 PROGRAMA

Se a inform tica o ponto central do mundo contemporneodas interfaces, ela não deixa de se interfacear seguindo um anel deretroaão positiva. Linguagens cada vez mais acess¡veis ... compreen

são humana imediata, geradores de programas, geradores de sistemas especialistas, todos eles tornam a tarefa do informata cada vezmais l¢gica, sinttica e conceitual, em detrimento de um conhecimento das entranhas de determinada m quina ou das esquisitices decerto programa. As tarefas de codificaão propriamente dita, o conrato com o grão e a textura da "matria inform tica" naquilo queela tem de contingente, afastamse pouco a pouco, exatamente como nas outras atividades relacionadas ... composião. A programa

  ão declarativa, o acesso associativo (atravs do conte£do e não doendereo f¡sico) aos dados armazenados na mem¢ria, linguagensfundadas na l¢gica ou usando modos at hoje inditos de representaão dos conhecimentos, todas estas novidades introduzidas pelainteligncia artificial contm, em potencial, uma modificaão da in

form tica sem d£vida ainda mais radical que a passagem da linguagem de m...quina para o Fortran.Repetindo, como se os informaras revestissem incansavelmen~

te os computadores de novas interfaces com seu meio ambiente f¡si~co e humano: sistemas inteligentes de gerenciamento de bancos de dados, m¢dulos de compreensão de linguagem natural, dispositivos dereconhecimento de formas ou sistemas especialistas de autodiagn¢stico... e interfaces de interfaces: telas, e sobre as telas, ¡cones, botões,menus, dispositivos aptos a conectaremse cada vez melhor aos m¢dulos cognitivos e sensoriais dos usu rios a captar.

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 . INVENTAR 0 HIPERTI`XTO E A MULTIM¡DIA INTERATIVA

  preciso pensar as mutaões do som e da imagem em conjuntocom as do hipertexto e da inteligncia artificial. Conexões e reinterpretaões serão produzidas ao longo de zonas de contato m¢veis pelos agenciamentos e bricolagens de novos dispositivos que uma multiplicidade de atores realizarão.

 s Tecnologias da Inteligncia

 107

A nova escrita hipertextual ou multim¡dia certamente estar maispr¢xima da montagem de um espet culo do que da redaão cl ssica,na qual o autor apenas se preocupava com a coerncia de um textolinear e est tico. Ela ir exigir equipes de autores, um verdadeiro trabalho coletivo. Pensemos, por exemplo, em todas as competnciasnecess rias para a realizaão de uma enciclopdia interativa em CDROM, desde a expertise nos diferentes dom¡nios que a enciclopdia

abrange at os conhecimentos especializados na informatica, passando por esta arte nova da "diagramaão de tela" interativa.Inventar novas estruturas discursivas, descobrir as ret¢ricas ain

da desconhecidas do esquema dinmico, do texto de geometria vari vel e da imagem animada, conceber ideografias nas quais as cores, osom e o movimento irão se associar para significar, estas são as tarefas que esperam os autores e editores do pr¢ximo sculo.

Os grandes impressores do sculo XVI eram ao mesmo tempoletrados, humanistas, tcnicos, e exploradores de um novo modo deorganizaão do saber e das trocas intelectuais. Devemos imaginar que,em relaão ...s novas tecnologias da inteligncia, estamos diante de uma

  poca compar vel ... Renascena. 

0 ESTOQUE E SIJA CIRCULM~0 Os processos de composião ou de criaão trabalham a partir de

estoques: bancos de dados, bancos de "conhecimentos" estruturadospara a propagaão de inferncias, bancos de imagens e efeitos visuais,bancos de efeitos sonoros, bancos de programas... E o estoque acrescido constantemente por tudo aquilo que os dispositivos de composi

  ão produzem: bancos de filmes, bancos de textos e de hipertextos. Amassa de dados digitais dispon¡veis se infla o tempo todo. E quanto maisela cresce, mais preciso estrutur la, cartograf la, criar uma matrizcom estradas expressas e avenidas l¢gicas; mais as interfaces para a caaeficaz e o garimpo furioso devem ser aperfeioadas. 0 hipertexto ou osistema ... base de conhecimentos pertencem ... reserva, mas são tambm

modos de acesso ao estoque, são tipos de interfaces.Os futuros bancos de conhecimentos em grande escala serão capazes de elaborar as informaões que lhes serão confiadas, ou seja, serão capazes de fazer automaticamente algumas conexões pertinentes entreas representaões, mais ou menos como se compreendessem seu senti

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 Pierre L6vy

#

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superior, usar a fibra ¢tica. Sua parte tcnica j foi desenvolvida, masela funciona apenas em algumas reas experimentais no mundo. Na Amrica do Norte, desde 1990, cogitavase a possibilidade de conectar todos os lares com cinco canais bidirecionais de banda larga. 0 assinanteda RDS1 poderia, então, receber certas cadeias de televisão de alta resoluão, outras tantas cadeias de r dio de alta fidelidade, usar um videofoneque transmitiria perfeitamente a voz e o rosto do usu rio, transferir umgrande volume de dados inform ticos, transmitir por fax imagens coloridas com alto grau de precisão. 0 assinante poderia ainda usar os ser~vios de uma central de recados inteligente, uma combinaão dos princ¡pios da secret ria eletr"nica (mas com discriminaão dos correspondentes) e do correio eletr"nico (mas com a voz no lugar do texto). Uma conexão port til permitiria ao assinante receber as mensagens a ele destinadasem qualquer lugar do planeta em que o RDS1 possu¡sse ramificaões.

A circulaão nas redes que precederam a RDS1 era restringida pelanatureza dos suportes f¡sicos e suas limitaões quantitativas. Hoje,estamos frente a um canal tão largo que não se tem ainda idia do tipode obras, de formas culturais, de agenciamentos de representaões quepoderiam circular nele, nem sobre os gneros de interaão que deveriam acompanhar estas formas. Quais papis serão devolvidos ...s pessoas ou grupos usando a rede? N¢s nos contentamos, como na enumeraão acima, em projetar uma televisão perfeita, um telefone maisrico, uma telem tica "som e luz", etc.

Talvez fosse do lado das interfaces que o esforo de imaginaão

devesse concentrarse inicialmente. OS TERMINAIS INTELIGENTES

 Haver duas vertentes de utilizaão do terminal inteligente. A ver

tente da interatividade, em primeiro lugar, conectado a mem¢rias densas 

Pierre L6vy# 

fisicamente presentes ou ao estoque dispon¡vel na rede. Podemos aquiimaginar facilmente o desenvolvimento de microinterfaces relacionadas aos principais sentidos e m¢dulos cognit¡vos humanos: reconhecimento parcial da fala, s¡ntese vocal, telas t cteis, mesas digitalizadoraspara desenho ou escrita ... mão, comandos atravs do movimento dosolhos, comandos da voz ou gestos da mão. Todas estas interfaces estão ou dispon¡veis ou em fase de estudos. Estes m£ltiplos modos de interaão viriam animar e alimentar dispositivos funcionais caracterizados pela aão m£tua e simultnea de usu rios e sistemas. Seria o p¢lodo di logo, do jogo, da exploraão e do garimpo, sem esquecer certostipos de composião informãtlca, hipertextual ou audiovisual.

A seleão, por oposião ... interaão, constituiria a segunda ver

tente de utilizaão do terminal inteligente. 0 problema, aqui, o deaproveitar a quantidade em vez de afogarse nela. Os usos contemporneos do videocassete, da TV a cabo e das redes de computadores podem nos ajudar, por extrapolaão, a imaginar dispositivos de seleãoavanados. Não estamos mais falando simplesmente em programar agravaão de seqncias audiovisuais para poder assistiIas oportunamente, ou em obter dados precisos a partir de questões devidamenteformuladas. Como j vimos quando falamos do papel dos sistemasespecialistas nos hipertextos, seria poss¡vel ensinar um "m¢dulo pessoal" do terminal a procurar, na rede, todos os tipos de documentos

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textuais e audiovisuais suscet¡veis de nos interessarem; depois, hie~rarquizar, organizar, compactar e formatar os documentos em questão de acordo com as modalidades de interface que mais nos conviessem. Esta recuperaão tiraria proveito, tanto quanto poss¡vel, da plasticidade inerente ... digitalizaão, e das possibilidades que esta abre aosprogramas de inteligncia artificial. Obter¡amos algo como jornais audiovisuais inteiramente personalizados, diferentes para cada um deacordo com seus interesses e suas escolhas. Certas tendncias atuaisde segmentaão do p£blico, de desincronizaão das escutas, e de personalizaão das interfaces informaticas teriam, assim, sido levadas ...s£ltimas conseqncias.

Na pr¢xima geraão de groupware, lã est previsto que "programas agentes" instru¡dos por seus propriet rios filtrarão e classificarãoa correspondncia de acordo corri a prioridade, agendarão encontrose buscarão informaões na rede que sejam suscet¡veis de interessar aseu mestre. Um grande n£mero de tarefas administrativas poder serautomat¡zado, como, por exemplo, o envio regulamentar de mensa

 As Tecnologias da Inteligncia

gens ou de c¢pias de relat¢rios a certos correspondentes. Estes futuros agentes talvez at possam, se interrogados por outros agentes oudiretamente por humanos, responder a questões sobre a expertise espec¡fica daqueles que eles representam. Para isso, basta dotar os sistemas especialistas de capacidades de comunicaão nas redes e de leitura/escrita nos hipertextos. Talvez assim vejamos entidades l¢gicas ajudaremse umas ...s outras, ou dar conselhos sem "saber" se estão se dirigindo a homens ou programas, iniciando um processo social aut"nomo no selo de uma ecologia cognitiva composta.

Da mesma forma que a interatividade, o uso seletivo dos terminais inteligentes viria apoiar todas as funões de composião de textos, hipertextos, imagens animadas, sons, programas, configuraões

de interfaces, etc. Estas operaões de composião, como outras utiliza  ões, poderiam lanar mão da potncia de c lculo na rede digital, tãonaturalmente como hoje n¢s retiramos eletricidade da rede eltrica.

0 quadro não estaria completo se não abord ssemos a perspectiva que se esboa no in¡cio dos anos noventa nas pesquisas sobre telas planas e ultraleves, 0 terminal de inform tica ou a televisão dos anos oitenta lembram, em muitos aspectos, os livros do sculo XII: são pesados, enormes, acorrentados por seu cabo de fora.A mobilidade e a leveza do livro de bolso, a portabilidade do r diotransistorizado ou do walkman poderiam abrir todo um novo campo de utilizaões e apropriaões para eles. Grandes telas planas serão penduradas em paredes. Poderei consultar meu hipertexto emminha cama, ou fazer anotaões em um documento com minha ca

neta ¢tica no metr" graas a um pequeno terminal ultraleve, semfio, que uma conexão do RDS1 ligada em local pr¢ximo ir alimentar atravs de microondas.

A imagem aqui esboada faz referncia apenas a performancestcnicas j realizadas ou em vias de estudo avanado. Ela supõe, sobretudo, que um m¡nimo de padronizaão ou de compatibilidade entre os sistemas e os materiais tenha sido negociado entre os Estados eas grandes multinacionais da eletr"nica. Ainda que estejamos hoje muito distantes do ideal com relaão a isso, os compromissos internacionais j assinados sobre as normas do RDS1 e o acordo geral consegui

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do em torno da interface MIDI (o padrão musical que definimos anteriormente) mostram que uma compatibilidade universal não totalmente inalcan vel, ainda que isto custe numerosas camadas de programas de traduão e de interfaces.

 112

 Pierre L6vy

11 

0 processo de unificaão do campo da "comunicaão" j bemantigo, na ordem econ"mica e financeira. Comeou recentemente noplano das habilidades e das profissões durante o desenvolvimento datelem tica. Com a constituião da rede digital e o desdobramento deseus usos tal como imaginamos aqui, televisão, cinema, imprensa escrita, inform tica e telecomunicaões veriam suas fronteiras se dissolveremquase que totalmente, em proveito da circulaão, da mestiagem e dametamorfose das interfaces em um mesmo territ¢rio cosmopolita.

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  As Tecnologias da Inteligncia 

113# 

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10. 0 TEMPO REAL 

Qual seria o tipo de tempo secretado pela informatizaão? A maneira antiga de inscrever os signos era conveniente para o cidadão ou campons. 0 computador e as telecomunicaões correspondem ao nomadismo das megal¢poles e das redes internacionais. Ao contr rio da es~crita, a inform tica não reduplica a inscrião sobre o territ¢rio; ela serve ... mobilizaão permanente dos homens e das coisas que talvez tenhacomeado com a revoluão industrial. A escrita era o eco, sobre um planocognitivo, da invenão sociotcnica do tempo delimitado e do estoque.A inform tica, ao contr rio, faz parte do trabalho de reabsorão de umespaotempo social viscoso, de forte inrcia, em proveito de uma reorganizaão permanente e em tempo real dos agenciamentos sociotcnicos:flexibilidade, fluxo tensionado, estoque zero, prazo zero.

· primeira vista poder¡amos crer que a inform tica d continui~dade, graas, por exemplo, aos bancos de dados, ao trabalho de acumulaão e de conservaão realizado pela escrita. Isto seria desconhecer asprincipais finalidades da maior parte dos bancos de dados. Estes não tmvocaão para conter todos os conhecimentos verdadeiros sobre um assumo, mas sim o conjunto do saber utiliz vel por um cliente com crdito. N5o se trata tanto de difundir as luzes junto a um p£blico indeterminado, mas sim de colocar uma informaão operacional ... disposiãodos especialistas. Estes desciam obter a informaão mais confi vel, o maisr pido poss¡vel, para tomar a melhor decisão. Ocorre que esta informaao

operacional essencialmente perec¡vel, transit¢ria. Quase dois teros dosdados atualmente armazenados no mundo representam informaões econ"micas, comerciais ou financeiras com caracter¡sticas estratgicas.

Alm disso, a informaão dita "on line" (Isto , diretamente acess¡vel) encontrase geralmente dividida em pequenos m¢dulos padronizados. 0 acesso a eles feito de forma totalmente seletiva e nãocont¡nua, como em uma leitura, j que em princ¡pio tomase conheci~mento apenas daquilo que procurado. 0 conte£do do banco de dados usado, mas não lido no sentido pr¢prio da palavra. Seria vãoprocurarmos nele s¡nteses ou idias. Sabemos, por exemplo, que o textodos jornais acess¡veis atravs do Minitel se parece mais com notas deagncias do que com an lises profundas de uma situaão.

0 conte£do atual dos bancos de dados provavelmente nunca sera

relido ou reinterpretado como o foram os textos dos sculos passados. 114

 Pierre Uvy

Neste sentido, a maior parte dos bancos de dados são antes espelhosdo que memorias; espelhos o mais fiis poss¡vel do estado atual de uma

especialidade ou de um mercado.Consideremos o caso dos sistemas especialistas, que podem serconsiderados como bancos de dados muito avanados, capazes de tirar conclusões pertinentes das informaões de que dispõem. Os sistemas especialistas não são basicamente feitos para conservar o saber do especialista, mas sim para evoluir incessantemente a partir don£cleo de conhecimento que este trouxe. Não se fabrica um novoprograma a cada vez que uma nova regra e atualizada. Pelo contr rio, as linguagens declarativas permitem que o sistema seja enriquecido ou modificado sem que seja necess rio comear tudo de novo.

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Dizendo de outra forma, a não ser em casos especiais, os estados anteriores do conhecimento não são armazenados. Este apenas existeno sistema em seu estado mais recente. As possibilidades materiaisde armazenamento nunca foram tão grandes, mas não a preocupa

  ao com o estoque ou a conservaao que impulsiona a informatizaão. A noão de tempo real, inventada pelos informaras, resumebem a caracter¡stica principal, o esp¡rito da inform tica: a condensa

  ão no presente, na operaão em andamento. 0 conhecimento detipo operaciorial fornecido pela inform tica est em tempo real. Eleestaria oposto, quanto a isto, aos estilos hermenuticos e te¢ricos.Por analogia com o tempo circular da oralidade prim ria e o tempolinear das sociedades hist¢ricas, poder¡amos falar de uma espcie deimplosão cronol¢gica, de um tempo pontual instaurado pelas redesde inform tica.

 0 FIM DA HIST¢RIA?

 0 tempo pontual não anunciaria o fim da aventura humana, mas

sim sua entrada em um ritmo novo que não seria mais o da hist¢ria.Seria um retorno ao devir sem vest¡gios, inassinal vel, das sociedadessem escri~a? Mas enquanto que o primeiro devir flu¡a de uma fonteimemorial, o segundo parece engendrar a si mesmo instantaneamente, brotando das simulaões, dos programas e do fluxo inesgot vel dosdados digitais. 0 devir da oralidade parecia ser im¢vel, o da inform

tica deixa crer que vai muito depressa, ainda que não queira saber deonde vem e para onde vai. Ele a velocidade. 

As Tecnologias da Inteligncia# 

Ao transformar os personagens e os her¢is aventureiros da oralidade em conceitos, a escrita tinha permitido o desdobramento de umpensamento do ser. Ao animar em seus programas os velhos concei

tos sa¡dos da escrita, ao fazer da l¢gica um motor, a inform tica assimilaria ao mesmo tempo o ser e a hist¢ria na aceleraão pura?Esta tendncia se juntaria, evidentemente, ... da sociedade do es

pet culo, tal como a descreveu Guy Debord. A superf¡cie deslizantedas telas não retm nada; nela, toda explicaão poss¡vel se torna nebulosa e se apaga, contentase em fazer desfilar palavras e imagensespetaculares, que j estarão esquecidas no dia seguinte. E quanto maisdigitais, mais chamativas são as imagens; quanto mais os computadoresas sintetizam, mais rapidamente são produzidas e descartadas as m£sicas. A perspectiva hist¢rica, e com ela toda reflexão cr¡tica, teriadesertado da cultura inform ticomedi tica. As utopias negativas quepassam por an lises da cultura contempornea em autores como PaulVirilio [1091 ou Jean Chesneaux [181 estariam confirmadas.

Mas esta visão pessimista da evoluão cultural negligencia diversos fatores fundamentais. Em primeiro lugar, livros hist¢ricos, reflexivos ou cr¡ticos continuam a ser publicados e lidos. Outros ritmos deformaão e difusão dos conhecimentos que não os das m¡dias e dainform tica (em breve reunidas em uma £nica grande rede digital)continuam funcionando, da instituião escolar e universit ria aos grupos de discuss~o que se re£nem sempre ao redor de associaões ou derevistas. In£meras habilidades e representaões ainda são transmitidas e transformadas de forma oral nas fam¡lias, grupos de trabalho enas diversas redes sociais. Devemos pensar na imbricaão, na coexis

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tncia e interpretaão rec¡proca dos diversos circuitos de produão ede difusão do saber, e não em amplificar e extrapolar certas tendncias, sem d£vida reais, mas apenas parciais, ligadas apenas ... rede inform ticoMedi tica. Enfim, e este não o menor dos argumentos quepodemos colocar contra os defensores da pretensa destruião da cultura e aos alarmistas da modernidadecat strofe, os estilos de comunicaão e de elaboraão no pr¢prio n£cleo da rede digital ainda nãose encontram consolidados. Como j vimos, hipertextos, composioesmultim¡dia, groupwares e novas escritas dinmicas podem muito bemreintroduzir certas formas de distncia hist¢rica e de trabalho hermenutico no pr¢prio n£cleo da interconexão em tempo real que intr¡nseco ... informãtIca. Os suportes de informaão de alta densidade, como os CDROM, convidam ... navegaão em textos e imagens

 116

 Pierre L6vy

de forma bem diversa da encontrada nos bancos de dados cl ssicos.

0 conte£do destes compact discs multim¡dia não necessariamenteefmero. Textos liter rios cl ssicos, por exemplo, podem ser lidos,anotados, comentados, comparados, podem ser objeto de pesquisasminuciosas com um luxo de meios fora do alcance das tcnicas associadas ao papel. Em breve, os documentos audiovisuais digitalizadospoderão ser objeto de um trabalho cr¡tico semelhante. Sem d£vida, oshipertextos e groupware ainda se encontravam pouco disseminadosem 1990, mas preciso pensar nos primeiros sculos da escrita naMesopotmia, quando ela apenas era empregada para o recenseamentodos rebanhos, para os invent rios logo ultrapassados dos pal cios edos templos. Quem poderia ter previsto, nesta poca, que signos gravados no barro, recmordenados, transmitiriam um dia a cincia, aliteratura, a filosofia ou a opinião p£blica?

  A INDETERMINA(~,µO E A AMBIGIDADE DA INFORMµTICA 

A inform tica parece reencenar, em algumas dcadas, o destinoda escrita: usada primeiro para c lculos, estat¡sticas, a gestão mais prosaica dos homens e das coisas, tornouse rapidamente uma m¡dia de comunicaão de massa, ainda mais geral, talvez, que a escrita manuscrita ou a impressão, pois tambm permite processar e difundir o som ea imagem enquanto tais. A inform tica não se contenta com a notaãomusical, por exemplo, ela tambm executa a m£sica.

Se pensarmos com instrumentos intelectuais ligados ... iii:ipressão,compartilhando os valores e o imagin rio de uma civilizaão da escrita, nos encontramos na posi5o de avaliar as formas de conhecimento

inditas que mal acabaram de emergir de uma ecologia cognitiva em viasde formaão. grande a tentaão de condenar ou ignorar aquilo que nos  estranho. mesmo poss¡vel que não nos apercebamos da existncia

de novos estilos de saber, simplesmente porque eles não correspondemaos critrios e definiões que nos constitu¡ram e que herdamos da tradião. Da mesma forma, tentador identificar certos procedimentos contemporneos de comunicaão e tratamento, bastante grosseiros, com oconjunto das tecnologias intelectuais ligadas aos computadores, confundindo assim o devi r da cultura informatizada com seus balbucios iniciais.

A isto, poder¡amos contrapor que permanecem fortes tendncias,

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e que a constituião de um novo tipo de temporalidade social em tor 

As Tecnologias da Inteligncia# 

no do "tempo real" parece ser uma delas. Repito, então, que a redeinform ticomedi tica apenas um dos m£ltiplos circuitos de comunicaão e interaão que estimulam a coletividade, e que numerosasinstituiões, estruturas e caracter¡sticas culturais possuem, ao contr rio, ritmos de vida e de reaão extremamente longos (Estado, l¡nguas,naões, religiões, escolas, etc.). Por outro lado, ainda que nos limitemos ... rede digital e aos circuitos planet rios mais diretamente envolvidos na corrida pela potncia, o significado do tempo real permanece amb¡guo. Certamente poss¡vel ler nele uma aceleraão do ciclo damercadoria, a ascensão das caracter¡sticas estratgicas e operacionaisdas relaões sociais, uma forma de apagamento das mem¢rias e dasingularidade dos lugares. Mas isto apenas o mais vis¡vel. Ainda por

cima, estas tendncias são bastante antigas. Talvez tenham sempre sidodeploradas nos per¡odos de mudana.

Podemos sempre lamentar o "decl¡nio da cultura geral", a pretensa "barb rie" tecnocient¡fica ouaderrota do pensamento", cultura e pensamento estando infelizmente congelados em uma pseudoessncia que não outra senão a imagem idealista dos bons velhostempos. mais dif¡cil, mas tambm mais £til apreender o real que estnascendo, torn lo autoconsciente, acompanhar e guiar seu movimentode forma que venham ... tona suas potencialidades mais positivas.

 A INFORMATICA E A MEMORIA

 Retomemos, dentro desta perspectiva, o tema da menioria, que

foi um dos fios condutores de nosso estudo sobre a oralidade prim ria e a escrita. No caso da inform tica, a memõria se encontra tão

objetivada em dispositivos autom ticos, t5o separada do corpo dosindiv¡duos ou dos h bitos coletivos que nos perguntamos se a pr¢prianoão de mem¢ria ainda pertinente.

Os conhecimentos, por exemplo, apenas podem ser adquiridosap¢s uma larga experincia e se identificam com os corpos, com osgestos, com os reflexos de pessoas singulares. Entretanto, este tipo bempeculiar de mem¢ria encarnada perde suas caracter¡sticas tradicionaissob a aão de um duplo processo. Em primeiro lugar, a aceleraão dasmodificaões tcnicas, devidas sobretudo ... informatizaao, acarretaurna variaão, uma modulaão constante, ou mesmo mudanas radicais dos conhecimentos operacionais no centro de uma mesma pro

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  Pierre 1.6vy# 

fissão. A flexibilidade não est relacionada apenas com os processosde produão e os circuitos de distribuião. A exigncia de reorganiza

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  ao em tempo real visa tambm os agenciamentos cognitivos pessoais. Por outro lado, graas aos sistemas especialistas e a diferentesprogramas de simulaão ou de ajuda ... modelagem, os conhecimentos podem ser separados das pessoas e coletividades que os haviamsecretado, depois recompostos, modularizados, multiplicados, difundidos, modificados, mobilizados ... vontade.

De acordo com sua perspectiva operacional, o saber inform ticonão visa manter em um mesmo estado uma sociedade que viva sem mu~danas e se deseje assim, como ocorre na oralidade prim ria. Tambmnão visa a verdade, a exemplo da teoria ou da hermenutica, gneroscari"nicos nascidos da escrita. Ele procura a velocidade e a pertinnciada execuão, e mais ainda a rapidez e a pertinncia das modificaoesoperacionais. Sob o regime da oralidade prim ria, quando não se dis~punha de quase nenhuma tcnica de armazenamento exterior, o coletivo humano era um s¢ com sua mem¢ria. A sociedade hist¢rica fundadasobre a escrita caracterizavase por uma semiobjetivaão da lembran

  a, e o conhecimento podia ser em parte separado da identidade das pessoas, o que tornou poss¡vel a preocupaão com a verdade subiacente,por exemplo, ... cincia moderna. 0 saber informatizado afastase tantoda mem¢ria (este saber "de cor"), ou ainda a memõria, ao informatizarse, objetivada a tal ponto que a verdade pode deixar de ser unia questão fundamental, em proveito da operacional idade e velocidade.

 DECI,¡NIO DA VERDADE, DA OBJETIVIDADE E DA CR¡TICA

  Esta caracter¡stica do saber informarizado não necessariamente conden vel. Corresponde, em certos aspectos, ao que JeanFranoisLyotard chamou de p¢s in odern idade. 0 que significa o fim da preocupaão com a verdade? Certamente não quer dizer que a partir deagora permitido mentir, ou que a exatidão dos fatos não importamais. A questão apenas a de identificar uma mudana de nfase, umdeslocamento do centro de gravidade em algumas atividades cognitivasdesempenhadas pelo coletivo social.

Lembrando, a exigncia de verdade cr¡tica pressupõe a separa  ao parcial do saber e da mem¢ria identificadora das pessoas tornada

poss¡vel pela escrita. Quanto ... exigncia de verdade objetiva, ela em 

As Tectiologias da hitehg~ncia 119

grande parte condicionada pela situaão de comunicaão fora do contexto pr¢prio ... transmissão escrita do saber. Ora, as condiões quetornavam a verdade cr¡tica e objetiva a norma para o conhecimentoestão transformandose rapidamente.

A massa de informaões armazenadas cresce em um ritmo cadavez mais r pido. Os conhecimentos e habilidades da esfera tecnocient¡fica e das que dela dependem evoluem cada vez mais rapido. Distodecorre que, em certas reas, a separaão entre a mem¢ria pessoal e osaber não mais parcial; as duas entidades tendem a estar quase quetotalmente dissociadas.

Na civilizaão da escrita, o texto, o livro, a teoria permaneciam,no horizonte do conhecimento, p¢los de identificaão poss¡vel. Por tr sda atividade cr¡tica, havia ainda uma estabilidade e unicidade poss¡veis,as da teoria verdadeira, da explicaão correra. Hoje, est cada vez mais

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0 CON11FUMENTO POR SIMULAQAO 

Um modelo digital não lido ou interpretado como um textocl ssico, ele geralmente explorado de forma interativa. Contrariamente ... maioria das descriões funcionais sobre papel ou aos rnode~los reduzidos anal¢gicos, o modelo inform tico essencialmente pl stico, dinmico, dotado de uma certa autonomia de aão e reaão. CornoJeanLouis WcÖssberg observou tão bem, o termo simulaão conotahoje esta dimensão interativa, tanto quanto a imitaão ou a farsa. 0conhecimento por simulaão sem d£vida um dos novos gneros desaber que a ecologia cognitiva informatizada transporta.

0 surginiento dos programas ditos "planilhas" no rastro da microinform tica colocou instrumentos de simulaão cont bil e ora

 As Tecnologias da Inteligncia

ment ria nos escrit¢rios dos executivos e dos diretores de pequenas emdias empresas. Programas de projeto auxiliado por computador(CAD) permitem testar a resistncia de uma pea mecnica aos cho

ques ou então o efeito na paisagem de um prdio que ainda não foiconstruido. Programas de aux¡lio ... decisão estimulam os dirigentesde empresas ou os generais a simular os efeitos de suas eventuais escolhas sobre um modelo da realidade econ"mica ou militar antes deoptar por uma soluão. Os cientistas de todas as disciplinas recorremcada vez mais a simulaões digitais para estudar fen"menos inacess¡veis ... experincia (nascimento do universo, evoluão biol¢gica oudemogr fica) ou simplesmente para avaliar de forma menos custosao interesse de novos modelos, mesmo quando a experimentaão poss¡vel. Enfim, programas de inteligncia artificial podem ser considerados como simuladores de capacidades cognitivas humanas: visão,audião, racioc¡nio, etc.

Entre os programas dispon¡veis no mercado para microcompu

tadores, podem ser encontrados, desde 1990, kits de simulaão bastante avanados. Estes sistemas permitein modelar situaoes complexas de produão industrial ou de transporte, fluxos financeiros, sistemas biol¢gicos, redes de computadores, etc. Bibliotecas de programasoferecem, j programados, uni certo n£mero de objetos e de rotinasb sicas para cada rea. Basta que o usu rio adapteas a sua situaãoparticular e nionteas para obter uma simulaão de sua futura cadeiade produão, de seu cash flow, ou do sistema de comunicaões queele pretende instalar. Desta forma, os longos e custosos processos detentAtiva e erro necess rios para o desenvolvimento de instalaões tcn¡cas, de novas molculas ou de arranjos financeiros podem ser parcialmente transferidos para o modelo, com todos os ganhos de tempoe benef¡cios de custo que podeirios imaginar. Mas o que nos interessa

aqui , em primeiro lugar, o benef¡cio cognitivo. A manipulaão dosparnietros e a silriula5o de todas as circunstncias poss¡veis dão aousu rio do programa utria espcie de intuião sobre as relaões de causae efeito presentes no modelo. Ele adquire um conbecimento por si . Mulaão do sistema modelado, que não se assemelha nem a um conhecimento te¢rico, nem a uina experincia pratica, nem ao acumulo de urnatradião oral.

A crescente importncia das linguagens "orientadas para objeto" em inform tica mostra que os computadores são, cada vez mais,considerados como instrumentos de simulaão. Esquematizando, po

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 Pierre Uvy

der¡amos dizer que a programaão cl ssica consistia em organizar umacadeia de operaões sucessivas sobre um fluxo de dados, enquanto quea programaão "orientada para objeto" consiste em agenciar as interaões de entidades distintas capazes de realizar certas aões e de trocarmensagens umas com as outras. 0 "aqu rio" constru¡do pela equipede Alan Kay para a Apple uma boa ilustraão deste novo caminhoda informãtica. Neste projeto, as caracter¡sticas e os modos de vida dev rios "objetospeixe" foram definidos pelos programadores. Estes programaspeixe foram em seguida mergulhados no mesmo "aqu rio",que podia ser observado atravs da tela do computador, e interagiramespontaneamente de acordo com seu "programa gentico", adotandocomportamentos de perseguião, fuga, devoraão, desova, etc. Notese que o desenvolvimento dos acontecimentos no "aqu rio" não havia sido programado em nenhum momento. Crianas podiam acres

centar ou retirar peixes, ou ainda modificar seu comportamento. Emseguida, observavam as repercussões de suas aões na ecologia do"aqu rio" [131.

Para alm das experincias pedag¢gicas, como a do "aqu rio",a ind£stria da s¡ntese de imagens de animaão j usa princ¡pios daprogramaao com objetos para simular o comportamento de grandes massas de atores na tela. Por exemplo, programase o compor~tamento etol¢gico do pato ou do estorninho, depois criamse v riasdezenas de c¢pias do p ssaro padrão para conseguir o comportamento de uma revoada de patos ou de estorninhos. Cada objetose encarrega de calcular, por conta pr¢pria, sua dist~ncia em rela

  ão aos outros, o tempo durante o qual pode permanecer longe dogrosso do bando, etc. H v rias pesquisas seguindo esta via ativa

mente. A guns pesquisadores acreditam que, dentro de poucos anos,bastar fornecer um roteiro e algumas indicaões de atua5o a objetosatores "inteligentes" para que eles calculem automaticamenteseu filme.

H uma enormidade de possibilidades de simulaão interativasendo abertas pela programaão "orientada para objeto". A relaãocom o modeJo não consiste mais em modificar certas vari veis numricas de uma estrutura funcionalmente abstrata, ela agora equivale aagir diretamente sobre aquilo que consideramos, intuitivamente, como sendo os atores efetivos em um ambiente ou situaão dados. Assim, melhoramos não somente a simulaão dos sistemas, mas tambma simula,~io da interaão natural com os sistemas.

 

As Tecnologias da Inteligncia, 123

UMA IMAGINA(;µO AUXILIADA POR COMPUTADOR

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 Como n¢s j vimos, a escrita permite estender as capacidades da

mem¢ria a curto prazo. Isto que explica sua efic cia como tecnologia intelectual. A inform tica da simulaão e da visualizaão tambm

  uma tecnologia intelectual, mas, ainda que ela tambm estenda a"mem¢ria de trabalho"' biol¢gica, funciona mais como um m¢duloexterno e suplementar para a faculdade de imaginar.

Nossa capacidade de simular mentalmente os movimentos e rea  ões poss¡veis do mundo exterior nos permite antecipar as conseqn

cias de nossos aros. A imaginaão a condião da escolha ou da decisão deliberada. (0 que aconteceria se fizssemos isso ou aquilo?) Tiramos proveito de nossas experiencias passadas, usando~as para modificar nosso modelo mental do mundo que nos cerca. A capacidadede simular o ambiente e suas reaoes certamente desempenha um papel fundamental para todos os organismos capazes de aprender.

Tendo em vista os resultados de numerosas experincias da psicologia cognitiva, v rios cientistas, entre os quais Philip JohnsonLaird1581, criaram a hip¢tese de que o racioc¡nio humano cotidiano temmuito pouca relaão com a aplicaão de regras da l¢gica formal. Parece mais plaus¡vel que as pessoas construam modelos mentais dassituaões ou dos objetos sobre os quais estão raciocinando, e depoisexplorem as diferentes possibilidades dentro destas construões imagin rias. A simulaão, que podemos considerar corno tinia imagina

  ão auxiliada por computador, portanto ao mesmo tempo uma fer

ramenta de ajuda ao racioc¡nio muito mais potente que a velha l¢gicaformal que se baseava no alfabeto.A teoria, sobretudo em sua versão mais formalizada, uma for

ma de apresentaão do saber, um modo de comunicaao ou mesmode persuasão. A simulaão, pelo contr rio, corresponde antes ...s etapas da atividade intelectual anteriores ... exposião racional: a imaginaão, a bricolagem mental, as tentativas e erros.

0 problema do te¢rico era o de produzir uma rede de enunciados autosuficientes, objetivos, não pass¡veis de cr¡tica, que pudessemser interpretados de forma mequivoca e recolher o assentimento, quais

 ' Em fratics, esta tambm a expressão usada para designar a mem¢ria

RAM dos computadores. (N. do T.)

  Pierre Lev# 

quer que fossem as condiões particulares de sua recepão. 0 modelodigital do qual nos servimos para fazer simulaões encontrase muitomais pr¢ximo dos bastidores da atividade intelectual do que a cenate¢rica. Eis por que o problema do criador de modelos antes o desatisfazer a critrios de pertinncia aqui e agora. 0 que não impede

as simulaões de tambm desempenharem um papel de comunicaãoou de persuasão importante, em particular quando a evoluão do modelo visualizada atravs de imagens em uma tela.

 A MEDIDA DE TODAS AS COISAS

 A simulaão toma o lugar da teoria, a eficincia ganha da ver

dade, o conhecimento atravs de modelos digitais soa como uma revanche de Prot goras sobre o idealismo e o universalismo plat"nicos,uma vitoria inesperada dos sofistas sobre o organon de Arist¢teles.

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0 conhecimento por simulaão, por sinal, s¢ tem validade dentrode um quadro epistemol¢gico relativista. Se não, o criador de modelospoderia se deixar levar pela crena de que seu modelo verdadeiro,que lerepresentano sentido forte a "realidade", esquecendo que todomodelo construido para determinado uso de determinado sujeito emum momento dado. A persistncia antinatural do velho h bito cognitivo"te¢rico" a respeito de representaões inform ticas era outrora freqente,quando o desenvolvi mento do modelo digital de um fen"meno era longo, dif¡cil e custoso. Era poss¡vel, então, identificarse com um modeloconcebido como sendo est vel, aderir a ele. Neste sentido, a prolifera

  ao contempornea dos instrumentos de simulaão, seu baixo custo esua facilidade de uso representam, sem d£vida, o melhor ant¡doto contra a confusão entre modelo e realidade. Um modelo determinado, entre cem outros que poderiam ter sido criados sem muito esforo, aparece como aquilo que ele : uma etapa, um instante dentro de uni processo ininterrupto de bricolagem e de reorganizaão intelectual.

0 conhecimento por simulaão, menos absoluto que o conhecimento teorjco, mais operat¢rio, mais ligado ...s circunstncias particulares de seu uso, i . untase assim ao ritmo sociotcnico espec¡fico dasredes informatizadas: o tempo real. A simulaão por computador perinite que uma pessoa explore modelos mais complexos e em maiornumero do que se estivesse reduzido aos recursos de sua imag¡sticamental e de sua mem¢ria de curto prazo, mesmo se reforadas por este

 

As Tectiologias da Iiiteligncia 125

auxiliar por demais est tico que e o papel. A simulaão, portanto, nãoremete a qualquer pretensa irrealidade do saber ou da relaão com omundo, mas antes a um aumento dos poderes da imaginaão e da intuião. Da mesma forma, o tempo real talvez anuncie o fim da hist¢

ria, mas não o fim dos tempos, nem a anulaão do devir. Em vez deuma cat strofe cultural, poder¡amos ler nele um retorno ao ka~ros dossofistas. 0 conhecimento por simulaão e a interconexão em temporeal valorizam o momento oportuno, a situaão, as circunstncias relativas, por oposião ao sentido molar da hist¢ria ou ... verdade forado tempo e espao, que talvez fossem apenas efeitos da escrita.

Foi inclu¡do a seguir um quadro que recapitula as idias principais desta segunda parte. Esta sinopse dos "trs p¢los do esp¡rito"coloca em evidncia uma espcie de eco do p¢lo oral no centro do p¢loinform ticomedi tico: a imediatez dos efeitos da aão e o fato de queos protagonistas da comunicaão partilham um mesmo contexto aproximam as m¡dias eletr"nicas da oralidade. Reencontramos assim, porcaminhos diferentes, certas intuiões de McLuhan a respeito da "al

deia global". A respeito da "dinmica cronol¢gica" do p¢lo inform ticomedi tico, deve ser lembrado que a explosão sugerida pela"piuralidade de dcvlres" e a "velocidade pura sem horizonte" compensada, at certo ponto, pela unificaão mundial realizada na redeinform ticomedi tica, assim como pela emergncia de "problemasplanet rios de ordem demogr fica, econ"mica e ecol¢gica. 0 estadode humanidade global, perseguido pelo homem da escrita e da historia de diversas formas (imprios, religiões universalistas, movimentodas Luzes, revoluão socialista), hoje vivenciado pelo homem inform ticomedi tico. Isto não significa nem que todos os grupos sociais

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que vivem no planeta participem deste tipo de humanidade, nem quea cultura da televisão e do computador possa ser considerada comoum final feliz para a aventura da espcie.

Os p¢los da oralidade prim ria, da escrita e da inform tica nãosão eras: não correspondem de forma ~imples a pocas determinadas.A cada instante e a cada lugar os trs p¢los estão sempre presentes,mas com intensidade vari vel. Para pegar um exemplo dentre as formas do saber, a dimensão narrativa est sempre presente nas teorias enos modelos; a atividade interpretativa est subjacente ... maioria dasperformances cognitivas; enfim, a simulaão mental de modelos doambiente sem d£vida caracteriza a vida intelectual da maior parte dosvertebrados superiores, e portanto não esperou a chegada dos com

 126

 Pierre Levy

Os Trs P¢los do Esp¡rito (Quadro Recapitulativo) 

Figurasdo tempoDinmicacronol¢gica

 Referencialtemporal daaão e deseus efeitos

 Pragm tica dacomunicaão

 

P¢LO DAORALIDADEPRIMµRIA

 C¡rculos.

  Horizonte doeterno retorno. Devir semreferencialnem vest¡gio.

 POLO DA

ESCRITA Linhas.

  Hisr¢ria, na perspectivade unia realizaão. Vest¡gios, acumulaão.

 POI'OINFORMATICO

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MEDIATICO 

Segmentos, pontos. 

Velocidade purasem horizonte. Pluralidade dedevires imediatos (adinirlica fundamentaldo p¢lo inform ticomedi tico permaneceparcialmenteindeterminada). Tempo real. A imediatez estendeuseu carripo de aãoe de retroaao aniedida da redeinforni ticoniedi tica.

  hiscrioo cmurna continuidade-memorial. Imediate7.

  Distnciado individuoem relaão

a memori asocial

 

Os parceiros dacom1mica~aoencontramseniergulliadosrias mesniasuircunstriciab ecorripartilhainhipertextosprOximos.

 A meni"riaencontrise

 

encarnada empessoas vivas e emgrupos atuantes.

  Retardo, ato de diferir. Inscrião tio tempo,com todos os riscosque i.%ro implica.

 A distncia entre os

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  Narrativa. Rito.

 Teoria (explicaão,fundaão, exposiãosisteiri tica). Interpretaão.Verdade, de acordocom as modalidades da: cr¡tica, objetividade, universalidade.1

  Permannciaou conservaão. Significaão(com toda adimensão emocionadeste termo).

 As Tecinologias da Inteligncia

 

127# 

putadores para surgir. Poder¡amos dizer o mesmo dos "critrios dominantes", dos tipos de temporalldade ou das configuraões irmem"nicas: as dimensões indexadas em um dado p¢lo estão presentes emtoda parte todo o tempo, mas em graus diversos de intensidade e demanifestaão expl¡cita. Por que então distinguir trs p¢los? Porque autilizaão de um determinado tipo de tecnologia intelectual coloca uma

  nfase particular em certos valores, certas dimensões da atividade cognitiva ou da imagem social do tempo, que tornamse então mais explicitamente tematizadas e ao redor das quais se cristalizam formasculturais particulares.

Nestas p ginas, não deploramos qualquer tipo de decl¡nio; tambm não exaltamos pretensos progressos. Por exemplo, no dom¡niodaquilo a que chamamos de "critrios dominantes" ou valores, a "sIgiiificaão" não nem melhor nem pior que a "efic cia". A vida humana não poss¡vel sem qualquer uma delas. 0 quadro contentaseem sugerir que a dimensão do sentido est mais estreitamente ligada...s formas da narrativa e do rito, ... encarnaão da mem¢ria em umapessoa viva, ... perspectiva temporal do retorno ou da restauraão, etc.Mas isto nada diz sobre a qualidade, boa ou m , de uma significaão

particular em uma circunst ricia espec¡fica. Da mesma forma, a efic cia não nem boa em si, nem indica necessariamente a ausncia deuma alma. poss¡vel que haja efic cias cheias de sentido, significa

  ões eficazes, e isto naturalmente no bom ou no mau sentido. 0 quadro apenas coloca em relevo que o critrio de eficacia se encontra maisfortemente ligado ... simulaão, ... objetivaão quase total da mem¢ria,ao tempo real, etc.

Como se pode ver, não se trata aqui de dar crdito a uma narrativa simplista e linear da sucessão dos estilos de temporalidade ou dostipos de conhecimento. 0 mito e a teoria continuam a coexistir hoje

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com a simulaão. Prot goras ou Montaigne não esperaram os computadores para serern relativistas. Ainda que não estivesse conectadoa nenhuma rede telem tica, Maquiavel recomendava ao Pr¡ncipe queremasse conforme a mar e aproveitasse as ocasiões independentementede qualquer horizonte hist¢rico. Mais uma vez, quase todas as formasde pensar estão presentes em todos os lugares e em cada poca.

A gentica das populaões descreveu a grande diversidade de gensem reserva numa dada espcie. Em resposta ...s transformaões do ecossistema, este ou aquele trao de car ter ir tornarse majorit rio, massem que, para tanto, sejam eliminados os genes que controlam outras

 128

 Pierre Uvy

caracter¡sticas que poderiam mostrarse £teis em alguma futura modificaão do ambiente. Da mesma forma, as mudanas das ecologiascognitivas devidas, entre outros, ... aparião de novas tecnologias intelectuais ativam a expansão de formas de conhecimento que durante

muito tempo estiveram relegadas a certos dom¡nios, bem como o enfraquecimento relativo de certo estilo de saber, mudanas de equil¡brio, deslocamentos de centros de gravidade. A ascensão do conhecimento por simulaão deve ser entendida de acordo com uma modalidade aberta, plur¡voca e distribu¡da.

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 As Tecnologias da Inteligncia

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11. 0 ESQUECIMENTO 

No meio m¢vel e mal delimitado da rede digital, de um groupwarea outro, passaremos progressivamente do n¡vel de leitor ao de anotador,depois ao de autor. Hierarquias sociais poderão ser marcadas atravesdos direitos de escrita e dos direitos de anotaão e de conexão comhipertextos ou bancos de conhecimentos mais estratgicos ou menosestratgicos. Apesar da prov vel manutenão de estratificaões r¡gidas e privilgios, h grandes possibilidades de que se acentuem a germin ão incontrol vel e a extensão rizom tica da massa de representaões discursivas ou ic"nicas que j ocorrem hoje.

A digitalizaão permite a passagem da c¢pia ... modulaão. Nãohaveria mais dispositivos de "recepão", mas sim interfaces para aseleão, a recomposião e a interaão. Os agenciamentos tcnicos pas

sariam a assemelharse com os m¢dulos sensoriais humanos que, damesma forma, tambm não "recebem", mas filtram, selecionam, interpretam e recompõem.

Quem ensina e quem aprende? Quem pede e quem recebe? Queminfere a partir de novos dados, conecta entre si as informaões, descobre conexões? Quem percorre incansavelmente a trama labir¡ntica darede? Quem simula o qu? Indiv¡duos? Programas agentes? Grupos conectados por groupwares? Operadores de todos os tipos. Instituiões. Negociantes cavalgando entre dois mundos, passantes, coletividades transversais. Tradutores, interfaces e redes de interfaces. 0 universo digitalanteriormente descrito certamente tem algo de ficão cient¡fica realista; entretanto, talvez mais que isto, seja uma imagem transposta da ecologia cognitiva. Porque h muito que o saber se acumula, cresce e fer

menta, se altera e se estraga, funde e bifurca em uma grande rede mista, impura, fervente, que parece pensar por conta pr¢pria.Como a utopia pol¡tica da qual uma variante, a utopia tcnica

se confronta ... complexidade dos processos sociais, a irredut¡vel multiplicidade do real, aos acasos da hist¢ria. Sonha hoje com um mundo s¡ncrono, sem retardos, sem fricões nem perdas. Projeta um tempo contra¡do sobre o instante pontual, um espao abolido. Desejariaa flexibilidade de um hipertexto ou de um modelo digital para estesmonstros tardios, comp¢sitos, tecidos por mil mem¢rias que são ascoletividades. Mesmo se este ideal realizarse, ao preo de gastos enormes, em alguns poucos segmentos industriais, militares ou financei

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  Pierre L6vy# 

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r A

 ros, em todos os outros lugares continuarão a reinar a desordem e aprofusão de Babel.

Supondo que a camada de interfaces digitais aqui descrita efetivamente se estabelea, os velhos suportes da escrita e da imagem guardarão ainda alguma importncia. Uma infinidade de circuitos informais, pessoais, pertencendo ... oralidade arcaica, continuar a irrigars profundezas da coletividade. Ainda que processada por novos modos, uma grande parte da herana cultural permanecer .

  imposs¡vel tambm não subestimar o tempo necess rio para

raduzir e codificar o antigo estoque, as dificuldades que serão enconradas para padronizar os sistemas, a soma de esforos e de imaginaão que ser preciso empregar para elaborar, sucessivamente, novosdocumentos hipertextuais, obras multim¡dia originais, modelos digi~ais de fen"menos complexos. Ainda que espantosos dispositivos tcnicos j estejam prontos para o uso, não se improvisar uma novaradião esttica e intelectual em poucos anos.

Dinmicas culturais, como as da Renascena, foram efetivamenteorganizadas ao redor de alguns instrumentos de comunicaão. Assisiuse ao aparecimento de novas formas sociais simultaneamente aode sistemas tcnicos. A revoluão industrial do sculo XIX nos d umxemplo, muitas vezes deplor vel, desse fato. Mas os dispositivos macriais em si, separados da reserva local de subjetividade que os secre

a e os reinterpreta permanentemente, não indicam absolutamente nehuma direão para a aventura coletiva. Para isto são necess rios osrandes conflitos e os projetos que os atores sociais animam. Nada debom ser feito sem o envolvimento apaixonado de indiv¡duos.

Por mais que elas sejam consubstanciais ... inteligncia dos homens, as tecnologias intelectuais não substituem o pensamento vivo.0 enorme estoque de imagens e palavras ressoando ao longo das coexões, cintilando sobre as telas, repousando em massas compactasos discos, esperando apenas um sinal para levantarse, metamorfoseare, combinarse entre si e propagarse pelo mundo em ondas inesgo

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veis, esta profusão de signos, de programas, esta gigantesca biblioeca de modelos em vias de construão, toda esta imensa reserva nãoonstitui ainda uma mem¢ria.Porque a operaão da mem¢ria não pode ser concebida sem as

pariões e supressões que a desagregam, que a moldam de seu inteior. Debruado sobre seus projetos, o ser vivo destr¢i, transforma,einterpreta as imagens e as palavras daquilo que se torna, atravs desta

 s Tecnologias da Inteligncia

 131

n

e atividade, o passado. A subjetividade da memoria~ seu ponto essecial e vital, consiste precisamente em rejeitar a pista ou o armaznamento no passado a fim de inaugurar um novo tempo.

Ainda necess ria, portanto, uma mem¢ria humana singular paraesquecer os dados dos bancos, as simulaões, os discursos entrelaados dos hipertextos e o bal multicolorido que o sol frio dos microprocessadores irradia sobre as telas. Para inventar a cultura do amanhã, ser preciso que nos apropriemos das interfaces digitais. Depoisdisso, ser preciso esqueclas.

 132

  Pierre L6vy# 

III.RUMO A UMA ECOLOGIA COGNITIVA

 Conclu¡mos nossa investigaão sobre a hist¢ria das formas de

conhecimento com um paralelo entre certas formas culturais e o uso

dominante das tecnologias intelectuais. Entre outros, ficou claro paran¢s que a cultura inform ticomedi tica portadora de um certo tipode temporalidade social: otemporeal", e de um "conhecimento porsimulaão", não inventariado antes da chegada dos computadores.

Fortalecidos por esta aquisião, podemos agora prosseguir nossa pesquisa de forma mais reflexiva: qual a relaão entre o pensamento individual, as instituiões sociais e as tcnicas de comunicaão? Sermostrado que estes elementos heterogneos articulamse para formarcoletividades pensantes homenscoisas, transgredindo as fronteirastradicionais das especies e reinos. Ncste terceira e £ltima seão, esbo

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  amos o programa da ecologia cognitiva que se propõe a estudar estas coletividades cosmopolitas.

Iremos reencontrar, em nosso caminho, dois grandes temas filos¢ficos, que constituem hoje o centro de debates apaixonados: a razão e o sujeito.

No que diz respeito ... razão, iremos encontrar, ap¢s uma discussão fundamentada pelas ciencias cognitivas, a multiplicidade e a variabilidade que a pesquisa hist¢rica que fizemos na segunda parte jnos havia sugerido. Mas isto não ir remeternos ... pura e simples contingncia das formas de conhecer nem a qualquer relativismo absoluto. Ao estudar as articulaões entre os m¢dulos do sistema cognitivohumano e os diversos sistemas serm¢ticos fornecidos pelas culturas, na verdade poss¡vel descrever precisamente como certos tipos de racionalidade emergem.

Quanto ao problema do sujeito e de suas relaões com o objeto,ele nos conduz ...s paragens tumultuadas das heranas de Kant e Heidegger. Veremos que toda ecologia cognitiva, devido a seu interessepelas misturas e pelos encaixes fractais de subjetividade e objetivida

 As Tecnologias da Inteligncia

 133

de, apresentase como uma ant¡tese da abordagem kantiana do conhecimento, que tanto se preocupa em distinguir aquilo que se refere aosujeito e o que pertence ao objeto.

Criticar a concepão de sujeito legada por uma determinada tradião filos¢fica não nos faz, entretanto, aderir aos temas prediletos dameditaão heideggeriana. verdade, concordamos com seu questionamento do sujeito consciente, racional e volunt rio, "arrazoando" ummundo inerte e submisso a seus fins. Mas, para deixar o terreno da metaf¡sica, em vez de escolher o caminho vertical, "ontol¢gico" e vão ao

qual nos convida o mestre de Freiburg, traamos um percurso em ziguezague, saltando de uma escala a outra, hipertextual, rizom tiCo, tão heterogneo, m£ltiplo e multicolorido quanto o pr¢prio real.

Esta parte termina com uma metodologia adequada para prevenir os dualismos macios que tantas vezes nos dispensam de pensar e,mais particularmente, de pensar o pensamento: esp¡rito e matria,sujeito e objeto, homem e tcnica, indiv¡duo e sociedade, etc. Propomos que estas oposiões grosseiras entre essncias pretensamente universais sejam substitu¡das por an lises moleculares e a cada vez singulares em termos de redes de interfaces.

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Pierre Uvy# 

12. PARA ALM DO SUJEITO E DO OBJETO 

A inteligncia ou a cognião são o resultado de redes complexas onde

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interagem um grande n£mero de atores humanos, biol¢gicos e tcnicos.Não sou "eu " que sou inteligente, mas "eu" com o grupo humano do qualsou membro, com minha l¡ngua, com toda uma herana de mtodos e tecnologias intelectuais (dentre as quais, o uso da escrita). Para citar apenastrs elementos entre milhares de outros, sem o acesso ...s bibliotecas p£blicas, a pratica em varios programas bastante £teis e numerosas conversascom os amigos, aquele que assina este texto não teria sido capaz de redigilo. Fora da coletividade, desprovido de tecnol¢gicas intelectuais,eunão pensaria. 0 pretenso sujeito inteligente nada mais que um dos microatores de uma ecologia cognitiva que o engloba e restringe.

0 sujeito pensante tambm se encontra fragmentado em suabase, dissolvido pelo interior. Um grande n£mero de obras recentesde psicologia cognitiva insiste na pluralidade, na multiplicidade departes de todos os tamanhos e de todos os tipos que compoem o sistema cognitivo humano. Os mõdulos de Fodor, a sociedade da mente de Minsky, as assemblias de neur"nios ou redes neuronais de todos os "conexionismos " 1751 traam uma figura da mente estilhaadade forma peculiar. Acrescentemos a isto que um bom n£mero de processos cognitivos são autom ticos, fora do controle da vontade deliberada. Do ponto de vista de uma cincia da mente, a conscincia etudo aquilo diretamente relacionado a ela representam apenas umaspecto menor do pensamento inteligente. A conscincia simplesmente uma das interfaces importantes entre o organismo e seu meioambiente, operando em uma escala (mdia) de observaão poss¡vel,

que não , necessariamente, a mais pertinente para abordar os problemas da cognião.Qual a imagem que sobressai desta dissoluão do sujeito cognitivo

em uma microssociedade biol¢gica e funcional na base, e de sua imbricaão em uma megassociedade povoada por homens, representa

  ões, tcnias de transmissão e de dispositivos de armazenamento, notopo? Quem pensa? Não h mais sujeito ou substncia pensante, nem"material", nem "espiritual". 0 pensamento se d em uma rede na qualneur"nios, m¢dulos cognitivos, humanos, instituiões de ensino, l¡nguas, sistemas de escrita, livros e computadores se interconectam, transformam e traduzem as representaões.

 As Teciiologias da Inteligncia

  135# 

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 Estas idias vão de encontro a uma tendncia da filosofia fran

cesa que est representada, hoje, por Gilles Deleuze e Michel Serres.

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Estes autores radicalizaram o protomaterialismo empedocicano dasmisturas, o monismo naturalista de um Spinoza ou o pluralismo infinitista de um Leibruz.

Em Mille Plateaux [261, Deleuze e Guattari descrevem os "rizomas" que se estendem sobre um mesmo "plano de consistncia",transgredindo todas as classificaões arborescentes e conectando estratos do ser totalmente heterogneos. As multiplicidades e os processosmoleculares opõemse ...s foras unificadoras.

Em 0 Parasita [931, Michel Serres utiliza as mesmas palavras parafalar das relaões humanas e das coisas do mundo. Ainda que os doidom¡nios encontremse habitualmente separados e sejam estudados pocincias diferentes, em ambos os casos tratase de comunicaões, interceptaões, traduões, transformaões efetuadas sobre mensagens"parasitas". Ao ser analisada, toda entidade revelase como uma redem potencial. Em Statues [941, Serres explora novamente os intermedi rios e as relaões rec¡procas entre sujeitos e objetos. Mostra comoatravs da m£mia, do cad ver e dos ossos, o objeto nasce do sujeitocomo, inversamente, o sujeito coletivo est fundado sobre as coisasmisturase a elas. Ele atinge uma filosofia do conhecimento "objetal"que se opõe ... vulgata kantiana segundo a qual o "sujeito transcendental" imporia suas formas a priori sobre qualquer experincia e deteria a chave da epistemologia.

Anunciando um renovamento da filosofia da natureza, lllya Prigogine e Isabelle Stengers [861 tentaram mostrar que não havia um

ruptura absoluta entre um universo f¡sico, inerte, submetido a leis,o mundo inventivo e colorido dos seres vivos. As noões de singularidade, de evento, de interpretaão e de hist¢ria estão no proprio centro dos £ltimos desenvolvimentos das cincias f¡sicas. A cincia cl ssica exclu¡a do universo f¡sico a hist¢ria e a significaão para recalcIas nos seres vivos, ou mesmo em um £nico sujeito humano. Mas diversas correntes cient¡ficas contemporneas redescobriram uma natureza na qual seres e coisas não se encontram mais separados por umcortina de ferro ontol¢gica.

Finalmente, Bruno Latour [64, 65, 66, 671 e a nova escola de antropologia das cincias mostraram o Papel essencial das circunstncias e das interaões sociais em todos os processos intelectuais, at mesmo, ou sobretudo, quando se trata de pensamento formal ou cient¡fi

  I 

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Pierre Uvy# 

co. Nenhuma essncia, nenhuma substncia aceita por Latour, que

mostra atravs da investigaão hist¢rica ou etnogr fica como as instituiões mais respeit veis, os fatos cient¡ficos mais "concretos" ou osobjetos tcnicos mais funcionais foram, na realidade, resultado provisorio de associaões contingentes e heterogneas. Por tr s de qualquer entidade relativamente est vel, ele traz ... tona a rede agon¡sticaimpura, heterognea, que mantm a existncia desta entidade. Comoos rizomas de Deletize e Guattari, as redes de Latour ou de Callon [151não respeitam as distinões estabelecidas entre coisas e pessoas, sujeitos pensantes e objetos pensados, inerte e vivo. Tudo que for capazde produzir uma diferena em uma rede ser considerado como um

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ator, e todo ator definir a si mesmo pela diferena que ele produz.Esta concepão do ator nos leva, em particular, a pensar de forma simtrica os homens e os dispositivos tcnicos. As maquinas são feitaspor homens, elas contribuem para formar e estruturar o funcionamentodas sociedades e as aptidões das pessoas, elas muitas vezes efetuam umtrabalho que poderia ser feito por pessoas como voc ou eu. Os dispositivos tecnicos são portanto realmente atores por completo em umacoletividade que j não podemos dizer puramente humana, mas culafronteira est em permanente redefinião.

A ecologia cognitiva o estudo das dimensões tcnicas e coletivasda cognião. Os trabalhos que n¢s acabamos de citar certamentenos indicam o caminho a ser seguido, mas esta cincia ainda est paranascer. Limitamonos, aqui, a anunciar seu programa e a apresentaralguns dos seus princ¡pios.

 ENTRE 0 SUJEITO E 0 OBJETO

 Vamos tecer por algum tempo uma met fora, que pegamos em

prestada de Dan Sperber [ 10 11. Imaginemos que as Imagens, os enunciados, as idias (que agruparemos sob o termo generico de representaões) sejam v¡rus. Estes v¡rus em particular habitariam o pensamentodas pess~)as e se propagariam de uma mente a outra por todos os meiosde comunicaão. Por exemplo, se eu penso quealuta de classes omotor da hist¢ria", devo transformar esta idia em sons ou em signos

escritos para inocular em voc o v¡rus marxista. A imagem de MarilynMonroe gerou uma epidemia fulminante, graas ao cinema, ... televisão, ... fotografia, mas tambm, preciso reconheclo, por causa de

 As Tecnologias da Inteligncia

 137

uma singular ausncia de defesas imunit rias nas mentes masculinascontra este v¡rus em particular.Levando esta met fora a srio, concordaremos com Dan Sperber

quando este diz que os fen"menos culturais estão relacionados, emparte, com uma epidemiologia das representaões. Uma cultura poderia, então, identificarse com uma certa distribuião de representa

  ões em uma dada populaão.0 meio ecol¢gico no qual as representaões se propagam com

posto por dois grandes conjuntos: as mentes humanas e as redes tcnicas de armazenamento, de transformaão e de transmissão das representaões. A aparião de tecnologias intelectuais como a escrita oua inform tica transforma o meio no qual se propagam as representa

  ões. Modifica, portanto, sua distribuião:

algumas representaões, que antes não podiam ser conservadas, passam a slo; tm, então, uma maior difusão; por exemplo,grandes quantidades de listas ou tabelas numricas (como as cota

  ões di rias da Bolsa) s¢ podem ser mantidas sem muitos erros e lar~ganiente propagadas em uma cultura que disponha ao menos da impressão;

novos processamentos de informaão são poss¡veis, e portantosurgem novos tipos de representaões; por exemplo, as comparaõessistem ticas de dados com a ajuda de quadros apenas são poss¡veis coma escrita; as simulaões digitais de fen"menos naturais pressupoem os

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computadores.Sc as condiões da seleão natural mudarem, natural pensar que

haver uma modificaão no equil¡brio das espcies, com o desaparecimento de algumas e o surgimento de outras. Aconteceria o mesmose as condiões da "seleão cultural" mudassem. No que diz respeito...s mutaões culturais induzidas pela escrita e pela impressão, j citamos os trabalhos desenvolvidos por etri¢logos como Jack Goody [431ou historiadores como Elisabeth Eisenstein [321.

Goody mostrou, por exemplo, que não poderia haver uma religião tica universalista sem a escrita, porque apenas esta £ltima permite que eloginas e princ¡pios morais sejam isolados de todo e qualquer contexto social. As "religiões do livro" estão evidentemente ba~seadas na escrita.

Eisenstein colocou em relevo os estreitos laos que unem o nascimento da cincia moderna nos sculos XVI e XVII ao uso macioda impressão. Graas ... invenão de Gutenberg, uma massa de infor

 138

 Pierre Levy

maões precisas e numeradas tornaramse disponiveis, os sistemas demedidas e de representaão foram uniformizados, as gravuras puderam transmitir imagens detalhadas da Terra, do cu, das plantas, docorpo humano, etc.

Com as religiões universalistas e a cincia moderna, não estamosmais frente a representaões tomadas individualmente, mas sim a verdadeiras formas culturais cula aparião e continuidade dependem detecnologias intelectuais.

A epidermologia das representaões proposta por Dan Sperber particularmente estimulante porque ela constr¢i um ponto causal entre a psicologia e a sociologia, de um lado, e entre a esfera das repre

sentaões e o dom¡nio tcnico, de outro. Para explicar a propagaaoou a continuidade de tal imagem ou proposião em uma coletividade,as particularidades da mem¢ria de longo prazo dos seres humanos irãointervir, da mesma forma como as propriedades de um sistema denotaão ou a configuraão de uma rede de computadores. As representaões circulam e se transformam em um campo unificado, atravessando fronteiras entre objetos e sujeitos, entre a interioridade dosindiv¡duos e o cu aberto da comunicaão.

Este quadro te¢rico pode, no entanto, revelarse por demasiadoestreito. Ao interessarse exclusivamente pelas entidades substanciais,discretas e est veis que são as representaões, a ecologia cognitivaarriscase a negligenciar tudo aquilo que se relaciona com as formasde pensar, falar e agir. Para retomar um vocabul rio de uso corrente

nas cincias cognitivas, a epidemiologia das representaões apenas dconta dos conhecimentos declarativos. Porm, a ecologia cognitivadeveria integrar em suas an lises tambm os conhecimentos proceduraisque contribuem muito para a constituião das culturas.

Alm disso, parece igualmente leg¡timo colocar a nfase nos processos dos quais emergem as dist~ibuiões de representaões tantoquanto sobre as representaões em si. Uma cultura, então, seria definida menos por uma certa distribuião de idias, de enunciados e deimagens em uma populaão humana do que pela forma de gestão social do onhecimento que gerou esta distribuião.

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Enfim, a epiderniologia das representaões nos diz muito poucosobre o pensamento coletivo enquanto tal, o qual devemos fazer constardo programa de pesquisa da ecologia cognitiva. As teses da antrop¢loga Mary Douglas lanaram alguma luz sobre este £ltimo ponto, ap¢sos trabalhos de Gregory Bateson e de sua escola.

 As Tectiologias da Inteligiicia

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ENTRE 0 COGNITIVO E 0 SOCIAL 

No prolongamento da ciberntica, Gregory Bateson [7,81 coritr¡buiu para difundir a idia de que todo sistema dinmico, aberto edotado de um m¡nimo de complexidade possui uma forma de "rnente". A aplicaão deste princ¡pio aos grupos familiares goza de certosucesso desde fins dos anos sessenta.

Ao invs de tratar da doena mental de um indiv¡duo, os terapeutas familiares [ 1101 tentam modificar as regras de comunicaão,

de percepão e de racioc¡nio que prevalecem no seio do grupo em quevive o "paciente desigriado". Eles partem da hip¢tese de que as desordens de uma pessoa são sintoma da desordem de sua fam¡lia. 0 terapeuta utiliza diversas tcnicas (o humor, o paradoxo, a recontextualizaão, etc.) para intervir na fam¡lia, considerada como um sistemacognitivo. Supõese que a terapia familiar produza modificaões denatureza cpistemol¢gica ou cognitiva: o grupo transforma a representaão da realidade que ele tinha constru¡do; adquire uma capacidadede abstraão (poder comunicar ao sujeito, por exemplo, sobre seu modode comunicaão); as possibilidades de aprendizado e de interpretaãodo sistema familiar como tal são abertas, suas reaões não estarão maislimitadas a umas poucas respostas estereotipadas.

Para entidades sociais como as instituiões, as naões, ou mes

mo os per¡odos hist¢ricos, a idia de um funcionamento coletivo antiga, mas jamais atingiu o caeker diretamente operat¢rio da tera,pia sistmica. Não falamos freqentemente em "esp¡rito do tempo" ~Alguns partidos revolucion rios não se consideravam como "intelectuais coletivos"? No sculo XIX, fil¢sofos como Hegel, Cornte, Marxou mesmo Nietzsche deram, sem d£vida, um car ter mais rigoroso aesta intuião de que maneiras de pensar divergentes entre si floresciamno seio de culturas distintas. Apenas Marx, ultrapassando a descriaoou a narrativa, tratou este fen"meno hist¢rico de forma anal¡tica ecausal. Sua explicaão, recorrendo ao interesse de classe e usando amet fora do reflexo da infraestrutura na superestrutura, no entanto bastante grosseira. Uma boa parte dos trabalhos antropol¢gicos,sociol¢gicos e hist¢ricos, a partir do fim do sculo XIX, pode ser con

siderada como um esforo para elucidar mais tarde a questão do pensamento coletivo e das representaões sociais.Recenternente, a antrop¢loga Mary Douglas abordou o proble

ma por inteiro. Em seu livro Ainsi pensent les institutions 1301, ela 

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¥Zintelig3.txt   coloca em evidncia os determinantes sociais da mem¢ria, ou a origem institucional dos sistemas de classificaão. Inversamente, ela mostra que atividades cognitivas de comparaão, de analogia e de argumentaao operam sempre nas construões sociais.

Para ilustrar o problema da mem¢ria social, Mary Douglas analisa o caso dos Nuers, estudado por Evans Prichard. Os membros deste povo geralmente se lembram de seus ancestrais de nove a dez geraões. 0 problema explicar como os Nuers, que não dispõem daescrita, fazem para lembrarse de acontecimentos tão antigos. ( certo que poucos de meus leitores serão capazes de voltar tanto tempoatr s na lista de seus ascendentes.) Mas preciso tambm compreender porque os Nuers nunca se lembram de mais de onze ancestrais.Na verdade, parece que, "apesar da cont¡nua emergncia de novasgeraoes, o numero de ascendentes deve permanecer constante. Diversos ancestrais são portanto riscados da lista aos poucos. A mem¢riacoletiva parte do fundador da tribo a seus dois filhos, seus quatronetos, e depois cria uma falha que engole um grande n£mero de ancestrais`0. Na verdade, este esquecimento não se d por acaso. Osc lculos sobre os dons e as d¡vidas em cabeas de gado que são trocados entre as fam¡lias nos casamentos obrigam os Nuers a saberemexatamente quem são seus parentes at a quinta geraão, mas nãomais que isso. Eis por que a mem¢ria da coletividade não ultrapassa

este ponto no que diz respeito aos ascendentes mais recentes. Estamem¢ria bastante s¢lida, uma vez que as genealogias recentes sãogeralmente simplificadas em sua estrutura por certas regras de equivalncia e, por razoes pr ticas de ordem econ"mica, elas são muitasvezes lembradas e citadas, e isto coletivamente.

Alm disso, "as coalizões pol¡ticas são baseadas na linhagem dasquatro geraões originadas pelo ancestral fundador, seus filhos, seusnetos e seus bisnetos, cada um dos quais funda uma unidade pol¡tica"11. Este o motivo pelo qual lembramse tambm dos ancestraismais long¡nquos. Todos os que estão situados entre os primeiros ascendentes e os mais recentes desaparecem da mem¢ria dos Nuers. Podemos ver que suas instituioes pol¡ticas, economicas e matrimoniaiscondicionam suas lembranas coletivas.

  Mary Douglas, Ainsi pensent les institutions, Usher, Paris, 1989, p.65.Ibidem, p.65.

 As Tecnologias da Inteligncia

 141

A sociedade Nuer bastante igualit ria. Mary DougIas sugereque, se o seu sistema pol¡tico tivesse sido uma territorialidade heredit ria, alguns deles reteriam linhagens de ancestrais maiores.

Um outro exemplo sobre a forma pela qual as instituiões comandam a mem¢ria pode ser tomado de nossa pr¢pria sociedade. A comunidade cient¡fica valoriza a descoberta e funciona de forma competitiva. Isto leva os c , ientistas a desenvolverem pesquisas originais ea ressaltar aquilo que seus resultados trazem de novo, e não a voltaremse para o passado da cincia. Eis algo que explicaria por que osesquecimentos e as vertentes mortas da hist¢ria das cincias são tão

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freqentes. 0 pesquisador que redescobrir uma lei, ou um teorema,ou retomasse uma linha estendida por um cientista do passado não deixaria seu pr¢prio nome para a posteridade, mas antes o de seu predecessor. Este o motivo pelo qual poucos pesquisadores percorrem estecaminho inverso, que interpreta ...s avessas o "esp¡rito" da instituiãocient¡fica. Isto não impede, por sinal, que precursores ou grandes nomes do passado possam ser chamados para socorrer esta ou aquela reconstruão da hist¢ria de uma disciplina de forma que, justamente, elaparea caminhar naturalmente para o ponto que se deseja colocar emdestaque. 0 tipo de mem¢ria exercido pela comunidade cient¡fica depende estritamente de seus objetivos e de seu estilo de controle.

 TODA INSTITUIÇO UMA TECNOLOGIA INTELECTUAL

 Pelo pr¢prio fato de existir, uma estrutura social qualquer con

tribui para manter uma ordem, uma certa redundncia no meio emque ela existe. Ora, a atividade cognitiva tambm visa produzir umaordem no ambiente do ser cognoscente, ou ao menos diminuir a quantidade de barulho e caos. Conhecer, assim como instituir, equivale aclassificar, arrumar, ordenar, construir configuraões est veis e periodicidades. Com apenas uma diferena de escala, h portanto uma formade equivalncia entre a atividade instituinte de uma coletividade e asoperaões cognitivas de um organismo. Por isto, as duas funões podem alimentarse uma da outra. Em particular, os indiv¡duos ap¢iam

se constantemente sobre a ordem e a mem¢ria distribu¡das pelas instituiões para decidir, raciocinar, prever.A cultura fornece um enorme equipamento cognitivo aos indiv¡

duos. A cada etapa de nossa trajet¢ria social, a coletividade nos for 

142 

Pierre Levy# 

nece l¡nguas, sistemas de classificaão, conceitos, analogias, met foras, imagens, evitando que tenhamos que invent las por conta pr¢pria. As regras jur¡dicas ou administrativas, a divisão do trabalho, aestrutura hier rquica das grandes organizaões e suas normas de aãosão tipos de mem¢ria, de racioc¡nio e de tomada de decisão autorn t¡cas, incorporadas ... m quina social e que economizam certa quantidade de atividade intelectual dos indiv¡duos. Uma vez que são convencionais e historicamente datadas, claro que as tecnologias intelectuais(a escrita, a inform tica ... ) são instituiões. Embora talvez se aceite quetoda instituião seja considerada como uma tecnologia intelectual.

 OS PROCESSOS SOCIAIS SÇO ATIVIDADES COGN)TIVAS

  Acabamos de ver que as Instituiões sociais fundam uma boa partede nossas atividades cognitivas. Simetricamente, uma estrutura socialnão se mantm sem argumentaões, analogias e met foras que são,evidentemente, o resultado das atividades cognitivas de pessoas: ogoverno comparado ... cabea do "organismo" social [911, o casamento... junão das duas partes do corpo, etc. Mas a ativ¡dade cognitiva individual não o £ltimo termo da explicaão, j que as met foras retiradas do dom¡nio extrasocial (o corpo, a natureza) retiram suas evidnclias das pr¢prias estruturas sociais.

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Constituir uma classe significa estabelecer limites. E nenhumafronteira existe a priori. Sem d£vida h no mundo gradientes e descontinuidades, mas o recorte estrito de um conjunto supõe a seleãode um ou mais critrios para separar o exterior do interior. A escolhadestes critrios , necessariamente, convencional, hist¢rica e circunstancial. Onde comeam a Alemanha, a cor azul, a inteligncia? A maiorparte do tempo, como j dissemos, os conceitos e as classes de equivalncia que permitem reconhecer analogias e identidades são traados pela'cultura. Mas grupos ou mesmo indiv¡duos podem, não semalguma dificuldade, colocar em questão uma parte destas delimitaõesconceÖtua~s. Por exemplo, reorganizar as classificaões aceitas no restante da sociedade uma das principais vocaoes da comunidade cient¡fica. A cincia não a £nica em questão. A maior parte dos atos dosprotagonistas sociais tem como efeito ou como preocupaão direta amanutenão ou a modificaão dos limites e dos sentidos dos conceitos. 0 que justo? Onde comea um sal rio decente, um preo exces

 As Tecnologias da inteligncia

 143

sivo? Quem cidadão? Onde termina o dom¡nio do sagrado? Na medida em que o conhecimento , em grande parte, uma questão de classificaão, todo processo social, e mesmo microssocial, pode ser interpretado como um processo cognitivo.

Os sujeitos individuais não se contentam apenas em transmitirpalavras de ordem ou em dar continuidade passivamente ...s analogiasde suas culturas, ou aos racioc¡nios de suas instituiões. De acordo comseus interesses e projetos, eles deformam ou reinterpretam os conceitos herdados. Eles inventam no contexto procedimentos de decisão ounovas partiões do real. Certamente, o social pensa nas atividadescognitivas dos sujeitos. Mas, inversamente, os indiv¡duos contribuem

para a construao e a reconstruao permanentes das m quinas pensantes que são as instituiões. Tanto assim que toda estrutura social sopode manterse ou transformarse atravs da interaão inteligente depessoas singulares.

 A DIMENSÇO TCNICA DA ECOLOGIA COGNITIVA

 As coletividades cognitivas se autoorganizam, se mantm e se

transformam atravs do envolvimento permanente dos indiv¡duos queas compõem. Mas estas coletividades não são constitu¡das apenas porseres humanos. N¢s vimos que as tcnicas de comunicaão e de processamento das representaões tambm desempenhavam, nelas, umpapel igualmente essencial. preciso ainda ampliar as coletividades

cognitivas ...s outras tcnicas, e mesmo a todos os elementos do universo f¡sico que as aões humanas implicam.Estradas e carros, correntes e navios, velas e ventos re£nem ou se

param as culturas, influem na forma e na densidade das redes de comu~nicaão. A agricultura inventada durante o Neol¡tico ou a ind£stria quefoi desenvolvida na Europa durante os sculos XVIII e XIX foram ospiv"s de mutaões sociais fundamentais. As mudanas tcnicas desequilibram e recompõem uma coletividade cognitiva cosmopolita, compreendendo ao mesmo tempo homens, animais, plantas, recursos minerais, etc. As cidades, estes organismos de pedra, de carne, de gua e

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de papel, estes trocadores complexos tecidos por mil artif¡cios, foramverdadeiros aceleradores intelectuais, mem¢rias vivas e comp¢sitas.

As tcnicas agem, portanto, diretamente sobre a ecologia cognitiva, na medida em que transformam a configuraão da rede metassocial,

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 Pierre Uvy

em que cimentam novos agenciamentos entre grupos humanos e multlplicidades naturais tais como ventos, flores, minerais, eltrons, animais,plantas ou macromolculas. Mas elas agem, tambm, sobre as ecologias cognitivas de forma indireta, j que, como afirmamos insistentementena primeira seão, elas são potentes fontes de met foras e de analogias.

Propusemos, anteriormente, esta regra segundo a qual toda insti . tuião poderia ser interpretada como uma tecnologia intelectual porqueela cristalizaria uma partião do real, processos de decisão, uma mem¢ria. j que as ferramentas, m quinas e processos de produão sãoinstituiões, cada um deles portanto uma tecnologia intelectual, mesmo

quando não tem como objetivo o tratamento de informaões, o armazenamento ou a transmissão de representaões. Os dispositivos materiais são formas de mem¢ria. Inteligncia, conceitos e at mesmo visãodo mundo não se encontram apenas congelados nas l¡nguas, encontramse tambm cristalizados nos instrumentos de trabalho, nas m quinas,nos mtodos. Uma modificaão tcnica ipso facto uma modificaãoda coletividade cognitiva, implicando novas analogias e classificaões,novos mundos pr ticos, sociais e cognitivos. porque este fato fundamental foi muitas vezes negligenciado que grande n£mero de mutaoestcnicas nas empresas e administraoes resultaram em fracassos ou disfunões grav¡ssimas. Temos nos contentado em analisar superficialmentea mudana dos mtodos de produão e a reorganizaão dos fluxos informacionais; mas nao temos medido e levado em consideraão a inte

ligncia invis¡vel que as antigas tcnicas e as coletividades de trabalhoque se construiram sobre elas possuem. 

DOIS PRINC¡PIOS DE ABERTURA 

Para não trancafiar a ecologia cognitiva nascente em esquemasde pensamento r¡gidos, conveniente ter em mente dois princ¡pios deabertura. Um defende que uma tecnologia intelectual deve ser analisada como uma multiplicidade indefinidamente aberta. Outro nos lembra que o sentido de uma tcnica não se encontra nunca definitivamenteestabelecido quando esta concebida, nem em qualquer momento desua existncia, mas antes a questão central das interpretaões contradit¢rias e contingentes dos atores sociais.

0 princ¡pio da multiplicidade conectada: uma tecnologia intelectual ir sempre conter multas outras. o sistema formado por estas m£l 

As Tecnologias da hiteligncia 

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tiplas tecnologias que precisamos levar em conta. Por exemplo, em umam quina para processamento de textos, h a escrita, o alfabeto, a impressão, a nform t,ca, a tela cat¢dIca... Não satisfeitos em combinarv rias tecnologias que se transformam e se redefinem mutuamente, osdispositivos tecnicos de comunicaao criam redes. Cada nova conexãocontribui para modificar os usos e significaões sociais de uma dada tcnica. Para continuar com nosso exemplo, as impressoras laser, os bancosde dados, as telecomunicaões, etc. transformam as possibilidades e osefeitos concretos do processamento de textos. 0 que equivale a dizerque não podemos considerar nenhuma tecnologia intelectual como umasubstncia imut vel cujo significado e o papel na ecologia cognitiva permaneceriam sempre idnticos. Uma tecnologia intelectual deve ser analisada como uma rede de interfaces aberta sobre a possibilidade de novasconexões e não como uma essncia. Esta noão de rede de interfaces sermais amplamente desenvolvida a seguir.

0 princ¡pio de interpretaão: cada ator, desviando e reinterpretando as possibilidades de uso de uma tecnologia intelectual, atribui aelas um novo sentido. Enquanto escrevia estas linhas, aumentei o tamanho dos caeacteres que aparecem em minha tela. Desviei para finsdo conforto de leitura uma possibilidade inicialmente destinada ao layout.Este , evidentemente, um exemplo ¡nfimo, mas um grande n£mero dedesvios e reinterpretaões min£sculas termina por compor o processo

sociotcnico real (não heideggeriano). 0 destino da telem tica na Frananos d uma ilustraão bem conhecida deste princ¡pio. 0 gosto pela trocade mensagens surpreendeu todos os observadores, pois não era, de formaalguma, o principal uso previsto por seus criadores. A rede estatal e utilit ria concebida pela DGT foi desviada, reinterpretada por certos atores como uma rede muito privada de comunicaão interativa. Mas comerciantes de todos os tipos lanaramse no mercado na "nova comunicaão", por sua vez captando o interesse do p£blico por esta m¡dia,etc. 0 sentido de uma tcnica nunca se encontra determinado em suaorigem. A cada instante r+ 1, novas conexões, novas interpretaoes podemmodificar, ou mesmo inverter o sentido que prevalecia no instante r.

 NEM DETERMINISMO...

  0 caso da impressão particularmente adequado para ilustrar nossos dois princ¡pios. os chineses j conheciam a impressão muitos s

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culos antes da cristandade latina. Mas, sob o mesmo nome, não se tratavada mesma rede de interfaces que ser estabelecida na Europa em finsdo sculo XV. Enquanto que o alfabeto latino possui apenas algumasdezenas de caracteres, a ideografia chinesa possui milhares deles, o queobviamente não facilitava as manipulaões dos impressores do Imprio do Centro. Motivo pelo qual as pranchas entalhadas acabaram predominando sobre os caracteres m¢veis. Alm disso, os materiais eram diferentes: os chineses usavam principalmente a cermica ou a madeira, enquanto que os europeus fundiam caracteres em metal, muito mais s¢lidos. Em relaão ... I mpressão propriamente dita, Gutenberg havia reem

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pregado a prensa de rosca dos vinicultores enquanto que os chineses esfregavam folhas de papel sobre uma prancha recoberta por tinta, coma face virada para o alto. A impressão chinesa não estava conectada ...mesma escrita, ... mesma metalurgia, aos mesmos dispositivos de prensagem que a impressão europia. Suas caracter¡sticas tcnicas não a tornavam forte candidata a tornarse a primeira atividade industrial mecanizada e padronizada, como foi o caso na Europa. Alm disso, a sociedade chinesa usou a imprensa de forma totalmente diferente da sociedade europia. Entre uma cultura e outra, esta tcnica foi tomada porcircuitos de significaão e de uso radicalmente diferentes. Na China, aimpressão permaneceu quase sempre um monop¢lio do Estado. Forampublicados essencialmente os cl ssicos do budismo, do tao¡smo e a hist¢riaoficial das dinastids. Na Europa, a impressão foi, como um todo, e apesardas tentativas de controle por parte dos governos, uma atividade comercial livre, descentralizada, competitiva, publicando não apenas cl ssicos e obras religiosas, irias tambm novidades em todos os dom¡niosda vida cultural, contrariamente ao que ocorreu no Imprio do Centro.

Tambm poss¡vel ilustrar nossos princ¡pios de interpretaão ede multiplicidade conectada atravs de um exemplo mais recente. 0microprocessador foi inicialmente constru¡do para guiar m¡sseis e nãopara constituir a parte central de um computador pessoal. Da mesmaforma, o computador pessoal não poderia ter sido automaticamentededuzido a partir do microprocessador. A aventura da microinform tica contribui para colocar novamente em questão o esquema line

ar das "geraões de materiais inform ticos segundo o qual o progressoseria medido apenas pela velocidade de c lculo, capacidade de mem¢riae densidade de integraão dos circuitos.

0 desenvolvimento do microprocessador foi a "causa" essencialou determinante do sucesso dos computadores pessoais? Não, foi ape

 As Tecnologias da Inteligncia

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nas um acontecimento entre muitos outros, interpretado e mobilizado a servio de uma luta contra os gigantes da inform tica. Citemos,da lista heterognea dos agentes captados pelos fundadores das primeiras firmas de microinform tica: a linguagem de programaão Basic,interfaces de comunicaão concebidas para usu rios que não seriaminformatas profissionais, o movimento da "contracultura" que estava em seu auge nos Estados Unidos nos anos sessenta, as sociedadesde capital de risco em busca de lucros r pidos, etc. As empresas inovadores de Silicon Valley fizeram entrar em cena na hist¢ria da inform tica outros atores sociais que não o Estado, a cincia e as grandesempresas. Em 1976, IBM não deu o mesmo sentido ao microproces

sador que a Apple, não o alistou na mesma rede de alianas. Vemosaqui que os projetos divergentes dos atores sociais podem conferir significados diferentes ...s mesmas tcnicas. Em nosso exemplo, um dosprojetos consistia em fazer do computador um meio de comunicaãode massa, enquanto que o outro desejava conservar o uso dos computadores que prevalecia at então.

Em ecologia cognitiva, não h causas e efeitos mecnicos, massim ocasiões e atores. Inovaões tcnicas tornam poss¡veis ou condicionam o surgimento desta ou daquela forma cultural (não haveriacincia moderna sem impressão, nem computador pessoal sem mi

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croprocessador), mas as primeiras não irão, necessariamente, determinar as segundas. mais ou menos como no dom¡nio biol¢gico: umaespcie não pode ser deduzida de um meio. claro que não haveriapeixes sem gua, mas o mar não teria que ser, obrigatoriamente, povoado por vertebrados, poderia ter contido apenas algas e moluscos.

 ... NEM ESTRUTURALISMO

  preciso insistir nas dimensões coletivas, dinmicas e sistmicas

das relaões entre cultura e tecnologias intelectuais. Estas dimensõesforam gravemente subestimadas por autores como Marshall McLuhan[76] ou Walter Ong [82], que se polarizaram sobre a relaão diretaentre os indiv¡duos e as m¡dias. Segundo eles, os meios de comunica

  ão seriam sobretudo prolongamentos da vista ou do ouvido. Toda ateoria macluhaniana, por exemplo, fundase sobre a hip¢tese segundo a qual cada nova m¡dia reorganiza o sensorium dos indiv¡duos. Masos efeitos realmente coletivos como os que estão relacionados ... re

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 Pierre Levy

corrncia de certos tipos de processamento das representaões forammuito mal compreendidos. Chegamos, assim, ao paradoxo de umaan lise imediata das m¡dias: como a impressão apresenta os signos deforma visual, seqencial e padronizada, provocaria uma forma depensar visual, seqencial e padronizada. Este gnero de proposião ,evidentemente, apenas a caricatura grosseira de uma an lise das rela

  ões entre atividade cognitiva e tecnologias intelectuais.A ecologia cognitiva que tentamos ilustrar aqui deve ser tambm

distinguida das abordagens em termos de estruturas, de episteme oude paradigmas. H estruturas, sem d£vida, mas preciso descrevlas

como são: provis¢rias, fluidas, distribu¡das, moleculares, sem limitesprecisos. Elas não descem do cu das idias, nem tampouco emanamdos misteriosos "envios" do ser heideggeriano, irias antes resultam dedinmicas ecol¢gicas concretas. Os paradigmas ou as epistma~'nadaexplicam. São eles, ao contr rio, que devem ser explicados pela interaão e interpretaão de agentes efetivos.

Vamos dissipar uni £ltimo malentendido. Ao desenvolver a idiade uma ecologia cognitiva, não temos de forma alguma a intenão denegar ou rebaixar o papel dos sujeitos na cognião. Certamente, aatividade cognitiva não o privilgio de uma substncia isolada. S¢ poss¡vel pensar dentro de um coletivo. Chegamos mesmo a adiantarque os grupos, enquanto tais, eram dotados de pensamento (o que nãoquer dizer: de conscincia). Mas esta posião tem sobretudo o efeito

de fazer proliferar as subjetividades, e não de apag las. Interaõescomplicadas entre homens e coisas são movidas por projetos, dotadasde sensibilidade, de mem¢ria, de julgamento. Elas mesmas fragmentadas e mItiplas, ns subjetividades individuais misturanise ...s dosgrupos e das instituiões. Elas compõem as macrossubjetividades m¢~veis das culturas que as alimentam eni retorno.

Ao contr rio de certas correntes das cincias humanas que pormuito tempo hipostasiaram "estruturas" misteriosamente atuantes emdetrimento de uma subjetividade que foi declarada ilus¢ria ou subordinada, a ecologia cognitiva localiza mil formas de inteligncia ativa

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no seio de uni coletivo cosmopolita, dinmico, aberto, percorrido deindividuaões autoorganizadoras locais e pontuado por singularidades mutantes.

 As Tecnologias da Inteligncia

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As Tecnologias da Inteligncia

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13. AS TECNOLOGIAS INTELECTUAIS E A RAZÇO 

A abordagem ecol¢gica da cognião permite que alguns temascl ssicos da filosofia ou antropologia sejam renovados, sobretudo otema da razão. Diversos trabalhos desenvolvidos em psicologia cog

nitiva a partir dos anos sessenta mostraram que a deduão ou a induãoformais estão longe de serem praticadas espontaneamente e correramente por sujeitos reduzidos apenas aos recursos de seus sistemasnervosos (sem papel, nem l pis, nem possibilidade de discussão coletiva). poss¡vel que não exista nenhuma faculdade particular do esp¡rito humano que possamos identificar como sendo a "razão". Como alguns humanos conseguiram, apesar de tudo, desenvolver algunsracioc¡nios abstratos, podemos sem d£vida explicar este sucesso fazendo apelo a recursos cognitivos exteriores ao sistema nervoso. Levar emconta as tecnologias intelectuais permite compreender como os poderes de abstraão e de racioc¡nio formal desenvolveramse em nossaespcie. A razão não seria um atributo essencial e imut vel da almahumana, mas sim um efeito ecol¢gico, que repousa sobre o uso de

tecnologias intelectuais vari veis no espao e historicamente datadas. 0 HOMEM IRRACIONAL

 0 que a racionalidade? Esta , sem d£vida, uma pergunta que

pode gerar multas controvrsias. Concordemos, por enquanto, comesta definião m¡nima: uma pessoa racional deveria seguir as regrasda l¢gica ordin ria e não contradizer de forma por demais grosseira ateoria das probabilidades nem os princ¡pios elementares da estat¡stica. Entretanto, um certo n£mero de pesquisas desenvolvidas em psi

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cologia cognitiva experimental a partir dos anos sessenta mostraram,de forma convincente, que, quando separado de seu meio ambientesociotcnico pelos protocolos experimentais da psicologia cognitiva,o ser humano não racional [40, 58, 104].

Experincias sobre a deduão foram realizadas em muitas centerias de pessoas, em sua maioria estudantes ou universit rios, e entreestes muitos estudantes de l¢gica. A maior parte das pessoas tem dificuldade em processar as frases negativas, se atrapalha com os quantificadores (todos, alguns, ... ) e comete erros em seus silogismos. Ape

 1,52

 Pierre L6vy

sar dos estudantes de l¢gica terem tido uma performance superior aosoutros, ainda assim muitos deles se enganaram.

Sem ajudas externas tais como escritas simb¢licas (p=>q), tabelas de valores verdade, diagramas e discussões coletivas diante de umquadronegro, os humanos parecem não possuir nenhuma aptidão parti

cular para a deduão formal. Tambm não são muito mais h beis comos racioc¡nios indutivos (encontrar uma regra geral partindo de casosparticulares) ou aqueles relativos ...s probabilidades ou estat¡sticas.

Parece que apenas levamos em conta, nos nossos racioc¡nios,aquilo que se enquadra em nossos estere¢tipos e nos esquemas preestabelecidos que usamos normalmente. Muito mais que o conte£dobruto dos dados, nosso humor no momento e a maneira pela qual sãoapresentados os problemas determinam as soluões que adotamos.

Como explicar esta irracionalidade natural? Poder¡amos dar contadela atravs da hip¢tese daarquitetura" do sistema cognitivo humano (por analogia com a arquitetura de computadores). Nossa atenãoconsciente ou nossa mem¢ria de curto prazo poderiam processar apenas uma quantidade m¡nima de informaão a cada vez. Nosso sistema

cognitivo ofereceria muito poucos recursos aos "processos controlados".Por outro lado, a mem¢ria de longo prazo disporia de uma enorme capacidade de armazenamento e de restituião pertinente dos conhecimentos. Nesta mem¢ria de longo prazo, a informaão não se encontrariaempilhada ao acaso, mas sim estruturada em redes associativas e esquemas. Estes esquemas seriam como "fichas mentais" sobre as situaões,os objetos c os conceitos que nos são uteis no cotidiano. Poder¡amosdizer que nossa visão do mundo, ou nosso modelo de realidade, encontramse inscritos em nossa mem¢ria de longo prazo.

Devido a estas hip¢teses sobre a arquitetura cognitiva, eis comopoder¡amos dar conta dos erros de racioc¡nio sistem ticos constatadospela psicologia cognitiva. Mesmo se n¢sconhecernos" os princ¡piosda l¢gica, da probabilidade e da estat¡stica (estando estes armazenados

em algum lugar da mem¢ria de longo prazo), n¢s raramente os seguimos, pois exigiriam que utiliz ssemos "processos controlados", muito custosos em termos de atenão e de mem¢ria de curto prazo. Dadaa arquitetura do sistema cognitivo humano, muito mais r pido e econ"mico recorrer aos esquemas j prontos de nossa mem¢ria de longo prazo.Aquilo que'retivemos de nossas experincias anteriores pensa por n¢s.

Uma vez ativados os esquemas, modelos e associaões da mem¢riade longo prazo, disparamos um certo n£mero de processos ditos beu

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r¡sticos. As heur¡sticas são mtodos r pidos que geralmente dão resultado, mas que algumas vezes podem revelarse falsos. São passagensou atalhos em relaão aos cnones da racionalidade estrita, porm sãomais econ"micos que estes £ltimos porque estão fisicamente conectados dentro do sistema cognitivo. Sendo autom ticos ou semiautorn ~ticos, mobilizam muito pouco a mem¢ria de curto prazo (a concentraão). Por exemplo, em vez de levar em conta todos os dados de umproblema, temos tendncia a reter apenas os mais marcantes ou aquelesque coincidem corri situaões com que lidamos usualmente.

AS TECNOLOGIAS INTELECTUAIS EM AUX¡LIO DA MEM¢RIA DE CURTO PRAZO

As tecnologias intelectuais permitem que algumas fraquezas doesp¡rito humano sejam corrigidas, ao autorizar processamentos deinformaões do mesmo tipo que os realizados pelos "processos controlados", mas sem que os recursos da atenão e da mem¢ria de cur

to prazo sejam saturados. A mem¢ria de curto prazo pode, por exemplo, delegar uma parte de suas funões ... tinta, ao papel e ... codificaaoescritur ria. Unia vez que os processos de leitura/escrita e de c lculotenham sido automatizados atravs de uma aprendizagem precoce elonga, não recorrem mais ... atenão e ... mem¢ria imediata. Usando umatecnologia intelectual, buscamos o mesmo alvo que ao seguir umaheur¡stica a questão continua sendo a de economizar os processoscontrolados, que requerem uma atenão cont¡nua. Mas, cru vez de recorrer a um automatismo interno (como a heur¡stica do "niais marcante"), utilizamos dispositivos externos (l pis e papel para elaborara lista de dados de um problema), assim como outros automatismosinternos, montados no sistema cognitivo atravs da aprendizagem (leitura/escrita, c lculo, etc.).

Uma boa parte daquilo a que chamamos de "racionalidade", nosentido mais estrito do termo, equivale ao uso de um certo n£mero detecnologias intelectuais, aux¡lios ... mem¢ria, sistemas de codificaaogr fica e processos de c lculo que recorrem a dispositivos exterioresao sistema cognitivo humano.

A l¢gica um destes sistemas de codificaão gr fica. Ela s¢ foimais ou menos formalizada h vinte e quatro sculos (um curto lapsode tempo comparado ... duraão da aventura humana). A teoria dasprobabilidades s¢ existe h trs sculos, e as estat¡sticas h duzentos

Pierre Lévy 

anos. 0 que mostra o car ter hist¢rico e provisorio de toda definiãoda racionalidade que se apoiasse sobre estas tecnologias intelectuais.

  bem poss¡vel que novas tecnologias intelectuais, baseadas na inform tica, se estabilizem, e estas tornariam "irracionais", ou ao menosmuito grosseiros, raciocimos que utilizassem a l¢gica cl ssica e a teoria das probabilidades. Referimonos, em particular, a certas tcnicasde inteligncia artificial ou de simulaão que permitem levar em con

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ta e visualizar de forma dinmica e interativa um grande n£mero defatores, que seriam imposs¡veis de apreender de forma eficaz somenteatravs das tcnicas de grafia e de c lculo sobre o papel. Não existeapenas uma racionalidade, mas sim normas de racioc¡nio e processosde decisão fortemente ligados ao uso de tecnologias intelectuais, quepor sua vez são historicamente variaveis.

Mais uma vez, a l¢gica uma tecnologia intelectual datada, baseada na escrita, e não uma maneira natural de pensar. A enormemaioria dos racioc¡nios humanos não usa regras de deduão formais.A l¢gica , para o pensamento, o mesmo que a rgua de madeira parao traado de linhas retas quando se desenha. Esta a razão pela qualos trabalhos em inteligncia artificial baseados unicamente na l¢gicaformal tm poucas chances de chegar a unia simulaão profunda dainteligncia humana. Em vez de uma rplica do pensamento vivo, aIA cl ssica ou l¢gica construiu, na verdade, novas tecnologias intelectuais, como os sistemas especialistas.

 COMO AS TECNOLOGIAS INTELECTUAIS ARTICULAMSE

 AO SISTEMA COGNITIVO HUMANO: UMA TEORIA CONEXIONISTA

 Existem, porm, outras tendncias em inteligncia artificial. Os

pesquisadores da corrente conexionista baseiamse muito mais no fun~cionamento do sistema nervoso do que nas regras da l¢gica formal.

Segundo os conexionistas, os sistemas cognitivos são redes compostas por um grande n£mero de pequenas unidades que podem atingirdiversos% estados de excitaão. As unidades apenas mudam de estadoem funão dos estados das unidades ...s quais estão conectadas. Todasas transformaões na rede tm, portanto, causas locais e os efeitos sepropagam pelas proximidades. Para os conexionistas, o paradigma dacogruão não e o raciocinio, mas sim a percepão. Seu mecanismo t¡pico seria o seguinte:

 As Tecnologias da Inteligncia

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#

 

Em um instante r uma rede se encontra em determinada situaão de equil¡brio'2.

No instante seguinte, as extremidades da rede em contato como mundo exterior (os captadores) mudam de estado.

As mudanas no estado dos captadores geram, por propaga  ão, mudanas de estado em outras unidades da rede.

As unidades continuam a modificar os estados umas das outras, at que a rede atinja uma nova situaão de equil¡brio. Este esta

do de equil¡brio global funciona como uma "representaão" dos eventos exteriores ao sistema que ocasionaram a modificaão do estado doscaptadores. A percepão o conjunto do processo de desestabilizaãoe de reestabilizaão da rede.

  preciso tambm observar que, segundo as teorias conexionistas, cada nova percepão deixaria vest¡gios na rede. Em particular, as conexões que seriam mais freqentemente percorridas peloprocesso de desestabilizaão/estabilizaão seriam reforadas por ele.Não haveria, portanto, diferenas essenciais entre percepão, aprendizagem e memorizaão, mas sim uma £nica funão ps¡quica que

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poder¡amos chamar, por exemplo, de "experincia", mantendo todaa ambigidade da palavra. A imaginaão, ou a simulaão de modelos mentais, seria a ativaão de uma pseudopercepão a partir de est¡mulos internos. Esta simulaão utilizaria, evidentemente, os vest¡gios mnsicos deixados pelas experincias anteriores (a mem¢ria delongo prazo).

Se o sistema cognitivo humano realiza seus c lculos estabilizandose sobre soluões perceptivas e não atravs do encadeamento correto das inferncias, como explicar que ...s vezes faamos verdadeirosracioc¡nios de acordo com as regras da l¢gica? Como dar conta da existncia de um pensamento abstrato, em geral, e da atividade cient¡fica,em particular? Rumelhart, Smolensky, McLelIand e Hinton, em umcap¡tulo apaixonante de Parallel Distributed Processing [751, tentamresponder a estas perguntas. Como era de se esperar, estes autoressupõem que apenas a existncia de artefatos externos aos sistemascognitivos humanos torna poss¡vel o pensamento abstrato. Examinemos, então, mais uma vez o papel das tecnologias intelectuais, mas,desta vez, de um ponto de vista conexionista.

 12 Estado de equil¡brio.

 156

 Pierre Uvy

0 problema o seguinte: como chegar a conclusões logicas semser l¢gico, sem que haja qualquer faculdade especial do psiquismo humanoque seja uma "razão"? Segundo Rumelhart, Smolensky, McLelland eHinton, dever¡amos contabilizar trs grandes capacidades cognitivas humanas: a faculdade de perceber, a de imaginar e a de manipular. A combinaão destas trs faculdades, bem como sua articulaão com as tecnologias intelectuais, permitem dar conta de todas as realizaões do pen

samento dito abstraio. Vamos examinar uma a uma as trs aptidões cognitivas elementares.A faculdade de percepão ou do reconhecimento de formas

caracterizada por sua grande rapidez. 0 sistema cognitivo se estabiliza em uma fraão de segundo na interpretaão de uma determinada distribuião de excitaão dos captadores sensoriais. Reconhecemos imediatamente uma situaão ou um objeto, encontramos a soluão de um problema simples, sem que para isto tenhamos que recorrer a uma cadeia de deduões conscientes. Nisto, somos exatamente como os outros animais. A percepão imediata a habilidade cognitiva b sica.

A faculdade de imaginar, ou de fazer simulaões mentais domundo exterior, um tipo particular de percepão, desencadeada

por est¡mulos internos. Ela nos permite antecipar as conseqnciasde nossos atos. A imaginaão a condião da escolha ou da decisãodeliberada: o que aconteceria se fizssemos isto ou aquilo? Graas aesta faculdade, n¢s tiramos partido de nossas experiencias anteriores. A capacidade de simular o ambiente e suas reaões tem, certamente, um papel fundamental para todos os organismos capazes deaprendizagem.

Finalmente, dispomos de uma faculdade operativa ou manipulativa que seria muito mais espec¡fica da espcie humana que as anteriores. A aptidão para a bricolagem a marca distintiva do homo faber

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(ainda que haja apenas uma diferena de grau em relaão ...s performances dos animais, em particular daqueles que servemse de seusmembros anteriores para outros fins que não a locomoão). Este po~der de manejar e de remanejar o ambiente ir mostrarse crucial paraa construao da cultura, o pensamento l¢gico ou abstrato sendo apenas um dos aspectos, vari vel e historicamente datado, desta cultura.Na verdade, porque possu¡mos grandes aptidões para a manipula

  ão e bricolagem que podemos trafegar, reordenar e dispor parcelasdo mundo que nos cerca de tal forma que elas acabem por represen

 As Tecnologias da Inteligncia

tar alguma coisa. Agenciamos sistemas serm¢ticos da mesma formacomo talhamos o s¡lex, como constru¡mos cabanas de madeira oubarcos. As cabanas servem para abrigarnos, os barcos para navegar,os sistemas semi¢ticos para representar.

Enfatizemos, a este respeito, que ao definirse como espcie fabricadora, a humanidade envolvese simultaneamente no trabalho dosentido. 0 desenvolvimento de um novo exerc¡cio operat¢rio não pode

ser dissociado da atividade de reinterpretaao de um material preexistente: a madeira para as cabanas, a pele de animais para as roupas, os entalhes e impressões de sinetes sobre telhas de argila para aescrita. Em cada caso, uma atividade manipuladora, tateante e interpretativa faz com que materiais j existentes penetrem em novos dom¡nios de uso e significaao.

Uma vez identificadas as trs faculdades elementares, podemosdecompor as operaões do pretenso pensamento abstrato de tal forma que, ao fim da an lise, não reste mais nenhuma abstraão.

Dado um problema como uma multiplicaão de dois n£merosde dez d¡gitos, por exemplo, como procedemos para resolvlo? Emprimeiro lugar, graas ... faculdade de manipulaão, constru¡mos umarepresentaão material do problema atravs de s¡mbolos visuais ou

aud¡veis. Neste caso, o princ¡pio desta representaão material j se encontra ... nossa disposião, uma vez que o aprendemos na escola. Vamos "armar a multiplicaão", ou seja, posicionar os dois n£merossobre o papel, e depois acionar o algoritmo de multiplicaão que nosfoi ensinado. Vale observar que existe um grande n£mero de algoritmos de multiplicaão poss¡veis, de acordo com os sistemas numricos, as escritas, os bacos, os sistemas de fichas, as tabelas de multiplicaão, de soma ou de divisão dispon¡veis... Mas, em todos estescasos, graas a um sistema de s¡mbolos e aos procedimentos que oacompanham, o problema complexo e abstrato ser decomposto empequenos problemas simples e concretos. A partir desta decomposi

  ão, a faculdade de reconhecimento de forma r pida poder sempreser aplicada. preciso que sejamos capazes de "ver" imediatamente

cada uma das microssoluões intermedi rias, diretamente (duas vezestrs são... seis) ou indiretamente, olhando em uma tabela, em certaparte do baco, etc.

Uma vez traduzidos para os sistemas de signos fornecidos pelacultura, problemas abstratos ou complexos encontramse ao alcanceda faculdade operativa e da percepão imediata.

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trojeta parcialmente os sistemas de representaão e os algoritmos operativos cujo uso foi adquirido por ele. As tecnologias intelectuais, aindaque pertenam ao mundo sens¡vel "exterior", tambm participam deforma fundamental no processo cognitivo. Encarnam uma das dimen~sões objetais da subjetividade cognoscente. Os processos intelectuaisnão envolvem apenas a mente, colocam em jogo coisas e objetos tcnicos complexos de funão representativa e os automatismos operat¢rios que os acompanham.

As tecnologias intelectuais desempenham um papel fundamental nos processos cognitivos, mesmo nos mais cotidianos; para perceber isto, basta pensar no lugar ocupado pela escrita nas sociedades desenvolvidas contemporneas. Estas tecnologias estruturam profundamente nosso uso das faculdades de percepão, de manipulaão e deimaginaão. Por exemplo, nossa percepão da cidade onde vivemosmuda dependendo se costumamos ou não consultar seus mapas. Muitasvezes, os mtodos para resolver certos problemas são incorporados nossistemas de representaões que a cultura nos oferece, como o caso,por exemplo, na notaão matem tica ou nos mapas geogr ficos.

  pela dimensão objetal que atravessa a cognião que esta se encontra envolvida na hist¢ria, uma hist¢ria muito mais r pida que a daevoluão biol¢gica. As criaões de novos modos de representaão e demanipulaão da informaão marcam etapas importantes na aventuraintelectual humana. E a hist¢ria do pensamento não se encontra identificada, aqui, com a srie dos produtos da inteligncia humana, mas

sim com as transformaões do processo intelectual em si, este mistode atividades subjetivas e objetais.A escola surge ao mesmo tempo que a escrita; sua funão onto

l¢gica precisamente a de realizar a fusão ¡ntima de objetos e de sujeitos que permitir o exerc¡cio de uma ou outra versão da "racionalidade. nela que fazemos da caligrafia e da leitura uma segunda natureza, que as crianas são ensinadas a usar os dicion rios, os ¡ndicese as tabelas, a decifrar ideogramas, quadros, esquemas e mapas, a desenhar a inclusão e a interseão com batatas, que são exercitadas namanipulaão e interpretaão dos signos, que aprendem, em suma, amaioria das tcnicas da inteligncia em uso em uma dada sociedade.

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Os empiristas imaginavam o saber como sendo unicamente modelado pela experincia. 0 mundo exterior supostamente inscrevia suasregularidades na t bula rasa da mente. Contra o empirismo, Karit deuum papel preponderante ...s estruturas transcendentais do sujeito cognoscente. Segundo o fil¢sofo de Kõnigsberg, a pr¢pria experincia

organizada pelas categorias do sujeito. Para qualificar a revoluão queestimava ter produzido na filosofia, o pr¢prio Karit comparavaa ...revoluão copernicana: a partir de então, era em torno do sujeito quegirava o problema do conhecimento.

A ecologia cognitiva nos incita a revisar a distribuião kantianados papis entre sujeitos e objetos. A psicologia contempornea e aneurobiologia j confirmaram que o sistema cognitivo humano não uma t bula rasa. Sua arquitetura e seus diferentes m¢dulos especializados organizam nossas percepões, nossa mem¢ria e nossos raciocinios, de forma muito restritiva. Mas articulamos aos aparelhos espe

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cializados de nosso sistema nervoso dispositivos de representaão e deprocessamento da informaão que são exteriores a eles. Constru¡mosautomatismos (como o da leitura) que soldam muito estreitamente osm¢dulos biol¢gicos e as tecnologias intelectuais. 0 que significa quenão h nem razão pura nem sujeito transcendental invari vel. Desdeseu nascimento, o pequeno humano pensante se constitui atravs del¡nguas, de m quinas, de sistemas de representaão que irão estruturar sua experiencia.

0 sujeito transcendental hist¢rico, vari vel, indefinido, composito. Ele abrange objetos e c¢digos de representaão ligados ao organismo biol¢gico pelos primeiros aprendizados. Deve, mesmo, serestendido a todo o equipamento cognitivo fornecido ao indiv¡duo porsua cultura e pelas instituiões das quais ele participa: l¡ngua, conceitos, met foras, procedimentos de decisão... 0 ser cognoscente umarede complexa na qual os n¢s biol¢gicos são redefinidos e interfaceadospor n¢s tcnicos, semi¢ticos, institucionais, culturais. A distinão feita entre um mundo objetivo inerte e sujeitossubstncias que são osunicos portadores de atividade e de luz est abolida. preciso pensarem efeitos de subjetividade nas redes de interface e em mundos emergindo provisoriamente de condiões ecol¢gicas locais.

 As Tecnologias da Inteligncia

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14. AS COLETIVIDADES PENSANTES E0 FIM DA METAFfSICA

 Na filosofia cartesiana, o livrearb¡trio, a razão e a atenão cons

ciente remetiamse indefinidamente umas ...s outras, no centro de umasubstncia £nica e transparente a si mesma. Esta imagem da almahumana, a partir de agora, est caduca.

Mesmo que não concordemos com todas as suas idias, Freudmostrou de maneira convincente que uma parte essencial de nossos sen~timentos e de nossas motivaões inconsciente. Prop"s, alm disso,modelos do psiquismo nos quais atuam diversas instncias (por exemplo, o "id", o "ego" e o "superego") que interagem de forma mais oumenos conflituosa, negociando, transferindo compromissos, etc. Cadauma destas instncias funciona, supostamente, de acordo com princ¡pios diferentes. Por exemplo, o "ld", sede dos "processos prim

rios",não conheceria nem a passagem do tempo nem a l¢gica, enquanto que

o "cgo" seria mais racional.0 que a psican lise realizou no comeo do sculo em relaão ...vida emocional, a psicologia contempornea realiza hoje na dimensãocognitiva do psiquismo. Em particular, h duas teses que os psic¢logos cognitivos prezam que se situam na ant¡tese da imagem cartesiana da alma. Uma a da modularidade ou da multiplicidade da mente, e outra a dos limites da introspecão simples, ou seja, o car ter estritamente limitado da conscincia.

A questão da unidade da alma est ligada ... do grau de inconscincia das operaões mentais. Realmente, se a maior parte das fun

  ões ps¡quicas fossem realizadas sob o controle da consciencia, não seriaabsurdo supor uma espcie de linguagem comum ...s diferentes partesda mente, ou ao menos uma traduão poss¡vel no idioma da conscin

cia. Alm disso, o acesso direto de uma parte da mente ... diversidadedas operaões mentais seria, em si, a realizaão de uma espcie deunidade ps¡quica. Por outro lado, se quase toda a vida ps¡quica encontrase situada fora da zona de atenão, a tese da modularidade ou damultiplicidade heterognea das funões e das instncias ps¡quicas tornase mais plaus¡vel. Neste caso, as diferentes partes da mente não com~partilham a mesma "l¢gica" subjacente.

 As Tecnologias da Inteligncia

A SOCIEDADE DA MENTE 

De acordo com Marvin Minsky [791, a mente não forma um todocoerente e harmonioso. Pelo contr rio, constitu¡da de peas e peda

  os. Empregando uma met fora, o clebre pesquisador de inteligencia artificial do MIT sugere que um crnio humano conteria milharesde computadores diferentes, estruturados de acordo com centenas dearquiteturas distintas, desenvolvidos de forma independente ao lon

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go de milhões de anos de evoluão. Não haveria nem mesmo um c¢digo ou princ¡pio de organizaão comum a todo o sistema cognitivo.Minsky nos traa um quadro da mente humana no qual milhares deagentes, eventualmente agrupados em "agncias", competem por re~cursos limitados, buscam objetivos divergentes, cooperam, subordinamse uns aos outros... 0 psiquismo deve ser imaginado como umasociedade cosmopolita, e não como um sistema coerente, menos ainda como uma substncia.

Numerosos fil¢sofos, de Platão a Nietzsche, e psic¢logos comoWilliam James, Freud e Jung, l haviam percebido, cada um ... suamaneira, a multidão cQlorida que se esconde por tr s de cada pensamento. Hoje em dia, psic¢logos humanistas estranhos as ciencias cognitivas, como James Hillmann, ou fil¢sofos muito distantes da tradi

  ão anglosax"nica, como Deleuze e Guattari, tambm pleiteam umaabordagem m£ltipla, polite¡sta, da psiqu.

Grandes psic¢logos, como Plaget, podem ter dado a entender quea inteligncia era um conjunto £nico e generaliz vel de habilidades l¢gicomatem ticas que operariam em todos os dom¡nios. De acordo comHoward Gardner [39, 401, devemos, pelo contr rio, reconhecer v riasinteligncias, independentes umas das outras. Diversas sries de fatosvm apoiar esta tese. Em primeiro lugar, sabese que danos em zonaslimitadas do crebro podem afetar certas competncias mentais, deixando outras perfeitamente intactas. Alm disso, encontramos freqentemente s bios idiotas, m£sicos ignorantes, pessoas h beis nas re

laões interpessoais mas refrat rias a geometria, etc. Enfim, em muitas culturas, diversos tipos de inteligncia são identificados separadamente. Baseado em certos dados da psicologia cognitiva, e de acordocom uma pesquisa comparativa sobre as representaões da inteligncia nas culturas do mundo, Gardner supõe que existam ao menos seteaptidões mentais diferentes. Seria preciso distinguir entre o pensamentoling¡stico, musical, l¢gicomatem tico, espacial, corporaLicinestsico,

interpessoal, e intrapessoal. A competncia ling¡stica caracteriza o orador ou o escritor, a competncia espacial o ge"metra ou o arquiteto,a competncia corporal/cinestsica a do esportista, etc. Cada um denos possui todas estas capacidades, mas em graus diferentes. Portanto, ningum inteligente ou est£pido como um todo. preciso quen¢s habituemos a pensar as pessoas como grupos, sociedades. Qualquer julgamento feito sobre o grupo como um todo, sem distinão dosindiv¡duos que o compõem, ser necessariamente injusto.

 A MODULARIDADE DA MENTE

 Um dos fundadores das cincias cognitivas contemporneas, o

lingista Noam Chomsky [191, acreditava na existncia de ¢rgãos

mentais, assim como h coraões, aparelhos visuais ou sistemas decoordenaão motora. Por que o crebro seria a £nica entidade do mundo biol¢gico desprovida de estrutura, indiferenciada? Chomsky tentou, em particular, colocar em evidncia que um processador de linguagem, geneticamente determinado, era respons vel pela aquisiãodas l¡nguas assim como pela compreensão e produão dos enunciados

. 1ling¡sticos. Se levarmos esta idia at suas £ltimas consequencias, epreciso abandonar toda uma maneira de pensar a cognião. Por exemplo, supondo que Chorrisky tenha razão, não poderia haver uma teo

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ria da aprendizagem comum a todos os dom¡nios, j que não existirianenhuma razão a priori para que todos os "¢rgãos da mente" se desenvolvessem da mesma forma.

Seguindo Chorrisky, Jerry Fodor [37] estimou que uma parte importante do sistema cogrutivo humano estruturada por faculdadesrelativamente independentes umas das outras. Os m¢dulos perceptivos (visão, audião, etc.) são exemplos destas faculdades aut"nornas.

Estas faculdades ou m¢dulos cognitivos não compartilham recursos comuns ao conjunto do sistema cognitivo, tais como memoria,"inteligncia" ou atenão consciente. São autosuficientes. Qualquerque seja a mobilizaão de nossa mem¢ria ou atenao consciente, con~tinuamos a ver e a ouvir da mesma forma.

Os m¢dulos cognitivos descritos por Fodor funcionam automaticamente, fora do controle consciente. No caso da faculdade ling¡stica, por exemplo, numerosas experincias mostraram que somos obrigados a compreender o sentido de uma frase que ouvimos. imposs¡

 As Tecnologias da Inteligiicia

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vel consider la apenas como barulho. Acontece o mesmo em relaão... leitura. N¢s somos incapazes de olhar uma linha impressa como umaseqncia de manchas pretas. Somos obrigados a ler.

Em conseqncia de seu car ter autom tico, os m¢dulos cognitivosespecializados são extremamente r pidos. A maior parte dos humanos

  capaz de repetir um discurso cont¡nuo, compreendendo aquilo que repete, com apenas um quarto de segundo de defasagem. Os m¢dulos deaudião, de compreensão de linguagem e da fala realizam suas operaoesem velocidade m xima e coordenam perfeitamente seus funcionamentossem que nossa vontade consciente seja mobilizada.

Grande n£mero de m¢dulos do sistema cognitivo são, portanto,

"encapsulados", autom ticos e muito r pidos. Isto significa, entreoutros, que eles escapam da conscincia. Seus resultados podem muito bem chegar at a zona de atenão consciente de nossa mente, masos processos realizados por estes m¢dulos permanecem totalmenteopacos para nos, e escapam a qualquer tentativa de controle.

 A ARQUI ITTURA COGNITIVA E A CONSCIENCIA

 0 que a conscincia? A transparncia do esp¡rito a si mesmo?

0 sentido moral (a cincia sem conscincia sendo apenas ru¡na daalma)? A resposta da psicologia cognitiva poderia muito bem ser esta:a conscincia o agente respons vel pela anunciaão parcial da mem¢ria de curto prazo. A maior parte dos atores da sociedade da men

te se relaciona com outros atores desta sociedade e não com o mundoexterior. Mas somos quase totalmente insens¡veis a estas relaões entre nossos agentes. Podemos apenas apreender os acontecimentos internos representados em nossa mem¢ria de curto prazo.

Uma vez que a mem¢ria de curto prazo tem, como vimos, recursos limitados, dif¡cil estar consciente de mais do que duas ou trscoisas de cada vez, ou de dirigir nossa atenão consciente a v rioseventos ao mesmo tempo. Ora, nosso sistema cognitivo realiza diversas operaões simultneas. Como são externas ao campo de atenão,estas operaões são, portanto, inconscientes, Uma vez que escapam da

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vontade conscicrite, elas são autom ticas. De acordo com o que conhecemos sobre o funcionamento do crebro e do sistema cognitivohumano como um todo, nenhuma agncia da mente, mesmo inconsciente, possui supervisão e controle sobre todas as outras. A conscincia

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onisciente e a vontade onipotente não serão substitu¡das por nenhummaestro clandestino.

Quando dizemos que a maior parte dos processos cogrutivos sãoautom ticos, não queremos com isso dizer que o crebro seria umequivalente formal de uma m quina da Turing. 0 fato da maior parte dos processos cognitivos serem autom ticos não significa que o sistema nervoso seja efetivamente composto por uma infinidade de pequenos computadores de comportamento determinado, incapazes desair do trilhos de uma programaão prvia. Os dispositivos eletr"nicos atuais são muito diferentes dos agenciamentos fluidos, cont¡nuos,

parcialmente inst veis e indeterminados dos seres vivos. As noões dedeterminismo e de automatismo são distintas. porque são aut"nomos, não controlados, relativamente independentes uns dos outros, quegrande n£mero de processos cognitivos podem ser qualificados comoautom ticos. A mente , em sua maioria, inconsciente, maquinal, com~posta por peas e pedaos. A ignorncia m£tua destas partes assegura a rapidez e independncia de certos processamentos, como os dapercepão, por exemplo. Este automatismo condiciona, sem d£vida,a sobrevivncia de nossos organismos. Certamente melhor para n¢sque a maneira pela qual n¢s enxerguemos ou escutemos não seja fun~

  ao de nosso humor ou de nossas convicões do momento.Como não requerem a interpretaão de conhecimentos declara

tivos, os processos automaticos, ou compilados, não ocupam espao

na mem¢ria de trabalho. Liberamna, assim, para outras tarefas. Cadaum de n¢s capaz de manter uma conversa enquanto realiza uma tarefa autom tica, seja ela fisicamente conectada desde o nascimento,como a visão ou resp¡raão, ou aprendida, como dirigir autom¢veis.Muitos processos autom ticos são dirigidos por dados externos aoorganismo. Por exemplo, o som de uma voz humana dispara automaticamente o m¢dulo de reconhecimento e de compreensão da fala,quaisquer que sejam nossas intenoes. A maior parte do funcionamentode nossa mente escapa ao nosso controle volunt rio.

 A ECOLOGIA COGNITIVA E 0 FIM DA METAF¡SICA

 Acabamos de resumir algumas contribuiões da psicologia cognitiva

contempornea. Precisamos, agora, retirar delas as conclusões que interessam ... ecologia cognitiva. Todos os trabalhos sobre os m¢dulos cog 

As Tecnologias da Inteligilcia 

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nitivos, a sociedade da mente e as inteligncias m£ltiplas nos sugeremque o pensamento est baseado, em grande parte, na articulaão de diversos aparelhos autom ticos, sobre a operaão conflituosa de faculdadesheterogneas. 0 mecanismo, a inconscincia, a multiplicidade heter¢clita,em uma palavra a exterioridade radical encontramse alojados no pr¢prio cerne da vida mental. A partir disto, não h nenhum absurdo emconceber a participaao, no pensamento, de mecanismos ou processosnão biol¢gicos, como dispositivos tcnicos ou instituiões sociais, elasmesmas constitu¡das de coisas e de pessoas. Não somente e imposs¡velhoje, fazer do pensamento o atributo de uma substncia £nica e transparente a si mesma, mas tambm a distinão clara entre subjetividadee objetividade deve ser abandonada. Por um desvio inesperado, a ecologia cognitiva nos faz reencontrar "o fim da metaf¡sica" anunciado porHeidegger. Entretanto, desta vez, a metafisica (ou seja, o fortalecimento de um sujeito livre e volunt rio frente a um universo objetivo, reduzido ... inrcia e aos mecanismos causais) não se apaga em proveito datranscendncia de um ser guiando nossos destinos de longe. A ecologiacognitiva substitui as oposiões radicais da metafisica por um mundomatizado, misturado, no qual efeitos de subjetividade emergem de processos locais e transit¢rios. Subjetividade e objetividade pura não pertencem, de direito, a nenhuma categoria, a nenhuma substncia bemdefinida. De um lado, mecanismos cegos e heterogneos, objetos tcni

cos, territ¢rios geogr ficos ou existenciais contribuindo para a forma  ão das subjetividades [26, 47, 481. De outro, as coisas do mundo sãorecheadas de imagin rio, investidas e parcialmente constitu¡das pela mem¢ria, os projetos e o trabalho dos homens.

Vamos reexaminar o caso da linguagem. sabidamente dif¡cigirar sete vezes sua pr¢pria l¡ngua dentro da boca antes de falar. Amda que os enunciados ling¡sticos que emitamos atinjam, na maior partedo tempo, nossa conscincia, o m¢dulo de linguagem em grandemedida involunt rio.

Como todos sabem desde a vulgarizaão da psican lise, "o idfala". Mas "o id fala" em um sentido ainda mais radical do que errFreud ou Lacan. Não são apenas nossas pulsões, recalques e outroscomplexos que se exprimem atravs de nossas bocas, mas tamb

gram ticas, dicion rios, prov¡ncias inteiras com suas expressoes idiom ticas e modos de dizer, mas ainda diversas redes sociais ...s quaipertencemos... uma multidão cosmopolita que nos transmite sua"palavras de ordem" e fala por nossa voz.

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Como outros autores, Michel Serres enfatizou esta dimensac,semiautom tica, impessoal, da linguagem. Segundo o autor do Parasite, a linguagem faria parte ao mesmo tempo do sujeito, j que nosconstitui, e do objeto, devido a seu car ter em grande parte autom tico, exterior, socialmente compartilhado.

A linguagem um bom exemplo da dimensão social, transpessoal,da cognião. j vimos que um grande n£mero de processos e de elementos intervem em um pensamento. Mais uma vez, não h mais paradoxo em pensar que um grupo, uma instituião, uma rede social ou

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uma cultura, em seu conjunto, "pensem" ou conheam. 0 pensamentoj sempre a realizaão de um coletivo. Sociologia e psicologia possuem apenas diferenas de granulaão na observaão. Estamos sempre diante do devir de redes heterogneas. Devemos, simplesmente,apreender a sociedade da mente em outra escala. Tanto em uma quantona outra, processos cooperativos ou agon¡sticos semelhantes estao operando. Em ambas, são diversas mensagens que são traduzidas e retraduzidas, transformamse e circulam.

 0 ARGUMENT0 DA DESCONTINUIDADE

 A multiplicidade dos agentes, a descontinuidade e a ausncia de

fronteiras n¡tidas dos coletivos humanos não podem servir como argumentos para recusar ao social a possibilidade de cognião. As mesmas razões levariam a negar que as pessoas pensam. Os dispositivoscognitivos dos indiv¡duos não são nem mais substanciais, mais homogncos e nem mesmo melhor divididos do que os dos grupos. 0 funcionamento do corpo, o uso de tcnicas, os sistemas semi¢ticos fornecidos pela cultura, uma infinidade de acontecimentos e de situaõessociais vem confundir as fronteiras de um agenciamento cognitivopessoal j composto por peas heterogneas e processos antag"nicos.

Pensar um devir coletivo no qual inisturamse homens e coisas. Pois os artefatos tm o seu papel nos coletivos pensantes. Da caneta ao aeroporto, das ideografias ... televisão, dos computadores aos

complexos de equipamentos urbanos, o sistema inst vel e pululantedas coisas participa integralmente da inteligncia dos grupos.Como nos dispositivos cognitivos dos indiv¡duos, muitos processos

sociais são automaticos, maquinais e encapsulados. 0 secretariado destaorganizaão, o servio de contabilidade de tal empresa, determinado

 As Tecnologias da Inteligncia

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segmento da burocracia de um ministrio funcionam ou deveriam funcionar como m quinas, do ponto de vista daqueles que as utilizam ouenfrentam. Mas uma rede de mensageiros pode ser substitu¡da por umcorreio eletr"nico, um servio de contabilidade por um programa de computador, etc. As m quinas sociais são indiferentemente compostas porhomens e artefatos, por animais e potncia naturais. Que existam numerosos segmentos não biol¢gicos ou não humanos no coletivo cognitivo não altera absolutamente nada em sua natureza pensante, do pontode vista funcional que nos interessa aqui. 0 crebro composto por numerosos m¢dulos autom ticos. Da mesma forma, o social est recheado de segmentos maquinais. Repetindo, muitas vezes estes segmentos

são relativamente independentes uns dos outros, desconect veis, comouma m quina de fotoc¢pias, um computador, uma central hidreltrica ou o departamento de uma grande organizaão.

 A CONSCIENCIA E INDIVIDUAL, MAS 0 PENSAMENTO E COLETIVO

 Não preciso ser consciente para pensar? Podese considerar que

grupos sejam efetivamente sujeitos cognitivos, enquanto que s¢ podemos falar de conscincia coletiva enquanto met fora? Como j vimos,do ponto de vista das cincias cognitivas contemporneas, a consciencia

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e tudo aqui que se encontra diretamente baseado nela representam umaspecto importante, mas não essencial, da inteligncia. A conscienciapode ser considerada como uma das interfaces entre o organismo, seuambiente, e o funcionamento de seu pr¢prio sistema cognitivo. osistema de fixaão de uma parte da mem¢ria de curto prazo, a pequena janela sobre os processos controlados. Estes processos controladossão menos potentes e r pidos que os processos autom ticos ou reflexos. Em compensaão, oferecem maior flexibilidade. Apresentam umamaior sensibilidade em relaão aos objetivos em curso do que os automatismos, que teriam tendncia a reagir aos dados em funão de conexões inatas ou da experincia passada. Ora, nos grupos, esta flexibilidade e esta sensibilidade pode ser atingidas por outros meios quenão a conscincia. A deliberaão coletiva, a existncia de contrapoderes,os mecanismos institucionalizados de temporizaão poderiam, porexemplo, ocupar o seu lugar. Haveria, então, outros dispositivos quenão a conscincia para atingir a flexibilidade e as capacidades de negociaão com a novidade que caracterizam a inteligncia.

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No social, nada corresponde aos limites dr sticos da mem¢ria d(curto prazo que encontramos nos sistemas cognitivos pessoais, sobretudo ap¢s a invenão da escrita. Ora, como n¢s vimos, parece que aseqencialidade e o sentimento de unidade associados ... vida mentaconsciente estão intimamente ligados ...s restriões que pesam sobre aarquitetura cognitiva do indiv¡duo humano. Novamente, como os grupos não compartilham estas restriões com os indiv¡duos, não tmnecessidade de conscincia para serem inteligentes.

E necess rio ainda esclarecer que a linearidade e o sentimento deunidade s¢ valem em uma escala mdia de introspecão. No n¡vel neuronal, o funcionamento paralelo, a multiplicidade das entidades em interaão, e portanto a inconscincia, são, ao contr rio, traos determinantes. Nem a conscincia, nem a unidade substancial, nem o funcionamento sequencial são indispensaveis ao pensamento.

A consciencia, portanto, nao e quase nada, e por isso que podemos dotar de pensamento os coletivos cosmopolitas, por natureza inconscientes. Ora, a conscincia (necessariamente individual) parece ser,por outro lado, quase tudo.

Mais freqenternente um simples rel, efeito de rede, ponto singular no selo de um dispositivo social e c¢smico que a excede por todos oslados, a conscincia funciona precisamente porque se ergue como cen

tro causal e origem das representaões. Ao proclamareupenso, eu sei,eu quero, etc.", ela se apropria e se atribui aquilo que, rigorosamentefalando, pertence apenas a um agenciamento infinitamente complexoque ultrapassa os limites do indiv¡duo. Esta ilusão tem sua importncia,ia que decisões seguidas por efeitos, transformaões reais da ecologiacognitiva ou do metassocial cosmopolita ir~o emanar dela. Este erro fecundo, esta oscilaão entre a ¡nfima realidade e a grande ilusão, este quasenada que se cr quase tudo e termina por produzir alguma coisa rio centroda megarrede (e sobretudo das fr geis redes de conscincias ... ), eis o quedefine o papel paradoxal da conscincia individual na ecologia cogniti

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va. Ainda que nos saibamos efeitos contingentes de redes cosmopolitas,não nos vivenciamos, ou o fazemos muito raramente, desta forma. Aludapor cima, devemos dar conta de nossas palavras e de nossos atos enquantoseres conscientes. 0 que parece ser um paradoxo insuper vel rio papelnão perturba de forma alguma o sono da maior parte dos humanos (quetem muitas outras preocupaões) e tamhm não os dissuade de buscar,a partir do momento em que acordam, suas paixões ordin rias. Não esta uma nova prova da estreiteza do dom¡nio de aplicaão da l¢gica?

 As Tuctiologias da Inteligncia

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OBJETOS INANIMADOS, VOCÒS TÒM UMA ALMA AFINAL? 

Mesmo quando se admite que grupos humanos enquanto taissejam capazes de cognião, podese ser mais reticente em aceitar quecoletivos mistos, englobando coisas e conjuntos naturais, possam serinteligentes. Como uma coisa poderia participar da inteligncia? Li

mitaremos provisoriamente nossa resposta ...s tecnologias intelectuais,deixando assim de lado os moinhos de vento, os trens de alta velocidade e os canais de irrigaão em proveito de sistemas serm¢ticos comoas escritas, m quinas complexas como os computadores, ou objetosmanipul veis como as folhas de papel, os l pis e os livros impressos.

LeroiGourhan disse que o biface de s¡lex prolongava a mão,como uma espcie de monstruosa unha cultural. McLuhan baseou suaan lise das m¡dias em suas relaões com os sentidos. A impressão prolongaria e ampliaria a visão, o r dio aumentaria a potncia de nossosouvidos, etc. Ser que a met fora do prolongamento pode ajudarnosa compreender o papel das tecnologias intelectuais? Ser enquantoferramentas do sistema nervoso, extensões do crebro, que coisas aparentemente inertes podem fazer parte da inteligncia? Ter¡amos a ima

gem de instrumentos basicamente passivos comandados por um pensamento humano soberano, como o cinzel e o martelo nas mãos doescultor. Mas esta descrião não mais procedente se o pensamentoest identificado antes com um efeito de coletivo heterogneo do quecom o atributo de uma entidade unificada e senhora de si mesma.

0 esp¡rito humano não uni centro organizador em torno do qualgiram tecnologias intelectuais, como satlites a seu servio. Em si, não

  nada alm de uni agenciamento de satlites de todos os tamanhos etodo tipo de composiões, desprovido de um sol central.

0 computador, ou ainda o arranjo composto pelo papel, o l pise o alfabeto formam rincrom¢dulos relativamente coerentes que vmjuntarse, como n¢s suplementares, a numerosos outros n¢s semiindependentes de uma rede cognitiva ao mesmo tempo pessoal e transpessoal.

Como delimitar claramente o pensamento e aquilo de que ele vive,e que se estende em todas as direões, sem limites precisos? Comoseparar a inteligncia da rede orgnica, objetiva, social ... qual ela estacoplada? 0 que o esp¡rito sem a mão que desenha e pinta, esculpe,escreve, e constr¢i, e maneja o florete? E sem o pincel, o l pis e a tesoura entre os dedos dessa mão? 0 que o pensamento sem a imageni interior, e portanto sem o globo ocular, seu humor v¡treo, seus

 Pierrc L6vy

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pigmentos irisados, e tudo aquilo que foi inventado para fazer imagens, do ocre de Altamira at os plxels das telas? 0 que a mente semlinguagem, este ve¡culo onipresente, meio sujeito, meio objeto, produtodo coletivo, que fala quase dentro de n¢s como um aut"mato? 0 que

  a mente sem a conversaão, sem a presena do social e de todos osseus aparelhos de mem¢ria? Quase nada.

 TECNOLOGIAS INTELECTUAIS E SUBJETIVIDADE FRACTAL

 Quem pensa? Uma imensa rede loucamente complicada, que pen

sa de forma m£ltipla, cada n¢ da qual por sua vez um entrelace indiscern¡vel de partes heterogneas, e assim por diante em uma descida fractal sem fim. Os atores desta rede não param de traduzir, derepetir, de cortar, de flexionar em todos os sentidos aquilo que recebem de outros. Pequenas c amas evanescentes e su jetivi a e unit ria correm na rede como fogos f tuos no matagal das multiplicidades.Subjetividades transpessoais de grupos. Subjetividades infrapessoais dogesto, do olhar, da car¡cia. claro, a pessoa pensa, mas porque umamegarrede cosmopolita pensa dentro dela, cidades e neur"nios, esco

la p£blica e ncurotransmissores, sistemas de signos e reflexos. Quando deixamos de manter a conscincia individual no centro, descobrimos uma nova paisagem cognitiva, mais complexa, mais rica. Em particular, o papel das interfaces e das conexões de todos os tipos adquire uma importancia fundamental. Citando apenas um exemplo cl ssico, sabido que o uso do alfabeto impresso faz trabalhar sobretudoo crebro esquerdo (mais anal¡tico e ling¡stico), enquanto que as escritas ideogr ficas tambm utilizam o crebro direito (mais global, ligado as imagens e ritmos). Assim, as tecnologias intelectuais não seconectam sobre a mente ou o pensamento em geral, mas sobre certossegmentos do sistema cognitivo humano. Elas formam, com estes m¢dulos, agenciamentos transpessoais, transversais, cuja coerncia po eser mais forte do que algumas conexões intrapessoais.

As tenologias intelectuais situamse fora dos sujeitos cognitivos,como este computador sobre minha mesa ou este livro em suas mãos.Mas elas tambm estão entre os sujeitos como c¢digos compartilhados, textos que circulam, programas que copiamos, imagens que imprimimos e transmitimos por via hertziana. Ao conectar os sujeitos,interporemse entre eles, as tcnicas de comunicaão e de representa

 As Tecnologias da Inteligncia

 173

ão estruturam a rede cognitiva coletiva e contribuem para determinar suas propriedades. As tecnologias intelectuais estão ainda nos sujeitos, atravs da imaginaão e da aprendizagem. Mesmo com as mãosvazias e sem nos mexermos, pensamos com escritas, mtodos, regras,compassos, quadros, grafos, oposiões l¢gicas, cantigas algor¡tmicas,modos de representaão e de visualizaão diversos. Para escrever aquiloque est sendo lido agora, usei um programa de hipertexto no qual os

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n¢s blocos de texto organizamse em redes em vez de estaremligados seqencialmente. Estas redes são representadas na tela pormapas nos quais r¢tulos (os nomes dos blocos) estão ligados por setas. Mesmo quando eu não estava frente a meu computador, quandouma idia me vinha ... mente, imaginava a parte do diagrama onde elairia encaixarse.

A interiorizaão das tecnologias intelectuais pode ser muito forte, quase um reflexo, como podem slo o conhecimento de uma l¡ngua natural, a leitura e escrita de ideogramas ou alfabetos, os sistemasde numeraão e de medida, a representaão em linhas e em colunas, ouso do teclado das m quinas de escrever ou dos computadores, etc.Palavras cochichadas ao crep£sculo, signos brilhando sob o sol de meiodia ou sobre o cu inverso das telas, n¢s introjetamos agenciamentossemi¢ticos dispersos no mundo. E com estes elementos de fora interiorizados, subjetivados, metaforicizados pelo h bito ou a imagina

  ão, que criamos novas entidades aud¡veis OU ViSiVCis, concretudesdur veis ou acontecimentos fugazes, que outros ou talvez n¢s mesmosinterioriza remos novamente... 0 estudo das tecnologias intelectuaispermite, então, colocar em evidncia uma relaão de encaixamentofractal e rec¡proco entre objetos e sujeitos. 0 sujeito cognitivo s¢ funciona atravs de uma infinidade de objetos simulados, associados,imbricados, reinterpretados, suportes de men~¢ria e pontos de apoiode combinaões diversas. Mas estas coisas do mundo, sem as quais osujeito não pensaria, são em si produto de sujeitos, de coletividades

intersubletivas que as saturaram de humanidade. E estas comunidades e sujeitos humanos, por sua vez, caeregam a marca dos elementosobjetivos que misturamse inextrincavelmente ... sua vida, e assim pordiante, ao longo de um processo em abismo no qual a subjetividade envolvida pelos objetos e a objetividade pelos sujeitos.

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 Pierre Uvy

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 As Tecnologias da Inteligncia

15. INTERFACES 

Falouse muito em interfaces neste livro. Preferimos colocar emobra e ilustrar o conceito antes de definilo, mas talvez tenha chegadoo momento de tratar esta noão em si mesma. Para alm de seu significado especializado em inform tica ou qu¡mica, a noão de interfaceremete a operaões de traduão, de estabelecimento de contato entremeios heterogneos. Lembra ao mesmo tempo a comunicaão (ou otransporte) e os processos transformadores necess rios ao sucesso datransmissão. A interface mantm juntas as duas dimensões do devir:

o movimento e a metamorfose. a operadora da passagem.A an lise "em rede de interfaces" de um dispositivo sociotecnicoimpede a fascinaão paralisante, o deslumbramento do pensamentoe da aão pelas essncias. Cada nova interface transforma a efic ciae a significaão das interfaces precedentes. sempre questão de conexões, de reinterpretaões, de traduões em um mundo coagulado,misturado, cosmopolita, opaco, onde nenhum efeito, nenhuma mensagem pode propagarse magicamente nas trajetõrias lisas da inrcia,mas deve, pelo contr rio, passar pelas torões, transmutaões e reescritas das interfaces.

 A INTERFACE NA INFORMµTICA

 

Enquanto voc bulo especializado, a palavra "interface" designaum dispositivo que garante a comunicaão entre dois sistemas inform ticos distintos ou um sistema inform tico e uma rede de comunicaão. Nesta acepão do termo, a interface efetua essencialmente operaões de transcodificaão e de administraão dos fluxos de informa

  ão. 0 modem (modulador demodulador) um exemplo de interfacesimples. Ele transforma os sinais bin rios dos computadores em sinaisanal¢gicos aptos a viajar atravs da linha telef"nica cl ssica, realizandotambm a transformaão inversa. graas a estas interfaces digitais/anal¢gicas os modems que computadores podem comunicarseatravs da rede telef"nica.

Uma interface homemlm quina designa o conjunto de programas e aparelhos materiais que permitem a comunicaao entre um sis

tema inform tico e seus usu rios humanos. 176

 Pierre Uvy

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Cada vez mais, usase o termo interface, sem acrescentar nada,no sentido de interface homem/m quina. Este voc bulo substitui parcialmente aos de entrada e sa¡da dos sistemas inform ticos. 0 tecladode um computador foi primeiro considerado como um "dispositivo deentrada", da mesma forma, por exemplo, que um leitor de cartõesperfurados. As telas foram vistas por muito tempo como "dispositivos de sa¡da", da mesma forma como as luzes que piscam, as perfuradoras de fita ou as impressoras dos computadores dos anos sessenta.A digitadora ou operadora de entrada alimentava a m quina, e outros operadores recolhiam e processavam os resultados do c lculo. 0vocabul rio testemunhava sobre a posião que o aut"mato ocupavano centro do dispositivo sociotcnico. A "entrada" e a "sa¡da" estavam situadas em lados opostos de uma m quina central. Esta pocaterminou. Atravs de uma verdadeira dobradura l¢gica, as duas extremidades juntaramse e, viradas para o mesmo lado, compõem hojea "Interface". No momento em que a maioria dos usu rios definitivamente n~o são mais informatas profissionais, quando os problemassutis da comunicaão e da significaão suplantam os da administra

  ão pesada e do c lculo bruto que foram os da primeira inform tica,a interface tornase o ponto nodal do agenciamento sociotcnico.

Aplicamos, retroativamente, o termo de interface a todos osdispositivos tcnicos que garantissem o contato entre uma calculadora eletr"nica e seu ambiente exterior. Foi desta forma que pude

mos perceber um computador como um encaixe, um folheado, umarede de interfaces sucessivas. As interfaces de hoje são eliminadasamanhã (como os leitores de cartões perfurados) ou redescobertaspor novas interfaces e assim reintegradas ... m quina (interfaces materiais como certos comutadores eletr"nicos, ou l¢gicas como a linguagem bin ria).

Esta an lise em termos de rede de interfaces permitiunos recusarqualquer visão essencialista, est tica ou logicizante do computador.Não poss¡vel deduzir nenhum efeito social ou cultural da informatizaão baseandose em uma definião pretensamente est vel dos aut"matas digitais. Basta que seja conectada uma nova interface (a telacat¢dica, o mouse, uma nova linguagem de programaão, uma redu

  ao de tamanho) ... rede de interfaces que constitui o computador no

instante t, e no instante t+1 se ter obtido um outro coletivo, uma outrasociedade de microdispositivos, que entrar em novos arranjos sociotcnicos, mediatizar outras relaões, etc. Podese muito bem dizer que

 As Tecnologias dalntehg~ncia

o Macintosh e o Edvac13 são dois computadores, mas são redes de interfaces totalmente diferentes, que se imbricam com m¢dulos cog

nitivos, sensoriomotores e anat"micos diferentes e não entram nosmesmos agenciamentos praticos com as outras tecnologias, processosde trabalho, instituiões, etc.

Tomemos uma m quina para processamento de textos. Ela con~tm um grande n£mero de interfaces: l¡nguas, n£meros, escritas, alfabetos, a impressão, a m quina de escrever (o teclado), a inform tica, diversos programas, a tela cat¢dica. Muitas destas interfaces agem apenas nas entranhas do computador, traduzindo, transformando na sombra.Mas todas contribuem para compor este agenciamento complexo que

  a m quina. A dimensão de envolt¢rios sucessivos, de combinaão e in

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tegraão vertical cruza uma outra dimensão, a das conexões horizontais.Para continuar com nosso exemplo, o DTP (desktop publisbing, ou editoraão eletr"nica) veio da associaão de quatro grandes caracter¡sticasde interface: o processamento de textos WySjWjg14~ os microcomputadores, os programas de layout e as impressoras laser de baixo custo. Nofinal dos anos setenta, a idia de DTP se impâs pouco a pouco, ... medida que as interfaces acrescentavamse umas ...s outras, sem que ninguema houvesse perseguido explicitamente. Ao abrir novos espaos para apublicaão descentralizada, o DTP provocou toda uma reorganizaaodos circuitos de comunicaão das empresas, das pequenas ediões e dojornalismo. Como foram incorporadas a programas de DTP, muitas dasantigas habilidades relativas ... impressão difundiramse largamente, novasprofissões apareceram, etc.

 11 Foi nos planos do Edvac (Electronic Discrete Variable Computer), redi

gidos por John vou Neumann, que foram formulados pela primeira vez os princ¡pios fundamentais que constituem, ainda hoje, a base da organizaão interna doscomputadores. A constru5o do Edvac s¢ foi completada em 1951 [701.

 14 0 princ¡pio WYSiwyg (what you sce is what you get) assegura uma con

formidade, em princ¡pio perfeita, entre o que aparece na tela e o que ser impres

so no papel. Os primeiros programas de processamento de textos, para assinalar

na tela que uma palavra seria impressa em it lico, colocavam um c¢digo convencional antes da palavra, enquanto que os programas Wysiwyg simplesmente exibem em it lico na tela a palavra que ser impressa em it lico. Este princ¡pio

deinterface permite ao usu rio controlar a aparncia da p gina antes mesmo da mi

pressão, evitando assim surprcsas desagrad veis, reduzindo o processo de tenta

tiva e erro, e finalmente melhorando as condiões de trabalho na tela, livre de c¢di

gos abstratos in£teis.

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  Pierre Uvy# 

Ainda que ele represente um dos principais usos da inform ticano in¡cio dos anos noventa, era imposs¡vel prever o DTP levandoseem conta os computadores dos anos sessenta, j que nem a impressora a laser de baixo custo, nem o computador pessoal, nem os programas de processamento de textos "amig veis" estavam previstos nesta

  poca. Em 1975, o DTP era inimagin vel. Cada nova interface permite novas conexões, que por sua vez vão abrir novas possibilidades,de forma que imposs¡vel prever ou deduzir o que quer que seja paraalm de uma ou duas camadas tcnicas.

Se conectarmos o DTP aos bancos de imagens digitais, aos bancos de dados, aos hipertextos, aos sistemas especialistas, obteremosainda outro efeito concreto, dificilmente deduz¡vel dos componentesb sicos do agenciamento em questão. 0 sentido de um dispositivotcnico não a soma dos sentidos de seus componentes, mas sim algode novo que ir surgir, na forma interpretativa, de um exterior in

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determin vel. 

AS TECNOLOGIAS INTELECTUAIS ENQUANTO REDES DE INTERFACES 

Ao invs de confinar a noão de interface ao dom¡nio da inform tica, podemos fazla trabalhar na an lise de todas as tecnologiasintelectuais. 0 livro que voc segura em suas mãos, por exemplo, umarede de interfaces. H , em primeiro lugar, o pr¢prio princ¡pio da escrita, que a interface visual da l¡ngua ou do pensamento. A esta primeira caracter¡stica vem articularse a do alfabeto fontico (e não aideografia). Por sua vez, o sistema alfabtico encontrase envolvido sobuma aparncia, em unia embalagem particular. a interface romana,e não a grega ou a rabe. Mas este alfabeto romano, como ser apresentado, de acordo com qual caligrafia? Com letras carol¡ngeas, it licas,onciais? E todos estes caracteres, sobre qual material estarão inscritos? Papiro, tabuinha de argila, m rmore, pergaminho, papel, telacat¢dica, de cristais l¡quidos? Cada suporte permite formas, usos econexões diferentes da escrita: o papiro requer o rolo, o pergaminhoe o papel permitiram a invenão do c¢dex.

A impressão edificouse sobre uma rede de interfaces j elaborada: o alfabeto latino, a letra carol¡ngea padronizada por Alcu¡no noreinado de Carlos Magno, o papel, o c¢dex. Depois do triunfo daprensa mecanica, como vimos, os impressores acrescentaram novas

 

AsTecnologias da Inteligncia 179

camadas l¢gicas para facilitar o acesso ao texto: sum rios, ¡ndices,numeraão das p ginas, sinais de pontuaão...

0 que um livro? Uma sociedade de palavras? Certamente, masestas palavras encontramse materializadas, conectadas, apresentadas

e valorizadas junto ao leitor por uma rede de interfaces acumulada epolida pelos sculos. Caso se acrescente ou se suprima uma £nica interface ... rede tcnica da escrita em um dado momento, toda a relaãocom o texto se transforma.

  unicamente com a condião de descer ao plano molecular das interfaces que poderemos compreender os agenciamentos sociotcnicos dosquais as tecnologias intelectuais tomam parte. Tecnologia intelectual demasiadamente molar. Como se diversos dispositivos vistos de longe,tomados como um todo, unificados violentamente sob um conceito, pudessem ter caracter¡sticas pr ticas independentes de suas conexões concretas, das modificaões da microssociedade que os compõem, das interpretaões dos atores sociais. A interface abrese para uma descrião molecular, vibrat¢ria, m£ltipla e reticular das tecnologias intelectuais.

A interface possui sempre pontas livres prontas a se enlaar, ganchos pr¢prios para se prender em m¢dulos sensoriais ou cognitivos, estratos de personalidade, cadeias operat¢rias, situaões. A interface umagenciamento indissoluvelmente material, funcional e l¢gico que funcionacomo armadilha, dispositivo de captura. Sou captado pela tela, a p gina, ou o fone, sou aspirado para dentro de uma rede de livros, enganchadoa meu computador ou minitel. A armadilha fechouse, as conexões commeus m¢dulos sensoriais e outros estão estreitas a ponto de fazermeesquecer o dispositivo material e sentirme cativado apenas pelas interfacesque estão na interface: frases, hist¢ria, imagem, m£sica.

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Mas, inversamente, a interface contribui para definir o modo decaptura da informaão oferecido aos atores da comunicaão. Ela abre,fecha e orienta os dom¡nios de significaão, de utilizaões poss¡veis deuma m¡dia. 0 videocassete transforma a relaão com a televisão, osfones e o pequeno tamanho dos walkman reinstituem o uso do cassete.. A interface condiciona a dimensão pragm tica, aquilo que podeser feito com a interface ou oconte£do%termo tão inadequado. jque, examinando de perto, um conte£do tambm contm, assim comoa cebola composta por cascas sucessivas, sem que jamais possamosencontrar uma polpa ou um n£cleo de significaão. 0 sentido remetesempre aos numerosos filamentos de uma rede, negociado nas fronteiras, na superf¡cie, ao acaso dos encontros.

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 Pierre Levy

ONTOLOGIA DAS INTERFACES 

A mesma espcie que refinou ao extremo o mundo das significa  ões cercouse de um tecnocosmos. Estes dois aspectos do humanoecoam um ao outro, se entrelaam, quase que se confundem. A essncia da tcnica est toda nestas ondas alternadas de ramificaão e solidificaão de redes de interfaces que a hist¢ria descobre. Como no universo simb¢lico, todos os usos, todas as interpretaões tcnicas sustentamse, ap¢iamse umas sobre as outras, respondemse ou opõemse no centro de uma enorme estrutura inst vel, em constante reconfiguraão. Bifurcaões ou associaões inesperadas abrem bruscamente novos universos de possibilidades tanto no centro de um agenciamento tcnico quanto em um texto. 0 coletivo sociotcnico constituido de tal forma que enormes revoluões da ecologia cognitiva giram sobre a ponta aguda de pequenas reformas na sociedade das coi

sas: Gutenberg passou anos regulando problemas na prensa, na tinta,na liga de chumbo e estanho...Todas as tcnicas, e não somente as tecnologias intelectuais, po~

dem ser analisadas em redes de interfaces. Armas, ferramentas, diferentes m quinas, como os dispositivos de inscrião ou de transmissão,são concebidos precisamente para imbricaremse o mais intimamenteposs¡vel com mõdulos cognitivos, circuitos sensoriomotores, poroesde anatomia humana e outros artefatos em m£ltiplos agenciamentosde trabalho, guerra ou comunicaao.

A noão de interface pode estenderse ainda para alm do dom¡nio dos artefatos. Esta , por sinal, sua vocaão, j que interface uma superf¡cie de contato, de traduão, de articulaão entre dois espaos, duas espcies, duas ordens de realidade diferentes: de um c¢

digo para outro, do anal¢gico para o digital, do mecnico para o humano... Tudo aquilo que traduão, transformaão, passagem, daordem da interface. Pode ser um objeto simples como uma porta, mastambm um agenciamento heterognco (um aeroporto, uma cidade),o momento de um processo, um fragmento de atividade humana. Estas entidades pertencem, sem d£vida, a reinos ou estratos ontol¢gicosdistintos, mas de um ponto de vista pragm tico todas são condutores deformantes em um coletivo heterognco, cosmopolita. Os maisdiversos agenciamentos comp¢sitos podem interfacear, ou seja, articular, transportar, difratar, interpretar, desviar, transpor, traduzir,

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trair, amortecer, amplificar, filtrar, inscrever, conservar, conduzir, 

As Tecnologias da Inteligncia 

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transmitir ou parasitar. Propagaão de atividades nas redes transit¢rias, abertas, que se bifurcam...

0 que passa atravs da interface? Outras interfaces. As interfacessão embutidas, dobradas, amarrotadas, deformadas umas nas outras,umas pelas outras, desviadas de suas finalidades iniciais. E isto at o£ltimo inv¢lucro, at a £ltima pequena dobra. Mais uma vez, se haconte£do, devemos imagin lo como sendo feito de recipientes encaixados, aglomerados, prensados, torcidos... 0 interior composto porantigas superf¡cies, prestes a ressurgir, mais ou menos vis¡veis por transparncia, contribuindo para definir um meio continuamente deform vel. Tanto assim que um ator qualquer não tem nada de substancial para comunicar, mas sempre outros atores e outras interfaces acaptar, deslocar, envolver, desviar, deformar, conectar, metabolizar.

A primeira interface de nosso corpo a pele, estanque e porosa,fronteira e local de trocas, limite e contato. Mas o que esta pele envolve? No n¡vel da cabea, a caixa craniana. E nesta caixa? 0 crebro: uma extraordin ria rede de comutadores e de fios entrelaados,eles mesmos conectados por in£meros (neuro) transmissores.

A funão reprodutora faz com que se juntem (interfaceia) os doissexos e constitui o corpo inteiro enquanto meio, canal ou recipiente paraoutros indiv¡duos. 0 aparelho circulat¢rio: uma rede de canais. 0 sangue, um ve¡culo. 0 coraão, um trocador. Os pulmões: uma interfaceentre o ar e o sangue. 0 aparelho digestivo: um tubo, um transformador, um filtro. Frizimas, nietab¢litos, catalisadores, processos de codificaão e decodificaão moleculares. Sempre intermedi rios, transportadores, mensageiros. 0 corpo como uma imensa rede de interfaces.

A l¡ngua: uma trama infinitamente complicada onde se propagam, se dividem e se perdem as fulguraões luminosas do sentido. Aspalavras j são interfaces, colocadas em ressonncia por uma voz,distendidas ou torcidas por um canto, estranhamente coilectadas aoutras palavras por um ritmo ou rimas, projetadas no espao visualpela escrita, padronizadas, multiplicadas e colocadas em rede peloimpresso, mobilizadas, tornadas tão leves na ponta dos dedos peloprograma... veStimentas multiplamente revestidas, arrepios diversamente perturbados por outras palpitaões.

Cada instante não nada alm de uma passagem entre dois instantes.Uma pletora indefinida e ruidosa de ve¡culos, de canais, de intrpretes,e de emiss rios constitui o fundo do devir. Angelos: o mensageiro. Sempre pollf"nico e por vezes discordante, eis o coraão irisado dos anjos.

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Pierre Levy# 

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RETORNO AO PROBLEMA DO CONHECIMENTO 

Para que nos serve, aqui, esta ontologia da interface, ou melhor,esta metodologia? Para preparar o terreno para o pensamento do pensamento que a ecologia cognitiva.

Um mundo molecular e conexionista resistir melhor ...s maciasoposiões bin rias entre substncias: sujeito e objeto, homem e tcnica, indiv¡duo e sociedade, ete. Ora, são estas grandes dicotomias quenos impedem de reconhecer que todos os agenciamentos cognitivosconcretos são, ao contr rio, constitu¡dos por ligas, redes, concreõesprovis¢rias de interfaces pertencendo geralmente aos dois lados dasfronteiras ontol¢gicas tradicionais.

Não se trata, de forma alguma, de negar a heterogencidade ou adiversidade do real para jogar tudo sobre um £nico polo. Não iremosalegar, por exemplo, que existe apenas "matria" e que isto nos autoriza a colocar crebros em contato com telefones ou computadores.Não iremos tampouco profetizar alguma nova versão do panpsiquisiTioque nos permitiria afirmar que as coisas pensam. Não precisamos destasunificaões macias para fazer com que as coisas participem do pensamento ou conectar computadores ao crebro. Em oposião ...s me~taf¡sicas com espaos homogncos e universais, a noão de interfacerios fora pelo contr rio a reconhecer uma diversidade, uma heterogencidade do real perpetuamente reencontrada, produzida e sublinhada, a cada passo e tão longe quanto se v . Se todo processo inter

faceamento, e portanto traduão, porque quase nada fala a mesmal¡ngua nem segue a mesma norma, porque nenhuma mensagem setransmite tal qual, em um meio condutor neutro, mas antes deve ultrapassar descontinuidades que a metamorfoseam. A pr¢pria mensagem uma movente descontinuidade sobre um canal e seu efeito sero de produzir outras diferenas. A teoria da comunicaão, apesar detodas as suas insuficincias, havia sugerido uma ontologia baseada emacontecimentos, puramente relacionais, e que portanto não são nemmateriais nem espirituais, nem objetivos nem subjetivos.

Sob estas entidades institu¡das que são as tcnicas de comunica  ão, os gneros de conhecimento, ou as representaoes culturais, o

mtodo de an lise em redes de interfaces revela coletivos heterogneos abertos a novas conexões, redes interligadas e dispersas ao sabor

de dinmicas ecol¢gicas. Ela permite dissolver as substncias, as definiões imut veis e as pretensas determinaões para devolver os seres 

As Tecnologias da Inteligncia# 

e as coisas ... fluidez do devir. A seu devir social, questão de lutas e deprojetos, mas tambm a seu poss¡vel devir esttico ou existenc.

ial.

A teoria das interfaces que tentamos empregar nesta obra evitou 1ific ssemos, autoriorniz ssemos artificialmente determinado gque rei 1 1 1nero de conhecimento, determinado complexo de representaões comose existisse em si, independentemente de seus suportes, de suas conexões, do dispositivo sociotcnico que lhe d sentido. Como na versãoconexionista ou neuronal da inteligncia, todo conhecimento reside na

1 4articulaão dos suportes na arquitetura da rede, no agenciamento dasinterfaces. Traduzir antigos saberes em novas tecnologias intelectuais 1

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4equivale a produzir novos saberes (escrever um texto, compor umhipertexto, conceber um sistema especialista). A ilusão consiste em crerque haveria "conhecimentos" ou "informaões" est veis que poderiammudar de suporte, ser representadas de outra forma ou simplesmenteviajar guardando ao mesmo tempo sua identidade. Ilusão, porqueaquilo sobre o que versam as teorias do conhecimento: saberes, informaões e significaões são precisamente efeitos de suportes, conexões,proximidades, interfaces.

0 que conhecer? Isto coloca em jogo dobras um pouco maisdensas, am lgamas mais apertados, folheados de interfaces possivelmente mais espessos, redes conectando sem d£vida mais longamenteseus trocadores e seus cana

is... Mas entre o curso do mundo tal comodecorre no grande coletivo cosmopolita dos homens, dos seres vivose das coisas, e os processos cognitivos, não existe nenhuma diferenade natureza, talvez apenas uma fronteira impercept¡vel e flutuante.

 184

 Pierre Uvy

CONCLUSÇOPOR UMA TECNODEMOCRACIA

 A TCNICA E 0 GRANDE HIPERTEXTO

 0 conjunto das mensagens e das representaões que circulam em

uma sociedade pode ser considerado como um grande hipertexto movel, labir¡ntico, com cem formatos, mil vias e canais. Os membros damesma cidade compartilham grande n£mero de elementos e conexões

da megarrede comum. Entretanto, cada um tem apenas uma visãopessoal dele, terrivelmente parcial, deformada por in£meras traduõese interpretaões. São justamente estas associaões indevidas, estas metamorfoses, estas torões operadas por m quinas locais, singulares,subjetivas, conectadas a um exterior, que reinjetam movimento, vida,no grande hipertexto social: na "cultura".

Qual o modo de constituião deste hipertexto? De que forma seligam ...s representaões? Qual a topologia das redes onde circulam asmensagens? Que tipos de operaão os discursos e as imagens produzem, transformam e transportam? Estas são algumas das perguntas ...squais uma ecologia cognitiva deveria poder responder.

Ao mesmo tempo em que deve mobilizar tudo o que as cinciashumanas cl ssicas tm a dizer sobre as artes, as cincias, a comunica

  ão e a cultura, a ecologia cognitiva deve recorrer ... tecnologia dascincias, da cultura, etc. Efetivamente, as conexões, os nos, os trocadores e os operadores da grande rede cosmopolita em que se inscrevem as civilizaões não são apenas pessoas mas tambm obras de arte.

Se colocamos a nfase na tecnologia, foi para reparar uma injustia, para devolver a inteligncia as coisas, que por muito tempo foram mantidas ... distncia. Não se trata, de forma alguma, de acreditar que "a tcnica como um todo (como se a palavra designasse umaentidade real e homognca) "determina", ou funda, ou forma a "Infraestrutura" do que quer que seja. Quando tentamos compreender como

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pensam e sonham os coletivos, estar¡amos antes diante de sistemas 

As Tecnologias da Inteligncia 

185# 

ecol¢gicos abertos, em reorganizaão permanente e povoados por in£meros atores.

  certo que alguns artefatos concretos desempenham um papel fundamental neste ou naquele agenciamento particular de comunicaão,de representaão ou de c lculo. Mas encontramse, então, totalmenteimbricados a coletivos humanos. A "tcnica"? Uma poeira de interfaces,uma multidão heter¢clita de simbiotas artificiais, muito diferentes unsdos outros, compartilhando as aventuras divergentes dos grupos queos abrigam. Seu envolvimento em uma via particular resulta de circunstncias locais, da interpretaão talvez contingente dos atores humanosque os cercam e que lhes dão sentido. Não são portanto os membrosuniformes de uma mesma espcie "tcnica" coligados tendo em vistadeterminado fim ou a obtenão de certo efeito. Assim como não h na

tureza humana, não h tampouco natureza das coisas.As tcnicas não determinam nada. Resultam de longas cadeias intercruzadas de interpretaões e requerem, elas mesmas, que sejam in~terpretadas, conduzidas para novos devires pela subjetividade em arosdos grupos ou dos indiv¡duos que tomam posse dela. Mas ao definir emparte o ambiente e as restriões materiais das sociedades, ao contribuir

1 idades cognitivas dos coletivos que as uti Özam,para estruturar as at v il,elas condicionam o devir do grande hipertexto. 0 estado das tcnicasinflui efetivamente sobre a topologia da megarrede cognitiva, sobre otipo de operaões que nela são executadas, os modos de associaao quenela se desdobram, as velocidades de transformaão e de circulaão dasrepresentaões que dão ritmo a sua perptua metamorfose. A situaão

tcnica inclina, pesa, pode mesmo interditar. Mas não dita.Unia certa configuraão de tecnologias intelectuais em um dadomomento abre certos campos de possibilidades (e não outros) a umacultura. Quais possibilidades? Na maior parte das vezes s¢ descobrimos isto depois. Gutenberg não previu e não podia prever o papel quea impressão teria no desenvolvimento da cincia moderna, no sucesso da Reforma ou, tanto atravs do livro quanto do )ornal, sobre aevoluão pol¡tica do Ocidente. Foi preciso que atores humanos se coligassem, se arriscassem, explorassem. Atores moldados pela hist¢rialonga de que são herdeiros, orientados pelos problemas que perpassam seu coletivo, limitados pelo horizonte de sentido de seu sculo.

A significaão e o papel de uma configuraão tcnica em um momento dado não podem ser separados do projeto que move esta confi

guraão, ou talvez dos projetos rivais que disputam~na e puxamna em 186

todos os sentidos. Não podemos deduzir o pr¢ximo estado da cultura

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nem as novas produões do pensamento coletivo a partir das novas possibilidades oferecidas pelas tcnicas de comunicaão de suporte inform tico. Podemos apenas propor algumas indicaões, esboar uma ouduas pistas. Nesta conclusão, nosso prop¢sito consiste antes de mais nadaem designar as tecnologias intelectuais como um terreno pol¡tico fundamental, como lugar e questão de conflitos, de interpretaões divergentes.Pois ao redor dos equipamentos coletivos da percepão, do pensamentoe da comunicaão que se organiza em grande parte a vida da cidade nocotidiano e que se agenciam as subjetividades dos grupos.

Em que medida certos projetos, certos atores singulares conseguirão desviar de seu destino espetacular a grande rede digital para qualconvergem progressivamente a inform tica, as telecomunicaões, aedião, a televisão, o cinema e a produão musical? Ela ir escapar ...svisões imediatistas racional izadoras e utilit rias? Poderemos lanarnos nela ... procura de outras razoes que não as do lucro, outras belezas que não as do espet culo?

Não haver respostas positivas para estas perguntas a menos querenunciemos previamente ... idia de uma tecnocincia aut"noma, regidapor princ¡pios diferentes daqueles que prevalecem nas outras esferasda vida social, tanto no plano do conhecimento quanto rio da aão.Voltamos assim ao tema de nossa introduão. Ao longo deste livro,vimos que os projetos, conflitos e interpretaões divergentes dos atores sociais (tanto criadores quanto produtores ou usu rios) desempenhavam um papel decisivo na definião das tecnologias intelectuais.

  poss¡vel, acreditamos, generalizar tal julgamento ... tecnocincia comoum todo. Esta proposta libertadora, j que, se por tr s da dinmicacontempor~nea das cincias e tcnicas se esconderem não mais a razão e a efic cia (quer demos a estes termos um valor positivo ou ne~gativo), mas sim uma infinidade de razões e de processos interpretativosdivergentes, então não ser mais poss¡vel, de direito, excluir a tecnocincia da esfera pol¡tica.

 A TECNOCIÒNCIA COMO IJk1 TODO , HERMENÒUTICA

 Podemos separar uin dom¡nio abenoado onde reinaria a her

menutica pura de uma zona maldita onde a operaão pura teria livrecurso, sem que a graa

  As Tectiologias d'a lntchg~ncia 

do sentido jamais venha toc la? 

187# 

Em uma escala microsc¢pica, h tanta interpretaão em funão

do contexto ou da hist¢ria na leitura de uma curva traada por uminstrumento de medião quanto na leitura de um cl ssico chins oude um texto sagrado. Na escala macrosc¢pica, a hist¢ria das cinciase das tcnicas encontrase inteiramente enrijecida por interpretaõese reinterpretaoes de todos os tipos (como tão bem mostraram, porexemplo, os autores de Elementos de hist¢ria das cincias, sob a dire

  ão de Michel Serres).A tcnica, mesmo a mais moderna, toda constitu¡da de bri

colagem, reutilizaão e desvio. Não poss¡vel utilizar sem interpretar,metamorfosear. 0 ser de uma proposião, de uma imagem, ou de um

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dispositivo material s¢ pode ser determinado pelo uso que dele fazemos, pela interpretaão dada a ele pelos que entram em contato comele. E os turbulentos operadores da hist¢ria das tcnicas não paramde interpretar e de desviar tudo aquilo de que tomam posse para finsdiversos, imprevis¡veis, passando sem cessar de um registro a outro.Esta mobilidade ainda mais evidente para a tecnica contemporneado que para a das sociedades de evoluão lenta, ainda que o menordos objetos tcnicos j seja algo arrancado do dom¡nio natural, ou douso precedente, para ser reinterpretado, torcido em outro uso. Nenhuma tcnica tem uma significaão intr¡nseca, um "ser" est vel, masapenas o sentido que dado a ela sucessiva e simultaneamente porm£ltiplas coalizões sociais. Talvez houvesse uma "essncia da tcnica ", mas esta se confundiria com uma capacidade superior de captar,de desviar, de interpretar aquilo que est no n£cleo da antropogenese.Não são portanto a objetivaao, a conexão mecanica entre a causa eo efeito, ou o desdobramento cego de um "sistema tcnico" preterisamente ¡numano que melhor qualificam a tcnica, mas sim a form¡gante atividade hermenutica de in£meros coletivos.

Isabelle Stengers e Judith SchIanger [921 mostraram que, longede identificarse com a "aplicaão" autom tica de uma teoria cient¡fica, uma inovaão tcnica constitui uma criaão de significaões. "Estas significaões remetem tanto a restriões econ"micas (custos, patentes, situaão do mercado, investimentos, estratgias de desenvolvimento da firma ... ) quanto sociais (qualificaões, relaões sociais

implicadas ... construão ou utilizaão da inovaão), pol¡ticas (acessibilidade das matriasprimas, estado da legislaão a respeito da eventual poluião, monop¢lios do Estado) ou culturais (relaões com op£blico). Uma inovaão tcnica s¢ existe se ela faz face de maneira

 188

 Pierre 1,6vy

coerente a estas diferentes restriões heterogneas, se ela consegueadquirir sentido ao mesmo tempo no plano cient¡fico, econ"mico,cultural, etc."" E nenhuma destas aquisiões de sentido encontrasepreviamente garantida, nenhum avano tcnico determinado a priori,antes de ter sido submetido ... prova do coletivo heterogneo, da redecomplexa onde ela dever circular e que ela conseguir , eventualmente,reorganizar.

 UM PENSAMENTOCLCULO?

 Um dos principais erros de Heidegger e de muitos cr¡ticos da

tecnocincia o de crer na cincia, quer dizer, agir como se as estrat

gias, as alianas, as interpretaões, as negociaões, que são tramadassob o r¢tulo da tecnocincia, possu¡ssem uma qualidade especial, ausente das outras atividades humanas. Heidegger escreveu, por exemplo: "A exatidão do nãoverdadeiro possui uma irresistibilidade pr¢pria em todo o dom¡nio da vontade de vontade". 0 que o mesmoque dizer que, em sua esfera pr¢pria, a cincia infal¡vel e a tcnicasempre eficaz. Mas não! Falhase bastante, tateiase sempre, em cincia como em outras coisas.

Michel Callon, Bruno Latour e a nova escola de sociologia dascincias mostraram que, longe de serem "irresist¡veis", as proposiões

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cient¡ficas eram objeto de controvrsias violentas. Mesmo ap¢s aceitas, preciso ainda mantlas (j que cada membro da comunidadereinterpreta e desvia aquilo que recebe dos outros) ao custo de umconsider vel gasto de energia (laborat¢rios, aparelhos de medida egravaão, circuitos de publicaões, ensino, financiamentos, aliadosdiversos ... ). Quanto ...s m quinas e aos processos tcnicos, tambm nãose propagam "irresistivelmente". Para cada aparelho que faz sucesso(todos reconhecem que eficaz, um item obrigat¢rio) cem terão sidoabortados nas sombras. Cincia e tcnica são farinha do mesmo sacoque os processos usuais do coletivo.

  verdade que os enunciados cient¡ficos tomam ares de seremneutros, objetivos, fatuais, formais, universais. Mas esta pretensa neu

 15 In Isabelle Stengers e Judith Schlanger, Les Concepts scientifiques

inventi . on et poumoir, La Dcouverte, Paris, 1989.

 As Tecnologias da Inteligncia

 189

tralidade, inumanidade, infalibilidade da cincia moderna um efeito, um produto. Ela não est de forma alguma relacionada ... essnciada cincia. A maior parte,dos enunciados que circulam na comunidade cient¡fica e nos laborat¢rios são tão incertos, polmicos, circunstanciais, personalizados, interpretativos quanto aqueles que ocorremnas outras comunidades. Confundimos o produto acabado ideal e aatividade que tenta desajeitadamente constru¡lo e que na maior parte do tempo não o consegue, apesar de um enorme gasto de laborat¢rios, de procedimentos complicados, de dinheiro, de pessoal, e a organizaão garantida pelas instituiões de ensino, as bibliotecas, a ind£stria, etc. 0 que not vel o enorme esforo que preciso dispender

para estabelecer alguns enunciados neutros C universais, quer dizer,aceitos por todos e reproduzidos nos manuais (estabilizaao por sinaltotalmente provis¢ria, afinal "a cincia avana" ... ), e não que existaum dom¡nio maravilhoso, transcendente, nãoaxiol¢gico, etc., no quala subjetividade a hist¢ria e os conflitos não ocorressem.

Se não existe tecnocincia como potncia separada do devir coletivo, existe efetivamente sob o nome de "cincia" uma visão de conhecimento que não deve ser reduzida a algo que apenas um aspecto local e momentneo de seu devir.

Não se trata unicamente, na cincia, desta objetividade emvirtude da qual a natureza se oferece a nossa representaão como umsistema cintico espaotemporal e de alguma maneira prcalcul vel"(Heidegger). Isto , se otiso dizer, um clich de unia cincia baseada em

c lculo, leis universais e mecanismo determinista. Se esta imagem fosse correra, se fosse isto tudo o que a atividade cient¡fica tivesse para oferecer ao coletivo que a alimenta, a oposião entre o "mundo da vida"e a "raz5o" poderia ter alguma consistncia. Mas lllya Prigogine e IsabelleStengers [871 recentemente colocaram em seu devido lugar esta imagemenganosa, ao mostrar que ela correspondia apenas a uma etapa da aventura cient¡fica, e apenas em alguns dom¡nios. Infelizmente, ficamos muitas vezes presos ... versão de Ilusserl sobre a pretensa fundaão da cinciamoderna por Galileu ou aos an temas de Heidegger contra a cincia que"não pensa". 0 div¢rcio que pronunciamos r pido demais entre vida

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e razão, cincia e meditaão ou tcnica e sociedade depende de uma versão terrivelmente parcial do processo cient¡fico. Nada disso pode favorecer o estabelecimento de uma tecnodemocracia.

Heidegger ou Michel Henry "acreditam" na cincia como as pessoas da Idade Mdia acreditavam na realeza do direito divino. Tal pes~

 190

soa não e rei porque seu pai mandou estrangular o monarca titular,não porque dispõe da fora armada, da submissão do povo, da ajudados grandes e de uma aliana com um vizinho poderoso, não, ele reipelodireito divino". Maquiavel ainda não escreveu 0 Pr¡ncipe.

Falta realizar para a cincia e a tcnica a obra de laicizaão queMaquiavel realizou para a autoridade pol¡tica. Este trabalho j se encontrabastante adiantado, graas aos trabalhos da nova escola de antropologia das cincias. Não a "razão" contra a "vida" ou a "objetividade"contra o "ser", mas, como em tudo, questões de foras, de alianas, deredes mais ou menos s¢lidas, de finura, de tateamentos, e de interpreta

  ão, tanto com entidades humanas quanto com não humanas (micr¢

bios, macromolculas, eltrons, campos, circuitos, motores, etc.) SOBRE UMA PREI ENSA OPOSIÇO ENTRE 0 HOMEM E A MµQUINA

 Como a oposião entre o homem e m quina poderia ser tão ra

dical? 0 recorte pertinente não passa pela sociedade dos humanos deum lado, e a raa das m quinas de outro.Toda a efic cia de um e a pr¢prianatureza do outro se devem a esta interconexão, esta aliana de umaespcie animal com um n£mero indefinido, sempre crescente de artefatos, estes cruzamentos, estas construões de coletivos h¡bridos e decircuitos crescentes de complexidade, colocando sempre em jogo maisvastas, ou mais ¡nfimas, ou mais fulguratires, porões de universo.

0 que não quer dizer que a m quina seja a melhor amiga do

homem, não mais que o pr¢prio homem. Hµ m quinas de morte e deassujeitamento, m quinas de exploraão, m quinas loucas lanadaspor humanos contra humanos, consrru¡das e niantidas por homens etriturando outros homens. Mas a m quina cotidiana, £til, apropriada, a m quina mimada, polida, mantida, tambm existe.

Chega de nos polarizarmos sobre a oposião f cil, grosseira eespetacular entre o homem de carne e a m quina de metal e siliconepara que possamos discernir as inegam quinas h¡bridas, feitas de pedras e hornens, tinta e papel, palavras e estradas de ferro, regulamentos e privilgios, redes telef"nicas e computadores: estes grandes monstros heter¢clitos que são as empresas, as administraões, as usinas, asuniversidades, os laborat¢rios, as comunidades e coletivos de todos ostipos. 0 Estado, por exemplo, desde sempre ou quase, desde a Sumria,

com seus grandes pal cios de tijolos envernizados, armazns, hierar As Tecnologias da Iiiteligricia

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quias complicadas, guardas, capatazes e canais de irrigaão, ferreiros,armas, escravos, bois e pequenos animais, suas tabuinhas de argila seca,contas cuneiformes e exrcitos de escribas, terras semeadas com cevada, coletores de impostos andando nas estradas.

, Que novas megam quinas, quais agenciamentos mutantes os computadores do futuro irão organizar?

0 que seria preciso opor, não o homem e a tecnologia enlouquecida, mas o real mais macio, mais espesso, m£ltiplo, infinitamentediverso, não totaliz vel, não sistematiz vel, turbilhonante, incomodativo, misturado, confundindo as pistas mais claras, quase totalmenteopaco de um lado, e a ordem r¡gida de um discurso racional no qualse encadeariam de forma l¢gica os fins e os meios, os meios sempresubordinados aos fins e os fins em algum cu etrco da tica, ou dapalavra, ou da liberdade, ou de uma rep£blica das vontades racionais,ou de Deus. Certamente não o pretenso sistema tcnico que se opoea esta visão inconsistente dos destinos humanos, mas sim o turbilhonamento infinito do real.

 A CIDADE CONTEMPOR¶NEA SE ESTENDE · TOTALIDADE DO MUNDO

 (COSM¢POLIS)

 0 horm"nio que estimula a lactaão das vacas foi descoberto em

1920. Graas ... engenharia gentica, h pouco tempo tornouse poss¡vel fabricar este horm"nio (pudicamente rebatizado de prote¡na)atravs de microorganismos. Os grupos industriais que financiaramestas pesquisas tm, evidentemente, a inten~o de torn las rent veis.Para tal seria preciso convencer os fazendeiros da excelncia, utilidade e rentabilidade de seu produto. Seria tambm preciso persuadir asadministraões que regulamentam a sa£de e a agricultura que o horm"nio não era nocivo. Para este fim, foi desenvolvida uma infinidadede testes para verificar a inoculdade da prote¡na. Estes testes colocavam em jogo numerosos produtos qu¡micos, aparelhagens complexas,animais, cobaias humanas, etc. Como os fazendeiros e as administra

  ões j haviam sido convencidos nos Estados Unidos, seria mais f cilpara as ind£strias veterin rias pleitear sua causa junto aos europeus.

Entretanto, como sabido, a Europa atravessa uma enorme superproduão de leite. Somas enormes são destinadas a congelar manteiga efabricar leite em p¢. Os preos do leite são artificialmente inchados

para sustentar os fazendeiros. 0 que fazer, então, com um processoque permitia fabricar mais leite? Resposta das ind£strias veterin rias:fazer a mesma quantidade de leite, mas com menos vacas. 0 que seria ainda mais vantajoso devido a existncia de um incentivo ao aba

timento, justamente por causa da superproduão. Entretanto, as coisas se complicam ainda mais, uma vez que as vacas tratadas com estehorm"nio, j que fabricam mais leite precisam de uma alimentaãomuito mais abundante e mais rica que a grama das pastagens da Normandia ou da Charente. Requerem, portanto, alimentos especiais paraanimais, fabricados industrialmente. A partir de soja brasileira, porexemplo... Esta nova procura por soja provavelmente provocaria aextensão da monocultura para exportaão no Brasil. Isto ocorreria emdetrimento da policultura de subsistncia, ... custa da floresta primitiva? De qualquer forma, resultaria em um modificaão de paisagens e

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ecossistemas no continente sulamericano. A transformaão da paisagem rural europia tambm certa. Como evoluirão os bosques nor mandos ap¢s o abandono das pastagens? Quais espcies animais evegetais sofrerão ou lucrarão com esta mudana?

Observemos que nada, absolutamente nada fora as organizaõesagr¡colas e as instituiões europeias a aceitar a proposta das ind£striasveterin rias. Quase nada pro¡be que associaões de cidadãos do Mercado Comum Europeu tentem influenciar as decisões dos organismoscomunit rios. E claro que ambas as partes podem ter seus especialistas, seus cientistas, seus agrotcnicos.

Um novo processo para fabricar uma prote¡na coloca em jogo,portanto, uma rede complexa na qual interagem laborat¢rios farmacuticos, seus equipamentos, seus testes e est bulos; mas tambm micr¢bios, vacas, fazendeiros, pastagens normandas, a monocultura desoja em certas regiões do Brasil, os regulamentos europeus, etc.

A questão est limitada a relaões entre humanos? evidente quenão. Relaões foram estabelecidas entre homens, animais, micr¢bios,prote¡nas, equipamento cient¡fico, leis, regulamentos, paisagens, plantas, ecossistemas, etc. 0 objetivo das ind£strias farmacuticas o dedesfazer o. agenciamento acima, para construir um outro, que funcionaria a seu favor.

Em qual terreno estas associaoes são tramadas ou resolvidas?Na sociedade? Não, o terreno de manobras muito mais vasto que asociedade. Poder¡amos chamar este lugar metassocial de a Terra; não

fazemos distinão entre as entidades conforme sejam inertes ou vivas, As Tecnologias da Inteligncia

 193

1 , i 

homens ou coisas, pequenas (micr¢bios) ou grandes (paisagens rurais,ecossistemas)... 0 projeto de democracia tcnica baseiase em uma antropologia cosmopolita.

A cincia moderna não p ra de curtocircuitar as fronteiras, asseparaões e as regras. A democracia deve fazer o mesmo.

 NEUTRALIDADE DA TECNICA?

 A tcnica em geral não nem boa, nem ma, nem neutra, nem

necess ria, nem invenc¡vel. uma dimensão, recortada pela mente, deum devir coletivo heterogneo e complexo na cidade do mundo. Quanto mais reconhecermos isto, mais nos aproximaremos do advento deuma tecnodemocracia.

0 processo de metamorfose sociotcnica era lento na maior partedas sociedades do passado, seu ritmo acelerouse h dois ou trs sculos, primeiro no Ocidente e depois em toda parte. Possui muitas vezesum car ter epidmico e destruidor para "sisternas tcnicos" antigos,est veis em maior ou menor grau, e para as sociedades que se organizaram em torno desses sistemas; pois a "tcnica", repetimos, encontrase sempre intimamente misturada ...s formas de organizaão social,...s instituiões, ...s religiões, ...s representaões em geral. Os "valores"são contingentes em um sentido muito profundo, j que estão ligados...s estabilizaões provis¢rias de m£ltiplos dispositivos materiais e or

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ganizacionais, necessariamente suscetiveis de serem reinterpretados,capturados e abandonados Por uma infinidade de protagonistas. Eis,sem d£vida, o porqu de muitos autores identificarem a tcnica comouma das causas do mal contemporneo, eles vem nela a fonte dadecadncia dos valores aos quais estavam ligados. Mas a tcnica apenas uma dimensão, recortada pela mente, do conjunto do jogocoletivo, aquela na qual desenhamse as conexões f¡sicas do mundohumano com o universo. A partir do momento em que reificamos esteponto de vista em fora aut"noma podemos atribuir a ele, magicamente, uma vida propr'ia, uma responsabilidade sobre as dificuldades queassolam hoje a humanidade. Mas quaisquer que sejam os horrorescometidos pelas armas avanadas, ou na ocasião de desastres ecol¢gicos, da destruião de meios de vida tradicionais, ou do estabelecimento de ambientes inumanos, a coletividade humana que respons~vel por tais agressões contra si mesma e contra outras formas de vida,

 194

 Pierre L6vy

não uma entidade exterior e separ vel que poder¡amos culpar por todosos males, como uma espcie de bode explat¢rio conceitual.

Pelas mesmas razões que não podemos conden la, igualmente absurdo incensar a tcnica. Sobretudo, não lhe pedir nada em rela

  ão aos fins £ltimos, não lhe pedir demais, no geral. Nenhuma "solu  ão" pode vir da "tcnica", mas somente algumas sa¡das favor veis

ou desfavor veis das negociaões e conflitos entre agricultores, insetos, empresas, atmosfera, jornalistas, sindicatos, universidades, v¡rus,laborat¢rios, rios, classes sociais, Estados, macromolculas, associa

  ões diversas, organismos internacionais, eltrons, etc.Para aqueles que observamno dia ap¢s dia, nos detalhes de seu

desenvolvimento, 0 processo sociotcnico aparece como uma infini

dade de singularidades que se conectam, se agenciam, se destroem,desaparecem e muram. As evoluões regulares, as tendncias a longoprazo, os paradigmas, as macroestruturas são apenas ilusões de ¢ticaretrospectivas, encenaões a servio de operaões de captura, que porsua vez são apenas produões tempor rias de singularidade.

Uma vez que o pretenso "sistema tcnico" ou "a tcnica" tenhamsido novamente imersos no rio do devir coletivo, podemos enfim reconhecer que a dimensão instituinte est presente em toda parte, aomenos enquanto potncia. Mais uma vez descobrimos o alcance pol¡tico desta discussão: quanto mais "a tcnica" for concebida comoaut"noma, separada, fatal, todapoderosa e possuidora de uma essnciaparticular, menos pensaremos que ainda temos poder. Em compensa

  ão, quanto melhor compreendermos "a essncia da tcnica", mais se

tornar claro que h espao para uma recnodeiliocracia, que um amplo espao permanece aberto ... cr¡tica e ~ intervenão, aqui e agora.Na era do planeta unificado, dos conflitos niundializados, do

tempo ace era o, da informaão desdobrada, das m¡dias triunfantese da tecnocincia multiforme e ompresente, quem não sente que preciso repensar os objetivos e os meios da aão pol¡tica? A integraãoplena das escolhas tcnicas no processo de decisão democr tica seriaum elemento chave da necess ria mutaão da pol¡tica. As sociedadesditas &tnocr ticas, se merecem seu norne, tm todo o interesse emreconhecer nos processos sociotcnicos fatos pol¡ticos importantes, e

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em compreender que a instituiao contempornea do social se faz tantonos organismos cient¡ficos e nos departamentos de pesquisa e descrivolvimento das grandes empresas, quanto no Parlamento ou na rua.Ao lanar o cat logo eletrânico ou trabalhar nas manipulaões gen

 As Tecnologias da Inteligncia

 195

196 

ricas, contribuise da mesma forma para forjar a cidade do mundoquanto votando. Mas esta produão do coletivo sempre amb¡gua,polissmica, aberta ... interpretaão. 0 Minitel francs, de grande redeestatal que era ao ser lanado, foi rapidamente reinterpretado por

 grande n£mero de usu rios como um suporte de troca de mensagensinterativa onde foram inventadas novas formas de comunicar, mas estastrocas de mensagens foram desviadas pelos vendedores de ilusões cor

derosa, que, por sua vez, etc.j foi poss¡vel compreender que, de certa forma, a tecnopol¡ticaj ocorre nas reinterpretaões, desvios, conflitos, alianas e compromissos aos quais se dedicam os operadores do coletivo. Para tornarse tecnodemocracia, não falta ... tecnopol¡tica nada alm de transcorrer tambm na cena p£blica, onde os atores são cidadãos iguais, e ondea razão do mais forte nem sempre prevalece. Renunciar ... imagem falsa de uma tecnocincia aut"noma, separada, fatal, todapoderosa, causa do mal ou instrumento privilegiado do progresso para reconhecernela uma dimensão particular do devir coletivo, significa compreender melhor a natureza deste coletivo e tornar mais prov vel o advento de uma tecnodemocracia. Não alimento nenhuma ilusão quanto aum pretenso dom¡nio poss¡vel do progresso tcnico, não se trata tan

to de dominar ou de prever com exatidão, mas sim de assumir coletivamente um certo n£mero de escolhas. De tornarse respons vel, todos juntos. 0 futuro indeterminado que o nosso neste fim do sculoXX deve ser enfrentado de olhos abertos.

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As Tecnologias da Inteligncia# 

AGRADECIMENTOS 

Este livro foi concebido e parcialmente redigido enquanto estive como pro

fessor convidado no departamento de comunicaão da universidade do Quebecem Montreal. Meus colegas de Montreal, Gilles "Zenão" Maheu, Charles Halarye Jacques Ajenstat, sugeriranirne boas leituras e excelentes idias.

As discussões que prosseguiram no col¢quio de Treilles entre os autores deElements d'bistoire des sciences (sob a direão de Michel Serres) levaramme a re

visar minha concepão da tcnica. Os silncios eloquentes, e depois o est¡mulo deBruno Latour talvez tenham desempenhado, neste aspecto, um papel determinant

e.Agradeo particularmente a Isabelle Stengers, que incansavelmente respon

deu, atravs de cr¡ticas construtivas, amig veis e detalhadas, aos textos com osquais

eu abarrotei sua caixa de correspondncia.Minha gratidão, enfim, para Dominique, que fez tudo para facilitar meu

trabalho, cujo suporte jamais me faltou, e que pacientemente releu as sucessivas

versões deste livro, agraciandome com suas observaões. 198

 Pierre Uvy

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Stevejobs. The journey is the Reward, Scott Foresman and Cornpagny, New York,l 98

7).Notemos, enfim, a excelente revista Terminal, informatique, culture, so(,

it8, rue de Chatillon, 75014 Paris. (Mais (le cinqfienta nrneros publicados.)

 As Tectiologias da hircligncia

  203# 

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matique. Paris: La Dcouverte, 1990. L'Idographie dynamique vers une imagination artificielle?. Paris: La

Dcouverte, 1991. De la programmation considre comme un des beauxarts. Paris: La

Dcouverte, 1992. 

Em COLABORA·O (COM JEANPIERRE ETJEANLouis WEISSBERG)Guide de L'informatisation. Informatique et socit. Paris: Belin, 1987.

 #

 

COLE¶O TRANSdire...o de ric Alliez

 Para alm do MaiCuttIldidO dC Um pretenso "fiiri da filosofia" inter

vindo no contexto do que se admite chaniar, at em sua alteridade Iltecnocient¡fica", a crise da raz o; contra um certo destino da tarefa cr¡tica que rio

sincitaria a escolher entre ecletisiiio e academismo; no ponto de estranheza

onde

a experincia tornada iniriga d acesso a novas figuras do ser e da verdade...TRANS quer dizer tra nsversal idade das cincias exatas e anexatas, humanase nãohurriarias, trarisdisciplinaridade dos problemas. Em suma, trarisfouina

  ão nuiria pratica cujo primeiro conte£do que h linguagem e que a linguagem nos conduz a diniensões lieterogncas que nÇo tm nada em comum como processo da inet fora.

A iiiii s¢ tempo arqueol¢gica e construtivista, em todo caso experiniental, essa afirmaão das indagaões voltadas para urria exploraão polif"nicado real leva a liberar a exigncia do conceito da hierarquia das questões admitidas, aguando o trabalho do pensamento sobre as pr ticas que articulamos campos do saber e do poder.

Sob a responsabilidade cient¡fica do Colgio Internacional de EstudosFilos¢ficos Transclisciplinares, TRANS vem propor ao p£blico brasileiro nu

inerosas traduões, incluindo textos inditos. Não por [nu fasc¡nio PCIO ()Litro,mas por unia preocupaão que não hesitar¡amos em qualificar de pol¡tica,se porventura se verificasse que s¢ se forjani instrumentos para unia outrarealidade, para iinia nova experincia da hist¢ria e do terripo, ao arriscarseno horizonte mlriplo das novas foririas de raciorialidade.

 COLLÇO TRANSvol¡tines publicados

 Gilles Deleuze e Flix Guattari

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0 que a Idosofia?Flix GuattariCaosinose Uni novo paradignia esiticoGilies DeleuzeConversaoesBarbara Cassin, Nicole Loraux, Catherme peschariskiGregos, b rbaros, estrangeiros A cidade e seus outrosIlierre LvyAs tecnologias (Ia intelig~nciaPaul Virilio0 espao cr¡ticoAntonio NegriA anoinalia selvagenz Poder e pot~ncia em Spinoza

Andr Parente (org.)Iiiiageniiii...qliiiia A era das tecnologias do uirtiialBruilo LatourJamais fomos modernosNicole Loraux

A inveno de AtenasFric AlliezA assinatura do imindo 0 que a filosofia de Deleuze e Guattari,'Gilles Deleuze e Flix GuattariMil plaffis Capitalisino e esqtiizofrenia (Vols. 1, 2, 3,4 e 5)Maurice de GiiidillacGneses da niodernidadePierre ClastresCr"nica do indios GuayakiJacques RancirePoliticas da escritajeanPierre FayeA razao narrativa

Monique DavidMnardA loucura na r(izi,io Inirajacques Rancire0 desentendinienio Poltii,ii e filosofia

  ric AlliezDa impossibilidade da jeiiomenologiaMichaelliardtGilles Deleuze Uni aprendizado eni fflosofia

  ric AlliezDeleuze filosofia virtnalPierre Lvy0 que ; o virtifal?Franois jullien

Figuras da iniannciaGilles DeleuzeCri'tica e clinicaStanley CavellEsta Amrica nova, ainda inadord...i2el

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Esit~ uvRo 1:01 COMPOSFO EM SABON PFIABRACHFR & MALIA, COM FOIOLI]OS DOBIJRFAU ~14 F IMPRF~O PH A PRoi EimORAGRAFICA rM PAPH POI FN SOF 1 80 (JM2 DACIA. SUZANO DE PAPEL E CELI)LOSE PARA AEi)j I ORA .34, EM MAIO DE 1998.

um contexto social mais amplo, em parte determinando este contexto mas tambm sendodeterminada por ele. Desta forma, a tcnicatornase apenas uma dimensão a mais, umaparte do conjunto do jogo coletivo, aquela naqual desenbanise as conexões f¡sicas do mundo humano com o universo.Nosso prop¢sito consiste antes de mais

nada em designar as tecnologias intelectuaiscorno um terreno pol¡tico fundamental, comolugar e questão de conflitos, de interpretaões

divergentes. Pois ao redor dos equipanientos coletivos da percepão, do pensamento eda comunicaão que se organiza em grandeparte a vida da cidade no quotidiano e quese agenciam as subjetividades dos grupos.As mudanas estão ocorrendo ein toda

parte, ao redor de n¢s, irias tambm em nosso interior, em nossa forma de representar o