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Universidade Federal do Rio de Janeiro Lillias Fraser: Um percurso através da memória Maíra Contrucci Jamel 2010

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Lillias Fraser: Um percurso através da memória

Maíra Contrucci Jamel

2010

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Lillias Fraser:

Um percurso através da memória

Maíra Contrucci Jamel

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Orientadora: Professora Doutora Monica do Nascimento Figueiredo.

Rio de Janeiro Fevereiro / 2010

Lillias Fraser:

Um percurso através da memória

Maíra Contrucci Jamel

Orientadora: Monica do Nascimento Figueiredo

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Aprovada por: _______________________________________________________________ Presidente, Profª. Doutora Monica do Nascimento Figueiredo – UFRJ _______________________________________________________________ Profª. Doutora Teresa Cristina Cerdeira da Silva – UFRJ _______________________________________________________________ Profª. Doutora Dalva Calvão - UFF _______________________________________________________________ Profª. Doutora Luci Ruas – UFRJ ( Suplente ) _______________________________________________________________ Prof. Doutor Silvio Renato Jorge – UFF ( Suplente )

Rio de Janeiro Fevereiro / 2010

RESUMO

Lillias Fraser: Um percurso através da memória

Maíra Contrucci Jamel

Orientadora: Monica do Nascimento Figueiredo

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas):

Dentre as recorrências peculiares da literatura portuguesa contemporânea, há de se constatar que “a entidade que domina a ficção portuguesa dos últimos 20 anos é a História.”, é o que afirma Carlos Reis. No entanto, ainda que essa relação da história com a literatura não seja algo novo no contexto literário de Portugal, é patente que a narrativa contemporânea estabeleceu novas relações entre fato e ficção. O romance Lillias Fraser, de Hélia Correia, segue uma tendência da pós-modernidade, que rouba do tecido histórico matéria para a construção ficcional. Este trabalho pretende analisar a transitividade estabelecida entre a literatura e a história, ressaltando a memória como um elemento norteador das construções sociais, sejam elas históricas ou literárias. Sabendo que a pós-modernidade, em literatura, apostou no conceito de metaficção historiográfica, será ele que conduzirá a análise pretendida. O presente estudo debruça-se sobre dois possíveis caminhos estabelecidos pela memória, construindo o enunciado e a enunciação.

Palavras- Chave: Literatura portuguesa contemporânea, Hélia Correia, Memória, Lillias Fraser

Rio de Janeiro Fevereiro / 2010

ABSTRACT

Lillias Fraser: A path through memory

Maíra Contrucci Jamel

Orientadora: Monica do Nascimento Figueiredo

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas): Among the characteristics of contemporary Portuguese literature, we can verify "the entity that dominates the Portuguese fiction of the last 20 years is History", says Carlos Reis. However, Even though the relation between history and literature is not something new in the literary context of Portugal, it is clear that the contemporary narrative established new relations between fact and fiction. The novel Lillias Fraser, by Hélia Correia, following a trend of post-modernity, which robs material from History for the fictional development. This paper discusses the transience established between literature and history, emphasizing the memory as a guiding element of social aspects, whether historical or literary. We will be guided by the concept of historiographic metafiction, one of the characteristics of postmodern literature. This study focuses on two possible paths established by memory, both in the field of narrative and the construction of the narrating.

Key-words: Contemporary Portuguese Literature, Hélia Correia, memory, Lillias Fraser

Rio de Janeiro Fevereiro / 2010

FICHA CATALOGRÁFICA

JAMEL, Maíra C.

Lillias Fraser: Um percurso através da memória/ Maíra Contrucci Jamel. Rio de Janeiro: UFRJ – Faculdade de Letras, 2010. 94 fls

Orientadora: Monica do Nascimento Figueiredo

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2010.

Referências bibliográficas: f. 89 – 96.

1. Literatura Portuguesa. 2. Literatura Contemporânea. I. Figueiredo, Monica. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. Lillias Fraser: Um percurso através da memória

Para minha família, por me marcar com o valor das memórias e me ensinar a ter prazer tanto em construí-las como em revivê-las.

Agradecimentos

À professora Monica Figueiredo pela paciência eterna e dedicação incansável, me fazendo desde o início do caminho acadêmico entender que “se visão cresce, o obstáculo é mutável”.

Ao Eduardo, pela companhia em tantos percursos. Por me ver e permanecer ao meu lado, mesmo quando, tantas vezes, me afastei de mim mesma. Por estar junto de mim nesse tempo que é todo travessia.

À minha irmã, Milena, e ao meu irmão, Michel. A ela pela afetuosidade demasiada e a ele pela afetuosidade contida. A ele por nunca supervalorizar minhas dificuldades e a ela por nunca menosprezá-las. Aos dois pelo cuidado que, cada um ao seu modo, têm por mim.

À minha mãe, Marilda, e ao meu pai, Murillo. A ela por me ensinar a importância de ser boa e a ele por me ensinar a importância de ser justa. A ela pela compreensão que não necessita de palavras e a ele pelo respeito, ainda que as palavras não fossem suficientes para levar a compreensão. Aos dois por me proporcionarem tantas oportunidades e por nunca deixarem de me fazer sentir amada.

Às amigas, Alessandra, Aldira, Carla e Talita pela troca de idéias que me auxiliaram durante as aulas do curso de mestrado.

Ao CNPQ, pela concessão da bolsa de pesquisa, sem a qual minha dedicação a essa dissertação não seria completa.

Aos professores da Pós-Graduação, Monica Figueiredo, Teresa Cristina Cerdeira, Cleonice Berardinelli, Luci Ruas, Eduardo Coutinho e Sérgio Gesteira, que partilharam comigo seu conhecimento ao longo do curso de mestrado.

SUMÁRIO

1. ESTABELECENDO O ROTEIRO: UMA INTRODUÇÃO ..................................... 11

2. ESCOLHENDO O TRAJETO: UM POUCO DE TEORIA ...................................... 24

3. PERCORRENDO OS CAMINHOS DA MEMÓRIA ............................................... 41

3.1 A ESCRITA COMO PROVOCAÇÃO DA MEMÓRIA: A ENUNCIAÇÃO ..... 44

3.2 A MEMÓRIA COMO GUIA DE CAMINHOS: O ENUNCIADO ..................... 67

4. CHEGANDO AO DESTINO: CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................... 84

5. BIBLIOGRAFIA: ....................................................................................................... 89

Não existe sentimento, ainda que mais simples, que não guarde virtualmente o passado e o presente do ser que o experimenta.

Henri Bergson Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida.

Clarice Lispector

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1. ESTABELECENDO O ROTEIRO: UMA INTRODUÇÃO

Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu.

Clarice Lispector

Iniciar uma leitura crítica dos livros de Hélia Correia pode ser uma tarefa

perigosa. A escrita da autora exerce tal sedução sobre o leitor que é preciso ter cuidado

para não perder o foco crítico e apenas se deixar levar pelos prazeres da narrativa. Esse

aspecto sedutor, somado à elaboração de universos ficcionais densos e bem construídos,

inclina-nos a concordar que sua obra não “se presta ao trabalho crítico e talvez fosse

mais honesto respeitar a impenetrabilidade de sua escrita e assumir a condição

confortável de leitor deslumbrado” (FIGUEIREDO, 2009, p. 149).

Talvez por esse motivo os romances de Hélia Correia não possuam uma fortuna

crítica tão vasta. Verifica-se que os estudos sobre a obra da autora se voltam mais

freqüentemente para sua produção dramática. Pós-Graduada em Teatro Clássico, Hélia

Correia publicou seu primeiro drama, Perdição, Exercício sobre Antígona, em 1991,

porém, já em 1987, a adaptação de sua novela Montedemo (1983) para o teatro é

considerada por Luiz Francisco Rebello como uma das melhores peças de Portugal em

um ano de “produção dramatúrgica catastrófica.”1

A experiência com o teatro clássico influenciou de forma singular seu modo de

escrever, transformando sua produção artística num espaço de libertação do sentido das

palavras. “Já brinquei muito com a literatura”2, afirma Hélia Correia, reconhecendo que

se servir da linguagem como objeto lúdico torna a escrita um processo muito mais fácil.

A ousadia com a linguagem se perpetua por toda sua obra e sofre influência do teatro

1 REBELLO, Luiz Francisco. “Balanço do ano literário de 1987 em Portugal”. In Revista Colóquio Letras, nº101, mar. 1988, pp. 12-14. 2 RODRIGUES, Ernesto. “Hélia Correia: Marginalidade e Loucura.” In: Revista Colóquio Letras, nº143/144, jan. 1997, p. 234.

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grego, com o qual aprendeu a valorizar a sonoridade das palavras antes de se prender

aos seus significados. Assim sendo, nota-se que a forma de expressividade de Hélia

Correia demonstra “um sentimento muito profundo do ritmo e da palavra, da, mesmo,

tirania daquele sobre a escrita ou desta sobre a prosa” (RODRIGUES, 2000, p. 234).

Como ficcionista, Hélia Correia iniciou sua produção em 1981 com o Separar

das Águas, mas, apenas dez anos depois, sua escrita ganha projeção quando seu

romance A Casa Eterna (1991) recebeu o Prêmio Máxima de Literatura. Com a obra

cada vez mais consolidada, a autora reflete sobre as bases de seu processo criativo:

“Para mim, a única possibilidade de criação é a afirmação da diferença. As duas

possibilidades de afirmação da diferença são a marginalidade ou a loucura. São os

grandes temas dos meus livros” (CORREIA apud PEREIRA, 2006, p. 63). De fato,

verifica-se a recorrência dessas temáticas em muitos de seus livros, como, por exemplo,

em Fascinação (2004), quando resgata e amplia a história da Dama Pé-de-Cabra,

tomando, na contramão da versão original, por personagem principal Dona Sol, a filha

de D. Diogo Lopes, levada embora pela Dama quando esta foge do casamento cristão a

que se submetera. O tema da loucura se faz presente em Bastardia (2005), livro no qual

a autora explora a figura das sereias. Moisés, personagem principal da narrativa, fica

encantado com a idéia da existência de um ser mítico que é metade peixe, metade

mulher. A imagem obsedante das sereias rouba a sanidade do protagonista,

transformando-se em um organismo contra o qual ele não pode lutar: “O mar entrou na

mente de Moisés, onde Deus não lhe dera licença para entrar. (...) Instalou-se e cresceu

como um tumor. E realmente perturbava-lhe a visão, fazendo uma pressão maligna no

seu cérebro” (CORREIA, 2005, p. 21).

A tendência temática acima destacada também está presente na história de uma

jovem bruxa escocesa, de comportamento tão marginal que se assemelha muitas vezes a

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um animal. Essa é Lillias Fraser, personagem principal do romance cujo título carrega

seu nome e sobre o qual nos debruçaremos nessa dissertação. Durante toda a narrativa,

Lillias pouco fala e, apesar de passar por diversas peripécias, é um personagem que se

mantém à margem, pois tem seu destino definido sempre pela decisão alheia. Muitos

motivos explicam o mutismo de Lillias, a começar pelo fato de se mudar para um país

cuja língua é completamente diferente de sua língua materna. Além disso, o medo que

sente do próprio dom de prever a morte ao olhar as pessoas faz com que a menina não

encare ninguém, nunca iniciando um diálogo e respondendo com poucas palavras só

quando solicitada. No entanto, pensamos que esse isolamento de Lillias se deve

principalmente à memória das palavras de Lady Anne MacIntosh que diz ao salvar sua

vida: “Fica calada, ouviste? Nunca fales. Não digas nada” (CORREIA, 2002, p. 39).

Lillias Fraser3, publicado em 2001, rendeu a Hélia Correia o prêmio de ficção

do P.E.N Clube Português e é considerado por muitos seu melhor trabalho ficcional. O

livro conta a história da peregrinação da jovem Lillias Fraser durante um período de 16

anos. A narrativa se inicia em 1746, na Escócia, durante a Batalha de Culloden, através

da qual o exército inglês, chefiado pelo Duque de Cumberland 4, pôs fim às intenções de

Charles Stuart que, apoiado por diversos clãs escoceses, desejava subir ao trono inglês.

Em decorrência dessa batalha, toda a família de Lillias morre, mas a pequena escocesa

se salva graças ao seu dom de prever a morte.

Assustada com a visão que lhe revelou o pai morto, Lillias foge de casa e é

protegida por uma velha misteriosa que a salva da carnificina da batalha. A velha morre

e Lillias, guiada pelo espectro de sua mãe, chega à casa da castelã de Moy Hall, Lady

3 A edição aqui utilizada é: Lisboa, Relógio d’água, 2001. Para as citações do texto, utilizarei LF, seguido do número da página. 4 A autora se equivoca ao afirmar na página 23 que o Duque de Cumberland, William Augustus, era irmão do rei. À época da Batalha de Culloden, o rei da Inglaterra era George II e William Augustus era, na verdade, seu filho.

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Anne MacIntosh, por quem é acolhida. Todavia, a sogra de Anne, Eva MacIntosh, logo

percebe, devido aos olhos intensamente dourados da menina, que ela carregava em si

algo de magia. Temendo um convívio tão próximo com uma bruxa, Eva arruma um

modo de livrar-se de Lillias. Após passar um tempo sob tutela da família Davidson, a

menina é entregue a Frances e Aileen Connelly que estavam de partida para Portugal.

Chegando ao novo país, Lillias não permanece muito tempo na companhia das

Connelly e é abandonada em um convento inglês de Lisboa. É nesse lugar que, ao lado

de sóror Thereza, a menina se sente acolhida e amada. O convívio com as freiras é um

dos momentos mais felizes de sua vida, porém esse período de alegria é interrompido

pela morte de Thereza. Nessa ocasião, Lillias tem mais uma visão que salva sua vida:

ela vê a destruição provocada pelo grande terremoto que atingiu Lisboa em 1755. A

jovem escocesa foge em direção a Mafra e lá conhece a senhora Cilícia. As duas passam

por muitas dificuldades, sem abrigo e comida, e acabam se refugiando por um tempo no

Convento de Mafra que havia sido abandonado por conta do terrível cataclismo que

atingiu Lisboa e seus arredores.

Regressando a Lisboa após o terremoto, as duas passam a viver juntas. A cidade

ainda está completamente destruída e muitos tremores, ainda que em menor escala, se

repetiram ao longo de alguns anos. O Marquês de Pombal comanda a reconstrução da

cidade e os jesuítas perdem cada vez mais espaço na sociedade portuguesa. A senhora

Cilícia descobre o segredo de Lillias justamente quando ela prevê a morte de um dos

jesuítas, o Padre Gabriel Malagrida. Ao invés de afastar a menina por conta do seu dom,

Cilícia pede a Lillias que encontre Jayme, seu filho. Quando enfim ele volta a casa,

Lillias apaixona-se pela primeira vez. No entanto, pouco tempo depois, Jayme resolve

partir e se juntar às tropas militares. Cilícia, não agüentando mais ficar longe de seu

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filho, parte com Lillias atrás dele. Em meio aos conflitos da Guerra Fantástica, nome da

participação portuguesa na Guerra dos Sete Anos, Lillias e Cilícia separam-se.

Lillias conquista a simpatia do chefe das tropas inglesas, o coronel Francis

MacLean, ao se apresentar como Lillian MacLean, nome que ganhara quando deixou a

Escócia em direção a Portugal. Encantado pela presença da jovem que o aproximava de

suas origens, o coronel toma Lillias por sua amante e ela acaba engravidando. Porém,

quando o verdadeiro sobrenome Fraser é revelado, Lillias experimenta mais uma vez a

dor de ser expulsa.

Vagando por Portugal, sozinha, grávida e muito debilitada, Lillias chega

novamente a Lisboa. Sem abrigo, desfalece no meio da rua. O livro termina de forma

surpreendente: Lillias é salva por outra bruxa, Blimunda Sete-Luas, personagem do

livro Memorial do Convento5, de José Saramago, que promete cuidar dela e da criança

que está por vir.

Entendemos que nenhuma expressão artística pode ser estudada sem que se leve

em conta o contexto de sua produção. Por isso, é preciso inicialmente analisar o

momento histórico em que surge a produção literária de Hélia Correia.

O trajeto da literatura portuguesa nos últimos anos do século XX tem como

marco fundamental a Revolução de 25 de Abril de 1974. Esse momento tão importante

na história de Portugal demarca uma renovação nos caminhos literários, que enfim, após

quase 50 anos de ditadura, puderam gozar de plena liberdade. A escassa produção logo

após o fim da ditadura levantou sérios questionamentos sobre a relevância da liberdade

5 Publicado em 1982, Memorial do Convento é um romance que se passa no século XVIII, durante a construção do convento de Mafra. A narrativa acompanha a trajetória de três personagens, Blimunda, Baltasar e o padre Bartolomeu de Gusmão, e a construção da passarola capaz de voar movida pela vontade dos homens. O livro, ao utilizar um pano de fundo histórico, reafirma a tendência dos romances de Saramago, a partir de Levantado do Chão (1980), de apontarem para uma nova “história de portugueses (não mais de Portugal)” (CERDEIRA, 1989, p. 28).

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para a criação literária. Acabara um período de censura que cerceou boa parte da

produção literária de Portugal, afinal, os escritores temiam ser presos ou terem suas

obras apreendidas. Diante da liberdade adquirida, os escritores portugueses deveriam

aprender a lidar com circunstâncias em que a criação não precisava obedecer a

restrições e essa adaptação não ocorreu rapidamente. Sobre essa questão, o crítico

literário Eduardo Lourenço afirma que para as gerações que, durante décadas haviam

sonhado com a revolução, “enquanto acontecimento libertador de pulsões criadoras”, a

Revolução dos Cravos havia chegado realmente tarde. Assim, Lourenço questiona:

Seria que a “liberdade” não era assim tão necessária e estimulante como se apregoava, que a famigerada censura não coarctara os vôos de ninguém, uma vez que com a porta aberta, não surgiam as admiráveis reprimidas obras imaginariamente escritas para a gaveta? (LOURENÇO, 1984, p. 8).

Respeitado o “tempo de aprendizagem”6 de que a literatura portuguesa

precisava, os autores puderam almejar transformações ideológicas, temáticas e formais,

que a nova condição histórica do país passara a permitir. Por esse motivo, a experiência

da escrita é sempre ressaltada pelos teóricos que analisam esse período da literatura

portuguesa. Roxana Eminescu afirma que “o essencial numa narrativa contemporânea é

a aventura da própria escrita, ou de qualquer criação humana” (1983, p. 114), assertiva

que pode ser corroborada pela existência de obras como as de Abelaira, Lídia Jorge,

José Cardoso Pires, Lobo Antunes, Saramago e tantos outros.

Dentre as características da literatura portuguesa contemporânea, há de se

constatar que “a entidade que domina a ficção portuguesa dos últimos 20 anos é a

História” (REIS, 2004, p. 23). No entanto, essa relação da História com a literatura não

é algo novo no contexto literário de Portugal. Basta lembrarmos as Crônicas de Fernão

6 A expressão é de Carlos Reis e se encontra no artigo “A ficção portuguesa entre a Revolução e o fim do século” In: Revista Scripta, Belo Horizonte. V. 8, nº.15, 2004, p.15-45

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Lopes e Os Lusíadas, obras incontornáveis da história da literatura lusitana que, desde o

século XV, apontavam para a linha tênue que separa o fato da ficção. O estabelecimento

do romance histórico oitocentista, que apresentava um certo caráter nostálgico em

relação ao passado e pretendia utilizá-lo como modelo para o presente, também é

exemplo da relação intrínseca mantida entre a realidade factual e a criação literária.

Contudo, é preciso lembrar que, no caso da literatura produzida nas últimas décadas do

século XX, as relações instituídas pelas metaficções historiográficas com a História

diferem daquelas instituídas pelo romance histórico do século XIX. Se muitas vezes este

apostara na matéria ficcional como instrumento de resgate do passado, através da

presença de personagens históricos, a metaficção historiográfica procura problematizar

as relações da História e da ficção, ao crer que muito pouco separa dois campos de ação

que se constroem – e só o são – como discurso. Para Linda Hutcheon, essa nova

abordagem feita pela literatura se deve ao fato de a metaficção historiográfica

incorporar os domínios do histórico e do ficcional. A estudiosa afirma que esse tipo de

romance, através da sua “autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como

criações humanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua

reelaboração das formas e dos conteúdos do passado” (HUTCHEON, 1991, p. 22). A

matéria histórica não se torna apenas mais um legitimador do discurso ficcional, mas

este coloca em xeque o modo pelo qual lidamos com as representações do passado.

Essa interpretação reflete uma tendência reafirmada pela pós-modernidade em

encarar a História como uma construção do homem e por isso reconhece que ela não

pode ser uma verdade absoluta acerca dos acontecimentos passados. O corte

epistemológico que abalou as certezas quanto à cientificidade do fazer historiográfico

deve-se necessariamente aos integrantes da Escola dos Anais. Lucien Febvre, um de

seus fundadores, afirmava que o fato histórico não passava de um pretenso átomo da

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História. Nenhum episódio simplesmente era adicionado à História da humanidade sem

passar pela interferência do homem. Deste modo, o papel do historiador ganhava mais

relevância, uma vez que era um agente histórico, analisando dados, selecionando fatos e

criticando sua matéria de estudo.

A Nova História, herdeira do grupo dos Anais na primeira metade do século XX,

revolucionou o modo de pensar a disciplina ao questionar alguns de seus pressupostos

básicos, dentre os quais se destacam as noções de História oficial e de linearidade. Isso

significa que, além de superada a pretensão de ser a versão verdadeira sobre o passado,

foi também revisada a idéia de que os fatos ocorriam evolutivamente, o que no caso dos

povos ocidentais colocava a tecnologia como referência e considerava as sociedades

primitivas menos evoluídas. A percepção de que a História oficial era baseada em

documentos produzidos por homens tornou possível entender que não existia um

discurso da verdade, mas sim várias verdades. Tal idéia contribuiu imensamente para a

historiografia literária que adotou diretrizes reconhecendo uma nova distribuição

espacial das sociedades. A Nova História compreendeu que a História é construída pelas

classes dominantes, pelos vencedores, relegando ao esquecimento a versão dos

vencidos. Por isso, surgiram vários estudos dando ênfase ao ponto de vista das minorias,

combatendo os discursos generalizantes. A visão de mundo pós-moderna questiona todo

tipo de discurso de caráter totalizador. Assim, não há mais lugar para macro-narrativas,

o que vigora são as microestruturas. Há o surgimento de narrativas de grupos sociais

marginalizados e uma mudança significativa na construção dos protagonistas. Abre-se

espaço para o homem comum se tornar um pequeno herói, mostrando que a História é

também construída por muitos nomes que não ficam nela gravados.

O pós-modernismo enfatiza que se deve ter muito cuidado com a História já que

a principal forma de o homem acessar o passado é por textos ou documentos escritos.

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Como esses documentos foram questionados quanto a sua condição de “verdades

absolutas”, a subjetividade do discurso histórico é reconhecida definitivamente,

tornando muito claras as aproximações entre os textos históricos e literários. Sem o peso

de ser um discurso imperioso sobre o passado, os textos históricos ficam suscetíveis a

questionamentos que apontam para possíveis ficcionalidades em sua composição. Dessa

forma, arriscamos afirmar que uma diferença fundamental entre o discurso da História e

o discurso da literatura é que o primeiro durante muito tempo se quis único e

verdadeiro, enquanto o segundo nunca duvidou de seu libertário caráter ficcional.

Dentre os elementos utilizados para desenvolver o discurso histórico, dá-se um

destaque especial para a memória. Acreditamos que isso se deva ao fato do discurso de

a História trabalhar com a memória em dois sentidos: em um primeiro momento se

utilizando dela para definir-se a si próprio e, posteriormente, no sentido de se tornar um

modo de formação e divulgação da memória coletiva. Verifica-se essa importância

destacada nas palavras do historiador Jacques Le Goff, integrante da terceira geração da

Escola dos Anais, para quem “a memória coletiva não é só uma conquista, mas um

instrumento e um objetivo do poder” (1984, p. 46). A partir dessa reflexão, entendemos

que a memória coletiva é, não só uma forma de construção da História, como também

um instrumento utilizado pela classe dominante de uma sociedade para impor seus

valores e interesses.

A memória, mais do que uma faculdade humana, constituiu durante séculos da

História ocidental uma verdadeira forma de arte. O desenvolvimento da memória como

algo a ser estudado e aprimorado está diretamente ligado a sua relevância para a

Retórica. Cícero em seu tratado sobre Retórica conta uma lenda sobre o poeta grego

Simônides de Ceos, ao qual é atribuída a invenção da arte da memória.

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Simônides havia sido contratado por Scopas, um nobre da Tessália, para fazer

um poema em sua homenagem. Durante um banquete oferecido pelo nobre, Simônides

declamou seu poema, no qual fazia também uma homenagem aos deuses gêmeos Castor

e Pólux. Mesquinhamente, Scopas só pagou metade do preço acordado pelo poema e

disse a Simônides que cobrasse o resto dos deuses a quem ele havia homenageado. O

poeta então foi avisado que dois jovens o esperavam do lado de fora e deixou o

banquete momentaneamente. Ao chegar do lado de fora, Simônides percebeu que

ninguém o esperava, entretanto, nesse ínterim, o teto do salão desabou matando todos os

que estavam do lado de dentro. Os mortos haviam sido completamente desfigurados,

impossibilitando o reconhecimento dos corpos pelos familiares. Simônides, porém, foi

capaz de reconhecer os corpos ao lembrar-se do lugar em que cada um dos integrantes

do banquete estava sentado. Após esse episódio, Simônides constata o valor de

desenvolver uma memória artificial.

Antes mesmo de as fontes latinas destacarem o valor do estudo da memória, na

Grécia Antiga essa capacidade humana já era bastante estimada. Primeiramente, não nos

esqueçamos de que apesar de ser explorado por Cícero, o mito de Simônides é,

originalmente, grego. Além disso, é preciso ressaltar a importância de Mnemosine,

deusa da memória, na cultura grega. É curioso notar que Mnemosine era mãe das

musas, criaturas inspiradoras da arte, o que pode ser um modo de pensar que todas as

artes estão, de alguma forma, ligadas à memória. Além disso, destacamos a

interpretação de Aristóteles, para quem a memória e a imaginação pertenciam à mesma

parte da alma e o desenvolvimento do pensamento dependia fundamentalmente dessas

duas faculdades, pois não seria possível pensar sem utilizar imagens mentais

(imaginação), que seriam constituídas a partir de impressões sensoriais (registradas pela

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memória). Aristóteles, assim como Platão, via a memória como uma parte da alma

humana.

Sem dúvida, é com o surgimento da escrita que o homem muda radicalmente sua

forma de lidar com as memórias coletiva e artificial. Quanto à memória coletiva, o

registro escrito permitiu o armazenamento de informações, implicando em

transformações na sociedade. A fim de elucidar esse processo, Jacques Le Goff, em um

artigo sobre a Memória7, destaca que na sociedade grega arcaica, ágrafa, existia uma

função social muito importante desempenhada pelos mnemones. Eles eram responsáveis

por guardar o passado e “andavam pelas cidades como magistrados encarregados de

guardar em sua memória o que é útil em matéria religiosa e jurídica. Com o

desenvolvimento da escrita estas ‘memórias vivas’ transformavam-se em arquivistas”

(LE GOFF, 1984, p. 20).

Durante a Idade Média, a difusão do cristianismo como religião dominante no

ocidente provoca também muitas mudanças na memória coletiva. Lembrar-se do

passado para reafirmar e garantir a transmissão dos valores e ensinamentos de uma

crença é essencial, elevando, assim, a importância da memória em uma religião que tem

“necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental” (LE GOFF, 1984, p. 24).

Há também, com o domínio do cristianismo, o desenvolvimento de uma memória dos

mortos. No século VIII, surgem nas Igrejas os chamados libris memorialis, nos quais

eram inscritos os nomes dos benfeitores de uma comunidade que haviam morrido e que

deveriam ser objeto das orações de fiéis. Em oposição, não se podia escrever nada em

memória dos excomungados.

7 Refiro-me ao artigo “Memória”. In: Enciclopédia Einaudi. V. 1. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984.

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O advento da imprensa contribui em larga escala para o declínio da arte da

memória. Afinal, a importância de uma memória bem treinada foi diminuindo cada vez

mais com o surgimento de muitos registros que, de certa forma, a substituíam. A

imprensa não só ampliou a possibilidade de armazenamento do saber, mas também

contribuiu de forma decisiva para a sua propagação. Essa mudança abriu caminho para a

especialização do conhecimento, pois era necessário reconhecer que “a memória

coletiva tomou, no século XIX, um volume tal que se tornou impossível pedir à

memória individual que recebesse o conteúdo das bibliotecas” (LEROI-GOURHAN

apud LE GOFF, 1984, p. 40). A literatura, por exemplo, teve um crescimento muito

grande a partir da segunda metade do século XVIII, chegando ao auge da difusão do

romance no século XIX. Posteriormente, na segunda metade do século XX, a memória

eletrônica se torna uma ferramenta que revoluciona a forma de armazenamento de

informações de um modo antes inimaginável.

Aqui, faz-se necessário, esclarecer uma pequena diferenciação entre três termos

explorados nesse trabalho. Chamaremos de memória artificial a técnica de

aprimoramento mnemônico, buscada pela arte da memória. Outros dois tipos de

memória serão mais recorrentemente utilizados: a coletiva e a individual. Enquanto a

memória coletiva é um aspecto mais sociológico e está ligada às raízes e tradições de

um povo, a memória individual é um aspecto psicológico e é parte integrante da psique

do sujeito. Claro está que essa divisão não é absoluta e que esses tipos de memórias se

interligam em diversos aspectos.

Foram muitas as mudanças com o trato da memória no decorrer da História do

homem. O breve resumo apresentado não abarca todos os pontos desse fascinante

assunto, contudo, demonstra como uma faculdade inerente ao ser humano adquiriu

tamanha importância individual e social ao longo dos séculos.

23

Esta dissertação pretende realizar uma leitura do romance Lillias Fraser

estabelecendo um percurso através do conceito de memória. A análise aqui apresentada

se divide em duas vias de leitura: observaremos a memória como um elemento

norteador da narrativa tanto no nível do enunciado como no nível da enunciação.

Pensamos que a memória nos fornece um fio condutor para atravessar a narrativa de

Hélia Correia e percorrer a história de Lillias Fraser.

24

2. ESCOLHENDO O TRAJETO: UM POUCO DE TEORIA

Não há leitura literária que não atualize também as significações de uma obra, que não se aproprie de uma obra, que até mesmo a traia de maneira fecunda. (Antoine Compagnon)

Nesse capítulo pretendemos discutir o conceito de memória, mostrando as bases

teóricas que guiaram nossa leitura do romance de Hélia Correia. A abordagem do tema

visa a estabelecer as relações e os pontos em que História, literatura e memória se

entrelaçam, tornando-se instrumentos fundamentais da construção narrativa. No entanto,

é importante ressaltar que não se pretende apenas usar conceitos teóricos como forma de

verificar se o livro Lillias Fraser se encaixa ou não em determinados pressupostos. A

teoria será entendida como algo que sucede às obras de arte e não ao contrário, ou seja,

aspectos teóricos não podem ser condições ou regras para enquadrar o fazer artístico.

Entendemos que a memória é parte fundamental no desenvolvimento dos

discursos da História e da literatura de um povo, influenciando de forma singular sua

identidade. A idéia de que a memória é uma das bases de nossa identidade é defendida

por Jacques Le Goff ao afirmar que “A memória é um elemento essencial do que se

costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja base é uma das atividades

fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (1984, p.

46). A frase de Le Goff deixa claro que a memória é elemento constitutivo de uma das

questões mais inquietantes para o ser humano: a identidade.

Retomando o que foi introduzido no capítulo anterior, é preciso lembrar que

antes do surgimento da Nova História, a historiografia tradicional ocupava-se, por um

lado, em construir uma História narrativa, e por outro, de erguer uma História de

acontecimentos, ignorando o “teatro de aparências que mascara o verdadeiro jogo da

25

História que se desenvolve nos bastidores e nas estruturas ocultas em que é preciso

detectá-la, analisá-la e explicá-la” (LE GOFF apud BURKE, 1997, p. 56), o que

segundo Le Goff era essencial para o entendimento das características particulares de

cada sociedade.

Os trabalhos da Escola dos Anais, por meio da abertura de novas vertentes de

estudos, ampliaram as possibilidades da memória coletiva. Historiadores como Georges

Duby e Philippe Ariès dedicaram-se a estudar a História das mentalidades, explorando o

comportamento das sociedades que antes era visto como insignificante. Ariès chegou a

ser muito criticado por diversos historiadores por não utilizar estatísticas em seus

trabalhos, mas buscar evidências na arte e na literatura.

Uma das contribuições mais importantes da Nova História foi a ampliação do

que era considerado documento histórico. Se antes, a historiografia era fundada em

documentos escritos, passou a ser baseada em discursos de todos os tipos: escavações

arqueológicas, documentos orais, fotografias, filmes, podendo assim recuperar o

ensinamento de Marc Bloc - um dos fundadores da Escola dos Anais-, que acreditava

que: “A única História Verdadeira, que só pode ser feita por ajuda mútua, é a História

universal” (BLOC apud BURKE, 1997, p. 85).

A historiografia se libertou do que Michel Foucault apontava ser sua principal,

porém redutora, função de “memorizar os monumentos do passado e transformá-los em

documentos” (FOUCAULT apud LE GOFF, 1984 p. 217) e pôde, enfim, incorporar a

subjetividade para dentro do discurso histórico. Do mesmo modo que a História

reconheceu que havia muito de ficção em seu discurso, a literatura desenvolveu novos

modos de lidar com a História, diversificando sua utilização como matéria para ficção.

As experiências literárias do século XX muitas vezes utilizam o conhecimento

26

historiográfico para estabelecer uma reescritura da História, desejando ser versões

possíveis e não verdades absolutas.

Assim como na consolidação da História, as manifestações da memória também

desempenham um papel muito importante no desenvolvimento do fazer literário: “o

grande arsenal do romancista é a memória”, afirmou François Mauriac. As palavras do

escritor francês são destacadas por Antonio Candido no seu artigo “A personagem de

Ficção”, onde complementa a idéia com a seguinte frase: “Cada escritor possui suas

fixações da memória, que preponderam nos elementos transpostos da vida” (2007,

p. 67). Dessa forma, nota-se que, direta ou indiretamente, sempre há a presença da

memória individual do escritor em suas obras. Além de Mauriac, Bakhtin também

afirma a importância da memória na produção literária e enfatiza que esse aspecto

acompanha a literatura desde os tempos mais antigos, afirmando que é “a memória, e

não o conhecimento, a principal faculdade criadora e a força da literatura antiga”

(BAKHTIN, 1988, p. 407). Portanto, destaca-se o papel da memória em duas vertentes

da humanidade que tanto se aproximam: a História e a literatura.

Lillias Fraser é uma narrativa que nasce de uma provocação da memória, como

nos conta a narradora no capítulo II do livro. Ela descreve que visitou o campo da

Batalha de Culloden em 1999 e o que a impressionou era o encantamento dos turistas

americanos que: “percorriam toda a extensão assinalada, procurando marcas do clã de

onde pensavam descender. Estavam dispostos a fantasiar, a pagar qualquer preço por

um pouco de História, que é aquilo que lhes falta” (LF, p. 13). Por meio dessa

digressão, a narradora ressalta a importância do conhecimento do passado e da História

para a formação da identidade de um povo.

Contudo, sua condição não é a mesma dos americanos, pois ela não é apenas

uma turista. Sua memória individual é acionada através de uma percepção da memória

27

coletiva, que pressupõe estar presente no local que visitava. Seu intuito não é

simplesmente tornar a História um ato turístico e sim problematizá-la. Por esse motivo,

sua passagem pelo campo de Culloden difere em muito da dos outros visitantes. Os

turistas não retêm a memória do lugar, estão ali para conferi-la, e no caso dos

americanos, tentando de algum modo se encaixar nela. É dessa percepção que surge o

discurso irônico da narradora sobre os americanos, pois diferentemente deles, ela não

estava naquele local apenas para conferir a História, por trás da sua visita há um

trabalho de escrita a ser feito. Sentindo-se alheia à experiência vivida pelos turistas, a

narradora afirma:

Senti-me exausta por andar de pedra em pedra sem partilhar a alegria americana. Acho que o alarme que corria o campo era audível a gente como eu, puros visitantes que não iam à espera de o ouvir. Por muito fundas que tivessem as raízes, na formação das ervas não havia um átomo de sangue derramado. Passara muito tempo. E no entanto alguma coisa que rangia, um desespero, cortava o ar e cintilava à luz de Abril (LF, p. 17).

A narradora é instigada por algum resquício da História que aquele cenário ainda

guardava, apesar de se ter passado muito tempo desde a Batalha de Culloden. Esse

resquício “que rangia, um desespero, cortava o ar e cintilava a luz de Abril” é a

memória do acontecimento que a incita a contar a história de Lillias. “Passara muito

tempo” e o que destaca o campo de Culloden é a memória conservada em torno dele, já

que “na formação das ervas não havia um átomo de sangue derramado.”

A narrativa de Lillias Fraser é uma ficção que se pensa como tal e também se

apropria de acontecimentos históricos, por isso acreditamos poder analisá-la a partir do

conceito de metaficção historiográfica, defendido pela professora canadense Linda

Hutcheon. Entendemos que a metaficção historiográfica está diretamente relacionada

28

com uma nova perspectiva de construção da memória coletiva, uma vez que promove

uma reelaboração da relação da História com a ficção.

Em seu livro, Poética do Pós-Modernismo (1999), Linda Hutcheon afirma que

tanto a História como a ficção são discursos construídos pelo homem, portanto,

carregados de subjetividade. Assim, a literatura e a História são definitivamente

aproximadas, quebrando de vez a idéia de que a primeira se compunha de textos

verdadeiros e a segunda, de textos falsos, como nos explica Linda Hutcheon:

Como registro da realidade do passado, a história, segundo essa visão, costuma ser considerada como radicalmente incompatível com a literatura, cujo caminho para a “verdade” (considerada como provisória e limitada ou como privilegiada e superior) se baseia em seu status autônomo. Essa é a visão que institucionalizou a separação entre estudos literários e históricos no campo acadêmico (1999, p. 129).

Claro está que no campo acadêmico ainda há especificidades das disciplinas que

não podem ser ignoradas. Porém, enquanto a História percebeu que não existe apenas

uma verdade, mas sim diversas verdades, a literatura aprendeu uma nova forma de

utilizar o discurso histórico. As metaficções historiográficas não buscam base apenas na

chamada História oficial, elas se aproveitam da falta de algumas respostas históricas e,

em muitos casos, também se utilizam de mitos e fatos comprovadamente não verídicos

como matéria para seu desenvolvimento. Mais uma vez é ressaltada a idéia de

construção do passado reconhecendo como construtos humanos todas as formas que

temos de acessá-lo. Logo, verdade e falsidade não são os termos adequados para se

discutir História e Literatura.

Muitas narrativas pós-modernas objetivam que o leitor se questione sobre a

versão comumente aprendida nos livros de História. Linda Hutcheon afirma que as

metaficções historiográficas trabalham nesse sentido, pois:

29

A função da reunião entre o historiográfico e o metaficcional em grande parte da ficção contemporânea (...) é conscientizar o leitor sobre a distinção entre os acontecimentos do passado que realmente ocorreu e os fatos por cujo intermédio proporcionamos sentido a esse passado, por cujo intermédio presumimos conhecê-lo (1999, p. 281).

Deste modo, é o leitor que dá sentido ao passado por intermédio dos discursos a

que tem acesso. Faz-se necessário não esquecer que “a ficção e a história são duas

formas de narrativa que são sistemas de significação em nossa cultura” (HUTCHEON,

1999, p. 149). Revela-se, então, outra aproximação entre literatura e História, que reflete

a importância do contexto na forma de interpretá-las. Se lembrarmos que todo discurso

é político e, por isso, reflete necessariamente uma ideologia, entenderemos que a ficção

e a História se apresentam como elementos que ganham significado a partir do contexto

em que estão inseridos. Nesse sentido, é preciso ressaltar a abordagem da teoria de

Hutcheon acerca da intertextualidade. Sobre as aproximações entre História e literatura

a autora afirma:

Considera-se que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de qualquer verdade objetiva: as duas são identificadas como construtos lingüísticos, altamente convencionalizados em suas formas narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua própria textualidade complexa. Mas esses também são os ensinamentos implícitos da metaficção historiográfica. Assim como essas recentes teorias sobre a história e a ficção, esse tipo de romance nos pede que lembremos que a própria história e a própria ficção são termos históricos e suas definições e suas inter-relações são determinadas historicamente e variam ao longo do tempo (1999, p. 141).

Novamente retoma-se a idéia de que não só a História é matéria para a ficção,

mas também a ficção está radicada nos discursos da História. Entretanto, o que é

interessante notar acerca dessa reflexão de Hutcheon é de que maneira se dá nosso

entendimento sobre os textos. O passado é sempre construído através dos olhos presente

30

e por esse motivo está sujeito sempre a novas interpretações. Além disso, a memória

nos permite aproximar as narrativas em uma relação intertextual com textos históricos

ou literários. Concordamos com a professora canadense quando ela afirma que: “É

apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e

importância” (1999, p. 166).

Todo processo interpretativo deve partir de uma análise conjunta de texto e

contexto, sem nunca subjugar um ao outro. Por esse motivo, a leitura aqui proposta

pretende entender tanto a literatura como a História a partir de seus aspectos sociais,

seguindo a linha de Antonio Candido para quem a obra surge na confluência da

iniciativa individual e de condições sociais. Candido chama a atenção para o papel do

público, que normalmente segue condicionamentos do meio em que se desenvolve. É o

público que dá valor e sentido a obra e por esse motivo é extremamente importante

como fator de ligação do autor com sua própria criação. A arte é social em dois

sentidos: no que ela expressa de social em sua constituição e na sua influência sobre os

indivíduos, de modo a alterar ou reforçar certos valores sociais. Para Antonio Candido,

“a criação literária corresponde a certas necessidade de representação do mundo” (2007,

p. 65). Verifica-se nas palavras do autor o que ele destaca como um dos principais

estímulos da criação literária:

A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e um elemento de vinculação à realidade natural ou social (2007, p. 63).

As artes exprimem referências necessárias às solicitações do meio em que estão

inseridas. A distinção do crítico é clara, a arte é uma transposição do real para o

31

ilusório. O ponto de vista de Antonio Candido também pode ser encontrado nos estudos

de E.M. Forster sobre a construção de personagens:

As pessoas de um romance podem ser completamente compreendidas pelo leitor, se assim o desejar o romancista, sua vida interior pode ficar tão exposta quanto a exterior. E é por isso que elas freqüentemente parecem mais bem delineadas do que os personagens da história, ou mesmo do que nossos amigos, tudo o que poderia ser dito a respeito dessas pessoas nos foi dito (2008, p. 72).

A partir das palavras do autor inglês, concluímos que não podemos apreender

uma pessoa totalmente a menos que ela seja um ser construído ficcionalmente. Mesmo

os personagens históricos, que sabemos terem existido em carne e osso, são, na verdade,

por meio da construção narrativa, seres ficcionais. Retomamos, assim, a idéia da

subjetividade do discurso histórico e duvidamos novamente das verdades

inquestionáveis da História. Forster complementa essa idéia da seguinte forma:

Nos romances, porém, conseguimos conhecer as pessoas completamente, e, além do prazer normal da leitura, podemos encontrar aqui uma compensação pela falta de clareza da vida. Nesse sentido, a ficção é mais verdadeira do que a história, porque ultrapassa as evidências, e todos nós sabemos por experiência própria que existe algo além das evidências (2008, p. 87).

A arte, muitas vezes, preenche anseios que a realidade não é capaz de suprir.

Certas experiências carregam uma carga tão forte de emoção que o sujeito tem a

sensação de que aquilo extrapola o real. Em situações de grande dor, por exemplo, é

comum que as pessoas sintam um grande peso e forte necessidade de se anestesiar para

não lidar com o sentimento. Muitas vezes a realidade escapa à lógica humana, se

apresentando de forma tão mirabolante que se duvida da veracidade do que ocorre. Há

no homem uma dificuldade enorme de entender que a vida muitas vezes supera a ficção.

A literatura reflete uma tentativa de apreensão e representação da realidade. A

linguagem é uma das principais formas através da qual o homem tenta apreender o

32

mundo. Através do discurso ele impõe uma ordem lógica à existência, nomeia fatos,

sentimentos, objetos e pessoas, delimitando-os, como se os significantes antecedessem

os significados. Porém, muitas vezes o mundo demonstra sua “carnalidade”, subverte a

lógica forjada pelo homem, deixando o sujeito fragilizado diante da sua presença.

Se a linguagem é uma forma de o sujeito lidar com a realidade, há uma forte

aproximação entre a literatura, arte que se alimenta da linguagem, e a busca diária do

sujeito por compreender a si mesmo e àquilo que o circunda. Mas essa ligação não é

novidade, Freud já reconhecia a relação íntima da literatura com a psicanálise, chegando

a afirmar que a ficção é o modo pelo qual o homem se constitui. Portanto, não é gratuito

que a mais introspectiva das artes influencie na busca pelo conhecimento do

inconsciente do sujeito.

A consolidação da memória através da linguagem traz consigo diversos

desdobramentos no âmbito social. Sobre essa associação, Pierre Janet faz uma reflexão

muito interessante afirmando que:

O ato mnemônico fundamental é o comportamento narrativo que se caracteriza, antes de mais nada, pela sua função social, pois que é comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo (JANET apud LE GOFF, 1984, p. 12).

Esta reflexão nos leva a pensar que toda narrativa, ficcional ou histórica, possui

uma função social de afirmação da memória. A importância dessa função social é

acentuada, pois a transmissão da memória é uma forma de representação de fatos a

outrem que não pôde acessá-los diretamente. Assim, as narrativas são a maneira pela

qual a memória se difunde na sociedade. Atentando para o fato de que essa

comunicação só se pode dar através da linguagem, Jacques Le Goff, em um estudo

33

sobre memória, justapõe as idéias de Janet ao seguinte pensamento do filósofo francês

Henri Atlan:

A utilização de uma linguagem falada e depois escrita, é de fato, uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso pode sair dos limites físicos do corpo para estar entreposta quer nos outros quer nas bibliotecas (ATLAN apud LE GOFF, 1984, p. 12).

As palavras de Janet e Atlan nos levam a entender que a consolidação da

memória, não apenas se dá através de narrativas, como encontra na sua forma escrita um

meio de tornar-se mais forte, capaz de difundir-se não só pela sociedade, mas também

através dos anos. Parece-nos inequívoco, então, que a memória seja elemento

fundamental da identidade de um povo e ligue-se intrinsecamente a sua História, bem

como a sua literatura.

Até esse ponto, abordamos os teóricos que trabalham com o conceito de

memória coletiva e sua relação com aspectos sociais. Como nossa pretensão de leitura é

abordar a memória no nível não só da enunciação, mas também do enunciado,

exploramos algumas idéias do filósofo francês Henri Bergson, a fim de analisar a

questão da memória na formação do sujeito.

Bergson defendia a idéia da liberdade humana negando o determinismo

cientificista, porém sem tender para um espiritualismo vago. Seus trabalhos adquiriram

grande notoriedade não só na França, mas também por toda a Europa, sendo em 1928

agraciado com o Prêmio Nobel. As idéias de Bergson sobre a memória transpuseram os

limites da filosofia e influenciaram diversos artistas, como Paul Valéry, Marcel Proust e

Henri Matisse. As análises do filósofo francês acerca do valor das lembranças para o

sujeito nos levam a acreditar que não adianta valer-se da memória apenas para remontar

o passado e refazer caminhos, a importância das experiências passadas encontra-se nas

34

sensações que guardamos daquilo que vivemos. Nesse sentido, entendemos que a

memória sensorial adquire uma importância diferenciada na vida do sujeito e que

apenas a memória factual não é o suficiente para abarcar todo aprendizado das

experiências pelas quais passamos ao longo da vida.

Um dos conceitos mais importantes da filosofia bergsoniana é o de duração. Para

ele, duração não é o período que compreende o início e o fim de certo fato, mas sim o

tempo contínuo na consciência do indivíduo criado pela interpenetração dos momentos.

Deste modo, a duração compreende o passado e o presente, mas não em sentido linear

de sucessão de fatos. A duração é indivisível, um estado da consciência, e é muito

importante que se entenda esse conceito para que se compreenda a idéia de memória

defendida por Bergson e amplamente desenvolvida em seu livro Matéria e Memória

(1896). O conceito de duração é esmiuçado pelo professor de filosofia Jean Louis

Vieillard-Baron no livro8 em que estabelece as principais teorias da filosofia

bergsoniana. Vieillard-Baron nos explica que a duração nega a supervalorização do

momento presente, pois “a realidade do espírito está no passado e no futuro, o presente

não é senão um corte instantâneo, nele próprio destituído de sentido. O passado é a

dimensão própria do espírito, ele abre o futuro” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 97).

Com o auxílio do estudioso francês, entendemos que para Bergson, o presente só tem

sentido para a consciência quando ele tiver a possibilidade de se tornar passado. Se

vivenciarmos algo que não retemos em nossa memória, essa experiência perde, de certa

forma, seu valor. “O nosso presente só tem sentido espiritual porque ele é duplicado por

seu próprio passado. (...) De fato, a experiência que vivemos diariamente é a

prolongação do passado no presente” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 98).

8 VIEILLARD-BARON, Jean Louis. Compreender Bergson. Trad. CAMPOS, Mariana de Almeida. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

35

Em Matéria e Memória, Bergson reafirma a realidade do espírito e da matéria,

buscando demonstrar de que forma a memória funciona como ponto de interseção entre

corpo e a alma.

Se a matéria não se lembra do passado, é porque ela o repete sem cessar, porque, submetida à necessidade, ela desenvolve uma série de momentos em que cada um equivale ao precedente e pode deduzir-se dele: assim, seu passado é verdadeiramente dado em seu presente. Mas um ser que evolui mais ou menos livremente cria a todo instante algo de novo: é portanto em vão que buscaria ler seu passado em seu presente se o passado não se depositasse nele na condição de lembrança (2006, p. 262).

A partir da afirmação de Bergson, entendemos que o indivíduo constantemente

atualiza seu passado ao se deparar com novas situações. A percepção frente a novos

fatos é ao mesmo tempo impulso da matéria e alimento do espírito. É importante

ressaltar que Bergson não utiliza espírito com uma denotação religiosa. Em seus estudos

a alma é utilizada como um termo que reflete a personalidade de cada indivíduo. Sobre

esse aspecto também é de grande valia a explanação de Vieillard-Baron:

A noção de alma designa essa memória que é a própria consciência do homem. Segundo o nível em que o eu evolui, a memória (ou a alma) materializa-se, encarnando-se mais ou menos corporalmente. Cada grau de materialização corresponde a uma perda de liberdade, a ação automática sendo a mais material e portanto a mais determinada pelas causas anteriores (2007, p. 25-26).

A liberdade, tema muito caro à filosofia bergsoniana, é entendido como um ato

que emana da alma inteira.

Também em Matéria e Memória, Bergson procura estabelecer diferenças

fundamentais entre percepção e lembrança. Ele destaca que enquanto a percepção é

provocada por um objeto presente, a lembrança é a representação de um objeto ausente,

portanto as duas cognições humanas possuem uma diferença de natureza e não de

intensidade. Para Bergson, o corpo é um instrumento apenas de ação, sendo incapaz de

36

explicar uma representação e a percepção é uma representação selecionada pelo corpo

para a ação. Porém, a interpretação dessas ações só pode ser feita pela memória,

aumentando, dessa forma, a importância do passado para o presente de um indivíduo.

Assim, Bergson conclui:

Mas a verdade é que nosso presente não deve se definir como o que é mais intenso: ele é o que age sobre nós e o que nos faz agir, ele é sensorial e é motor – nosso presente é antes de tudo um estado do nosso corpo. Nosso passado, ao contrário, é o que não age mais, mas poderia agir, o que agirá ao inserir-se numa sensação presente da qual tomará emprestada a vitalidade. É verdade que, no momento em que a lembrança se atualiza passando assim a agir, ela deixa de ser lembrança, torna-se novamente percepção. Compreende-se então por que a lembrança não pode resultar de um estado cerebral. O estado cerebral prolonga a lembrança, faz com que ela atue sobre o presente pela materialidade que lhe confere, mas a lembrança pura é uma manifestação espiritual. Com a memória estamos efetivamente no domínio do espírito (2006, p. 281).

O que Bergson enfatiza é que o corpo, mais especificamente o cérebro, não é

responsável pelo armazenamento da memória, ele apenas detém estruturas através das

quais podemos acessar determinadas lembranças. A memória em si está para além da

matéria. Segundo o filósofo, a memória não seria um movimento de regressão do

presente para o passado, mas sim um movimento de projeção do passado para o

presente:

A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado para o presente. É no passado que nos colocamos de saída. Partimos de um “estado virtual”, que conduzimos pouco a pouco, através de uma série de planos de consciência diferentes, até o termo em que ele se materializa na percepção atual, isto é, até o ponto em que ele se torna um estado presente e atuante, enfim, até esse plano extremo de nossa consciência em que se desenha nosso corpo (2006, p. 280).

Assim sendo, mesmo que a memória esteja no âmbito do espírito, ela sempre

influenciará nos movimentos da matéria. Não obstante, Bergson ainda vai além para

37

explicar o modo pelo qual atribuímos sentido a uma experiência. Para ele, um estado da

consciência atual é capaz de projetar no passado seus próprios antecedentes:

Completar uma lembrança com detalhes mais pessoais não consiste, de modo algum, em justapor mecanicamente lembranças, mas em transportar-se a um plano de consciência mais extenso, em afastar-se da ação na direção do sonho. Localizar uma lembrança não consiste também em inseri-la mecanicamente entre outras lembranças, mas em descrever, por uma expansão crescente da memória em sua integralidade, um círculo suficientemente amplo para que esse detalhe do passado apareça (2006, p. 282).

Esclarece-se, então, uma metáfora recorrentemente utilizada em Matéria e

Memória: “É preciso que o passado seja desempenhado pela matéria e imaginado pelo

espírito.” A memória seria um ponto de ligação entre o corpo e a alma.

A construção da memória coletiva e os mecanismos da memória individual serão

as duas principais direções que seguiremos ao longo dessa leitura de Lillias Fraser. A

escolha desse percurso inicia-se com um verdadeiro encantamento sobre o tema, mas

tem bases, sobretudo, no reconhecimento de que a memória é um elemento constitutivo

essencial tanto do sujeito, como das sociedades. Acreditamos na importância basilar do

papel da História e da literatura na composição da memória de um povo e que, por

conseqüência, esses dois fatores são partes integrantes do processo de consolidação da

identidade cultural, uma vez que surgem da sociedade e a ela regressam.

Assim sendo, achamos pertinente trabalhar a questão da memória em um livro

que se utiliza de fatos históricos para narrar a vida de uma pequena bruxa órfã, que é

levada para fora de seu país, uma vez que a memória individual se faz muito presente

em indivíduos que, assim como Lillias, são obrigados a deixar sua terra natal e passam

por experiências traumáticas. Além disso, a utilização dos fatos históricos não só

explora a questão da memória coletiva consolidada, como também pretende, de certo

modo, problematizá-la.

38

Utilizaremos os conceitos expostos para entender como a construção narrativa

se utiliza da memória coletiva e como a memória individual da personagem é

determinante no modo pelo qual ela lida com os acontecimentos. Optamos por realizar

uma crítica temática sobre a memória, nos moldes defendidos por Leyla Perrone-

Moisés. Em seu livro Falência da Crítica (1973), ela argumenta que o tema pode ser

utilizado como guia de leitura de duas formas diferentes:

O tema de uma obra literária apresenta pois um duplo aspecto: ele pode ser considerado como fonte, ponto de partida, ou como formador e modalizador das estruturas da obra. Assim, quando procuramos o tema de uma obra, podemos chegar a seu ponto de partida- as imagens obsessivas de um autor ou de uma época, ou ao seu ponto de chegada- o modo como o tema se apresenta numa obra particular, como ele a estrutura e a modula, como, enfim, ele ajuda a fazê-la. O primeiro caminho nos afasta da obra, considerada então como transparente, como meio de chegar a outra coisa. O segundo nos permite uma crítica imanente, na qual o elemento referencial pode ajudar à compreensão da estrutura da obra e de seu funcionamento (1973, p. 105).

Não pretendemos considerar a obra “transparente”, como apenas um meio de se

chegar a uma interpretação que coloque o texto literário em segundo plano. Por

conseguinte, descartamos o primeiro caminho apresentado por Leyla Perrone-Moisés e

elegemos o segundo como um meio de contribuir para a compreensão do corpo textual.

Concordamos com Perrone-Moisés quando ela assegura que “o tema não preexiste à

obra, ele se configura à medida que a obra se faz” (1973, p.113). Entendido dessa

forma, o tema não reduz a interpretação literária a um único aspecto. Pelo contrário, ele

amplia as possibilidades de leitura de uma obra. É desse modo que enxergamos a

memória na construção narrativa de Lillias Fraser e pretendemos assim utilizar os

conceitos de memória aqui apresentados para explorar um dos vieses possíveis para a

leitura da obra.

39

As relações de História, literatura e memória já foram averiguadas em outros

estudos críticos, como por exemplo, nos de Teresa Cristina Cerdeira que afirma:

“Grande parte do romance português do século XX se quer documental, pretende

repensar o homem em seu devir histórico e quer fingir, enquanto arte, um compromisso

com a veracidade” (1989, p. 27). Muitos romances contemporâneos são construídos

como metaficções historiográficas, revelando também em Portugal a influência pós-

moderna no trato da História pela literatura. Em seu livro José Saramago entre a

história e a ficção: uma saga de portugueses (1989), Cerdeira elege José Saramago para

trabalhar com esse novo modo de apreensão da História pela literatura. A autora explica

o entrelaçamento da História e da ficção da seguinte forma:

Se a história tende assim para o literário, não é menos evidente que a ficção, de modo geral, sonhe penetrar nos domínios seguros da verdade histórica. É na medida em que consegue criar a ilusão da verdade que o discurso ficcional cria a armadilha à qual o leitor não escapa, já que acrescenta ao fascínio do belo o terreno firme do verdadeiro, que ilusoriamente é capaz de criar (1989, p. 24).

A narrativa de Lillias Fraser é também constituída nesse jogo entre verdade

histórica e ficção literária. Hélia Correia elege um personagem que se mantém à

margem da História Oficial para apresentar através das infinitas possibilidades

ficcionais uma outra versão da História. Entendemos que Hélia Correia segue o projeto

de Saramago de revisitar a História ao apresentar um narrador que “acredita na função

redentora da História se ela nos conduz ao aprendizado” (CERDEIRA, 1989, p. 266).

Além disso, assim como em muitas narrativas saramaguianas, no romance de Hélia

Correia também temos um personagem principal ocupando um lugar marginalizado

dentro da estrutura social que o universo ficcional recria. Deste modo, o tempo

referencialmente histórico se torna também lugar dos “pequenos personagens”

relegados ao anonimato em uma versão inflexível da História, pois na ótica de

40

Saramago, os verdadeiros heróis são “braços anônimos”9. Lillias é mais um desses

braços anônimos que ajudaram a construir a História, mas foram apagados da memória

coletiva.

Acompanhar a trajetória de Lillias é acreditar “no poder da ficção de preencher

os ‘silêncios’ da história, fazendo emergir, através da palavra poética, uma história

‘calada’ pela força alienante do poder repressor” (CERDEIRA, 1989, p. 28).

Conhecendo os silêncios da história, mesmo que através do texto literário, as vozes

históricas se multiplicam, como também as possibilidades da memória.

9 A expressão é de Maria Alzira Seixo em O essencial sobre Saramago (1987, p.42).

41

3. PERCORRENDO OS CAMINHOS DA MEMÓRIA

Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado. Recordo outro ouvir-te. Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti. Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora. Fernando Pessoa

Ao descrever uma história, fazemos mais do que apenas reviver seus fatos

através da memória. A transformação da memória em linguagem pode favorecer o

entendimento dos fatos, contudo, pode também provocar o efeito contrário. O ponto de

vista do presente sempre influencia na interpretação de fatos passados, de forma até

mesmo a modificá-los. A linguagem exige que a memória se apresente de forma lógica

e, mais especificamente, a linguagem escrita impõe à memória uma reflexão necessária

ao ato de escrever. Essa idéia é defendida nas palavras de Alfredo Bosi:

Os fatos se passam uns depois dos outros. Para contá-los, isto é, narrá-los, é preciso também contá-los, isto é enumerá-los. Contar é narrar e contar é numerar. Contar exige que se digam o ano, o dia, a hora em que o fato se deu. O ato de narrar paga tributo ao Deus Cronos (2006, p. 20).

Essa relação da memória com a escrita foi o que motivou a escolha do poema

de Fernando Pessoa como epígrafe deste capítulo. Podemos também afirmar que o jogo

42

de sentimentos entre os tempos passado e presente estabelecido pelo poema foi, de certa

forma, o que inspirou a trilha que seguiremos nesta leitura.

O poema, realizado em redondilha menor, pertence ao livro Cancioneiro.

Através dele percebemos a relação conflituosa do eu-lírico com a memória de sua

infância. Ao recordar uma música, sua memória sensorial é provocada e ele então se

desliga do momento presente e fica absorto em um tempo passado, como demonstram

os versos: “Enche-se de lágrimas / Meu olhar parado”. No entanto, como afirmara no

verso anterior: “Não sei por que agrado”, essa sensação extrapola seu entendimento.

Aquela música está registrada em suas recordações afetivas, não na sua memória

factual. Nas próximas duas estrofes, a experiência do tempo é elaborada de forma mais

minuciosa.

“Recordo outro ouvir-te”, assim, o eu-lírico não só sabe que ele mudou com a

passagem do tempo, mas enxerga o seu eu do passado como se fosse o de outra pessoa,

pois o ato de recordar altera sua experiência. As incertezas de sua memória o

confundem e ele não sabe se ouviu a música realmente quando criança ou se a ouviu

somente nessa memória de infância que tenta recriar no momento presente: “Não sei se

te ouvi / Nessa minha infância / Que me lembra de ti”.

Os dois primeiros versos da última estrofe ainda demonstram sua persistência

em alcançar a memória de sua infância: “Com que ânsia tão raiva / Quero aquele

outrora!”. Contudo, finalmente nos dois últimos versos percebe-se que ele não alcança o

momento passado e só pode recriá-lo: “E eu era feliz? Não sei. / Fui-o outrora agora”. É

no momento presente que ele torna seu passado feliz. Por meio da escritura de sua

memória, o eu-lírico acaba por definir um modo de conduzir a sua história e, por

conseguinte, de se apropriar do que lhe restou do passado. A reminiscência só traz a ele

uma sensação precária de felicidade em que “outrora” (passado vivido), só existe

43

“agora” (passado lembrado) ele não saberá nunca ao certo que sentimento experimentou

no passado. O presente do eu-lírico se configura como um momento através do qual o

resgate do passado ganha um novo significado, não especificando como ele se sente em

relação ao momento atual. O passado é, então, uma camada possível de recuperação que

pode ser revivenciada e recriada através do projeto da memória.

O surrealista André Breton questiona se a memória não seria apenas produto da

imaginação. Assim, para saber mais sobre o sonho, o homem deve poder confiar cada

vez mais na memória, normalmente tão frágil e enganadora. No manifesto surrealista,

Breton ainda afirma que “É que o homem, quando deixa de dormir, é antes de tudo um

joguete de sua memória, e que no estado normal esta se compraz em retraçar-lhe as

circunstâncias do sonho” (BRETON apud TELES, 1976, p. 174). Quando a memória,

coletiva ou individual, se faz tão fugaz, tendemos a completá-la por meio da

imaginação. Podemos dessa forma, preencher a realidade e reconhecer que muitas vezes

a consolidação da memória em linguagem pode vacilar entre o sonho e a realidade.

A linguagem é usada recorrentemente não apenas para registrar o que

recordamos, mas sim como instrumento para recordar. E recordar não significa apenas

lembranças de fatos. A própria etimologia do verbo “recordar” remete a um significado

diferente do verbo “rememorar”. Recordar significa passar pelo coração. Portanto,

escreve-se para relembrar e para sentir de novo.

Acreditamos que a trajetória de Lillias Fraser se inscreve na demanda com a

memória. Neste capítulo, analisaremos mais especificamente o corpo textual do livro,

separando o enunciado da enunciação apenas para realizar uma análise mais minuciosa,

mesmo sabendo que essa divisão não pode ser categórica e que seus caminhos muitas

vezes se entrelaçam.

44

3.1 A ESCRITA COMO PROVOCAÇÃO DA MEMÓRIA: A ENUNCIAÇÃO

Esquecer é não ter sido.

Mário de Sá-Carneiro

Foi dito anteriormente que a narrativa de Lillias Fraser nasce de uma

provocação da memória da narradora-autora. Encontramos fundamentos para essa

premissa no capítulo II do livro que funciona como uma apresentação do tempo

histórico, na tentativa de situar o leitor no contexto em que a personagem principal está

inserida. Nesse capítulo, são explicadas a disputa pelo trono inglês, as batalhas entre

escoceses e ingleses e algumas tradições do povo da Escócia. Há um jogo entre o tempo

presente da narradora, sua real visita a Culloden e a memória mais antiga do lugar,

palco histórico onde a Batalha aconteceu. Ao mesmo tempo em que se narra a história

de Lillias e dos personagens de fundo histórico do século XVIII, também são narradas

as impressões da narradora sobre o campo de Culloden, partindo de um ponto de vista

contemporâneo (século XX), mostrando como o evento ficou registrado na memória

coletiva através dos anos. (Tempo da Narrativa e da Narradora) Além disso, esse

capítulo demonstra que há uma relação direta entre a memória da autora, Hélia Correia,

e a criação da narradora da história de Lillias, de forma que alguns traços da escritora se

façam presentes na voz narrativa, ainda que as duas constituam duas instâncias distintas.

Uma entrevista que Hélia concedeu a Marisa Torres da Silva10 é bastante

elucidativa quando se quer conhecer o motivo que instigou a criação do livro. Ao iniciar

uma das perguntas a entrevistadora diz: “O Lillias Fraser revela uma pesquisa histórica

considerável...” ao que é interrompida por Hélia Correia que, surpreendentemente, 10A entrevista completa pode ser encontrada no site: http://static.publico.clix.pt/docs/cmf2/ficheiros/21HeliaCorreia/Apaixonei.htm. A consulta ao site foi feita no dia 18/11/2009.

45

responde: “Não tem muita (...) as pessoas supõem que o livro tem um pré-texto que não

existe. É sempre um sarilho explicar isto”. A entrevistadora, então, pergunta: “A Lillias

apareceu primeiro?” A resposta de Hélia Correia é a seguinte:

Primeiro veio a minha viagem a Culloden e não teve nada a ver com escrita. Foi um passeio de lazer, um ano antes de começar a escrever, de busca de raízes, porque tenho sangue escocês. As afinidades que tenho com aquelas terras célticas devem-me ter caído todas em cima nessa viagem e foi por causa desse chamamento que fui lá.

As palavras da autora ratificam o que dissemos sobre a narrativa surgir

inicialmente como uma provocação da memória. Sua visita ao campo de Culloden foi,

na verdade, uma busca em conhecer mais sobre a sua história pessoal. Mais uma vez

percebemos que sua viagem não era apenas uma visita turística, mas sim uma tentativa

de resgatar uma memória perdida. Ainda nessa entrevista, Correia deixa claro que,

apesar de odiar o século XVIII, gosta de História e que teve que pesquisá-la para

compor o romance. Porém, garante que Lillias Fraser não é um romance histórico, pois

não parte da História para o romance, e que a História somente “veio por arrasto”11.

11 Como forma de elucidação, transcrevo um trecho da entrevista. As frases em negrito são da entrevistadora, Marisa Torres da Silva, e as outras são as respostas de Hélia Correia: "Lillias Fraser" é um romance histórico? Acho que não. O romance histórico parte da história para o romance e aqui a história veio por arrasto, aliás muito violentamente. Percebi que era a Lillias no século XVIII... ...um século que odeia... Sim, detesto-o! Não sei nada sobre o século XVIII, não gosto dele... Mas ficou a saber entretanto. Sim, mas não muito. Quando percebi que isto se passava no século XVIII, fiquei sem saber o que fazer. Mas a Lillias estava nesse século e eu tinha de ir ter com ela, não a podia tirar de lá. Fui para a Biblioteca Nacional, em pânico, a pensar como é que ia fazer a gestão de todo o conhecimento que ia adquirir. Justamente porque não se tratava de um romance histórico, as coisas não podiam ser debitadas, tinha de ser algo muito digerido, quase esquecido. Apanhei um susto com a bibliografia sobre a época pombalina, porque só o index dos títulos existentes sobre esse assunto já era, ele próprio, um livro enorme. Mas aquele não podia ser o caminho. Então optei por outra coisa, que já conhecia relativamente, porque tinha lido muita coisa a propósito de Sintra, uma das minhas paixões. Tinha bastante literatura em casa, de documentos autênticos, notas de viagem, sobretudo dos ingleses, que foram quem redigiu mais impressões sobre o século XVIII português. Comprei mais um livro ou dois, que tive a sorte de encontrar, com relatos autênticos sobre o terramoto [de 1755, em Lisboa]. E limitei-me a isso. A informação que tinha era essa, não teve como base uma pesquisa exaustiva.

46

Apesar da tentativa da autora de fazer crer que não houve um profundo estudo

ou pesquisa precedente a sua escrita, a realização de sua obra não permite que

acreditemos nessa afirmativa, pois qualquer criação é, antes de tudo, projeto.

Analisando a obra, sem ter em mente as intenções da autora, notamos que Lillias Fraser

reflete uma tendência de metaficções historiográficas, nas quais a História, mesmo não

sendo o objeto principal de uma narrativa, nunca vem apenas “por arrasto”. Mesmo que

para Hélia Correia, o conhecimento histórico exposto no livro seja apenas necessário

para contar com clareza a história da jovem bruxa, acreditamos que os dois estão, pelas

mãos da narradora, definitivamente entrelaçados. A construção narrativa acaba por

apresentar estratégias de mistura de tempos, vozes, personagens e instância narrante. As

interpenetrações do tempo do narrado e da narração demonstram como a narradora

conseguiu romancear a frase dita por Hélia Correia na entrevista destacada: “Percebi

que era a Lillias no século XVIII”.

A importância dada pela narradora ao fato histórico está clara logo no início da

narrativa, quando tece o seguinte comentário sobre a deflagração da Batalha de

Culloden: “Começa ali um fim que há de atingir quem se julgava estar à margem da

história, como Lillias, e o monte onde subiu, que se tornará pasto de carneiros e perderá

os sentimentos e as trevas” (LF, p. 9). A ninguém é permitido ficar fora da História, de

uma maneira ou de outra.

Hélia Correia resgata esse episódio da História escocesa e através dele

desenvolve sua ficção. A versão da historiografia sobre o confronto apresenta muitas

lacunas e a autora se aproveita disso para compor sua narrativa. Essa atitude reforça

uma concepção pós-moderna das metaficções historiográficas em não buscar base

apenas na chamada história oficial, elas se aproveitam da falta de algumas respostas

históricas e, em muitos casos, também se utilizam de mitos e fatos comprovadamente

47

não verídicos como matéria para seu desenvolvimento. “Esta guerra é toda ela um

terreno propício à literatura” (LF, p. 16), afirma a narradora ainda no capítulo II,

demonstrando o quanto os discursos da História e da literatura podem influenciar-se.

Mais uma vez é ressaltada a idéia defendida por Linda Hutcheon acerca da construção

do passado reconhecendo como construtos humanos todas as formas que temos de

acessá-lo. Nesse sentido, a professora canadense afirma que:

Autoconscientemente, a metaficção historiográfica nos lembra que embora os acontecimentos tenham mesmo ocorrido no passado real empírico, nós denominamos e constituímos esses acontecimentos como fatos históricos por meio da seleção e do posicionamento narrativo. E, em termos mais básicos, só conhecemos esses acontecimentos passados por intermédio de seu estabelecimento discursivo, por intermédio de seus vestígios no presente (1999, p. 131).

Há, na descrição da ação dos soldados ingleses durante a batalha, uma

observação da narradora que mostra o quão violento foi esse episódio: “Os ingleses

venceram em Culloden com competência e com frieza, em meia hora. Sujaram-se para

sempre nas seguintes” (LF, p. 23). Os ingleses não apenas derrotaram os escoceses, mas

promoveram um massacre, extrapolando o grau de violência que uma guerra permite.

Para justificar suas ações, os ingleses apresentaram documentos registrando que os

chefes dos clãs escoceses instigavam seus comandados a praticar crueldades com os

inimigos. Dessa forma, na versão da História oficial, os ingleses estavam somente

respondendo ao que eles sofreriam nas mãos dos escoceses se perdessem a guerra.

Posteriormente, descobriu-se que esses documentos foram, na verdade, forjados pelos

ingleses apenas para servir de pretexto para sua violência extrema. Retomamos, então, a

questão sobre a subjetividade do registro histórico e dos documentos usados para

compor a História oficial. Para a posterioridade, a matança necessitava de uma

48

justificativa e, para isso, inventou-se um documento garantindo à violência um duvidoso

senso de justiça.

Ainda sobre os registros da História, a narradora descreve que o fato histórico da

Batalha de Culloden foi tão traumático que facilmente transformou-se em memória

coletiva do povo escocês. O campo de batalha, ainda no século XX, é conservado como

um verdadeiro museu e muitas lendas e narrativas sobre o acontecimento influenciam na

formação dos jovens escoceses, como podemos ver no seguinte trecho do livro:

Há na internet um site sobre Culloden em que se apela aos pais para que vigiem os seus filhos menores nessa consulta, já que contém relatos de violência. Sabendo toda a gente que as crianças acedem onde querem, quando querem, que sentido acharemos nesse aviso se não o declarar-se que o assunto ainda é matéria muito combustível? Durante o crescimento, há um instante em que o adolescente arruma as lendas que o foram educando na infância. E há depois o instante em que transpõe o portão sem regresso que conduz para terreno da maturidade. Entre esses dois momentos, fica o espaço em que tudo é vivido brutalmente, com uma intensidade que parece mais de ordem química que sentimental (LF, pp. 16-17).

Ao afirmar que “o assunto ainda é matéria muito combustível” a narradora

destaca a importância do evento e suas influências através dos anos. A memória da

Batalha de Culloden é muito forte no imaginário nacional, e por esse motivo, a memória

coletiva criada e difundida a partir desse evento é parte fundamental da identidade

cultural do povo escocês. Para especificar mais ainda sua abordagem, a narradora

descreve como a memória coletiva de uma sociedade influencia na formação de todos

os jovens, escoceses ou não: “Há um instante em que o adolescente arruma as lendas

que o foram educando na infância.” Não importa a forma como sua memória individual

lidará com a memória coletiva de seu povo, essa o influenciará de uma forma ou de

outra. O historiador Paul Veyne defende que a história possui uma natureza lacunar ao

afirmar que “como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que

49

um século caiba numa página e essa síntese narrativa é tão espontânea quanto a da nossa

memória, quando evocamos os dez últimos anos que vivemos” (1978, p. 11). Assim

entendemos que a memória histórica e a individual tendem a trabalhar no mesmo

sentido quando se referem à síntese dos fatos.

A narradora resgata o momento que precede a batalha para demonstrar como os

escoceses eram incitados a guerrear:

Tudo aquilo que pudesse ser cantado submeteria aquelas almas celtas à mais terrível das dedicações. O bardo e o músico tinham tal prestígio que ninguém os calava (...) Contam que o tocador, quando acabava, atirava com a gaita de foles para o chão, dando ao desprezo o puro material, esse instrumento, literalmente falando. Do seu sopro que era onde a música em verdade se formava. Levava sempre um ajudante encarregado de a recuperar. Presidia às batalhas, provocando uma euforia quase alucinada. Os rapazinhos do seu séquito tremiam, vendo os seus pais e os seus irmãos mais velhos quase irreconhecíveis, diluídos na massa furiosa dos guerreiros. E a estridência da música alcançava, como uma coisa física, os dois lados, batendo contra o espírito dos homens, chamando o medo ou o entusiasmo, conforme a condição dos que a ouviam (LF, p. 15).

Lembrando o poema de Pessoa, guardadas algumas diferenças fundamentais,

também nesse trecho da narrativa a música instiga a memória e ela trará reações

distintas “conforme a condição dos que a ouviam”. É interessante notar também o

aparente desprezo pelo material e a exaltação do sopro do tocador, colocando a

importância na voz que todos tinham e não no instrumento que nem todos sabiam

manusear. O que é destacado é a importância do papel do artista, pois era “do seu sopro

que era onde a música em verdade se formava.” Dessa forma, o que interessa é o artista

não o instrumento com o qual realiza sua arte. Cabe ao criador, aquele que constrói a

enunciação, alcançar “o espírito dos homens”.

A memória assume papel fundador no que concerne às representações sociais e à

identidade cultural. Percebe-se que a composição dos discursos da história e da

50

literatura se aproxima em muitos aspectos. E que, sob uma ótica pós-modernista, os

embates sobre os limites entre o ficcional e o histórico não devem reduzir os estudos

desses temas a categorias dicotômicas, mas sim ampliar as discussões, tornando cada

vez mais aberto nosso modo de entender as representações humanas. Por esse motivo,

não podemos esquecer as palavras de Le Goff ao afirmar que “devemos trabalhar para

que a memória coletiva sirva para a libertação e não para servidão dos homens” (1984,

p. 47).

Acreditando que a memória histórica leva ao aprendizado, o texto parte da

recuperação de três momentos de catástrofe humana: a Batalha de Culloden, o terremoto

de Lisboa e a Inquisição, todos esses recuperados visando ao ensinamento do presente, à

libertação propiciada pela memória coletiva, como Le Goff defendeu. Ao aproximar os

séculos XVIII e XX, a narradora estabelece um jogo que não sugere uma comparação,

mas mostra que a história não é linear. “Não se queimam mais bruxas”, afirma Lady

MacIntosh, mas através do discurso irônico da narradora, percebemos que outras formas

de perseguição ao feminino acontecem. Ainda hoje a História se repete porque ela é

humana e reincidente, como nos ensina Guimarães Rosa: “Os tempos se seguem e

parafraseiam-se”.12

Especificamente sobre o discurso literário, entendemos que ocorre uma concreta

inseparabilidade da literatura de suas realidades, ou seja, o contexto de produção da

obra é fundamental para sua interpretação, ainda que não estabeleça uma leitura única

possível. A metaficção historiográfica, ao mesmo tempo que rearticula os discursos da

história e da ficção, se torna ela própria um meio de representação através do qual

atribuímos novos sentidos ao passado. Deste modo, também se destaca o contexto de

recepção da obra, que lhe imputará novos significados. 12 ROSA, João Guimarães. “Desenredo” In: Tutaméia (Terceiras Histórias.) 8ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

51

Esses novos sentidos fazem com que a metaficção historiográfica atue, de

alguma forma, sobre a memória coletiva de determinada sociedade. Se a memória é um

articulador de identidades sociais, as transformações que ela sofre vão também

modificando o modo pelo qual as sociedades se conhecem. Concluímos, então, que a

metaficção historiográfica, como se pode observar através do livro de Hélia Correia,

leva a questionamentos sobre como nos relacionamos com nosso passado e,

conseqüentemente, transforma o modo de entender nosso presente.

Um dos recursos de que a enunciação se utiliza é o da ironia. Durante toda a

narrativa de Lillias Fraser é possível encontrar excursos13 da narradora acerca do que

está narrando, de forma que ela reflete a maneira pelo qual os fatos foram consolidados

como História Oficial. Sobre Charles Stuart, por exemplo, ela afirma: “Dado ser visto

como a causa imediata para a tremenda assolação da Escócia, Charles não tem direito a

boa história” (LF, p. 21). Além disso, seus comentários demonstram também alguns

valores difundidos na sociedade, através dos quais exercemos certos julgamentos sobre

os fatos do passado, como podemos ver na seguinte frase, pronunciada sobre o fim da

vida de Charles: “Fica tão bem ao nosso gosto por justiça ver este antigo sedutor

abandonado por toda gente que lhe foi fiel (...) que a verdadeira causa da doença é

omitida em quase todos os relatos” (LF, p. 22).

Entretanto, a narradora possui consciência de como nossa interpretação do

passado está sujeita ao contexto em que estamos inseridos. Ao narrar o enfrentamento

do padre Gabriel Malagrida às imposições do Marquês de Pombal, a narradora chama a

atenção para a cautela que se deve ter ao analisar uma época tão distante da nossa:

“Julgamos nós que tudo não passava de narcisismo sado-masoquista. Porém julgamos

13 Cito a definição de excurso encontrada no Dicionário Houaiss na sua segunda acepção: “desvio do tema, do assunto principal, digressão.”

52

com os nossos séculos e com as nossas palavras. Não podemos entrar na intimidade de

outra época em certos pormenores essenciais”. (LF, p. 161). Assim, as metaficções

historiográficas possibilitam-nos um contato reflexivo com o passado ao mostrar que ele

é um discurso construído sob os olhos do presente, reafirmando que qualquer leitura

está atada também ao tempo de sua recepção.

A passagem do tempo traz consigo as constantes mudanças a que estamos

sujeitos. A memória é a forma que temos de não só resgatar fatos e sentimentos

passados, mas também de atualizá-los. Assim, concordamos com Alfredo Bosi quando

ele afirma que “a memória vive do tempo que passou e, dialeticamente, o supera”

(2006, p. 27.) Bakthin também refletiu sobre o efeito do tempo sobre os acontecimentos

e seu resgate através da memória, chegando a afirmar que não se pode ser grande em

seu próprio tempo, pois a grandeza é tarefa da posteridade que transforma o objeto da

grandeza em memória. Um evento só pode se tornar grandioso quando não é mais um

objeto da visão e do contato dos vivos. Concluindo sobre isso, o teórico russo diz: “No

mundo da memória, um fenômeno aparece em um contexto inteiramente singular, nas

condições de uma particular conformidade às leis, em circunstâncias diferentes daquelas

que o mundo real e do contato familiar e prático” (1988, p. 410). De tal modo,

entendemos que através da memória, o conhecimento que adquirimos ao longo dos anos

se transforma em intertextos14 que nos auxiliam a interpretar novos eventos.

Em Lillias Fraser a intertextualidade se concretiza com o aparecimento da

salvadora de Lillias, Blimunda Sete-Luas. Como é sabido, Blimunda é originalmente

14 Utilizo intertextos no sentido defendido por Linda Hutcheon no capítulo intitulado “A intertextualidade, a paródia e os discursos da História”, do livro Poética do Pós-Modernismo. Transcrevo algumas palavras da autora: “Na verdade, uma obra literária já não pode ser considerada original; se o fosse não poderia ter sentido para seus leitores. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e importância.(...) Roland Barthes definiu o intertexto como “a impossibilidade de viver fora da escrita”, fazendo da intertextualidade a própria condição da textualidade.” (1999, p. 166) .

53

personagem do Memorial do Convento15, livro de José Saramago. No entanto,

aproveitando-se de sua memória literária, defendemos a idéia de que Hélia Correia

utilizou essa personagem para encontrar um destino para sua personagem principal. A

narrativa apresenta Blimunda Sete-Luas com as seguintes palavras:

A mulher riu. Tinha um tão claro riso que Lillias julgou, por um momento, achar-se rodeada de crianças. No entanto, apesar do seu cabelo, ainda muito escuro, e do seu rosto, liso e moreno, onde brilhava a leve sugestão de emulsões orientais, vinha dela uma esplêndida velhice. Atravessara o tempo e convencera-o a separar-se dela para sempre. Olhava Lillias com firmeza, como quem dá o último retoque numa obra que honrou a expectativa (LF, p. 279).

“Atravessara o tempo e convencera-o a separar-se dela para sempre”, essa frase

sugere que Blimunda viveu muitos anos dentro do cenário ficcional, porém também

suscita a idéia de que a personagem Blimunda está eternizada e se mantém viva no

imaginário literário dos leitores.

A descrição de Blimunda cria uma aura em torno da personagem que retoma a

linguagem dos contos de fada. Ela é descrita como uma velha bondosa, o cenário é

rodeado de crianças, elementos que remetem a um tempo mágico e imemorial. O livro

se encerra numa perspectiva do “era uma vez”, com personagens capazes de separarem-

se do tempo “para sempre”. Acreditamos que Blimunda é utilizada para dar um destino

a Lillias, levando-a para fora do tempo histórico que a cerca. Por esse motivo, é que seu

olhar é de “quem dá o último retoque numa obra que honrou a expectativa”. Através do

olhar, Blimunda transforma Lillias em sua obra, levando-a e ao filho que espera para um

lugar fora do um tempo geográfico e histórico, para o tempo da “ficção”:

15 Para citações do Memorial do Convento utilizarei a abreviatura MC seguida do número de página. A edição aqui utilizada é da Bertrand Brasil, 32ª edição, 2006.

54

Para longe de tudo. Essa criança há de nascer na terra de ninguém, num espaço entre fronteiras que não seja Portugal nem Espanha – ia dizendo. - Nem Portugal nem Espanha – repetia, como se a encantasse, Lillias. E perguntava o nome do lugar. Blimunda não sabia responder (LF, p. 281).

As duas irão sobreviver em um lugar que fisicamente não existe, em um lugar

mágico “entre fronteiras” , que só pode constituir o tempo e o espaço da ficção.

O caminho percorrido por Lillias sempre apresenta muitas dificuldades. A

menina é uma órfã, estrangeira e bruxa, vivendo no Portugal do século XVIII, vigiada

pela Inquisição, vivenciando a tragédia do terremoto e tendo que enfrentar todo dia a

morte revelada pelo seu olhar. Deste modo, acreditamos que, trabalhando com um

tempo histórico impossível de lidar, a narrativa se volta para o tempo da magia, onde a

ficção pode ser capaz de vencer as barbáries que a realidade impõe. A narradora se

utiliza da memória literária para escapar da memória histórica. O que salva Lillias é a

magia da ficção, que irrompe através da presença de Blimunda.

Mais do que o fato de ambas serem bruxas e de viverem no século XVIII, o que

mais aproxima Lillias e Blimunda é o olhar. A visão é o sentido que nos dá a certeza da

existência e, por isso, é o que mais está ligado à idéia da apreensão da realidade. O que

não é visto dificilmente possui a credibilidade de existir, por outro lado, se podemos ver

uma coisa, acreditamos que ela é real. A visão precisa estar ligada a idéia de coisa

concreta. Em uma sociedade coagida pelo medo da Inquisição, apenas a Igreja Católica

poderia autorizar a crença naquilo que não era possível ver. Porém, é preciso lembrar

que a visão, mesmo sendo o “único sentido capaz de reconhecer a aparência da matéria,

já não consegue ver a sua estrutura. Precisa imaginá-la” (BOSI, 2006, p. 68),

transformando, assim, as experiências que obtemos através do olhar.

55

Lillias e Blimunda enxergam além do que os olhos podem ver, sabem aquilo que

aos outros não é permitido e por esse motivo são diferenciadas dos demais. De certa

forma, elas transgridem as regras impostas pela sociedade. Elas têm um olhar que não é

dado ao humano, pois conhecem a morte. As duas “tocam o sagrado” ao ver o que ao

humano foi proibido, dividindo com o divino a habilidade de ver além.

Assim como Lillias, que é apresentada logo no primeiro capítulo como alguém

que tem visões, Blimunda também tem essa faculdade destacada pelo seu narrador. A

personagem do livro de Saramago é apresentada aos leitores através dos olhos de sua

mãe que, condenada por bruxaria, está sendo degredada para Angola. Enquanto caminha

para nunca mais voltar a Portugal, a mãe de Blimunda deseja ver a filha pela última vez

“só para te ver quero os olhos agora, a boca me amordaçaram, não os olhos (...) enfim o

peito me deu sinal, gemeu profundamente o coração, vou ver Blimunda, vou vê-la, ai,

ali está” (MC, p. 51). A comunicação entre as duas se dá através do olhar. A mãe

propicia a aproximação de Blimunda e Baltasar, instigando a filha a conhecer o homem

que estava ao seu lado. O olhar entre as duas vale mais do que as palavras, por isso foi

mais importante para a mãe terem tapado-lhe apenas a boca, mas não a visão. O último

pensamento da mãe em direção à filha é uma frase que anuncia ao leitor o poder que

Blimunda tem, ela diz: “não fales, Blimunda, olha só, olha com esses seus olhos que

tudo são capazes de ver” (MC, p. 51).

Não só a visão, mas também o aspecto físico dos olhos de Blimunda são

elementos muito destacados em sua descrição, como se o poder da bruxa se refletisse na

aparência de seu olhar. Ao contar como Baltasar reparara na rapariga, o narrador diz que

ele mantém os olhos fixos nos olhos de Blimunda, descrevendo-os da seguinte forma:

56

Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou branco brilhantes como lascado carvão de pedra (MC, p. 53)

Os olhos de Blimunda têm em si todas as cores, por isso são inapreensíveis. As

cores estão em constante mudança “com a luz de fora variam ou o pensamento de

dentro”. Além disso, destacamos também a primeira conversa entre Blimunda e

Baltasar, na qual claramente percebemos que o olhar tem um significado distinto para os

dois:

Não tenho força que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro (...) (MC, p. 54 ).

O feitiço a que Baltasar faz referência, não tem a ver com o dom de Blimunda,

ele está apaixonado, por isso se sente exposto, “visto por dentro”. Ele ainda não conhece

o que significa o ver por dentro para Blimunda. Enquanto para ele o olhar de Blimunda

exerce o poder do amor, para ela “ver alguém por dentro” tem outro significado.

Mais a frente na narrativa, os olhos de Blimunda voltam a ser fortemente

ressaltados quando Baltasar a apresenta para sua família. Todos se espantam com a

multiplicidade de cores dos olhos dela e fazem algumas perguntas a fim de conhecê-la

melhor. Ao saber que a mãe de Blimunda foi degredada por ter visões, a mãe de

Baltasar não se espanta e diz: “Não há mulher nenhuma que não tenha visões e

revelações, e que não ouça vozes, ouvimo-las o dia todo, para isso não é preciso ser

feiticeira” (MC, p. 101). Explicado desse modo, devido à sensibilidade, todas as

mulheres deveriam ser consideradas bruxas. Não só a mãe de Baltasar reconhece a

57

particularidade das mulheres, como também o faz o narrador. Ao descrever uma cena

corriqueira do cotidiano do casal junto à família de Baltasar, o narrador acentua a

importância do feminino:

Quando Baltasar entra em casa, ouve o murmúrio que vem da cozinha, é a voz da mãe, é a voz de Blimunda, ora uma, ora outra, mal se conhecem e têm tanto para dizer, é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fosse falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta (MC, p. 107).

O narrador do Memorial do Convento constata que é o discurso do feminino que

ordena o mundo. Em Lillias Fraser pode-se encontrar a mesma premissa, porém de uma

forma distinta. Sendo um personagem que pouco fala, não são suas palavras, mas sim

sua trajetória que sustenta o mundo narrativo. É o caminho percorrido por Lillias que

ordena o seu tempo caótico, transformando a trajetória, por si só, em um discurso. A

narrativa, ao acompanhar o movimento de Lillias, retoma a memória das narrativas de

viagens, marcando na História o discurso daqueles que não tiveram suas falas

registradas.

Voltando ao livro Lillias Fraser, pensamos ainda existir um ponto fundamental

no que concerne à questão da visão. O terremoto de 1755 é, como toda grande

catástrofe, uma experiência difícil de ser transposta em palavras. Como dito

anteriormente, a visão nos auxilia na aceitação da realidade. O que temos de memória

sobre o terremoto de Lisboa são textos narrativos, registros históricos, ilustrações que

procuram demonstrar sua violência. Devemos crer que foi algo realmente aterrador a

ponto de ter suscitado na Inglaterra uma moção no Parlamento para que mudassem a

religião para o Catolicismo a fim de evitar um castigo parecido com o que sofrera

58

Portugal, e de ter inspirado em Voltaire o famoso poema: Sur les désastres de Lisbonne

(1756).

Podemos ver no seguinte relato de Joaquim José Moreira de Mendonça, o

encarregado dos arquivos do Tombo no ano de 1758, de que forma o episódio ficou

marcado na memória coletiva de Portugal: “Que cena lamentável me recorda a

memória! Tanto objeto lastimoso me representa a lembrança, que a multidão, a

variedade e a mágoa me embaraçam o discurso para a narração” (FONSECA, 2004, p.

29). O discurso, comprometido com a magnitude do evento, emudece e acaba por não

ser realizado.

Em um artigo intitulado “Ver demais: o terremoto de 1755 na literatura”, Helena

Carvalhão Buescu reflete sobre narrativas decorrentes de grandes destruições:

É precisamente para essa dimensão de excesso que os testemunhos e reações literárias apontam, quando convergem para a notação teatral e cênica do acontecido, quando pretendem configurar descrições e narrações em que o argumento do mundo se dê a ver, possa ser lido (2006, p. 37).

Dessa forma, a literatura é também um instrumento que auxilia na compreensão

da realidade. O excesso dos testemunhos e criações literárias busca passar ao leitor a

sensação do acontecimento. Já dissemos anteriormente que o ato mnemônico

fundamental é a ação narrativa, que tem uma função social acentuada, pois auxilia na

comunicação de um fato a alguém que não o presenciou. Por um lado, narrar o

terremoto é necessário para que se registre, através de expressões artísticas ou

testemunhais, o acontecimento na memória coletiva e conseqüentemente na História.

Mas, por outro lado, narrar a experiência do terremoto define o homem como tal, pois,

como nos explica Helena Buescu: “Poder contar uma história surge, então, como

59

fundação do território do homem enquanto ser histórico, cultural, político e até

simbólico” (2006, p. 20).

Assim sendo, Helena Buescu defende que transformar em narrativa a

experiência de “ver demais”, ajuda a constituir nossa memória coletiva, mesmo que para

que esse registro aconteça devamos recorrer à criação literária. Lillias Fraser é uma das

personagens de ficção que além de presenciar um momento de grande tragédia, é capaz

de ver demais em um sentido mais simbólico, tornado-se ela própria um personagem

que auxilia o leitor a entrar em contato com a memória. Sobre o terremoto de Lisboa,

Buescu conclui:

A experiência do terremoto e do maremoto de 1755, a experiência da destruição de Lisboa e da inimaginável aniquilação humana que lhe está associada, configuram um evento a todos os títulos memorável, correspondendo ao que o conceito de memória cultural, como inscrição de um evento traumático na matriz social e simbólica, poderosamente recobre (2006, p. 18).

Entendemos que “ver demais” é algo que compromete o discurso. Lillias, que é

capaz de não só “ver demais” (pois testemunhou a destruição do terremoto), como

também de “ver além” (pois tem o dom de prever a morte), é uma personagem que

quase não fala. Além disso, no que se refere à enunciação, a narrativa de Lillias Fraser

não elabora uma descrição do terremoto. O foco narrativo segue a trajetória de Lillias,

deixando de lado o terremoto no momento em que ele ocorreu. O que há é uma

narrativa pós-terremoto, destacando os escombros da cidade, o sofrimentos das pessoas

e as medidas do Marquês de Pombal para reconstruir a cidade. Pensamos que isso se

deve a dois fatos: as vítimas históricas do terremoto não terem deixado registro e o fato

de a experiência do terremoto ser inominável. Nesse sentido entendemos que a narrativa

de Hélia Correia ao se recusar a tentar narrar a tragédia do terremoto:

60

Pretende recuperar os passos anônimos daqueles que não figuram nos relatos oficiais para mostrar como a vida é um acumulo de ruínas que jamais poderá ser ordenado nem mesmo pela linguagem; indo, desta forma, em sentido contrário a certa tradição histórica ( mas também literária) que apostou na possibilidade de reconstrução do passado. Resta ao trabalho literário a criação de imagens que alegoricamente tentarão contornar com palavras a indizível experiência de se estar vivo em um tempo em dissolução (FIGUEIREDO, 2009, p. 243).

A narradora, portanto acompanha a personagem principal até Mafra. Sendo

assim, concordamos com Monica Figueiredo quando afirma que “Lillias Fraser não

pretendeu dizer o terremoto, antes procurou demonstrar que a linguagem não basta,

porque a vida sempre ultrapassa e nem tudo se pode compreender” (2009, p. 249).

Além da utilização da personagem de Saramago, um dos intertextos possíveis de

encontrar no romance se dá num momento em que a enunciação parece aproveitar da

estética Barroca em termos plásticos. Esse momento é o período em que Lillias e Cilícia

se abrigam no abandonado Convento de Mafra, logo após a destruição causada pelo

terremoto.

Percebemos, então, que a intertextualidade característica das metaficções

historiográficas pode valer-se de diversas fontes de discurso, tanto o literário, o

historiográfico e também o das artes plásticas. Propomos aqui uma interpretação que

estabeleça um intertexto entre a narrativa de Lillias Fraser e a estética barroca em

determinado trecho do livro. Linda Hutcheon afirma que relacionar passagens de

narrativas à experiências previamente adquiridas é tarefa para o leitor, que tem, desta

forma, seu modo de interagir com a literatura ampliado. Assim, torna-se possível ver a

cena do convento como um episódio no meio da narrativa de Lillias Fraser. Há uma

quebra na enunciação e no lugar do inominável (a experiência do terremoto) é

construído um episódio que é praticamente uma pintura, “um quadro”. Como a

experiência do terremoto foi o fato privilegiado pela História Oficial, a narrativa, que se

61

recusa a se debruçar sobre ele, abre espaço para “um quadro”, que dará conta daqueles

que o registro oficial não soube abarcar.

O terremoto acabara de acontecer e Lillias conhecera Cilícia durante a fuga

desesperada de Lisboa. O cenário é caótico, as duas estão famintas e acabam por chegar

ao extremo para garantir sua sobrevivência: “Fazendo frente aos cães vadios, devoraram

os restos de uma ave que alguém, por óbvio nervosismo, abandonara. Isto não só lhes

consolou o estômago como também lhes restaurou a fé em Deus” (LF, p. 107). O

momento que antecede a entrada das duas no Convento está marcado por um jogo de

contrastes entre o materialismo que consola o estômago e o que restaura a fé em Deus.

As duas avistam o Convento de Mafra e se encaminham para lá. A cena se

desenvolve como a descrição de uma verdadeira pintura. A narradora descreve o cenário

com muita riqueza de detalhes, destacando a cor do ambiente “de um amarelo

queimado”, capaz de provocar em quem o vê sensações contrárias: “Era o poder do rei

que iluminava e forçava a cegueira, como um sol” (LF, p. 109). A luminosidade nos

auxilia a enxergar, mas o excesso dela, opostamente, impede a visão. Além disso, na

ausência do rei (o sol), nosso olhar é desviado para outras coisas, podemos notar outros

aspectos antes ofuscados pela figura real.

A parte de dentro do convento também segue a lógica de uma pintura barroca. O

ambiente apresenta elementos arquitetônicos que ampliam o espaço, de modo a destacar

a “medida risível” e a “pequenez” de quem o observa. Lillias e Cilícia logo se deparam

com um “infindável corredor de portas onde elas se sentiam vulneráveis como quem se

encontrasse em campo aberto” (LF, p. 112). Uma das características da arte barroca é

assim demarcada, os personagens estão frente a um sentimento de inesgotabilidade

provocado pela dimensão do lugar. Opostamente, ao que era pretendido pelo barroco,

que diminuía tudo aquilo que não era sagrado, o “quadro pintado” por Hélia Correia

62

volta seu foco para a pequenez, e se destina a personagens que, como Lillias, viviam à

margem do sol ou do sagrado.

A jovem bruxa e a senhora não estavam sozinhas no convento, outras pessoas se

refugiaram ali, onde além de abrigo procuravam também por comida. Porém essa

disputa por alimentos não se dá apenas entre pessoas, os ratos também começam a

tomar o lugar:

As ratazanas começavam a subir. Vinham das caves, dos seus largos túneis, onde o abalo provocara fendas pelas quais ressumava um óleo, um fumo que elas não conseguiram suportar. Ao mesmo tempo, aquela informação que perpassa entre os grupos de animais e os leva a movimentos colectivos, como se uma palavra se espalhasse, já lhes fazia conhecer a extraordinária deserção dos humanos, o acesso desimpedido às arcas da comida. Gritavam umas contras outras, assanhando-se, fervendo numa negra cavalgada que rechinava, como a cinza de um vulcão (LF, p. 111).

Começa uma disputa por território entre humanos e ratos. O período da

permanência de Lillias e Cilícia no Convento apresenta um conflito entre o terreno e o

celestial. O cenário está ligado à espiritualidade, porém, a situação dos que ali estavam

transformam o espaço da religiosidade em um espaço de disputa pela sobrevivência. Os

ratos, temido pelas duas mulheres, no auge do desespero, deixam de representar uma

ameaça, e Cilícia chega a enxergar neles um suculento jantar: “Por alguma razão, as

ratazanas transformavam-se em carne comestível, em saborosos roedores, coelhos,

lebres, respingando gordura sobre as brasas” (LF, p. 119). Chegamos ao apogeu da

inversão da ordem e a busca pela sobrevivência demonstra cruelmente a humanidade

dos personagens, fato mais acentuado por se realizar em um espaço teoricamente

sacralizado. “Como em todas as obras maneiristas, os olhares se afastam dos que se

salvam para se voltarem para o que é problemático, desfigurado e maldito”

(HOCKE, 1974, p. 103), os elementos disformes e a prevalência dos instintos humanos

63

colaboram para criar no convento uma atmosfera grotesca que aproxima o homem do

animal. Para Gustav R. Hocke, o grotesco ganhou tanta importância como elemento da

estética barroca que no período do barroco tardio a decoração das igrejas buscava uma

nova ordem: “o horroroso ornamental”. Isso se deve ao fato de que “frente a tantas

catástrofes, o sentimento da morte e do tempo tornou-se sempre mais forte entre os

maneiristas”16 (HOCKE, 1974, p. 103).

A narrativa segue elaborando diversos jogos de contraste; há uma retomada no

tempo a fim de explicar como o convento funcionava antes do terremoto, mostrando a

oposição entre o antes e o agora. Além disso, acentua-se o jogo de sombra e luz,

demarcando um dos traços estilísticos do barroco. Fica clara a oposição entre a grandeza

que a memória busca reafirmar e a pequenez que os personagens vivem no presente.

Também como um elemento contrastante, temos diversas cenas de sexo dentro

do espaço sacralizado, cercadas de elementos grotescos. Ao desmaiar de fome, Lillias é

acordada quando está sendo estuprada. O seu olhar dourado afasta de vez os que

tentavam se aproximar, porém aos poucos, por estar grata pela comida que os homens

lhe oferecem, ela entrega-se. O sexo a envergonha, mas não acontece o mesmo com

Cilícia, que parece se entregar completamente à situação e perde de vez qualquer pudor

social. Ela diz a Lillias: “Vale tudo, filha. Deus já cá não está” (LF, p. 122). Sobre como

a arte barroca trata o sexo, Gustav R. Hocke levanta o seguinte questionamento: “Se a

‘idéia’ é algo mais importante que a natureza, então como é que a sexualidade se

manifesta na obras dos maneiristas?” (1974, p. 288). Após analisar diversas obras

barrocas, o teórico chega à conclusão de que é através das depravações sexuais que o 16 O autor explica, no primeiro capítulo de seu livro Maneirismo: o mundo como Labirinto (1974), que utiliza o termo maneirismo ao invés de barroco, mas que não pretende fazer uma discussão acerca de nomenclaturas por não julgar que seja produtivo. Ambos os vocábulos não são descartados pois representam conceitos já consolidados e uma “divisão forçada” não auxilia na interpretação de tendências artísticas e literárias.

64

indivíduo encontra a mais “ampla liberdade, ou seja, a última liberdade da vida pessoal,

inacessível aos espiões do poder” (HOCKE, 1974, p. 288). Assim, a cena do convento

representa um momento em suspensão da narrativa e do tempo histórico, abrindo espaço

para que os pequenos vivam seu momento de “ampla liberdade”. Para Hocke, os

maneiristas vêem no amor a possibilidade de negar as desarmonias já que “o

Maneirismo encontra um prazer todo especial em harmonizar os extremos da maneira

mais sublime possível e é por isso que para os maneiristas ele consiste em uma

experiência fundamental” (1974, p. 289). O que temos dentro do convento de Mafra é

apenas um lado: a sexualidade se sobressaindo, libertando os personagens de qualquer

amarra social e desarmonizando a ordem pré-estabelecida.

A cena do convento mostra os personagens alheios aos acontecimentos. É como

se eles estivessem em suspensão por um período e se desligassem da vida do lado de

fora, como podemos verificar no trecho a seguir:

“A desumanidade do Convento levava a que ninguém funcionasse conforme a sua especialização. Os criados sujavam, os ladrões não conseguiam concentrar-se para roubar, os guardas não sabiam caminhar sem que os calções, cheios de furtos, tilintassem. Os frades, seduzidos pelo ar livre e pelo cheiro a sexo das mulheres, adiavam o regresso. Não pareciam sentir a mínima curiosidade pelo estado da igreja, nem sequer pelo dos seus aposentos. Na verdade, o edifício defendia-se a si próprio, com a sua repelência original (LF, p. 128).

Naquele espaço, tentando manter-se a salvos do terremoto, todos se despiam das

“máscaras referentes ao seu papel” (LF, p. 129). Ocorre uma perda da memória em um

local que deveria cultuar a recordação do poder, pois ninguém parecia “sentir a mínima

curiosidade pelo estado da igreja, nem sequer pelo dos seus aposentos. Na verdade, o

edifício defendia-se a si próprio, com a sua repelência original”. Há uma supressão da

ordem histórica, pois “a desumanidade do Convento levava a que ninguém funcionasse

conforme a sua especialização”.

65

Aos poucos, a vida vai voltando ao normal, o terremoto já passara e o convento

volta a ser ocupado pelas autoridades reais, todos são expulsos e devem retornar às suas

vidas. Nesse momento há um último sentimento contraditório. Ao pensar no que

representam os homens do governo que chegam para tomar posse do convento, Cilícia

diz preferir os ratos, e a narradora compreende esse pensamento, afirmando: “Por uma

distorção do sentimento, pensavam nelas como em guardiãs que os protegiam contra o

avanço dos humanos.” (LF, p. 129). Expulsas do convento, Lillias e Cilícia voltam a

Lisboa.

Assim sendo, esse trecho do livro se constitui como uma pintura em suspensão

no meio da narrativa. A inserção de um episódio trecho tão ligado à imagem nos remete

a uma famosa frase atribuída a Simônides de Ceos: “A pintura é uma poesia silenciosa e

a poesia é uma pintura que fala”. As duas artes, então, se entrelaçam de maneira

definitiva, explorando, cada uma com suas possibilidades, as expressões artísticas da

outra.

Se lembrarmos que com as idéias de Simônides, a imagem ganha uma papel

diferenciado na cultura, uma forma de auxilio à memória. Podemos então pensar que ao

inserir um episódio essencialmente plástico, uma “pintura,” no meio de sua narrativa,

Hélia Correia busca marcar essa tragédia de vez na memória de seus leitores. Além de

contar a história de Lillias, a narradora quer também construir um retrato, por meio de

elementos plásticos, de uma experiência de que apenas a narrativa não dá conta.

Por fim, há de se destacar um elemento importante na composição da

enunciação, a postura interveniente da narradora. Pensamos que essa característica

demonstra mais uma influência do narrador saramaguiano. A presença insistente da

narradora é demarcada de diferentes formas, seja de maneira clara quando afirma que:

“Não se atraiçoa na política, só se atraiçoa nos romances de aventura” (LF, p. 16). Ou

66

mesmo quando se deixa envolver de tal forma pela narrativa que parece demonstrar que

ela lhe foge do controle. Esse último aspecto é encontrado na passagem em que Lillias

foge de Lisboa, momentos antes do terremoto acontecer. A menina segue um caminho

escuro, cheio de lobos, desmaia e ao acordar se sente desorientada, não entendendo

porque havia deixado o convento: “O que faço eu aqui? Pensou Lillias. O trabalho

diurno do seu cérebro tornava aquela fuga inexplicável.” (LF, p. 99). A narradora então

percebe que a associação entre o dom visionário da menina com sua salvação do

terremoto , assim como ocorrera no massacre de Culloden, foi feita por ela e não por

Lillias. É a sua narração que relaciona a fuga ao salvamento, porém a sua personagem

não pensou dessa forma: “Fui eu, não ela, quem relacionou a visão do seu pai dilacerado

com a corrida que a salvava dos ingleses. Para Lillias, foram coisas separadas” (LF, p.

99). Este trecho demonstra a consciência de que mais do que dom divinatório (intuição)

é a narradora quem manipula os cordéis da sua personagem. Mas se entre narradora,

autora e personagem há uma forte identificação é de fora do universo ficcional que a

leitura da magia se faz, ficando Lillias diante do “inexplicável”.

A memória como elemento da composição da enunciação de Lillias Fraser se

faz presente através das experiências e impressões da narradora. A intertextualidade,

seja com as artes plásticas, fatos históricos ou personagens da literatura portuguesa,

demonstra que a enunciação parte da memória e constrói o seu sentido através dela.

67

3.2 A MEMÓRIA COMO GUIA DE CAMINHOS: O ENUNCIADO

As perturbações da memória estão ligadas às intermitências do coração.

Marcel Proust

Abril não é um mês como outro qualquer quando se trata da História

contemporânea de Portugal. Não só por estar marcado na memória coletiva como o mês

em que ocorreu a Revolução dos Cravos, abril é reconhecido como um mês de

renovação, de liberdade e bons frutos. No hemisfério norte, abril é o mês da primavera,

por isso recorrentemente é usado como metáfora para representar um tempo de

esperança.

Em Lillias Fraser, ocorrem nove referências diretas ao mês de abril, o que nos

leva a pensar que tal alusão não é gratuita, pelo contrário, fornece um dado instigante

para reflexão. Apesar de, usualmente, estar ligado à idéia de renovação, na maioria das

vezes, abril traz para a narrativa uma atmosfera de destruição. A primeira referência

ocorre logo no início da narrativa quando Lillias está fugindo do Massacre de Culloden:

“O mês de abril que vai a meio torna o frio mais difícil de entender. (...) Esta nossa

menina, Lillias Fraser, começa aqui a sua dança do pavor, dá voltas cegas em redor das

árvores, chora em silêncio porque não se atreve a misturar sua voz com a da floresta”

(LF, p. 8). Nessa citação percebe-se que o frio não combina com o que abril,

habitualmente, representa É em abril que a narradora visita o campo de Culloden e

percebe que o elemento estranho ao tempo de primavera permaneceu gravado na

memória do lugar como “um desespero, cortava o ar e cintilava à luz de Abril” (LF, p.

17). Mais à frente quando Lillias está no navio, deixando a Escócia em direção a

Portugal “estava-se em Abril, mas apesar da luz esplendorosa do crepúsculo, a negridão

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das almas aparecia” (LF, p. 73). A menina não era a única a deixar sua terra natal para ir

viver em outro país: o massacre de Culloden levou muitos escoceses a abandonarem a

Escócia. Por essa razão, nem mesmo abril com sua “luz esplendorosa”, carregada de

esperança e renovação para aqueles que se dirigem para uma nova vida, foi capaz de

transformar “a negridão das almas”. Os escoceses deixavam para trás suas raízes,

levavam consigo apenas suas memórias.

Ainda em abril, Lillias chega a Portugal. As Connelly levam a menina para a

casa da irmã de Frances, Mary: “No vão da porta, contra a luz de Abril, uma íris de

cobre cintilava” (LF, p. 82). A íris de cobre de Lillias demonstra a luz que emanava de

seus olhos, o que facilitava sua identificação como bruxa. Mary Connelly identifica

facilmente o dom da menina e a proíbe de ficar na sua casa, abandonando-a em um

convento inglês.

Após a destruição do terremoto a cidade começava a reerguer suas construções,

abril chegara, mas as marcas da recente destruição impediam “o cheiro de primavera”:

“Lisboa ia erguendo-se devagar após o terremoto. Já era o mês de Abril, mas não tinha

flores que chegassem para o cheiro da primavera” (LF, p. 150). O processo de

reconstrução da cidade foi muito lento. Lisboa era uma cidade monumental, destruída

pelo forte impacto do terremoto. Junto com os monumentos que vieram abaixo, a

memória coletiva perdeu uma fonte de perpetuação memorialística. Do mesmo modo,

com as casas que foram destruídas, a memória individual de cada pessoa teve seus

alicerces abalados. Nota-se na seguinte passagem do livro que é o aspecto humano que

sustenta uma construção:

O que sustenta um interior não é somente a compressão de vigas e argamassa. O ar expirado, as brasas na lareira, a pele ruborizada, ou pela cólera ou pela indecência, humores e gases, tudo aquece e dá conforto às coisas construídas. Por isso é que, no extremo da ruína, ainda o tecto alberga a sua gente, curvado e carcomido, como as mãos

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de um velho a defender a sua descendência, conforme pode, até cair também (LF, p. 137).

Ao mesmo tempo em que são as pessoas que amparam uma construção, é a casa,

por sua vez, é que ampara as pessoas, sendo representada através da imagem das “mãos

de um velho a defender sua descendência” A casa oferece proteção por isso, mesmo “no

extremo da ruína ainda o tecto alberga a sua gente”, como se fosse uma resposta à

presença humana que “aquece e dá conforto às coisas construídas”.

Lillias nunca teve a oportunidade de experimentar um lar que fosse seu. Além de

deixar para trás a Escócia, muda muitas vezes de casa, morando com Anne, com Lord

Angus, com as Davidson, com as Connelly, no convento inglês, no convento de Mafra,

e com Cilícia, ficando assim, impossibilitada de criar vínculos afetivos com uma casa.

Só experimenta o que é ter um lar quando retorna a Lisboa com Cilícia e Tomás e

passam a viver juntos:

Aquela intimidade com Cilícia, o cheiro dos lençóis, o queimador com cinzas velhas a um canto da janela, a tacinha de azeite com pavio que engordurava os panos do oratório, tudo lhe dirigia a saudação do lar. As paredes podiam estar ainda pouco recuperadas do abalo, mas nenhum perigo as atravessaria. “essa é a minha casa”, pensou Lillias. Pensara em Português. Não se lembrava de alguma vez ter dito aquela frase (LF, pp. 163-164).

“Essa é a minha casa”, Lillias finalmente tem a sensação de pertencer a um

lugar, o que é acentuado pelo fato de pensar em português. Ela reconhece sua casa não

só em um espaço, mas também na língua portuguesa. Durante a reconstrução da cidade

de Lisboa, Lillias percebe que começa a fazer parte do lugar. Esse é um dos indícios

para a mudança do aspecto do mês de abril. Aos poucos, ele se aproxima de representar

verdadeiramente a primavera.

No momento em que Lillias desperta o interesse de Jayme, por quem estava

apaixonada, é que abril ganha, finalmente, ares de primavera:

70

O enigma de Lillias coincidiu com a chegada dos rigores do inverno. Entravam os amores de quarentena, excepto as cortesias de salão, em que os pés se tocavam sob as mesas enquanto se jogava o faraó. Mas os encontros mais aventurosos ficavam adiados para Abril. A própria natureza interrompia o seu papel de dissimuladora. Matas, jardins, paredes de arvoredo deixavam de oferecer opacidade (LF, p. 195).

A natureza, finalmente, “interrompe seu papel de dissimuladora”. Mesmo assim,

a vontade de Jayme de desvendar o “enigma” que cercava Lillias teve que ser contida,

pois estavam “os amores de quarentena” com a chegada do inverno. A luminosidade

que emana dos olhos de Lillias agora está em todo seu corpo e também na paisagem,

deixando, enfim, de “oferecer opacidade”. Porém “os encontros mais venturosos

ficavam adiados para Abril”, assim, a chegada de abril traz consigo um sentimento de

esperança.

O tempo histórico que o romance abarca é um tempo tão dolorosamente

negativo que impede inclusive a primavera. A estação das flores só vai ocorrer, de fato,

com o amor de Lillias e Jayme:

Então uma espantosa primavera caiu sobre Lisboa, e as canções dos africanos elevavam-se no ar, como o sol os resgatasse à servidão. Jayme saiu chamado pela cidade. Mas esperou que Lillias o seguisse. Reconhecia nela, finalmente, uma forma perigosa de beleza. Sentia quando os outros se assustavam, evitando tocá-la, nessas ruas ainda tão atoladas com entulho que as pessoas passavam uma a uma, e tinham que entender-se no seu trânsito. Não andavam inglesas por ali, nem sequer irlandesas, que eram pobres, e assim, a claridade de Lillias não podia passar despercebida (LF, p. 198).

É uma primavera do personagem e não do tempo histórico. Se antes, quando

chegara a Portugal, a luz que emanava da menina estava em oposição com o tempo,

agora é ela quem, de certa forma, contagia com sua claridade o tempo histórico. O amor

de Lillias faz com que “uma espantosa primavera” surgisse. Sua perigosa beleza é

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também a perigosa beleza de enxergar que a destruição pode trazer também renovação.

Essa é a última vez que a narradora se refere a abril.

A idéia da importância do papel do artista, destacada quando analisamos a

enunciação, é retomada também no enunciado, quando os homens da família Fraser se

reúnem para divertirem-se com as lembranças da guerra. Os adultos riem e bebem

comemorando suas façanhas durante a batalha enquanto Lillias e seu irmão, Eavan,

ainda crianças, observam tudo. Eavan fica fascinado com o que ouve, registrando em

sua memória como a guerra poderia criar momentos de diversão para ele e sua família.

A narradora percebe o perigo da associação do divertimento à violência: “E foi talvez

esse relato que o matou, foi porque a guerra, como o tio lhe mostrava, não era mais que

uma brincadeira que punha toda gente a gargalhada. Na manhã de Culloden, Eavan saiu

furtivamente atrás do pai e de irmão” (LF, p. 36). Percebe-se que não só o assunto que a

memória abarca como também o modo como ela é transmitida exercem grande

influência no sujeito que a recebe. A interpretação que seus familiares tinham da batalha

foi decisiva para ela se instaurar como algo positivo no imaginário de Eavan. Além

disso, o clima criado em torno das histórias sobre a guerra, leva o menino a registrar em

sua memória afetiva que a guerra traz momentos de união e confraternização.

Contar histórias é uma das formas de manter viva a memória de um povo, assim

como cultivar seus hábitos. Essas ações colaboram para que a memória se perpetue. Por

esse motivo, após o massacre de Culloden, os ingleses tentaram suprimir as memórias e

tradições escocesas, a fim de exercer completamente sua dominação. Por esse motivo

“tudo o que desse identidade aos escoceses veio a ser proibido, sob pena de expatriação,

prisão ou morte” (LF, p. 17). O episódio que narra a fascinação de Eavan com a

memória de seu povo leva à reflexão de como a memória pode tornar-se guia para

72

escolha de nossos caminhos. O filósofo francês Henri Bergson, ao refletir sobre o modo

pelo qual acessamos nossas memórias, afirma que:

A escolha de uma semelhança entre muitas semelhanças, de uma contigüidade entre outras contigüidades, não se opera portanto ao acaso: depende do grau constantemente variável de tensão da memória, a qual, conforme se incline mais a inserir-se na ação presente ou afastar-se dela, transpõe-se por inteiro em um ou em outro tom (2006, p. 284).

A “tensão da memória” referida por Bergson influencia o modo como a

narradora conduz a história, bem como o caminho de Lillias e dos outros personagens.

Trataremos agora da forma como a memória concretiza esses caminhos. No nível do

enunciado encontramos diversos elementos que nos fornecem matéria para trabalhar o

conceito de memória. Como, por exemplo, o apagamento do sobrenome Fraser. Lillias

troca de sobrenome involuntariamente durante toda narrativa. Para se salvar do

Massacre de Culloden, ela não se pode apresentar como uma Fraser. Em contrapartida, é

justamente por descender do clã dos Fraser que Lillias foi acolhida por Lady Anne

MacIntosh. Para salvar a vida da menina, Anne afirma que ela se chama Georgina,

nome verdadeiro de sua criada. Quando é entregue às solteiras Connelly que a levam

para Portugal, Lillias passa a ser apresentada como Lillian MacLean, o que,

curiosamente, resgata suas origens escocesas: “Tinham lhe dado o apelido de MacLean,

de modo a apagarem-se os vestígios daquela mãe londrina que decerto a baptizara no

seu próprio nome. Sem o saber, eles devolveram Lillias à sua identidade de escocesa”

(LF, p. 64). Em Portugal, vivendo no convento com sóror Thereza a menina finalmente

compreende o perigo de assumir suas origens e por isso prefere escondê-las:

Tinha idade bastante para mentir a respeito de certos episódios. Dizia-se nascida em Edimburgo e entregue às Davidson depois que os pais morreram de doenças de inverno. Essa era a história que podia contar. Palavras como Fraser, Culloden, ou Anne MacIntosh jaziam num

73

terreno inominável, tão privado quanto uma cicatriz no baixo-ventre (LF, p. 88).

Lillias não tem possibilidade de afirmar seu nome por isso recria sua história, “a

história que podia contar”. A rasura de seu nome é também a rasura da História, de sua

memória, pois “a ausência do nome de família concorda com a experiência do vazio”

(TADIÉ, 1992, p. 65). Mais à frente na narrativa, Lillias é registrada por Cilícia com

uma idade inferior à que realmente tinha e tem seu nome mudado para Lília Peres,

apagando de vez qualquer traço que ligue seu nome a suas origens.

Ao final da narrativa, Lillias e Cilícia estão em Almeida atrás de Jayme e são

convocadas à presença do coronel das tropas inglesas, Francis MacLean. O coronel

vivia com saudades de seu país, por isso:

Convocava coisas da Escócia que o pudessem iludir, apagando o calor e as ervas secas. Mas nem a música, ou o canto, ou a comida, nabos e bucho de carneiro recheado que não tomavam sabor natal, nada o levava, como um sonho, pelos ares. Muito de vez em quando, no seu sono, uma recordação do cheiro a turfa enchia, como a tinta de um cenário, o quarto de paisagens escocesas (LF, p. 249).

Todas as tentativas do coronel para iludir-se com o intuito de reviver seus

momentos na Escócia eram frustradas. Só através do sonho é que ele retornava a seu

país. E eram sonhos tão intensos que acionavam “uma recordação do cheiro a turfa”,

que transformava o ambiente em uma paisagem escocesa. Mais uma vez, memória e

imaginação se confundem. Essa confusão se torna mais marcante quando o coronel

passa a conviver com Lillias.

O Coronel MacLean quis falar com Lillias, mas julgava-a portuguesa e por isso

enfureceu-se com a ausência de seu intérprete a ponto de praguejar em sua língua

original. Ao reconhecer sua língua, Lillias sorri:

74

Ela temeu que o tempo lhe tivesse retirado as palavras. E bateu com a mão no peito, a libertá-las daqueles anos. Então, um misto de gaélico e de inglês, unificados pela fonologia, áspera e, no entanto, modulada, como inventada para canções guerreiras, passou da sua boca para os ouvido dos do coronel que deu um urro de alegria (LF, p. 250).

Lillias passa a viver com MacLean e em sua presença era como se “toda a

Escócia entrasse na caserna do coronel” (LF, p. 254). A presença de um para o outro

passa a significar um resgate de suas memórias. Lillias não conta toda sua vida para

Francis, mas procura também não se distanciar do que realmente ocorreu. Diz que seu

nome é Lillian MacLean, último nome que teve ao sair da Escócia. O sobrenome

MacLean aproxima mais ainda o coronel da jovem, ele julga que são parentes, por isso,

apesar de extasiado com a presença de Lillias, não consegue tocá-la.

A atmosfera criada na casa do coronel devido a sua convivência com Lillias os

enternece a tal ponto que “o céu da Escócia, cheio de arco-íris, corria-lhe por cima, em

vez do tecto” (LF, p. 263). Desse modo, os dois recriam a Escócia em um mundo

imaginário, alimentado pelas suas memórias. Imerso nesse ambiente fictício, permeado

de memória e sentimentos, o coronel pôde, enfim, vencer o “o escrúpulo do nome” (LF,

p. 259), superando o obstáculo que o possível incesto representava na relação dos dois.

Francis MacLean diz: “Com certeza tu és minha parente. Tal idéia, passada ao campo

do imaginário, como ficção, já não o assustava” (LF, p. 259).

Um dia, Lord Loudon visita a casa do coronel MacLean. Enternecida pela

alegria que sente Lillias começa a dançar e acaba por revelar seu verdadeiro nome.

Nesse momento, quebra-se o ambiente da imaginação e a História cai como um peso

sobre a realidade ali criada. O tio de Lillias, Donald Fraser, havia humilhado Lord

Loudon em uma batalha na Escócia. A presença de Lillias torna-se inaceitável após a

revelação de seu verdadeiro nome. Segundo Jean-Yves Tadié “a revelação do nome tem

qualquer coisa de sagrado, que, partindo dos livros santos, atravessa a epopéia, o teatro

75

para chegar nos romances” (1992, p. 64). O nome de família carrega a sua história, por

isso sua revelação é algo sagrado, pois é com a apresentação do nome que se reafirmam

as origens e a história. O nome não é apenas uma forma de denominação, mas uma

bagagem memorialística enraizada no indivíduo. Qualquer outro nome escocês que não

Fraser não seria carregado por tantas lembranças que provocariam nos ingleses tamanha

aversão. Por ser uma Fraser, Lillias é expulsa da casa de Francis MacLean.

O sentimento de saudade experimentado por Lillias e pelo coronel MacLean está

presente em outros personagens ao longo do livro. Quando teve que deixar sua casa,

Anne MacIntosh “olhou para trás, durante o tempo de que sua memória precisou” (LF,

p. 41). Era necessário registrar na memória a imagem do lugar que ela deixava, para

assim poder revisitá-lo, olhá-lo novamente. Alfredo Bosi afirma que a atividade própria

da contemplação é lembrar, pois:

A doutrina da anamnese funda-se na possibilidade de uma visão mental que alcança os reinos do pretérito, vencendo, neste seu ato, os limites do presente, que é infinito e mortal como todo tempo corpóreo. (...) Quem lembra, enquanto lembra, está triunfando sobre a morte. A reminiscência é o sol dos mortos (1990, p. 70).

Sendo assim, o último olhar de Anne MacIntosh para sua casa, não foi apenas

um olhar de contemplação, mas também para contemplação. A ligação da visão com a

memória se concretiza pois “o olhar, identidade do sair e o entrar em si, é a definição

mesma do espírito” (CHAUI, 1990, p. 61). A visão nos permite esse duplo movimento

através do qual recebemos o que o mundo nos expõe e expomos o que assimilamos

dessa recepção. Com relação à memória, as imagens assumem papel fundamental, pois

auxiliam no registro de determinada experiência. Porém, quando olhamos para a

memória do passado imprimimos nosso novo olhar formado pelas experiências do

76

presente. Nossa memória busca associações para facilitar nosso entendimento. Por esse

motivo, diante do medo de um lugar desconhecido e do pesar de tudo o que abandonara,

quando Frances (Fanny) Connelly desembarca em Portugal sua expressão é de quem

“deixara os olhos na Escócia” (LF, p. 75). Ela começa a buscar semelhanças na

paisagem portuguesa que a remetessem a seu país:

Ao encetarem a descida para Lisboa, Fanny avistou uma charneca arroxeada. “Urze”, gritou. E seu contentamento, o seu sotaque quase indecifrável, levaram os ingleses a sorrir. Aileen estava corada de vergonha. Mas o entusiasmo da sobrinha tornava aquelas léguas agradáveis e quase todos a cumprimentaram quando chamou à Moira outro Kinghorn e comparou as marés daquele rio às do seu Firth (LF, p. 76).

O sentimento de Fanny era partilhado por todos os escoceses que chegaram com

ela no navio e agora estavam a caminho de Lisboa. A felicidade era apenas um

“contentamento” por poderem se sentir mais uma vez próximos de onde vieram. Fanny

busca uma forma de pertencer a esse novo país, tornando-o mais semelhante ao

ambiente em que se sente segura, seduzida pela memória acionada pela paisagem que

vê. Ainda que esse jogo da memória de Fanny estabeleça uma aproximação entre sua

terra e o país em que se encontra, ao mesmo tempo, ele causa um distanciamento,

impedindo-a de ver as paisagens como pertencentes a Portugal. Fanny é seduzida pelos

sentidos e acaba por “perder-se naquilo que vê, pois o homem que contempla é

absorvido pelo que contempla” (NOVAES, 1990, p. 10). O afastamento da terra natal

causa a sensação de deslocamento, agravada pela falta do convívio com a língua

materna. Para suprimir o sentimento de não pertencimento, a memória de Fanny busca

semelhanças que diminuam a sensação de deslocamento, contudo, a mesma busca a

manterá para sempre exilada e estrangeira.

77

O sentimento de exílio que Fanny demonstra através de seu discurso é também

vivenciado, curiosamente, por Jayme. Apesar de ser português, é quando ele regressa a

casa e passa a viver o cotidiano de Lisboa que começa a sentir saudades. Jayme passou

muito tempo servindo o exército, afastado de Portugal, por isso é no estrangeiro que ele

se sente em casa. A primeira vez que Jayme olha nos olhos de Lillias, ela retribui com

um sorriso:

“De que ris tu?” “Da chuva meu senhor” – respondeu ela. E com essa resposta, Jayme ouvia contar toda uma história de exilada. Ele mesmo sentia algumas vezes saudades do norte da Europa, dos céus cinzentos, cheios de arco-íris. Uma perda comum os empurrava um para o outro, no recanto da janela (LF, p. 196).

Lillias já havia despertado a curiosidade de Jayme por ter aparência de inglesa e

provocar distanciamento das pessoas que temiam seus poderes. Mas só quando ele

descobre que eles partilham o mesmo sentimento de deslocamento é que finalmente se

aproxima dela. Na noite que se seguiu ao breve diálogo citado, Jayme e Lillias

dormiram juntos pela primeira vez.

No nível do enunciado, há uma oposição entre o conhecimento da memória e a

construção do discurso, contrariando, de certa forma, uma tendência consolidada de

tomar a memória como geradora de discurso. Lillias é capaz de prever a morte, por isso,

de certa forma, tem conhecimento sobre aquilo que um dia virá a ser a memória das

pessoas. Essa relação que ela mantém com os prognósticos de futuro é toda infrutífera

para seu discurso. Afinal, Lillias é um personagem que se mantém calada por quase toda

a narrativa, nunca iniciando um diálogo e falando só quando solicitada. Todavia, a

mesma relação é muito frutífera para o discurso narrativo. Lillias, quanto mais tem

intimidade com a memória, mais é obrigada a calar. Além de ser obrigada a calar sua

memória Fraser, é também obrigada a calar sobre a visão da morte dos outros. Ou seja,

78

quanto mais memória tem, mais cerceada da fala ela é. Em oposição a isso, mais a

narrativa tem o que contar.

“Memória e palavra, no fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do

tempo reversível” (NOVAES, 2006, p. 28), no entanto, a relação que Lillias estabelece

com o seu dom, leva a crer que para ela não existe reversibilidade para a morte. Para

entender melhor essa relação é necessário resgatar algumas passagens do livro. Ao ter

essas visões quando criança, Lillias não sabia distingui-las da realidade. Por não

conseguir entender o que se passava, não consegue colocar em palavras aquilo que vê

do futuro.

Aos poucos, vai se acostumando com as visões, mas prefere calar-se por outro

motivo. Acredita que falar às pessoas sobre a morte anteciparia os fatos, criando uma

grande confusão. Sendo assim, quando prevê o terremoto de Lisboa, Lillias prefere

calar-se, pois pensou que seu alerta “criaria um estado tal de confusão que os acidentes

começariam a acontecer antes de o terremoto os provocar” (LF, p. 8). Para Lillias seus

sonhos com o futuro “não passavam, talvez de pesadelos, dirigidos à alma, não ao

corpo. O sonho era uma teia. E, ao escapar-lhe, Lillias levava os filamentos agarrados”

(LF, p. 99). Assim, por mais que as visões não tenham realmente acontecido ainda, elas

deixam marcas na menina, tornando-se, paradoxalmente, uma memória do futuro.

Quando vão assistir à execução do padre Gabriel Malagrida que será queimado, Cilícia

e Ana tentam convencer Lillias a ir com elas, mas a menina se recusa e responde:

“Outra vez não” (LF, p. 221). Ela não quer reviver o que reconhece como passado, o

que para ela já é memória. O filósofo francês Paul Ricoeur enxerga no reconhecimento

uma das questões mais profundas da memória:

Reconhecer uma lembrança é reencontrá-la. E reencontrá-la é presumi-la como principalmente disponível, se não acessível. Cabe, pois, à experiência do reconhecimento remetê-la a um estado de

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latência da lembrança da impressão primeira cuja imagem teve de se constituir ao mesmo tempo que a afeição originária: pois como um presente qualquer se tornaria passado se ele não se tivesse constituído como passado ao mesmo tempo em que era presente? Esse é o paradoxo mais profundo da memória. O passado é contemporâneo do presente que ele foi (2006, p. 138).

O paradoxo da memória, destacado por Ricouer, estabelece uma complexa

relação entre os tempos passado e presente. “Como um presente qualquer se tornaria

passado se ele não se tivesse constituído como passado ao mesmo tempo em que era

presente?” Entendemos a partir da pergunta do filósofo francês que ao vivenciarmos

uma experiência no presente só a armazenamos em memória se ela faz algum sentido

para nós. Esse sentido só se realiza porque remete a alguma experiência do passado.

Assim, o passado faz sempre parte do presente. Para Lillias, essa experiência é ainda

mais complexa, afinal, muitas vezes, o que para ela já é passado, ainda não aconteceu de

fato.

Acreditando na inutilidade de seu dom, Lillias passa a evitar olhar para as

pessoas, “baixava o rosto e seguia seu caminho, cada vez menos dada à compaixão (LF,

p. 48):

Tarde após tarde, Lillias recebia, no seu olhar dourado, informações sobre os dias futuros daqueles homens (...) Lillias olhava e não se comovia, deixara de assustar-se com as visões. Aprendera sozinha a distinguir entre o presente e o anunciado, e tinha sobretudo a percepção da inutilidade do seu dom. Enquanto o seu olhar corria mais depressa do que as horas de uma vida e alcançava a pessoa moribunda, os outros continuavam a falar, a cantar e a dançar algumas vezes, sempre que pernoitava um tocador. Naturalmente, todos morreriam. E, ainda que ela quisesse dar aviso, dizendo como, o quando não sabia, não mais faria que acabar com o serão e desvendar a falsidade da mudez, a sua linguagem das montanhas (LF, pp. 57-58).

Parece que o importante para se evitar o futuro é o quando e não o como, mas

isso Lillias não era capaz de prever. Ela aprende desde criança que o homem está

condenado à morte e não há nada que se possa fazer para evitar que isso aconteça. O

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olhar de Lillias “corria mais depressa que as horas”, antecipando para a menina o

sofrimento que a morte pode trazer. Não sendo capaz de falar sobre suas visões, Lillias

prefere esconder-se na falsa mudez e não falar sobre nada.

Apenas quando se sente acolhida pelas freiras no convento inglês de Lisboa é

que Lillias desperta para um novo sentimento em relação às suas visões. Ela não deixa

de ver a morte daquelas mulheres que a cercavam de carinho e afeto, mas “aprendera a

desviar os olhos. Já conhecia a qualidade das visões que antecipavam o desastre sem

que se pudesse fazer nada para o impedir. Era uma graça da qual ela começava a

defender-se como de uma maldição” (LF, p. 91). Lillias aprende a “desviar o olhar”

talvez para evitar vivenciar a morte de pessoas de quem gostava. Esse aprendizado será

muito útil no futuro quando se apaixonar por Jayme: “Se eu nunca o vir morrer, talvez

não morra, pensou, a certa altura. E nunca mais ergueu os olhos para os olhos dele” (LF,

p. 195).

Lillias volta a falar no convento, pois, finalmente, a “ouviam com benignidade,

mas a compaixão levava-a novamente para o silêncio. No entanto, sem querer,

enternecia-se com aqueles que sabia condenados” (LF, p. 91). O dom de Lillias traz um

aspecto muito cruel para a vida da menina. Ela nunca é poupada de vivenciar a morte de

seus entes queridos. Justamente no ambiente em que se sente à vontade para falar,

Lillias não o faz, pois não quer trazer a morte àqueles que a acolheram.

Além de calar-se pela impossibilidade de lidar com suas memórias do futuro,

Lillias utiliza sua mudez como uma forma de proteção. Para salvá-la do massacre de

Culloden, a velha que a protege diz: “Não te mexas, não fales. Não fales, repete” (LF, p.

10). A mesma fala é dita por Lady Anne MacIntosh para salvá-la da perseguição dos

ingleses: “Fica calada, ouviste? Nunca fales. Não digas nada. Nunca fales, repetiu” (LF,

p. 39). Assim, Lillias registra em sua memória que o silêncio é também uma forma de

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manter-se a salvo. Mesmo quando deixou a Escócia em direção a Portugal, e ficou

apavorada com o mar, Lillias “não cedeu à tentação de se livrar do medo por palavras.”

(LF, p. 71). A boca fechada já a defendera e falar não parecia uma boa idéia, pois

lembrava-se de que no momento de sua partida para Portugal dissera que se chamava

Lillias Fraser e “ouvira-os gritar à sua volta, como se um animal os atacasse” (LF, p.

71). Nesse momento, Lillias aprende que não pode apresentar seu nome verdadeiro e

que falar era muito perigoso.

As associações feitas pela memória de Lillias com seu momento presente

preenchem o livro de significados. No entanto há uma lembrança que se destaca: a que

corresponde ao momento em que, na garupa de Anne MacIntosh, Lillias deixa sua

cidade. É interessante notar que esse episódio é apresentado pela primeira vez como

uma das visões de Lillias. A visão acontece após os escoceses comandados por Donald

Fraser venceram os ingleses em uma batalha. A família Fraser se dirige a Moy Hall para

comemorar o seu grande feito:

Depois a porta de Moy Hall abriu-se e a guarnição saiu ao seu encontro. O tio de Lillias, Donald, encarregado dos trabalhos de forja, arrancou-a dos ombros do irmão. Tomou por uma estrada para torre e foi depô-la, como um cachorrinho, aos pés de Lady Anne. Lillias viu-a chorar. Estava ao seu colo e percorriam um caminho assustador. Então gritou e a visão desapareceu. “Faço-te medo?”, perguntava Anne. Levantou-a nos braços e dançou com a criança, contra as cores do horizonte (LF, p. 33).

Quando pequena, as visões de Lillias anunciavam que um dia ela deixaria aquele

lugar com Anne para começar a percorrer “um caminho assustador.” Lillias lembra-se

dessa visão justamente quando está entrando em Moy Hall fugindo do massacre de

Culloden. Dessa forma, temos uma lembrança dentro da outra, sendo que a primeira era

na realidade uma visão do futuro. A mesma sensação de despedida é sentida por Lillias

ao final da narrativa quando parte com Blimunda. Sua memória a leva para outro

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instante e “naquele inverno português, a rapariga entrelaçava novamente os dedos à

cintura de Lady MacIntosh e, sob a chuva, ia cheirando os seus cabelos (LF, p. 282).

A imagem materna é algo que conduz sempre a memória de Lillias. A começar

pela bonita cena em que a mãe, já morta, a guia para longe de Culloden e a entrega à

Anne:

Margaret Fraser apareceu à porta, riu e estendeu os braços para a filha. Lillias correu em sua direcção. Porém, a casa, a mãe e tudo em volta, iam fugindo para trás, voavam rente ao chão nevado da floresta e Lillias nunca mais os alcançava. Não se lembrou, no entanto, de parar e também isso lhe salvou a vida(...) Estava enraivecida com a mãe e era essa raiva que a alimentava. “Espere, espere”, gritou. Margaret queria dar-lhe um sinal para que se calasse, mas só tinha direito a uma imagem e escolhera a da mãe que estende o braço, para que Lillias visse o seu perdão (LF, p. 27).

“A casa, a mãe e tudo em volta, iam fugindo para trás, voavam rente ao chão

nevado da floresta e Lillias nunca mais os alcançava.” Só poderiam ser alcançadas

novamente através da lembrança. Um dos modos que a memória de Lillias encontra

para fazer isso é transferir algumas lembranças que tem de sua mãe para Anne. Assim,

mesmo que pensasse em Lady MacIntosh “a memória de seu riso, do seu colo, do

sacudir da sua mão, essa sofria como um deslocamento de vingança e ia colar-se sobre

Margaret. Certa justiça havia nisso, porque foi, de facto, a mãe quem a salvou da morte”

(LF, p. 47).

Todas as personagens femininas da narrativa que representam, de alguma forma,

uma figura materna, realizam um gesto parecido para com Lillias, elas a conduzem pela

mão. Não uma condução terna e cheia de afeto, mas mesmo assim uma condução

protetora. A velha faz isso para escondê-la do massacre, Georgina a arrasta para dentro

de Moy Hall e a leva até Anne, que por sua vez a carrega para protegê-la dos ingleses.

Sóror Thereza a carrega pela mão com mais cuidado, deixando Lillias dormir no seu

quarto e, por fim, Blimunda também conduz Lillias para longe de Portugal e da História

83

catastrófica. Todas essas imagens remetem Lillias à sua própria mãe, Margaret, que

possuía um toque rude, mas usou sua última imagem para acionar a memória da

menina, não só salvando-a da morte, mas também conduzindo-a para vida.

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4. CHEGANDO AO DESTINO: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não, não era ainda a era da passagem do nada ao nada, e do nada ao seu restante. Viver era tanger o instante, era linguagem de se inventar o visível, e era bastante. Falar é tatear o nome do que se afasta. Além da terra, há só o sonho de perdê-la. Além do céu, o mesmo céu, que se alastra num arquipélago de escuro e de estrela.

Antonio Carlos Secchin

“Falar é tatear o nome do que se afasta” como bem ensina a epígrafe desse

capítulo. Por esse motivo, nosso contato com o passado é feito através da linguagem

como uma tentativa de não se deixar perder aquilo que ajudou a formar nosso presente.

A fala possibilita essa busca e essa relação, seja quando compõe um discurso histórico

ou literário. Através dela podemos estabelecer uma memória coletiva e, assim, associar

nossa memória individual a determinadas representações sociais.

Em Lillias Fraser, a linguagem aparece associada à memória de duas maneiras.

No nível da enunciação, verifica-se que a memória é, não só provocadora do discurso,

mas também componente essencial para que ele se realize. Já no enunciado, a tensão da

memória se concretiza de diferentes modos, criando em Lillias uma barreira que a

impede de concretizar seu discurso.

A enunciação demonstra que a memória assume papel fundador no que concerne

às representações sociais e à identidade cultural. Os caminhos da literatura e da História

se estreitam uma vez que ambas, necessariamente, se utilizam da memória. Lillias

Fraser se apresenta como uma metaficção historiográfica, reafirmando o “poder da

ficção de preencher os ‘silêncios’ da história” (CERDEIRA, 1989, p. 28). As

85

metaficções historiográficas ao mesmo tempo em que rearticulam os discursos da ficção

e da História acabam por transformarem-se elas próprias em mais um meio de

representação através do qual atribuímos novos sentidos ao passado.

Esses novos sentidos fazem com que a metaficção historiográfica atue sobre a

memória coletiva de determinada sociedade. Se a memória é um articulador de

identidades sociais, as transformações que ela sofre vão também modificando o modo

pelo qual as sociedades se conhecem. Concluímos, então, que a metaficção

historiográfica, como pudemos observar através do livro de Hélia Correia, leva a

questionamentos sobre o modo como nos relacionamos com nosso passado e,

conseqüentemente, transforma o modo de entender nosso presente. Assim, as

metaficções historiográficas nos possibilitam um contato reflexivo com o passado.

Além disso, o jogo de intertextualidades presente na enunciação é outro

elemento que ratifica a importância da memória na composição da narrativa. As

ligações intertextuais só podem ser feitas através da memória, condicionando o seu

significado a alguma experiência prévia. Assim, cada leitor, com seu conhecimento

próprio, apreende os intertextos apresentados na narrativa. Da mesma forma, a

narradora se utiliza de intertextos para realizar sua composição.

A filósofa Marilena Chaui afirma que memória e experiência “articulam-se à

palavra porque esta pode ser transmitida e conservada” (1990, p. 48). Portanto,

entendemos que a palavra é um dos principais meios de propagação da memória e,

sobretudo, a palavra escrita possibilita uma extensão de armazenamento da nossa

memória, graças à qual podemos “sair dos limites físicos dos nossos corpos e estar

entrepostos nos outros ou nas bibliotecas” (ATLAN apud LE GOFF, 1984, p. 12).

Narrar uma história é também partilhar a memória com os que a ouvem ou lêem.

Através da narrativa de Lillias, a narradora partilha sua memória com seus leitores.

86

No nível do enunciado, mesmo que Lillias não desenvolva um discurso próprio,

são muitas as ligações estabelecidas pela memória. Repensando a relação autora,

narradora e personagem, nota-se que apesar de ela não falar, a narrativa fala por ela.

Lillias tem uma ciência que lhe indica que não vale a pena falar. Ela foi feita no silêncio

do passado e optou pelo silêncio do futuro. Ficou sem tempo e sem espaço e só pode ser

salva no intervalo entre Portugal e Espanha, isto é, fora da História e da geografia do

senso comum.

Os personagens são afetados por acontecimentos traumáticos, tais como o

terremoto, a guerra, a inquisição, o exílio e permanecem ligados ao seu passado e à sua

história através da memória. Nesse sentido, destaca-se a memória sensorial, aquela que

registra em nós as sensações que cada experiência passada pode provocar. É essa

memória que, inúmeras vezes no decorrer da narrativa, remete os personagens a

sentimentos do passado que determinam suas ações do presente. Esse tipo de memória é

acessado por Lillias toda vez que ela experimenta o sentimento da partida e é capaz de

sentir o cheiro do cabelo molhado de Anne MacIntosh e o vento que batia em seu rosto

quando as duas deixaram Moy Hall.

Recorrentemente, as lembranças de sensações se antecipam às lembranças de

acontecimentos de forma que resgatamos algum sentimento e, apenas posteriormente,

conseguimos associá-lo aos fatos que os provocaram. Sobre esse fenômeno de

associação da lembrança Henri Bergson afirma:

Nossa lembrança permanece ligada ao passado por suas raízes profundas, e se, uma vez realizada, ela não fosse sentida em sua virtualidade original, se ela não fosse, ao mesmo tempo que um estado presente, algo que decide sobre o presente, jamais a reconheceríamos como uma lembrança (BERGSON apud RICOUER, 2006, p. 137).

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Essa reflexão apresenta um entendimento de que o tempo não é linear. A

memória desperta o enigma da presença na ausência, uma vez que devido a uma

experiência do presente resgatamos algo guardado no passado. Bergson nos ensina que

nosso passado é capaz de agir ao inserir-se numa sensação presente da qual ele toma

emprestada a vitalidade. Esse jogo com o tempo também está presente de maneira mais

complexa na narrativa pelo fato de Lillias ter visões do futuro, tornando fatos que ainda

não aconteceram experiências já passadas.

Nossa memória busca imagens para preencher-se de significados, muitas vezes

atravessando a linha tênue que a separa da imaginação. Afirmamos ao longo da

dissertação que o tempo histórico referido pela narradora era tão difícil de lidar que a

saída para Lillias foi encontrada na memória literária, pela utilização do personagem de

Saramago. Nota-se que de todas as figuras maternas na vida de Lillias, apenas a mãe

ficcional, Blimunda, é quem permanece e sela o destino da menina. Contudo, entre a

mãe biológica, Margaret, e a mãe que permanece, Blimunda, há uma aproximação no

que se refere ao modo como as duas salvam Lillias. Enquanto Margaret salvou Lillias

ao chamá-la de lugar nenhum ( da morte), Blimunda salva Lillias ao levá-la para lugar

nenhum, um que não existe no espaço físico.

Há de se destacar uma última questão do enunciado acerca da idéia de memória,

a ligação desta com a morte. A morte, objeto das visões de Lillias, é um dos principais

temas da narrativa, sendo logo no início apresentada com um aspecto personificado:

“Mais, na sua fadiga, avança, avança. Vai empurrada pela soldadesca, desce a colina,

espalha-se nos vales. Está se tornando um matador mecânico e todos os seres vivos são

tocados pela sua navalha. Levanta-se um incêndio dos seus passos” (LF, p. 24).

Entendemos que no incêndio causado pela morte, muitas memórias se perdem,

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representadas pela destruição dos lugares e o fim da vida das pessoas. Além disso, o

contato tão freqüente com a morte impede Lillias de partilhar suas memórias.

Seguindo um percurso através da memória em Lillias Fraser entendemos que

“quem lembra, enquanto lembra, está triunfando sobre a morte. A reminiscência é o sol

dos mortos” (BOSI, 1990, p. 70). Ao final de nossa leitura, a memória mostra-se mais

do que um elemento da rememoração, recordar é também transpor a distância imposta

pelo tempo. É um modo de sobrepujar a morte. A literatura é o local de registro das

artimanhas da memória, perpetuando nos leitores os rastros de outras histórias.

89

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