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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 3 Número 9 março 2013 Edição Especial Homenageada PROFESSORA DOUTORA MARIA LUIZA BRAGA 223 LÍNGUA, VARIAÇÃO E ENSINO Rosemere de Almeida Aguero 1 [email protected] RESUMO: Trato, neste ensaio, das relações entre língua, variação lingüística e o ensino da Língua Portuguesa, pelo viés da Sociolinguística. Embora esse campo de estudos tenha buscado eliminar preconceitos ao postular que todas as línguas e variedades são igualmente complexas, reconhecendo a heterogeneidade como propriedade inerente a todo sistema linguístico e a competência linguística dos falantes como atributo que o leva a selecionar formas alternativas disponíveis no sistema; o ensino da Língua Portuguesa ainda tem se pautado em uma tradição pedagógica que estabelece apenas uma variante como padrão, definindo-a, institucionalmente, como norma. A questão entre língua, variação e ensino, longe de ser de natureza puramente pedagógica, cruza fronteiras de ordem social que passam pela classe social do falante e pela aceitação institucional de variedades não-padrão, como integrantes do sistema de comunicação brasileiro. Buscando discutir essas questões, parto, inicialmente, de uma perspectiva histórica dos estudos lingüísticos, mobilizando teorias que refletem concepções da língua como constitutivamente homogênea, até chegar a sua compreensão como fenômeno eminentemente social. Na sequência, discuto questões que passam pelas políticas públicas, em sucessivos regimes, que negligenciaram as variedades faladas pela imensa maioria do povo brasileiro, chegando ao ensino da Língua Portuguesa na contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: língua; variação, ensino; Língua Portuguesa. ABSTRACT: The issue of this essay is the relations between language, linguistic variation and Portuguese Language teaching, focusing on a Sociolinguistics approach, which has been trying to eliminate prejudice by saying that all languages and varieties are equally complex, as well as by recognizing variation as part of every linguistic system and the speaker competence as an attribute that takes him/her to choose different structures of the system, according to the context of the interaction. However, in spite of it, the Portuguese Language teaching still is focused on an educational tradition that accepts only one variant as standard, defining it, institutionally, as norm. The issue about language, variation and teaching is not only a concern of pedagogical nature, but also one that crosses the boundaries of social order, that pass through the social class of the speaker and through the institutional acceptance of varieties which are not standard as part of the Brazilian communication system. Seeking to discuss these issues, I start from a historical perspective of the linguistic studies, taking into consideration theories which consider the conceptions of language as elementarily homogeneous, and then I discuss language as a phenomenon eminently social. After, I discuss the public policy, in successive regimes, which neglected the varieties spoken by the majority of the Brazilians, and, finally, the Portuguese Language teaching nowadays. KEYWORDS: language; variation, teaching; Portuguese Language. 1 1 Docente do Curso de Letras da UEMS - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Mestre em Letras pela UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e doutoranda em Letras pela UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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LÍNGUA, VARIAÇÃO E ENSINO

Rosemere de Almeida Aguero1

[email protected]

RESUMO: Trato, neste ensaio, das relações entre língua, variação lingüística e o ensino da Língua

Portuguesa, pelo viés da Sociolinguística. Embora esse campo de estudos tenha buscado eliminar

preconceitos ao postular que todas as línguas e variedades são igualmente complexas, reconhecendo a

heterogeneidade como propriedade inerente a todo sistema linguístico e a competência linguística dos

falantes como atributo que o leva a selecionar formas alternativas disponíveis no sistema; o ensino da

Língua Portuguesa ainda tem se pautado em uma tradição pedagógica que estabelece apenas uma variante

como padrão, definindo-a, institucionalmente, como norma. A questão entre língua, variação e ensino,

longe de ser de natureza puramente pedagógica, cruza fronteiras de ordem social que passam pela classe

social do falante e pela aceitação institucional de variedades não-padrão, como integrantes do sistema de

comunicação brasileiro. Buscando discutir essas questões, parto, inicialmente, de uma perspectiva

histórica dos estudos lingüísticos, mobilizando teorias que refletem concepções da língua como

constitutivamente homogênea, até chegar a sua compreensão como fenômeno eminentemente social. Na

sequência, discuto questões que passam pelas políticas públicas, em sucessivos regimes, que

negligenciaram as variedades faladas pela imensa maioria do povo brasileiro, chegando ao ensino da

Língua Portuguesa na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: língua; variação, ensino; Língua Portuguesa.

ABSTRACT: The issue of this essay is the relations between language, linguistic variation and

Portuguese Language teaching, focusing on a Sociolinguistics approach, which has been trying to

eliminate prejudice by saying that all languages and varieties are equally complex, as well as by

recognizing variation as part of every linguistic system and the speaker competence as an attribute that

takes him/her to choose different structures of the system, according to the context of the interaction.

However, in spite of it, the Portuguese Language teaching still is focused on an educational tradition that

accepts only one variant as standard, defining it, institutionally, as norm. The issue about language,

variation and teaching is not only a concern of pedagogical nature, but also one that crosses the

boundaries of social order, that pass through the social class of the speaker and through the institutional

acceptance of varieties which are not standard as part of the Brazilian communication system. Seeking to

discuss these issues, I start from a historical perspective of the linguistic studies, taking into consideration

theories which consider the conceptions of language as elementarily homogeneous, and then I discuss

language as a phenomenon eminently social. After, I discuss the public policy, in successive regimes,

which neglected the varieties spoken by the majority of the Brazilians, and, finally, the Portuguese

Language teaching nowadays.

KEYWORDS: language; variation, teaching; Portuguese Language.

1

1Docente do Curso de Letras da UEMS - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Mestre em

Letras pela UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e doutoranda em Letras pela UFRGS

– Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’

de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz

funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que

permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a

maneira como sanciona uns e outros; as técnicas e os

procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o

estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona

como verdadeiro. (FOUCAULT, 1985, p. 12)

Preliminares

As relações entre a variação linguística e o ensino da Língua Portuguesa tem

sido objeto de inúmeras reflexões por parte de estudiosos que se dedicam às temáticas

da língua e sociedade, principalmente considerando-se a extensão territorial e as

diversidades existentes no país.

Reconhecendo a existência dessas diversidades, opto, neste estudo, pela

denominação ensino de Língua Portuguesa ao invés de ensino da língua materna, em

virtude das inúmeras críticas sofridas por esta última designação. Tais julgamentos

devem-se à imprecisão do sentido quando do seu uso em contextos multilíngues, casos

identificados em inúmeras regiões do país. Nesses contextos, como assinala Altenhofen

(2002, p. 142), a conceituação do que seja língua materna se torna complexa, pois “[...]

ultrapassa o plano meramente linguístico para abranger adicionalmente aspectos de

ordem histórica, social, política, educacional e psicológica [...]”.

Há algumas décadas estudiosos vêm acumulando pesquisas com o objetivo de

conhecer a realidade linguística do povo brasileiro e, principalmente, de contribuir

positivamente para as reflexões sobre as práticas do ensino da Língua Portuguesa, de

modo a proporcionar uma educação de qualidade a todos os segmentos sociais.

Para compreender a situação atual do ensino de Língua Portuguesa no país, é

necessário mobilizar algumas questões que passam pelo exame das políticas públicas de

sucessivos regimes políticos, que negligenciaram sistematicamente as variações faladas

pela imensa maioria da população brasileira, refletindo-se no ensino e na concepção de

língua. Questões relacionadas às diversidades das estruturas sociais são igualmente

importantes, pois cristalizaram-se ao longo da História, projetando-se nos números

alarmantes de brasileiros que, em pleno século XXI, figuram como semi-analfabetos

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funcionais, engrossando as estatísticas de um sistema educacional que reproduz

desigualdades.

Este ensaio vem mobilizar essas questões, propondo uma reflexão pelo viés da

teoria Sociolinguística, cujo esforço científico tem lançado luzes às questões que

envolvem língua, variação e ensino, contribuindo para a compreensão do caráter

político-ideológico do ensino da Língua Portuguesa e para o incentivo à construção de

instrumentais pedagógicos que transformem a educação lingüística no país.

2. A Linguagem na Antiguidade Clássica

A Lingüística, tal como a ciência que conhecemos hoje, data de uma época

relativamente recente. Reconhece-se seu grande avanço a partir do século XX. É,

entretanto, herdeira de estudos sobre a linguagem que remontam ao século IV a.C.

Neste século, os hindus, por razões religiosas, já estudavam sua língua para que seus

textos sagrados não sofressem alteração, ao serem cantados durante os sacrifícios.

Legaram-nos, dessa forma, descrições fonéticas e gramaticais minuciosas de sua língua,

verdadeiros modelos do valor e do emprego das palavras (LEROY, 2002, p. 15-6) que

antecederam, em séculos, os estudos estruturais desenvolvidos no século XX.

Os gregos não deixaram modelos linguísticos comparáveis aos dos hindus. É

inegável, contudo, que a Grécia, além de berço da civilização ocidental também se

estabeleceu, em seu apogeu, como um poderoso Império colonialista, cujas bases

sustentavam-se em sua própria cultura. O maior instrumento de poder grego, a língua,

era capaz de registrar e perpetuar o saber acumulado durante séculos de investigações

de natureza estética e filosófica. A doutrina teórica em uso era a Filosofia clássica, que

investigava a língua vinculada ao pensamento. Cientes de sua superioridade intelectual,

os gregos (helenos) negligenciavam outras línguas, por eles consideradas como bárbaras

(LEROY, Idem).

Pode-se dividir o período dos estudos linguísticos gregos em dois momentos, a

partir da antítese heleno-bárbaro: o período denominado helênico, correspondente ao

apogeu da civilização grega, e o helenístico, correspondente ao seu declínio (SENNA,

1991, p. 16).

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O período helênico foi uma época de intensa criação na cultura grega, em que

floresceram a Filosofia e a Literatura. Destacaram-se os estudos de Aristóteles, Sócrates

e Platão que buscavam elaborar uma teoria da linguagem, com base nos estudos da

significação das palavras. Investigações de filósofos estoicistas também se destacaram,

nesse período, dos quais herdamos as primeiras gramáticas de cunho normativo.

As invasões de Alexandre Magno marcaram, historicamente, o início do período

helenístico. Do constante contato bélico com outros povos, diante das modificações

inevitáveis sofridas pelo sistema linguístico, a língua grega, símbolo de poder, mostrou-

se suscetível às variações. O processo de variação aconteceu de modo concomitante à

decadência do Império, propiciando a associação equivocada entre decadência e

mudança. A partir de então, tentou-se deter as modificações da língua grega,

mobilizando-se uma série de intelectuais que sistematizaram normas que orientavam os

falantes a utilizar a língua do passado helênico (SENNA, Idem, p. 18-9), na tentativa de

preservar o status da cultura historicamente dominante.

Reconhece-se aí a origem da norma presente ainda hoje no ensino da Língua

Portuguesa, em nosso século.

Findo esse período, foi no século XX que registrou-se o aparecimento de

doutrinas teóricas concebidas especialmente para tratar de estudos referentes à

linguagem. A instituição de um método linguístico elevou os estudos da linguagem à

categoria de ciência, inaugurando teorias que nasceram com propósito de tornar

evidentes os dados da língua como objeto de investigação.

3. As Doutrinas Teóricas do Século XX

O Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, publicado em 1916, foi

o grande marco para os estudos da linguagem, no século XX. Fruto de um momento

histórico dominado pelo tecnicismo, a Linguística saussureana nasceu com o objetivo

de estudar as línguas naturais, observadas como objetos concretos, passíveis de análise,

a partir de um método científico.

Pode-se dizer que o Curso de Lingüística Geral, de Saussure, marcou o início

de uma Linguística autônoma, em que a língua, objeto da Linguística é

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concebida como um sistema interno de relações diferenciais,

independentemente de uma relação com ‘a coisa’ ou o objeto do mundo. É

evidente, em Saussure, obsessão de se definir a natureza do objeto ‘integral’,

‘concreto’, ‘verdadeiro’, ‘único’ da Linguística, evitando-se um aglomerado

de coisas confusas e heteróclitas, sem liame entre si (CARDOSO, 2003, p. 7-

8).

Não obstante as teses saussureanas terem representado uma inestimável

contribuição para os diferentes campos das línguas, principalmente a partir de teorias

acerca do valor relacional dos elementos linguísticos, da auto-suficiência do sistema, da

necessidade de se dissociar uma Linguística dos estados (sincrônica), do âmbito da

Linguística evolutiva (diacrônica), da natureza do signo e da distinção langue/parole,

excluiu, entretanto, toda consideração de natureza social e histórica da análise do

fenômeno linguístico. Nas teses do teórico, a langue é um sistema invariante, subjacente

à parole, que pode ser abstraída das variações observáveis na fala. A tarefa do linguista

é descrever esse sistema formal, por meio de uma abordagem imanente da língua,

privilegiando uma Linguística interna, em oposição à externa.

As teses de Saussure serviram de modelo ao Estruturalismo, corrente teórica

surgida na Europa, em fins do século XIX. Os estudos estruturais concentraram-se na

langue, por representar um estado idealizado da língua. Na construção de uma

gramática estruturalista, inventariavam-se longas listas de palavras que, posteriormente,

eram classificadas em classes, num trabalho minucioso e afinado ao modelo tecnicista

da época. Tais procedimentos de descrição e análise renderam ao Estruturalismo a

designação de doutrina da taxionomia.

O século XX registra o apogeu do pensamento estrutural. Encontramos,

entretanto, principalmente a partir de 1930, na Europa (Alkmim, 2004, p. 24), linguistas

cujas obras já relacionam a questão social aos fenômenos linguísticos. Dentre eles,

podemos citar Antoine Meillet, discípulo de Saussure, que, filiado à orientação

diacrônica da língua, não dissocia a história das línguas da história das sociedades;

Jakobson que também não ignora a relação entre língua e contexto social, postulando o

processo de comunicação e os aspectos funcionais da linguagem como ponto de partida

de suas teorias; Marcel Cohen, cujos estudos das relações entre as divisões sociais e

variedades linguísticas, permite estabelecer temáticas, tais como a distinção entre

variedades rurais e urbanas, entre classes sociais, grupos minoritários, estilos de

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linguagem, dentre outras; e Benveniste, que articula a relação entre língua e sociedade,

reconhecendo que é pela língua que indivíduos e sociedade se autodeterminam.

Na lacuna dos estudos saussureanos se inscreveu outra corrente linguística,

nascida como uma teoria da sintaxe, a partir das concepções de Noam Chomsky e da

tradição linguística americana. Essa posição, denominada Gerativa, afastou-se da mera

descrição dos enunciados realizados, partindo para o âmbito das estruturas sintáticas.

Não obstante constituir-se em inegável avanço teórico, mostrou-se, em alguns pontos,

controversa, principalmente no postulado de alguns conceitos como o de produtividade,

uma vez que certos enunciados, teoricamente possíveis, podiam ser interditados na

interação verbal; do falante ideal, não afetado em sua performance por fatores externos;

dos conceitos de competence/performance, muito próximos à langue/parole

saussureanas e dos universais linguísticos, já mencionados em gramáticas dos séculos

XVII e XVIII.

Semelhantes aos estruturalistas, os gerativistas não ultrapassaram o âmbito dos

estudos sincrônicos, excluindo, de igual modo, toda consideração de natureza sócio-

histórica dos estudos da linguagem.

O pensamento de Mikhail Bakhtin traz à cena dos estudos linguísticos o

fenômeno social da interação verbal, assim como a compreensão dialógica dos

processos de enunciação. A interação verbal, para o teórico, constitui a realidade

fundamental da língua. Partindo de um ponto de vista marxista, Bakhtin aborda a língua

como expressão das lutas de classes, reflexo das ideologias e dos conflitos nas

estruturas sociais. Qualquer mudança na ideologia é refletida na palavra, que é “[...]

capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças

sociais” (BAKHTIN, 1995, p. 41).

A Linguística Textual constituiu-se em outro avanço na relação língua-história-

sociedade, a partir da inclusão da textualidade e das macroestruturas textuais no debate

linguístico. Para essa corrente, a língua se concretiza em textos que circulam pela

sociedade. Nesse sentido, é importante o exame das estruturas textuais, uma vez que

“aprender a língua é tornar-se leitor e produtor de textos [...] nas diferentes situações da

vida social” (GREGOLIN, 2007, p. 68).

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A partir da segunda metade do século XX, inaugura-se, na França, nova

corrente dos estudos linguísticos, desta vez trazendo ao debate o discurso e o sujeito,

resgatados por Michel Pêcheux. Discurso e sujeito são concebidos como produtos de

relações sociais, regulados pela ideologia e marcados pela História. O foco analítico

concentra-se no discurso e a língua passa a ser compreendida como “[...] condição e

possibilidade do discurso” (ORLANDI, 2001, p. 22) e este como uma relação entre “[...]

sujeitos e sentidos afetados pela História” (Idem, p. 21). A Análise do Discurso propõe

o estudo da linguagem a partir das materialidades presentes na ideologia e a memória é

valorizada na compreensão do funcionamento discursivo.

O termo Sociolinguística, como área de estudos da Linguística, surgiu também

na segunda metade do século XX, em um congresso organizado por William Bright, na

Universidade da Califórnia, em que participaram vários pesquisadores que se tornariam

referência nas investigações voltadas à relação língua-sociedade. Após o congresso, os

trabalhos apresentados foram publicados com o título Sociolinguistics e Bright definiu

pela primeira vez a nova área de estudos, estabelecendo como objeto a diversidade

linguística (ALKMIM, 2004, p. 28).

Reunidas sob a designação Sociolinguística, entretanto, encontram-se diversas

abordagens que recobrem uma ampla gama de assuntos, tais como a Sociologia da

Linguagem, a Etnografia da Comunicação e a Sociolinguística Variacionista. A

Sociologia da Linguagem é um ramo das Ciências Sociais que tem como enfoque os

fatores e instituições sociais, associados à linguagem. Interessa-se por estudos tais como

a assimilação de línguas minoritárias, o desenvolvimento do bilinguismo em nações

socialmente complexas, o planejamento linguístico em países emergentes, dentre outros.

Já a Etnografia da Comunicação concentra-se na descrição e análise dos eventos

de fala, relacionados às regras que dirigem os processos de comunicação. É uma área de

estudos ligada à Análise da Conversação e, nas últimas décadas, tem se vinculado à

Sociolinguística Interacional.

Quanto à Sociolinguística Variacionista, examina a linguagem no contexto

social, buscando encontrar respostas para os problemas decorrentes da variação

existente nos sistemas linguísticos. Seus estudos buscam relacionar as variações

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existentes na interação verbal às diferenças de natureza social, partindo do pressuposto

que tratam-se de fenômenos estruturados e frequentes nos sistemas linguísticos

(CAMACHO, 2004, p. 49-50).

4. Língua, Variação e Norma

Concebendo a língua como o mecanismo mais característico do

comportamento social é impossível ignorar a existência da variação e da

heterogeneidade, reconhecendo-as como fenômenos inerentes a quaisquer sistemas

linguísticos. Faraco observa que:

[...] nenhuma língua é uma realidade unitária e homogênea. [...] uma língua é

constituída por um conjunto de variedades. Em outras palavras, não existe

língua para além ou acima do conjunto de suas variedades constitutivas, nem

existe língua de um lado e variedades de outro [...] empiricamente a língua é

o próprio conjunto de variedades. Trata-se, portanto, de uma realidade

intrinsecamente heterogênea (FARACO, 2008, p. 33)

Toda língua recobre, dessa forma, uma realidade plural, característica de

sociedades estratificadas, cuja realidade linguística é heterogênea e mutante, devido ao

resultado das inúmeras interinfluências que redundam, em longo prazo, em mudanças

linguísticas. A diversidade é uma de suas propriedades mais significativas e está

relacionada à organização funcional de quaisquer sistemas lingüísticos. Para Ammon

(2006, p. 274), uma ‘língua completa’ é um conjunto de variedades e, mesmo as línguas

artificiais ou clássicas, como Esperanto e Latim, abrangem variedades não-standard.

É assim que se pode identificar, em qualquer sociedade, a existência de

inúmeras normas sistematicamente organizadas. Mesmo as variantes socialmente

estigmatizadas, em tais sociedades, supõem organização e estão relacionadas ao

domínio de uma gramática pelo falante. É nesse sentido que Camacho (Idem, p. 50-4),

adverte que “Uma observação pouco acurada dos usos que se fazem de uma língua em

situações comuns de interação poderia levar à dedução equivocada de que a linguagem

em uso é uma espécie de caos [...]”. Entretanto, ao comparar a variação existente em

segmentos como “Os livros/ Os livro”, no português brasileiro, entre /s/ e [Ø], em que

/s/ simboliza a presença da fricativa alveolar e [Ø], a sua ausência, o autor conclui que

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tais variações não estão sujeitas ao acaso, mas acham-se fortemente marcadas por

emanações do próprio sistema linguístico, uma vez que em morfemas como “ananás” e

“arroz”, o segmento sonoro jamais é eliminado pelo falante. Para o autor, a seleção que

determina a presença ou ausência do segmento sonoro dependerá “[...] de estar esse

segmento numa sílaba átona final [...]. Já o simples fato de incidir sobre uma sílaba

tônica [...], impede a variação[...]” (CAMACHO, 2004, p. 51). A variação, portanto,

aparece em circunstâncias determinadas pelo sistema linguístico, sendo o resultado de

restrições impostas pela própria língua.

Embora o uso linguístico, em qualquer sistema, recubra uma realidade onde a

alternância de registros ocorre de maneira regular, historicamente, no Brasil, houve

identificação da língua com a norma padrão. Essa identificação, na realidade, recobriu

mecanismos de valoração social de cada norma, assumindo formas de discriminação de

algumas expressões, de modo a estigmatizar socialmente seus falantes. Gnerre (2003, p.

6-7), observa, nesse sentido, que “Uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na

sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles

têm nas relações econômicas e sociais.” A imputação de valores sociais às variantes,

portanto, é institucionalizada a partir da elevação de uma dessas variantes à categoria de

padrão. Concorrem, para esse processo de standardização, várias forças sociais que

ajudam a estabelecer e manter a variedade socialmente eleita. Ammon observa que “A

variedade standard (padrão) deriva de variedades de prestígio, adotadas pelas classes

sociais de status mais elevado, e é usada para as altas funções públicas ou pelos mais

importantes domínios do controle social” (AMMON, 2006, p. 275). Elevada à categoria

de língua padrão, a variante passa a ser utilizada nas instituições oficiais do estado, nos

meios de comunicação, além de registradas em dicionários e gramáticas.

A hierarquização das variedades e de suas normas, portanto, decorre da

percepção social delas e não de questões de natureza puramente linguística. Em nossa

sociedade está relacionada à cultura escrita, sendo um instrumento simbólico de poder e

discriminação social. Para Gnerre (2003, p. 9):

Assim como o Estado e o poder são apresentados como entidades superiores

e ‘neutras’, também o código aceito ‘oficialmente’ pelo poder é apontado

como neutro e superior, e todos os cidadãos têm que produzi-lo e entendê-lo

nas relações com o poder.

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No Brasil, apenas uma pequena parcela da população tem acesso à cultura

letrada. De acordo com dados do INAF (2005), Indicador de analfabetismo Funcional,

vinculado ao IBOPE, 5 milhões de jovens estão fora da escola e apenas 25% da

população alcança o nível de letramento completo. Para Faraco (2008, p. 61) “[...] os

bens educacionais e culturais estão muito mal distribuídos na nossa sociedade. [...] só

uma minoria tem acesso efetivo à cultura letrada [...]”. Por isso, embora a classe

dominante tenha, historicamente, ignorado as variantes faladas pela imensa maioria da

população brasileira, tais manifestações permanecem na fala do português urbano

comum. É assim que identificamos, em nossa sociedade, uma norma culta na fala e,

outra, na escrita. Fatores como a urbanização intensa, do país, a expansão do sistema

educacional e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, ajudaram na

difusão dessas variedades, incorporando-as ao falar do brasileiro urbano comum. A

norma culta falada, de uso urbano e popular, ganhou espaço nos meios de comunicação,

tornando-se um fator de agregação social.

É interessante observar que, de acordo com pesquisas realizadas pelo Projeto

NURC (Norma Linguística Urbana Culta), que entrevistou falantes com nível de

escolaridade superior completo, a norma culta brasileira falada se identifica, na maioria

das vezes, com a linguagem urbana comum e não com a tradição gramatical mais

conservadora. A esse respeito Pretti (1997, p. 26) observa que “[...] o que o corpus do

Projeto NURC/SP tem nos mostrado é que os falantes cultos, por influência das

transformações sociais contemporâneas [...] utilizam praticamente o mesmo discurso

dos falantes urbanos comuns, de escolaridade média [...].”

Apesar de todas estas constatações o vínculo da norma culta à tradição escrita

ainda reveste-se de elevado prestígio social, em nossa cultura. Vincula-se a norma

gramatical escrita à idéia de língua, estimulando uma cultura do erro, em que as demais

variedades são vistas como processos de degradação linguística. Produz-se, dessa

forma, a impressão da existência de uma variedade superior, justificando-se a

desqualificação de outras formas em uso.

Na verdade, a norma-padrão não é uma variedade da língua; é uma codificação

abstrata que serviu, historicamente, de referência em sociedades que se defrontavam

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com formas acentuadas de modificação linguística, como vimos na tradição helenística,

onde os instrumentos gramaticais adquiriram poder padronizador, com o objetivo de

regulamentar o comportamento linguístico dos falantes. Semelhante produção de

aparatos linguísticos deu-se na Europa, a partir do século XV, como resposta à

necessidade “[...] de unificação e centralização política [...] [e da] necessidade de uma

referência em matéria de língua que pairasse acima da grande diversidade regional e

social” (FARACO, 2008, p. 74).

Na prática, a norma-padrão é uma abstração, em nossa sociedade, que aplaude

modelos em desuso na língua e condena formas linguísticas muito presentes na cultura

brasileira. O estabelecimento do padrão, em nossa sociedade, foi um projeto que

fracassou e só persiste pelo não acolhimento das formas cultas/comuns/Standards, já

consolidadas em nosso sistema linguístico, e pela dificuldade em se estabelecer um

amplo debate que postule a verdadeira norma usada pelo povo brasileiro. Estabelecer

esse debate é a ação de vanguarda que cabe às instituições, aos linguistas e demais

forças sociais, com base no comprometimento com uma política de uso e na busca de

uma educação linguística de qualidade para o povo brasileiro.

5. A Linguística, as Políticas Públicas e o Ensino de Português

A história da educação linguística, no país, está repleta de conflitos que

emergem de um lado, de uma cultura imposta, de forma institucionalizada, centrada na

convenção do padrão e de outro, de uma escola que, por acolher as camadas populares,

que constituem a grande maioria da população brasileira, deveria estar a serviço dessa

população.

Todavia, não é o que ocorre. Esse paradoxo se evidencia no alto índice de

reprovação e repetência que demonstram, não só o fracasso dessa população, mas da

própria escola, que se mostra incompetente na educação desses alunos.

Grande parte desse fracasso deve-se a conflitos relacionados à linguagem.

Embora a Sociolingüística e a Sociologia da Linguagem venham prestando uma

contribuição inestimável ao estimular a adoção de políticas de ensino orientadas para as

relações entre linguagem e sociedade, as práticas linguísticas, na escola, continuam a

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eleger apenas uma variante, relegando todas as outras à vala comum da marginalidade.

Esse prestígio provém de valores de natureza histórico-ideológica, presentes em

diversos momentos da história do país e que influenciaram a adoção de políticas

públicas de educação.

De acordo com Faraco (2008, p. 80), a idéia do português padrão, no Brasil,

remonta à segunda metade do século XIX, inspirando-se nos modelos lusitanos do

Romantismo. O modelo, entretanto, não foi a língua lusitana, também uma profusão de

variedades, mas uma construção artificial, uma reação ao pretoguês, denominação

utilizada pela elite dominante para designar o português abrasileirado. A forma padrão

surgiu com o objetivo de combater essas variedades, assim como as línguas indígenas e

variedades rurbanas, em uso nas diversas comunidades de fala.

A artificialidade do modelo inviabilizou a sua popularização e já em 1920, por

ocasião do Modernismo, encontraremos escritores como Oswald de Andrade, Mário de

Andrade e Monteiro Lobato cujos textos literários já exibem formas capturadas da

oralidade, atentos às variedades presentes no falar popular (GREGOLIN, 2007, p. 59).

Até os anos 1960, a Gramática Normativa apresentava-se como a própria

língua, baseada na ideologia da conservação, já vista no passado helenístico grego.

Estudava-se a língua baseada em regras compreendidas como normas de correção. A

partir da segunda metade do século XX, o cenário político brasileiro se modifica. O

discurso em favor da igualdade de oportunidades educacionais e da educação como

direito de todos não cessa, nem mesmo durante a Ditadura militar. O Regime abre as

portas das escolas às camadas populares e introduz a variação nos bancos escolares. No

ano de 1962, é instituída a disciplina Linguística nos currículos universitários dos

Cursos de Letras e, em 1965, Aryon Rodrigues relaciona o ensino do português às

tarefas da Linguística Aplicada (FARACO, 2004, p. 22). Nos anos seguintes os

linguistas figurariam como principais articuladores das políticas públicas para o ensino

da Língua Portuguesa, no país.

Entretanto, alguns equívocos, ao longo das décadas, principalmente

envolvendo fenômenos relacionados à variação lingüística, iniciaram uma crise,

presente nos documentos oficiais da época, em que se confrontam teses descritivistas e

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prescrições da Gramática Normativa. Um exemplo está na Lei 5692/71 que mistura

instruções da GN às Teorias da Comunicação, de modelo Estruturalista (GREGOLIN,

2007, p. 64), juntamente às teses Gerativistas. Assisti-se, nesse período, ao primado do

discurso autoritário envolto numa aura tecnicista, pretensamente científica, presente nos

mesmos documentos.

Toda essa confusão teórica acaba por desorientar os professores. Essa confusão

é agravada pela imposição do discurso autoritário, de um governo ditatorial. Como

resultado tem-se a cristalização de resistências em torno do pensamento que para a

Linguística tudo é válido.

Nos anos 1970, no Brasil, assistia-se ao embate entre os postulados da

Linguística e as orientações da Gramática Normativa. Observavam-se aspectos como a

heterogeneidade e a variação se confrontando com o ideal de uma língua homogênea,

fundamentada a partir da ideologia de uma cultura normativista.

Após 1980, a crise que já se anunciava no ensino do português irrompe, com a

entrada definitiva das teorias linguísticas nos documentos oficiais e a crescente

desconfiança em relação à tradição gramatical. A Linguística Textual entra em cena,

propondo a formação do leitor/produtor competente. Saber a língua torna-se sinônimo

de competência na utilização da linguagem em diferentes situações da vida social.

Nesse período, passou-se a discutir as relações entre língua, história e sociedade, os

diferentes registros, as diferenças entre o oral e o escrito, as relações entre uso e

condições de produção, dentre outras (GREGOLIN, 2007, p. 66-7).

Em 1990 é a vez da Linguística da Enunciação, inaugurando o primado da

perspectiva discursiva para a compreensão da heterogeneidade textual e para o ensino

da língua. A Análise do Discurso e o pensamento de Bakthin influenciam na

compreensão da língua como mecanismo de inserção social, da linguagem como

processo de sociointeração, como arena de lutas ideológicas, dentre outras. A

discursividade torna-se o centro do ensino de Língua Portuguesa, figurando nos

Parâmetros Curriculares Nacionais (GREGOLIN, Idem, p. 68-9).

Hoje, entende-se como tarefa da escola ampliar o letramento, de modo a

propiciar aos alunos o contato com diferentes textos de ampla circulação na sociedade.

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Compreende-se que saber a língua não se resume a dominar apenas uma variedade

culta, seja ela oral ou escrita. O cidadão letrado é aquele que possui o domínio de uma

ampla gama de performances cognitivas, familiarizado com as práticas da leitura e da

escrita que apontam para uma perspectiva interdisciplinar.

Todavia, ainda é necessária a construção de uma pedagogia voltada à variação

(FARACO, 2007, p. 42), uma vez que a escola insiste em tratá-la como desvio. Longe

de ser um fenômeno, a variação é um mecanismo extremamente regular no campo

social, que demonstra a habilidade do falante na exploração de recursos estilísticos e

retóricos, disponíveis na língua, para a articulação dos diferentes sentidos sociais. Do

mesmo modo, é urgente a revisão da norma que hoje se conhece como padrão, para que

seja o reflexo da verdadeira norma/culta/comum usada pelo povo brasileiro.

Reflexões que ficam ...

Sem a pretensão de traçar conclusões definitivas, é possível, contudo, refletir no

interior das fronteiras das temáticas que nos propusemos a discutir.

Está claro que em qualquer sociedade podemos constatar a sobreposição de

inúmeras variedades linguísticas, reguladas hierarquicamente, de acordo com as

estruturas sociais estabelecidas. Em todas as sociedades estratificadas observam-se

fenômenos como a intolerância linguística e a rejeição a certas variedades, como

comportamentos comuns, identificados nos diversos espaços sociais.

A proposta para um movimento contrário a essas formas de discriminação e

exclusão pela linguagem e as tentativas de caminhar na contramão de uma história que

negligenciou e estigmatizou, ao longo dos séculos, a imensa maioria da população

brasileira, não pode ignorar as relações entre linguagem e estrutura social. Tais relações

não podem estar dissociadas do ensino da língua.

Uma vez que a língua é o principal produto da cultura e o instrumento básico

para a sua transmissão é importante o investimento em uma política linguística voltada

para aspectos relacionados à variação, de modo a propiciar aos falantes amplo acesso

aos bens sociais.

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Temos que reconhecer que, apesar dos avanços educacionais conquistados com

o auxílio das diversas correntes linguísticas, ainda convivemos com uma pedagogia

conservadora, no ensino da Língua Portuguesa. Nesse sentido é fundamental que todas

as forças sociais, envolvidas no processo educacional – professores, linguistas,

legisladores – assumam o ensino como tarefa técnica e política, decorrente de relações

de força e ideologias presentes no campo social.

Na escola, como em outros espaços, é o uso da língua que evidencia claramente

as diferenças entre os grupos sociais, gerando discriminações e fracassos. Cabe,

portanto, primeiramente à escola, o papel de ampliar a habilidade linguística do falante,

reconhecendo-o como um sujeito multiestilístico, que caminha num continuum de

fronteiras fluidas, caracterizado pela interposição de falares.

Há que se reconhecer, também, a impossibilidade de uma Língua Portuguesa

uniforme, visto que ela nada mais é do que o reflexo de sua própria formação histórica,

produto da miscigenação de raças, do contato entre línguas, do movimento de

imigrantes que, chamados a se instalarem em terras brasileiras, eram forçados a

enfrentar a sociedade letrada, munidos tão somente de suas práticas orais.

Necessita-se, portanto, da construção de uma política educacional para o país,

voltada para a realidade linguística da nação. Um espaço onde atuem forças

progressivas que, acolhendo a visão da variação e compreendendo a distribuição social

das variedades, possam expressar, nessa política, um compromisso de vanguarda em

direção à transformação social e à superação das desigualdades.

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Recebido Para Publicação em 28 de fevereiro de 2013.

Aprovado Para Publicação em 14 de março de 2013.