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LÍNGUA, VARIAÇÃO E ENSINO
Rosemere de Almeida Aguero1
RESUMO: Trato, neste ensaio, das relações entre língua, variação lingüística e o ensino da Língua
Portuguesa, pelo viés da Sociolinguística. Embora esse campo de estudos tenha buscado eliminar
preconceitos ao postular que todas as línguas e variedades são igualmente complexas, reconhecendo a
heterogeneidade como propriedade inerente a todo sistema linguístico e a competência linguística dos
falantes como atributo que o leva a selecionar formas alternativas disponíveis no sistema; o ensino da
Língua Portuguesa ainda tem se pautado em uma tradição pedagógica que estabelece apenas uma variante
como padrão, definindo-a, institucionalmente, como norma. A questão entre língua, variação e ensino,
longe de ser de natureza puramente pedagógica, cruza fronteiras de ordem social que passam pela classe
social do falante e pela aceitação institucional de variedades não-padrão, como integrantes do sistema de
comunicação brasileiro. Buscando discutir essas questões, parto, inicialmente, de uma perspectiva
histórica dos estudos lingüísticos, mobilizando teorias que refletem concepções da língua como
constitutivamente homogênea, até chegar a sua compreensão como fenômeno eminentemente social. Na
sequência, discuto questões que passam pelas políticas públicas, em sucessivos regimes, que
negligenciaram as variedades faladas pela imensa maioria do povo brasileiro, chegando ao ensino da
Língua Portuguesa na contemporaneidade.
PALAVRAS-CHAVE: língua; variação, ensino; Língua Portuguesa.
ABSTRACT: The issue of this essay is the relations between language, linguistic variation and
Portuguese Language teaching, focusing on a Sociolinguistics approach, which has been trying to
eliminate prejudice by saying that all languages and varieties are equally complex, as well as by
recognizing variation as part of every linguistic system and the speaker competence as an attribute that
takes him/her to choose different structures of the system, according to the context of the interaction.
However, in spite of it, the Portuguese Language teaching still is focused on an educational tradition that
accepts only one variant as standard, defining it, institutionally, as norm. The issue about language,
variation and teaching is not only a concern of pedagogical nature, but also one that crosses the
boundaries of social order, that pass through the social class of the speaker and through the institutional
acceptance of varieties which are not standard as part of the Brazilian communication system. Seeking to
discuss these issues, I start from a historical perspective of the linguistic studies, taking into consideration
theories which consider the conceptions of language as elementarily homogeneous, and then I discuss
language as a phenomenon eminently social. After, I discuss the public policy, in successive regimes,
which neglected the varieties spoken by the majority of the Brazilians, and, finally, the Portuguese
Language teaching nowadays.
KEYWORDS: language; variation, teaching; Portuguese Language.
1
1Docente do Curso de Letras da UEMS - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Mestre em
Letras pela UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e doutoranda em Letras pela UFRGS
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’
de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a
maneira como sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro. (FOUCAULT, 1985, p. 12)
Preliminares
As relações entre a variação linguística e o ensino da Língua Portuguesa tem
sido objeto de inúmeras reflexões por parte de estudiosos que se dedicam às temáticas
da língua e sociedade, principalmente considerando-se a extensão territorial e as
diversidades existentes no país.
Reconhecendo a existência dessas diversidades, opto, neste estudo, pela
denominação ensino de Língua Portuguesa ao invés de ensino da língua materna, em
virtude das inúmeras críticas sofridas por esta última designação. Tais julgamentos
devem-se à imprecisão do sentido quando do seu uso em contextos multilíngues, casos
identificados em inúmeras regiões do país. Nesses contextos, como assinala Altenhofen
(2002, p. 142), a conceituação do que seja língua materna se torna complexa, pois “[...]
ultrapassa o plano meramente linguístico para abranger adicionalmente aspectos de
ordem histórica, social, política, educacional e psicológica [...]”.
Há algumas décadas estudiosos vêm acumulando pesquisas com o objetivo de
conhecer a realidade linguística do povo brasileiro e, principalmente, de contribuir
positivamente para as reflexões sobre as práticas do ensino da Língua Portuguesa, de
modo a proporcionar uma educação de qualidade a todos os segmentos sociais.
Para compreender a situação atual do ensino de Língua Portuguesa no país, é
necessário mobilizar algumas questões que passam pelo exame das políticas públicas de
sucessivos regimes políticos, que negligenciaram sistematicamente as variações faladas
pela imensa maioria da população brasileira, refletindo-se no ensino e na concepção de
língua. Questões relacionadas às diversidades das estruturas sociais são igualmente
importantes, pois cristalizaram-se ao longo da História, projetando-se nos números
alarmantes de brasileiros que, em pleno século XXI, figuram como semi-analfabetos
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funcionais, engrossando as estatísticas de um sistema educacional que reproduz
desigualdades.
Este ensaio vem mobilizar essas questões, propondo uma reflexão pelo viés da
teoria Sociolinguística, cujo esforço científico tem lançado luzes às questões que
envolvem língua, variação e ensino, contribuindo para a compreensão do caráter
político-ideológico do ensino da Língua Portuguesa e para o incentivo à construção de
instrumentais pedagógicos que transformem a educação lingüística no país.
2. A Linguagem na Antiguidade Clássica
A Lingüística, tal como a ciência que conhecemos hoje, data de uma época
relativamente recente. Reconhece-se seu grande avanço a partir do século XX. É,
entretanto, herdeira de estudos sobre a linguagem que remontam ao século IV a.C.
Neste século, os hindus, por razões religiosas, já estudavam sua língua para que seus
textos sagrados não sofressem alteração, ao serem cantados durante os sacrifícios.
Legaram-nos, dessa forma, descrições fonéticas e gramaticais minuciosas de sua língua,
verdadeiros modelos do valor e do emprego das palavras (LEROY, 2002, p. 15-6) que
antecederam, em séculos, os estudos estruturais desenvolvidos no século XX.
Os gregos não deixaram modelos linguísticos comparáveis aos dos hindus. É
inegável, contudo, que a Grécia, além de berço da civilização ocidental também se
estabeleceu, em seu apogeu, como um poderoso Império colonialista, cujas bases
sustentavam-se em sua própria cultura. O maior instrumento de poder grego, a língua,
era capaz de registrar e perpetuar o saber acumulado durante séculos de investigações
de natureza estética e filosófica. A doutrina teórica em uso era a Filosofia clássica, que
investigava a língua vinculada ao pensamento. Cientes de sua superioridade intelectual,
os gregos (helenos) negligenciavam outras línguas, por eles consideradas como bárbaras
(LEROY, Idem).
Pode-se dividir o período dos estudos linguísticos gregos em dois momentos, a
partir da antítese heleno-bárbaro: o período denominado helênico, correspondente ao
apogeu da civilização grega, e o helenístico, correspondente ao seu declínio (SENNA,
1991, p. 16).
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O período helênico foi uma época de intensa criação na cultura grega, em que
floresceram a Filosofia e a Literatura. Destacaram-se os estudos de Aristóteles, Sócrates
e Platão que buscavam elaborar uma teoria da linguagem, com base nos estudos da
significação das palavras. Investigações de filósofos estoicistas também se destacaram,
nesse período, dos quais herdamos as primeiras gramáticas de cunho normativo.
As invasões de Alexandre Magno marcaram, historicamente, o início do período
helenístico. Do constante contato bélico com outros povos, diante das modificações
inevitáveis sofridas pelo sistema linguístico, a língua grega, símbolo de poder, mostrou-
se suscetível às variações. O processo de variação aconteceu de modo concomitante à
decadência do Império, propiciando a associação equivocada entre decadência e
mudança. A partir de então, tentou-se deter as modificações da língua grega,
mobilizando-se uma série de intelectuais que sistematizaram normas que orientavam os
falantes a utilizar a língua do passado helênico (SENNA, Idem, p. 18-9), na tentativa de
preservar o status da cultura historicamente dominante.
Reconhece-se aí a origem da norma presente ainda hoje no ensino da Língua
Portuguesa, em nosso século.
Findo esse período, foi no século XX que registrou-se o aparecimento de
doutrinas teóricas concebidas especialmente para tratar de estudos referentes à
linguagem. A instituição de um método linguístico elevou os estudos da linguagem à
categoria de ciência, inaugurando teorias que nasceram com propósito de tornar
evidentes os dados da língua como objeto de investigação.
3. As Doutrinas Teóricas do Século XX
O Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, publicado em 1916, foi
o grande marco para os estudos da linguagem, no século XX. Fruto de um momento
histórico dominado pelo tecnicismo, a Linguística saussureana nasceu com o objetivo
de estudar as línguas naturais, observadas como objetos concretos, passíveis de análise,
a partir de um método científico.
Pode-se dizer que o Curso de Lingüística Geral, de Saussure, marcou o início
de uma Linguística autônoma, em que a língua, objeto da Linguística é
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concebida como um sistema interno de relações diferenciais,
independentemente de uma relação com ‘a coisa’ ou o objeto do mundo. É
evidente, em Saussure, obsessão de se definir a natureza do objeto ‘integral’,
‘concreto’, ‘verdadeiro’, ‘único’ da Linguística, evitando-se um aglomerado
de coisas confusas e heteróclitas, sem liame entre si (CARDOSO, 2003, p. 7-
8).
Não obstante as teses saussureanas terem representado uma inestimável
contribuição para os diferentes campos das línguas, principalmente a partir de teorias
acerca do valor relacional dos elementos linguísticos, da auto-suficiência do sistema, da
necessidade de se dissociar uma Linguística dos estados (sincrônica), do âmbito da
Linguística evolutiva (diacrônica), da natureza do signo e da distinção langue/parole,
excluiu, entretanto, toda consideração de natureza social e histórica da análise do
fenômeno linguístico. Nas teses do teórico, a langue é um sistema invariante, subjacente
à parole, que pode ser abstraída das variações observáveis na fala. A tarefa do linguista
é descrever esse sistema formal, por meio de uma abordagem imanente da língua,
privilegiando uma Linguística interna, em oposição à externa.
As teses de Saussure serviram de modelo ao Estruturalismo, corrente teórica
surgida na Europa, em fins do século XIX. Os estudos estruturais concentraram-se na
langue, por representar um estado idealizado da língua. Na construção de uma
gramática estruturalista, inventariavam-se longas listas de palavras que, posteriormente,
eram classificadas em classes, num trabalho minucioso e afinado ao modelo tecnicista
da época. Tais procedimentos de descrição e análise renderam ao Estruturalismo a
designação de doutrina da taxionomia.
O século XX registra o apogeu do pensamento estrutural. Encontramos,
entretanto, principalmente a partir de 1930, na Europa (Alkmim, 2004, p. 24), linguistas
cujas obras já relacionam a questão social aos fenômenos linguísticos. Dentre eles,
podemos citar Antoine Meillet, discípulo de Saussure, que, filiado à orientação
diacrônica da língua, não dissocia a história das línguas da história das sociedades;
Jakobson que também não ignora a relação entre língua e contexto social, postulando o
processo de comunicação e os aspectos funcionais da linguagem como ponto de partida
de suas teorias; Marcel Cohen, cujos estudos das relações entre as divisões sociais e
variedades linguísticas, permite estabelecer temáticas, tais como a distinção entre
variedades rurais e urbanas, entre classes sociais, grupos minoritários, estilos de
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linguagem, dentre outras; e Benveniste, que articula a relação entre língua e sociedade,
reconhecendo que é pela língua que indivíduos e sociedade se autodeterminam.
Na lacuna dos estudos saussureanos se inscreveu outra corrente linguística,
nascida como uma teoria da sintaxe, a partir das concepções de Noam Chomsky e da
tradição linguística americana. Essa posição, denominada Gerativa, afastou-se da mera
descrição dos enunciados realizados, partindo para o âmbito das estruturas sintáticas.
Não obstante constituir-se em inegável avanço teórico, mostrou-se, em alguns pontos,
controversa, principalmente no postulado de alguns conceitos como o de produtividade,
uma vez que certos enunciados, teoricamente possíveis, podiam ser interditados na
interação verbal; do falante ideal, não afetado em sua performance por fatores externos;
dos conceitos de competence/performance, muito próximos à langue/parole
saussureanas e dos universais linguísticos, já mencionados em gramáticas dos séculos
XVII e XVIII.
Semelhantes aos estruturalistas, os gerativistas não ultrapassaram o âmbito dos
estudos sincrônicos, excluindo, de igual modo, toda consideração de natureza sócio-
histórica dos estudos da linguagem.
O pensamento de Mikhail Bakhtin traz à cena dos estudos linguísticos o
fenômeno social da interação verbal, assim como a compreensão dialógica dos
processos de enunciação. A interação verbal, para o teórico, constitui a realidade
fundamental da língua. Partindo de um ponto de vista marxista, Bakhtin aborda a língua
como expressão das lutas de classes, reflexo das ideologias e dos conflitos nas
estruturas sociais. Qualquer mudança na ideologia é refletida na palavra, que é “[...]
capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças
sociais” (BAKHTIN, 1995, p. 41).
A Linguística Textual constituiu-se em outro avanço na relação língua-história-
sociedade, a partir da inclusão da textualidade e das macroestruturas textuais no debate
linguístico. Para essa corrente, a língua se concretiza em textos que circulam pela
sociedade. Nesse sentido, é importante o exame das estruturas textuais, uma vez que
“aprender a língua é tornar-se leitor e produtor de textos [...] nas diferentes situações da
vida social” (GREGOLIN, 2007, p. 68).
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A partir da segunda metade do século XX, inaugura-se, na França, nova
corrente dos estudos linguísticos, desta vez trazendo ao debate o discurso e o sujeito,
resgatados por Michel Pêcheux. Discurso e sujeito são concebidos como produtos de
relações sociais, regulados pela ideologia e marcados pela História. O foco analítico
concentra-se no discurso e a língua passa a ser compreendida como “[...] condição e
possibilidade do discurso” (ORLANDI, 2001, p. 22) e este como uma relação entre “[...]
sujeitos e sentidos afetados pela História” (Idem, p. 21). A Análise do Discurso propõe
o estudo da linguagem a partir das materialidades presentes na ideologia e a memória é
valorizada na compreensão do funcionamento discursivo.
O termo Sociolinguística, como área de estudos da Linguística, surgiu também
na segunda metade do século XX, em um congresso organizado por William Bright, na
Universidade da Califórnia, em que participaram vários pesquisadores que se tornariam
referência nas investigações voltadas à relação língua-sociedade. Após o congresso, os
trabalhos apresentados foram publicados com o título Sociolinguistics e Bright definiu
pela primeira vez a nova área de estudos, estabelecendo como objeto a diversidade
linguística (ALKMIM, 2004, p. 28).
Reunidas sob a designação Sociolinguística, entretanto, encontram-se diversas
abordagens que recobrem uma ampla gama de assuntos, tais como a Sociologia da
Linguagem, a Etnografia da Comunicação e a Sociolinguística Variacionista. A
Sociologia da Linguagem é um ramo das Ciências Sociais que tem como enfoque os
fatores e instituições sociais, associados à linguagem. Interessa-se por estudos tais como
a assimilação de línguas minoritárias, o desenvolvimento do bilinguismo em nações
socialmente complexas, o planejamento linguístico em países emergentes, dentre outros.
Já a Etnografia da Comunicação concentra-se na descrição e análise dos eventos
de fala, relacionados às regras que dirigem os processos de comunicação. É uma área de
estudos ligada à Análise da Conversação e, nas últimas décadas, tem se vinculado à
Sociolinguística Interacional.
Quanto à Sociolinguística Variacionista, examina a linguagem no contexto
social, buscando encontrar respostas para os problemas decorrentes da variação
existente nos sistemas linguísticos. Seus estudos buscam relacionar as variações
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existentes na interação verbal às diferenças de natureza social, partindo do pressuposto
que tratam-se de fenômenos estruturados e frequentes nos sistemas linguísticos
(CAMACHO, 2004, p. 49-50).
4. Língua, Variação e Norma
Concebendo a língua como o mecanismo mais característico do
comportamento social é impossível ignorar a existência da variação e da
heterogeneidade, reconhecendo-as como fenômenos inerentes a quaisquer sistemas
linguísticos. Faraco observa que:
[...] nenhuma língua é uma realidade unitária e homogênea. [...] uma língua é
constituída por um conjunto de variedades. Em outras palavras, não existe
língua para além ou acima do conjunto de suas variedades constitutivas, nem
existe língua de um lado e variedades de outro [...] empiricamente a língua é
o próprio conjunto de variedades. Trata-se, portanto, de uma realidade
intrinsecamente heterogênea (FARACO, 2008, p. 33)
Toda língua recobre, dessa forma, uma realidade plural, característica de
sociedades estratificadas, cuja realidade linguística é heterogênea e mutante, devido ao
resultado das inúmeras interinfluências que redundam, em longo prazo, em mudanças
linguísticas. A diversidade é uma de suas propriedades mais significativas e está
relacionada à organização funcional de quaisquer sistemas lingüísticos. Para Ammon
(2006, p. 274), uma ‘língua completa’ é um conjunto de variedades e, mesmo as línguas
artificiais ou clássicas, como Esperanto e Latim, abrangem variedades não-standard.
É assim que se pode identificar, em qualquer sociedade, a existência de
inúmeras normas sistematicamente organizadas. Mesmo as variantes socialmente
estigmatizadas, em tais sociedades, supõem organização e estão relacionadas ao
domínio de uma gramática pelo falante. É nesse sentido que Camacho (Idem, p. 50-4),
adverte que “Uma observação pouco acurada dos usos que se fazem de uma língua em
situações comuns de interação poderia levar à dedução equivocada de que a linguagem
em uso é uma espécie de caos [...]”. Entretanto, ao comparar a variação existente em
segmentos como “Os livros/ Os livro”, no português brasileiro, entre /s/ e [Ø], em que
/s/ simboliza a presença da fricativa alveolar e [Ø], a sua ausência, o autor conclui que
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tais variações não estão sujeitas ao acaso, mas acham-se fortemente marcadas por
emanações do próprio sistema linguístico, uma vez que em morfemas como “ananás” e
“arroz”, o segmento sonoro jamais é eliminado pelo falante. Para o autor, a seleção que
determina a presença ou ausência do segmento sonoro dependerá “[...] de estar esse
segmento numa sílaba átona final [...]. Já o simples fato de incidir sobre uma sílaba
tônica [...], impede a variação[...]” (CAMACHO, 2004, p. 51). A variação, portanto,
aparece em circunstâncias determinadas pelo sistema linguístico, sendo o resultado de
restrições impostas pela própria língua.
Embora o uso linguístico, em qualquer sistema, recubra uma realidade onde a
alternância de registros ocorre de maneira regular, historicamente, no Brasil, houve
identificação da língua com a norma padrão. Essa identificação, na realidade, recobriu
mecanismos de valoração social de cada norma, assumindo formas de discriminação de
algumas expressões, de modo a estigmatizar socialmente seus falantes. Gnerre (2003, p.
6-7), observa, nesse sentido, que “Uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na
sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles
têm nas relações econômicas e sociais.” A imputação de valores sociais às variantes,
portanto, é institucionalizada a partir da elevação de uma dessas variantes à categoria de
padrão. Concorrem, para esse processo de standardização, várias forças sociais que
ajudam a estabelecer e manter a variedade socialmente eleita. Ammon observa que “A
variedade standard (padrão) deriva de variedades de prestígio, adotadas pelas classes
sociais de status mais elevado, e é usada para as altas funções públicas ou pelos mais
importantes domínios do controle social” (AMMON, 2006, p. 275). Elevada à categoria
de língua padrão, a variante passa a ser utilizada nas instituições oficiais do estado, nos
meios de comunicação, além de registradas em dicionários e gramáticas.
A hierarquização das variedades e de suas normas, portanto, decorre da
percepção social delas e não de questões de natureza puramente linguística. Em nossa
sociedade está relacionada à cultura escrita, sendo um instrumento simbólico de poder e
discriminação social. Para Gnerre (2003, p. 9):
Assim como o Estado e o poder são apresentados como entidades superiores
e ‘neutras’, também o código aceito ‘oficialmente’ pelo poder é apontado
como neutro e superior, e todos os cidadãos têm que produzi-lo e entendê-lo
nas relações com o poder.
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No Brasil, apenas uma pequena parcela da população tem acesso à cultura
letrada. De acordo com dados do INAF (2005), Indicador de analfabetismo Funcional,
vinculado ao IBOPE, 5 milhões de jovens estão fora da escola e apenas 25% da
população alcança o nível de letramento completo. Para Faraco (2008, p. 61) “[...] os
bens educacionais e culturais estão muito mal distribuídos na nossa sociedade. [...] só
uma minoria tem acesso efetivo à cultura letrada [...]”. Por isso, embora a classe
dominante tenha, historicamente, ignorado as variantes faladas pela imensa maioria da
população brasileira, tais manifestações permanecem na fala do português urbano
comum. É assim que identificamos, em nossa sociedade, uma norma culta na fala e,
outra, na escrita. Fatores como a urbanização intensa, do país, a expansão do sistema
educacional e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, ajudaram na
difusão dessas variedades, incorporando-as ao falar do brasileiro urbano comum. A
norma culta falada, de uso urbano e popular, ganhou espaço nos meios de comunicação,
tornando-se um fator de agregação social.
É interessante observar que, de acordo com pesquisas realizadas pelo Projeto
NURC (Norma Linguística Urbana Culta), que entrevistou falantes com nível de
escolaridade superior completo, a norma culta brasileira falada se identifica, na maioria
das vezes, com a linguagem urbana comum e não com a tradição gramatical mais
conservadora. A esse respeito Pretti (1997, p. 26) observa que “[...] o que o corpus do
Projeto NURC/SP tem nos mostrado é que os falantes cultos, por influência das
transformações sociais contemporâneas [...] utilizam praticamente o mesmo discurso
dos falantes urbanos comuns, de escolaridade média [...].”
Apesar de todas estas constatações o vínculo da norma culta à tradição escrita
ainda reveste-se de elevado prestígio social, em nossa cultura. Vincula-se a norma
gramatical escrita à idéia de língua, estimulando uma cultura do erro, em que as demais
variedades são vistas como processos de degradação linguística. Produz-se, dessa
forma, a impressão da existência de uma variedade superior, justificando-se a
desqualificação de outras formas em uso.
Na verdade, a norma-padrão não é uma variedade da língua; é uma codificação
abstrata que serviu, historicamente, de referência em sociedades que se defrontavam
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com formas acentuadas de modificação linguística, como vimos na tradição helenística,
onde os instrumentos gramaticais adquiriram poder padronizador, com o objetivo de
regulamentar o comportamento linguístico dos falantes. Semelhante produção de
aparatos linguísticos deu-se na Europa, a partir do século XV, como resposta à
necessidade “[...] de unificação e centralização política [...] [e da] necessidade de uma
referência em matéria de língua que pairasse acima da grande diversidade regional e
social” (FARACO, 2008, p. 74).
Na prática, a norma-padrão é uma abstração, em nossa sociedade, que aplaude
modelos em desuso na língua e condena formas linguísticas muito presentes na cultura
brasileira. O estabelecimento do padrão, em nossa sociedade, foi um projeto que
fracassou e só persiste pelo não acolhimento das formas cultas/comuns/Standards, já
consolidadas em nosso sistema linguístico, e pela dificuldade em se estabelecer um
amplo debate que postule a verdadeira norma usada pelo povo brasileiro. Estabelecer
esse debate é a ação de vanguarda que cabe às instituições, aos linguistas e demais
forças sociais, com base no comprometimento com uma política de uso e na busca de
uma educação linguística de qualidade para o povo brasileiro.
5. A Linguística, as Políticas Públicas e o Ensino de Português
A história da educação linguística, no país, está repleta de conflitos que
emergem de um lado, de uma cultura imposta, de forma institucionalizada, centrada na
convenção do padrão e de outro, de uma escola que, por acolher as camadas populares,
que constituem a grande maioria da população brasileira, deveria estar a serviço dessa
população.
Todavia, não é o que ocorre. Esse paradoxo se evidencia no alto índice de
reprovação e repetência que demonstram, não só o fracasso dessa população, mas da
própria escola, que se mostra incompetente na educação desses alunos.
Grande parte desse fracasso deve-se a conflitos relacionados à linguagem.
Embora a Sociolingüística e a Sociologia da Linguagem venham prestando uma
contribuição inestimável ao estimular a adoção de políticas de ensino orientadas para as
relações entre linguagem e sociedade, as práticas linguísticas, na escola, continuam a
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eleger apenas uma variante, relegando todas as outras à vala comum da marginalidade.
Esse prestígio provém de valores de natureza histórico-ideológica, presentes em
diversos momentos da história do país e que influenciaram a adoção de políticas
públicas de educação.
De acordo com Faraco (2008, p. 80), a idéia do português padrão, no Brasil,
remonta à segunda metade do século XIX, inspirando-se nos modelos lusitanos do
Romantismo. O modelo, entretanto, não foi a língua lusitana, também uma profusão de
variedades, mas uma construção artificial, uma reação ao pretoguês, denominação
utilizada pela elite dominante para designar o português abrasileirado. A forma padrão
surgiu com o objetivo de combater essas variedades, assim como as línguas indígenas e
variedades rurbanas, em uso nas diversas comunidades de fala.
A artificialidade do modelo inviabilizou a sua popularização e já em 1920, por
ocasião do Modernismo, encontraremos escritores como Oswald de Andrade, Mário de
Andrade e Monteiro Lobato cujos textos literários já exibem formas capturadas da
oralidade, atentos às variedades presentes no falar popular (GREGOLIN, 2007, p. 59).
Até os anos 1960, a Gramática Normativa apresentava-se como a própria
língua, baseada na ideologia da conservação, já vista no passado helenístico grego.
Estudava-se a língua baseada em regras compreendidas como normas de correção. A
partir da segunda metade do século XX, o cenário político brasileiro se modifica. O
discurso em favor da igualdade de oportunidades educacionais e da educação como
direito de todos não cessa, nem mesmo durante a Ditadura militar. O Regime abre as
portas das escolas às camadas populares e introduz a variação nos bancos escolares. No
ano de 1962, é instituída a disciplina Linguística nos currículos universitários dos
Cursos de Letras e, em 1965, Aryon Rodrigues relaciona o ensino do português às
tarefas da Linguística Aplicada (FARACO, 2004, p. 22). Nos anos seguintes os
linguistas figurariam como principais articuladores das políticas públicas para o ensino
da Língua Portuguesa, no país.
Entretanto, alguns equívocos, ao longo das décadas, principalmente
envolvendo fenômenos relacionados à variação lingüística, iniciaram uma crise,
presente nos documentos oficiais da época, em que se confrontam teses descritivistas e
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prescrições da Gramática Normativa. Um exemplo está na Lei 5692/71 que mistura
instruções da GN às Teorias da Comunicação, de modelo Estruturalista (GREGOLIN,
2007, p. 64), juntamente às teses Gerativistas. Assisti-se, nesse período, ao primado do
discurso autoritário envolto numa aura tecnicista, pretensamente científica, presente nos
mesmos documentos.
Toda essa confusão teórica acaba por desorientar os professores. Essa confusão
é agravada pela imposição do discurso autoritário, de um governo ditatorial. Como
resultado tem-se a cristalização de resistências em torno do pensamento que para a
Linguística tudo é válido.
Nos anos 1970, no Brasil, assistia-se ao embate entre os postulados da
Linguística e as orientações da Gramática Normativa. Observavam-se aspectos como a
heterogeneidade e a variação se confrontando com o ideal de uma língua homogênea,
fundamentada a partir da ideologia de uma cultura normativista.
Após 1980, a crise que já se anunciava no ensino do português irrompe, com a
entrada definitiva das teorias linguísticas nos documentos oficiais e a crescente
desconfiança em relação à tradição gramatical. A Linguística Textual entra em cena,
propondo a formação do leitor/produtor competente. Saber a língua torna-se sinônimo
de competência na utilização da linguagem em diferentes situações da vida social.
Nesse período, passou-se a discutir as relações entre língua, história e sociedade, os
diferentes registros, as diferenças entre o oral e o escrito, as relações entre uso e
condições de produção, dentre outras (GREGOLIN, 2007, p. 66-7).
Em 1990 é a vez da Linguística da Enunciação, inaugurando o primado da
perspectiva discursiva para a compreensão da heterogeneidade textual e para o ensino
da língua. A Análise do Discurso e o pensamento de Bakthin influenciam na
compreensão da língua como mecanismo de inserção social, da linguagem como
processo de sociointeração, como arena de lutas ideológicas, dentre outras. A
discursividade torna-se o centro do ensino de Língua Portuguesa, figurando nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (GREGOLIN, Idem, p. 68-9).
Hoje, entende-se como tarefa da escola ampliar o letramento, de modo a
propiciar aos alunos o contato com diferentes textos de ampla circulação na sociedade.
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Compreende-se que saber a língua não se resume a dominar apenas uma variedade
culta, seja ela oral ou escrita. O cidadão letrado é aquele que possui o domínio de uma
ampla gama de performances cognitivas, familiarizado com as práticas da leitura e da
escrita que apontam para uma perspectiva interdisciplinar.
Todavia, ainda é necessária a construção de uma pedagogia voltada à variação
(FARACO, 2007, p. 42), uma vez que a escola insiste em tratá-la como desvio. Longe
de ser um fenômeno, a variação é um mecanismo extremamente regular no campo
social, que demonstra a habilidade do falante na exploração de recursos estilísticos e
retóricos, disponíveis na língua, para a articulação dos diferentes sentidos sociais. Do
mesmo modo, é urgente a revisão da norma que hoje se conhece como padrão, para que
seja o reflexo da verdadeira norma/culta/comum usada pelo povo brasileiro.
Reflexões que ficam ...
Sem a pretensão de traçar conclusões definitivas, é possível, contudo, refletir no
interior das fronteiras das temáticas que nos propusemos a discutir.
Está claro que em qualquer sociedade podemos constatar a sobreposição de
inúmeras variedades linguísticas, reguladas hierarquicamente, de acordo com as
estruturas sociais estabelecidas. Em todas as sociedades estratificadas observam-se
fenômenos como a intolerância linguística e a rejeição a certas variedades, como
comportamentos comuns, identificados nos diversos espaços sociais.
A proposta para um movimento contrário a essas formas de discriminação e
exclusão pela linguagem e as tentativas de caminhar na contramão de uma história que
negligenciou e estigmatizou, ao longo dos séculos, a imensa maioria da população
brasileira, não pode ignorar as relações entre linguagem e estrutura social. Tais relações
não podem estar dissociadas do ensino da língua.
Uma vez que a língua é o principal produto da cultura e o instrumento básico
para a sua transmissão é importante o investimento em uma política linguística voltada
para aspectos relacionados à variação, de modo a propiciar aos falantes amplo acesso
aos bens sociais.
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Temos que reconhecer que, apesar dos avanços educacionais conquistados com
o auxílio das diversas correntes linguísticas, ainda convivemos com uma pedagogia
conservadora, no ensino da Língua Portuguesa. Nesse sentido é fundamental que todas
as forças sociais, envolvidas no processo educacional – professores, linguistas,
legisladores – assumam o ensino como tarefa técnica e política, decorrente de relações
de força e ideologias presentes no campo social.
Na escola, como em outros espaços, é o uso da língua que evidencia claramente
as diferenças entre os grupos sociais, gerando discriminações e fracassos. Cabe,
portanto, primeiramente à escola, o papel de ampliar a habilidade linguística do falante,
reconhecendo-o como um sujeito multiestilístico, que caminha num continuum de
fronteiras fluidas, caracterizado pela interposição de falares.
Há que se reconhecer, também, a impossibilidade de uma Língua Portuguesa
uniforme, visto que ela nada mais é do que o reflexo de sua própria formação histórica,
produto da miscigenação de raças, do contato entre línguas, do movimento de
imigrantes que, chamados a se instalarem em terras brasileiras, eram forçados a
enfrentar a sociedade letrada, munidos tão somente de suas práticas orais.
Necessita-se, portanto, da construção de uma política educacional para o país,
voltada para a realidade linguística da nação. Um espaço onde atuem forças
progressivas que, acolhendo a visão da variação e compreendendo a distribuição social
das variedades, possam expressar, nessa política, um compromisso de vanguarda em
direção à transformação social e à superação das desigualdades.
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