L'Homme Port

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L’Homme, 2006, 179 : 113-139 Ontologia animista, etnociências e universalismo cognitivo O olhar ashéninka Marc Lenaerts COMO NOSSOS INTERLOCUTORES nativos organizam a sua percepção dos seres vivos, de estas espécies vegetais e animais que fazem o seu ambiente quotidiano ? O panorama das respostas é variado, especialmente na área indígena e amazônica. Durante décadas, duas abordagens têm simplesmente coexistido, sem nunca realmente entrar em contato ou discussão, bem pelo contrário: até os últimos anos, até tendiam a deixar estender-se entre eles uma distância certamente muito educada, mas cada vez mais sujeita ao silêncio mútuo, apesar da abundância de publicações em ambos os lados - ou talvez por causa dela . A primeira é largamente predominante, especialmente do lado anglo-saxão, ao ponto de reservar-se em prática o próprio termo etnociência. Se trata evidentemente da escola de Brent Berlin, seus críticos e seus seguidores. Sua hipotese básica , ilustrada por inúmeras monografias, é que os princípios de identificação e classificação dos organismos vivos são essencialmente os mesmos em todos os lugares : as folk taxonomies se apresentariam todas na forma de estructuras arborescentes, baseadas no aspecto morfológico geral das espécies, e organizadas em uma inclusão hierárquica de diferentes níveis de classificação. O problema todo torna-se então bastante simples: se trata de dar conta, neste quadro decididamente universalista, de algumas particularidades muito secundárias das classificações indígenas. Por exemplo, está o sistema classificador todo presente ao espírito dos informadores? Ou antes, a árvore taxonómica (indígena ou popular) é mobilizada por troços, de amplitude variável de acordo com o contexto (Randall 1976)? Ou ainda: onde situar outros modos de classificação, fundados sobre critérios alternativos como o habitat ou a alimentação? Não seria mais judicioso incluir no esquema, em redor do núcleo central da classificação em arborescência, a possibilidade de categorizações transversais e periféricas, “à finalidades específicas” (Hunn 1982) – uma proposição que de resto se impôs muito rapidamente? A segunda abordagem, quanto a ela, porque preocupa-se muito mais das relações entre o grupo humano e o seu ambiente natural, só aborda muito ocasionalmente a temática das classificações indígenas. Mas então, é frequentemente para sublinhar muito estranhas associações de espécies, que obviamente permanecem completamente localizadas culturalmente – o que não tem nada de desconcertante nessa óptica, dado que é noutro lugar, é dizer no princípio mesmo de uma construção social ou cultural da natureza, que seria necessário procurar o universal. Baseados em premissas e centros de interesse tão diferentes, as duas correntes evidentemente eram dedicadas à profundas divergências. Para retomar dois exemplos já antigos, mas bem emblemáticos, os Aguaruna de acordo com Brent Berlin constroem categorias botânicas e zoológicas muito próximas das dos nossos cientistas (Berlim 1976; Boster, Berlim & O' Neil 1986). Mas o que eles têm então que ver com os seus vizinhos Achuar, também Jivaro, que

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  • LHomme, 2006, 179 : 113-139

    Ontologia animista, etnocincias e universalismo cognitivo O olhar ashninka

    Marc Lenaerts

    COMO NOSSOS INTERLOCUTORES nativos organizam a sua percepo dos seres vivos, de estas espcies vegetais e animais que fazem o seu ambiente quotidiano ? O panorama das respostas variado, especialmente na rea indgena e amaznica. Durante dcadas, duas abordagens tm simplesmente coexistido, sem nunca realmente entrar em contato ou discusso, bem pelo contrrio: at os ltimos anos, at tendiam a deixar estender-se entre eles uma distncia certamente muito educada, mas cada vez mais sujeita ao silncio mtuo, apesar da abundncia de publicaes em ambos os lados - ou talvez por causa dela . A primeira largamente predominante, especialmente do lado anglo-saxo, ao ponto de reservar-se em prtica o prprio termo etnocincia. Se trata evidentemente da escola de Brent Berlin, seus crticos e seus seguidores. Sua hipotese bsica , ilustrada por inmeras monografias, que os princpios de identificao e classificao dos organismos vivos so essencialmente os mesmos em todos os lugares : as folk taxonomies se apresentariam todas na forma de estructuras arborescentes, baseadas no aspecto morfolgico geral das espcies, e organizadas em uma incluso hierrquica de diferentes nveis de classificao. O problema todo torna-se ento bastante simples: se trata de dar conta, neste quadro decididamente universalista, de algumas particularidades muito secundrias das classificaes indgenas. Por exemplo, est o sistema classificador todo presente ao esprito dos informadores? Ou antes, a rvore taxonmica (indgena ou popular) mobilizada por troos, de amplitude varivel de acordo com o contexto (Randall 1976)? Ou ainda: onde situar outros modos de classificao, fundados sobre critrios alternativos como o habitat ou a alimentao? No seria mais judicioso incluir no esquema, em redor do ncleo central da classificao em arborescncia, a possibilidade de categorizaes transversais e perifricas, finalidades especficas (Hunn 1982) uma proposio que de resto se imps muito rapidamente? A segunda abordagem, quanto a ela, porque preocupa-se muito mais das relaes entre o grupo humano e o seu ambiente natural, s aborda muito ocasionalmente a temtica das classificaes indgenas. Mas ento, frequentemente para sublinhar muito estranhas associaes de espcies, que obviamente permanecem completamente localizadas culturalmente o que no tem nada de desconcertante nessa ptica, dado que noutro lugar, dizer no princpio mesmo de uma construo social ou cultural da natureza, que seria necessrio procurar o universal. Baseados em premissas e centros de interesse to diferentes, as duas correntes evidentemente eram dedicadas profundas divergncias. Para retomar dois exemplos j antigos, mas bem emblemticos, os Aguaruna de acordo com Brent Berlin constroem categorias botnicas e zoolgicas muito prximas das dos nossos cientistas (Berlim 1976; Boster, Berlim & O' Neil 1986). Mas o que eles tm ento que ver com os seus vizinhos Achuar, tambm Jivaro, que

  • Philippe Descola (1986) mostra como classificadores muito menos sistemticos, preocupados sobretudo das suas prprias relaes de parentesco com as espcies animais e vegetais? O debate no entanto no se abriu em estas ocasies. Cada corrente prosseguiu sobre a sua prpria via; e sobre debates internos cada vez mais estrangeiros aos do outro. Do lado da escola taxonmica, aps algumas controvrsias em redor de conceitos como as life forms e a sua universalidade, acumulou-se sobretudo monografias. E no passo, ps-se a refinar os procedimentos de teste e de tratamento estatstico, para avaliar mais exatamente os graus de convergncia entre os dados indgenas e ocidentais, populares ou cientficos, sempre a propsito das prticas classificadoras, ou ainda a propsito dos processos de identificao, at-l ligeiramente negligenciados (Boster, Berlim and O' Neil 1986; Medin & Atran 1999). Do lado da corrente natureza e sociedade, a reflexo prolongou-se pelo contrrio sobre a anlise dos discursos indgenas simblicamente mais construdos, cujos diferentes aspectos gradualmente tm-se articulado para desenhar uma paisagem conceptual totalmente nova. As etapas so bem conhecidas. Primeiro houve releitura de velhos temas amaznicos como o Animal-Pessoa e a construo do corpo, que desembocou finalmente na teoria do perspectivismo amaznico (Viveiros Castro 1996). Logo uma releitura do antigo conceito de animismo, para conduzir ideia que o Ocidente naturalista e a Amaznia anmica (entre outros) privilegiam modelos ontolgicos opostos (Descola 2005). A investigao continua hoje sobre outras vias ainda: particularidades dos equilbrios amaznicos entre afinidade e consanguinidade, entre substncia e relao (Viveiros Castro 2001) Mas passagem, quebrando assim o quadro monogrfico, esta nova imagem do pensamento indgena ganhou uma coerncia e sobretudo uma amplitude que pe pergunta s pretenses universalistas das folk taxonomies: coletivamente que a obra Nature and Society sublinha (por fim!) os fossos conceptuais que podem existir entre este modelo universal e as cosmologias e prticas indgenas concretas, seja em Amaznia, seja no resto da Amrica das Terras Baixas, seja no Sudeste asitico (Descola & Plsson 1996). Em si, a coexistncia de dois discursos sem comuna medida tem algo ligeiramente embaraoso, tanto mais que se situa sobre um terreno finalmente bastante restrito e claramente definido, o da percepo ou das percepes indgena(s) da natureza. bastante surpreendente que a pergunta no foi levantada claramente mais cedo. No fundo, tudo passa como se tivesse sobrevivido aqui uma espcie de diviso implcita, que no teria na verdade nada de bem novo. A escola de Brent Berlin e dos seus herdeiros se levaria a linguagem e os mtodos das cincias duras, o crebro humano e o universal, o cognitivo firmemente ancorado sobre o rigor das identificaes botnicas e zoolgicos. E escola das relaes entre natureza e sociedade seriam deixados a anlise dos mil e uns comentrios indgenas, as altas esferas do discursivo, do local e do relativo, e, falado de passo, certo xeiro de exotismo cujo encanto sempre ps problemas disciplina.

    Ora, se tiver-se a possibilidade de jogar ao mesmo tempo sobre os dois quadros, ou seja de trabalhar sobre um tema extremamente prosaico a partirem de identificaes meticulosas, mas permanecendo sempre atento ao conjunto da cultura indgena em geral, e aos contextos de enunciao dos dados em especial, estas clivagens simplistas baralham-se imediatamente: os dados e comentrios simblicos enrazam-se imediatamente numa base muito concreta, e os modos de classificao mais universais tornam-se s vezes extraordinariamente especficos

  • Os dados ashninka

    Os Ashninka do Ucayali constituem um subgrupo dialetal do vasto conjunto Ashninka-Ashninka (mais de 51.000 em 1993), os mais numerosos dos Arawak subandinos. o subgrupo que mais avanou para o Nordeste, sobre um territrio que na sua maior parte ocupam apenas desde 100 150 anos. As suas aldeias, frequentemente bastante dispersadas, estendem-se desde o alto Ucayali, no Peru (2793 habitantes de acordo com o recenseamento oficial de 1993, no Departamento do Ucayali), at o Brasil, onde oficialmente so chamados ainda de Campa (de 7 a 800, no Estado de Acre). Sem dvida, a sua classificao dos seres vivos apresenta aspectos extremamente diferentes de uma folk taxonomy do modelo cannico. particularmente visvel no domnio animal, com o qual comearei. A nomenclatura zoolgica ashninka mostra-se extremamente avara em termos genricos (na acepo de termo englobando subcategorias tambm nomeadas). Muitos autores j tm observado certa pobreza das categorias de nvel intermdio em outros lugares, mas neste caso, precisa dizer que atinge graus extremos. Se pode julgar: mesmo acumulando os meus prprios dados (trs anos de pesquisa) e os de colegas que trabalharam no rio vizinho, num outro quadro (sete anos de pesquisa; Kitaka Mendes & Piyko 1996), chega-se penosamente a contabilizar 16 ou 17 termos genricos no sentido estrito: 3 formas de vida, 2 ou 3 ramificaes em subespcies, uma dzia de taxa de nvel genrico e isso, para todo o conjunto da fauna amaznica, todos os nveis de classificao ou de incluso confundidos! O que desenha a lngua ashninka prova-se portanto bem diferente das magnficas arquiteturas piramidais e hierarquizadas que oferecem as nossas prprias rvores taxonmicas, ou as pirmides mais modestas das folk taxonomies universais. As diversas espcies animais formam efectivamente um conjunto, por oposio aos vegetais (mas no aos homens ou aos espritos malficos, como veremos). Distinguem-se por certos traos gramaticais (o masculino, o emprego de certos sufixos), embora no exista nenhuma palavra para designar o que as etnocincias chamam a embreagem nica aqui, animal, em geral. Mas debaixo de esta embreagem nica, que fica portanto implcita, cai-se quase imediatamente ao nvel muito elementar das espcies1: encontra-se uma interminvel justaposio de dezenas e centenas de nomes especficos, em sua maior parte sintticos e sem a menor relao etimolgica entre eles. E entre estes dois nveis extremos, para organizar duravelmente a multido, no h nada, ou quase. O mais desconcertante do negcio, de resto, talvez que nenhum dos mtodos que teriam permitido preencher profuso qualquer dos nveis intermdios parece ter sido ignorados dos Ashninka. Simplesmente, se encontra apenas alguns exemplares de cada um, ou at mesmo s um um pouco como se, aps ter experimentado habilmente um novo instrumento lingustico, se o tinha jogado fora, julgando-o no fundo sem grande interesse. Encontra-se de todo. Alguns termos genricos subdivididos por adjetivao, como pelo morcego, pri, com variedades do tipo chorto pri (morcego periquito) ou antri pri (grande morcego). Alguns termos genricos que englobam pelo contrrio espcies com nomes sem relao lingustica, como etsi, o tatu, cujas espcies particulares chamam-se kintro,

    1 Contanto que as espcies animais ashninka no coincidem sempre exatamente com as nossas,

    evidentemente. Apesar de todas as minhas reluctancias de antiga criana caador de borboletas, por exemplo, tive de admitir que os meus interlocutores apenas reconheciam duas espcies: o grande Morpho azul, thmpi, que pode levar desgraa ao caador, e a massa indistinta dos outros, pemptse. Mas fora disso e clssico na Amaznia cada espcie de formigas recebe um nome distinto, sem etimologia comum, e sem nenhum termo supracategorial.

  • hashwi e tsingaametsinyki. Alguns outros que fazem um misto entre os dois mtodos, como a ona, mantse ou kashkari, que engloba a ona pintada, kashkari karinri, a ona preta, kashkari kisri, mas tambm a ona vermelha, chnari. Encontra-se ainda um sufixo classificador, - nki (para as cobras). Mas embora a lngua ashninka seja aglutinante, o nico que tem sentido to claro e to perceptvel, e que at se integra em todo um pequeno sistema bastante sofisticado (tambm sem outro exemplo), com termo genrico prprio, mnki, a cobra, e dupla denominao das espcies, sobre o modelo thomri/nnki, kuswo/kentwonki, sampetakri/churnki, onde a primeira denominao em geral sinttica, e a segunda construda sobre um nome de pssaro, de inseto, de planta, seguido do sufixo. Por ltimo, encontra-se alguns nomes de espcies particulares que podem, em certos contextos, servir igualmente de denominao geral para uma categoria implcita (ou semi-implcita, dado que assim meio nomeada). Mashro, por exemplo, em princpio o nome especfico do Bufo marinus, o sapo curur, um dos sapos mais gordos da regio; mas a palavra pode s vezes designar tambm o conjunto dos sapos e rs, todas as variedades confundidas. Me paro um pouco mais sobre este ltimo exemplo, porque permite precisar melhor o que realmente abrange a ideia de termos genricos, no quadro indgena. A sua existncia evidentemente muito apreciada dos autores de dicionrios, que no se fazem falta de traduzir sapo por mashro: a lngua ashninka no lhes oferece frequentemente tais sortes. Mas aquilo no deve esconder que mashro funciona bastante diferentemente do nosso prprio sapo. Na verdade, mashro, na acepo de sapo curur, no s um dos sapos mais gordos. tambm uma espcie no comestvel, e at uma das mais famosas: o veneno que impregna a sua pele, os seus girinos e mesmo os seus ovos, tm a reputao de poder matar se no um adulto, pelo menos uma criana ao contrrio de outras espcies que so recolhidas muito comumente para a sua carne. Diariamente, as diversas espcies de rs e de sapos so portanto distinguidas com cuidado, cada um sob o seu nome prprio. Na verdade, recorre-se palavra mashro no seu sentido genrico apenas se no se tiver a reconhecer nem o valor alimentar das diversas espcies, nem o seu eventual perigo, nem as tcnicas de recolhida adequadas, nem o seu canto entendido na noite, nem a sua relao especfica com o calendrio sazonal, nem o seu valor mgico ou mtico em outros termos, quase nunca! Como se v, aqui, os termos genricos no so de forma alguma embreagens, sempre prontos a ramificar-se em mltiplas subcategorias. So espcies de batentes, de paradas ao pensamento, que permitem no recordar-se, mas bem pelo contrrio esquecer temporariamente a existncia das possveis ramificaes. l uma funo curiosamente negligenciada das categorias genricas: servem frequentemente tanto a ignorar que a conhecer, e encontra-se este papel ligeiramente paradoxal nos usos mais lexicalizados, como o emprego de um nome de espcie bem especfica, o curimat shmaa, para designar os peixes em geral, e mesmo para formar o radical de um dos verbos que significam pescar, -shimaa(t). Na prtica, todo passa-se como se o curimat shmaa, espcie particular, era um tipo de equivalente geral, pelo menos enquanto no se souber ainda que vai-se realmente conseguir: antes de ir ao rio que se fala de shmaa, Shmaa que se dirigem os cantos mgicos destinados a tornar todos os peixes sensveis ao barbasco, etc. mas ao regresso, se ter claramente tendncia a nomear o pescado com preciso, espcie por espcie.

  • Entre elas, no haver de resto nenhum shmaa curimat, geralmente, dado que esse vive de preferncia nos lagos, e que faz o objeto de uma pesca especfica, aurora e com arco.

    Uma etnozoologia em perptua recomposio Paradoxalmente, a nomenclatura zoolgica ashninka parece por conseguinte bem menos caracterizada por uma vontade que por uma recusa de qualquer classificao: os termos genricos so extremamente raros, e no so mesmo termos que verdadeiramente englobam, dado que em vez de realmente agrupar uma coleo de espcies e subespcies, marcam sobretudo uma indiferena ou uma ignorncia temporria. Mas l apenas uma das vertentes da pergunta. Logo que se passa do domnio da nomenclatura, que no classifica quase nada, ao domnio das categorias implcitas, se tem imediatamente a impresso exatamente oposta: a de uma expanso sempre recomeada, que se dispersa absolutamente em todos os sentidos. Na verdade, com estas categorias implcitas, tampouco parece tratar-se de incluso no sentido estrito. Se for atento aos modos de enunciao, apresentam-se antes sob a forma de encadeamentos que associam as espcies uma por uma, o que sublinha de resto um pequeno hbito da linguagem muito caracterstico: quase sistematicamente, cada meno de uma nova espcie introduzida pela expresso itspa, que significa literalmente tem uma que acompanha, que vai junta e isso, sobre um tom e um ritmo que fazem irresistivelmente pensar uma vizinhana redescoberta ou reconstruida individualmente. Sobre quais critrios associam-se assim as diversas espcies animais? muito varivel. Em certos casos, encontra-se naturalmente o aspecto morfolgico geral. So os exemplos sobre os quais apoiar-se-iam certamente os apoiantes das folk taxonomies para construir o natural core, o ncleo natural do sistema classificador ashninka. E para confess-lo todo, eu teria podido tambm retornar muito facilmente na Europa com uma magnfica folk taxonomy do modelo mais cannico sob o brao: os Ashninka so pessoas extremamente corteses e tinham compreendido muito rapidamente o que me interessava. Era s presentar-lhes alguns questionrios metdicos e fora de contexto sobre as classificaes animais e vegetais para que eles tivessem respondido perfeitamente aos meus desejos supostos Este bonito resultado teria sido pura super-interpretao. Porque ao lado das associaes que se baseam sobre o aspecto morfolgico geral, encontra-se muitas outras, fundadas sobre os critrios mais diversos: o habitat, a alimentao, os tabus alimentares humanos, tal ou tal detalhe anatmico ou etolgico o que de resto muito clssico, em Amaznia e noutros lugares. Na realidade, os agrupamentos estabelecidos (aparentemente) sobre a morfologia geral constituem apenas uma pequena metade dos meus exemplos. Esta proporo meramente indicativa: querendo privilegiar a ateno aos contextos de enunciao espontnea ou semi-espontnea, necessrio renunciar a fabricar-se uma amostragem suficientemente homognea para autorizar um verdadeiro tratamento estatstico. Mas parar-se l, seria fazer barato de todas as outras formas de associao, fundadas sobre critrios que so frequentemente de interpretao ligeiramente delicada, de resto. Por exemplo, citaria uma lista que conecta shirntse, o gavio real (Harpia harpyja), que caa e come at o macaco-prego thowro, o grande martim-pescador cheriwto (Ceryle torquata), que corajoso tambm mas come sobretudo peixe shmaa, logo outra ave de rapina, o shorntse, um pequeno gavio de rio (no identificado), que come antes mki e chomnta (dois peixes tambm, mais pequenos: a piranha Serrasalmus sp. e seus parentes prximos, Mylesinus sp.). Ao contrrio, uma terceira ave de rapina, o gavio-tesourinha chewntse

  • (Elanoides forficatus), era absolutamente excluda da lista: soube depois que se alimenta de insetos. Mas trata-se bem aqui de uma questo de alimentao, no sentido estrito? As trs primeiras espcies tm comportamentos de caadores, ao contrrio da quarta, e a insistncia sobre o tamanho das presas no falaria sobretudo da coragem comparada dos predadores? Neste sentido, este critrio alimentar me parece muito prximo da tendncia a associar as diversas espcies de macacos no de acordo com o tamanho ou o aspecto, como ns fazemos, mas antes de acordo com o seu grau de combatividade, entre eles e em frente dos predadores, e isso, todos os tamanhos confundidos. Reencontrar-se e desenvolver-se mais tarde esse teme fundamental do ethos das espcies. Alm disso, como se podia esperar, as associaes mais dspares aos nossos olhos aparecem nos contextos das proibies alimentares. L, salta-se frequentemente de uma espcie outra a partir um ou dois traos perifricos, do tipo mais diverso e mais varivel: algumas riscas na pele, a forma do focinho, o grito, talvez mesmo certa homofonia nos nomes Os apoiantes das folk taxonomies tm costume de desvalorizar a pertinncia de tais associaes secundrias, empurrando-as fila das categorias transversais e perifricas e outras classificaes finalidade especfica. Mas no caso dos Ashninka, pelo menos, seria sem nenhuma dvida um golpe de fora intelectual. Se empresta-se um mnimo de ateno aos contextos de enunciao dos dados2 (e no vejo como fazer uma boa etnografia, se no), apercebe-se muito rapidamente que as associaes que privilegiam, como onde ns, a morfologia geral, no tm aqui nenhuma precedncia lgica sobre as outras. Retomo o exemplo precedente, que muito tpico. Quando um Ashninka se lana numa enumerao fundada sobre os hbitos alimentares das espcies (como com o gavio real, o martim-pescador e o pequeno gavio de rio), outras aproximaes possveis, morfolgicos aqueles, lhe saem completamente do esprito, ao ponto de deix-lo completamente desorientado e perturbado quando se lhe faz perguntas precisas neste sentido: eu podia insistir, multiplicar as descries do gavio com rabo de andorinha, aquilo no dizia absolutamente nada ao meu interlocutor, at finalmente que pude mostrar-lhe dois ou trs gavies-tesourinhas que passavam por azar no cu. A primazia dos traos morfolgicos, as semelhanas entre todas as aves de rapina so para ns evidncias fundamentais s quais retornamos sempre. Para o meu interlocutor ashninka, ao contrrio, podiam ser completamente obliteradas por outro tipo de associao sendo o contrrio igualmente verdadeiro na situao oposta, de resto. Tudo depende do critrio mobilizado cada ocasio precisa: uma vez que um deles posto em ao, todos os outros acabam num esquecimento momentneo, mas de uma notvel eficcia.

    2 Finalmente renunciei a elaborar uma verdadeira tipologia de essos contextos de enunciao, porque a

    propsito de materiais j por si mesmos muito heterogneos, combinavam variveis demasiado numerosas e de natureza demasiado diversa. As nossas fichas de campo consignavam ao mesmo tempo as caractersticas pessoais e sociais do locutor, eventualmente as dos espectadores, bem como as suas reaes e a sua relao com o locutor, a atividade em curso, o lugar preciso, os acontecimentos (atos e palavras) que tinham imediatamente precedido e imediatamente seguido, as interferncias do antroplogo ou do botnico, o tom mais ou menos normativo do discurso, a referncia ou no uma autoridade ou a uma fonte de aprendizagem, mais alguns campos livres, abertos s observaes eventuais a propsito dos gestos, atitudes, toms de vozes, modos de aprendizagem, etc. Falado isso, no caso que nos ocupa aqui, ou seja as associaes de espcies animais, as mais relevante destas variveis provaram-se ser as que orientavam os critrios sobre os quais arrancava o processo de associao: ato ou palavras que tinham imediatamente precedido, atividade em curso, interferncias do antroplogo ou do botnico Os quadros formais impostos pelo investigador (perguntas sistemticas, trabalho a partir de vinhetas e imagens, maneira de Brent Berlin) constituem apenas um caso especfico (e muito vinculativo), que recusamo-nos a privilegiar. Em outros aspectos da pesquisa, que esto aqui fora de assunto, so obviamente outras variveis que primam.

  • Pode-se a partir de l completar o panorama do ethnozoologie ashninka. Do ponto de vista da nomenclatura, aparecia sobretudo sob o sinal da falta ou da recusa: se constatava um extraordinrio nivelamento das nossas pirmides taxonmicas andares. Mas se consideramos o assunto do ponto de vista das categorias implcitas extremamente lbeis que acabam de ser descritas, outro desafio que aparece: no se trata em forma alguma de construir uma arquitetura ou uma rvore taxonmica, mas de deixar toda a sua plasticidade e a sua mobilidade uma rede uma rede de relaes entre espcies tratadas de maneira muito autnoma, que no se associam quase nunca de acordo com frmulas fixas (nomeadamente lexicalizadas), e que permanecem pelo contrrio sempre prontas para entrar num jogo combinatrio novo. Mesmo os aspectos anexos indicam a qual ponto esta opo ancorada a um nvel fundamental entre os Ashninka. Em primeiro lugar, pelo menos nas regies onde residi, estes hbitos resistem muito bem s presses dirias da escola. Infatigavelmente, os professores bilingues martelam-no aos seus alunos: o sapo (em geral) mashro, o beija-flor (em geral) thonkri, a arara (em geral) sawwo E infatigavelmente tambm, as crianas ashninka voltam aos seus prprios carris: mashro, thonkri, sawwo, so espcies particulares, umas entre muitas outros, dotadas cada uma de um nome prprio e independente Seguidamente, necessrio tambm sublinhar quanto uma nomenclatura zoolgico to rebelde qualquer ideia de classificao pode levar por ocasio a problemas prticos muito srios: obriga cada um a memorizar o nome especfico de centenas e centenas de espcies, sem a menor relao etimolgica. A esse respeito, penso por exemplo a uma pequena cena onde Xampatze, o primeiro chefe de aldeia que me tinha acolhido, permaneceu quase sem vozes na frente de uma imagem de uacari-de-cabea-vermelha (Cacajao calvus rubicundus) um macaco bastante pequeno, muito reconhecvel mas extremamente raro na regio Xampatze na verdade o conhecia, por t-lo visto uma ou duas vezes na sua juventude, mas sobre o momento tinha esquecido o nome (ele de resto recordou-se mais tarde, e quis fazer-me o saber: era como quase sempre uma palavra nica, shinoywa). Aos seus lados, outro visitante, que se encontrava na mesma situao mas era Shannaw (e portante Pano, de outro grupo etnolingustico), podia permitir-se improvisar um nome por adjetivao. Mas que podia fazer Xampatze o Ashninka, ele que era mal servido ao mesmo tempo pela sua memria e pela sua lngua? No tinha sua disposio nenhuma palavra para dizer uacari, ou mesmo macaco ou pequeno macaco, e reconstruir a partir de l o nome do animal Permanecia bobo, e se satisfazia de gracejar com o seu filho sobre a semelhana do macaco com um homem figura inteiramente pintada com urucm palhaadas que preenchiam bastante mal o vazio, em frente do saber dignamente ostentado pelo Shannawa Bruno. Mas na verdade, no tinha escolha Resumidamente, complicado, pouco prtico, mesmo antipedaggico, pelo menos na nossa concepo de uma aprendizagem metdica, contradiz todas as leis habituais das economias lingusticas, e no entanto resiste muito bem a todas as influncias externas: obviamente aquilo tem algum sentido.

    Uma ontologia no uma filosofia Partirei novamente de uma ideia j desenvolvida mais alto: as supracategorias no so aqui verdadeiras categorias que englobam, mas antes espcies de batentes ao pensamento, que permitem esquecer temporariamente ramificaes sem interesse atual. Na nomenclatura

  • zoolgico ashninka, estas supracategorias so extremamente raras, mas no entanto existem. Da a pergunta: porque aquelas e porque no outras? Responder em termos de importncia cultural, no sentido muito utilitarista que parecem dar-lhe Brent Berlin e os seus sucessores, resultaria completamente absurdo no caso ashninka. A maioria destas supracategorias concentra-se na ordem muito importante dos mamferos, certamente. Mas uma vez mais, apesar da escassez dos exemplos, encontra-se de tudo: predadores de homens (reais, os jaguares e as serpentes, ou simblicos, os morcegos), animais proibidos e presas preferenciais (o grande e os pequenos tatus, e sob o mesmo termo genrico!); s espcies melhor conhecidas, mas tambm as mais fugitivas (os cachorros selvagens); gulosinas para crianas (as martibundas), e a caa mais procurada e mais perigosa (as queixadas); subcategorias das quais se examina e se comenta detalhadamente as diferenas (as mesmas queixadas), e famlias inteiras das quais se evita quanto possvel a simples meno (os morcegos); pequena caa que se subdivide (os quatipurs), pequena caa que no se subdivide (os coelhos), e pequena no-caa que porm se subdivide tambm (os ratos); e finalmente os muito gerais passarinho e peixe, dos quais apenas dois gneros, alm do mais muito perifricos, compreendem algumas pobres subcategorias Contudo, examinar como estas categorias reaparecem no resto da cultura ashninka desperta muito mais ecos. Nos relatos mticos, nos cantos mgicos ou nas explicaes cosmolgicas, exatamente sobre os mesmos nomes que os Ashninka vo parando os batentes lingusticos so os mesmos, para assim dizer: Mantse ou Kashkari a Ona, Pri o Morcego, etc. Ora, estes acordos sobre nome prprio evidentemente no se fazem aleatoriamente. Cada vez, correspondem com um corte de acordo com um critrio bem preciso: o das vontades especficas de entidades personalizadas. A Ona Mantse ou Kashkari por exemplo o maestro e vigia da caverna das queixadas, e em conformidade com um mito panoamaznico, s vezes chega a mant-las l dentro quando os caadores humanos mostraram-se demasiado vidos. Mas qual Mantse ou Kashkari, exatamente? A pintada, a preta, a vermelha? Pouco importa, aqui: a Ona em geral que caador de pecaris, e a Ona em geral que o seu vigia; as adjetivaes ou os nomes especficos reaparecero apenas ao momento de distinguir a vontade especfica da ona preta, a da vermelha, ou a da mtica ona branca, que grita Nna, nna! (Me, me! ), de uma voz muito suave e perigosa. O caso do Morcego Pri bem diferente. de muito m vontade que se distinguem algumas espcies, com a ajuda de adjetivaes de resto bastante pobres (chorto, o morcego periquito, frugvoro; antri, a grande). porque qualquer morcego suscetvel de ser o emissrio dos peyri, esta categoria de almas que continuam a vaguear na aldeia e nas roas durante algumas semanas ou alguns meses, aps a morte de um humano3. E os peyri, sempre

    3 Como os morcegos, cavernicoles e crepusculares, os peyri so por conseguinte formas transitrias,

    remanescentes destinados a desaparecer depois de algumas semanas ou meses. Mas por enquanto, vagueam, sedentos da energia vital dos sobreviventes. Neste sentido, apesar do uso em portugus de uma mesma palavra, pertencem a uma categoria conceptual bem diferente dos outros espritos da floresta, os demnios kamri (litt.: antes, matadores). Os kamri so um perigo para os homens porque olham-o como presas, mas so seres completos, e a esse respeito assemelham-se muito mais do que poderia-se acreditar aos outros animais perigosos da floresta. No so realmente seres imateriais (seriam antes visibilidade restrita e varivel), nem mesmo sobrenaturais: ns que estabelecemos uma distino ntida entre Natureza e Sobrenatureza. Eles tm os seus lugares de existncia prprios e os seus territrios de caa, da mesma maneira que os animais predadores, que s vezes chamam-se tambm de kamri, de resto.

  • desejosos de levar com eles um parente na morte, so sem dvida a mais potente fonte de angstia e de pnico entre os Ashninka. O morcego portanto imediatamente afastado, da mo quando se aproximam, mas tambm do discurso, onde pri so e pri ficam, enquanto no for absolutamente indispensvel distinguir uma ou a outro variedade. Animal-Pessoa, concordncia entre intentionalidades, nomes e segmentaes entre espcies, reconhece-se l velhos temas amaznicos. O discurso ashninka sobre a fauna participa de resto do perspectivisme amaznico, do qual apresenta uma verso na verdade bastante simplificada4. E de maneira mais geral, a sua ontologia claramente animista, no sentido que d-lhe Philippe Descola: o que compartilhado entre todas as espcies, uma interioridade e uma sociabilidade bem humanas; o que os diferencia, pelo contrrio, so as particularidades do seu corpo-vesturio, ao mesmo tempo marca e fonte de sua intentionalidade especfica. Mas o que gostaria sublinhar aqui, sobretudo quanto aquilo vai alm (e talvez valeria dizer melhor aqum) de uma filosofia ou de uma cosmologia, na acepo de um simples comentrio sobre o mundo. As relaes da ontologia animista com as classificaes animais ashninka so de fato muito simples e muito diretas. Um dos exemplos mais claros o dos pecaris, dos quais existe em Amaznia duas espcies de aspecto externo muito prximo, o caitetu (Tayassu tajacu) e a queixada, ligeiramente mais grande (Tayassu pecari). Morfologicamente, as duas espcies assemelham-se realmente muito, e os Ashninka so perfeitamente conscientes disso. Quem no o veria? Teria que ser cego. E obviamente s vezes os Ashninka associam as dois, quando fala-se de carne ou de anatomia no momento de recort-lo, por exemplo. Mas aquilo permanece completamente ocasional: geralmente, as duas espcies so tratadas em completa independncia uma do outro e no existe naturalmente nenhum termo genrico equivalente ao nosso pecari do francs ou do ingls. que o ponto decisivo se encontraria antes numa pergunta completamente diferente: quem poderia acreditar que as duas espcies so habitadas pela mesma intentionalidade? O caitetu, Kityriki, um sedentrio e um solitrio; se for atacado, pe-se a girar sobre ele mesmo, utilizando as suas defesas afiadas como umas foices contra a garganta dos cachorros; encurralado, procura sempre refgio num buraco de terra ou de rvore morta. As queixadas, Shintri, so pelo contrrio animais nmadas, aparecendo sempre inesperadamente, em bandas que vo de uma dezena vrias centenas; o seu comportamento imprevisvel: s vezes se espalham logo que se mata o primeiro deles, e tornam-se ento alvos fceis, s vezes atacam sem esperar, mordem, roendo obstinadamente o tronco da rvore sobre a qual o caador deve escalar o mais rapidamente possvel, se no quiser ser estilhaado Deste ponto de vista, o que tm portanto em comm? Vindo analizando assim as particularidades da ontologia ashninka a partir de perguntas to prosicas como as classificaes animais, no somente o modelo dos folk taxonomies que se

    Numa regio desconhecida, informa-se por conseguinte sobre a fauna sobrenatural local da mesma maneira que ns, antes de ir na floresta, poderiamos informarnos para saber se haja muitos jaguares no canto e eventualmente integra-se novas espcies de espirits (brasileiras, quechuas), com um sentido agudo das geografias culturais. 4 Os comentrios limitam-se s onas, que se veem entre elas como homens, mas veem os homens como

    queixadas, e os cachorros como coatis; e s queixadas, que se veem tambm como homens, mas veem os homens como onas. Para o resto, descreve-se ainda os vesturios especficos dos visitantes mais frequentes das sesses shamnicas, animais ou vegetais que se mostram sob o seu aspecto humano mas esta vez sem o jogo de olhares e intentionalidades cruzadas que existe entre as onas, os homens e as queixadas.

  • pe a pr problemas. tambm esta abordagem como tal. No seria uma maneira sub-reptcia de reintroduzir na anlise a nossa prpria ontologia, naturalista aquela? Em todo caso, so efectivamente os seus princpios fundamentais que se reencontram em filigrana: comum a todos os crebros humanos, haveria um modo de classificao cujo ncleo natural (natural core) se fundaria sobre o aspecto morfolgico geral, ou seja a slida matria de uma substncia corporal compartilhada por todos os seres vivos enquanto em outro lugar, de lado, acima, ou em algum lugar nas altas esferas do simblico, se multiplicariam as poticas lucubraes do esprito, ou seja o reino dos particularismos, prprio do homem e sometido infinita variao das culturas locais. A ontologia ashninka quanto a ela outra; se basea numa relao diria ao animal completamente outra. O caitetu e a queixada so pessoas muito diferentes: porque ento associ-los a priori, na nomenclatura ou no pensamento? Um agrupamento de tipo ocidental, fundado sobre a semelhana morfolgica geral, aqui apenas uma possibilidade entre muitas outras, que no fundo depende de um olhar muito especfico: aquele que atribui a prioridade aos corpos animais imveis sobre o solo, aos corpos mortos e entregues sem reserva aos olhares, manipulao e ao corte no fundo, uma taxonomia de taxidermistas.

    A ou as etnobotnicas ashninka?

    No domnio vegetal, exatamente o mesmo papel que se tem que reconhecer ontologia animica: um comentrio sobre os seres vivos, mas sobretudo um princpio organizador da sua abordagem diria. Se analizamos a questo de acordo com a estrita abordagem das folk taxonomies, se chega uma vez mais uma posio completamente indefensvel: no h entre os Ashninka s uma forma de nomenclatura etnobotnica, mas l tem trs. E no se pode interpret-las de acordo com o modelo de um ncleo central de tipo filogentico, recortado por categorias transversais secundrias: as trs no se cruzam, mas referem-se a campos de espcies bem distintas, que se podem situar sobre trs crculos mais ou menos concntricos:

    Na maior distncia (em relao ao homem e a aldeia), encontra-se o que chamarei dos grandes senhores da floresta: as rvores de mais alto porte, que so frequentemente hoje s essncias mais cobiadas pelas empresas florestais, e as plantas mais fortes, cujos espritos so domesticados pelo paj para fazer-se aliados5. Como os animais, cada espcie recebe o seu nome prprio, sem nenhum adjetivao, sem nenhuma relao etimolgica com o das vizinhas, e sem nenhum termo genrico estvel.

    Na menor distncia, pelo contrrio, encontra-se obviamente as plantas cultivadas. Tambm tm cada uma o seu nome prprio, mas esta vez cada um destes taxa

    5 Nota-se que neste ltimo caso, no se pode mais falar sempre de verdadeiros crculos concntricos, no sentido

    espacial: algumas destas plantas chamaniques so cultivadas ou semicultivadas perto das casas. o caso da Datura, s vezes da ayahuasca (Banisteriopsis caapi), e certamente do tabaco. Mas exceo talvez do tabaco, guardam mesmo neste caso um estatuto muito ntido de convidadas externas. O tabaco (shri) a planta alucingena de tradio mais antiga, e sobre o seu nome que forjado o do paj, sheripiri. A ayahuasca, kamarmpi, mistura de Banisteriopsis caapi (o kamarmpi como tal), de Psychotria viridis e s vezes de algumas plantas suplementares (uma e as outras colhidas na floresta), entretanto tem-se espalhado por todas partes, como o fez em todo o Oeste amaznico. Encontra-se hoje num lugar central no shamanismo ashninka que de resto desenvolveu formas bastante diferentes das dos vizinhos imediatos: a ayahuasca tomada l em conjunto, durante verdadeiras cerimnias de canto coletivo (em desfasamento antes que ao unssono), dirigidas com grande flexibilidade pelo paj. Quanto Datura, guarda um estatuto bastante exgeno e s consumida muito ocasionalmente.

  • subdividido muito sistematicamente, quer por adjectivao clssica, quer por composio o que corresponde naturalmente diversidade dos cultivares, dos quais horticultores ashninka mostram-se particularmente afeioados.

    Por ltimo, na zona intermdia, se encontram as inmeras espcies das capoeiras e da floresta mdia ou profunda: quase todas apresentam um interesse utilitrio, de acordo com os nossos dados etnobotnicos. Mas este conhecimento (impressionante) dos usos medicinais ou outros duplica-se de um extraordinrio trabalho sobre a nomenclatura, que no exatamente um empobrecimento, apesar das primeiras aparncias. Certamente, os nomes prprios se tornam claramente mais raros, e os termos genricos comeam a aparecer, com todas as conotaes de ignorncia ou de desinteresse momentneo que j tenho assinalado a propsito dos animais. Mas alm disso, aquilo se acompanha de uma brusca expanso ao mesmo tempo de polinimia e polissemia: cada espcie pode receber vrios nomes, varivel de acordo com o contexto6, e cada denominao pode designar espcies botnicamente muito diferentes em um jogo cruzado que se desenvolve sobre mltiplos registos: referentes animais ou meteorolgicos, doenas ou rgos do corpo, etc., etc.

    O que diferencia estes trs crculos mais ou menos concntricos, o tratamento que se faz das espcies. Tratamento lingustico, acabamos de v-lo, mas tambm pratico, como j se ter detectado. Seria no entanto um erro l-lo em termos meramente pragmticos, como poderia faz-lo uma etnobotnica exclusivamente centrada nas categorias de uso. Aps todo, quase todas as espcies vegetais, das mais remotas s mais prximas, so utilizado de uma maneira ou outra, e as fronteiras esto longe de ser perfeitamente ntidas entre colheita, cultura e semicultura o que no ilumina muito o problema da tripla nomenclatura. O que conta aqui, antes a relao estabelecida com cada espcie. Logo que se abordar a questo sob este ngulo, se encontra novamente trs tipos de relaes, que correspondem muito exatamente s trs frmulas de nomeao:

    Os grandes senhores vegetais assemelham-se realmente muito aos animais. No somente a arte de nome-los obedece s mesmas regras, mas tampouco se diferenciam realmente deles sobre o plano cosmolgico: tambm foram homens aos tempos mticos, tambm participam do perspectivisme amaznico, dado que alguns pelo menos se veem a si mesmos e vivem entre eles como homens, ou aparecem nas sesses de ayahuasca sob o vesturio caracterstico que define seu habitus especfico e como o faz a caa, poderiam ocasio mostrar-se ou at esconder-se a quem os procura para a conta das empresas florestais. Resumidamente, como os animais, so seres forte personalidade, autnomos e com intentionalidade bem definida, com quem se pode no mximo passar uma aliana7, s vezes aos seus riscos e perigos:

    6 Quem diz polinimia diz escolha contextual, naturalmente. Mas os princpios destas escolhas so s vezes

    menos fceis de delimitar que nas associaes de espcies animais. Aqui de novo, se encontram lgicas sequenciais, onde os critrios de nomeao que prevaleceram ao incio da sequncia tendem a se manter. No entanto, na sua maioria, estas plantas foram identificadas uma uma ao longo das linhas de recolha traadas pelos botnicos, o que no favorece muito este tipo de encadeamentos. Se multiplicavam de resto logo que os indgenas retomassem a iniciativa, por exemplo ao longo dos caminhos onde designavam l e acol plantas livremente escolhidas. necessrio igualmente sublinhar a visvel importncia aqui da histria pessoal: no nome que se da a uma planta, o que transparece frequentemente o uso privilegiado que se teve ou se tem dela. 7 Estou bem consciente das ambiguidades potenciais do termo. Mas farei como os mesmos Ashninka: deixarei

    deslizar um velo pdico por encima. Os mitos, quando a coisa precisada, tm tendncia a classificar os animais-homens entre os cunhados: a relao entre animais e parentesco por aliana clssica em Amaznia. Mas na vida diria, prefere-se ser muito menos preciso. que na prtica, aquilo levantaria rapidamente

  • espcies como as plantas shamnicas, por exemplo, permanecem sobretudo potncias extremamente perigosas.

    Ao polo oposto, as plantas cultivadas provam-se tambm extremamente humanas. Mas esta vez, a relao de parentesco clara, e claramente explicada: so consanguneas. Era evidente faz muito tempo pelas macaxeiras, que so apresentadas como as irms do esclarecedor (Rojas Zolezzi 1994:174-175). Mas este verdade tambm para o milho e as palmeiras kri (Guilielma speciosa/Bactris gasipaes, as pupunha), que esto quanto a eles antes os seus irmos (classificatrios). E na sua esteira, estes trs cultgenas parecem levar todos os outros. Como me dizia Warenko, um dos chefes de famlia de Alto Bonito:

    Sim, tm que cuidar das roas, tm que capinar bem, porque as macaxeiras [as mandiocas] so nossas irms. Se voc no capinar, Pwa [deus solar / heri civilisador] castiga. Elas se pem tristes e vo embora. Tm os pauzinhos [os galhos], sim,e tudo parece normal, mas no tm mais batatas l embaixo, s tm raizes como as de uma rvore [da floresta]. Mesma coisa pelos bananeiros, a gente acha que tm ainda bananas, mas baixo o casco no tm mais nada, tudo seco Sim, pois, as macaxeiras so nossas irms : comemos delas, no? somos feitos delas.

    A abundncia da colheita negcio aqui de suave generosidade, ou seja, exatamente a atitude esperada normalmente entre consanguneos pelo menos se a relao for bem mantida de parte e outro.

    Mas entre os dois, no sem-nmero das plantas utilitrias, estes aspectos humanos ou pessoais que caracterizavam os dois polos dos parentes e dos remotos se esfumam ao ponto de quase desaparecer. Os verdadeiros nomes prprios se fazem raros, e so essencialmente os critrios utilitrios, precisamente, que so mobilizados aqui. Na prtica, as palavras se referem geralmente outra coisa que planta mesma. Pode tratar-se simplesmente da doena ou do rgo a curar, ou da caa especfica que a planta ajuda a conseguir. Mas pode tomar tambm uma forma bem mais analgica: por exemplo, as muito diversas opmpeshi, folhas do tucano opmpe (que tem a reputao de formar casais extremamente estveis), servem muito magias de seduo.

    Retenhamos por ltimo um trao muito significativo: mesmo nos casos que se referem o mais nitidamente analogia, as relaes se baseam muito mais sobre o jogo das intentionalidades que sobre a contiguidade das substncias ou das formas materiais. Nenhuma das folhas-tucano, por exemplo, mantem a menor relao material com o animal epnimo. O tucano no se alimenta e no se aproxima delas, nenhum detalhe anatmico, nenhum odor ou cor comum sugere a menor proximidade formal. A relao analgica parece apoiar-se apenas sobre o imaterial reconhecimento de uma intentionalidade comum: a fidelidade do tucano habita

    problemas insolveis: se vai por exemplo frequentemente caar com um parente por aliana, e os cunhados dos uns no so os dos outros, evidentemente.

    Permanece no entanto uma soluo, elegante e bem na linha do perspectivisme amaznico: ver em cada espcie animal um cunhado potencial, mas de outra etnia. assim que no Ucayali e na fronteira brasileira, o macaco-capelo, Shenntse, nos mitos mas tambm numa srie de graas e jogos de palavras de cada dia, um cunhado emblemtico e de fato, uma metfora tambm dos Brancos, vencidos, humilhados e ridicularizados, aps as suas violncias histricas contra os homens e as mulheres ashninka. Para mais detalhes sobre estes dois pontos, ver Lenaerts, 2004.

  • tambm as plantas do tucano, mas esta evidncia perceptvel apenas no seu efeito curativo. No universo ashninka das conexes com os outros seres vivos, a intentionalidade e a interrelao tm precedncia sobre a matria, e todo parece lido sob este ngulo. o caso por exemplo do saber shamnico. Os nossos dados etnobotnicos deram a prova (cifrada) que o paj no era necessariamente bom botnico, nem muito menos: pode at ser um dos que na floresta identificam pior a forma e a presena material das plantas medicinais. Mas no importa: ele que estabeleceu a relao mais forte com a energia curativa da planta, e aquilo, ningum teria a ideia de contestar-lhe: ele sabe. Na floresta tambm, de um ponto de vista estritamente tcnico, nada distingue aparentemente um jovem caador de um homem mais experiente. Conhece j fundo as tocas e os costumes da caa, imita os seus gritos perfeio, vai to longe como o mais velho. A nica diferena visvel, que se mostra muito mais oportunista, e caa todo o que encontra. O homem realmente experiente, quanto a ele, procura uma caa precisa, permanecendo ao mesmo tempo sempre muito atento menor presena, ao menor grito, ao menor trao dos outros animais, que no caar no mesmo dia. Sabe que se pode permitir esperar: de uma maneira ou outra, o contacto foi estabelecido, e o animal portanto no desaparecer. Esta abordagem em termos de interrelao e intentionalidade mesmo perceptvel em contextos to fisiolgicos primeira vista que os antdotos. A primeira coisa que tem que fazer, quando foi mordido por uma cobra, no ir fazer-se tratar aldeia, nem mesmo procurar rapidamente uma das inmeras plantas contra as mordidas de cobras: o remdio permaneceria sem efeito, qualquer Ashninka o dir. O mais urgente, o mais indispensvel, pelo contrrio matar o mais rapidamente possvel cobra que mordeu dizer, matar a vontade que procurava fazer voc morrer.

    Universalismo cognitivo e ontologias especficas

    Tudo isto nos leva a um ltimo ponto, sem dvida o mais rico em desenvolvimentos futuros. bastante evidente que entre os Ashninka, a nomenclatura e os modos de classificao tiram os seus princpios organizadores da ontologia animista, antes que de uma suposta tendncia universal a privilegiar a ordem filogentico. Mas trata-se l de simples ajustes conceptuais, to bem inculcados s crianas que se torna o quadro de pensamento imediato (em outros termos, uma norma), ou trata-se de outra coisa? Qual modelo propr para interpretar tal relao entre cultura e cognio? O problema que no plano terico, estamos finalmente pouco armados para abordar a questo do saber e da sua transmisso. Se poderia ter a tentao de ler o que precede como uma nova ressurgncia dos velhos demnios culturalistas. Ora no se trata de forma alguma de aquilo. Outros aspectos da nossa investigao (a minha, e a dos outros colaboradores do projeto) confirmam uma vez mais, se necessidade era, que as culturas apresentam uma profunda diversidade interna e uma mudana incessante, que no so entidades substancializveis, mas antes campos com contornos frouxos (apesar de certos efeitos de encerramento, que parecem ligados sobretudo esfera da poltica), e que a sua plasticidade e seu dinamismo no podem ser iluminados apenas pelas velhas teorias culturalistas, o difusionismo ou a aculturao. Mas aquilo dito, o problema fica inteiro, ou quase. Estamos bem forados de constatar que em certos lugares do campo cultural universal, alguns traos caractersticos se acumulam mais do que noutros, que eles se articulam visivelmente a outros, e que parecem se manter por perodos longos. primeiro um fato de ordem estatstico: as classificaes zoolgicos

  • ashninka por exemplo no diferem todas das nossas (e vice-versa), mas o fazem em propores muito significativas significativas de que mecanismos especficos esto sem dvida obra, e so precisamente estes mecanismos especficos que deveramos tentar compreender. Na sequncia das crticas contra os excessos do difusionismo e do culturalismo nasceram numerosos modelos tericos alternativos, procedentes um aps os outros das cincias naturais, mas o seu poder de explicao se mostra bastante fraco, finalmente. Talvez devido ao feito que estas teorias permanecem frequentemente cativas do desejo de conduzir a uma descrio universal dos mecanismos culturais, e tm por conseguinte tendncia a tratar os dados em simples exemplos ilustrativos, antes que mergulhar mais francamente em toda a espessura dos terrenos etnogrficos especficos?

    Alguns parecem no entanto mais frteis que outros, nomeadamente o programa de epidemiologia das ideias proposto por Dan Sperber (1996). Se no evitar uma concepo atomista da atividade mental, nem um relativo rification das representaes assim isoladas (Lenclud 1998), pelo menos no faz a impasse sobre uma abordagem das crenas como fenmenos propriamente culturais, nem sobre a relao entre os seres humanos (individuais e sociais) e as suas representaes mentais, como fazem outros modelos que se reclamam tambm de um evolucionismo darwiniano. O que me incomoda, seria antes os seus a priori universalistas, e o vis metodolgico que lhes ligado. Como muitos outros modelos que se referem biologia e ao darwinismo, a abordagem epidemiolgica deixa sobretudo a impresso que entre o indivduo e o universal no h nada, se no um espao cultural ou cognitivo fundamentalmente no diferenciado, sometido apenas a um tratamento estatstico generalizado do qual se v apenas onde e como poderia comear, to ele pretende abraar largo (a acumulao de exemplos pontuais evidentemente no muda nada disso)8. Ora, uma vez mais, como no caso das classificaes taxonmicas, quando se analisa as crenas ashninka com os instrumentos mesmos dos partidrios da abordagem epidemiolgica, as linhas de diviso entre universalismo cognitivo e elaboraes culturais especficas baralham-se de maneira desconcertante. Retomemos o caso das macaxeiras percebidas como as irms do horticultor. De fato, aquilo no tem nada de excepcional em Amaznia, onde se sabe que existe uma tendncia bastante geral a arranjar os vegetais do lado dos parentes consanguneos, e os animais do lado do afins. Mas o que mais significativo, o detalhe dos comentrios ashninka a esse respeito:

    Sim, tm que cuidar das roas, tm que capinar bem, porque as macaxeiras [as mandiocas] so nossas irms. Se voc no capinar, Pwa [deus solar / heri civilisador] castiga. Elas se pem tristes e vo embora...

    necessrio primeiro tomar a medida exata do tom sobre o qual se faz este tipo de comentrios. o mais natural que seja, pelo menos quando o etnologista consegue no deixar perceber a menor admirao sobre o assunto. As Irms Macaxeiras ashninka pertencem

    8 Com algumas excees, como em Scott Atran (2003). Mas no ser que o aporte mais estimulante do seu artigo

    se encontra na interpretao das relaes concretas entre os Itza', os Q'eqchi', os Ladinos e os seus conhecimentos respectivos, antes que no argumento, finalmente bastante geral, em prol da abordagem epidemiolgica da qual os postulados metodolgicos saem de resto um tanto matizados?

  • simplesmente ao dia a dia mais prosico: nada mais fastidioso que esta capinagem perptua, nada mais rotineiro que esta macaxeira de todas as caiumas e de todas as refeies. necessrio seguidamente analisar como se articulam os diferentes registos deste discurso. Como instrumento de abordagem dos fenmenos de crena, as propostas avanadas por Pascal Boyer em La religion comme phnomne naturel (1997) so seguramente muito estimulantes. Mas se as aplicamos ao caso ashninka, se tem imediatamente a estranha impresso de encontrar-se num pas ao mesmo tempo conhecido e desconhecido. Como se sabe, para P. Boyer, a origem dos processos de reelaborao individual das crenas religiosas, e por conseguinte a sua fora de convico, as suas variaes de detalhe e a sua convergncia global numa mesma cultura, devem ser atribudas articulao de um duplo processo: por um lado, a elaborao e a divulgao de teorias explcitas esquisitas, que contradizem a experincia direta e natural, e por isso mesmo impressionam as memrias e os espritos, mas que permanecem em si mesmas pouco comentadas; e por outro lado, um substrato invisvel e no-cultural (porque vem dos mdulos cognitivos de um esprito humano universal), que produz as esperas intuitivas implcitas, das quais so tiradas muito naturalmente a maior parte das inmeras inferncias conjunturais e individuais a propsito de estes seres ou fenmenos esquisitos, que veem assim a sua realidade completada, detalhada, instalada no dia a dia no fundo, ao mesmo tempo construda e legitimada. Pode-se efectivamente reler as irms Macaxeiras ashninka em relao esta abordagem. A teoria explcita estranha (os Kanri so nossas irms) como tal s faz o objeto de um comentrio que se extingue muito rapidamente (sobre o tema previsvel da consubstancialidade: comemos delas, somos feitos delas mitade parfrase ashninka, mitade traduo lenificadora), o que est completamente na ideia de Boyer. Mas em seguida, inferncias muito mais flexveis e mais naturais so desenvolvidas a propsito do seu comportamento e das suas consequncias prticas (tm que cuidar das roas, tm que capinar bem, [...]. Se voc no capinar, [...] Elas se pem tristes e vo embora etc., etc.). Estas inferncias encontram indiscutivelmente a sua fonte numa espera intuitiva (implcita, evidente e despercebida) bem precisa: a psicologia das macaxeiras. Em comparao, os exemplos africanos com os quais Pascal Boyer ilustra as suas propostas so mil vezes mais prximos de ns. Aps todo, seres como os fantasmas bekong dos Fang do Camern foram homens, mesmo se morrerem depois, e no nos muito difcil atribuir-lhes uma psicologia humana como a nossos prprios santos miraculosos do catolicismo. A estranheza sobrenatural aparece alhures: na visibilidade/invisibilidade, no corpo imaterial ou nas deslocaes extraordinariamente rpidas dos bekong (1997:138-140), ou na eficcia teraputica das presenas imateriais dos nossos santos patres, ou de suas esttuas de madeira pinta. Mas o que fazer da incontestvel e fundamental humanidade do milho ou da mandioca, que visivelmente no pe nenhum problema aos meus interlocutores Ashninka? verdadeiro que seguidamente, Pascal Boyer acrescentou aos seus exemplos crenas fundadas sobre uma psicologia dos vegetais ou do inanimado (2003:79-80), e que os desenhos animados ns habituaram a personificar animais, mas tambm plantas ou mesmo objetos como os automveis: suficiente de um bom desenhista que lhes acrescenta alguns traos fsicos caractersticos do humano em geral, os olhos e a boca. Mas apesar das aparncias, exatamente o inverso do olhar ashninka. Em nossos desenhos animados, os olhos e a boca acrescentados s rvores ou aos brinquedos referem com efeito uma humanizao parcial e gradual de um corpo que fica pelo resto essencialmente vegetal ou mecnico. Entre os Ashninka, bem pelo contrrio, o corpo animal ou vegetal no sofre nenhuma antropomorfizao gradual. Para perceber a sua humanidade, o homem que deve, por um brusco salto ontolgico, sair do seu prprio corpo para tomar um momento o olhar do

  • Outro pelo sonho, pela tomada de alucingenos ou pela transe shamanica: se trata de uma animalizao ou de uma vegetalizao momentnea (e perigosa!) de um olhar de homem, que deve para consegui-la tomar o risco de deixar de ser humano. A diferena parece vir de uma oposio irredutvel entre ontologia naturalista e ontologia animique. Ns, integramos por exemplo sem demasiado dificuldade a ideia dos espritos visitantes ashninka nas sesses de ayahuasca ao preo de uma pequena reinterpretao em termos de essncia imaterial, que na verdade s um equvoco. Em contrapartida, em bons adeptos da ontologia naturalista, a pergunta da materialidade que nos pe um real problema, se no podemos dar-lhe corpos (humano, obviamente): estas irms Macaxeiras e estes irmos Milho, faz realmente muito pessoal num caule de legume! Um Ashninka, em contrapartida, no prova nenhuma hesitao quanto ao carter humano das suas irms Macaxeiras: o corpo primeiro uma questo de intentionalidade, e todas as irms no possuem braos e pernas, a est todo. Nada de mais familiar aos seus olhos, de resto: as v e est a seu lado todos os dias. Mas indiscutivelmente uma energia humana que as habita. E apenas a partir de l, sobre este fundamento intuitivo (e cego, certamente) que comea o ciclo das inferncias: esta energia benevolente, consangunea com a pana cheia, porque ele duvidaria? necessrio portanto efectivamente tratar bem estas parentes, se no, desilusionadas, se iro, h um mito que o conta, e as bananas se vo tambm etc. Tem l algo de bem mais fundamental que uma banal divergncia de interpretao. No se trata aqui de interpretar diferentemente a mesma coisa, mas pelo contrrio de inferir da mesma maneira sobre bases distintas. De parte e outro, h distino (e tratamento diferente) entre o que vem das afirmaes estranhas, contra-intuitivas, e o que so inferncias explcitas, fundadas sobre esperas intuitivas. A verdadeira divergncia se refere ao campo de aplicao exato de cada uma. Em outros termos, apenas ultrapassada a fase da primeira codificao do dado sensorial bruto, um Ashninka (adulto) e mim no vemos mais a mesma coisa, no sentido mais estrito e mais literal das palavras.

    Um crebro modular universal mas culturalmente determinado?

    Estaremos realmente condenados a oscilar sem remisso entre a tentao culturalista e a tentao cognitivista, entre uma substancializao das culturas que s se chegariam a delimitar projectando nelas modelos normativos e encerramentos a priori, e uma indiferenciao geral que exclui a priori tudo o que no universalismo de princpio, com leitura estatstica como nica estruturao do atomismo individual? Ontologia animista e ontologia naturalista obviamente so apenas produtos conceptuais, mas so extremamente teis para dar conta ao mesmo tempo de certa regularidade estatstica e de certa coerncia nas crenas locais. Antes que tratar-os como uma tipologia, prefiro interrogar-me sobre a forma como, num campo cultural determinado (o que no implica, repito, nem homogeneidade, nem estabilidade, nem limites bem cortadas), articulam-se outros aspectos do cognitivo e das prticas. Destas articulaes, no se observa geralmente que os dois polos extremos: os mdulos cerebrais de codificao perceptiva, domnio do automatismo inconsciente e da matria neuronal, e a infinita variedade das crenas explcitas, domnio do esprito, do discursivo e da plena conscincia. O todo cognitivo e o todo cultural, por assim dizer. Contudo, o corte que se opera assim entre o inato e o adquirido no reflete bem a realidade das aprendizagens. sobretudo sob o efeito de uma ao pedaggica difusa, que no nem

  • explcita nem muitas vezes perfeitamente consciente, que as crianas adquirem o seu saber e a sua competncia cultural: filtrando os conhecimentos cuja apropriao lhes proposta, de acordo com esperas, motivaes e preferncias delimitadas por estes ncleos cognitivos especializados e trabalhando-los, ou seja reconstruindo-los ou, melhor, reinventando-los (Lenclud 2003). O outro aspecto a considerarem, certamente a amplitude de divulgao de uma crena ou de uma representao. Os discursos so sempre fatos individuais, mas apresentam evidentes convergncias das quais muito possvel avaliar cada vez a escala e a densidade: sobretudo uma questo de nmeros de informadores. Se for suficiente, pode-se tomar as variaes individuais como material bsico para a anlise, antes que ver-las como desvios em relao a um modelo estvel. Trabalhar sobre esta dupla base permite sem dvida evacuar diversos velhos demnios. Em primeiro lugar, admitir o que mostram os dados empricos: os fenmenos de imitao, os modelos e as normas podem perfeitamente coabitar com processos de inferncias mais ou menos conscientes, que podem entrar em jogo graus de reflexividade muito variveis. Seguidamente, reconhecer duas outras evidncias empricas, que tambm no tm nada de contradictrio, na verdade: a existncia das variaes individuais, e a de quadros, ou melhor, de jogos ou sistemas de quadros conceptuais que, umas escalas e graus diversos, orientam as escolhas individuais. Por ltimo e sobretudo, aquilo evacua to o modelo substancializante de tipo culturalista que o modelo atomista de tipo estatstico: as perguntas se fazem naturalmente em termos de fenmenos de escala, de concordncia e de articulao entre diversas representaes ou feixes de representaes, ou de passagem de um grau de reflexividade ao outro.

    Visto sob este ngulo, o sistema das crenas e prticas ashninka levanta algumas perguntas bastante inesperadas. Poderia-se esperar que as construes simblicas mais estranhas (mais culturais) sejam tambm as mais locais, e sobretudo as o menos estreitamente ligadas aos mdulos cognitivos inatos. no entanto na sua articulao com os aspectos menos conscientes que a ontologia ashninka prova-se mais desconcertante. Na regio, as crenas sobre as quais esta ontologia se basea so ao mesmo tempo entre as mais explcitas e as mais largamente difundidas (em todos os sentidos do termo), e tambm entre as mais incompatveis com as nossas. Mas de fato, apresentam tambm uma relao particularmente forte, pela sua frequncia e sua coerncia, com o que se pode apreender dos processos de percepo elementar da planta ou do animal: automticos, inconscientes, e sem dvida fundados sobre mdulos cerebrais que geralmente se consideram universais, mas que aqui no parecem ser-o. Se compreender que ento se torna extremamente difcil ficar com a ideia de uma simples diviso entre o inato e o adquirido, ou entre o cognitivo e o cultural. A ideia dos mdulos perceptivos comuns aos todos os crebros humanos hoje tem cado no domnio pblico, e os antroplogos cognitivistas se reclamam dela como muitos outros. O problema, que deste substrato (material) comum, tem-se tendncia a inferir a perfeita universalidade do seu funcionamento, e as esperas intuitivas que suscitam. Os meus dados empricos incitam-me a acreditar que provavelmente avanar um pouco rpido. Sublinha-se facilmente que a partir da idade de 4 anos, ou a partir da idade de 6 anos, tal ou tal automatismo perceptivo est funcionando. Muito bem. Mas que passa antes da idade de 4 ou 6 anos? Todos os psiclogos cognitivistes precisam que trata-se l de processos lentos e complexos. Desde quando os processos lentos e complexos excluem a priori a diversidade dos resultados? E a menos de pretender que at 4 ou 6 anos, a criana s ainda um ser estritamente biolgico porque recusar a priori uma dimenso cultural esta eventual diversidade?

  • Em bom mtodo, deveria ser suficiente um s contra-exemplo como o dos Ashninka para retomar toda a temtica de um trao considerado como universal. Seria absurdo imaginar que os mdulos perceptivos poderiam ter um potencial no incio muito mais largo e mais indefinido do que a interpretao unvoca que se lhes d geralmente, e que a sua articulao e a sua implementao levam a esperas intuitivas muito mais diversas que o que se tem falado at agora? Todos pudemos escutar uma (muito jovem) criana nos explicar que as folhas que caem em outono sobem depois novamente na rvore, junto com sua me e seguidamente fazer-se corrigir por um adulto Mas seria exatamente a mesma a reao em meio amaznico? A pergunta tem que ser feita tanto aos psiclogos cognitivistas que aos antroplogos.

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    As hipteses e interpretaes apresentadas aqui baseam-se sobre um caso particular. No entanto se ter reconhecido de passo muitos dados familiares etnologia panamaznica. Os Ashninka do Ucayali mostram algumas particularidades, sem dvida, mas menos nos processos e princpios bsicos que no radicalismo de alguns dos seus mtodos, como a extrema atomizao da sua nomenclatura zoolgico, que os coloca neste ponto preciso s antpodas dos Tupi-Guarani, por exemplo. Mas para o resto, compartilham com os povos vizinhos um fundo comum feito tanto de ideias directoras (a ontologia animista, o perspectivismo, a assimilao de [alguns] vegetais a parentes consanguneos) que de atitudes e prticas dirias (as classificaes de acordo com critrios mltiplos, o saber shamnico que no coincide com os conhecimentos meramente florsticos, o tipo de conhecimentos que distingue o jovem caador do caador experiente). Por isso, fazem evidentemente pergunta. A temtica das folk taxonomies me parece certamente coisa de retomar, em todo ou em parte, sobre uma base etnogrfica mais ampla. Se nomenclaturas como as dos Tupi-Guarani parecem corresponder-lhes muito naturalmente, outras bem poderiam ser o resultado de efeitos em grande parte induzidos pelos mtodos de investigao: procedimentos de teste que se baseam sobre imagens planas, sem fundo e obviamente imveis das espcies vivas (e que mais , destinadas informadores familiarizados com as referncias do quadro escolar: semiliterate, de acordo com Berlim, Breedlove & Haven [1974:61]), criam um contexto que se situa imediatamente no registo da semelhana morfolgica geral. Mas se viu que entre os Ashninka, era uma potencialidade entre outras. Viu-se tambm que no se podia atribuir-lhe um estatuto de caracterstica universal do esprito humano. Mas alm, sem dvida uma pergunta bem mais fundamental que se perfila. A nossa maneira de partir caa dos universais parece estreitamente ligada nossa prpria ontologia naturalista. inscritos na matria, na substncia comum aos todos os seres vivos, que os procuramos o resto sendo frequentemente aos nossos olhos s superestruturas, floreios poticos, fascinantes pela sua diversidade, certamente, mas sem grande relao com a base material comum. l o olhar da escola das folk taxonomies sobre as cosmologias indgenas, mas tambm o da atual antropologia cognitiva sobre as crenas locais. Ora, os Ashninka nos convidam numa via completamente diferente, que valeria sem dvida a pena de explorar tambm noutros lugares, e sobre outros registos. A anlise das suas classificaes animais e vegetais, e depois a das suas outras crenas, parece indicar, em comparao com as nossas, que a sua ontologia animista retrabalha as percepes a um nvel muito elementar, o das esperas intuitivas, que no parecem funcionar aleatoriamente num espao biolgico ou social sem diferenciao.

  • Se poderia protestar, argumentar que estas esperas intuitivas, de acordo com a maior parte dos psiclogos cognitivistas, so determinadas estritamente pelos mdulos perceptivos universais do crebro humano. Mas seria uma base material comum realmente incompatvel com a ideia de certa remodelagem cultural? Haveria l todo um programa de investigao, certamente, e um programa de investigao onde uma vez no so muitas vezes a antropologia seria a que faria perguntas de fundo s cincias naturais.

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