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Liberdade, liberdade: a visão da telenovela Lado a Lado sobre emancipação feminina. 1 Ana Luiza Nogueira da ROCHA 2 Manuela do Corral Vieira 3 RESUMO O presente trabalho reflete busca compreender a maneiraas estratégias utilizadas através como a telenovela brasileira “Lado a Lado”, exibida pela Rede Globo em 2012, na abordagem de questões relacionadas ao machismo e à emancipação feminina em sua narrativa. O objetivo do estudo é analisar a questão da representação feminina, com foco nas cenas que envolvem as protagonistas Laura e Isabel. Busca-se mostrar a importância desse tipo de ficção dramatizada para debater temas sociais e a construção e desenvolvimento dos debates acerca do gênero e da sexualidade. PALAVRAS-CHAVE: representação feminina; telenovela; gênero. INTRODUÇÃO A temática telenovela no mundo acadêmico sempre teve certo estigma de não ser levado tão seriamente. Estudar sobre televisão ainda carregava certo status negativo no início da década de oitenta do século XX no Brasil (Ortiz, Borelli e Ramos, 1989). O preconceito da academiadas pesquisas em relação à ficção televisiva resultava de critérios que a estabeleciam de serem “apenas como produtos industriais, simples entretenimento, exteriores à produção artística e às tradições e distantes da esfera dos bens culturais.” (BORELLI, 2001, p. 29). Analisar as contribuições e o papel da telenovela na vida cotidiana dos brasileiros teve um aumento gradativo em território nacional, com autoras como Anamaria Fadul e Maria de Lourdes Motter, especialista sobre o assunto,, sendo exemplos proeminentes de produção acadêmica. Apesar de posições contrárias sobre o tema, a relevância de estudar-se ficções televisivas baseia no entendimento desta como 1 .Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA 2 .Aluna do quinto semestre de Comunicação Social: Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 3 .Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA) e Professora Adjunta do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará (ILC/UFPA), coordenadora do Projeto de Pesquisa “Consumo, Identidade e Amazônia: relações de sociabilidade e interação através da comunicação”, email: [email protected]

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Liberdade, liberdade: a visão da telenovela Lado a Lado sobre emancipação

feminina.1

Ana Luiza Nogueira da ROCHA2

Manuela do Corral Vieira3

RESUMO

O presente trabalho reflete busca compreender a maneiraas estratégias utilizadas através

como a telenovela brasileira “Lado a Lado”, exibida pela Rede Globo em 2012, na

abordagem de questões relacionadas ao machismo e à emancipação feminina em sua

narrativa. O objetivo do estudo é analisar a questão da representação feminina, com

foco nas cenas que envolvem as protagonistas Laura e Isabel. Busca-se mostrar a

importância desse tipo de ficção dramatizada para debater temas sociais e a construção e

desenvolvimento dos debates acerca do gênero e da sexualidade.

PALAVRAS-CHAVE: representação feminina; telenovela; gênero.

INTRODUÇÃO

A temática telenovela no mundo acadêmico sempre teve certo estigma de não

ser levado tão seriamente. Estudar sobre televisão ainda carregava certo status negativo

no início da década de oitenta do século XX no Brasil (Ortiz, Borelli e Ramos, 1989). O

preconceito da academiadas pesquisas em relação à ficção televisiva resultava de

critérios que a estabeleciam de serem “apenas como produtos industriais, simples

entretenimento, exteriores à produção artística e às tradições e distantes da esfera dos

bens culturais.” (BORELLI, 2001, p. 29).

Analisar as contribuições e o papel da telenovela na vida cotidiana dos

brasileiros teve um aumento gradativo em território nacional, com autoras como

Anamaria Fadul e Maria de Lourdes Motter, especialista sobre o assunto,, sendo

exemplos proeminentes de produção acadêmica. Apesar de posições contrárias sobre o

tema, a relevância de estudar-se ficções televisivas baseia no entendimento desta como

1.Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os

dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA 2.Aluna do quinto semestre de Comunicação Social: Publicidade e Propaganda da Universidade Federal

do Pará (UFPA). E-mail: [email protected] 3.Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA) e Professora Adjunta do

Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará (ILC/UFPA), coordenadora do

Projeto de Pesquisa “Consumo, Identidade e Amazônia: relações de sociabilidade e interação através da

comunicação”, email: [email protected]

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parte do entretenimento, “fenômeno atual que amplia, reproduz e dissemina o popular”

(MALCHER, 2005, p.44).

Quando se pensa em cultura e identidade brasileira, a telenovela tornou-se um

dos seus principais representantes. Sua junção entre o arcaico e atual como a união entre

dispositivos narrativos anacrônicos e imaginários modernos é um fenômeno

representativo da modernidade do país. Essa narrativa nacional transformou-se em um

recurso comunicativo por conseguir comunicar representações culturais atuantes a

papéis de tema sociais. (LOPES, 2009, p.22).

Ao visualizar a telenovela como um agente capaz interagir com diversos

segmentos de público, é possível compreender suas amplas possibilidades de

comunicação. Um dos exemplos mais reconhecidos são as obras realizadas pela Rede

Globo de Televisão. A emissora carioca consegue incorporar temas de cunho social e

discutir questões relevantes da realidade social. (MOTTER, 2002, p. 76). Porém, é

importante ressaltar da existência de assuntos tabus para as novelas, que não são

tratados em todas as faixas de horários, como a homossexualidade. Além disso, a

condução da história e dos personagens está submetida ao impacto e peso da opinião

pública. Exemplo disso é a morte do casal lésbico Leila (Silvia Pfeiffer) e Rafaela

(Christiane Torloni) de “Torre de Babel”. As duas personagens morreram em uma

explosão, pois terem rejeição diante aos espectadores.

O foco deste trabalho recai sobre a telenovela Lado a Lado, exibida em 2012,

um dos exemplos recentes da Rede Globo que aborda temáticas sociais. A história se

passa no início do século XX, onde o caminho de Laura, branca, de classe abastada e

professora, cruza-se com o de Isabel, mulher negra, filha de ex-escravos e empregada

doméstica, quando as duas se conhecem no dia de seus casamentos. A partir deste

encontro, surge um profundo vínculo entre elas, mesmo com todas as diferenças sociais

e preconceitos enfrentados no decorrer da história.

Exibida na faixa das 18h, com 154 capítulos entre 10 de setembro de 2012 a 8 de

março de 2013, Lado a Lado teve autoria de Claudia Lage e João Ximenes Braga, com

direção de Vinícius Coimbra. A novela retratava as transformações sociais do Rio de

Janeiro no início do século XX, como o preconceito e dificuldade enfrentados pelas

mulheres na sociedade patriarcal da época A narrativa conciliou temas históricos com a

trama, como a Revolta da Vacina, Revolta da Chibata e emancipação feminina.

O objetivo do artigo, por meio dos estudos sobre a importância da ficção

televisiva de Motter e Lopes e a relação entre gênero e televisão de Mercedes Charles,

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seria analisar a forma como a mulher foi representada na trama “Lado a Lado” e como

ela abordou questões relacionadas à mulher e tipos de opressões sofridos pelas

protagonistas. Para isto, selecionamos quatro cenas de capítulos da novela para

identificar como a história retratou tais representações. Discutiremos como cada

protagonista representou uma série de valores morais, sociais e políticos referentes ao

gênero na ficção televisionada.

GÊNERO E MÍDIA NA TELEDRAMATURGIA BRASILEIRA

Os primeiros trabalhos sobre televisão surgiram nos Estados Unidos de

pesquisadoras feministas que pretendiam, através do estudo da televisão, expressar seus

problemas a respeito das representações de gênero veiculadas pelas soap operas4. Como

eram programas assistidos principalmente por mulheres, investigar sobre as soap operas

representava um respeito à mulher como audiência, com isso que essas investigações se

engajavam em uma “luta pela revalorização da feminilidade e dos discursos de

construção da mulher” (MEIRELLES, 2008, p. 2). O surgimento da soap opera

aconteceu devido ao patrocínio de indústrias de sabonete. Os executivos pretendiam

aumentar as vendas de seus produtos às donas de casa. Esta ligação do programa a

mulheres acentuava a condição feminina de não pertencer ao mercado de trabalho e

dependente financeiramente de seu marido.

Já na Brasil, as pesquisas voltadas para telenovelas5 só começaram a se

consolidar na década 1990. Porém, existem poucos trabalhos voltados a estudar a

questão de gênero em ficções televisivas. Clara Meirelles (2008) pontua dois motivos

principais para esta ausência de trabalhos feministas: a forte marca da cultura brasileira

de associar telenovelas ao âmbito do privado; e a priorização de temas tidos com maior

utilidade social e aplicação político, como o papel da mulher diante os novos arranjos,

desigualdade social e relações de trabalho. Por serem considerados tópicos com a maior

necessidade de urgência, por terem mais impacto político em tais estudos do que

investigações sobre gênero em novelas.

Um dos eixos teóricos importantes para os estudos sobre gênero em telenovelas

é a teoria de Teresa de Lauretis (1994), “tecnologia de gênero”. Considerando o

4.Soap operas são produtos de ficção em que não a trama pode ser desenvolvida durante anos.

Diferentemente das telenovelas brasileiras, onde a trama possui entre 120 a 180 capítulos. 5.A história da telenovela brasileira mostra suas diversas influências ao longo do tempo. Sua formação

tem influências no melodrama dos romances de folhetins franceses, as soap operas americanas com o sua

narração em off, até as radionovelas latinas com suas temáticas tipicamente femininas (ORTIZ,

BORELLI, RAMOS, 1988)

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pensamento de Michel Foucalt de sexualidade como uma construção cultural da classe

dominante, e não do domínio do natural, a pesquisadora propõe a noção de gênero como

sistema de representação capaz de atribuir significado, como identidade e status dentro

da hierarquia social, a indivíduos dentro da sociedade (LAURETIS, 1994, p.212),

produtos de diversas tecnologias sociais. A noção de gênero mostra-se a partir de efeitos

de imagem e do imaginário. O sujeito estaria composto por códigos linguísticos e

representações culturais. Com base neste pensamento, podemos inferir que a telenovela,

como produto midiático, é um espaço onde é possível estabelecer noção e construção de

gênero.

Na América Latina, o estudo sobre a recepção feminina em telenovelas é

popular. A pesquisadora mexicana, estudiosa da área de novelas, Mercedes Charles

(1996) afirma que certos estudos sobre a televisão, especialmente acerca das mulheres

financeiramente mais pobres, apontam o fato da televisão proporcionar uma espécie de

matriz cultural, onde adquirem a capacidade de confrontar, aceitar, criticar, analisar e

dar um novo significado das mensagens para adequar a sua própria realidade. (p.42).

Um dos pontos analisados pela autora é como a televisão acaba por socializar

conteúdos.

A recepção de mensagens implica um processo individual em que se

põe em jogo a interação simbólica com o universo cultural particular

do receptor, porém seus conteúdos provocam interações familiares e

sociais que permitem uma nova semantização coletiva de significados.

[...] Isto permite mudar significados, os reelaborar, reconsiderar o

visto, lido ou escutado, relacioná-lo com outra informação, enriquecer

o ponto de vista, entre outros aspectos, de tal maneira que a mensagem

original saia como um mero pretexto de múltiplas interações

comunicativas. (CHARLES, 1996, p.45)6

Sendo assim, é possível perceber com a fala de Charles que as telenovelas têm

importância na forma como é construída a identidade feminina da mulher latina, por

serem responsáveis pela difusão de imagens reais e irreais. Essas servem como

parâmetro de identificação e reconhecimento ou contrastante com a sua realidade. Por

esses critérios, atestamos que pela sua forma de retratar questões ainda recorrentes na

vida da mulher contemporânea como a ameaça de estupro7, machismo no ambiente de

trabalho e independência feminina, é possível estabelecer tipos de identificação com

suas telespectadoras.

6.Tradução feita pela autora.

7.Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 47.600 pessoas foram estupradas na Brasil, em

2014. Isso contabiliza um caso desse tipo de violência sexual a cada 11 minutos.

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Sobre a questão de identificação, percebe-se o uso de arquétipos com base em

mitologias femininas nas telenovelas brasileiras. O seu uso tem como objetivo provocar

“um sentido de identidade entre personagens e as mulheres enquanto público e acabam

refletindo e reforçando os valores, comportamentos, desejos e a sensibilidade da

espectadora” (CHAVES, et al, 2014, p.5). Em uma telenovela, percebem-se inúmeros

tipos de arquétipos sustentando a história. Especificamente nos voltados para a mulher,

encontramos o arquétipo de “mãe”, personagem com espírito maternal, caracterizado

por ter caráter acolhedor e protetor, sendo recorrente o uso por refletir uma noção de

que este é um dos papéis que a mulher deve exercer. Outro caso recorrente em novelas é

o arquétipo de “donzela”, normalmente reservada às protagonistas, por serem

associados a conceitos de beleza, pureza e virgindade. Esses arquétipos podem acabar

por reforçar estereótipos sobre as mulheres, influenciando a maneira como são

percebidos os papéis femininos exercidos, como, por exemplo, o condicionamento a

acreditar que mulheres sempre almejam maternidade, ou só mantém relações sexuais

com a pessoa que irá contrair matrimônio.

A personagem Laura Assunção, interpretada por Marjorie Estiano, contraria as

expectativas de como moças de alta-sociedade devem se comportar pelo seu desejo de

estudar e trabalhar como professora e jornalista. Filha de ex-barões, casa-se com seu

noivo sem amor. Apesar de depois se apaixonar-se pelo marido, separa-se dele ao

descobrir que ele tem uma filha antes do casamento e passar a sofrer com seu status de

divorciada. Suas roupas refletem seu caráter moderno: casacos de tons mais escuros e

elementos do vestuário masculino como coletes e gravata, o que ilustra sua

independência.

Isabel Nascimento, interpretado pela atriz Camila Pitanga, é a outra protagonista

da novela. Jovem negra, ela trabalha como empregada e é noiva de Zé Maria. Porém,

uma série de contratempos a afastam de seu noivo e ela engravida de outro, mas devido

as armações da vilã Constância, acaba afastada do filho. Ela ganha a chance de atuar

como dançarina na Europa e consegue reconhecimento e dinheiro. Quando volta ao

Brasil, tem planos de se tornar empresária e continua sendo afirmativa, honrando suas

origens e não perdendo sua independência. Seu figurino reflete a influência europeia e

sua ascensão financeira, com tecidos nobres e esvoaçantes, que permitem mostrar a

leveza de sua dança.

Durante a exibição da novela Lado a Lado, foi possível perceber a trama com o

posicionamento de contestar as limitações às mulheres no início do século XX. Suas

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heroínas são mulheres que buscam fugir dos padrões femininos estabelecidos. Pelo o

fato da televisão ser uma matriz cultural, permitiria as telespectadoras da novela se

identificarem com as situações de machismo sofridas por Isabel e Laura, por ainda

manterem-se atuais, como, por exemplo, a discriminação da mãe solteira e tentativa de

abuso sexual, ambos os eventos retratados na trama. Por isso, discutiremos as

representações de gêneros retratados na história. Ao longo do artigo, pontuaremos as

escolhas textuais da trama que possibilitaram o debate sobre o papel da mulher na

sociedade. A repercussão da novela foi percebida em sites sobre com a temática

feminista e reportagens, que serão comentadas ao longo do texto.

Porém, existem questionamentos sobre a forma de como o feminismo é

abordado. Para Heloisa Albuquerque de Alencar, as novelas atuais retratam os assuntos

sociais de uma maneira rasa. Ela marca a diferença analisando a série Malu Mulher,

exibida na década de oitenta na emissora. A antropóloga reflete como foi possível

discutir assuntos tidos como tabus, como divórcio e aborto com profundidade em uma

época onde perdurava a censura. A narrativa era capaz de debater questões essenciais

para o feminismo da época no Brasil.

No caso da novela Lado a Lado, a faixa do horário das 18h impossibilita tratar

de maneira tão explícita determinados temas com um caráter mais pesado. Porém, ela

não se esquiva totalmente de retratar situações graves. Um dos exemplos é a cena onde

Laura, empregada como secretária de um senador da República, sofre assédio de seu

chefe.

A questão de estudar gênero em telenovela tem ganhado força nos últimos anos.

Percebe-se a força desse tipo de ficção para gerar o fator de identificação com o público

feminino, com a ajuda de arquétipos. Ainda é necessário pensar a forma como o

feminismo é abordado nas tramas, Em Lado a Lado, existe o tratamento adequado de

assuntos mais sérios, como o estupro. Sendo assim, é necessário discutir sobre qual

seria o papel social das telenovelas.

A INFLUÊNCIA DAS TELENOVELAS

Maria Immacolata Lopes (2009, p.23) pontua a forte penetração da dramaturgia

na sociedade brasileira por sua singular capacidade de construir e alimentar um

repertório comum onde pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça, entre outros se

posicionam e são capazes de reconhecerem-se umas às outras. A pesquisadora

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acrescenta o fato de a ficção televisiva constituir-se de um ritual8 compartilhado pelas

pessoas em todo o território nacional. Estes telespectadores começam a dominar as

convenções narrativas da telenovela e pegar os padrões nela estabelecidos como

referenciais de tipos de família brasileira, mulher brasileira, violência etc.

Com suas protagonistas, a professora e jornalista Laura, e dançarina e

empresária Isabel, a telenovela Lado a Lado busca ter um referencial positivo sobre

emancipação feminina. Retratada no início do século XX, a trama propõe mostrar as

principais mudanças que estão ocorrendo durante a época, como a Revolta da Vacina,

entrada do negro no mercado de trabalho formal e, em especial, foco deste artigo, a

mudança dos papéis da mulher na sociedade. Estes eventos políticos e sociais permitem

ao público um aprendizado e reflexão através do poder dos personagens e situações da

trama atuar como formadores de opinião de informações benéficas e úteis a um número

grande pessoas simultaneamente (SCHIVALLI, 2002, p.1). A Rede Globo, emissora

responsável pela novela, tem um longo histórico de retratar em suas tramas do que

podemos chamar de merchandising social9, onde, amplia o modelo de melodrama para

acrescentar a dimensão de caráter social à telenovela.

A novela destaca-se por falar abertamente em sua trama dos problemas

enfrentados pelas suas protagonistas, e posicionar as duas como mulheres conscientes

do seu potencial e por desejarem por algo maior do que os papéis impostos socialmente

a elas. Laura, jovem branca e filha de ex-aristocratas, almeja ser independente, trabalhar

e mostrar que mulheres são capazes de ir além do que apenas o papel de esposa. Tal

comportamento choca-se com o de sua mãe, Constancia, que vê os sonhos de sua filha

como insanidade e rechaça a ideia de mulheres no mercado de trabalho. Isabel, negra e

filha de ex-escravos, era empregada e virou bailarina. Ao longo da trama, a dançarina

choca por ser mãe solteira e honrar suas origens negras através de sua dança.

De acordo com a autora de Lado a Lado, Claudia Lage, a telenovela posiciona-se

como feminista, e busca através de suas cenas representarem as dificuldades

encontradas para as mulheres e como a sua emancipação é necessária. A escritora

continua e aponta a protagonista Laura como desafiadora dos limites demarcados até

8.Maria Immacolatta Lopes usa a noção de consolidação do sentimento de pertencimento a uma

comunidade para entender o significado das telenovelas no país. Para a pesquisadora, “o ato de assistir a

esses programas num determinado horário, diariamente, ao longo de quase cinquenta anos, constitui um

ritual compartilhado por pessoas em todo o território nacional.” (LOPES, 2009, p.23). Com isso, os

padrões mostrados na telenovela como referenciais definem tipos ideais de família, relacionamentos

amorosos e de mulher brasileira. 9. Ao contrário do merchandising comercial, o merchandising social tem como característica a abordagem

de temas sociais, sempre com uma perceptível intencionalidade socioeducativa (SCHIVALLI, 2002, p.4).

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onde uma mulher poderia ir. Ela reivindica seu espaço como agente social e formadora

de opinião como jornalista10

. As protagonistas possuem “consciência crítica sobre os

valores e as condutas morais impostos às mulheres na época” (MORESCO; PANIZA,

2013, p.5).

Isabel, a outra protagonista, também quebra padrões possivelmente esperados

para a personagem: após trabalhar boa parte da vida como empregada, vira bailarina

extremamente reconhecida na Europa, e quando volta ao Brasil, se torna dona do

principal teatro da cidade. Mesmo com todo o dinheiro ganho, ela ainda sofre

preconceito por ser negra, mãe solteira, empresária, dançarina, todos estes papéis

possuindo uma carga negativa na sociedade do início do século XX.

Uma das provas do impacto da telenovela são os conteúdos criados em blogs

para discussão e elogio do feminismo de Lado a Lado. No site “Blogueiras Feministas”,

administrado por um grupo de mulheres de todo o Brasil que estudam sobre o

feminismo, houve dois artigos comentando elogiosamente a forma de como a novela

tratou sobre emancipação feminina11

, e os caminhos distintos entre as duas

protagonistas em sua luta por visibilidade, e sobre a forma lidada com estupro12

,

inserindo noções sobre consentimento. O blog “Escreva, Lola, Escreva” também

ressaltou a qualidade da abordagem da história e ressaltando o caráter feminista13

.Esse

fluxo de posts sobre a abordagem da novela com o tema comprova de apesar da trama

manter-se próximo ao melodrama14

– afinal, as duas protagonistas tem seus respectivos

pares românticos e o amor -, não se esquiva de um papel mais social.

Esse caráter educativo da telenovela tem apoio não só na possibilidade

de tratar figurativamente os conceitos na sua abstração e

complexidade, como também no modo de construção gradual e

10

.Reportagem realizada com uma das autoras da novela, Claudia Lage. Link disponível em

<http://gshow.globo.com/novelas/lado-a-lado/Fique-por-dentro/noticia/2013/03/claudia-lage-admite-a-

novela-e-feminista-quem-teve-que-se-ajustar-foi-o-homem.html> Acesso em setembro de 2016. 11

“Emancipação feminina na novela Lado a Lado”. Link disponível em

<http://blogueirasfeministas.com/2013/03/emancipacao-feminina-na-novela-lado-a-lado/> Acesso em

setembro de 2016. 12

“Estupro em Lado a Lado: aula de feminismo e boa dramaturgia” Link disponível em

<http://blogueirasfeministas.com/2013/01/estupro-em-lado-a-lado-aula-de-feminismo-e-boa-

dramaturgia/>. Acesso em setembro de 2016. 13

“Guest Post: Lado a Lado, uma novela feminista” Link disponível em

<http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/01/guest-post-lado-lado-uma-novela.html> Acessado em

setembro de 2016. 14

Gênero textual com origem no século XVIII. Caracteriza-se pelo dualismo entre o bem e o mal, relações

amorosas, extremo uso sentimentalidade e de juízos morais, privilegia a sensação, tem marcas da

oralidade, além de exacerbaras virtudes e defeitos dos personagens, sendo eles mocinhos ou vilões. A

telenovela se utiliza do melodrama para contar sua história e como manifestação simbólica da identidade

cultural de um povo, que estabelece interações sociais a partir e por meio dele. (SILVA, 2013, p.2)

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reiterada que se processa ao longo de seus aproximados seis meses de

duração. Assim, do mesmo modo que nos exemplos, essa

potencialidade do gênero pode ser aproveitada para acrescentar

conhecimento e atuar na direção do movimento de mudança social,

embora seu uso predominante seja para reiterar a manutenção das

condições existentes. Todavia, mesmo não sendo muitas as

telenovelas que acrescentam ao entretenimento uma proposta mais

séria, elas demarcam uma progressão, renovam o gênero e formam um

telespectador sempre mais atento, crítico e exigente. (MOTTER, 1998,

p. 99)

Portanto, ressalta-se esse papel social da telenovela em gerar discussões sobre temas

pertinentes em nossa sociedade. As telenovelas possuem um grande impacto no público por

suas tramas terem um repertório composto de situações do cotidiano. A novela Lado a Lado

apropriou-se de temas da esfera privada (LOPES, 2009), como o racismo, e criou narrativas em

sua trama exaltando a emancipação feminina. No próximo tópico, refletiremos sobre as

representações femininas da novela e sua repercussão com os telespectadores.

REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM LADO A LADO

De acordo com o livro de 2014 da OBITEL15

, aproximar-se da telenovela como

um evento social ou um recurso comunicativo, permite uma maior compreensão da

sociedade por estabelecer contato com o nosso cotidiano e com as múltiplas

representações de gênero existentes. Lopes (2009) aponta a alta penetração da

dramaturgia em nossa sociedade, devido sua capacidade de construir um repertório

comum conde os espectadores são capazes de se sentirem reconhecidos.

O papel da mulher no contexto do início do século XX era especialmente

orientado à família, com foco na maternidade. Compostura e pudor eram características

consideradas essenciais para as mulheres. Elas deveriam estar submetidas ao homem, e

seguir o arquétipo de mulher delicada e frágil. A sociedade positivista, marcada pelo

lema “ordem e progresso” com caráter higienista, também condenava crenças e

costumes da população mais pobre e negra, como o samba e candomblé por ser

considerada uma afronta contra a moral e bons costumes. (MORESCO; PANIZA, 2013,

p.5)

Para Costa, (apud Meirelles 2008, p.8), a telenovela brasileira tem maior

repertório de representações femininas de suas protagonistas, sejam elas mulheres

confinadas ao espaço doméstico com as funções do lar até mulheres pautadas na

realização profissional, que buscam independência. Em Lado a Lado, as representações 15

Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva. Atua como uma rede brasileira de pesquisadores

sobre temas relacionados a televisão.. O tema do congresso de 2014 foi sobre as representações de gênero

em produtos de ficção televisiva em toda a América Latina.

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femininas de suas heroínas são pautadas na busca por emancipação. Tanto Laura como

Isabel contrariam certos papéis de como uma mulher deve se comportar em sociedade.

Laura, apesar de amar o marido, divorciou-se de Edgar por não ter conseguido aceitar a

omissão dele de ter tido uma filha antes do casamento e ter levado a menina e sua antiga

companheira, mãe da garota, para morar junto com eles sem ter a consultado antes.

Quando é exposto o seu status de divorciada, a professora perde seu emprego na escola

onde lecionava. Por conta disso, precisa trabalhar em empregos abaixo de sua classe

social, como vendedora de calçados. Acrescido ao seu divórcio, ela é vista como uma

espécie de pária social da alta sociedade. Também sofre tentativa de abuso do seu chefe

no seu emprego de secretária por ser considerada sem pudores por ser divorciada. Além

disso, é rejeitada para ser jornalista, devido ao seu gênero e é obrigada a assinar com um

pseudônimo masculino.

Isabel, a outra protagonista, convive desde o início com uma série de

preconceitos. Ao achar que o noivo, preso acidentalmente no dia, a abandonara, em sua

cerimônia de casamento, acaba por dormir com outro homem e engravida. Rechaçada

pelo pai e noivo, sofre com uma armação que a separa de seu filho. Por ser uma exímia

bailarina, consegue um emprego em uma companhia de dança na Europa. Quando volta

ao Brasil, rica e famosa, ainda precisa aguentar a aversão das pessoas por ser uma

mulher negra com poder aquisitivo, dançarina de samba, dança mal vista pela

sociedade.

Lado a Lado, com as personagens Laura e Isabel, conseguem abordar

problemáticas de gênero que permanecem contemporâneos até hoje. A trama explicita a

injustiça dos preconceitos sofridos por elas, o que faz os telespectadores torcerem para

que as heroínas consigam superar tais dificuldades e consegue fazer um paralelo sobre

tais situações na contemporaneidade, Temas atuais como o machismo e emancipação

feminina, questão do âmbito público, são incorporados ao universo privado da narrativa

da televisão (LOPES, 2019, p.27) Lopes ainda argumenta que na trajetória de

personagens femininas, se expressa de maneira mais desenvolvida a capacidade de

fusão entre experiências públicas e privadas.

É importante mostrar Laura e Isabel como contestadoras dos papéis das

mulheres em sociedade, pois, segundo Lauretis (1994), produtos midiáticos com suas

representações culturais são capazes de constituir a identidade da mulher. As

telespectadoras ao verem tais momentos de contestação representados, seriam capazes

de aplicar tais discursos em suas próprias realidades.

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Porém, apesar de demonstrar em suas cenas a relevância de emancipação

feminina com a mulher conquistando o mercado de trabalho, seja com Laura sendo

jornalista, ou com Isabel sendo empresária e dançarina, a novela não quebra totalmente

com os parâmetros de melodrama. Laura, apesar de conseguir sua independência

profissional ao conseguir exercer a função de jornalista, volta a preencher o papel de

esposa no final da trama, quebrando seu status negativo de desquitada a casar

novamente com o marido. O mesmo acontece com Isabel, pois casa-se com seu amor de

anos, Zé Maria, que também acaba adotando o filho da companheira. Percebe-se que o

conceito de felicidade completa ainda se baseia em casar e ter filhos, características que

estão no cerne das telenovelas em geral.

Em seguida, analisaremos quatro cenas da novela onde podemos encontrar

situações envolvendo demonstrações de emancipações femininas e preconceitos

sofridos pelas protagonistas Laura e Isabel. A seleção procurou os capítulos no

dispositivo “Globo Play”, onde é possível encontrar trechos da trama.

Cena 1- Laura se revolta com ousadia de Fernando.

Laura sente-se ultrajada após o seu cunhado, Fernando, tentar tomar certas

liberdades com ela, por ela estar divorciada do seu irmão. Ao encontrar-se com Isabel

mais tarde, as duas comentam os preconceitos vividos tanto por mulheres divorciadas

ou solteiras que buscam ter independência, e não trancar-se para o mundo. O diálogo é

bem didático e elas contestam esses papéis atribuídos ao gênero feminino.

Isabel: Você sabe por que o Fernando se achou no direito de te tratar assim, não sabe?

Laura: Porque eu sou divorciada. Isso não significa que eu estou disposição em praça

publica. Mas pelo visto, Isabel, é assim que tratam as mulheres divorciadas.

Isabel Assim tratam as mulheres sozinhas, sem marido, mas que não ficam trancadas

em casa ou enfurnadas na igreja:

Laura: As solitárias e as infelizes, tudo bem, mas ai das que ousarem sair às ruas ou

subir aos palcos como você fez em Paris. (Lado a Lado, 23 /11/2012).

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Imagem 116

: frame do capítulo exibido 23/11/2012 da novela “Lado a Lado”.

Cena 2 – Isabel conta seus planos para Zé Maria

Isabel e seu antigo noivo se encontram para um jantar romântico, após a volta da

bailarina ao Brasil. Enquanto discutem amenidades, Isabel fala sobre seu desejo de ter

um próprio negócio. A cena é curta, mas mostra a vontade da protagonista se

estabelecer como empresária e ter autonomia em sua vida profissional. Além disso,

reforça a característica da personagem de independência.

Isabel: Talvez eu vire dona de um teatro

Zé Maria: Um teatro inteirinho?

Isabel: É ele é pequeno, meio falido, mas é inteiro.

Zé Maria: Mas você tem dinheiro pra isso, Isabel?

Isabel: Juntei um dinheirinho para montar um negócio. Eu quero ser que nem a tia

Jurema: dona do meu próprio nariz. (lado a lado 29/11/2012)

16

Frame retirado do vídeo do capítulo do dia 23/11/2012 disponível no site Globo Play. Link disponível

em <<https://globoplay.globo.com/v/2258112/>> Acesso em outubro de 2016.

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Imagem 217

:: frame do capítulo exibido 29/11/2012 da novela “Lado a Lado”.

Cena 3 – Laura diz que não quer ser respeitada apenas pelo estado civil

Após passar a noite com Edgar, Laura comenta com Isabel o seu incômodo ao

escutar de seu ex-marido que ela não será mais desrespeitada por ser divorciada, porque

eles voltarão a ficar juntos. É possível perceber nessa cena que a professora deseja ter o

respeito das pessoas pelo sua pessoa, não por ser casada. Este momento é importante

para caracterizar Laura como uma mulher que busca ser independente, sem depender de

um homem para isso.

Laura: Quando eu falei dos meus problemas, o Edgar foi muito compreensivo, ele é

incrível.

Isabel: Mas?

Laura: Ele disse que ninguém mais vai me desrespeitar agora que a gente tá junto de

novo. Entendeu?

Isabel: Entendi. Laura, ele falou isso...

Laura: Para me acalmar, para me proteger, eu sei.

Isabel: Claro

Laura: Por isso nem falei nada, mas, Isabel eu quero que as pessoas me respeitem. Eu.

Não o meu estado civil, porque tem um homem do meu lado. Então se não tem um

homem do meu lado, eu não mereço respeito?

Isabel: Mas é claro que merece, mas você sabe como as coisas são. (Lado a Lado,

25/12/2012)

17

Frame retirado do vídeo do capítulo do dia 25/11/2012 disponível no site Globo Play. Link disponível

em <<https://globoplay.globo.com/v/2268318/>> Acesso em outubro de 2016

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Imagem 318

: frame do capítulo exibido 25/12/2012 da novela “Lado a Lado”.

Cena 4 – Laranjeiras tenta agarrar Laura à força

Laura resolve pedir demissão do seu trabalho como secretária, após ser

assediada pelo patrão, homem casado e Senador da República, para jantar à sós com ele.

O Senador demonstra sua raiva e diz que somente ofereceu o emprego para envolver-se

sexualmente com a jovem professora, pois nunca contrataria uma mulher, divorciada

ainda por cima, para ser sua secretária. O destaque do diálogo vai para a palavra

consentimento, pois alude ao conceito de estupro, como ação sexual feita sem a

permissão do outro. A cena marca claramente a violência da tentativa do ato. Laura só

consegue se salvar, pois, Isabel e sua tia chegam para ajuda-la.

Senador Laranjeiras: “Não banca a donzela comigo, eu sei o que deseja uma mulher

experiente e divorciada. E tô disposto a provar isso, com o seu consentimento, ou não”

(Lado a Lado, 10/01/2013).

18

Frame retirado do vídeo do capítulo do dia 25/12/2012 disponível no site Globo Play. Link disponível

em <<https://globoplay.globo.com/v/2312115/>> Acesso em outubro de 2016

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Imagem 4

19: frame do capítulo exibido 10/01/2013 da novela “Lado a Lado”.

É possível perceber nessas cenas situações onde as protagonistas passaram por

momentos de machismo, como tentativa de estupro na cena quatro, e preconceito moral

por ter o estigma de divorciada como na cena três. Esta última, “Laura diz que não quer

ser respeitada apenas pelo estado civil” mostra o desejo de tanto Laura e Isabel de serem

independentes e respeitadas, sem precisar depender de um homem ao seu lado,.

A cena “Laura se revolta com ousadia de Fernando” usa o didatismo no diálogo

para explicitar as visões progressistas para o início do século XX das protagonistas.

Ambas revoltam-se com a visão que a sociedade da época tem sobre as duas. Laura

sofre com o estigma de divorciada e é obrigada a lidar com o assédio de homens, por

estes acharem que não devem mais ao respeito com ela. Isabel, por ser dançarina e uma

mulher negra de sucesso, escuta acusações de ser prostituta por estar no meio artístico.

A questão de emancipação feminina é retratada em “Isabel conta seus planos

para Zé Maria”. A dançarina pretende ser empresária do seu próprio negócio e

conquistar independência e segurança financeira. O diálogo mostra que Isabel pretende

ir além dos papéis impostos a uma mulher negra do início do século XX.

Uma cena que se destaca é “Laranjeiras tenta agarrar Laura à força”. A

importância desse momento está na discussão sobre consentimento. A trama explicitou

19

Frame retirado do vídeo do capítulo do dia 10/01/2013 disponível no aplicativo Globo Play. Link

disponível em << https://globoplay.globo.com/v/2338371/?s=03m20s>>. Acesso em outubro de 2016

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em seu diálogo o fato do patrão não ter o consenso da protagonista, configurando como

uma violência. A cena possibilitou um debate importante sobre a importância de

estabelecer o consentimento e mostrar que a personagem, mesmo sendo julgada por seu

status de divorciada o que fazia a sociedade achar que era uma mulher sem pudores,

tinha o direito de dizer não sem se explicar. Além disso, teve uma repercussão positiva

em sites que propunham discutir questões sobre o feminismo. O post “Estupro em Lado

a Lado: aula de feminismo e boa dramaturgia20” elogia o desenvolvimento da cena,

focando especialmente na forma como uma trama das 18h tratou de um assunto tabu

como estupro explicitou que é um ato de violência.

Esta seleção de cenas mostra que a telenovela “Lado a Lado” tratou de questões

importantes para as mulheres da época que ainda ressoam para as espectadoras que

assistiram tais momentos. A história, dentro das suas restrições de horário e limitações

do melodrama, retratou a importância de discutir assuntos como machismo e

emancipação feminina em um meio de comunicação em massa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um longo caminho vem sido percorrido na questão de estudo de gêneros na

mídia. A teoria de gênero por Teresa de Lauretis de o sujeito feminino estar composto

por códigos linguísticos e representações culturais e sua noção de gênero mostrar-se em

efeitos de imagens permeou os trabalhos sobre o tema. A telenovela é um exemplo

onde é possível estabelecer construção de gênero.

Com o seu posicionamento de contestação às limitações estabelecidas às

mulheres, a telenovela Lado a Lado suscitou o debate do papel feminino na sociedade.

Com tramas relacionadas à emancipação feminina e ao machismo sofrido através de

suas protagonistas, Laura e Isabel, a história possibilitou a identificação pela

representação de tais questões, ainda bastante atuais. Exemplos como tentativa de abuso

e preconceito no ambiente de trabalho ainda refletem no período atual.

Mesmo ainda com determinadas características de um melodrama, Lado a Lado

fez uma relevante representação de mulheres em sua trama. Através das análises de

cenas da novela, percebemos que as protagonistas Laura e Isabel possibilitaram uma

20

.Estupro em Lado a Lado: aula de feminismo e boa dramaturgia” Link disponível em

<http://blogueirasfeministas.com/2013/01/estupro-em-lado-a-lado-aula-de-feminismo-e-boa-

dramaturgia/>. Acesso em setembro de 2016.

Page 17: Liberdade, liberdade: a visão da telenovela Lado a Lado ... · INTRODUÇÃO A temática ... a pesquisadora propõe a noção de gênero como ... Sobre a questão de identificação,

espécie de reflexão sobre os papéis femininos. Apesar de ambientada no início do

século XX, as ponderações ainda ressurgem como reflexões no presente.

É necessário o surgimento de histórias em telenovelas que não se esquivem de

tratar de temáticas feministas. O avanço do tema em um meio de comunicação massivo

seria capaz de fazer mudanças significativas na forma como o feminismo é discutido em

sociedade.

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