LinGuÍstiCA ApLiCADA À LÍnGuA portuGuesA

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2017 LINGUÍSTICA APLICADA À LÍNGUA PORTUGUESA Prof. Abraão Júnior Cabral e Santos

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LinGuÍstiCA ApLiCADA À LÍnGuA portuGuesA

Prof. Abraão Júnior Cabral e Santos

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Copyright © UNIASSELVI 2017

Elaboração:Prof. Abraão Júnior Cabral e Santos

Revisão, Diagramação e Produção:Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfi ca elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial.

469.81S237l Santos, Abraão Júnior Cabral e

Linguística aplicada à lingua portuguesa / Abrão Júnior Cabral e Santos. Indaial: UNIASSELVI, 2017.

167 p. : il.

ISBN 978-85-515-0108-5

1.Linguística Aplicada. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

Impresso por:

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ApresentAção

Prezado acadêmico, através da disciplina Linguística Aplicada à Língua Portuguesa você poderá observar que as relações que estabelecemos com a linguagem não são tão simples e aparentes como geralmente imaginamos. Há diversas abordagens acadêmicas – filosóficas, linguísticas, históricas etc. – que comprovam ser a linguagem muito mais do que uma ferramenta para expressão e comunicação; ela é, antes de tudo, o meio por excelência que caracteriza o ser humano, distinguindo-o dos outros animais e perpetuando relações hierárquicas não só entre espécies, mas também entre os próprios homens.

A partir de uma perspectiva linguística, por exemplo, pensar a relação entre homem e linguagem implica considerar o quanto cada indivíduo se aproxima ou se afasta das normas socialmente estabelecidas em sua língua. O fato é que sempre que alguém diz algo, o diz de um determinado modo, sem ter plena consciência do como se dá esse dizer. Nesse sentido, a liberdade e a obediência a regras de uma determinada língua são dois aspectos de uma mesma moeda, que ainda que se deem inconscientemente, fazem parte do dia a dia das pessoas.

Assim, nos discursos inconscientes que realizamos em nossas falas cotidianas, muitos fenômenos de linguagem estão implícitos, alguns deles constituindo-se temas centrais para se pensar o processo de ensino e aprendizagem de língua materna – como é o caso das hierarquias sociais vinculadas às normas gramaticais e o preconceito linguístico. Nessa linha de raciocínio, o profissional de letras cumpre aí um papel fundamental: abrir os olhos, fazer refletir, revelar, na infinidade de linguajares vigentes em um mesmo código linguístico, o jogo social ali presente.

Convidamos você, prezado acadêmico, a desligar-se da maneira habitual de pensar a linguagem, característica do senso comum, que entende a língua quase exclusivamente como objeto de transmissão de informações, para juntos adotarmos outras perspectivas nas quais importantes estudos filosóficos e linguísticos podem contribuir para revelar, especialmente em sala de aula, diferenças e relações de poder que encerram muitos dos conflitos humanos, seus desejos e anseios.

Bons estudos.

Prof. Abraão Júnior Cabral e Santos

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IV

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfi m, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.

Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE.

Bons estudos!

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UNI

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sumário

UNIDADE 1 – ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM ............................................................. 1

TÓPICO 1 – LINGUAGEM, LÍNGUA E GRAMÁTICA ............................................................... 31 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 32 GRAMÁTICA: LÍNGUA E REGULARIDADE ............................................................................ 53 NORMA: ADEQUAÇÃO AO CONTEXTO OU À LÍNGUA DO REI? ................................... 13

3.1 NORMA: ENTRE A LÍNGUA E A FALA ......................................................................... 16LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 20RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 22AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 24

TÓPICO 2 – CARACTERÍSTICAS GERAIS DA LINGUAGEM ................................................ 271 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 272 ABORDAGEM NORMATIVA VERSUS ABORDAGEM DESCRITIVA ............................... 283 LINGUAGEM E APRENDIZAGEM .............................................................................................. 34

3.1 PONTO DE PARTIDA ENTRE A NORMATIVA E A DESCRITIVA: A GRAMÁTICA INTERNALIZADA..................................................................................... 36

3.2 CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM ..................................................................................... 383.2.1 Linguagem como expressão do pensamento ................................................................... 383.2.2 Linguagem como meio de comunicação .......................................................................... 393.2.3 Linguagem como forma de interação ............................................................................... 41

RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 42AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 43

TÓPICO 3 – DA CIÊNCIA DA LÍNGUA À LÍNGUA EM SOCIEDADE .................................. 451 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 452 SAUSSURE E A LINGUÍSTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS GERAIS .................... 45

2.1 BREVE HISTÓRICO DA LINGUÍSTICA MODERNA ............................................... 462.2 A LINGUÍSTICA MODERNA ............................................................................................. 49

2.2.1 Língua e fala ......................................................................................................................... 492.2.2 Significante e significado .................................................................................................... 502.2.3 Sincronia e diacronia ........................................................................................................... 522.2.4 Sintagma e paradigma ........................................................................................................ 54

3 DA TEORIA À PRÁXIS LINGUÍSTICA: SAUSSURE, VYGOTSKY, BAKHTIN ................ 55RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 59AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 60

UNIDADE 2 – LINGUÍSTICA EM AÇÃO ....................................................................................... 61

TÓPICO 1 – LINGUÍSTICA E LINGUÍSTICA APLICADA ........................................................ 631 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 632 A LINGUÍSTICA VARIACIONISTA ............................................................................................. 64

2.1 O PRECONCEITO LINGUÍSTICO .................................................................................... 672.2 AS VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS ....................................................................................... 70

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3 LINGUÍSTICA APLICADA: O QUE VEM A SER ...................................................................... 75LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 78RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 81AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 82

TÓPICO 2 – BAKHTIN E OS GÊNEROS DISCURSIVOS .......................................................... 851 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 852 FUNDAMENTOS DA TEORIA EM BAKHTIN .......................................................................... 86

2.1 O DIALOGISMO ...................................................................................................................... 872.2 A ENUNCIAÇÃO ..................................................................................................................... 91

3 A TEORIA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS .............................................................................. 93RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 98AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 99

TÓPICO 3 – GÊNERO DISCURSIVO EM SALA DE AULA ....................................................... 1011 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 1012 AULA COMO GÊNERO DISCURSIVO ....................................................................................... 1023 O TEXTO COMO EIXO DE INTERAÇÃO SOCIAL .................................................................. 107RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 112AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 113

UNIDADE 3 – ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA ................................. 115

TÓPICO 1 – LETRAMENTO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA .......................................... 1171 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 1172 LETRAMENTO, ALFABETIZAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO ..................................................... 1183 A AULA DE LÍNGUA PORTUGUESA.......................................................................................... 123

3.1 A AULA DE LÍNGUA MATERNA E O PRECONCEITO LINGUÍSTICO ........... 125LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 129RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 132AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 133

TÓPICO 2 – A LEITURA E A FORMAÇÃO DO LEITOR ............................................................ 1351 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 1352 CONCEPÇÕES E ETAPAS DE LEITURA ..................................................................................... 136

2.1 ETAPAS DA LEITURA ........................................................................................................... 1403 PRÁTICAS DE LEITURA EM SALA DE AULA .......................................................................... 142RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 146AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 147

TÓPICO 3 – A ESCRITA E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTO ................................................. 1491 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 1492 CONCEPÇÕES DE ESCRITA .......................................................................................................... 150

2.1 ANÁLISE LINGUÍSTICA E REVISÃO DE TEXTOS ................................................... 1533 DA REDAÇÃO À PRODUÇÃO TEXTUAL ................................................................................. 157

3.1 PRÁTICAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL .......................................................................... 158RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 162AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 163REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 165

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UNIDADE 1

ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir dos estudos desta unidade, você será capaz de:

• compreender os conceitos de língua e gramática a partir da noção filosófica de regularidade linguística, relacionando-a aos usos social e político da linguagem;

• entender a necessidade dos estudos de linguagem como ferramenta de transformação social;

• observar, para além do olhar normativo tradicional, a importância das abordagens descritivas da língua a serem estudadas em sala de aula.

Caro acadêmico! Esta unidade de estudos encontra-se dividida em três tópicos de conteúdos. Ao longo de cada um deles, você encontrará sugestões e dicas que visam potencializar os temas abordados, e ao final de cada um deles estão disponíveis resumos e autoatividades que visam fixar os temas estudados.

TÓPICO 1 – LINGUAGEM, LÍNGUA E GRAMÁTICA

TÓPICO 2 – CARACTERÍSTICAS GERAIS DA LINGUAGEM

TÓPICO 3 – DA CIÊNCIA DA LÍNGUA À LÍNGUA EM SOCIEDADE

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TÓPICO 1UNIDADE 1

LINGUAGEM, LÍNGUA E GRAMÁTICA

1 INTRODUÇÃO

Prezado acadêmico, nesse tópico discutiremos alguns aspectos gerais da linguagem, especialmente aqueles que envolvem os conceitos de língua, norma e gramática, a partir de perspectivas filosófica, linguística e sociopolítica, que poderão ajudá-lo a melhor fundamentar os seus questionamentos ao longo desta e das outras unidades de estudo.

Assim, para começar a nossa conversa, lembremos dois casos possíveis e correntes de uso da língua materna no Brasil. Para enunciarem uma mensagem de conteúdo semelhante, dois usuários, de classes sociais distintas, assim se expressam – enquanto o primeiro diz: “Deixa com nós, mano, nós faz isso ligeiro, tem menas cadeira na sala do que nós pensava”; o segundo usuário se posiciona da seguinte maneira: “Pode deixar conosco, nós o faremos rapidamente, há menos cadeiras na sala do que imaginávamos”.

Para melhor refletirmos sobre os enunciados apresentados, precisamos distinguir duas atitudes possíveis que podemos assumir diante deles. Podemos adotar, por um lado, a atitude do senso comum, e reagir de modo rápido e impensado aos fatos apresentados (atitude que os gregos chamavam de doxa); ou podemos adotar, por outro lado, uma atitude acadêmica, portanto fora da tradição e da opinião corriqueira, que busca ir além da primeira impressão dos fatos para neles encontrar a verdade que os sustenta (atitude denominada, também pelos gregos, de episteme).

Os conceitos de Doxa e Episteme estão presentes, de forma dialética, nos Diálogos de Platão, modificando-se ao correr de suas obras. Pode-se compreender o termo grego Doxa como simples opinião, “que encerra a significação de uma certa noção de julgamento e sentimento, no sentido de resolução e decisão parcial, baseada unicamente nos dados presentes. Isso implica que doxa é compreendida como um certo valor subjetivo que tem valor apenas momentâneo, um juízo que não poderá ser referência ética, pois tem presente a possibilidade da falsidade das crenças que suportam a ação. Sob a mesma perspectiva [...] episteme é vista como uma techné, uma habilidade para fazer algo, um tipo de saber que tem seu suporte no conhecimento especializado e preciso da coisa” (FRANKLIN, 2004, p. 374).

NOTA

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

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Assim, uma atitude seria reagir aos fatos com as nossas opiniões já formadas, vindas não se sabe ao certo de onde (de variadas fontes, quase sempre indeterminadas: conversas espontâneas, programas de televisão, redes sociais, mídias diversas etc.); outra atitude, completamente diversa, seria pensar, isto é, construir e fundamentar um ponto de vista próprio, apoiado sobre leituras e experiências consistentes, em meio a outros pontos de vista possíveis.

autoatividade

Que impressão se poderia ter de um usuário da língua portuguesa que falasse daquele modo: “Deixa com nós, mano, nós faz isso ligeiro, tem menas cadeira na sala do que nós pensava”. Saberia ele utilizar a gramática da sua língua? Em que nível social e qual grau de escolaridade tenderíamos a lhe atribuir?

Embora ainda não tenhamos nos debruçado sobre os falares que podem coexistir em uma mesma língua, isto é, sobre as diversas variações e variedades linguísticas inerentes a qualquer língua em situações de uso, podemos antecipar-lhe, caro acadêmico, dois fatos linguísticos importantes para abordar tal questão.

O primeiro é atentar para o fato de que se os falantes de uma determinada língua comunicam-se e são compreendidos nessa mesma língua, isso implica em reconhecer que eles sabem a gramática dessa língua. Trata-se, entretanto, de um saber espontâneo, internalizado, um conjunto de regras – um tipo de gramática, portanto – que aprendemos na convivência com os outros falantes e que não é melhor nem pior que o modelo de língua idealizado das gramáticas tradicionais.

Um segundo fator, não menos importante, é reconhecer que as línguas são fenômenos vivos, que mudam tanto quanto mudam as pessoas e as sociedades. A língua, nesse sentido, varia de diversas formas: há formas consideradas mais cultas do que outras, mas todas elas são variações, modos distintos e aceitáveis de expressão de uma mesma comunidade linguística.

Ora, independentemente da resposta que tenhamos formulado, é importante sublinhar que a passagem da nossa opinião, registrada na autoatividade anterior, em direção à formulação de um pensamento acadêmico, requer que antes façamos essa impressão inicial dialogar com o maior número de pesquisas e leituras especializadas no assunto.

Dessa forma, detenhamo-nos um pouco, sem responder apressadamente, diante da primeira parte da pergunta: “Saberia ele utilizar a gramática da sua língua?”, e tratemos de ampliar nosso repertório linguístico, debruçando-nos a seguir sobre as significações possíveis dos termos Língua, Norma e Gramática – conceitos centrais para aprofundar tal reflexão.

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TÓPICO 1 | LINGUAGEM, LÍNGUA E GRAMÁTICA

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2 GRAMÁTICA: LÍNGUA E REGULARIDADE

É pelas mãos do filósofo italiano Giorgio Agamben (2005) que principiaremos a discussão em torno dos fundamentos do que seja uma gramática e uma língua. Para Agamben (2005, p. 68):

Devemos observar o milenar processo de reflexão sobre a linguagem que levou ao nascimento da gramática e da lógica e à construção da língua. Estamos acostumados desde sempre a considerar a linguagem humana como linguagem “articulada”. Mas o que significa “articulado”?

Ao compararmos a linguagem humana com a de outros animais, em suas semelhanças e dessemelhanças, é possível observar uma singular diferença, a saber, que algo se repete indefinidamente para uns – como se verifica na linguagem dos animais –, enquanto, para outros, algo não apenas se repete, mas, simultaneamente, repete e varia – tal como se observa na linguagem humana.

Vejamos. O cão, em seu ladrar, utiliza um mesmo som aproximado e repetido, que aqui podemos didaticamente simplificar como “au-au”, sons dos quais o animal se vale para expressar uma enorme e variada gama de instintos e emoções. Seja na raiva, na dor ou na alegria, o cão apenas reitera “au-au” e faz variar a forma ou o grau de entonação, sem que as sílabas, entretanto, em nada variem.

Da mesma forma, na comunicação sonora do gato, o bichano parece acrescentar a consoante bilabial “m” no início dos sons vocálicos a ponto de podermos ouvi-lo ronronar, de modo aproximado, “miau”. Ora, seguindo essa linha de raciocínio, poderíamos sucessivamente identificar os modos sonoros – expressivos e onomatopaicos – de diversos animais.

No caso das representações das realizações sonoras dos animais – como no latido dos cães, no balido das ovelhas, no arrulho dos pombos – é possível observar o quanto as distinções fonéticas, próprias a cada língua, revelam distintas apreensões culturais, tal como se vê na Figura 1, na onomatopeia dos grunhidos do porco: português (óinc), japonês (boo), francês (groin), polonês (chrum), sueco (noff).

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

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FONTE:<hattps://www.listenandlearn.com.br/blog/como-soam-os-animais-mundo-afora/>. Acesso em: 10 abr. 2017.

FIGURA 1 – ONOMATOPEIA DOS GRUNHIDOS DO PORCO

A palavra onomatopeia advém do grego arcaico e significa originalmente “criar um nome” ou “fazer um nome”, e está classificada gramaticalmente como uma figura de linguagem que visa reproduzir sons ou ruídos através de um fonema ou palavra, por exemplo, o som do telefone: trrrim-trrrim, ou de uma explosão: bum! Dentre as figuras de linguagem – que são recursos utilizados, tanto na fala quanto na escrita, para tornar mais expressiva a mensagem a ser transmitida – a onomatopeia situa-se entre as sete Figuras de Palavras: catacrese, metáfora, comparação, metonímia, perífrase e sinestesia. Eis alguns exemplos comparativos entre representações dos mesmos sons no português e no inglês: buzina: bi-bi / beep-beep, espirro: atchim / atchoo.

NOTA

Cabe lembrar que a onomatopeia surge como um recurso de linguagem criado para aproximar o que cada cultura convenciona escutar dos animais, dos sons da natureza, ou dos ruídos presentes em determinado contexto geográfico:

Algumas pessoas criticam a concepção da arbitrariedade do signo, mostrando que as onomatopeias, como ai, oh, ah, são motivadas. No entanto, é preciso dizer que, em primeiro lugar, as onomatopeias ocupam um lugar marginal na língua e, depois, que também elas são submetidas às coerções fonológicas de cada língua, o que explica que os sons produzidos pelos animais, por exemplo, variam de língua para língua (FIORIN, 2011, p. 60-61).

Ao compararmos as articulações sonoras dos homens e dos animais, pretendemos revelar um estágio anterior a representações como a onomatopeia, e desse modo dar conta dos aspectos “inarticulados/articulados” da linguagem,

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TÓPICO 1 | LINGUAGEM, LÍNGUA E GRAMÁTICA

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que caracterizariam as especificidades da linguagem humana, isto é, essa forma “primitiva” de linguagem faz parte do arcabouço sonoro humano – quando chora, ri, soluça etc. – que também emite sons impossíveis de determinar, a não ser de forma aproximada.

Aqui importa-nos reconhecer que esses sons indeterminados são manifestações sonoras que, embora possam realizar-se oralmente, entretanto não se escrevem. Assim, haveria uma passagem, mediada pela linguagem, entre a criança em seu estágio animal – quando ela ainda não aprendeu uma língua particular e participa dessa forma de linguagem comum a outras espécies – e a criança cultural, propriamente humana.

Para o nosso estudo basta retomarmos, comparativamente ao homem, um dos exemplos citados acerca das expressões sonoras dos animais. Se, ao ditongo decrescente “au”, emitido pelos cães, observarmos o animal humano acrescentar as consoantes m, n, p, v no início de cada sílaba, chegaríamos a uma série de monossílabos de valores distintos: “mau” (m+au), “nau” (n+au), “pau” (p+au), “vau” (v+au), ou seja, um adjetivo e três substantivos que não têm qualquer significado comum entre si.

Por isso, Ferdinand de Saussure (2006), pai da linguística moderna, anotaria que todo o sentido captado na linguagem humana seria um sentido diacrítico, isto é, que só se revela na diferença entre os significantes:

A língua, para Saussure, é um sistema de signos em que um signo se define pelos demais signos do conjunto. Por isso, ele desenvolveu o conceito de valor, isto é, o sentido de uma unidade, que é definida por suas relações com outras da mesma natureza. Em “comer”, o radical só tem o seu valor linguístico em relação aos demais radicais da língua portuguesa, como o beb- de beber, o viv- de viver etc. (PIETROFORTE, 2011, p. 83).

Simplificando, para sermos mais didáticos, diríamos que sobre um mesmo número de letras do alfabeto, entre a repetição de algumas letras e a modificação de outras emergem novos sentidos, assim como, de modo similar, quando uma palavra é reposicionada ou alterada de lugar em uma determinada frase, ela apanha um novo contexto capaz de promover, também na frase, um sentido novo.

Nessa comparação didática entre a linguagem humana e a dos cães, os novos sentidos se dariam entre os diferentes arranjos formados a partir da sílaba “au” com os valores diacríticos armados pelas consoantes m, n, p, v, fato que nos permitiria uma primeira conclusão: sobre o som repetitivo do animal – “au-au” – o homem constrói o que varia – “mau”, “nau”, “pau”, “vau” – e abre distintas significações que, para além daquela linguagem indeterminada, fazem a linguagem humana se realizar como sistema, ou seja, como uma língua.

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

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Daí, a pensar com Petter (2011, p. 13), chegaríamos ao “reconhecimento de que as línguas naturais, notadamente diversas, são manifestações de algo mais geral, a linguagem”, que notadamente se diferenciaria da linguagem indeterminada das outras espécies:

Um estudo clássico sobre o sistema de comunicação usado pelas abelhas [...] revela que a abelha-obreira, ao encontrar uma fonte de alimento, regressa à colmeia e transmite a informação às companheiras por meio de dois tipos de dança: [...] se o alimento está próximo, a menos de cem metros, a abelha executa uma dança circular; se está distante, realiza uma dança em forma de oito. [...] Os dois tipos de dança apresentam-se como verdadeiras mensagens que anunciam a descoberta para a colmeia [...] e fazem uma importante revelação sobre o funcionamento da “linguagem animal”, que permite avaliar pelo confronto a singularidade da linguagem humana. [...] O sistema de comunicação das abelhas – ou de qualquer outro animal cuja forma de comunicação já tenha sido analisada – ele não constitui uma linguagem, no sentido em que o termo é empregado quando se trata de linguagem humana (PETTER, 2011, p. 15-16).

Dito de outro modo, essa capacidade de promover pequenas variações em meio à repetição de certos sons ou sílabas possibilitou ao homem transformar parte de sua linguagem em língua. Nesse sentido, podemos dizer que o homem tem linguagem própria, assim como se poderia dizer dos outros animais, mas só ele possui uma língua, que torna sua comunicação mais complexa e – o que é surpreendente – sempre inusitada.

Nessa linha de pensamento, é espantoso notar que com um número limitado de sons e letras, isto é, que na regularidade linguística possa o homem ser capaz de, através de pequenas variações morfológicas ou fonéticas, produzir infinitos significados:

A mensagem das abelhas não se deixa analisar, decompor em elementos menores. É esse último aspecto a característica mais marcante que opõe a comunicação das abelhas à linguagem humana. Num enunciado linguístico como “Quero água” é possível identificar três elementos portadores de significado: quer– (radical verbal) + o– (desinência número-pessoal), água, denominados morfemas. Prosseguindo a decomposição, pode-se chegar a elementos menores ainda. [...] Essa é a propriedade da articulação, que é fundamental na linguagem humana, pois permite produzir uma infinidade de mensagens novas a partir de um número limitado de elementos sonoros distintivos (PETTER, 2011, p. 16-17).

Nesse ponto de nossa reflexão, em que estamos próximos de uma primeira diferença fundamental entre língua e linguagem a partir de um ponto de vista filosófico, retomemos a discussão em torno do que seja a capacidade humana de articular os sons, fenômeno que ainda não se fez visível entre outras espécies. “Os gramáticos antigos, efetivamente, iniciavam seus tratados com a definição de voz, da phoné. Distinguiam, primeiramente, da voz confusa (phoné synkechiméne) dos animais a voz humana, que é, ao contrário, phoné énarthros, voz articulada” (AGAMBEN, 2005, p. 68).

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TÓPICO 1 | LINGUAGEM, LÍNGUA E GRAMÁTICA

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Esse termo que Agamben filosoficamente anotará como “linguagem articulada”, ulteriormente se estabeleceria como gramática. Assim, se pensávamos a gramaticalidade como essa forma de expressão sonora que pode não apenas se repetir, mas na regularidade variar, a partir de agora, com a distinção entre a “voz confusa“ dos animais e a “voz articulada” humana – “phoné engrámmatos” –, articulada passará a ser toda expressão que não é apenas falada, mas que, sendo falada, pode também ser escrita.

Antes de tudo, deve-se entender o que é articulação. Em latim, a palavra articulus significa “parte, subdivisão, membro”. Portanto, quando se diz que uma língua é articulada, o que se quer dizer é que as unidades linguísticas são suscetíveis de ser divididas, segmentadas, recortadas em unidades menores. Para Martinet, todo enunciado da língua articula-se em dois planos. No primeiro, articulam-se as unidades dotadas de sentido. A menor dessas unidades é o morfema. [...] Cada morfema pode, por seu turno, articular-se, dividir-se em unidades menores desprovidas de sentido. Essas unidades são os fonemas. O morfema lob– pode articular-se nos fonemas / l /, / o / e / b /. Nesse plano as unidades têm apenas valor distintivo. Assim, quando se substitui o / l / do morfema lob– por / b / se produz um outro radical, bob–, que aparece na palavra bobo. A dupla articulação da linguagem é um fator de economia linguística. Com poucas dezenas de fonemas, cujas possibilidades de combinação estão longe de serem todas exploradas em cada língua, formam-se milhares de unidades de primeira articulação (PIETROFORTE, 2011, p. 91-92).

UNI

Dito de outro modo, a voz articulada, apenas emitida pelo gênero humano, é na verdade voz gramatical, enquanto a voz inarticulada dos animais é voz confusa, que não pode ser escrita, e eis um dos motivos para o surgimento da onomatopeia, ou seja, circunscrever na língua alfabética o que a excede em princípio: os grunhidos dos animais, os sons indeterminados do gênero humano.

Mas se questionamos hoje em que consiste este caráter articulado da voz humana, vemos que phoné énarthros, vox articulata, significa simplesmente phoné engrámmatos, ou seja, na tradução latina, vox quae scribi potest ou quae litteris compreendi potest: voz que se pode escrever, que se pode compreender, aferrar com as letras (AGAMBEN, 2005, p. 68).

Assim, ao observarmos essa “voz confusa” ser amarrada à escrita de uma onomatopeia, resta claro que ela não se pressupõe ou está necessariamente inscrita em tal escrita, senão que é essa mesma escrita que, por um princípio de economia linguística inerente à comunicação, emoldura e restringe um fenômeno expressivo maior, no qual o que está escrito passa a condicionar o que está expresso, ou seja, a condicionar aquilo que migra do som e do ruído àquilo que no homem pode ser, mais do que expresso, falado.

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

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Assim, a transformação dos sons inarticulados em figuras de linguagem, como as onomatopeias, ou ainda a transformação desses mesmos sons em uma fala que pode ser escrita, isto é, nos “grámmatas”, seria o passo decisivo para a posterior estruturação hierárquica, não apenas entre o homem e os animais, mas também nas diferenças valorativas que se dariam entre os homens através da história.

A gramática tradicional, ao fundamentar sua análise na língua escrita, difundiu falsos conceitos sobre a natureza da linguagem. Ao não reconhecer a diferença entre língua escrita e língua falada passou a considerar a expressão escrita como modelo de correção para toda e qualquer forma de expressão linguística. A gramática tradicional assumiu desde sua origem um ponto de vista prescritivo, normativo em relação à língua (PETTER, 2011, p. 19).

Ora, se atentarmos para o significado do termo “gramatical” ao longo do tempo, veremos que dele foi erigido um preconceito secular contra a oralidade, ao privilegiar a modalidade escrita sobre a modalidade falada da língua. Entretanto, agora sabemos, trata-se de um fenômeno anterior a qualquer perspectiva sociopolítica, pois a partir da especulação filosófica foi possível observar a gramática, em sua origem, como ponto de diferenciação do homem em relação às demais espécies do planeta.

Com isto está de acordo o próprio Darwin, que assim se externa: “A linguagem articulada pertence especialmente ao homem, se bem que, como os outros animais, possa ele exprimir as suas intenções por gritos inarticulados”. [...] Só metaforicamente se pode afirmar que os animais possuem linguagem. Os sons que eles emitem não passam de ruídos uniformes, designativos dos vários sentimentos de dor, espanto, alegria, de que estão possuídos (COUTINHO, 2011, p. 14).

Assim a gramática, muito mais do que marcar distinções entre o que é “certo” e o que é “errado”, tal como ficou conhecida por meio das abordagens prescritivas tradicionais, pretendeu antes marcar uma distinção singular entre o animal-homem e o animal-animal. Destarte o humano, cuja linguagem comporta uma língua, pôde distanciar-se cada vez mais da natureza, a qual, em sua limitação, embora possua linguagens animais diversas, não possui nenhuma língua sistemática.

Uma primeira consequência dessa perspectiva é que todo ser incapaz de articular uma “língua” poderia ser tratado como coisa, tal como se deu com os animais alienados em suas formas “rudimentares” de linguagem. Dessa asserção decorre outra que está na raiz do que se chamará de preconceito linguístico – temática que será aprofundada na segunda unidade do livro didático –, a saber: o homem que, como um animal, baseia sua expressão na oralidade, geralmente na oralidade de uma fala “incorreta”, “normativamente pouco gramatical”, este “exemplar humano” a um animal se assemelharia.

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Como se vê, estamos a um passo de justificar os tratamentos dados a pessoas menos favorecidas socialmente e tratadas como “animais”, tal como foi perpetrado por séculos de escravidão:

Ela deve ser sempre invocada como sinal distintivo do ser humano: “É a faculdade da linguagem articulada que se deve invocar, de modo definitivo, para distinguir o homem dos seus irmãos inferiores”. Onde quer que ele se encontre, em estado selvagem ou civilizado, revela sempre o conhecimento de um sistema especial de sinais articulados, o que importa dizer, usa uma linguagem própria (COUTINHO, 2011, p. 14).

Entretanto, se a escravidão encontrou historicamente o seu fim, o preconceito a ela ligado permaneceria nas línguas como marcas de distinção hierárquica – dadas por meio de regras e usos de linguagem que se mantêm segmentados conforme os estratos sociais de cada cultura – entre os homens de valor e o que seria uma subespécie de homens inferiores. Nesse sentido, os estudos linguísticos a partir de Saussure revelariam que as motivações inerentes aos usos e regras espontâneas da comunicação cederam lugar à imposição dos valores de determinados grupos sociais de maior prestígio.

Assim, se a partir de um ponto de vista especulativo pudemos investigar o surgimento da gramática como um expediente capaz de amarrar sons articulados às letras e à escrita alfabética, se pudemos distinguir, na linguagem, o humano do não humano ao diferenciar a língua (linguagem especificamente humana) de outras formas de linguagem (humana e animal), daí não decorreu uma progressão dos estudos filosóficos em direção à sistematização dos usos concretos em que a gramática aparecesse sob o ponto de vista da regularidade.

Entretanto, se tais fenômenos ainda têm ocorrência e se essa ocorrência se dá por razões não mais filosóficas, mas devido à imposição de uma abordagem única, tradicional e sem ancoragem científica – por abordagem científica da língua, leia-se Linguística, disciplina conceituada como ciência da linguagem – foi devido a razões sociopolíticas, pela imposição de uma abordagem tradicional de gramática que caracterizaria as perspectivas normativas de língua:

Começou-se por fazer o que se chamava de “Gramática”. Esse estudo, inaugurado pelos gregos, e continuado principalmente pelos franceses, é baseado na lógica e está desprovido de qualquer visão científica e desinteressada da própria língua; visa unicamente a formular regras para distinguir as formas corretas das incorretas; é uma disciplina normativa, muito afastada da pura observação e cujo ponto de vista é forçosamente estreito (SAUSSURE, 2006, p. 7).

Dessa forma, se a história da língua não seguiu o curso esperado da filosofia à ciência, mas da filosofia à política, é porque havia uma forma de política que demarcava hierarquicamente diferenças entre as espécies como meio de justificar os usos de umas pelas outras, mais especificamente o uso dos animais, vistos como “coisas” ou “res extensa”, pelos humanos.

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FIGURA 2 – HOMEM VERSUS ANIMAL

FONTE: <https://i.pinimg.com/originals/2d/18/03/2d1803d4a3923e6a2c0fe5ed09736c47.jpg>. Acesso em: 31 ago. 2017.

Os homens, qualificados enquanto animais especiais, alçariam a condição de “pessoas”, isto é, de sujeitos dotados de alma e não apenas de linguagem corporal, portanto de algo mais elevado, complexo, abstrato, quer dizer: seres dotados de uma língua.

Descartes, filósofo da Idade Moderna, consagrou essa diferença hierárquica entre a “res cogitans” – substância pensante, sujeito ou espírito – e o seu contrário, a “res extensa”, coisa extensa, corpo ou matéria, substância que não pensa. O atributo principal dos corpos seria a extensão, ou seja, estar no espaço em seus modos de quantidade, forma e movimento. Em razão disso, os corpos estariam submetidos à quantidade e poderiam ser quantificados. Os seres humanos, possuidores de mentes, “res cogitans”, portanto não sendo pura extensão, se oporiam aos animais, seres de pura extensão, que apenas possuem corpos, “res extensa”, consequentemente aptos a serem tratados como meras coisas a serviço do ser humano.

NOTA

Após essa breve incursão, apoiada sobre um ponto de vista da filosofia contemporânea, observamos como Agamben – ao partir das asserções filosóficas de Aristóteles acerca da existência humana dentro e fora da linguagem, nas quais o pensador grego estabeleceu distinções entre a “voz inarticulada ou confusa” dos animais e a “voz articulada” dos seres humanos – pôde auxiliar-nos a estabelecer uma primeira distinção, fundamental, entre língua e linguagem.

A língua, nesse sentido, em sendo um dos atributos da linguagem, e mesmo a ela pertencendo, de certo modo a supera na medida em que, ao caracterizar o que é mais próprio do humano, confere a esse homem um valor de superioridade em relação aos demais animais, desde então vistos como coisas. Como diria Descartes, pai do subjetivismo filosófico: o pensamento, isto é, a linguagem precede a existência.

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A partir de agora, migraremos para um ponto de vista mais próprio à ciência, linguístico, buscando situar a língua como forma convencional de linguagem, para além de um diferencial entre o homem e os demais seres: “poder-se-ia dizer que não é a linguagem que é natural ao homem, mas a faculdade de constituir uma língua, vale dizer: um sistema de signos distintos correspondentes a ideias distintas” (SAUSSURE, 2006, p. 18).

Assim, ao observarmos o comportamento da língua em sociedade, cujos vetores sociopolíticos passam a ser determinantes, ver-se-á notória a imposição dos valores de um determinado grupo social sobre outros de menor poder econômico. Em razão disso, os modos de linguagem pertinentes aos contextos de uso, que em princípio possuem uma eficácia gramatical própria, ver-se-iam historicamente afetados pela imposição de uma norma gramatical padronizadora e de ordem prescritiva.

3 NORMA: ADEQUAÇÃO AO CONTEXTO OU À LÍNGUA DO REI?

Ainda que de passagem, observamos no item anterior a aparição de uma abordagem normativa da língua que, embora tivesse sua origem situada nas distinções hierárquicas entre a linguagem inarticulada do animal e a linguagem articulada do ser humano, continuou a se expandir em sociedade na medida em que manteve graus semelhantes de distinção, agora não mais entre seres de espécies diferentes, mas entre homens de classes sociais e de níveis hierárquicos distintos:

No grupo que se mantinha diretamente em torno do poder, formada a golpes de decisões dogmáticas, depurada rapidamente de todos os procedimentos gramaticais que tinham podido ser elaborados pela subjetividade espontânea do homem popular, e erigida, ao contrário, num trabalho de definição, a escrita burguesa foi inicialmente dada, com o cinismo habitual dos primeiros triunfos políticos, como a língua de uma classe minoritária e privilegiada (BARTHES, 2004, p. 49).

Essa dimensão histórica, observou-a Saussure (2006, p. 7), para quem o estudo gramatical fora “inaugurado pelos gregos, e continuado principalmente pelos franceses [...] e visava unicamente a formular regras para distinguir as formas corretas das incorretas”.

À medida que as sociedades se desenvolviam e tornavam-se mais complexas, embora houvesse condições para uma maior assimilação dos avanços linguísticos, tais avanços, comuns em outras ciências, entretanto não ocorriam no território da língua, no qual persistiu a tentativa de grupos sociais de maior poder em preservar traços linguísticos que os opõem e os diferenciam aos grupos por eles considerados inferiores.

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Assim, através do tempo – como no período de ascensão burguesa na França do século XVII – é possível notar a permanência da imposição do poder do maior sobre o menor, que reverberaria, para além do plano social e político, para o plano da linguagem:

Essas duas histórias se associam e mantêm relações recíprocas. [...] Os costumes duma nação têm repercussão na língua e, por outro lado, é em grande parte a língua que constitui a Nação. Em segundo lugar, cumpre mencionar as relações existentes entre a língua e a história política. Grandes acontecimentos históricos, como a conquista romana, tiveram importância incalculável no tocante a inúmeros fatos linguísticos (SAUSSURE, 2006, p. 29).

Tratar-se-ia de uma forma de continuidade das relações desiguais observadas originalmente entre o homem e os animais, que migraria para as desigualdades sociais entre os próprios seres humanos. Assim, como anotou Barthes (2004), os procedimentos gramaticais espontâneos, que atendiam à subjetividade popular, ver-se-iam substituídos, ou mesmo contidos, por uma ordem de procedimentos gramaticais – quer dizer: um conjunto de regras a ser partilhado e seguido – notadamente mais próximos às esferas do poder.

FIGURA 3 – CASTELO DE VERSAILLES – SÍMBOLO DE NOBREZA E SUPERIORIDADEDA ELITE FRANCESA DO SÉC. XVII

FONTE: <http://www.richesheures.net/epoque-16-18/chateau/78/versailles/versailles-v03.jpg>. Acesso em: 1 maio 2017.

Assim, um conjunto de regras e procedimentos linguísticos, impostos de cima para baixo, formaria a base do que viria a ser a norma gramatical tradicional, cujo intento seria não apenas evitar as modificações inerentes à própria língua – que modifica-se e evolui de diversas formas: no tempo, nos estratos sociais, nos registros formal ou informal, em regiões geográficas distintas –, como também

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corrigi-las e apontá-las como erro, desvio, falha. “Existe uma regra de ouro da Linguística que diz: ‘só existe língua se houver seres humanos que a falem’. E como o velho e bom Aristóteles nos ensina que o ser humano ‘é um animal político’. [...] chegamos à conclusão de que ‘tratar da língua é tratar de um tema político’” (BAGNO, 1999, p. 9).

Destarte, as diversas variações linguísticas que ocorrem espontaneamente na fala dos usuários de uma determinada comunidade linguística seriam obstaculizadas pela modalidade escrita da língua – admitida enquanto forma clássica ou culta de linguagem – e doravante convertida em lugar ideal para a estabilização das desigualdades inerentes às instâncias sociais e políticas.

Em 1647, Vaugelas recomenda a escrita clássica como um estado de fato, não de direito; a clareza ainda não é senão um uso da corte. Em 1660, ao contrário, na gramática de Port-Royal, por exemplo, a língua clássica vem revestida das características do universal, a clareza se torna um valor. [...] A autoridade política, o dogmatismo do Espírito e a unidade da linguagem clássica são portanto as figuras de um mesmo movimento histórico (BARTHES, 2004, p. 50).

A Gramática de Port-Royal refere-se à publicação de um conjunto de fundamentos da arte de falar de modo claro e racional, que surgiu na França do século XVII em uma região associada ao monastério jansenista de Port-Royal-des-Champs. Influenciados pela filosofia de René Descartes, os seus criadores preocupavam-se com uma abordagem lógica da linguagem, na qual prevalecessem fatores linguísticos universais, como a clareza e a coerência. Nesse sentido, a gramática de Port-Royal se opõe à ideia de “bom uso” da linguagem associado aos falares da corte francesa, tal como era preconizado por Claude Vaugelas.

NOTA

Entretanto, para melhor nos debruçarmos sobre tal fenômeno, faz-se necessário deslocar o olhar não mais para observar o comportamento da língua em seu funcionamento atual – eixo da sincronia, a dizer com Saussure (2006) –, mas na direção que põe em destaque as modificações e os contextos nos quais as línguas sofrem modificações ao longo do tempo – eixo da diacronia.

Neste caso, passamos a aderir aos estudos linguísticos desde um ponto de vista histórico, por meio do qual é possível capturar as motivações sociais que levaram à eleição de uma variedade normativa de língua em detrimento de outras variedades possíveis, e assim buscar compreender como se deu o embate e a substituição dos saberes linguísticos que evoluíam desde os questionamentos filosóficos da Grécia antiga até a imposição de uma normatização clássica, tal como observada na corte francesa.

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Assim, será possível entender a recusa dos saberes de uma gramática especulativa e racional, como a realizada por Port-Royal na França, em nome de uma dimensão simultaneamente mítica e política da história, na qual Vaugelas, membro da aristocracia francesa, pôde afirmar que a língua falada pelo rei seria, ela própria, a língua de Deus na França. Ora, se o rei era a lei, esse poder ao mesmo tempo terreno e divino seria capaz de conferir à variedade da língua francesa falada na corte uma espécie de elevação, cujos usos e modulações caberiam ao vulgo imitar.

O Rei Sol, ou “Le Roi Soleil”, foi como o rei Louis XIV se autoproclamou ao governar a França do século XVII. Como monarca absolutista, ele detinha todos os poderes do Estado, poderes que, para ele, provinham de um direito divino, de ele ser o representante direto de Deus sobre a França. Em sua megalomania, pretendeu igualar-se ao astro rei, tornando o Sol seu símbolo e emblema. Destarte, assim como os seres sobre a Terra se guiavam pela luz solar, os franceses deveriam guiar-se por seu rei, imitando não apenas os seus modos nobres de existência, que deveriam ser públicos: acordar, vestir-se, fazer refeições etc., como também os seus usos de linguagem. Sua obra mais notória foi a construção de Versailles, um suntuoso castelo situado nos arredores de Paris, e que hoje em dia abriga um dos maiores museus históricos e de arte da Europa.

NOTA

De modo completamente diverso, a linguística moderna retomaria, com Saussure, o debate científico contra essa espécie de estreiteza dos usos sociais da linguagem, que desde a Idade Antiga buscou substituir as regras espontâneas da comunicação e da interação social, expressivas para determinadas populações e adequadas aos contextos de uso, por certos usos da linguagem, muitas vezes não tão lógicos, mais próprios às classes de maior prestígio sociocultural.

3.1 NORMA: ENTRE A LÍNGUA E A FALA

Para pensarmos a língua em sua natureza social – e, posteriormente, observarmos sua evolução para o conceito de norma – cabe antes perguntar, em um sentido estritamente humano: o que vem a ser propriamente uma língua? Dirá Saussure (2006, p. 17):

Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos.

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Ao admitirmos, com o linguista suíço, a natureza convencional da linguagem, é admitir que a língua não existe por si só, que é um sistema de signos posto em movimento por um determinado indivíduo quando este indivíduo fala. Se quisermos resumir, diríamos que quando dois indivíduos conseguem comunicar-se – por exemplo, em um telefonema entre um cidadão português e um brasileiro – é porque, apesar de falarem de modos diferentes, utilizam um sistema em comum, ou seja, uma mesma língua – a língua portuguesa, nesse caso.

Assim, a especificidade da linguagem humana – que doravante denominaremos apenas “língua” – é pensada não como língua ou fala alternativamente, mas simultaneamente, e embora elas operem juntas, suas naturezas permanecem opostas: a língua, de natureza coletiva e social; a fala, de natureza particular e individual:

Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame social que constitui a língua. Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo (SAUSSURE, 2006, p. 21).

Importou-nos introduzir essa primeira dicotomia saussuriana para explorarmos a ideia de norma gramatical, situando-a a partir da distinção original, formulada por Saussure, que compreende os estudos linguísticos segundo polaridades – língua/fala, dentre outras – que faz situar a língua, enquanto sistema de signos, em relação à execução desse mesmo sistema por um determinado indivíduo, isto é, em relação à fala.

Nesses termos, de onde surge e em que consiste a ideia de norma? Foi o linguista Eugene Coseriu que reformulou a dicotomia saussuriana língua/fala ao observar que os indivíduos não realizam propriamente uma fala individual a partir de um sistema maior chamado língua, mas individualizam um sistema menor da língua, uma espécie de subsistema também falado por um grupo mais próximo, no qual o próprio indivíduo está inserido:

Os diferentes sotaques, o uso de vocabulários próprios de alguns grupos sociais, a presença ou não de concordâncias verbais e nominais etc., caracterizam modos de realização linguística que não são próprios nem de um só indivíduo nem de todos os falantes de uma língua, mas caracterizam variantes linguísticas de uma mesma língua (PIETROFORTE, 2011, p. 92).

Observa-se – ainda no exemplo do telefonema entre um português e um brasileiro – que se o português perguntasse: “estás a fazer o teu trabalho?”, o brasileiro, ao invés de utilizar uma estrutura sintática semelhante, com o verbo auxiliar seguido do infinitivo do verbo principal: “sim, estou a fazer”, responderia,

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entretanto conforme a norma sintática do português brasileiro – que, no caso presente, consiste no emprego de verbo auxiliar seguido do gerúndio do verbo principal – ele provavelmente diria: “sim, estou fazendo”.

Nesse exemplo aparece um tipo de variante regional da língua. Assim, quando um usuário brasileiro vai ao sistema “Língua Portuguesa”, ele não acessa diretamente a língua portuguesa como um todo, mas a “norma regional” dessa mesma língua, a praticada no Brasil, que consistiu, no caso visto anteriormente, do emprego do gerúndio e não do infinitivo após o verbo auxiliar, tal como ocorreria de modo oposto se o usuário em questão fosse um cidadão português. Portanto, antes de acessar propriamente a língua portuguesa, o usuário acessa a norma de seu grupo local, realizando-a, em seguida, enquanto fala individual.

Tais eventos gramaticais se dão não apenas no plano sintático, morfológico ou fonológico, mas em diversas ocorrências da língua em situação de uso:

O que Coseriu chama língua é o sistema articulado com suas normas, ou seja, com suas variantes linguísticas. Assim, o conceito de língua, para Coseriu, abrange o sistema, que é do domínio de todos os falantes de uma mesma língua, e as normas, que, como variantes desse sistema, são do domínio dos grupos sociais, regionais etc. (PIETROFORTE, 2011, p. 92).

Cabe considerar, para Coseriu (1980), que a estratificação da língua se dá em quatro tipos de variantes: as variantes diacrônicas, que apontam as diferenças linguísticas ao longo do tempo e verificáveis nos linguajares de faixas etárias distintas; as variantes diatópicas, que distinguem os usos regionais da mesma língua; as variantes diafásicas, que concernem aos usos formais ou informais da língua; e as variantes diastráticas, que referem-se aos usos de diferentes grupos sociais de falantes, tal como observamos no embate entre a variante “nobre” da língua praticada em Versailles e as demais variantes em uso na França da época.

Destarte, a dicotomia Língua/Fala, inicialmente verificada por Saussure, passa a ser efetivamente realizada, no dizer de Coseriu, na tricotomia Língua/Norma/Fala: “Coseriu propõe que a dicotomia língua e fala seja redefinida para sistema versus norma versus fala, de modo que as variantes linguísticas sejam descritas nos domínios da norma. Na tríade proposta por Coseriu, a fala continua da ordem do individual, mas o conceito de língua é modificado” (PIETROFORTE, 2011, p. 92).

Dessa forma, as variantes diastráticas que mais interessam à presente análise ligam-se à estratificação social, marcando diferenças culturais dentro de uma mesma comunidade linguística, que conformará distintos tipos de norma: em um primeiro nível hierárquico, a norma culta, mais próxima à escrita e que está baseada na variante linguística de maior prestígio sociocultural, por exemplo, no uso do verbo haver em lugar do verbo ter na sentença: “Há menos cadeiras na sala”.

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Em segundo nível hierárquico, a norma coloquial reporta-se aos falares espontâneos da classe média escolarizada, cujos desvios variam conforme a situação de uso, como na substituição, no mesmo exemplo, do verbo haver pelo verbo ter: “Têm menos cadeiras na sala”.

Por último, em nível hierárquico inferior, a norma vulgar ou popular, ligada às classes populares não escolarizadas ou semiescolarizadas, na qual se observam desvios expressivos em relação à norma padrão a ponto de serem caracterizados como “erro” gramatical, tal como na concordância inadequada entre o advérbio “menos”, aqui tratado como adjetivo, e o substantivo “cadeiras” em: “Têm menas cadeiras na sala”.

Ora, entre as primeiras intuições gregas acerca do funcionamento da linguagem, e suas consequentes especulações filosóficas, até as formulações de caráter científico da linguística moderna em Saussure, passou-se por um longo período de submissão da objetividade do saber às imposições sociopolíticas das classes sociais abastadas.

É o que se verificou no estabelecimento da norma padrão clássica na corte do rei Luis XIV na França do sec. XVII, recorte histórico que tornou possível observar como um padrão dominador de uso da língua migra da esfera do humano/animal para a esfera do homem bem-sucedido para o malsucedido socialmente.

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LEITURA COMPLEMENTAR

NASCIMENTO DA GRAMÁTICA

É por esse ângulo que devemos observar o milenar processo de reflexão sobre a linguagem que levou ao nascimento da gramática e da lógica e à construção da língua. Estamos acostumados desde sempre a considerar a linguagem humana como linguagem “articulada”. Mas o que significa “articulado”? Articulado, articulatus, é a tradução latina do termo grego énarthros, que pertence ao vocabulário técnico da reflexão estoica sobre a linguagem, que influenciou profundamente os gramáticos antigos. Os gramáticos antigos, efetivamente, iniciavam seus tratados com a definição de voz, da phoné. Distinguiam, primeiramente, da voz confusa (phoné synkechiméne) dos animais a voz humana, que é, ao contrário, phoné énarthros, voz articulada. Mas se questionamos hoje em que consiste este caráter articulado da voz humana, vemos que phoné énarthros, vox articulata, significa simplesmente phoné engrámmatos, ou seja, na tradução latina, vox quae scribi potest ou quae litteris compreendi potest: voz que se pode escrever, que se pode compreender, aferrar com as letras. A voz confusa é aquela, “inescrivível”, dos animais (equorum hinnitus, rabies canum, rugitus ferarum) ou então aquela parte da voz humana que não se pode escrever, como o assovio, o riso, o soluço (utputa oris risus vel sibilatus, pectoris mugitus et cetera tália).

A voz articulada não é, portanto, nada além de phoné engrámmatos, a voz que foi transcrita e compreendida nas letras. Aqui podemos captar a incidência fundamental da escrita alfabética sobre nossa cultura e sobre a concepção da linguagem. Somente a escrita alfabética pode, efetivamente, criar a ilusão de ter capturado a voz, de tê-la compreendido e inscrito nos grámmata. Para dar conta plenamente da importância fundadora desta “captura” da voz, graças à escrita alfabética, devemos liberar-nos da representação ingênua, e todavia tão comum, segundo a qual as letras, os grámmata, estariam verdadeiramente na voz como elementos seus, como stoicheía, assim como o número estaria realmente nas coisas (pense-se na proximidade, na Grécia, entre escritura alfabética e matemática, entre reflexão gramatical e reflexão geométrico-matemática). O desenvolvimento da fonética e o impasse ao qual ela chegou em sua tentativa de captar os sons da palavra no seu aspecto articulatório e acústico são, deste ponto de vista, particularmente instrutivos. Um filme realizado pelo foneticista alemão Paul Menzerath mostra como é impossível descobrir qualquer sucessão e qualquer subdivisão no ato da fala, que do ponto de vista articulatório, apresenta-se como um movimento ininterrupto, no qual os sons não se sucedem, mas entremeiam-se mutuamente. Mesmo uma análise rigorosamente acústica revela em cada som da fala uma tal quantidade de particularidades que se torna impossível ordená-la em um sistema.

Justamente a tomada de consciência da impossibilidade de reter, de capturar os sons da linguagem, do ponto de vista articulatório ou acústico, possibilitou o nascimento da fonologia, ou melhor, a desencarnação da língua a partir da voz e

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TÓPICO 1 | LINGUAGEM, LÍNGUA E GRAMÁTICA

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a ruptura do vínculo entre língua e voz que permanecera inquestionável desde o pensamento estoico até a fonética dos neogramáticos. Com a consumação desta ruptura torna-se evidente a radical autonomia da língua no que diz respeito à voz e ao ato concreto de fala (retomando um jogo de palavras de Bréal, seria possível dar uma etimologia fantástica do termo “fonologia”, vislumbrando aí um assassínio – em grego: phonos – da palavra). Justamente por isso, a saber, que rompeu a relação originária com a voz, deve agora procurar para si um outro lugar, e é o que faz reportando-se a uma estrutura incônscia, a um inconsciente, ou seja, a um saber que não se sabe, a um saber sem sujeito. Os fonemas da fonologia, a estrutura de Lévi-Strauss, a gramática gerativa de Chomsky, situam-se todos no inconsciente. Enquanto a ciência clássica, de Descartes até o século XIX, colocava o logos, isto é, o mediador entre Homo sapiens e Homo loquens, em um Eu, em uma consciência que não era mais que o sujeito da linguagem, hoje em dia a ciência não tem mais necessidade deste sujeito e prefere situar o logos no inconsciente, em um saber oculto, que não se sabe. Permanece, contudo, o fato de que este inconsciente, não importa como seja caracterizado, é um logos no seu aspecto lógico de língua, no caso da fonologia e do inconsciente lévi-straussiano, pura estrutura matemático-diferencial, ou logos no seu aspecto de fala, como no caso da psicanálise.

FONTE: AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 68-70.

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Neste tópico, você viu que:

• As relações que se estabelecem entre língua e linguagem podem ser observadas de diversas maneiras, dentre as quais destacamos os pontos de vista filosófico, linguístico, histórico e político, que demonstram não haver uma verdade única acerca dos domínios da linguagem.

• De um ponto de vista filosófico, a língua é compreendida como uma propriedade exclusivamente humana, decorrente de uma atividade expressiva e comunicativa maior – a linguagem – comum tanto ao homem quanto aos demais animais.

• A língua, enquanto modalidade humana de linguagem, é apreendida simultaneamente na variação e na regularidade. Assim, a voz confusa do animal passa a adquirir, na linguagem especificamente humana, uma gramática que regula um fenômeno linguístico indeterminado na determinação alfabética da oralidade e da escrita.

• A tomada de consciência de uma gramática surge com a possibilidade de capturar os sons da voz animal inarticulada, que só o homem é capaz de delimitar através de uma fala e de uma escrita que, do ponto de vista articulatório, possibilitou o nascimento da fonologia a partir da ruptura do vínculo entre a voz articulada (fala) e a voz confusa ou inarticulada (urros, gemidos, uivos etc.).

• As diferenças presentes na linguagem, que originalmente marcaram uma hierarquia entre o homem, ser capaz de língua, e os demais animais, permaneceria – ao refletirmos a língua sob um prisma histórico e político – na sociedade humana por meio de variedades da língua mais privilegiadas do que outras, conforme elas estivessem mais ou menos próximas às classes sociais melhor posicionadas socioeconomicamente.

• A variedade da língua culta ou padrão, desde um ponto de vista histórico, como na França do século XVII, não é aquela que tem maior lógica, coerência ou saber, mas sim a praticada pela nobreza que circundava o rei, cuja voz considerava-se consagrada por um poder divino.

• Caberia à Linguística, enquanto ciência da língua, desmistificar os aspectos míticos da linguagem, demonstrando que a língua dita “elevada” é apenas uma das variedades possíveis de uma língua, eleita entre outras variedades, também válidas, em uma determinada comunidade linguística.

RESUMO DO TÓPICO 1

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• Segundo a linguística moderna, as variedades da língua não são captadas diretamente entre a língua (sistema autônomo) e a fala (concretização individual da língua), mas a partir do tripé “língua/norma/fala”, no qual o falante, ao concretizar sua expressão, a faz segundo a norma adequada ao contexto de uso: formal, informal, familiar, público etc.

• A ciência linguística alarga as noções dogmáticas e estereotipadas do senso comum, fundamentando-as com dados objetivos dos estudos da linguagem, que validam o discurso acadêmico e repercutem, inclusive, no ensino de língua materna e na postura metodológica dos professores em sala de aula.

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1 A tese filosófica de origem da gramática assenta-se na distinção aristotélica da “voz articulada” do ser humano – isto é, língua – e a “voz confusa” do ______. Gramatical, nesse sentido, seria aquela voz que, por ser articulada, pode ser escrita. Assim, enquanto os animais “relincham”, “urram”, “latem”, o homem “______ ”. Nesse sentido, pode-se dizer que tanto o homem como o animal têm _______, mas só o homem fala uma ______.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) animal – chora – linguagem – língua b) ( ) ser – fala – língua – linguagem c) ( ) animal – fala – linguagem – línguad) ( ) ser – chora – língua - linguagem

2 O linguista romeno Eugenio Coseriu atualizou a dicotomia saussuriana Língua/Fala ao observar que os falantes não internalizam diretamente uma língua, mas o modo como essa mesma língua é usada pelo grupo social mais próximo do falante. Assim, o esquema de Saussure seria transformado em Língua/Norma/Fala. É o caso quando observamos uma mesma língua falada em distintas regiões geográficas, por exemplo, quando um usuário da língua portuguesa nascido em Florianópolis/SC – conhecido como “manezinho” – interpreta a seu modo a sentença da Língua Portuguesa “se tu o dizes”, que segundo a variedade da língua portuguesa dos “manezinhos”, transformar-se-ia em “se tu dix”, expressão adequada ao plano informal da oralidade, já que consiste em uma variedade linguística diatópica, isto é, geográfica. A partir dessa reflexão, é correto afirmar:

a) ( ) Que a existência de diversas formas geográficas de variar uma mesma língua revelaria a falta de cultura de um povo.

b) ( ) Que a norma-padrão é a única válida, mesmo na expressão oral de uma comunidade linguística.

c) ( ) Que a norma-padrão, por ser considerada a variedade da língua de maior prestígio social, é a única correta do ponto de vista da Linguística.

d) ( ) Que as normas são variações da língua aceitáveis quando utilizadas adequadamente ao contexto de uso.

AUTOATIVIDADE

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3 No percurso histórico das abordagens prescritivas das línguas, o aristocrata francês Claude Vaugelas destacou-se ao publicar “Observações sobre a língua francesa, úteis àqueles que querem falar e escrever bem”, indicando a variedade linguística que deveria ser cultivada pelos franceses. Para ele, falar bem seria falar como o rei Luis XIV em 1647, época em que se acreditava que o rei tinha origem divina, portanto falar a língua do rei era como falar a língua de Deus. Considerando a variedade da língua falada pelo rei como norma-padrão, e a variedade da língua falada concretamente pelo povo francês como norma-popular, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Norma-padrãoII- Norma-popular

( ) Forma desprestigiada de uma língua, embora linguisticamente tal desprestígio não se sustente objetivamente.

( ) Forma da língua considerada como depositária do verdadeiro saber e do valor de um povo.

( ) Tipo de norma cultivada ao longo da história pelas classes sociais nobres ou mais abastadas.

( ) Forma mais livre da língua, em geral falada por pessoas com baixo grau de escolaridade.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I – II – I – II. b) ( ) II – I – I – II. c) ( ) I – II – I – I. d) ( ) II – II – I – II.

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TÓPICO 2

CARACTERÍSTICAS GERAIS DA LINGUAGEM

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Em épocas remotas, anteriores ao nascimento de Cristo até meados do século XIX – em pensadores como Aristóteles na Antiguidade, Santo Agostinho no período medieval, René Descartes na Idade Moderna, Isaac Newton no séc. XVII –, havia a certeza, partilhada tanto por pensadores quanto pelo senso comum, de que alguns seres vivos poderiam nascer espontaneamente e não exclusivamente a partir de outros existentes.

De fato, Aristóteles acreditava que a vida podia ser gerada espontaneamente pela ação de um princípio ativo que, em contato com a matéria, seria capaz de produzir vida. Por esse motivo, tal teoria foi batizada de “abiogênese” e seu escopo serviu para justificar o aparecimento de novas espécies no planeta, permanecendo válida por muitos séculos.

autoatividade

Alguns médicos partilhavam da tese da abiogênese. Van Helmont (1579-1644) a comprovou em um experimento no qual colocou uma camisa suja embebecida em suor e misturada com germe de trigo, em seguida fechada em uma gaveta. Resultado: antes de completar um mês do experimento, nasceram “espontaneamente” vários camundongos. Estava comprovada a hipótese de Aristóteles, segundo a qual o suor teria agido como um princípio ativo que resultara na vida dos camundongos. Mas, essa hipótese ainda teria algum fundamento nos dias de hoje?

Ora, é bem plausível que nós e você, caro acadêmico, enquanto habitantes do século XXI, não mais acreditemos na validade de tais experiências – houve outras além da de Van Helmont –, pois sabemos que sua veracidade foi há muito anulada pelo desenvolvimento das ciências com seus métodos de verificação mais precisos, que pôs abaixo qualquer relevância científica para a hipótese da abiogênese, inclusive para o senso comum.

Ao nos referirmos ao senso comum, queremos com isso afirmar que, uma vez que aspectos de algum fenômeno sejam demonstrados ou verificados pela objetividade científica, de pronto não só o homem de conhecimento acadêmico,

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mas a pessoa mais simples, ou de baixo grau de escolarização, passa a não mais crer em hipóteses refutadas, como na antiga tese da geração espontânea de vida.

Fato curioso, entretanto, é que o mesmo fenômeno não ocorre tão facilmente nos domínios da linguagem: “na vida dos indivíduos e das sociedades, a linguagem constitui fator mais importante que qualquer outro; [...] mas – consequência paradoxal do interesse que suscita – não há domínio onde tenham germinado ideias tão absurdas, preconceitos, miragens, ficções” (SAUSSURE, 2006, p. 17).

De fato, a ciência linguística atravessa décadas e décadas comprovando a eficácia dos variados usos das línguas, dos dialetos, das variantes das línguas, que, de modo geral, realizam com eficácia o processo comunicativo. Entretanto, se perguntássemos hoje, em pleno século XXI, a algum usuário de língua portuguesa, se a expressão comunicativa “nós vai com vocês” comunica seu sentido, as respostas poderiam até variar, mas provavelmente escutaríamos: “Que gente burra! O certo é dizer ‘nós vamos’, e não ‘nós vai’”.

Quanto a esse preconceito secular, ao dogmatismo, à ignorância implícita em tais pontos de vista, reagiria Saussure (2006, p. 7), ainda em pleno século XIX: “a tarefa do linguista, porém, é, antes de tudo, denunciá-los e dissipá-los tão completamente quanto possível”.

2 ABORDAGEM NORMATIVA VERSUS ABORDAGEM DESCRITIVA

Compreendia Saussure que a ciência linguística deveria desempenhar um papel social esclarecedor ao distinguir e fundamentar, por um lado, o que seria uma visão normativa da língua, de caráter prescritivo e condicionada por determinantes históricos, políticos e socioculturais, e, por outro lado, uma abordagem descritiva da língua, mais próxima à objetividade científica e, dessa forma, encarregada de substituir as situações comunicacionais estigmatizadas em “certo” ou “errado” pela adequação ao contexto interativo e de comunicação.

Duas abordagens, duas formas distintas de lidar com o fenômeno da linguagem humana. Na abordagem normativa – para alguns a única conhecida e, muitas vezes, a única aceita como a verdadeira – observa-se uma valorização excessiva do cumprimento de regras e normas em detrimento da liberdade combinatória e expressiva dos usuários de uma determinada comunidade linguística:

A visão prescritiva da linguagem não admite mais de uma forma correta, nem aceita a possibilidade de escolha, que uma forma seja mais adequada para um uso do que para outro, como seria o caso de uma expressão mais apropriada à língua escrita do que à falada, ao uso coloquial do que a uma situação formal de comunicação (PETTER, 2011, p. 21).

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Ao aproximar-se da modalidade escrita da língua, os defensores da abordagem normativa buscavam sua natureza estável, ao mesmo tempo capaz de manter e perpetuar os conhecimentos adquiridos por determinada cultura. Tal virtude decorreria de que, muito embora a escrita não pudesse dar conta da complexidade da fala, ela consegue, mesmo parcialmente, representá-la. Nesse ponto, o discurso literário abre uma exceção, um contraponto a tal tese, pois malgrado a sua natureza predominantemente escrita, ele consegue muitas vezes ultrapassar em complexidade a própria fala.

Ainda que a literatura encerre um nível de complexidade similar à fala, suas virtudes também depuseram em favor de abordagens prescritivas na medida em que elevou-se a norma-padrão à norma culta, de viés notadamente estético: “as formas e usos são incluídos ou excluídos da norma culta por critérios tais como: elegância, colorido, beleza, finura, expressividade, eufonia, harmonia; devendo-se evitar vícios como a cacofonia, a colisão, o eco, o pleonasmo vicioso” (TRAVAGLIA, 2006, p. 25).

Assim, devido a esse valor de autoridade espelhado nos grandes escritores de uma língua, promulgador das verdades ou “inverdades” características das abordagens normativas, muitos professores de letras têm a impressão de estar tratando não especificamente dos assuntos pertinentes ao ensino de língua, mas de discussões sobre a liberdade: a liberdade de dizer, de comunicar, ou da sua falta, que é o mesmo que dizer: a obediência a normas por vezes inadequadas às situações concretas de comunicação.

A tarefa do gramático se desdobra em dizer o que é a língua, descrevê-la, e ao privilegiar alguns usos, dizer como deve ser a língua. Na verdade, a conjunção do descritivo e do normativo efetuada pela gramática tradicional opera uma redução do objeto de análise que, de intrinsecamente heterogêneo, assume uma só forma: a do uso considerado correto da língua. Na maioria dos casos, é esse uso o único que vai ser estudado e difundido pela escola, em detrimento de um conhecimento mais amplo da diversidade e variedade dos usos linguísticos (PETTER, 2011, p. 19).

Importa considerar que a abordagem normativa não seria um mal em si por eleger uma variedade da língua como variedade padrão, se tal escolha não estivesse ancorada, entretanto, em critérios políticos, se não fosse de natureza prescritiva nem estivesse apoiada em variadas formas de preconceito: de região, de estrato social, de escolaridade, de faixa etária etc.:

Além disso, ignorando e depreciando outras variedades da língua com base em fatores não estritamente linguísticos, cria preconceitos de toda espécie, por basear-se em parâmetros, muitas vezes, equivocados, tais como: purismo e vernaculidade, classe social de prestígio (de natureza econômica, política, cultural), autoridade (gramáticos, bons escritores), lógica e história (tradição) (TRAVAGLIA, 2006, p. 25).

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Nesse sentido, a linguística busca apontar os excessos da abordagem normativa, malfadada numa natureza revisional e centrada quase exclusivamente na correção dos desvios praticados em relação à norma eleita como variedade padrão da língua:

Nesse primeiro sentido afirma-se que a língua é só a variedade dita padrão ou culta e que todas as outras formas de uso da língua são desvios, erros, deformações, degenerações da língua e que, por isso, a variedade dita padrão deve ser seguida por todos os cidadãos falantes dessa língua para não contribuir com a degeneração da língua de seu país (TRAVAGLIA, 2006, p. 24).

Por outro lado, na contramão da abordagem normativa-prescritiva, a abordagem descritiva valoriza a complexidade de cada língua, suas diferenças e semelhanças. Assim, as diferenças socioculturais dos indivíduos, marcadas nas variedades e nas formas próprias de uso da linguagem, passam a ser vistas não como erro, mas como valor, como sinônimo de riqueza.

De fato, nessa abordagem a noção de erro se dá apenas quando um fato linguístico não ocorre de forma sistemática. Nesse sentido, não se pode classificar de erro, por exemplo, a expressão “a gente vai”, e considerar correta apenas a expressão normativa “nós vamos”, pois se a primeira expressão aparece de modo sistemático em diversas regiões do Brasil, constitui-se mais como fato linguístico verificável do que como falta gramatical.

É necessário observar que, fora da abordagem normativa, o erro não é verificável senão em um contexto específico, eis o porquê da importância de descrever os fatos linguísticos em relação à situação comunicativa, posto que uma abordagem descritiva preza pela objetividade, pela verificação científica, isto é, o viés “descritivo” reporta-se a como funciona a língua concretamente, enquanto o viés “normativo” a como a língua deveria funcionar.

Na expressão “ligeiro, suba para cima”, por exemplo, em princípio condenável pela redundância, já que o verbo “subir” pressupõe que a ação seja “para cima”, se entretanto utilizada em um caso real de incêndio, quando um oficial chama por alguma vítima localizada mais embaixo e aturdida pela fumaça, nesse caso a expressão “subir para cima”, enquanto reforço devido à situação de perigo, torna-se positivo, já que tais situações requerem reiterada ênfase nas mensagens.

Vejamos, então: o que significa essa neutralidade científica no campo da linguagem? Ou, dizendo de outro modo, como seria possível abandonar prejulgamentos e preconceitos em prol de realidades verificáveis e demonstráveis da língua, de fatos linguísticos que, mesmo dados em determinada situação particular, têm valor de verdade e caráter universal?

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autoatividade

Imaginemos um biólogo contratado para fazer um inventário das diversas espécies vegetais de um jardim botânico, no qual há a presença de gramíneas rasteiras e palmeiras gigantes. Sabe-se que o biólogo, na qualidade de um cientista, não poderia afirmar que as palmeiras, devido à sua altura e imponência, seriam mais belas e de maior valor do que as gramíneas, as quais, por serem rasteiras, teriam menor valor estético. Poderíamos então concordar que, caso o biólogo sustentasse essa diferença de valor entre as plantas, estaria adotando uma atitude parcial e não objetiva?

Você deve concordar, prezado acadêmico, que classificar a realidade – no caso citado anteriormente, das plantas de um jardim botânico – segundo critérios estéticos: bonito, feio, majestoso, encantador etc., não revelaria uma atitude neutra, científica, mas, ao contrário, expressaria um dogmatismo mais próximo ao senso comum – que reage, ao invés de pensar – e, portanto, mais distante da verdade.

A verdade tem menos a ver com julgamentos, mais com observação, com a descrição dos fatos e dos comportamentos linguísticos em determinada época, em determinado contexto. Nesse sentido, concluiria Petter (2011, p. 20), “abordar a língua exclusivamente sob uma perspectiva normativa contribui para gerar uma série de falsos conceitos e até preconceitos, que vêm sendo desmistificados pela Linguística”.

O estranho é que, apesar de os estudos linguísticos terem demonstrado não haver superioridade entre as línguas, ou que certos usos considerados incorretos segundo a gramática normativa são formas válidas e eficientes de expressão no jogo social, mesmo assim, passado mais de século das comprovações da linguística, tal realidade dogmática e preconceituosa permanece no senso comum.

A pesquisa linguística desenvolvida no século XIX levou a separar cada vez mais o conhecimento científico da língua da determinação de sua norma. A linguística histórica, estudando em profundidade as transformações da linguagem, mostrou que as mudanças linguísticas frequentemente têm sua origem na fala popular: muitas vezes o errado de uma época passa a ser consagrado como a forma correta da época seguinte (PETTER, 2011, p. 21).

É assim que a abordagem descritiva da língua revela uma forma de gramática que considera a validade dos diversos usos de uma língua, abdicando de prescrever ou definir padrões de conduta linguísticos – certo ou errado – em prol de contemplar toda a diversidade linguística presente e válida em determinada época, meio social ou região, geralmente distante dos padrões instituídos.

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Analisemos, a título de exemplo, uma aplicação da abordagem descritiva à canção “Samba do Arnesto”, de Adoniran Barbosa – compositor paulista que viveu um período de grande sucesso na década de 1950:

O Arnesto nos convidôPrum samba, ele mora no Brás.Nóis fumo e não encontremo ninguémNóis vortemo cuma baita duma reivaDa outra vez nóis num vai mais.Nóis não semos tatu!Outro dia encontremo com o ArnestoQue pediu descurpa mais nóis não aceitemos- Isso não se faz, Arnesto, nóis num se importaMais você devia ter ponhado um recado na portaAnssim: “ói, turma, num deu pra esperaA vez que isso num tem importância, num faz máDepois que nóis vai, depois nóis vorta.Assinado em cruz porque não sei escrever Arnesto

A linguagem coloquial, presente no texto, adéqua-se à informalidade inventiva do gênero lírico “canção” e reporta-se especificamente à linguagem praticada no bairro do Bexiga, subúrbio da cidade de São Paulo, na década de 1950. Assim, as aparentes incorreções gramaticais – observadas a partir da gramática normativa – iniciam-se já no título, na deformação popular de Ernesto em Arnesto, conferindo maior realidade e criatividade ao texto de caráter popular.

No caso do samba de Adoniran, embora a letra escape aos padrões normativos da língua, sabemos que não foi difícil compreendê-la. Por exemplo, a riqueza das formas verbais: fumos, encontremo, fiquemo, vortemo, não apenas consegue o efeito comunicativo e o consequente entendimento da mensagem, como também alcançam o efeito criativo esperado, a saber: comicidade e graça, comuns nos textos das crianças e nas marcas da oralidade infantil.

Outras marcações podem ser observadas, como: ausência do plural de algumas palavras; marca de sotaque na mudança do fonema / l / em / r / em outras palavras, como: vortemo, descurpa; interposição do som vocálico / i / entre a vogal e o “s” final de algumas sílabas, como: nóis, veiz; isto é, marcas da oralidade que conferiram aos sambas de Adoniran Barbosa sucesso e repercussão. De onde se conclui: são “desvios” que representam uma estética adequada ao gênero discursivo “canção popular”.

Esse caráter inventivo dos falantes em geral é confundido com desconhecimento linguístico. Um caso ilustra tal ideia. Conta-se que um pai de família, por ser bem atendido em um hospital no qual a sua esposa dera à luz, resolveu expressar sua gratidão batizando o filho com o mesmo nome do estabelecimento “Hospital Regional”. O nome da criança seria Regional da Silva,

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caso não fosse desaconselhado, pelo médico cirurgião, a trocar por um nome de sonoridade similar, porém mais aceito socialmente. Dessa forma, a criança foi registrada como Reginaldo da Silva.

Reflitamos: tal ocorrência se daria por uso inventivo da língua, ou por desconhecimento dos usos mais aceitáveis em determinada região? A primeira opção é, com certeza, a mais viável desde um ponto de vista linguístico, pois nos ajuda a situar, como no exercício anterior, que os critérios de análise de um texto devem reportar-se ao contexto e à realidade sociointerativa.

Resta indagar: que utilidade teria uma abordagem descritiva no processo educacional, e qual a relevância de o aluno utilizar a língua respeitando o contexto, a situação interacional?

autoatividade

Imaginemos um adulto escolarizado encarcerado junto a prisioneiros de diversos padrões sociais, os quais têm em comum relações mediadas pela violência física. Nesse caso, se tal falante se expressasse utilizando uma variedade da língua mais próxima às formas recomendadas pela gramática tradicional, e dissesse, por exemplo, “deixa conosco, colega”, quando a forma usual em tal contexto seria “isso é com nós, mano”; então é provável que ele seria discriminado e correria risco de ser fisicamente agredido por expressar-se em uma variedade culta da língua, inadequada àquele contexto?

Prezado acadêmico, quando a variedade normativa culta de uma língua é empregada de forma descontextualizada da situação interacional de uso, provavelmente ela pode colocar um sujeito escolarizado em situação de risco, tal como nos reportamos na autoatividade, cujo contexto carcerário requer dos falantes o uso menos formal da língua.

A escola, nesse caso, não teria lhe prestado um bom serviço ao lecionar exclusivamente a norma padrão, por conseguinte ao creditá-la superior aos diversos usos da língua e não instruir os alunos acerca da necessidade de adequar-se linguisticamente ao contexto vivido.

Sabemos que é um equívoco acreditar que a norma-padrão é melhor, que é mais lógica, mais bem acabada, pois todo uso da língua, quando é compreendido pelos atores da comunicação no processo de interação, possui sua própria lógica e eficácia.

Por exemplo, a expressão “nóis vai” de alguns falantes semiescolarizados – lida, a partir da gramática normativa, como desvio da norma-padrão – é

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tão lógica e mantém a estrutura da língua portuguesa da mesma forma que a expressão “nós vamos” dos falantes escolarizados.

A questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e por que se diz determinada coisa (BRASIL, 2000, p. 31-32).

Assim, é claramente possível distinguir uma abordagem descritiva, que trata do real funcionamento e da adequação da linguagem ao contexto de uso, de uma abordagem normativa, cujos efeitos nefastos em sociedade, tal como observou Travaglia (2006, p. 64), acabam por repercutir em sala de aula:

Achamos normal exigir que o aluno aprenda a norma culta para utilizá-la em determinadas situações sociais de comunicação, mas achamos absurdo, por exemplo, exigir que alguém tivesse de aprender o dialeto caipira para falar com o pessoal da zona rural de determinadas regiões do país (sobretudo Sul de Minas Gerais e parte de São Paulo). Por quê? Os falantes da norma culta “exigem” que o caipira aprenda seu modo de falar para circular entre eles, mas o contrário não acontece: os caipiras não “exigem” que os falantes da norma urbana culta aprendam o seu dialeto para circular entre eles.

3 LINGUAGEM E APRENDIZAGEM

Refletir sobre linguagem e aprendizagem de língua materna é de antemão pensar sobre as relações entre as abordagens gramaticais e o exercício educativo, para o qual se pressupõe determinar, por um lado, de que modo o professor compreende tanto a linguagem humana quanto o processo de aprendizagem, e, por outro lado, que tipo de abordagem gramatical o norteará no processo de ensino e aprendizagem.

Em geral, quando se fala em ensino, uma questão prévia – para que ensinamos o que ensinamos?, e sua correlata: para que as crianças aprendem o que aprendem? – é esquecida em benefício de discussões sobre o como ensinar, o quando ensinar, o que ensinar etc. Parece-me, no entanto, que a resposta ao “para que” dará efetivamente as diretrizes básicas das respostas. Ora, no caso do ensino de língua portuguesa, uma resposta ao “para que” envolve tanto uma concepção de linguagem quanto uma postura relativamente à educação (GERALDI, 2006, p. 40-41).

No que tange à concepção de linguagem, há três maneiras de concebê-la:

ou a linguagem é a expressão de um pensamento, ou a linguagem é um meio de comunicação, ou a linguagem é processo de interação. Antes, porém, cabe retomarmos os principais conceitos, vistos no item anterior, das abordagens normativa e descritiva, de modo a ver se elas conseguem fundamentar um melhor exercício de ensino e aprendizagem em sala de aula, a partir dos conceitos de gramática a elas implícitos.

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Para tanto, devemos entrar na esfera linguística da teorização da gramática, a qual determina, para os fatos linguísticos, o coeficiente de gramaticalidade ou agramaticalidade, de funcionamento no sistema linguístico, das sentenças orais e escritas.

A teoria da gramática, como é conhecida, trata de todas as frases gramaticais, isto é, todas as frases que pertencem à língua; não se confunde com a gramática normativa porque não dita regras, apenas explica as frases realizadas e potencialmente realizáveis na língua proposta. A intuição do falante é o único critério de gramaticalidade ou agramaticalidade da frase – conceitos que não se confundem com a gramática normativa (PETTER, 2011, p. 22).

De um modo geral, observamos que a gramática normativa, independentemente do contexto de uso, coloca-se como um valor absoluto e padronizador ao “considerar apenas uma variedade da língua como válida, como sendo a língua verdadeira” (TRAVAGLIA, 2006, p. 31), noção esta que converte o ensino em um reiterado exercício de aprendizagem de regras e nomenclaturas que pretende ditar o que pode e deve ser ensinado:

A gramática normativa estuda apenas os fatos da língua padrão, da norma culta de uma língua, norma essa que se tornou oficial. Baseia-se, em geral, mais nos fatos da língua escrita e dá pouca importância à variedade oral da norma culta, que é vista, conscientemente ou não, como idêntica à escrita. Ao lado da descrição da norma ou variedade culta da língua (análise de estruturas, uma classificação de formas morfológicas e léxicas), a gramática normativa apresenta e dita normas de bem falar e escrever, norma para a correta utilização oral e escrita do idioma, prescreve o que se deve e o que não se deve usar na língua (TRAVAGLIA, 2006, p. 30).

A gramática descritiva, por sua vez, expande essa noção, desfazendo a ideia de uma norma única e “absoluta” ao observar cientificamente que a língua é variável, de forma que os usos e as sentenças praticados por uma comunidade linguística passam a ser validados conforme estejam em ressonância com as variedades linguísticas de uma língua, inclusive as variedades consideradas “não cultas”.

A abordagem descritiva assumida pela Linguística entende que as variedades não padrão do português, por exemplo, caracterizam-se por um conjunto de regras gramaticais que simplesmente diferem daquelas do português padrão. O termo “gramatical” é usado aqui com um valor descritivo: a gramática de uma língua ou de um dialeto é a descrição das regularidades que sustentam a sua estrutura (PETTER, 2011, p. 21).

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3.1 PONTO DE PARTIDA ENTRE A NORMATIVA E A DESCRITIVA: A GRAMÁTICA INTERNALIZADA

Entretanto, se passarmos a considerar as abordagens gramaticais em relação ao aluno, ou seja, sob o prisma da aprendizagem, devemos partir da constatação de que o aluno de língua materna já sabe comunicar-se em sua língua, isto é, já tem implícita, ainda que inconscientemente, uma certa gramática que “funciona”, quer ele tenha consciência ou não das regras que a fazem funcionar.

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/_OMd__qw4Xo8/TBk7GTKGpBI/AAA-AAAAAACg/NVbKlhLCQdQ/S730/[CHARGE]+Verbo+demitir.jpg>. Acesso em: 13 maio 2017.

FIGURA 4 – PROFESSORA LAURA EM AÇÃO

Refere-se, portanto, a um terceiro tipo de gramática que também escapa às prescrições da gramática normativa. Trata-se de uma modalidade de gramática internalizada, que verifica os saberes gramaticais espontâneos surgidos independentemente do processo de escolarização e que trata dos usos de princípios e regras que se dão fora de qualquer forma de aprendizagem sistemática.

A gramática internalizada ou competência linguística internalizada do falante é o próprio “mecanismo”, o conjunto de regras que é dominado pelos falantes e que lhes permite o uso normal da língua. Na verdade é essa gramática que é objeto de estudo dos outros dois tipos de gramática, sobretudo da descritiva (TRAVAGLIA, 2006, p. 32).

Assim, quando observarmos um falante dizer “os menino saiu”, cometendo um aparente desvio de concordância em relação à norma-padrão, constata-se entretanto que a mesma sentença não fere a lógica e a estrutura

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da língua portuguesa. Quer dizer, o mesmo falante jamais diria, por exemplo, “menino os saiu”, pois ele sabe intuitivamente, ou, dizendo de outro modo, detém uma gramática internalizada em cuja combinatória não se admite o artigo posposto a um substantivo.

Dessa forma, se contra a vertente unificadora da gramática normativa, a gramática descritiva abriu-nos a gramaticalidade das diversas variedades de uma língua, como o dialeto caipira, por exemplo, registrando as funções e a estrutura de tal variedade linguística; a gramática internalizada também reage ao valor prescritivo da gramática normativa ao considerar a noção de adequação ou inadequação à situação comunicativa, dessa forma colocando os usos sociais e interacionais da língua em destaque:

É a competência do falante que vai organizar os elementos linguísticos que constituem uma sentença, conferindo-lhes gramaticalidade. Uma sequência de palavras é agramatical quando não respeita as regras gramaticais do sistema linguístico, do conhecimento internalizado de que dispõe o falante, como: Problema este muito seu difícil é (PETTER, 2011, p. 22).

Destarte, a situação parece inverter-se, pois se já existe uma competência gramatical nos sujeitos falantes de uma determinada língua, quais seriam a motivação e a necessidade do estudo de nomenclaturas e regras gramaticais em sala de aula? Dizendo de outro modo, se não faz sentido ensinar-se o que já se sabe, por que razão as escolas introduzem e consagram-se a dinamizar o estudo de gramática normativa?

As razões para explicar tal fato esbarram na limitação sociológica de uma ciência, como a linguística, frente ao poder histórico de classes economicamente privilegiadas, que conseguem impor a sua variedade linguística em vestibulares, concursos e currículos que restringem o crescimento individual na sociedade de mercado ao conhecimento dessa variedade “culta”.

Sabemos que a forma de fala que foi elevada à categoria de língua nada tem a ver com a qualidade intrínseca dessa forma. Fatos históricos (econômicos e políticos) determinaram a “eleição” de uma forma como a língua portuguesa. As demais formas de falar, que não correspondem à forma “eleita”, são todas postas num mesmo saco e qualificadas como “errôneas”, “deselegantes”, “inadequadas para a ocasião” etc. (GERALDI, 2006, p. 43).

Quer dizer, dominar ou não as regras do jogo, isto é, saber ou não a norma-padrão, é sinônimo de poder ou não poder ascender socialmente. Por outro lado, não dominá-la, ou restringir-se aos usos gramaticais internalizados – portanto, da variedade linguística aprendida espontaneamente pelo falante em seus grupos familiar e social – significa, quase sempre, estar fora ou inapto para o jogo do mercado. “À maioria é permitido ouvir, não falar. O professor do ouvir é a TV, monopólio e concessão do Estado e das empresas privadas. A TV é a professora antiga, autoritária – só fala, fala, nunca ouve. O aluno, espectador, é também aquele antigo, passivo, conformado, que só ouve” (ALMEIDA, 2006, p. 15).

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

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Não há como a escola se eximir da formação de um sujeito ativo em sua singularidade, tal como se objetivou a formulação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, de um sujeito que seja capaz de “posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas” (BRASIL, 2000, p. 7).

Essa é uma das questões basilares para a prática escolar de língua materna, que pressupõe saber, de antemão, qual concepção de linguagem sustentará a metodologia e a didática do professor em sala de aula, cujo papel social, ainda que idealmente, pretende-se ligado a “uma postura educacional diferenciada, uma vez que situa a linguagem como o lugar de constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos” (GERALDI, 2006, p. 41).

3.2 CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM

Até o momento, vimos que tratar de questões basilares para o ensino de língua materna é não apenas determinar que tipo de gramática sustenta a ideia de língua do professor – normativa, descritiva, internalizada, dentre outras –, mas também verificar qual a concepção de linguagem que fundamenta sua prática em sala de aula.

Antes de qualquer consideração específica sobre a atividade de sala de aula, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma posição política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados em sala de aula (GERALDI, 2006, p. 40).

Nesse sentido, a linguagem pode ser concebida de três modos: como expressão de um pensamento, como um meio de comunicação, ou como processo de interação, conforme se observe a linguagem ora como tradução de um pensamento formulado antes do ato expressivo – que norteará o ensino tradicional de gramática –, ora como eixo comunicativo abstrato entre sujeitos e o contexto da língua, ora como eixo concreto de interação e diálogo entre os sujeitos da enunciação.

3.2.1 Linguagem como expressão do pensamento

No primeiro sentido – linguagem como expressão do pensamento – associa-se à ideia de que as pessoas primeiro pensam o que vão dizer ou escrever para, em seguida, caso desejem, exteriorizarem o que foi pensado através da linguagem. Aqui fundamenta-se uma das bases do preconceito linguístico, ao se postular que “as pessoas que não se expressam bem é porque não pensam” (TRAVAGLIA, 2006, p. 21).

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TÓPICO 2 | CARACTERÍSTICAS GERAIS DA LINGUAGEM

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A língua, nesse caso, funcionaria como uma caixa de ferramentas – onde estão as palavras, as sentenças, as frases etc. – aberta quando da necessidade do sujeito exteriorizar o que pensou de antemão, a ser fechada após o uso da linguagem ter traduzido ou espelhado aquele pensamento.

As leis da criação linguística são essencialmente as leis da psicologia individual, e da capacidade de o homem organizar de maneira lógica seu pensamento dependerá a exteriorização desse pensamento por meio de uma linguagem articulada e organizada. Presume-se que há regras a serem seguidas para a organização lógica do pensamento e, consequentemente, da linguagem (TRAVAGLIA, 2006, p. 21).

Nesse lugar a verdade está no sujeito, dentro do sujeito não se relaciona com o outro ou o meio circundante. A verdade é interior ao homem, o que reporta ao filósofo francês René Descartes, que funda o subjetivismo filosófico com a máxima Cogito ergo sum, isto é, Penso, logo existo.

Em outras palavras, para Descartes o mundo não preexiste à linguagem e ao pensamento, ou seja, o mundo exterior e os outros seres não têm uma existência real, verificável, fora do pensamento. Portanto, para essa concepção, o modo como o texto, que se usa em cada situação de interação comunicativa está constituído, “não depende em nada de para quem se fala, em que situação se fala (onde, como, quando), para que se fala” (TRAVAGLIA, 2006, p. 22).

Como se vê, conceber a linguagem como expressão do pensamento fundamenta o tipo de abordagem normativa de gramática, pois para exteriorização do que foi pensado pelo sujeito deve haver regras lógicas para organizar o pensamento, regras que se reportam ao bem falar e ao bem escrever das abordagens normativas.

3.2.2 Linguagem como meio de comunicação

No segundo sentido – linguagem como meio de comunicação – associa-se a língua a um código não apenas individualizado, mas realizado em um contexto comunicativo no qual comparecem outros cinco fatores da comunicação, tal como o intuiu Roman Jakobson em sua teoria da comunicação, em que um conjunto de signos combinam-se segundo determinadas regras para transmitir uma mensagem entre um emissor e um receptor.

Como podemos observar no esquema a seguir, são seis os elementos presentes na comunicação: emissor, código, mensagem, receptor, referente e canal. Conforme a ênfase recaia sobre um dos seis polos, teremos seis funções a eles correspondentes, respectivamente: função emotiva, função metalinguística, função poética, função conativa ou apelativa, função referencial (polo do objeto, da verdade), e função fática.

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

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REFERENTEFunção

REFERENCIAL

CANALFunção

FÁTICAEMISSORFunção

EMOTIVA

RECEPTORFunção

CONATIVAMENSAGEMFunção

POÉTICA

CÓDIGOFunção

METALINGUÍSTICA

FIGURA 5 – ELEMENTOS E FUNÇÕES DA COMUNICAÇÃO

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-Ku6ydcln1ks/UBGyTBpz9vI/AAAA-AAAAAhA/tnBXR9inhEg/s1600/lingua.JPG>. Acesso em: 1 set. 2017.

Nesse sentido, a língua, tal como na linguagem como expressão do pensamento, é também pensada fora da situação concreta de uso, pois ainda que preveja diversos atores da comunicação, o emissor de uma mensagem dirige-se de modo exclusivo e unidirecional a um receptor, ao passo que este, ao responder, torna-se um novo emissor.

Como se vê, nas situações concretas de interação linguística, a realidade é bem outra, pois o emissor já prevê em sua mensagem as reações do receptor, isto é, se a mensagem será ou não aceita pelo receptor, o que desfaz a ideia de um sistema unidirecional emissor-mensagem-receptor.

Essa é uma visão monológica e imanente da língua, que a estuda segundo uma perspectiva formalista – que limita esse estudo ao funcionamento interno da língua – que a separa do homem no seu contexto social. [...] Para essa concepção o falante tem em sua mente uma mensagem a transmitir a um ouvinte, ou seja, informações que quer que cheguem ao outro. Para isso ele coloca em código (codificação) e a remete para o outro através de um canal (ondas sonoras ou luminosas). O outro recebe os sinais codificados e os transforma de novo em mensagem (informações). É a codificação (TRAVAGLIA, 2006, p. 22-23).

Historicamente a linguagem concebida como meio de comunicação representou um grande avanço em relação à concepção da linguagem como expressão do pensamento. As vertentes que aí se implicam e decorrem, como o Estruturalismo, foram possíveis graças aos conceitos modernos de Saussure, que encontrariam na teoria da comunicação de Jakobson o seu expoente máximo.

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TÓPICO 2 | CARACTERÍSTICAS GERAIS DA LINGUAGEM

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3.2.3 Linguagem como forma de interação

Nesse terceiro sentido – linguagem como forma de interação –, a língua, para além de realizar a transmissão de informações entre um emissor e um receptor, realiza compromissos e vínculos entre dois atores, não mais unidirecionais, o que faz da linguagem não a expressão individual de um sujeito, tampouco a comunicação de um para outro, mas como lugar real de possível diálogo entre sujeitos.

A língua só tem existência no jogo que se joga na sociedade, na interlocução. E é no interior do seu funcionamento que se pode procurar estabelecer as regras de tal jogo. [...] Estudar a língua é, então, tentar detectar os compromissos que se criam por meio da fala e as condições que devem ser preenchidas por um falante para falar de certa forma em determinada situação concreta de interação (GERALDI, 2006, p. 42).

A língua, nesse sentido último, não se presta apenas a exteriorizar um pensamento ou a transmitir informações entre sujeitos, mas a ser um lugar de interação em que se tornam importantes os contextos social, histórico e ideológico. Essa forma de compreender a linguagem será a base da linguística da enunciação, na qual a língua não mais é abordada fora da ação e da relação entre os interlocutores, mas como fenômeno social de interação verbal.

O filósofo existencialista Maurice Merleau-Ponty atesta tal singularidade ao mostrar que muitos escritores e filósofos confessam serem surpreendidos por um pensamento ou uma ideia expressiva que não pensaram ou a tiveram antes de expressá-la em linguagem, mas ao contrário, que elas aparecem na fala, na interação, muitas vezes ensinando ao emissor algo que ele não sabia, que não haviam formulado ou sequer suspeitado. Portanto, concluiria o filósofo: não é o pensamento que organiza a linguagem, mas a linguagem que estrutura o pensamento.

Será o teórico russo Mikhail Bakhtin que fundará toda uma “escola”, uma linha de pensamento que não concebe a língua fora da atividade social, do dialogismo que confronta em um mesmo campo inúmeras vozes discordantes. Decorrerá dessa teoria a substituição do antigo anseio escolar por alfabetização – que se limitava a fazer o aluno aprender a usar o código linguístico – em prol do letramento, que busca para o indivíduo não apenas o domínio do sistema língua, mas que possa a partir dele interagir e integrar-se em sociedade.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você viu que:

• As distintas características das abordagens normativa e descritiva da língua fundamentam e, de certa maneira, condicionam modos também distintos de ensino de língua materna e ensino de gramática.

• A abordagem normativa elege uma das variedades da língua – praticada pelos escritores, homens cultos, por pessoas mais próximas ao poder socioeconômico etc. – e situa essa mesma variedade como divisora de águas que coloca o usuário da língua entre duas opções excludentes: ou ele fala e escreve corretamente, ou ele o faz incorretamente e, por essa razão, passa a ser tratado em sociedade de modo excludente.

• No contraponto da função reguladora da língua da abordagem normativa, a abordagem descritiva ancora-se na ciência linguística ao revelar o funcionamento da linguagem em sua concretude, independentemente do valor social que determinada variedade da língua ocupa.

• As variedades da língua praticadas em distintas regiões geográficas, a linguagem do escolarizado, a linguagem do analfabeto e do semiescolarizado, por exemplo, são manifestações linguísticas válidas, na medida em que comunicam e são compreendidas em seus respectivos contextos.

• Tanto a gramática normativa, quanto a gramática descritiva apoiam-se numa terceira forma de gramática que todo usuário de uma língua possui: a gramática internalizada, que corresponde, grosso modo, a um conjunto de regras inconscientes que todo falante realiza ao se expressar e que o faz ser compreendido independentemente se sua forma de expressão está dentro das normas estabelecidas como padrão.

• Refletir sobre a gramática internalizada torna-se importante quando se pretende repensar a postura metodológica adotada no processo de ensino e aprendizagem, que também pressupõe dos atores escolares formas distintas de compreensão da linguagem.

• O modo de compreensão da linguagem está diretamente relacionado às abordagens pedagógicas de ensino. Assim, se compreendermos a linguagem como expressão do pensamento, ou como processo de comunicação, ou ainda como forma de interação, cada modo de compreensão e de pensar a aquisição da linguagem apontará uma linha metodológica distinta no exercício em sala de aula.

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1 À linguística coube desmascarar a ideia de que a gramática normativa demonstra como falar, escrever e expressar-se bem, pois o contexto de uso da língua é que vai ditar qual forma linguística seria mais adequada a cada situação. Nesse sentido, a linguística demonstra-nos que, quando se trata do uso da linguagem, a questão central não é saber o certo/errado da língua, mas o adequado/inadequado ao contexto de uso dos falantes. Partindo dessa constatação, analise as sentenças a seguir e classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) Se a linguística demonstrou que a eleição de uma variedade padrão da língua é fruto de um processo histórico, político e sociocultural, isso implica dizer que essa variedade padrão não é superior às outras variedades presentes na mesma língua.

( ) Se a linguística demonstrou que a eleição de uma variedade padrão da língua está ligada aos falantes de maior prestígio sociocultural, isso implica dizer que essa variedade padrão é, por essa razão, superior às outras variedades presentes na mesma língua.

( ) Dizer “nós vamos” ou “nós vai” marca, para a linguística, modos distintos de expressar uma ideia que deve ser considerada, não de forma a priori, mas conforme o contexto de uso dos falantes.

( ) Se os falantes de uma mesma língua são estigmatizados, ora como falante culto por dizer “nós vamos”, ora como pessoa iletrada por dizer “nós vai”, subjaz nessas diferenças uma forma social de preconceito linguístico.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) V - F - V - F. b) ( ) V - F - V - V.c) ( ) F - F - V - F.d) ( ) V - F - F - F.

2 Sabemos que a abordagem normativa não considera o valor comunicativo e expressivo das outras variedades da língua. Apenas a variedade padrão seria a correta, e por isso as variedades regionais e os dialetos deveriam ser ocorrências desvalorizadas no currículo escolar. Nesse sentido, o dialeto caipira, praticado na região interiorana de São Paulo e Minas Gerais, segundo essa abordagem _______, seria considerado uma variedade ______ de ______ prestígio social.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) descritiva – falante – menor b) ( ) prescritiva – linguística – menor

AUTOATIVIDADE

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c) ( ) reflexiva – linguística – maiord) ( ) prescritiva – usual – maior

3 Refletir sobre o processo de ensino de língua materna e de aquisição da linguagem pressupõe determinar qual concepção de linguagem estruturará metodologicamente o planejamento das aulas. Há três concepções de linguagem: ou ela é usada para transmitir um pensamento que se dá interiormente no sujeito, ou ela é um evento comunicativo de um sujeito emissor para um sujeito receptor, ou ela é uma forma de interação concreta entre sujeitos. A partir dessa reflexão, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Linguagem como expressão do pensamentoII- Linguagem como meio de comunicaçãoIII- Linguagem como forma de interação

( ) Associada à ideia de que o pensamento não é algo que se dê no interior do indivíduo, mas que se constrói por meio da linguagem.

( ) Associada à ideia de que a linguagem se dá como mensagem veiculada entre outros cinco elementos: emissor, receptor, referente, canal e código.

( ) Associada à ideia de interioridade, de que o pensamento se faz em cada indivíduo de modo independente da linguagem.

( ) Associada à ideia de que as mensagens são previstas e relacionadas aos sujeitos implicados numa determinada situação concreta de uso da língua.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I - II - III - I. b) ( ) II - I - III - II. c) ( ) I - III - I - II. d) ( ) III - II - I - III.

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TÓPICO 3

DA CIÊNCIA DA LÍNGUA À LÍNGUA EM

SOCIEDADE

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Prezado acadêmico, após termos delineado, nos tópicos anteriores, alguns princípios da linguagem humana. Pudemos observar, desde uma especulação filosófica, a estreita correlação entre a língua e a manutenção de desigualdades, de início presente nas relações entre o homem e o animal e posteriormente mantida entre os próprios homens.

Buscaremos, no presente tópico, fazer um apanhado do desenvolvimento da linguística desde a sua estruturação enquanto ciência, que conferia relevância aos fatores internos à língua, até a incorporação de reflexões em torno dos processos sociais e da interação entre os seres humanos.

Com a ascensão da ciência moderna da linguagem voltada para desmistificar certas normatizações da linguagem ainda vigentes nos dias atuais, é possível delinear as bases de tal linguística, a linguística de Saussure, que operacionalizou uma visão diferenciada e, por que não dizer, revolucionária, acerca do que fosse uma língua e uma gramática.

Nesse sentido, cabe destacar o construto histórico das mudanças e transformações que ocorreram ao redor desse objeto “língua” até chegarmos às formulações universais e ainda hoje válidas da linguística moderna.

Assim, esboçaremos brevemente o arcabouço teórico de Ferdinand de Saussure, para em seguida observar estas mesmas formulações serem questionadas e redirecionadas para o campo do dialogismo, com Mikail Bakhtin, que enfocaria a língua a partir do jogo de vozes em sociedade.

2 SAUSSURE E A LINGUÍSTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS GERAIS

Longo percurso histórico se passou desde as primeiras formulações em torno da importância e dos fundamentos da linguagem, que transcorreu, no Ocidente, desde as especulações filosóficas na Grécia antiga até a fundação da linguística moderna nas aulas e na publicação do “Curso de Linguística Geral”, de Ferdinand de Saussure.

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

Por esse motivo é importante destacar as ideias centrais e as principais formulações da linguística moderna, não apenas porque de sua estruturação decorreram várias escolas e linhas de pensamento, mas sobretudo devido à atualidade das abordagens gramaticais e linguísticas daí resultantes.

Ferdinand de Saussure (1857-1913) é um filósofo e linguista suíço, considerado o pai da Linguística Moderna, cujas ideias promoveram um profundo corte na especulação filosófica e fundaram novas escolas de pensamento, como o Estruturalismo e a Semiologia. Saussure estudou gramática grega e latina e ingressou na Sociedade Linguística de Paris, tendo, ainda jovem, publicado um brilhante estudo comparativista: “Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes”, que o levaria à cátedra de professor de disciplina, como: linguística histórica, sânscrito, gótico, alto alemão, dentre outras. Ao ser encarregado de lecionar Linguística Geral foi que Saussure destacou-se como conferencista, tendo suas conferências mudado radicalmente os modos como se concebiam as relações com a linguagem. As célebres conferências apresentadas no período de 1907 a 1913 seriam reunidas na publicação póstuma Cours de Linguistique Générale, de 1916, obra até os dias atuais imprescindível para quem deseja aprofundar estudos em Linguística e áreas afins.

NOTA

2.1 BREVE HISTÓRICO DA LINGUÍSTICA MODERNA

As primeiras notícias que se tem acerca dos estudos linguísticos e da gramática reportam-se ao estudo da língua visando registrar textos sagrados, que eram transmitidos oralmente. Assim, preservar os textos religiosos demandava, em sua codificação para a escrita, que se mantivessem a entonação, os pontos de articulação, as labializações adequadas a determinados sons específicos etc., portanto todo um arcabouço fonético e fonológico que visava manter intacto o poder de determinadas orações.

Se de modo similar ao que se deu na Índia, pensássemos na preservação do poder sonoro e semântico da oração cristã Ave Maria: “Ave Maria, cheia de graça, o senhor é convosco...”, advinda do latim “ave Maria, gratia plena, dominus tecum”, significa reconhecer que o poder das orações advém, tal como nos mantras hindus, da repetição sonora das mesmas sílabas, rigorosamente preservadas em sua ordem de apresentação. Nesse sentido, a força da oração se perderia se a recitássemos aleatoriamente “Maria, a vi, de graça cheia, é convosco o senhor”.

Assim, para que se mantivesse o poder sagrado das orações, necessitou-se dos primeiros estudos de gramática e, dessa forma, tem-se notícia de gramáticos hindus no século IV a.C., como Panini, “que se dedicaram a descrever minuciosamente sua língua, produzindo modelos de análise que foram descobertos pelo Ocidente no final do século XVIII” (PETTER, 2011, p. 12).

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TÓPICO 3 | DA CIÊNCIA DA LÍNGUA À LÍNGUA EM SOCIEDADE

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No Ocidente, a Grécia Antiga aprofundou essa discussão não mais com o intuito de preservar poderes míticos e religiosos, mas no afã de filosofar, de compreender como a linguagem pode falar das coisas do mundo. Formava-se, então, uma tradição especulativa iniciada por Platão, continuada por Aristóteles, sobre a relação de verdade e necessidade entre a palavra e as coisas.

Nos diálogos de Crátilo, por exemplo, Platão defende que há palavras que representam fielmente os seres, e se algumas não o fazem adequadamente é porque aquele que nomeou não era a pessoa capaz para fazê-lo, não era, portanto, filósofo ou legislador. “Desde a Antiguidade especula-se sobre a relação existente entre o significado e o significante. No Crátilo, de Platão, discute-se a respeito dela. Crátilo diz que o significante é unido ao significado por physei (por natureza). Hermógenes afirma que essa relação é por thései (por convenção)” (FIORIN, 2011, p. 60).

Lembremos de uma discussão relatada no segundo item do Tópico 2 da presente unidade, quando é narrada a história de um pai de família que, tendo sido muito bem atendido em um hospital de uma cidade do interior brasileiro, onde sua esposa dera à luz a uma criança, resolveu homenagear esse bom atendimento batizando o filho com o mesmo nome do hospital.

A instituição de saúde em questão se intitulava “Hospital Regional”, o que levaria o filho a chamar-se Regional Carlos da Silva, caso não fosse interdito pelo médico cirurgião – portanto alguém de nível mais elevado, mais próximo a um filósofo ou legislador – que sugere substituí-lo por um nome de sonoridade similar e mais aceito socialmente. De fato, de Regional passou-se a Reginaldo, tendo a criança sido registrada, por fim, como Reginaldo Carlos da Silva.

Tal anedota seria desfeita pela linguística moderna que, ao comprovar a arbitrariedade do signo linguístico, provou não se estabelecer qualquer relação de natureza entre a coisa e o nome. Ora, a própria filosofia grega, embora inclinada a buscar similaridades entre objeto e palavra, também acabou apontando para o convencionalismo de tal relação: “Sócrates inclina-se a reconhecer que a relação entre o significante e o significado feita por semelhança é superior àquela feita arbitrariamente, mas que, em geral, essa relação é feita por convenção” (FIORIN, 2011, p. 60).

Muitos séculos depois será retomada a reflexão grega ao se estudar a linguagem não como um evento particular de determinada cultura, mas visando encontrar valores universais, aplicáveis a qualquer língua. Assim, entre os séculos XVII e XVIII volta-se a pensar a gramática a partir da razão. Port-Royal será o seu principal expoente, ao formular em 1660 a Grammaire générale et raisonnée.

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

DICAS

Sugerimos a você, caro acadêmico, uma pequena revisão da anedota acerca da relação representativa da palavra com as coisas, nome/ hospital, no item 2 do Tópico 2; bem como reler e confrontar a lógica e a clareza da gramática de Port-Royal com a ascensão do francês clássico prescritivo, recomendado pelo nobre Claude Vaugelas, no item 3 do Tópico 1.

Entretanto, o grande salto no desenvolvimento da ciência linguística deu-se, em detrimento da forma teórica e abstrata de encarar a linguagem, com o estudo comparativo entre as línguas. Assim, no século XIX se adotará sobremaneira o método histórico-comparativo, buscando semelhanças e uma possível origem comum entre as línguas, que estabeleceria a base metodológica para se chegar às postulações da linguística moderna.

Pouco a pouco, através do método histórico-comparativo, chegar-se-ia a identificar diversos graus de parentesco entre as línguas que apontariam o indo-europeu como origem de uma família comum:

Os estudiosos compreenderam melhor do que seus predecessores que as mudanças observadas nos textos escritos correspondentes aos diversos períodos que levaram, por exemplo, o latim a transformar-se, depois de alguns séculos, em português, italiano, espanhol, francês, poderiam ser explicadas por mudanças que teriam acontecido na língua falada correspondente (PETTER, 2011, p. 22).

É o caso das línguas francesa e portuguesa, cujas semelhanças lexicais e gramaticais fizeram concluir que ambas advieram do latim: “uma leitura atenta do texto francês mostra que essa língua apresenta várias semelhanças com o português: vous e vós, vos e vossos, an e ano, raison e razão, fort e forte, loup e lobo” (PIETROFORTE, 2011, p. 77).

Será com Saussure que a linguística abdica de pontos de vista exteriores à linguagem, como a filosofia, a lógica, a retórica, a história etc., passando a definir um método próprio que estabeleceria hipóteses a serem verificadas, descritas e comprovadas segundo uma metodologia própria:

A tarefa da linguística será: a) fazer a descrição e a história de todas as línguas que puder abranger, o que quer dizer: fazer a história das famílias de línguas e reconstituir, na medida do possível, as línguas-mães de cada família; b) procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da história; c) delimitar-se e definir-se a si própria (SAUSSURE, 2006, p. 13).

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TÓPICO 3 | DA CIÊNCIA DA LÍNGUA À LÍNGUA EM SOCIEDADE

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Houve, nesse sentido, um tal desenvolvimento da linguística a ponto de ela mesma servir de base para rupturas e redimensionamentos em outras áreas do conhecimento. Ademais, Saussure proporia a criação de uma ciência, superior à linguística e às demais abordagens científicas, que estabelecesse uma teoria geral dos sinais – a Semiologia, ou Semiótica – e desse conta não apenas da linguagem verbal humana, mas de toda forma expressiva presente na comunicação.

2.2 A LINGUÍSTICA MODERNA

O Curso de Linguística Geral, apesar de seu valor incontestável não só para a linguística, mas para a filosofia da linguagem, a antropologia de Claude Levi Strauss etc., foi editado por alunos de Saussure três anos após a sua morte, em 1916, a partir das anotações que fizeram durante as três palestras do mestre genebrino, realizadas respectivamente em 1907, 1908 e 1910.

Na publicação, provavelmente para efeito didático, os conceitos aparecem enquanto pares dicotômicos, ou seja, definem-se em pares um em relação ao outro e só se explicam e compreendem-se mutuamente. Aparecem em número de quatro: língua e fala, significante e significado, sincronia e diacronia, sintagma e paradigma.

Embora não haja menção ao termo dicotomias no texto do Curso, é assim que se costuma chamar os quatro pares de conceitos, que fazem uma síntese das propostas de Saussure para a criação de um novo objeto teórico para a Linguística. [...] Uma dicotomia em Saussure diz respeito a um par de conceitos que devem ser definidos um em relação ao outro, de modo que um só faz sentido em relação ao outro (PIETROFORTE, 2011, p. 77).

2.2.1 Língua e fala

Saussure concebe a linguagem humana comparável a uma moeda de duas faces interdependentes, na qual a língua (Langue) representa, de um lado, um fato social, e a fala (Parole) representa, do outro lado, um fato individual.

A língua, nesse sentido, apresenta alguns aspectos identificáveis. Em primeiro lugar, ela é um acervo linguístico na medida em que é um bem comum pertencente a todos os indivíduos de uma comunidade, dando a ver uma gramática e um léxico que existem virtualmente na memória de cada falante. Assim, para Saussure (2006, p. 22):

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o indivíduo registra passivamente; não supõe jamais premeditação, e a reflexão nela intervém somente para a atividade de classificação. [...] A fala é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1. As combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2. O mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações.

Por outro lado, a língua funciona como uma instituição social que contém um léxico e uma gramática, isto é, funciona como um produto da sociedade e pertence a uma coletividade que estabelece um conjunto de convenções e regras para o exercício comum da linguagem. “É esta possibilidade de fixar as coisas relativas à língua que faz com que um dicionário e uma gramática possam representá-la fielmente, sendo ela o depósito das imagens acústicas, e a escrita a forma tangível dessas imagens” (SAUSSURE, 2006, p. 23).

Por último, a língua é uma realidade sistemática e funcional, pois o conjunto de signos não funciona de forma aleatória, senão através de normas de combinação que visam uma determinada finalidade. Assim, a língua opõe-se à fala por ser de natureza coletiva, social e sistemática, enquanto a fala é de natureza individual e assistemática. “Enquanto a linguagem é heterogênea, a língua assim delimitada é de natureza homogênea: constitui-se num sistema de signos onde, de essencial, só existe a união do sentido e da imagem acústica, e onde as duas partes do signo são igualmente psíquicas” (SAUSSURE, 2006, p. 23).

A língua, nesse sentido sistemático e homogêneo, é partilhada pelos membros de uma comunidade, não podendo, portanto, ser criada ou modificada conscientemente pela vontade dos indivíduos, posto que ela é um evento exterior a cada um deles:

A língua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos. Trata-se, pois, de algo que está em cada um deles, embora seja comum a todos e independa da vontade dos depositários (SAUSSURE, 2006, p. 27).

2.2.2 Significante e significado

Intimamente unidos um ao outro, o significante e o significado constituem as duas faces do signo linguístico. São interdependentes e inseparáveis, pois na ausência de um não há o outro e vice-versa. Por exemplo, quando um falante de língua portuguesa escuta a imagem acústica “casa”, representado foneticamente por / kaza /, esse mesmo significante remete o ouvinte à ideia, ao significado de lar, abrigo, lugar para descanso ou encontro familiar.

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A língua, desde o ponto de vista do signo, passa a ser conceituada como um código coletivo, formado como um sistema binário de signos que são formados pela união da imagem acústica – o significante – com o sentido – o significado. No dizer de Fiorin (2011, p. 58):

O signo é a união de um conceito com uma imagem acústica, que não é o som material, físico, mas a impressão psíquica dos sons, perceptível quando pensamos numa palavra, mas não a falamos. O signo é uma entidade de duas faces, uma reclama a outra, à maneira do verso e do anverso de uma folha de papel. Percebem-se as duas faces, mas elas são inseparáveis.

Está claro, para Saussure o signo não é um conjunto de sons cujo significado são as coisas do mundo em si mesmas. Por exemplo a palavra “pedra” não é a pedra real, concreta, solta na natureza, mas a representação sonora e gráfica que alude à pedra real. “No período medieval, dizia-se que o signo era aliquid pro aliquo (alguma coisa em lugar de outra). Essa definição mostra que o signo não é a realidade. Saussure vai precisar bem esse fato, quando diz que o signo linguístico não une um nome a uma coisa, mas um conceito a uma imagem acústica” (FIORIN, 2011, p. 58).

Ainda duas distinções, que geralmente se embaralham no senso comum, são necessárias quando refletimos sobre o signo linguístico, união indissociável de um significante e um significado: a arbitrariedade do signo linguístico e a compreensão de que o signo, embora possa com ela coincidir, não se confunde com a palavra.

Primeiro, não há uma relação causal e necessária entre um significante e um significado, ou seja, o signo linguístico representa uma realidade, mas não a traduz fielmente, isto é, o significante é, nesse sentido, arbitrário e imotivado, ou de motivação parcial em relação ao significado: “a imagem acústica / gatu / não evoca um gato em particular, mas a ideia geral de gato, que tem um valor classificatório” (FIORIN, 2011, p. 58).

Imotivado, nesse sentido, significa dizer que não há relação necessária entre som e sentido, que nada do significante lembra necessariamente o significado, de onde se pode deduzir que arbitrário é sinônimo de convenção, de fenômeno cultural, jamais de universalidade.

Exemplo da arbitrariedade é a existência de diversos significantes para representar a mesma ideia ou coisa existente, como em vaca e cow, respectivamente para a língua portuguesa e a língua inglesa, ou ainda em mar / mar / e mer / mér /, para o português e o francês, ou ainda nos diversos significantes, alguns de mesma raiz, para livro: book, livre, liber, biblion, buch etc.

Quanto ao segundo aspecto, cabe lembrar que, embora às vezes o signo se assemelhe a uma palavra, ele mais se vincula ao morfema morfológico:

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Assim, na palavra amássemos, temos quatro morfemas: am-, o radical, que contém o significado relativo ao ato de amar; o a-, vogal temática, que indica que o verbo pertence à primeira conjugação; o sse-, que exprime o tempo e o modo da forma verbal; o –mos, que expressa a pessoa e o número da forma verbal (FIORIN, 2011, p. 60).

Logo, o signo não é necessariamente uma palavra, mas os morfemas que formam palavras podem ser pensados como signos, e embora pensemos a palavra enquanto signo, o signo linguístico não se resume à palavra.

2.2.3 Sincronia e diacronia

Até Saussure, a linguística predominante no século XIX adotava uma abordagem histórico-comparativa que consistia em comparar os mesmos fatos linguísticos em distintas línguas, de modo a que se pudesse classificá-las por grau de parentesco e, consequentemente, agrupá-las em conjuntos que possuíssem uma mesma origem, isto é, um tronco comum:

Pai (português), Padre (espanhol), Père (francês), Padre (italiano). Um exame mais minucioso de outras propriedades lexicais e gramaticais dessas línguas leva à conclusão de que há muitas semelhanças entre elas e de que essas semelhanças são sistemáticas. Por isso, há um “grau de parentesco” entre elas. Comparando as semelhanças e as diferenças entre essas línguas, pode-se chegar a uma língua anterior, com base na qual essas diferentes línguas se originam (FIORIN, 2011, p. 78).

Esse método tradicional analisava não apenas as diferenças e semelhanças entre as línguas, mas também as modificações que as línguas sofriam no tempo. No caso em questão, em continuando o método histórico-comparativo, chegar-se-ia à conclusão de que o português, o espanhol, o francês e o italiano teriam uma origem comum: o latim. O latim, por sua vez, seguindo a mesma abordagem metodológica, apresenta significativas semelhanças com o grego e com o sânscrito, de onde se poderia supor que todas elas têm uma origem comum.

Essa língua originária seria batizada, no caso, como o Indo-Europeu, língua da qual todas as citadas anteriormente seriam derivadas. Decorre daí que o estudo das transformações que as línguas sofrem no tempo caracterizariam uma abordagem linguística específica, a que se denominou Diacrônica (dia, termo grego que significa através de; chrónos, que significa tempo), a partir da qual a pesquisa tornava-se

um trabalho de reconstrução de uma língua a partir dos vestígios que ela deixa nas línguas que dela se originaram, ou seja, reconstrói-se a ‘mãe’ a partir de suas ‘filhas’ e das ‘filhas’ de suas ‘filhas’. Foi assim com o indo-europeu, uma língua que, sem deixar registros históricos, foi reconstruída pelo método histórico-comparativo (FIORIN, 2011, p. 79).

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Assim, pode-se dizer que a diacronia capta a língua na sucessão, num eixo de sucessividades no qual o linguista se propõe a estudar determinado fato linguístico em relação a outros fatos, a ele anteriores e posteriores, de modo a captar o processo evolutivo das línguas e analisar as modificações que as palavras sofrem no tempo (observar, por exemplo, o caso dos arcaísmos, que são palavras ainda válidas em um certo tempo, mas cujo uso decaiu, restando como marca linguística de gerações anteriores, e que registra-se como uma variação linguística diacrônica).

Arcaísmo (do grego Archaismós) refere-se ao uso lexical de palavras que caíram em desuso e que geralmente aparecem como fator indicativo da geração do falante, captando variações linguísticas que se dão no tempo. Ex.: Quiçá, expressão dicionarizada, mas em larga medida substituída pela expressão Talvez.

NOTA

Assim, a partir de Saussure, mudou-se o foco da linguística ao se abrir um novo ponto de vista sobre os fatos da língua. Agora, não apenas se abordariam as mudanças que sofrem as línguas através do tempo – linguística diacrônica –, mas passa-se a observar um fato da língua isolado de sua transformação temporal, captado em sua relação com outros elementos a ele atuais, uns com os outros, isto é, como um sistema sincrônico.

Esse eixo é o da simultaneidade, no qual se deve estudar as relações ou os fatos linguísticos existentes ao mesmo tempo através da descrição do funcionamento da língua em determinado momento. Desse modo, opor-se-á ao eixo da diacronia, tal como em sua etimologia (sincronia: syn, termo grego que significa juntamente; chrónos, que significa tempo):

Saussure lança mão de uma metáfora para fazer a relação entre sincronia e diacronia. A língua comporta-se como o tronco de uma árvore em crescimento, de modo que um corte transversal em seu lenho revela uma relação sincrônica entre os elementos que o compõem e um corte longitudinal revela um desenvolvimento diacrônico desses estados sincrônicos (FIORIN, 2011, p. 80).

A diacronia não pode ser pensada dentro do método histórico-comparativo, na medida em que o eixo da sucessão passa a definir a transformação de distintos sistemas sincrônicos através do tempo. Portanto, não se acresce sincronia a uma diacronia preexistente, senão que sincronia e diacronia funcionam interligadas: “imaginemos, por exemplo, que em cada século haja um estado de língua. Faz-se um estudo sincrônico do português do século XIII, do português do século XIV etc. A diacronia é, então, a sucessão dessas sincronias” (FIORIN, 2011, p. 81).

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A partir da sincronia pode-se estudar a língua em uma perspectiva “estática”, que é a perspectiva do usuário atual da língua, que com ela se comunica através de um conjunto de regras atuais e válidas, sem necessidade de saber as transformações das palavras e das regras através do tempo. Opõem-se, dessa forma, o eixo diacrônico e histórico das sucessividades ao eixo sincrônico e estrutural das simultaneidades.

2.2.4 Sintagma e paradigma

Uma vez redefinidos os estudos linguísticos em pares dicotômicos, Saussure também passa a observar a língua segundo dois eixos: o eixo sintagmático (sintagma advém do grego, syntagma, que significa “coisa posta em ordem”) e o eixo paradigmático (paradigma advém do grego, paradéigma, que significa modelo, exemplo).

Observando as orações “foi teu irmão”, “foi teu pai” e “foi teu avô”, é possível verificar que as relações entre os elementos linguísticos dependem, basicamente, de uma seleção deles, que no caso do exemplo são irmão – pai – avô, e de uma combinação entre eles, que no caso é a sequência foi teu _____. Desse modo, pode-se afirmar que a linguagem tem dois eixos, um eixo de seleção e um eixo de combinação (PIETROFORTE, 2011, p. 88).

Na ordem do discurso, as relações sintagmáticas se baseiam no caráter linear dos significantes, ou seja, na impossibilidade de ser pronunciado mais de um signo simultaneamente. Assim, um signo só é enunciado após o outro signo, os quais se combinam formando relações sintagmáticas.

O eixo paradigmático aparece como um “banco de reservas” de uma língua em que suas unidades se excluem e se opõem, quer dizer, se uma unidade está presente é porque outras ali possíveis necessariamente estão ausentes, formando o que Saussure chamava de série mnemônica virtual.

Por exemplo, se dissermos: Está frio hoje, cada termo da frase se presentifica sob a ausência de outros tantos similares, quer dizer, o advérbio hoje concorre com agora, com a locução nesse momento etc., portanto se utilizo agora: Está frio agora; hoje e nesse momento estão ausentes, mas possíveis na frase. De outro modo, se digo Está frio nesse momento, tornam-se ausentes, mas possíveis, hoje e agora.

O eixo paradigmático caracteriza-se por ser associativo, por restar na memória do falante como possibilidade alternativa a cada frase que se materializa ou não conforme o contexto do falante, e pode ser associado de três modos: pelo significado (antônimos e sinônimos), pelo significante (imagens acústicas semelhantes), e por processos morfológicos comuns entre os signos. Vejamos como Saussure exemplifica esses modos a partir do signo ensinamento: “Por meio

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do significado, associa-se ensinamento à aprendizagem, educação etc. Por meio de seu significante, associa-se ensinamento a elemento, lento etc., por ter o mesmo radical, e associa-se a desfiguramento, armamento etc., por ter o mesmo sufixo” (PIETROFORTE, 2011, p. 92).

3 DA TEORIA À PRÁXIS LINGUÍSTICA: SAUSSURE, VYGOTSKY, BAKHTIN

Os estudos linguísticos, cujos avanços incontestáveis tornaram-se possíveis a partir dos postulados do “Curso de Linguística Geral”, quando começaram a ser confrontados com a necessidade de práticas voltadas para a formação de uma cidadania consciente e crítica, a maioria das vezes mostravam-se metodologicamente similares aos modelos de ensino tradicionais nos quais se prioriza o estudo das unidades linguísticas e de suas respectivas nomenclaturas em detrimento de práticas linguísticas voltadas para a ação em sociedade.

Dentro de tal concepção, já é insuficiente fazer uma tipologia entre frases afirmativas, interrogativas, imperativas e optativas a que estamos habituados, seguindo manuais didáticos ou gramáticas escolares. No ensino da língua, nessa perspectiva, é muito mais importante estudar as relações que se constituem entre os sujeitos no momento em que falam do que simplesmente estabelecer classificações e denominar os tipos de sentenças (GERALDI, 2006, p. 42).

É nesse sentido que se pode afirmar que Saussure teria priorizado o estudo da língua em detrimento da fala, haja vista que a homogeneidade da língua, abstraída dos dados complexos e heterogêneos da realidade, possibilitava um maior aprofundamento em seu construto teórico, cujo resultado foi a sistematização binária dos usos da língua independentes da situação real de uso.

De fato, “Saussure dizia que o verdadeiro objeto da Linguística era a língua e, para ele, a língua era a linguagem menos a fala, ou seja, menos o uso concreto da linguagem” (FIORIN, 2011, p. 166), abordagem essa que, ao tomar abstratamente dicotomias binárias – língua/fala, significante/significado, sincronia/diacronia, sintagma/paradigma – daria origem à corrente de pensamento do Estruturalismo, que observa o funcionamento da língua que subjaz ao uso concreto dos sujeitos falantes.

Assim, malgrado os avanços contundentes da linguística moderna, alguns autores passaram a adotar uma linha teórica que observasse a língua em sua concretude, enquanto ação de sujeitos que interagem socialmente. É o caso de Lev Vygotsky e, mais radicalmente, Mikhail Bakhtin, críticos da abordagem saussuriana de língua como entidade homogênea, sistemática e objetiva, e também do signo linguístico como valor imutável e imanente, que acabavam despindo a língua de seu caráter social e ideológico.

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

Mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana. Por meio dela, o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não preexistem à fala (GERALDI, 2006, p. 41).

Caberia então perguntar: a língua, com suas consequentes regras de funcionamento, originar-se-ia de uma estrutura pré-dada aos sujeitos falantes, ou ela se constituiria em meio ao jogo social, na ação concreta desses mesmos sujeitos? Para responder tal questão por um novo viés, convocou-se outras áreas do saber exteriores à linguística, como a sociologia, a psicologia, a história, as filosofias pragmáticas, em geral de cunho marxista, áreas que viessem a contribuir para uma nova etapa de desenvolvimento dos estudos da linguagem.

Dessa forma, tornava-se essencial abandonar o estudo prioritário dos aspectos internos da língua – de linhagem estruturalista, com sua fonologia, morfologia e sintaxe – em favor de outros aspectos válidos, a ela exteriores, que poderiam redefini-la segundo uma maior aproximação com a ação dos sujeitos.

Nesse sentido, os teóricos de linhagem interacionista – vale lembrar que Bakhtin era filósofo, não linguista, e Vygotsky especializara-se no campo da psicologia cultural – creem que a linguagem surgiu de acordos concretos entre os homens que, desde eras remotas, necessitavam negociar por meio de suas produções sonoras:

A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher etc.) é análoga à invenção e o uso de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento de trabalho (VYGOTSKY, 2007, p. 52).

Assim Vygotsky compreende a linguagem para além de sua dimensão linguística, como forma de conhecimento de um sujeito – dimensão psicológica – que dela se vale em uma dimensão social como instrumento de ação entre sujeitos. Dessa forma, a aquisição de conhecimentos é vista como um fenômeno interativo com o meio circundante, e tanto a linguagem quanto o pensamento têm, para o autor, uma origem, não apenas individual e biológica, mas social e cultural. A língua passa a ser pensada, para ele, como resultado de um processo histórico de socialização, onde o desenvolvimento de cada indivíduo reportava-se ao desenvolvimento da espécie humana. Observa, no desenvolvimento da criança, uma etapa de experiência social que é anterior à aquisição da linguagem – período de fala pré-intelectual – verificável nas formas práticas como as crianças agem e sabem agir no meio, ainda sem a mediação da linguagem.

Com o processo de amadurecimento infantil, a fala da criança se intelectualiza e o pensamento, agora mediado pela linguagem, torna-se verbal.

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TÓPICO 3 | DA CIÊNCIA DA LÍNGUA À LÍNGUA EM SOCIEDADE

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A linguagem, nesse sentido, abre um pensamento que não preexiste a ela. Nesse sentido Vygotsky retoma a tese de Saussure da não existência de pensamento sem linguagem, senão que o pensamento se realiza por meio dela.

Ademais, o psicólogo russo enfatiza um aspecto pouco destacado em Saussure, com ele convergindo, quando este afirmava que a língua, concebida enquanto um conjunto de potencialidades, seria um fenômeno social, e que a fala – enquanto realização particular, por determinado indivíduo, dessas potencialidades – seria ao mesmo tempo um fenômeno individual e social, portanto submetido às normas e coerções sociais (VEÇOSSI, 2014).

Destarte o pensamento e a comunicação, que apareciam como caráter estrutural em Saussure, passam a serem lidos sob um prisma social verificável no desenvolvimento cognitivo da criança. Em um viés mais radical, Bakhtin (1997) sustenta que é o social que orienta e direciona as formas de expressão e pensamento dos sujeitos, dessa forma invertendo postulados linguísticos, posto que é da interação verbal entre sujeitos que devem decorrer seus resultados.

Para Bakhtin (1997), a linguagem não é uma entidade abstrata, tal como pode ser observada em Saussure, ainda que este a reconheça em parte como um fato social, mas é de natureza predominantemente sociológica. Critica portanto o objetivismo abstrato de Saussure na medida em que não admite o estudo e a compreensão da língua como código, pois, para ele, sempre falamos ou escrevemos para alguém em uma determinada circunstância social.

Para o filósofo russo, a enunciação não pode ser compreendida como evento monológico, mas como um jogo de interação entre o enunciador e o ouvinte (BAKHTIN, 1997). Os conteúdos das mensagens, por conseguinte, não estão completamente livres a uma subjetividade qualquer, senão que esses mesmos conteúdos já estão em grande medida determinados ideologicamente.

Quer dizer, se toda palavra é ideológica, esse conteúdo ideológico inerente à palavra não pode ser deduzido do psiquismo individual.

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica e isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação os das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 1997, p. 123).

Se tanto para Saussure quanto Bakhtin a língua é social, uma grande diferença se abre em seguida. Para o primeiro, essa natureza social mais tem a ver como uma língua depositada na mente individual dos falantes – a Langue – que lhe possibilita um caráter sincrônico (estática em determinado momento), que é de natureza em certo sentido imutável e homogênea. Nesse objetivismo abstrato, tal como caracterizou Bakhtin, faltou estudar e captar a língua em processo, enquanto ela se concretiza na ação, portanto no dialogismo que está presente na interação social.

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UNIDADE 1 | ASPECTOS GERAIS DA LINGUAGEM

Nesse sentido, para Bakhtin (1997), a língua evoluiria ininterruptamente não a partir do psiquismo individual de cada falante, mas concretamente na forma de interação verbal e social dos falantes, consequentemente através de uma práxis ideológica que é captada pela história e que está inscrita em cada palavra. Para ele, toda linguagem é dialógica, ou seja, os enunciados estão sempre situados numa relação nem sempre igual entre interlocutores.

Ideológico, se agora nos reportarmos ao ensino de língua portuguesa, reverbera quase sempre num modo de língua imposto de cima para baixo, numa forma de ensino prescritivo de regras e normas gramaticais que, pensando-se como o “modo correto da língua”, evitam o diálogo com as várias formas linguísticas de expressão social cuja relevância está implícita nas postulações de Bakhtin.

O ensino de gramática em nossas escolas tem sido primordialmente prescritivo, apegando-se a regras de gramática normativa que, como vimos, são estabelecidas de acordo com a tradição literária clássica, da qual é tirada a maioria dos exemplos. Tais regras e exemplos são repetidos anos a fio como formas “corretas” e “boas” a serem imitadas na expressão do pensamento (TRAVAGLIA, 2006, p. 102).

Mais adiante, ao redor dessa e de outras situações concretas de uso da língua materna, continuaremos nosso debate. Esperamos que ele ajude a modificar suas impressões iniciais em direção a uma forma mais elevada de conhecimento, que possibilite reconhecer e superar os preconceitos linguísticos em prol de uma compreensão mais bem fundamentada da linguagem, sem descartar a natureza política inerente aos discursos em torno do ensino e da aprendizagem de língua materna, que transcorrerão ao longo do livro didático.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você viu que:

• Ao traçarmos um histórico abreviado da linguística moderna no Ocidente – como a reflexão filosófica em torno da natureza da palavra na Grécia Antiga e o desenvolvimento do método histórico-comparativo que predominou no século XIX – chegamos ao Curso de Linguística Geral, de Saussure, que abalaria o pensamento ocidental ao colocar a linguagem no eixo de qualquer forma relevante de reflexão.

• Os postulados linguísticos de Saussure assumiram a forma de dicotomias, nos quais os conceitos aparecem vinculados um ao outro, e apenas desse modo se explicitam. Os principais pares binários são língua/fala, significante/significado, sincronia/diacronia e sintagma/paradigma, verificáveis em quaisquer relações sociais que se deem por meio da linguagem.

• Os conceitos da linguística moderna são estruturais, pois estão presentes em qualquer manifestação humana que se dê por meio da linguagem. Nesse sentido, a língua em Saussure padece de certo abstracionismo, já que, se por um lado possibilitou um estudo objetivo das características da linguagem, por outro lado relegou para um segundo plano o fato de que tais conceitos sistemáticos se fazem a partir das relações sociais dos falantes.

• Seria preciso, em certa medida, corrigir o pensamento de Saussure, a ele aditando dados interacionais e ideológicos que tanto a reflexão da psicologia cultural e do desenvolvimento da linguagem na criança, levados a cabo por Vygotsky, e também a compreensão da linguagem como campo ideológico e fruto da ação de sujeitos concretos, em Bakhtin, dariam a ver um novo patamar de estudos linguísticos, no qual a linguagem passasse a ser vista a partir dos usos concretos de sujeitos em interação.

• As novas postulações linguísticas de base interacional são fundamentais para se pensar as relações entre língua e sujeito em sala de aula, e de modo específico, de trazer o ensino de língua materna para mais perto do aluno.

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2 Após ter estudado as contribuições de Saussure para o desenvolvimento da linguística moderna, você deve ter observado que tais postulações tinham um teor mais teórico e abstrato em relação aos fatos da linguagem. Nesse sentido, embora Saussure considerasse a língua como um evento social, não se debruçou sobre as relações entre os sujeitos que garantiam essa mesma perspectiva social. Você concordaria que Bakhtin, na contramão de Saussure, capta os aspectos dialógicos da linguagem, isto é, a língua como modo de ação entre sujeitos, que dará corpo à linguística da enunciação, vertente de estudo essencial para se pensar o ensino de língua materna?

1 Uma das postulações centrais da linguística moderna é o par dicotômico Língua versus _______. A primeira é de natureza sistemática e homogênea, e representa um fato _______, enquanto a segunda refere-se ao uso pessoal da língua realizado por cada _______ de determinada comunidade linguística.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) Fala – social – indivíduob) ( ) Norma – coletiva – pensadorc) ( ) Boca – partilhada – usuáriod) ( ) Fala – individual – linguista

AUTOATIVIDADE

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UNIDADE 2

LINGUÍSTICA EM AÇÃO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade, você será capaz de:

• entender a Linguística Aplicada como ciência autônoma em relação à Linguística, que conjuga saberes diversos, como os aportes da linguística variacionista e do preconceito linguístico, importantes para se pensar a língua materna em sala de aula;

• compreender a importância, no ensino de língua materna, de conceitos como dialogismo, gêneros de discurso e as concepções de sujeito e lingua-gem marcados pela história e pelas ideologias, postulados por Bakhtin;

• reconhecer a necessidade de propostas didáticas em torno dos gêneros discursivos, incorporados aos Parâmetros Curriculares Nacionais, que re-cuperam a dimensão histórica e política-ideológica das teorias linguísticas de Bakhtin para a sala de aula.

Caro acadêmico! Esta unidade de estudos encontra-se dividida em três tó-picos de conteúdos. Ao longo de cada um deles, você encontrará sugestões e dicas que visam potencializar os temas abordados, e ao final de cada um deles estão disponíveis resumos e autoatividades que visam fixar os temas estudados.

TÓPICO 1 – LINGUÍSTICA E LINGUÍSTICA APLICADA

TÓPICO 2 – BAKHTIN E OS GÊNEROS DISCURSIVOS

TÓPICO 3 – GÊNERO DISCURSIVO EM SALA DE AULA

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TÓPICO 1

LINGUÍSTICA E LINGUÍSTICA APLICADA

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Já esqueci a língua em que comiaem que pedia para ir lá foraem que levava e dava pontapéa língua, breve língua entrecortadado namoro com a prima. (Drummond)

Prezado acadêmico, na primeira unidade, após termos aberto algumas constelações definidoras ao redor de alguns objetos centrais da linguística – a partir de prismas filosófico, histórico e sociopolítico – de modo a habilitá-lo a repensar a linguagem, a gramática e o embate entre língua e sociedade de modo diferenciado, ou seja, academicamente, fora do senso comum, chegou a hora de nos debruçarmos sobre a especificidade dos estudos linguísticos voltando-os para o processo de ensino-aprendizagem de língua materna.

Subjaz a essa escolha a opção sociopolítica por um tipo de escola engajada na formação do cidadão crítico, portanto, de uma escola voltada para fazê-lo sustentar, no exercício de sua singularidade, formas de linguagem a um só tempo sociais e particulares, que variem conforme melhor se adéquem aos momentos vivenciais dos sujeitos interlocutores implicados em determinado contexto, possibilitando-lhes expressão linguística satisfatória tanto em momentos de realização, quanto em momentos de crise.

Nesse sentido, a abordagem linguística de Eugene Coseriu (1980), realizada a partir da dicotomia saussuriana língua/fala, aprofundou a relação entre indivíduo e língua ao postular que o falante realiza, não uma fala individual inferida diretamente de um sistema maior – língua, mas tão somente algumas variedades possíveis dessa mesma língua, selecionadas num contexto específico segundo a forma praticada por determinado grupo social, o que levou o autor a constatar que a língua não é um sistema fechado, mas que varia conforme quatro tipos de variação linguística: diatópicas, diafásicas, diacrônicas e diastráticas.

Reconhecer que as línguas variam nos faz postular, mais do que uma verificação de caráter científico, a necessidade de uma forma de ensino que possibilite o acesso à pluralidade de discursos, que passe a prover condições para que a língua possa ser experienciada conforme as situações concretas de uso, contradizendo o enfoque tradicional que atrela o ensino de língua materna quase exclusivamente à prática de exercícios referentes a uma única variedade linguística eleita como norma-padrão.

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UNIDADE 2 | LINGUÍSTICA EM AÇÃO

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É nesse contexto que, aliando-se ao conjunto de disciplinas que se opõem às formas idealizadas e coercitivas de tratar os estudos da linguagem, a linguística aplicada também compreende a língua como prática social inserida em determinado contexto histórico e sociocultural. Nesse sentido, é uma disciplina que não se limita à aplicação de conhecimentos linguísticos em sala de aula, mas que faz desses mesmos conhecimentos um ponto de encontro entre distintas áreas e abordagens voltadas para as interações sociais na escola mediadas pela linguagem.

Assim a linguística aplicada – cujo enfoque aqui se volta especificamente para o ensino e a aprendizagem de língua materna – constitui-se como uma disciplina autônoma à ciência linguística, na medida em que o processo de ensino-aprendizagem requer, para sua compreensão, a participação de outros setores de investigação e formas de pesquisa de natureza interdisciplinar, dentre as quais destacamos a teoria da educação, a psicologia, a sociologia, a história social e a linguística variacionista, dentre outras.

2 A LINGUÍSTICA VARIACIONISTA

Com a linguística moderna foi possível observar, a partir das postulações inovadoras de Saussure, que uma das especificidades da linguagem humana é o fato de ela realizar-se de modo binário, segundo a dicotomia Langue/Parole. Nessa perspectiva, a língua forneceria as normas lógicas de funcionamento do idioma, que tornariam possível a sua compreensão, enquanto a fala estaria atrelada aos atos individuais de uso desse mesmo sistema de regras.

Nessa linha de pensamento, de modo contrário à fala – que, para Saussure, parecia de difícil estudo devido à sua natureza heteróclita, que implicava também em admitir variações expressivas, acidentais ou aleatórias, realizadas pelos falantes quando do uso concreto da linguagem –, a língua, vista desde ali como um conjunto de regras tácitas, comuns entre os falantes de uma determinada comunidade, estaria, a seu ver, mais apta às sistematizações da linguística.

Na dicotomia língua e fala, Saussure separa os fatos de língua dos fatos de fala: os fatos de língua dizem respeito à estrutura do sistema linguístico e os fatos de fala dizem respeito ao uso desse sistema [...] [tal dicotomia] é pertinente à medida que os fatos de língua podem ser estudados separadamente dos fatos de fala (PIETROFORTE, 2011, p. 84).

Motivos como este levaram Saussure a eleger a língua como um dos objetos centrais da linguística moderna, pois nela seria possível observar uma natureza estável e homogênea, que ademais definiria o seu caráter social, visto que a língua, enquanto sistema linguístico socializado, apresenta-se como um conjunto de convenções – regras de combinação de fonemas, morfemas, frases, etc. – partilhadas pelos membros de uma mesma comunidade linguística.

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A distinção linguagem/língua/fala situa o objeto da Linguística para Saussure. Dela decorre a divisão do estudo da linguagem em duas partes: uma que investiga a língua, e outra que analisa a fala. As duas partes são inseparáveis, visto que são interdependentes: a língua é condição para produzir a fala, mas não há língua sem o exercício da fala. Há necessidade, portanto, de duas linguísticas: a linguística da língua e a linguística da fala. Saussure focalizou em seu trabalho a linguística da língua [...], sistema supraindividual que a sociedade impõe ao falante (PETTER, 2011, p. 14).

Na contramão da abordagem saussuriana, algumas correntes teóricas buscaram responder não diretamente às postulações do linguista genebrino, mas a ela se opuseram na medida em que passaram a considerar a língua de mesma natureza que a fala, isto é, de natureza heterogênea; e ao se considerar a paridade entre língua e fala abrir-se-iam consequentemente linhas alternativas de investigação as quais são antiestruturalistas de princípio, já que

os seguidores dos princípios saussurianos esforçaram-se por explicar a língua por ela própria, examinando as relações que unem os elementos no discurso e buscando determinar o valor funcional desses diferentes tipos de relações. [...] A teoria de análise linguística que desenvolveram, herdeira das ideias de Saussure, foi denominada estruturalismo (PETTER, 2011, p. 14).

Não é o caso da linguística variacionista. Esta, ao contrário, admite a hipótese original de Saussure e busca a partir dela descrever de que forma as línguas variam e como se dão tais variações. Nesse sentido, a Langue enquanto conjunto de regras de uma comunidade linguística sofreria uma torção individual aceitável, a Parole, no instante em que cada falante se põe a utilizar a língua que, ainda assim, permaneceria compreensível para essa mesma comunidade.

“Dando importância ao fato de que um mesmo indivíduo opera com regras variáveis, parece natural optar por uma perspectiva a partir da qual vemos a língua como um sistema inerentemente variável. Os linguistas que assim veem a língua são comumente chamados de sociolinguistas ou variacionistas” (BELINE, 2011, p. 128).

Dessa perspectiva seria possível explicar por que uma mesma língua, que possui regras próprias de combinação – a língua portuguesa, por exemplo – varia em regiões geográficas distintas de sua origem, como entre Portugal e outros países de língua portuguesa: Angola, Moçambique, Brasil etc., ou ainda em regiões geográficas distintas dentro de um mesmo país.

Podemos lembrar de um fato linguístico com que sempre convivemos, mas ao qual talvez nunca tenhamos dado tanta importância, em termos científicos: o fato de que detectamos diferenças entre o português que falamos em São Paulo, em termos genéricos, e o português que se fala na cidade do Rio de Janeiro, ou nas cidades de Salvador e Porto Alegre. É claro também que tais diferenças não impedem que nos comuniquemos entre nós. Quando ouvimos um carioca típico, podemos entender tudo o que ele fala (BELINE, 2011, p. 121-122).

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O fato é que a língua, em não sendo um sistema linguístico fechado, possibilita aos seus usuários fazerem arranjos e rearranjos a partir do código linguístico original de modo a facilitar ou a atender as suas necessidades comunicativas específicas. É o caso, tal como mencionado no parágrafo anterior, em que a língua assume variações em razão de fatores regionais, históricos, ou então quando tem de adequar-se às diversas formas culturais presentes em uma sociedade.

As línguas naturais situam-se numa posição de destaque entre os sistemas sígnicos porque possuem, entre outras, as propriedades de flexibilidade e adaptabilidade, que permitem expressar conteúdos bastante diversificados: emoções, sentimentos, ordens, perguntas, afirmações, como também possibilitam falar do presente, passado ou futuro (PETTER, 2011, p. 17).

Tal complexidade se assenta também nos diferentes tipos de uso que a língua pode assumir dentro de um mesmo grupo social, razão pela qual o comportamento linguístico dos falantes de uma determinada língua muda se estamos, por exemplo, em meio a uma conversa familiar entre amigos, praticando uma variedade de linguagem mais informal, ou se, ao contrário, estamos em uma entrevista de emprego, quando se faz necessário utilizar uma linguagem mais formal e rebuscada.

“A linguística não se compara ao estudo tradicional da gramática; ao observar a língua em uso o linguista procura descrever e explicar os fatos: os padrões sonoros, gramaticais e lexicais que estão sendo usados, sem avaliar aquele uso em termos de um outro padrão: moral, estético ou crítico” (PETTER, 2011, p. 17).

Comprova-se, desde esse ponto de vista, que as variações linguísticas aparecem como uma necessidade humana e a língua como um código gramatical não fixo, malgrado ainda prevalecer a ideia, notória no senso comum e em alguns puristas, de se pensar as variações linguísticas como erro, como desvio em relação à norma-padrão, levando-os a incorrer em preconceito linguístico na medida em que limitam a língua a enquadrar-se em alguns critérios não efetivamente linguísticos, mas em geral políticos ou hierárquicos.

As diferenças de pronúncia, de vocabulário e de sintaxe observadas por um habitante de São Paulo, por exemplo, ao comparar sua expressão verbal à dos falantes de outras regiões, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Belo Horizonte, muitas vezes o fazem considerar ‘horrível’ o sotaque de algumas dessas regiões; ‘esquisito’ seu vocabulário e ‘errada’ sua sintaxe. Esses julgamentos não são levados em conta pelo linguista, cuja função é estudar toda e qualquer expressão linguística como fato merecedor de descrição de um quadro científico adequado (PETTER, 2011, p. 17).

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2.1 O PRECONCEITO LINGUÍSTICO

FIGURA 6 – PRECONCEITO LINGUÍSTICO

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-EKHeBxtCQ0s/VU0r3WOhQJI/AAAAAAAA-JNc/DzHOs6y_o7o/s1600/digitalizar0023.jpg>. Acesso em: 10 jul. 2017.

A confusão, historicamente sedimentada, que vincula língua à gramática está na base do preconceito linguístico, ou seja, ao se associar o bem falar ao modo “lógico” que predomina na modalidade escrita da língua. Entretanto, a partir de um ponto de vista linguístico e histórico, portanto, de um prisma fora do uso da língua como instrumento político, não seria possível sustentar que o conhecimento da gramática levaria o falante a expressar-se melhor em sua língua, pois bem ao contrário,

o que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como “regras” e “padrões” as manifestações linguísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática (BAGNO, 1999, p. 64).

Lógico, no sentido que aludimos no parágrafo anterior, ou seja, ligado à modalidade escrita da língua, significa pautar-se, com evidente exceção da escrita literária, em formas de expressão a maioria das vezes presas a regras preestabelecidas em acordos políticos, como são os acordos ortográficos da língua, o que, entretanto, não reduz de modo algum a eficácia comunicativa da língua:

Ora, em cartazes e placas não aparecem “erros de português” e, sim, “erros” de ortografia. Escrever, digamos, LOJINHA DE ARTEZANATO onde a lei obriga a escrever LOJINHAS DE ATESANATO em nada vai prejudicar a intenção do autor da placa: informar que ali se vende objetos de artesanato. Nesse caso, nem mesmo a realização fonética da placa “certa” e da placa “errada” vai apresentar diferença. O fato também de haver “erro” na placa não significa de forma nenhuma que os objetos ali vendidos sejam de qualidade inferior, “errados” ou “feios” (BAGNO, 1999, p. 123).

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O preconceito linguístico se baseia na crença de que só existe uma única língua portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogada nos dicionários. Qualquer manifestação linguística que escape desse triângulo escola-gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito linguístico, “errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente”, e não é raro a gente ouvir que “isso não é português”. [...] Se dizer Cráudia, praça, pranta é considerado “errado”, e, por outro lado, dizer frouxo, escravo, branco, praga é considerado “certo”, isso se deve simplesmente a uma questão que não é linguística, mas social e política – as pessoas que dizem Cráudia, praça, pranta pertencem a uma classe social desprestigiada, marginalizada, que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais de elite, e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada “feia”, “pobre”, “carente”, quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola (BAGNO, 1999, p. 40).

IMPORTANTE

Entretanto, tal forma “lógica” norteadora da língua, que está presente nas gramáticas normativas, é em boa parte sócio-politicamente responsável por estigmatizar os sujeitos que, ao utilizarem uma variedade da língua de forma espontânea, em acordo com uma situação comunicativa informal, como no caso das gírias, parecem incorrer em erro ou em formas de desrespeito à variedade eleita como variedade padrão. Não será? Vejamos:

autoatividade

Se observarmos alguns tipos de variação de vocabulário praticados por grupos de classes sociais distintas, talvez seja possível verificar, entre eles, alguma forma de segregação cultural ou de preconceito linguístico. Por exemplo, entre o jargão médico, que expressa as marcas linguísticas utilizadas pelos médicos em sua profissão, e, por outro lado, as marcas linguísticas praticadas pelos garis de rua durante as coletas de lixo, poderia haver variações de linguagem de distinto grau de valor? Dito de outro modo, a seu ver, o falar dos médicos e o falar dos garis têm o mesmo valor ou um parece ser superior ao outro?

Quando nos pomos a julgar determinadas manifestações linguísticas inferiores ou superiores umas às outras, geralmente isso se dá não a partir de critérios científicos, mas sim históricos, econômicos ou de prestígio social, pois é fato, comprovado pelos estudos linguísticos, reconhecer que “não existe nenhuma variedade e nenhuma língua que sejam boas ou ruins em si. O que há são línguas e variedades que mereceram maior atenção que outras, segundo necessidades e eleições historicamente explicáveis. Necessidades e eleições claramente políticas” (POSSENTI, 2006, p. 55).

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DICAS

Recomendamos a leitura de “O preconceito linguístico”, de Marcos Bagno, livro no qual o linguista reage a certa cultura arraigada no Brasil que desconsidera as diferenças inerentes à dinâmica da própria sociedade, elencando oito formas míticas de preconceito linguístico no território brasileiro:

• Mito nº 1 – “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”: discussão sobre a ideia de unidade linguística e das variações que existem dentro do território brasileiro.

• Mito nº 2 – “Brasileiro não sabe português; só em Portugal se fala bem o português”: relação das diferenças entre o português falado no Brasil e em Portugal; este, aparentemente, de maior valor.

• Mito nº 3 – “Português é muito difícil”: trata da gramática normativa da língua portuguesa ensinada em Portugal e suas diferenças entre o falar e o escrever dos brasileiros.

• Mito nº 4 – “As pessoas sem instrução falam tudo errado”: preconceito gerado por pessoas que têm baixo nível de escolaridade, contra o qual defende tais variantes da língua e analisa o preconceito linguístico e social gerado pela diferença da língua falada e da norma padrão.

• Mito nº 5 – “O lugar onde melhor se fala o português no Brasil é no Maranhão”: mito criado em torno desse estado, o qual é considerado por muitos o português mais correto, mais bonito, posto que está intimamente relacionado com o português de Portugal e o uso do pronome “tu” com a conjugação correta do verbo: tu vais, tu queres etc.

• Mito nº 6 – “O certo é falar assim porque se escreve assim”: apresenta as diferenças entre as diversas variantes no Brasil e a utilização da língua formal (culta) e informal (coloquial).

• Mito nº 7 – “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”: o autor aborda o fenômeno da variação linguística e a subordinação da língua à norma culta, a qual passou a ser instrumento de poder e controle.

• Mito nº 8 – “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”: decorrente das desigualdades sociais e das diferenças das variações em determinadas classes sociais, em que as variedades linguísticas, que não a padrão, são consideradas inferiores.

FONTE: BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

Se ao reconhecermos, de mãos dadas com as pesquisas linguísticas, que as línguas variam, que ademais as variações e suas consequentes variedades da língua são parte do próprio dinamismo e do aperfeiçoamento contínuo das línguas que as fazem sobreviver no tempo, caem por terra os possíveis argumentos em prol da hierarquização dos modos de uso da linguagem, o que não implica em valorar a noção de “erro”, senão em admitir que o que parece ser um “erro” a priori pode significar movimentos de adaptação e de melhor funcionamento da língua:

Algumas pessoas me dizem que a eliminação da noção de erro dará a entender que, em termos de língua, vale tudo. Não é bem assim. Na verdade, em termos de língua, tudo vale alguma coisa, mas esse valor vai depender de uma série de fatores. Falar gíria vale? Claro que vale no lugar certo, no contexto adequado, com as pessoas certas. E usar palavrão? A mesma coisa (BAGNO, 1999, p. 129).

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Dizíamos, antes: os “erros” aparentes, isto é, à luz da gramática normativa, podem muitas vezes significar movimentos de adaptação e de melhor funcionamento da língua. É o caso das formas concorrentes “para eu estudar” e “para mim estudar”, em que a primeira sentença é a única considerada gramaticalmente correta.

Sabemos que a regra normativa é de que após as preposições devemos utilizar o pronome na forma oblíqua. Então, se perguntássemos: “Esse livro é para quem?”, a resposta efetivamente seria: “É para mim”, portanto “para eu” seria, no caso, a forma incorreta. Ao acrescentarmos, após o pronome, um verbo na forma infinita, esse deveria, segundo a norma gramatical vigente, passar para a forma pessoal: “Esse livro é para eu estudar”.

Entretanto, a tendência é que a forma “para mim” mantenha-se na regra original e com o tempo prevaleça sobre a segunda regra, que tenderá a ser normativamente aceita – inclusive em posteriores acordos ortográficos – admitindo-se um dia a forma “é para mim estudar”. Quer-se dizer com isso, segundo uma visão científica, acadêmica, linguística, enfim, de que não há delito ao constatarmos mecanismos concorrentes que são, não duelos entre “certo” e “errado”, mas, muitas vezes, mecanismos evolutivos da própria língua.

Se assim não for, se mantivermos a visão preconceituosa do senso comum e de alguns puristas, incorreríamos no risco de, ao querer preservar na língua portuguesa uma face aparentemente elevada, na verdade a condenaríamos ao seu fim, tal como se deu com o latim em sua forma culta – língua que sobreviveu apenas em suas formas “vulgares”, que vieram a transformar-se no que hoje é o português, o francês, o espanhol etc.

“Todas as línguas mudam, de maneira que não há razão de ordem científica para exigir que alunos dominem formas arcaicas que nunca ouvem e que pouco encontram, mesmo nos textos mais correntes. Gastar um tempo enorme com regências e colocações inusitadas é, a rigor, inútil” (POSSENTI, 2006, p. 35).

2.2 AS VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS

Está visto que uma das características inerentes à língua – não pensada de modo abstrato, mas em sociedade – é o fato de ela possibilitar várias maneiras de uso, conforme o contexto em que se dá. Não admitir isso – esse sim, um grave “erro” – é possivelmente incorrer em preconceito linguístico, ou seja, as variações dão conta da diversidade cultural de uma determinada comunidade linguística, como prova a diversificação dos falares de uma nação do tamanho do Brasil. Pensar um único uso, igual e contínuo de Norte a Sul, de Leste a Oeste, da língua portuguesa em solo brasileiro é que pareceria uma ficção:

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Todas as línguas variam, isto é, não existe nenhuma sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma. A variedade linguística é o reflexo da variedade social e, como em todas as sociedades existe alguma diferença de status ou de papel, essas diferenças se refletem na linguagem. Por isso, muitas vezes percebem-se diferenças nas falas de pessoas de classe diferente, de idade diferente, de sexo diferente, de etnia diferente etc. (POSSENTI, 2006, p. 35).

Essa maleabilidade da linguagem pode adaptar-se às situações comunicativas, aos momentos interacionais, aos assuntos abordados etc., fazem desses distintos modos de falar o que podemos chamar de variedades linguísticas, as quais realizam variações em um código linguístico maior, a língua: variações no tempo e na história (diacrônicas), variações geográficas ou regionais (diatópicas), variações em acordo com a classe social do falante (diastráticas) e variações de adaptação do falante à situação comunicativa (diafásicas).

FONTE: Disponível em: <https://www.listenandlearn.com.br/blog/wp-content/uplo-ads/2014/09/falo-fluentemente-ingles-frances-espanhol-portugues-vareia.jpg>. Acesso em: 10 jul. 2017.

FIGURA 7 – VARIEDADES DO PORTUGUÊS

Tais manifestações concretas são observáveis a partir da contribuição de Eugene Coseriu, que expandiu a dicotomia saussuriana Langue (língua, sistema funcional) / Parole (fala, uso individual da língua), ao acrescentar um grau intermediário, a Norma, isto é, as realizações concretas, não apenas individuais, mas que estão consagradas pelo grupo em que está o falante. Portanto, a dicotomia expande-se em direção à concretude tornando-se tricotomia: Língua/Norma/Fala.

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O objeto por excelência da descrição estrutural é a língua enquanto técnica sincrônica do discurso. Entretanto, numa língua histórica [como a língua portuguesa] essa técnica não é perfeitamente homogênea. Muito ao contrário: em geral representa um conjunto assaz complexo de tradições linguísticas historicamente conexas, mas diferentes e só em parte concordantes. Em outros termos: uma língua histórica apresenta sempre variedade interna (COSERIU, 1980, p. 110).

As normas, por sua vez, são diversas e coexistem numa mesma comunidade social, linguística e cultural, e se concretizam por meio de variedades linguísticas que se distinguem, por exemplo, conforme o espaço geográfico (falares, dialetos), classes sociais, faixa etária dos falantes, grupos sociais (gírias, jargões), registros da língua (formal, informal), modalidade (oral, escrito) etc.

Mais precisamente, podemos nela encontrar diferenças mais ou menos profundas pertencentes substancialmente a três tipos: a) diferenças diatópicas (do grego dia “através de” e topos “lugar”), diferenças no espaço geográfico; b) diferenças diastráticas, isto é, diferenças entre os estratos socioculturais da comunidade linguística; e c) diferenças diafásicas, ou seja, diferenças entre os diversos tipos de modalidade expressiva (do grego dia e “expressão” stratum). As variedades linguísticas que caracterizam – no mesmo estrato sociocultural – os grupos biológicos (homens, mulheres, crianças, jovens) e os grupos profissionais podem ser considerados como “diafásicas” (COSERIU, 1980, p. 110).

Resumidamente, tracemos um breviário de características das variações linguísticas, acrescentando, ao modelo de Coseriu, as variações no tempo e na história (diacrônicas), seguidas daquelas apresentadas pelo linguista romeno, grosso modo: variações em acordo com a classe social dos falantes (diastráticas), variações de adaptação do falante à situação comunicativa (diafásicas) e variações geográficas ou regionais (diatópicas).

As variações diacrônicas expressam a mudança da linguagem através do tempo, fazendo conviver formas arcaicas, ainda que válidas, da língua – como é o caso dos arcaísmos: palavras dicionarizadas, mas em desuso na atualidade, de modo que até podemos supor a geração de determinado falante pelo tipo de léxico que usa – com formas mais modernas, de intenso diálogo com o contemporâneo.

Um bom exemplo é o caso dos verbos “apagar” (dos tempos da escrita a lápis) e do verbo mais recente, “deletar” (advindo do inglês “to delete”, muito utilizado em tempos tecnológicos, em mídias como computadores, celulares, laptops etc.), que apontam o sentido geral de desfazimento: apagar, utilizado por faixa etária de maior idade; deletar, por gerações mais recentes. Próximas a elas, as variações históricas revelam as transformações sofridas na língua: vossa mercê (culto) e vassumcê (coloquial) que chegariam à forma atual “você” é um bom exemplo.

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Variações diatópicas ocorrem por diferenças regionais por referir-se à cultura local de distintas regiões geográficas, chegando até a formar variedades linguísticas conhecidas como dialetos. É o caso da mandioca, de origem indígena, conhecida no Centro-Sul como aipim e, no Nordeste brasileiro, como macaxeira, assim como os diversos sotaques: mineiro, gaúcho, nordestino, caipira, que se ligam às marcas orais da linguagem. Exemplos também de variedades geográficas estão ao compararmos o português brasileiro e o português de Portugal, em que elencam-se nítidas diferenças.

É interessante aproveitarmos algumas marcas linguísticas características do português europeu (falado em Portugal) e confrontá-las com algumas marcas do português brasileiro, de modo a observarmos nuances criativas da linguagem em cada cultura, as quais se adéquam, por meio das variações linguísticas, e ainda que ambos os povos compartilhem a mesma língua, ao estilo de cada povo:

• diferenças sintáticas (no modo de organizar as frases, as orações e as partes que as compõem): nós no Brasil dizemos estou falando com você; em Portugal eles dizem estou a falar consigo;

• diferenças lexicais (palavras que existem lá e não existem cá, e vice-versa): o português chama de saloio aquele habitante da zona rural, que no Brasil a gente chama de caipira, capiau, matuto;

• diferenças semânticas (no significado das palavras): cuecas em Portugal são as calcinhas das brasileiras. Imagine uma mulher entrar numa loja de São Paulo e pedir cuecas para ela usar! Vai causar o maior espanto!

• diferenças no uso da língua. Por exemplo, você se chama Sílvia e um português muito amigo seu quer convidar você para jantar. Ele provavelmente vai perguntar: “A Sílvia janta conosco?” Se você não estiver acostumada com esse uso diferente, poderá pensar que ele está falando de uma outra Sílvia, e não de você, porque no Brasil, um amigo faria o mesmo convite mais ou menos assim: “Sílvia, você quer jantar com a gente?” Nós não temos, como os portugueses, o hábito de falar diretamente com alguém como se esse alguém fosse uma terceira pessoa.

FONTE: BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2006, p. 20.

NOTA

As variações diastráticas ocorrem como consequência da interação de diversos grupos sociais e dão conta da expressão de determinado grupo de pessoas, seja por fatores de idade (criança, jovem, idoso), gênero (homem, mulher, indeterminado), escolaridade (não alfabetizados, acadêmicos) em que destacam-se variantes linguísticas mais ou menos próximas da norma culta, tais como as gírias (vocabulário de certos grupos, como: surfistas, estudantes, policiais) e os jargões (linguajar técnico relacionado com certas áreas profissionais, como os advogados, profissionais de informática, médicos). É, portanto, uma variante social, que revela na linguagem os diversos “estratos” da sociedade.

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As variações diafásicas dão conta do uso de variedades conforme a situação interacional, se na oralidade, se na escrita, se na formalidade, se na informalidade, em que pesam os elementos comunicacionais, como interlocutor, contexto, mensagem, canal etc., em que a ocasião determina o modo de comunicação com o interlocutor.

- Você fala assim na sua casa, também? – Claro que não, somente em alguns lugares e com algumas pessoas. – Ah! Então você troca de língua como troca de roupa, às vezes mais chique, outras mais esportiva, outras mais popular... – Sim, claro, você não quer que eu vá falar com o diretor daquela indústria ali, por exemplo, mal vestido e falando de qualquer jeito, não? (ALMEIDA, 2006, p. 11).

É importante frisar que a submissão da diversidade das normas/variações em função da imposição hierarquizante da norma culta, já que esta registra uma possibilidade ideal da língua, provoca inevitavelmente prejuízo na competência comunicativa dos falantes, razão pela qual torna-se salutar a inserção, no âmbito escolar, do maior número possível de normas para que os alunos alcancem integração efetiva na comunidade sociolinguística e cultural em que estejam inseridos.

Tal posicionamento pedagógico não vem posicionar-se, entretanto, contra o ensino da norma padrão, mas tomar partido da ampliação dos registros da língua em sociedade, o que representa um conhecimento do teor político que há nas línguas. É também o que pensa Possenti (2006, p. 33), ao defender que

a tese de que não se deve ensinar ou exigir o domínio do dialeto padrão dos alunos que conhecem e usam dialetos não padrões baseia-se no preconceito segundo o qual seria difícil aprender o padrão. Isso é falso, tanto do ponto de vista da capacidade dos falantes quanto do grau de complexidade de um dialeto padrão. As razões pelas quais não se aprende, ou se aprende e não se usa um dialeto padrão, são de outra ordem, e têm a ver em grande parte com os valores sociais dominantes e um pouco com estratégias escolares discutíveis.

Eis porque, para discutir a propriedade das estratégias pedagógicas e quais tipos de problemas linguísticos em sala de aula são ou não socialmente relevantes, uma disciplina não é bastante. Convoca-se a Linguística Aplicada ao ensino de língua materna, aqui pensada não apenas como aplicação pedagógica dos conhecimentos linguísticos, mas como campo de intersecção de vários saberes, pois para reiterarmos com Possenti (apud GERALDI, 2006, p. 33), “para que um projeto de ensino de língua seja bem-sucedido, uma condição deve ser necessariamente preenchida, e com urgência: que haja uma concepção clara do que seja uma criança e do que seja uma língua”.

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3 LINGUÍSTICA APLICADA: O QUE VEM A SER

Como ponto de partida, cabe dizer que a linguística aplicada – não se restringindo à mera aplicação dos conhecimentos linguísticos à prática em sala de aula e dissociando-se da ideia de análise da linguagem apenas dentro dos construtos teóricos da Linguística – constitui-se como disciplina autônoma a esses mesmos estudos linguísticos, na medida em que estabelece diálogo com a maior diversidade de disciplinas que se prestem a melhor refletir sobre a linguagem e a educação.

Transcende, portanto, o que é admitir já um caráter político, a ideia de uma ciência voltada para solucionar problemas práticos de ensino e aprendizagem – tanto de língua materna, quanto de língua estrangeira –, ao mostrar-se incapaz de apontar soluções como verdades irrefutáveis apenas por estar apoiada na complexidade de construtos teóricos. Tanto que, em seus primórdios, no período pós-guerra,

como consequência, o trabalho dos linguistas aplicados ganhou conotações de atividade menos complexa e, possivelmente por isso, “menos científica”. [...] Cabia à Linguística Aplicada, sob esse olhar, endereçar o conhecimento linguístico a algum objeto, não constituindo, ela mesma, um estudo teórico em si, mas tão somente a colocação em uso de teorias previamente dadas (RODRIGUES, 2011, p. 20).

De fato, segundo Coracini (2003, p. 28), a preocupação da linguística aplicada, se pensada assim, recairia quase exclusivamente sobre “estratégias de ensino e aprendizagem, abordagem mais sistemática de gramática, de uso de linguagem para comunicação, dentre outros aspectos”, a despeito de se pensar questões centrais, como: interação e aprendizagem, projetos de letramento, interações culturais em contextos pedagógicos, aprendizagem de segunda língua, enfoques discursivo e sociocultural da linguagem, como também projetos sobre aquisição e desenvolvimento da escrita, da leitura, e habilidades orais, de letramento e de alfabetização.

Se a linguagem não é um sistema imutável e fixo, se tampouco o sujeito é um ser falante inteiramente consciente de seus atos, isso implica em reconhecer que tanto a língua quanto os sujeitos se modificam nos processos de interação permeados por determinantes sociais. Então, se passamos a pensar a disciplina com enfoque no ensino de língua materna, logo sobrevém a dúvida:

O que é ensinar português, se não é meramente ensinar o padre-nosso ao vigário. Isto é, em que medida e em que sentido podemos ensinar a língua materna a pessoas que a utilizam com todo o domínio necessário para se expressar e se comunicar na sua vida cotidiana? É ensinar a norma culta? É ensinar a língua escrita? É ensinar o falante a perceber (para situar-se inclusive socialmente) os diferentes níveis, registros ou usos da linguagem que ele – como falante natural da língua portuguesa – pode dominar? (LEITE, 2006, p. 19).

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Assim, para refletir sobre tais questões faz-se necessário aliar conhecimentos de diversas áreas – filosofia, antropologia, sociologia, linguística variacionista etc. – de modo a compor uma disciplina que vá além do enquadramento de uma linha de pensamento, para se constituir como campo de intersecção de disciplinas, ou seja, capaz de arregimentar uma transdisciplinaridade voltada para articular diversos domínios do saber sobre a linguagem e o aprendizado de línguas fora do domínio exclusivo do mundo das letras.

Dessa forma, a linguística aplicada torna possível criar elos de colaboração, a princípio insuspeitados, e de interfaces dinâmicas que se deslocam do saber específico de cada disciplina específica, promovendo menos do que saberes emprestados, construções conjuntas de conceitos a partir da interação de disciplinas, dentre as quais cabe relacionar: pedagogia, ergonomia, história, comunicação, sociolinguística, psicologia, etnografia da escola, linguística, psicolinguística, filosofia, tradução, análises da conversação e do discurso, etnografia da fala, dentre outras.

Transdisciplinaridade envolve mais do que a justaposição de ramos do saber. Envolve a coexistência em um estado de interação dinâmica, o que Portella (1993) chamou de esferas de coabitação. [...] Novos espaços de conhecimento são gerados, passando-se, assim, da interação das disciplinas à interação dos conceitos e, daí, à interação das metodologias (RODRIGUES, 2011, p. 28).

Essa transdisciplinaridade característica da linguística aplicada advém do seu surgimento histórico, isto é, de ela ter se desenvolvido no ambiente posterior à Segunda Guerra Mundial como forma de atender a necessidades urgentes de comunicação, de ensino e de aprendizado de línguas estrangeiras, o que convocaria os saberes científicos de diversas áreas a refletir sobre o ensino de línguas fora do sólido construto da linguística saussuriana de natureza estruturalista.

Quer dizer, pouco a pouco as teorias linguísticas aparentemente pensadas, até ali, mais abstratamente, foram substituídas por uma forma de pensamento que refletisse a linguagem em situações concretas de uso, levando os saberes a dar um passo distinto do propugnado por Saussure, que, ao pensar a Parole/fala como heteróclita, de certo modo concentrou os estudos linguísticos em aprofundar os estudos da Langue/língua.

Essa forma primeira de “substituição de saberes” levaria a linguística aplicada a um grande volteio ao redor de técnicas mais rápidas de aprendizagem que coadunavam com o materialismo mercadológico norte-americano, portanto ancorando-se em modelos formais de linguagem que evidentemente excluíam o caráter sociointeracional da linguagem:

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Assim, sob essa perspectiva, não era um campo de estudos potencialmente capaz de criar teorias; cabia-lhe apenas dar aplicabilidade a teorias produzidas nos estudos formalistas. O linguista aplicado, desse modo, seria um consumidor ou usuário de teorias; estaria focado no estudo da língua e da Linguística no que concerne a problemas práticos, tais como lexicografia, tradução, patologias da fala, ensino de línguas, entre outros enfoques (RODRIGUES, 2011, p. 20).

Essa interface de natureza declaradamente aplicacionista levou os partícipes da Linguística Aplicada a uma simplificação extrema das proposições teóricas até então relevantes, apoiados em certas ‘teorizações formais’ a seu ver capazes de propor revisões nas abordagens gramaticais normativas em sala de aula: “um dos principais eixos de argumentação era a distinção entre gramática internalizada (que remetia ao conceito de Gramática Universal, de Chomsky) e gramática normativa, entendida como não científica e excludente” (RODRIGUES, 2011, p. 22).

Paulatinamente, a par da compreensão da complexidade da língua em seu construto sociocultural, essa concepção quase mecanicista da linguística aplicada em sua fase inicial é superada pelas sólidas teorizações acerca da língua em uso e das questões relevantes a ela inerentes, desfazendo-se a ideia de uma linguagem que pairasse além do construto social, pois “é inadequado construir teorias sem considerar as vozes daqueles que vivem as práticas sociais que queremos estudar; mesmo porque, no mundo de contingências e de mudanças velozes em que vivemos, a prática está adiante da teoria” (LOPES, 2006 apud RODRIGUES, 2011, p. 31).

Bem ao contrário, “a Linguística Aplicada, nesse novo contexto, toma o sujeito social como heterogêneo, fragmentado, um sujeito historicamente inserido em um contexto” (RODRIGUES, 2011, p. 31). Como veremos posteriormente, estamos a esboçar preliminarmente conceitos que vão fundamentar a práxis teórica em Bakhtin, dos quais se depreende que a língua vive onde vivem as pessoas, que sua natureza é interacional e enunciativa, que, portanto, sua existência jamais se desprega da política e da história.

Comprova-se assim que o conhecimento haurido pela transdiciplinaridade, em não sendo, como vimos até aqui, elaborado fora de situações concretas para se formar um novo campo de estudo, tem de ser efetivamente um conhecimento situado, gerado em e aplicado em determinado contexto.

Cada vez mais se compreende a importância de estudar a vida social a partir das redes práticas, instrumentos e instituições específicas, onde a ação humana se desenvolve. Dessa forma, tem-se insistido em Linguística Aplicada, como também em várias disciplinas, na necessidade de construir conhecimento situado, em que se ressalta a centralidade da ação situada para se ter acesso à compreensão da vida social (ROJO, 2008, p. 74).

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UNIDADE 2 | LINGUÍSTICA EM AÇÃO

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LEITURA COMPLEMENTAR

A LÍNGUA DE EULÁLIA

Marcos Bagno

- Pode ser – diz Irene. – Mas mesmo deixando de lado os índios e os imigrantes, nem por isso a gente pode dizer que no Brasil só se fala uma única língua. Talvez vocês se surpreendam com o que vou dizer agora, mas não existe nenhuma língua que seja uma só.

- Como assim, Irene? – pergunta Emília, espantada. – Que quer dizer isso?- Isso quer dizer que aquilo que a gente chama, por comodidade, de

português, não é um bloco compacto, sólido e firme, mas um conjunto de “coisas” aparentadas entre si, mas com algumas diferenças. Essas “coisas” são chamadas variedades.

Toda língua varia

- Puxa vida, estou entendendo cada vez menos – queixa-se Sílvia.- Vamos bem devagar para as coisas ficarem claras – propõe Irene. – Você

certamente já ouviu um português falar, não é?- Já – responde Sílvia.- Já percebeu as muitas diferenças que existem entre o modo de falar do

português e o modo de falar nosso, brasileiro. De que tipo são essas diferenças? Vamos ver algumas delas: [diferenças fonéticas, diferenças sintáticas, diferenças lexicais, diferenças semânticas, diferenças no uso da língua]. Tudo bem até agora? – pergunta Irene.

- Tudo bem – responde Sílvia.- Essas e outras diferenças – prossegue Irene – também existem, em grau

menor, entre o português falado no Norte-Nordeste do Brasil e o falado no Centro-Sul, por exemplo. Dentro do Centro-Sul existem diferenças entre o falar, digamos, do carioca e o falar do paulistano. E assim por diante.

Irene faz uma pequena pausa. Toma um gole de chá e continua:- Até agora, falamos das variedades geográficas: a variedade portuguesa, a

variedade brasileira do Norte, a variedade brasileira do Sul, a variedade carioca, a variedade paulistana... Mas a coisa não para por aí. A língua também fica

Entretanto, cabe destacar que antes de a linguística aplicada encontrar essas novas formas de reinserção do saber, houve contribuições relevantes e ainda válidas, advindas das experimentações da segunda metade do século XX, como é o caso das pesquisas em Sociolinguística, as quais puseram em destaque os aportes teóricos da linguística variacionista, contribuindo, assim, para se pensar a língua em uso, na concretude das situações reais de fala, por sujeitos que, como no caso brasileiro, se valem efetivamente de uma língua como a de “Eulália”.

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TÓPICO 1 | LINGUÍSTICA E LINGUÍSTICA APLICADA

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diferente quando é falada por um homem ou por uma mulher, por uma criança ou por um adulto, por uma pessoa alfabetizada ou por uma não alfabetizada, por uma pessoa de classe alta ou por uma pessoa de classe média ou baixa, por um morador de cidade e por um morador do campo e assim por diante. Temos então, ao lado das variedades geográficas, outros tipos de variedades: de gênero, socioeconômicas, etárias, de nível de instrução, urbanas, rurais etc.

- E cada uma dessas variedades equivale a uma língua? – pergunta Emília.- Mais ou menos – responde Irene. – Na verdade, se quiséssemos ser

exatas e precisas na hora de dar nome a uma língua, teríamos de dizer, por exemplo, falando da Vera: “Esta é a língua portuguesa, falada no Brasil, em 2001, na região Sudeste, no estado e na cidade de São Paulo, por uma mulher branca, de 21 anos, de classe média, professora primária, cursando universidade” etc. Ou seja, teríamos de levar em conta todos os elementos – chamados variáveis – que compõem uma variedade. É como se cada pessoa falasse uma língua só sua...

- Já entendi – diz Emília. – É o mesmo que acontece com a letra da gente, não é? Cada um tem a sua letra, o seu jeito de escrever, que é único e exclusivo, e que até serve para identificar uma pessoa, mas que ao mesmo tempo pode ser lido e entendido pelos outros.

Toda língua muda

- Deu para entender o que é uma variedade, Sílvia? – pergunta Irene.- Deu, sim, é até mais fácil do que eu pensava – responde a estudante de

Psicologia.[Nesse momento, Irene discursa sobre as diferenças do português falado

no século XIII, no século XVI e nos dias de hoje, constatando que, mesmo em se tratando da mesma língua, temos dificuldade de compreender o português falado em outros séculos e outros contextos]

- Foram todos escritos em português, não é? – arrisca Sílvia.- Sim – responde Irene.- Por que será então que eles vão se tornando cada vez menos compreensíveis

para um brasileiro no início do século XXI? – quer saber Vera.- Porque toda língua, além de variar geograficamente, no espaço, também

muda com o tempo. A língua que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início da colonização, e também é diferente da língua que será falada aqui mesmo dentro de trezentos ou quatrocentos anos!

- Parece lógico – comenta Sílvia. – Todas as coisas mudam, os costumes, as crenças, os meios de comunicação, as roupas... até os bichos evoluíram e continuam evoluindo... Por que a língua não haveria de mudar, não é?

- É por isso – prossegue Irene – que nós linguistas dizemos que toda língua muda e varia. Quer dizer, muda com o tempo e varia no espaço. Temos até uns nomes especiais para esses dois fenômenos. A mudança ao longo do tempo se chama mudança diacrônica. A variação geográfica se chama variação diatópica. E é por isso também que não existe a língua portuguesa.

- Ah, não? – admira-se Emília. – Então o que é que existe?- Existe um pequeno número de variedades do português – faladas numa

determinada região, por determinado conjunto de pessoas, numa determinada

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época – que, por diversas razões, foram eleitas para servirem de base para a constituição, para a elaboração de uma norma-padrão. A norma-padrão é aquele modelo ideal de língua que deve ser usado pelas autoridades, pelos órgãos oficiais, pelas pessoas cultas, pelos escritores e jornalistas, aquele que deve ser ensinado e aprendido na escola. Vejam bem que eu disse aquele que deve ser, não aquele que necessariamente é empregado pelas pessoas cultas.

FONTE: BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2006, p. 19-24.

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RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você viu que:

• Os estudos estruturalistas de Ferdinand de Saussure aproximarem-se da concretude dos sujeitos falantes na medida em que seus continuadores passaram a aprofundar a relação entre língua e fala, ao observarem que a língua, tal como estudada por Saussure, permanecia com enfoque notadamente abstrato, e assim carecia de dados mais concretos da realidade dos falantes.

• Eugene Coseriu de certo modo corrigiu a abstração teórica de Saussure ao demonstrar que o falante acessa o sistema linguístico “língua” por meio de uma “norma” dessa mesma língua, esta última marcada pelos usos do contexto e de grupos sociais mais próximos ao falante. Estavam fundadas as bases da linguística variacionista, que ademais aprofundou as proposições de Coseriu ao situar as variações linguísticas em quatro formas de expressão: diastráticas, diacrônicas, diatópicas e diafásicas.

• Todas as línguas variam e as variedades linguísticas refletem as variedades sociais, pois ninguém, em uma mesma comunidade linguística, fala da mesma forma que outrem, mas sim seguindo os modelos do grupo em que o falante ou a situação comunicativa determine qual a variedade da língua mais pertinente.

• O não reconhecimento do dinamismo da língua, de sua natureza viva, que a faz perpetuar-se enquanto se modifica, pode acarretar em um fenômeno sociopolítico indesejado, denominado preconceito linguístico, ao qual a escola deve sempre combater.

• A linguística aplicada aprofundou a relação da linguagem com o sujeito histórico ao ir além de uma função meramente reprodutora dos conhecimentos teóricos da Linguística. Ciência multifacetada de princípio, a linguística aplicada convoca várias áreas do saber, a refletir sobre os fenômenos sociais relevantes de modo a melhor fundamentar, teórica e metodologicamente, o ensino de língua materna.

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AUTOATIVIDADE

( ) A partir das palavras de certo modo “sinônimas”, citadas na contextualização, entre o português do Brasil (grupo de crianças, cego, adolescente) e suas correspondentes no português de Portugal (canalhas, invisual, puto), podemos concluir que o português brasileiro é o mais correto e elevado.

( ) Se a língua portuguesa nasceu em Portugal, disso decorre que o português correto é o português falado em Portugal.

( ) O que se vê a partir dessas diferenças de linguagem entre os dois países é uma das constatações de que as línguas variam.

( ) Podemos pensar que se o brasileiro não fala exatamente igual ao português isso se deve a uma forma de protesto, de certo modo, de afirmação nacional desde o dia da independência do Brasil.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) A sequência correta é V – F – V – F. b) ( ) A sequência correta é F – F – V – F.c) ( ) A sequência correta é V – F – F – F.d) ( ) A sequência correta é V – F – V – V.

2 A Linguística Aplicada, ao centrar-se em questões socialmente relevantes da linguagem e em seu uso concreto por ______ em interação, liberta-se da ideia inicial de ser mera ______ dos conhecimentos teóricos estudados pela ______. Constitui-se, assim, não como uma disciplina isolada, mas como ______ de conjunção de diversos saberes voltados para um foco comum.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) animais – língua – linguagem – meio b) ( ) seres – fala – linguística – disjunção c) ( ) sujeitos – aplicação – linguística – meiod) ( ) sujeitos – aplicação – língua – revelação

1 As variedades regionais de uma língua caracterizam, segundo a linguística variacionista, um tipo de variação conhecida como diatópica (dia, através de; topus, lugar). Um exemplo desse tipo de variação é o uso que se faz de uma mesma língua em diferentes nações, variações geralmente conhecidas como dialetos. É o caso que podemos observar entre a língua portuguesa falada em Portugal (português europeu) e a mesma língua falada no Brasil (português brasileiro). Assim a locução “grupo de crianças” no Brasil tem o mesmo valor semântico que “canalhas” em Portugal; um “cego” aqui é um “invisual” lá; um “puto” em Portugal é o mesmo que um “adolescente” no Brasil etc. A partir dessa reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

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3 O preconceito linguístico em boa parte se fundamenta em ideias falsas acerca da língua. O falso na língua, nesse sentido, foi chamado pelo linguista Marcos Bagno de Mito, que em geral está fundado ideologicamente contra as verdadeiras expressões da língua observadas e demonstradas pela ciência linguística. Considerando as sentenças, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Verdade linguísticaII- Mito e preconceito linguístico

( ) Só em Portugal se fala bem a língua portuguesa.( ) É preciso saber gramática para falar bem e adequadamente.( ) As pessoas que não estudaram em escolas são ignorantes e inferiores.( ) O português falado no Maranhão não é superior ao português falado em

outras regiões do Brasil.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I – II – I – II. b) ( ) II – I – I – II. c) ( ) II – II – II – I. d) ( ) II – II – I – II.

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TÓPICO 2

BAKHTIN E OS GÊNEROS DISCURSIVOS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Observamos, no tópico precedente, os avanços da linguística variacionista – desde as contribuições de Saussure, Eugene Coseriu e seus continuadores – e também os avanços da linguística aplicada, na medida em que ambas disciplinas aproximaram seus construtos teóricos e suas metodologias do contexto interacional e das práticas discursivas mediadas pela linguagem, que, como veremos, está no centro do pensamento revolucionário de Bakhtin.

Assim, conceitos como dialogismo, gêneros de discurso e as concepções de sujeito e linguagem marcados pela história e pelas ideologias, foram e ainda são teorizações de valor operatório e produtivo, que constituem na atualidade um campo de pesquisa de valor evidente para os estudos transdisciplinares em linguística aplicada.

De fato, de sua evolução inicial como disciplina mais ligada à linguística até chegar a incorporar postulações-chave do pensamento bakhtiniano, a linguística aplicada alcançará o que na contemporaneidade se configura, para falar com Rojo (2006 apud SIGNORINI, 2008, p. 74), “como a busca de solução para problemas contextualizados, socialmente relevantes, ligados ao uso da linguagem e do discurso, e a elaboração de resultados pertinentes e relevantes, de conhecimento útil a participantes sociais em um contexto de aplicação”.

Quando se pretende discutir o campo de ensino e didática de língua

materna, tanto no Brasil quanto no mundo, comparece em todo o campo conceitual a proposição bakhtiniana de gênero de discurso, ou gênero de texto, para alguns, com suas articulações e proposições de valor, assim como a sua contextualização sociopolítica, enquanto objeto de ensino de língua.

Quer-se com isso dizer que a entrada em cena dos gêneros discursivos otimizou a aquisição de competências curriculares – discussão, leitura e escrita – que tradicionalmente giravam ao redor de uma certa tipologia textual, a saber: descrição, narração, argumentação e dissertação; tornando-os dialógicos e mais palpáveis na medida em que situavam a língua em uso trazendo, por meio de um novo olhar sobre a linguagem, práticas voltadas a atuar e refletir sobre fenômenos sociopolíticos caros a educandos e educadores, como é o caso, comum a ambos, da cidadania.

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UNIDADE 2 | LINGUÍSTICA EM AÇÃO

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2 FUNDAMENTOS DA TEORIA EM BAKHTIN

Bakhtin representa uma reviravolta nas concepções de sujeito e de linguagem. Provocou um tal redirecionamento da pesquisa científica – como também ocorreu com Saussure após a publicação dos cursos de linguística geral – que fez a língua e sua fundamentação migrarem para o campo da interação social, da ideologia e da história.

Vale lembrarmos que Círculo de Bakhtin é a expressão cunhada por pesquisadores contemporâneos para se referir ao grupo de intelectuais russos que se reunia regularmente no período de 1919 a 1929, do qual fizeram parte Bakhtin, Volochinov e Medvedev. Bakhtin faleceu em 1975, Volochinov, no final da década de 1920 e Medvedev, provavelmente, na década de 1940. A opção pelo nome de Bakhtin para se referir ao grupo deve-se, em certa medida, à autoria de algumas obras de Volochinov (Marxismo e filosofia da linguagem, por exemplo) e Medvedev, atribuídas também a Bakhtin por alguns estudiosos, e pelo fato de a maioria dos textos do Círculo ser de autoria de Bakhtin. Os livros mais conhecidos do Círculo no Brasil são Marxismo e filosofia da linguagem (Bakhtin [Volochinov]), Estética da criação verbal (Bakhtin), Questões de literatura e estética (Bakhtin) e Problemas da Poética de Dostoievski (Bakhtin). Neste livro-texto usaremos tanto a expressão cunhada pelos pesquisadores quanto o nome Bakhtin para nos referirmos à teorização sobre a linguagem empreendida pelo grupo. Nas referências das obras, em que pese a questão da autoria, seguiremos a opção indicada pelo tradutor da obra, com a indicação da dupla autoria entre parênteses (RODRIGUES, 2011, p. 89).

IMPORTANTE

Tal efeito, que em Saussure abalou as ciências humanas e filosóficas em geral, em Bakhtin tornou-o eixo para se pensar a linguagem e o sujeito em relação à aprendizagem e ao ensino de língua materna, que passaram a adquirir uma clara dimensão sociointeracional cuja pauta começou a centrar-se nas teorias da enunciação e dos gêneros discursivos, na contramão das abordagens estruturalista e de ensino de gramática tradicional.

Bakhtin e seu Círculo ocuparam-se da construção de uma nova visão de língua e de linguagem, livre do subjetivismo da estilística de seu tempo e da abstração da linguística estrutural e do formalismo russo. Uma visão concreta do enunciado – tomado como unidade de sentido – que viesse a substituir tanto a sentença (oração) como o estilo em sua concepção tradicional (ROJO, 2008, p. 95).

Conceito operativo e central em sua obra é a teoria dos gêneros discursivos, em virtude da qual se faz necessário um preâmbulo das principais ideias do pensamento bakhtiniano que os fundamentaram, especialmente o dialogismo e a teoria da enunciação, visto que esses conceitos inverteram o modo tradicional de pensar das teorias linguísticas – que em geral se davam como construtos teóricos

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TÓPICO 2 | BAKHTIN E OS GÊNEROS DISCURSIVOS

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destinados a refletir, de fora, a realidade da linguagem –, mas que o pensamento do filósofo russo submeteu a uma outra ordem, na qual a teoria passou a refletir sobre as realizações sociocomunicativas entre sujeitos contextualizados no tempo e na história.

Se assim for, ou seja, se sob uma perspectiva social leva-se em conta a relação do sujeito na sociedade, da língua como meio de ação entre sujeitos, então também o pensamento se formaria por meio de um processo interacional e dinâmico de luta entre pensamentos próprios e pensamentos alheios, que acabariam se refletindo na expressão verbal de cada sujeito implicado.

“Se o diálogo permeia tudo, permeia a minha relação comigo mesma, então, não existe, na verdade, essa relação de um só. É tudo um resultado das relações, de linguagens, de vozes, ou seja, é tudo um resultado de relações polifônicas, dos recortes que você tem na sua relação com a linguagem” (FREITAS, 1994, p. 90).

2.1 O DIALOGISMO

FIGURA 8 – TEXTOS DA VIDA: DIÁLOGOS ENTRE ESCOLA E MUNDO

FONTE: Disponível em: <https://colegio8desetembro.files.wordpress.com/2009/11/mafalda4.jpg>. Acesso em: 20 jul. 2017.

Pioneiro dos estudos da interação social por meio da linguagem, Bakhtin estabelece o diálogo como eixo de interlocução entre os sujeitos. Nessa linha de raciocínio, a realidade fundamental da linguagem não seria apenas a constatação de haver um fator social inerente à língua – como pensava Saussure e todo o pensamento estruturalista dele decorrente, que a considerava como um sistema depositado na mente individual dos falantes –, mas sim a interação verbal, cujo fundamento “[...] é um sujeito social, histórica e ideologicamente situado, que se constitui na interação com o outro. Eu sou na medida em que interajo com o outro. É o outro que dá a medida do que sou. A identidade se constrói nessa relação dinâmica com a alteridade” (BRANDÃO, 2001 apud KOCH, 2011, p. 15).

Ao pensarmos em termos de linguística aplicada, um questionamento se faz salutar, a saber: qual impacto teria essa concepção dialógica de linguagem, de Bakhtin, sobre o ensino de língua, sobre a aprendizagem da leitura e da

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escrita? Quando substituímos o aprendizado convencional de sentenças que pairam acima da vivência concreta dos sujeitos em interação, quando a vida e a linguagem em diálogo passam a ser tomadas como fontes da enunciação, que resultados esperar?

Se o dialógico está na base de todas as relações do homem com o homem, com o mundo, com as coisas, com o conhecimento, evidentemente o social vai permear todas essas relações. Não é possível, pois, a produção do conhecimento sem que você tenha como referência o outro. Essa visão do dialógico teria de ser absorvida e entendida pelo pedagógico, porque o pedagógico continua monológico e, na medida em que existe este monólogo, ele não leva a nada (FREITAS, 1994, p. 89).

Tal forma de se posicionar, de colocar o diálogo como eixo das relações segundo uma concepção dialética de linguagem, habilitaria Bakhtin a contrapor a fragmentação da linguagem instrumentalizada tanto pelo subjetivismo idealista quanto pelo objetivismo abstrato.

De fato, na medida em que concebe a língua viva e em processo de evolução histórica a partir da realidade da interação verbal em situação concreta, a língua não pode mais ser pensada nem como sistema linguístico abstrato de formas da língua – objetivismo abstrato –, nem como psiquismo individual dos falantes – subjetivismo idealista.

A língua materna – sua composição vocabular e estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas [enunciados concretos] que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam (BAKHTIN, 2003, p. 282).

Assim, Bakhtin considera a concepção de homogeneidade da língua, originalmente pensada por Saussure, ligada ao objetivismo abstrato na medida em que tal concepção não prevê as efetivas relações dialógicas que se dão na concretude social dos sujeitos em interação. Essencialmente tal concepção de língua é abstrata por dar prevalência a entendê-la, não do ponto de vista dos falantes, mas como um objeto externo, exterior, que faz da língua, em última instância, “um objeto que precisa ser atingido e decifrado, analisado, adquirido. A própria língua perde o seu caráter de unidade social e é ensinada aos alunos como conjunto de códigos sem vida e sem significação, necessitando ser decifrada” (FREITAS, 1994, p. 105).

Ao contrário do objetivismo abstrato, que se recusa a conceber um sujeito histórico e em interação, o filósofo russo descreve a linguagem como um construto ideológico inerente às relações sociais. Assim, para Bakhtin (1997, p. 123), “a verdadeira substância da língua é constituída [...] pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua”.

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TÓPICO 2 | BAKHTIN E OS GÊNEROS DISCURSIVOS

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“A escola estuda a língua desligada da vida. Bakhtin argumenta que só há compreensão da língua dentro de sua qualidade contextual, [...] para ele a língua é um fenômeno puramente histórico e não pode ser estudado sem vinculações com suas funções sociais” (FREITAS, 1994, p. 105).

Por outro lado, contra o subjetivismo idealista, o autor combate a ideia de primazia do indivíduo, pois este, ao falar, sempre tem implicado alguém ou uma situação sociopolítica maior, que o levaria a conceber uma abordagem distinta de um “ato da fala de criação individual como fundamento da língua, dicotomizando vida interior-vida exterior, com prevalência no polo subjetivo. Para Bakhtin, o centro organizador de toda enunciação não é interior, mas está situado no meio social que envolve o indivíduo” (FREITAS, 1994, p. 104).

Com tal construção teórica, Bakhtin apresenta uma nova forma de compreensão do que seja a linguagem, acrescentando um terceiro modelo – a língua como processo de interação – aos dois modelos preexistentes que concebem a língua ora como produção exclusiva de uma consciência individual, cartesiana e autoritária, ora como uma instância comunicativa produzida fora do sujeito.

DICAS

Antes de prosseguirmos, convidamos você a aprofundar-se na presente temática através de uma breve releitura do item 3.2, do Tópico 2, da Unidade 1 do livro didático, em que esboçamos em linhas gerais as três formas de conceber a linguagem e suas possíveis consequências para as abordagens didáticas em sala de aula.

De fato, a concepção de linguagem varia conforme a concepção de sujeito a que ela se refere. Assim, pensar a língua, por exemplo, como representação do pensamento é o mesmo que associá-la a um sujeito individual dono de suas vontades e de suas ações, sujeito este que, aparentemente não ideológico, agindo, como em uma ficção, fora de um contexto real e histórico, pretende ter a sua representação mental captada pelo interlocutor tal como ele vê em sua mente.

Contra tal concepção “alienada” de sujeito e de linguagem “não ideológica”, reagiria o pensamento do círculo bakhtiniano demonstrando que a verdadeira situação discursiva nunca se dá fora da situação social de interação, isto é, de um alguém situado histórica e ideologicamente, para outro alguém, situado da mesma forma, para quem aquele se dirige.

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Nenhuma comunicação é neutra ou ingênua, no sentido de que nela estão em jogo valores ideológicos, dos sujeitos da comunicação. Em outras palavras, as relações entre sujeitos são marcadamente ideológicas e os discursos que circulam entre eles e que estabelecem os laços de manipulação e de interação são, por definição, também ideológicos, marcados por coerções sociais (BARROS, 2011, p. 50).

Assim, na concepção da linguagem como expressão do pensamento, que está na base de fundamentação do subjetivismo idealista, não haveria interação real entre as pessoas implicadas no contexto da interlocução, pois o sujeito da enunciação seria o único responsável pelos sentidos partilhados, e a língua, aqui pensada como um evento fora da história, serviria apenas como meio para transmissão dos pensamentos do falante para o ouvinte.

João Wanderley Geraldi sintetiza, de modo resumido e didático, as três concepções de linguagem que estudamos na primeira unidade do livro didático. Para o autor:

• A linguagem é a expressão do pensamento: essa concepção ilumina, basicamente, os estudos tradicionais. Se concebemos a linguagem como tal, somos levados a afirmações – correntes – de que pessoas que não conseguem se expressar não pensam.

• A linguagem é instrumento de comunicação: essa concepção está ligada à teoria da comunicação e vê a língua como código (conjunto de signos que se combinam segundo regras) capaz de transmitir ao receptor uma mensagem. Em livros didáticos, é a concepção confessada nas instruções ao professor, nas introduções, nos títulos, embora em geral seja abandonada nos exercícios gramaticais.

• A linguagem é uma forma de interação: mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana. Por meio dela, o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não preexistiam à fala.

As três concepções corresponderiam a três correntes de estudos linguísticos, respectivamente: gramática tradicional, estruturalismo, e linguística da enunciação.

FONTE: GERALDI, João Wanderley (org). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006.

NOTA

Por outro lado, a concepção de linguagem como inserida dentro de uma rede de comunicação (emissor, mensagem, receptor, referente, canal e código) retira da palavra o seu sentido vivencial e ideológico, de estar concretamente situada na boca de alguém que fala de modo a provocar/reagir algo em outro alguém, ambos relacionados simultaneamente.

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Os sujeitos da comunicação não podem ser considerados como casas vazias e sim como casas cheias de projetos, aspirações, emoções, conhecimentos, crenças, que vão determinar os modos de persuadir e as formas de interpretar. As estratégias de persuasão e as interpretações variam, assim, historicamente, de cultura para cultura, de sociedade para sociedade (de classe social para classe social). Fecha-se o círculo: os conhecimentos, crenças, sentimentos e valores dos sujeitos são resultantes de outras tantas relações de comunicação-manipulação-interação anteriores e vão se modificando e construindo, portanto, outros sujeitos a cada nova relação de comunicação (BARROS, 2011, p. 49).

Entretanto, na tese estruturalista do objetivismo abstrato, fundamentada pela ideia de linguagem como meio de comunicação, o sujeito está em uma relação reativa aparentemente guiada pelo sistema “língua”.

Na concepção de língua como código – portanto, como mero instrumento de comunicação – e de sujeito como (pre)determinado pelo sistema, o texto é visto como simples produto da codificação de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o conhecimento do código, já que o texto, uma vez codificado, é totalmente explícito. Também nessa concepção o papel do “decodificador” é essencialmente passivo (KOCH, 2011, p. 16).

Na contramão dessas duas concepções de linguagem, há a concepção dialógica e interacional da língua, em que os sujeitos permanecem ativos no que seria um processo unilateral de “comunicação”. Destarte, um dos aspectos da teoria bakhtiniana que se tornam centrais é que, no processo de comunicação, os falantes se constroem enquanto constroem juntos o texto, quer dizer, os participantes modificam-se, transformam-se, vão se sabendo enquanto interagem:

Há, portanto, uma inversão de perspectiva: os sujeitos da comunicação não são dados previamente, mas constroem-se ao comunicar-se. Bakhtin afirma que, no diálogo, constroem-se as relações intersubjetivas, mas também a subjetividade. Os sujeitos são, na verdade, substituídos por diferentes vozes que fazem deles sujeitos históricos e ideológicos (BARROS, 2011, p. 43).

2.2 A ENUNCIAÇÃO

Para Bakhtin (2003, p. 283), “aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas)”, o que implica em considerar como realidade fundamental da língua a interação verbal, portanto diametralmente oposta à concepção da linguística moderna saussuriana que pensa a língua como “sistema”.

A língua, nesse sentido não sistemático, é uma língua-discurso que se materializa através de enunciados que expressam a unidade real da comunicação, malgrado ser parcialmente colocada em funcionamento por um ato individual

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do discurso: “enquanto realização individual, a enunciação pode se definir, em relação à língua, como um processo de apropriação. O locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios, de outro” (BENVENISTE, 1970 apud GERALDI, 1996, p. 12).

O enunciado, nessa abordagem, é um acontecimento único com clara orientação social – de dimensão verbal e extra-verbal dadas entre um autor ativo, um destinatário também ativo e certa entonação expressiva valorativa – que jamais se repete em uma comunicação discursiva, malgrado também responda, em um processo dialógico, a outros enunciados anteriormente produzidos.

O enunciado é o produto da interação de dois (ou mais) sujeitos socialmente organizados. A palavra, o discurso, dirige-se a um interlocutor, seja ele imediato ou não, situado socialmente. Não há, pois, enunciado dirigido ao abstrato; o outro, mesmo que seja presumido ou um desdobramento do próprio eu, é a contrapartida, a medida da nossa fala (RODRIGUES, 2011, p. 94).

Por não surgir do nada, mas de inter-relações discursivas, o enunciado nunca é primeiro nem jamais será o último, pois todo enunciado refuta, complementa, afirma, nega, avalia, enfim, se posiciona perante outros enunciados já existentes ou apenas supostos, o que implica em dizer que cada enunciado traz as marcas dos enunciados que o antecederam, configurando-se como elo em uma cadeia discursiva.

Enunciado, para Bakhtin, é a “unidade real da comunicação verbal”. É o uso concreto da língua, sendo que a comunicação só existe “na forma concreta dos enunciados”. O enunciado é, portanto, individual, mas realizado por um interlocutor considerado como social, no sentido de que é perpassado sempre por outras vozes. Isto nos leva à compreensão das demais características essenciais do enunciado apontadas por Bakhtin. Se o interlocutor é social, isto significa que seu enunciado (ou seu discurso, sua comunicação) sempre se dirige a alguém. A pessoa com quem nos comunicamos, por sua vez, é também um interlocutor, que responde ativamente, concordando, discordando, completando ou adaptando a interlocução do outro. Essa compreensão responsiva ativa, de que nos fala Bakhtin, difere radicalmente da concepção linguística tradicional, que considerava o diálogo como um processo de comunicação entre um locutor ativo e outro passivo. A linguagem não pode ser considerada apenas como a comunicação de um que comunica e outro que recebe, de forma mecânica, exata, como a gramática prescreve. Na verdade, as fronteiras do enunciado, tais como Bakhtin as compreende, não se limitam ao fim de uma fala e início de outra, simplesmente. As fronteiras são traçadas por alternâncias entre os sujeitos enunciadores, e são delimitadas pela instância social e não apenas pelos fatos de ordem linguística.

FONTE: GESSER, A. et al. Linguística Aplicada. Disponível em: <http://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFormacaoEspecifica/linguisticaAplicadaAoEnsinoDeLinguas/assets/429/Texto_Base_Ling_Aplic.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2017.

NOTA

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Se os enunciados, apesar de seu ineditismo vivencial, não inauguram propriamente novas temáticas do discurso sem responderem a outras já preexistentes, implica em reconhecer para as formas possíveis de enunciados certa estabilidade típica ou coerções existentes na comunicação discursiva sem as quais a comunicação se tornaria inviável. A estes enunciados Bakhtin (2003, p. 283) chama de gêneros do discurso: “se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos que criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez a cada enunciação, a comunicação discursiva seria quase impossível”.

3 A TEORIA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS

A problematização dos gêneros discursivos na comunicação esteve inicialmente ligada não aos estudos linguísticos em si, mas ao âmbito singular da literatura, quando Bakhtin se debruçava sobre a literatura francesa medieval – estudando fenômenos como a carnavalização em François Rabelais – e, de modo especialmente singular, quando aprofundou a sua pesquisa sobre a poética, a seu ver polifônica, de Fiódor Dostoievski:

O foco de Bakhtin, seu corpus e seu problema privilegiado, é o romance polifônico (Dostoievski, Rabelais). São a teoria da enunciação e o romance polifônico como objetos de estudo que demandam do Círculo uma revisão do conceito de gênero literário, que o estende para além da arte verbal: para a vida e para a ética, para além da estética (ROJO, 2008, p. 95).

O termo gêneros remonta à base indo-europeia gen-, que significa “gerar”, “produzir”. Acrescente-se que, em latim, relacionam-se com essa base o substantivo genus, generis (que significa “estirpe”, “linhagem”) e o verbo gigno, genui, genitum, gignere (que significa “gerar”, “criar”, “produzir”). Assim, para Faraco (2003, p. 108), “esse segmento vocabular se desenvolve a partir da semântica do processo de gerar (procriar) e dos produtos da geração (da procriação). Por essa breve digressão etimológica do termo, podemos observar duas noções teóricas distintas de gêneros do discurso que se constituíram historicamente: uma centrada no produto, de visão taxonômica, e outra centrada no processo, de visão interativa (RODRIGUES, 2011, p. 106).

NOTA

Para Bakhtin (2003), nós nos comunicamos por meio de enunciados situados pelos gêneros discursivos aos quais aqueles pertencem. O autor (2003, p. 279) ressalta que: “a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou

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doutra esfera da atividade humana, [que produzem] tipos relativamente estáveis de enunciados” a que denominou gêneros do discurso, e com os quais é possível prever grande diversidade de enunciados.

O deslocamento sucessivo dos gêneros literários para os gêneros linguísticos (Bakhtin, Voloshinov) e, finalmente, para os gêneros do discurso (Bakhtin), opera a extensão do conceito para todas as formas de discurso da vida e da atividade humana e recoloca-o, de forma sociossituada, no fluxo das mais variadas formas de relação social (esferas ou campos de atividade humana) (ROJO, 2008, p. 95).

Vimos, na primeira unidade do presente livro didático, que qualquer sujeito, independentemente do seu grau de escolarização, sabe comunicar-se em sua língua materna por ter implícita uma competência linguística internalizada que o faz operar uma certa gramática, saiba ele ou não desse conhecimento – gramática que chamamos de internalizada – que portanto independe de qualquer aprendizagem sistemática.

O diálogo com os estudos bakhtinianos [...] parece explicar a assunção do gênero do discurso (e não das formas, das normas, das regras, da gramática e das tipologias) como objeto de ensino das línguas e das linguagens. Se as tipologias e as gramáticas se apresentam como formas autoritárias, modelares, prescritivas, centrípetas; os gêneros são mais flexíveis e aptos a uma abordagem persuasiva, às apreciações de valor, à abordagem criativa, centrífuga (ROJO, 2008, p. 97).

Assim, os gêneros discursivos são apropriados pelos sujeitos do mesmo modo que a gramática internalizada, pois tal competência não advém de uma assimilação gramatical presente em dicionários e estudada enquanto conjunto de regras, léxico e estruturas sintáticas, mas sim através de enunciações concretas – dos gêneros discursivos que circulam em uma determinada área de comunicação – que os indivíduos de uma cultura compartilham entre si.

Em linhas gerais, Ingedore Koch apresenta as principais características dos gêneros discursivos ou textuais em conformidade com o contexto interacional de uso. Para a autora, “a competência sociocomunicativa dos falantes/ouvintes leva-os à detecção do que é adequado ou inadequado em cada uma das práticas sociais. Essa competência leva ainda à diferenciação de determinados gêneros de textos, como saber se se está perante uma anedota, um poema, um enigma, uma explicação, uma conversa telefônica etc. Há o conhecimento, pelo menos intuitivo, de estratégias de construção e interpretação de um texto. A competência textual de um falante permite-lhe, ainda, averiguar se em um texto predominam sequências de caráter narrativo, descritivo, expositivo e/ou argumentativo. Não se torna difícil, na maior parte dos casos, distinguir um horóscopo de uma anedota ou carta familiar, bem como, por outro lado, um texto real de um texto fabricado, um texto de opinião de um texto predominantemente informativo e assim por diante.

NOTA

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O contato com os textos da vida cotidiana, como anúncios, avisos de toda ordem, artigos de jornais, catálogos, receitas médicas, prospectos, guias turísticos, literatura de apoio à manipulação de máquinas etc. [...] Assim sendo, todos os nossos enunciados se baseiam em formas-padrão e relativamente estáveis de estruturação de um todo. Tais formas constituem os gêneros, ‘tipos relativamente estáveis de enunciados’, marcados sócio-historicamente, visto que estão diretamente relacionados às diferentes situações sociais. É cada uma dessas situações que determina, pois, um gênero, com características temáticas, composicionais e estilísticas próprias. [...] Dessa forma, em termos bakhtinianos, um gênero pode ser assim caracterizado:

• São tipos relativamente estáveis de enunciados presentes em cada esfera de troca: os gêneros possuem uma forma de composição, um plano composicional;

• Além do plano composicional, distinguem-se pelo conteúdo temático e pelo estilo;• Trata-se de entidades escolhidas tendo em vista as esferas de necessidade temática, o

conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor.

FONTE: KOCH, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2011.

Os gêneros, ao serem pensados como formas relativamente estáveis de enunciado, respondem de certo modo à liberdade do falante prevista na Parole saussuriana, pois enquanto Saussure acreditava que o falante iria ao sistema língua e produzia um idioleto/fala, ou seja, um modo próprio de expressar-se através do socioleto/língua; para Bakhtin o enunciado não seria uma combinação de formas livres da língua, mas sua expressão em gêneros discursivos dariam ao falante maior flexibilidade no trato com a linguagem do que as formas decorrentes do estruturalismo saussuriano.

Ao considerar os gêneros vinculados às atividades humanas, e sabendo que essas atividades jamais se esgotam, é reconhecer que também os gêneros discursivos da linguagem se dão em uma cadeia complexa e heterogênea de formas ligadas a cada esfera social em transformação. Bakhtin então propõe diferenciá-los, conforme as esferas culturais da comunicação, em gêneros primários e gêneros secundários.

Os gêneros primários dariam conta da ideologia do cotidiano nas comunicações discursivas mais imediatas, por exemplo, os relatos diários, a conversa familiar, o bilhete, a carta, situações de interação face a face etc., também podemos incluir as mensagens de celular e formas rápidas praticadas no mundo virtual, como facebook, instagram, whatssapp etc.

Os gêneros secundários dão conta das formas de comunicação e interação mais complexas, sistematizados em sistemas ideológicos solidamente constituídos, muitas vezes ligados à modalidade escrita da linguagem em cuja forma composicional tendem a ser monologizantes, como as esferas religiosa, acadêmica, científica, artística, jornalística, de que são exemplos a tese universitária, as editorias de jornal, os romances e poemas, os roteiros cinematográficos etc.

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O principal traço que distingue os gêneros primários não é propriamente as formas estáveis de enunciados, os agrupamentos estanques, mas sim a esfera social ao qual eles estão vinculados, portanto não há relação direta, como se poderia supor, entre os gêneros primários e a oralidade, assim como não há implicação necessária entre os gêneros secundários e a escrita.

Assim uma palestra, ainda que realizada oralmente, é um gênero secundário, pois se vincula a uma esfera da comunicação do âmbito das ideologias formalizadas e sistematizadas; enquanto um bilhete, apesar de escrito, é um gênero primário, uma vez que emerge da comunicação cotidiana imediata, no âmbito da ideologia do cotidiano (SOARES, 2009, p. 18).

Dessa forma, em não sendo formas estanques, a despeito da situação comunicativa e da situação de onde emergem, os gêneros se constituem enquanto marcas linguísticas e sociais de estabilidade relativa, pois podem transitar ou serem transferidos de uma esfera social à outra, adquirindo e dando origem a novas formas, especialmente quando os gêneros secundários absorvem e reelaboram dados diversos dos gêneros primários; formas que podem evoluir, desaparecer, serem novamente reabsorvidos, sempre em conformidade com as transformações históricas de cada cultura.

De fato, a crescente complexização das atividades humanas é uma marca histórica que relaciona diretamente esse processo de aparecimento, reelaboração ou desaparecimento dos gêneros discursivos, o que torna relevante para os sujeitos implicados nesse processo histórico é que quanto esses mesmos sujeitos mais participam de atividades ou compartilham um maior número de experiências, evidentemente acessam e compartilham também um maior número de gêneros discursivos:

A internet, por exemplo, possibilitou novas formas de interações discursivas e, consequentemente, o aparecimento de novos gêneros, como o e-mail, o Chat. O desenvolvimento dessas formas de comunicação verbal tem a sua origem em outros gêneros preexistentes, a carta, no primeiro caso, a conversa, no segundo. Todavia, o aparecimento desses novos gêneros não extinguiu e nem substituiu aqueles que o originaram (SOARES, 2009, p. 18).

Nos processos discursivos interacionais, ou mesmo no discurso individual, é o conhecimento dos gêneros do discurso que estabelece a medida de uma comunicação possível, que dá ao falante a direção por meio da qual, a cada instante e em cada meio de interação, poderá materializar sua intenção em enunciados: bilhete, relatos, ordens de serviço, crônica jornalística, poema, seminário etc. Comunicar-se e interagir em diversas esferas sociais pressupõe, portanto, o uso adequado das modalidades de gênero discursivo.

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TÓPICO 2 | BAKHTIN E OS GÊNEROS DISCURSIVOS

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Algumas modalidades de gêneros discursivos:

• Gêneros da esfera do cotidiano: conversação familiar, conversação social, diário íntimo, carta pessoal, convite etc.

• Gêneros da esfera jornalística: reportagem, entrevista, notícia, editorial, artigo etc.• Gêneros da esfera da publicidade: anúncio, prospecto etc.• Gêneros da esfera artística: poema, conto, romance, drama, fábula, história em quadrinhos

etc. • Gêneros da esfera científica: artigo, tese, conferência, resenha etc.• Gêneros da esfera da produção: ordem de serviço, manual de instrução, aviso (informações),

pauta etc.• Gêneros da esfera religiosa: sermão, encíclica, parábola etc.• Gêneros da esfera de negócios/administração: contrato, ofício, memorando, requerimento,

carta oficial, ata etc.• Gêneros da esfera jurídica: lei, decreto, petição etc.• Gêneros da esfera escolar: resumo, dissertação, seminário, livro didático etc.

NOTA

Assim, ao registrarem e dessa forma testemunharem as mudanças cotidianas e a transformação dos valores em sociedade, os gêneros discursivos acabam se constituindo enquanto elos entre as transformações sociais e as transformações linguísticas dadas através do tempo.

Diante dessa ressignificação da noção de gêneros, percebemos que a variedade e a riqueza dos gêneros são extremamente grandes, porque as possibilidades da atividade humana são inesgotáveis e porque, como já discutimos, em cada esfera existe um repertório de gêneros particulares que se diferencia e cresce à medida que a própria esfera se desenvolve e se complexifica (RODRIGUES, 2011, p. 108).

Como disse Bakhtin (2003, p. 268), é no gênero discursivo que está registrada a história de uma língua, pois “nenhum fenômeno novo (fonético, léxico, gramatical) pode integrar o sistema da língua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentação e elaboração dos gêneros e estilos”.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você viu que:

• A fundamentação teórica dos gêneros do discurso foi pautada por alguns postulados centrais do pensamento de Bakhtin, dentre os quais cabe destacar o dialogismo, a compreensão de língua como processo discursivo de interação social, a ideologia, e a língua em uso através do jogo das enunciações.

• Para Bakhtin, os gêneros do discurso dão-se a partir da constatação de que eles têm um caráter dinâmico e histórico, não sendo formas estáveis ou atividades estanques pautadas por determinadas características formais – definição esta que seria mais correlata ao estruturalismo saussuriano do que à concepção bakhtiniana.

• Os gêneros do discurso estão relacionados às diversas situações interativas das esferas sociais da comunicação humana e, portanto, a linguagem passa a ser pensada em interação entre emissores e receptores ativos, em acordo com os contextos ideológicos e as ações concretas de sujeitos situados historicamente.

• As postulações bakhtinianas se opuseram tanto às teses do subjetivismo idealista – que pensa a linguagem limitada a expressar conteúdos de ordem interior, como mera transmissão do pensamento de um indivíduo – quanto às teses do objetivismo abstrato, herdeiro do estruturalismo saussuriano, segundo o qual o sujeito, situado entre outros elementos da comunicação, estaria lançado aleatoriamente no jogo comunicacional, ora como emissor, ora como receptor/decodificador de mensagens.

• Ao contrário do subjetivismo idealista e do objetivismo abstrato, para Bakhtin a interação verbal se dá no diálogo e não em uma forma de comunicação unidirecional, ou face a face, mas de toda a esfera – histórica, dialógica e ideológica – da comunicação verbal.

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2 Bakhtin (1997), ao postular a tese de que a linguagem se dá na interação de sujeitos situados historicamente, desfaz as concepções de certo modo “alienadas” de linguagem presentes, ora no subjetivismo idealista, ora no objetivismo abstrato. Para o subjetivismo idealista a linguagem teria a função de expressar o pensamento de alguém independentemente do contexto social, associando-a a um modelo mental de expressão de pensamentos individuais. Para o objetivismo abstrato a linguagem é apresentada, por sua vez, apenas como um instrumento de comunicação, que paira a despeito da realidade histórica dos falantes. Considerando essas informações, associe os itens, utilizando o código a seguir:

1 Para Bakhtin (1997), a linguagem exerce um papel preponderante na formação ______ dos sujeitos e nos sistemas ______ da sociedade humana, pois a sua natureza _______ não faz a linguagem pairar acima da realidade concreta dos sujeitos, mas inserir-se de modo contínuo em um processo histórico de ______ sociodiscursiva.

AUTOATIVIDADE

FONTE: BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) dialógica – corporativos – interação – diálogo b) ( ) sociopolítica – corporativos – linguística – humanização c) ( ) dialogante – ideológicos – humana – interaçãod) ( ) sociopolítica – ideológicos – dialógica – interação

FONTE: BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.

I- Subjetivismo idealistaII- Objetivismo abstrato

( ) Advindo do estruturalismo saussuriano, tal corrente de pensamento sustenta que a linguagem é uma das peças salutares da esfera comunicacional.

( ) Propõe seis elementos da comunicação: emissor, mensagem, receptor, referente, código e canal. A linguagem, como um código linguístico, existiria a despeito da situação concreta de uso.

( ) Corrente que pensa a linguagem como desdobramento do próprio eu, de um sujeito que exteriorizaria o seu pensamento independentemente das condições históricas de produção de sentido.

( ) Nessa corrente de pensamento, o emissor é ativo, pois é ele quem emite a mensagem; o receptor é passivo, na medida em que sua função restringe-se a decodificar a mensagem do emissor.

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I – II – I – II. b) ( ) II – I – I – II. c) ( ) I – II – I – I. d) ( ) II – II – I – II.

FONTE: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

a) ( ) Certas expressões, como “era uma vez”, “alô”, e “misture os ingredientes para obter uma massa homogênea”, em nada podem ser associados a gêneros discursivos cujos enunciados costumam aparecer em “contos de fada”, “telefonemas” e “receita culinária”, respectivamente.

b) ( ) Segundo Bakhtin, nós sempre nos comunicamos – e nossos enunciados são sempre construídos e significados – por meio de modalidades de gêneros discursivos.

c) ( ) Devido à sua relação com o universo social, os gêneros discursivos impossibilitam ver, agir e pensar de modo a poder julgar o mundo.

d) ( ) Entre os gêneros discursivos e os enunciados não há relações linguísticas em comum.

3 Segundo Bakhtin (2003), há um elo inalienável entre os enunciados e os gêneros do discurso, pois aqueles se ancoram em formas típicas, relativamente estáveis, que estruturam o discurso entre sujeitos situados em uma determinada esfera social. Assim, os enunciados produzidos nas atividades humanas seriam sempre construídos a partir de um gênero do discurso, que pode variar, a título de exemplo, na esfera do trabalho (ordem, padronização), na esfera íntima (diálogo), na esfera jornalística (carta, editorial), na esfera escolar (livro didático, provas) etc. A partir dessa reflexão, é correto afirmar que:

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TÓPICO 3

GÊNERO DISCURSIVO EM SALA DE AULA

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Em se pensar, enquanto finalidade central da educação, a tarefa de constituir a escola como espaço de acesso ao universo de textos das mais diversas esferas sociais requer um redimensionamento dos currículos escolares de modo a que eles possam capacitar os educandos para um uso mais eficaz da linguagem, apontando para formas de uso que vão além das ações triviais de comunicação.

Assim, o ato de comunicar-se pode ser pensado não apenas como atividade diária de busca e transmissão de informações, mas também como forma de ação capaz de também desenvolver – a partir de uma abordagem sociointeracional da linguagem cuja fundamentação está em Bakhtin – a reflexão necessária para tornar os educandos sujeitos críticos, participantes e cidadãos.

Nesse sentido, autores filiados à Linguística Aplicada, ao repensarem o construto teórico em Bakhtin sob uma perspectiva transdisciplinar, reverberam a importância da elaboração de propostas didáticas que tornem mais operativos os trabalhos em sala de aula com gêneros discursivos, o que, em última instância, significa repensar o conceito de gênero desde a sua instância teórica bakhtiniana até em instâncias mais específicas da esfera escolar.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais, nesse sentido, ao incorporarem aos estudos linguísticos a dimensão histórica e político-ideológica proposta pelo Círculo de Bakhtin, revelam um caráter inovador que propõe ao ensino a discussão recontextualizada em torno dos gêneros do discurso, convocando os campos de saberes da linguística aplicada a um esforço conjunto de melhor didatização dos trabalhos com os gêneros.

Assim, o conceito de gênero do discurso, tal qual se deu como construto teórico em Bakhtin, passa a ser desarticulado de sua instância original para poder ser rearticulado como objeto de ensino de língua materna, dessa forma promovendo um deslocamento de sentido de modo a tornar relevante a sua reintrodução como elemento didático em sala de aula.

Entretanto, esse deslocamento dos gêneros do discurso – tal como ocorrem no mundo social, com toda a complexidade e heterogeneidade características dos eventos imprevisíveis da vida – em direção à esfera escolar pode acarretar o risco de vê-los reduzidos a formas estanques de enfoque didático. Destarte, a

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UNIDADE 2 | LINGUÍSTICA EM AÇÃO

abordagem dos gêneros na escola não pode prescindir de didáticas mais flexíveis e criativas que repensem continuamente a linguagem, seus usos e os modos de aprendizagem da realidade contemporânea – foro da linguística aplicada.

Pretender tal horizonte de inovação não significa abdicar do construto teórico bakhtiniano, mas sim reinseri-lo em contextos mais dinâmicos e reclamados pela atualidade. Assim os gêneros discursivos, e todas as abordagens socialmente relevantes para os educandos, devem inovar-se continuamente, mas sem jamais abdicar da tese bakhtiniana que concebe o texto como eixo de interação social.

2 AULA COMO GÊNERO DISCURSIVO

FIGURA 9 – LINGUAGEM COMO EVENTO NÃO ABSTRATO

FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/-Q-PmkQCtaSE/UXpxRyuvvII/AAAAAAAA-FK8/jb1nM3-Vi8E/s1600/601758_10151564295224631_552361827_n.jpg>. Acesso em: 20 jul. 2017.

Pensar os gêneros discursivos em sala de aula, numa perspectiva de Linguística Aplicada, é incorporar, para refletir acerca das questões socialmente relevantes para os educandos, uma perspectiva bakhtiniana cujo eixo se paute por priorizar aspectos didático-pedagógicos ligados à interação e aos aspectos sociais do discurso.

“A situação escolar apresenta uma particularidade: nela se opera uma espécie de desdobramento que faz com que o gênero deixe de ser apenas ferramenta de comunicação, passando a ser, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem” (KOCH, 2011, p. 56).

Uma dessas perspectivas, apontada por teóricos de filiação sociodiscursiva, seria incorporar às tipologias textuais tradicionalmente trabalhadas nas escolas – conhecidas como ordens do narrar, do relatar, do argumentar, do prescrever etc. – trabalhos didáticos e progressivos em torno dos gêneros do discurso, vinculando-os a cada tipo textual – narração, descrição,

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TÓPICO 3 | GÊNERO DISCURSIVO EM SALA DE AULA

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argumentação etc. – agrupando os diversos gêneros que mantêm uma mesma estrutura composicional à tipologia textual mencionada.

A ideia é de que o gênero é utilizado como meio de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares, particularmente no que diz respeito ao ensino da produção e compreensão dos textos, escritos ou orais. Definindo-se atividade como um sistema de ações, uma ação de linguagem consiste em produzir, compreender, interpretar e/ou memorizar um conjunto organizado de enunciados orais ou escritos, isto é, um texto (KOCH, 2011, p. 56).

Os gêneros discursivos na escola, ao serem aqui pensados enquanto dimensão textual, apontam para uma clara direção do texto como eixo central de interação a que devem pautar-se os saberes transdisciplinares que refletem a escola, e que se propõem a construir ferramentas didáticas que visam melhorar o desenvolvimento da linguagem e da aprendizagem.

Desenvolver, ou mesmo produzir linguagem – na acepção bakhtiniana do termo, e no modo como é retomada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – significa produzir discursos nunca de modo aleatório, mas vinculados às condições em que os próprios discursos são realizados, ou seja, enquanto processo de interação, que é quando alguém diz algo para outro alguém, de uma determinada forma, em um certo contexto.

Quando se interage verbalmente com alguém, o discurso se organiza a partir dos conhecimentos que se acredita que o interlocutor possua sobre o assunto, do que se supõe serem suas opiniões e convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de familiaridade que se tem, da posição social e hierárquica que se ocupa em relação a ele e vice-versa. Isso tudo pode determinar as escolhas que serão feitas com relação ao gênero no qual o discurso se realizará (BRASIL, 2000, p. 25).

Se os Parâmetros Curriculares foram pensados como liames de um projeto educativo comprometido com a cidadania, então costurar elos de sentido e aplicabilidade pedagógica entre linguagem e participação social passaria a ser a finalidade do construto educacional, cuja responsabilidade é “tanto maior quanto menor for o grau de letramento das comunidades em que vivem os alunos” (BRASIL, 2000, p. 23).

Assim, se propusermos um pequeno breviário do significado de letramento, aqui no sentido empregado nos Parâmetros Curriculares Nacionais – cabendo aqui destacar a não existência de um grau zero de letramento que tornasse impossível a participação dos sujeitos nas práticas sociais que envolvem a linguagem –, ele poderia ser entendido enquanto “produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever” (BRASIL, 2000, p. 23).

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UNIDADE 2 | LINGUÍSTICA EM AÇÃO

A título de exemplo, observemos o cotejamento entre algumas abordagens didáticas presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e sua filiação com algumas formulações teóricas do Círculo de Bakhtin:

NOTA

PCN BAKHTIN

Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que as caracterizam como pertencentes a este ou àquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino (PCN, p. 23).

Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de determinada(o) esfera/campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada esfera/campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1952-53/1979:262).

Ao tomar a língua materna como objeto de ensino, a dimensão de como os sujeitos aprendem e de como os sujeitos desenvolvem sua competência discursiva não pode ser perdida. O ensino de língua portuguesa deve se dar num espaço em que as práticas de uso da linguagem sejam compreendidas em sua dimensão histórica e em que as necessidades de análise e de sistematização teórica dos conhecimentos linguísticos decorram dessas mesmas práticas (PCN, p. 34).

As práticas de linguagem implicam dimensões, por vezes, sociais, cognitivas e linguísticas do funcionamento da linguagem numa situação de comunicação particular. Para analisá-las, as interpretações feitas pelos agentes da situação são essenciais. Essas interpretações dependem da identidade social dos atores e das representações que eles têm dos usos possíveis da linguagem e das funções que eles privilegiam de acordo com sua trajetória. Nesse sentido, as práticas sociais “são o lugar de manifestações do individual e do social na linguagem” (BAUTIER, 1995, p. 203).

FONTE: SIGNORINI, Inês (org.). [Re]discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola editorial, 2008, p. 93.

As práticas sociais de distintos grupos sociais são, portanto, diversas, fator que comprova a validade operacional de conceber a linguagem num sentido bakhtiniano, como processo mediador de interlocução entre sujeitos situados em lugares e momentos particulares da história.

Nesse sentido, será contundente a redação dos Parâmetros Curriculares, ao afirmar que “se produz linguagem tanto numa conversa de bar, entre amigos, quanto ao escrever uma lista de compras, ou ao redigir uma carta – diferentes práticas sociais, das quais se pode participar” (BRASIL, 2000, p. 24).

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TÓPICO 3 | GÊNERO DISCURSIVO EM SALA DE AULA

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Como se vê: uma conversa de bar, uma lista de compras, a redação de uma carta pessoal ou oficial etc., enquanto formas relativamente estáveis de enunciados disponíveis em uma certa cultura, não se produzem no vazio, mas se relacionam com outros enunciados já existentes e compõem “famílias de textos” que compartilham características comuns organizadas enquanto gêneros discursivos:

É por isso que, quando um texto começa com “era uma vez”, ninguém duvida de que está diante de um conto, porque todos conhecem tal gênero. Diante da expressão “senhoras e senhores”, a expectativa é ouvir um pronunciamento público ou uma apresentação de espetáculo, pois sabe-se que nesses gêneros o texto, inequivocamente, tem essa fórmula inicial (BRASIL, 2000, p. 26-27).

Assim, a análise aplicada dos gêneros discursivos em sala de aula não pode se dar de modo estático ou prescritivo, como é frequente no ensino tradicional, mas como elemento dinamizador didático e pedagógico a par com o interacionismo discursivo, posto que “os sujeitos não se enunciam por palavras ou orações, mas por enunciados (embora os enunciados verbais sejam compostos por palavras e orações), que são as unidades concretas e reais da comunicação discursiva, ou seja, da interação” (BAKHTIN, 2003, p. 283).

Eis o porquê da necessidade de identificarmos os modos como os gêneros discursivos são apropriados no discurso escolar, para continuamente reaproximá-los de sua origem social e de modo a também redimensionar a escola enquanto lugar autêntico de comunicação.

Ao retomar a bibliografia específica que trata das aplicações dos gêneros discursivos em sala de aula, Koch identifica, a par com autores de linhagem bakhtiniana, três modos de abordagem do ensino:

1. O gênero torna-se uma pura forma linguística e o objetivo é o seu domínio: o fato de o gênero continuar a ser uma forma particular de comunicação entre professores e alunos não é absolutamente tematizado e os gêneros são estudados totalmente isolados dos parâmetros da situação de comunicação. Sequências estereotipadas balizam o avanço através das séries escolares, em geral “descrição, narração, dissertação”, às quais, por vezes, se acrescentam outros tipos, como resumo, a resenha, o diálogo. A produção de textos é concebida como representação do real, exatamente como ele é, ou do pensamento, tal como é produzido. Por isso, os gêneros devem-se ordenar segundo uma sequência que vai daqueles que descrevem as realidades mais simples (descrições de objetos ou de eventos) até as mais complexas, que descrevem o pensamento (dissertação etc.). Os gêneros são “naturalizados”: sua forma não depende das práticas sociais, mas são vistos como modelos socialmente valorizados de representação do real ou do pensamento.

2. A escola é tomada como autêntico lugar de comunicação e as situações escolares como ocasiões de produção/recepção de textos. As ocasiões de produção de textos se multiplicam: na classe, entre classes, entre escolas – texto livre, correspondência

NOTA

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UNIDADE 2 | LINGUÍSTICA EM AÇÃO

escolar, jornal da classe, da escola, murais etc. Os gêneros são, portanto, resultado do próprio funcionamento da comunicação escolar e sua especificidade é o resultado desse funcionamento. Há também uma naturalização, mas de outra ordem: a situação de comunicação é vista como geradora quase automática do gênero, que não é descrito ou ensinado, mas aprendido pela prática escolar. Aprende-se a escrever, escrevendo, numa progressão que se constitui segundo uma lógica que depende tão somente do processo interno de desenvolvimento.

3. Nega-se a escola como lugar particular de comunicação, ou seja, age-se como se houvesse continuidade absoluta entre o exterior da escola e o seu interior. A preocupação predominante é a de diversificar a escrita, de criar situações autênticas de comunicação, de levar o aluno ao domínio do gênero exatamente da forma como funciona nas práticas de linguagem de referência. Neste caso, torna-se impossível pensar numa progressão, pois é a necessidade de dominar situações dadas que está no centro da concepção, já que o ensino visa, quase que imediatamente, ao domínio de ferramentas necessárias para funcionar nestas práticas.

FONTE: KOCH, Ingedore G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2011, p. 57.

Entretanto, a viabilidade de tais objetivos na especificidade do ambiente educacional exige um redimensionamento dos gêneros do discurso tal como eles se apresentam em realidades fora da escola, eis porque se faz necessário transformar didaticamente os gêneros de modo a simplificá-los ou a conferir ênfase a algumas dimensões pedagógicas apropriadas ao contexto escolar.

Cabe, portanto, à escola, viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los. Isso inclui os textos das diferentes disciplinas, com os quais o aluno se defronta sistematicamente no cotidiano escolar e, mesmo assim, não consegue manejar, pois não há um trabalho planejado com essa finalidade (BRASIL, 2000, p. 30).

Nessa linha de raciocínio, o gênero discursivo passaria a ser assumido enquanto variação do gênero de referência, visto que na escola ele é pensado em meio a dinâmicas de ensino e aprendizagem, o que lhe confere um caráter complexo, especialmente se confrontado com práticas de linguagem fora de sua realização espontânea, como é o caso das instituições educacionais.

Assim, pretende-se colocar os educandos em situações de comunicação o mais próximo possível das situações verdadeiras, para que possam as experienciar tal como os gêneros discursivos se dão na esfera social de seu surgimento, isto é, enquanto formas relativamente estáveis que se enunciam em situações cotidianas, em hábitos naturalizados pela linguagem, que também devem participar do processo de ensino e aprendizagem.

Entretanto, é necessário preservar o vínculo entre os enunciados e a situação social a eles correspondente, sob pena de, ao falar com Rodrigues (2011, p. 102), “se desconsiderarmos essa dimensão social, perdemos a noção de enunciado, pois, abstraída da situação de interação, a dimensão verbal perde a sua

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TÓPICO 3 | GÊNERO DISCURSIVO EM SALA DE AULA

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condição de unidade de interação para se tornar uma estrutura textual apenas”.

Não abstrair os enunciados da situação de interação entre sujeitos – que, em Bakhtin, se dá como o lugar produtivo de linguagem e como “centro organizador e formador da atividade mental” (GERALDI, 1996, p. 28) – requer, antes de tudo, que se compreenda a dimensão dupla dos enunciados:

Sua dimensão verbal (ou outro sistema semiótico, como a música, a pintura, o desenho etc.) e sua dimensão social. Fazem parte dessa dimensão o horizonte espacial e temporal do enunciado (quando e onde foi proferido), o horizonte temático (quais seus objetos/temas de discurso) e o horizonte axiológico (em que esfera social é proferido, que valores atribui ao que enuncia, uma vez que não há enunciados neutros) (RODRIGUES, 2011, p. 102).

Nessa perspectiva, o processo de ensinar gêneros do discurso seria uma forma de capacitar, tanto educandos quanto educadores, para a ação/atuação adequada a cada contexto sociocomunicativo:

A construção de esquemas de utilização dos gêneros levaria à possibilidade de adaptá-los a cada situação particular, ao mesmo tempo que prefiguraria as ações linguísticas possíveis. Entende o domínio (maestria) do gênero como o próprio domínio da situação comunicativa, domínio este que se pode dar através do ensino das capacidades de linguagem, isto é, pelo ensino das aptidões exigidas para a produção de um gênero determinado (KOCH, 2011, p. 55).

Com isso, visa-se desenvolver nos educandos capacidades que possam ir além dos próprios gêneros discursivos, que possam ser transferíveis a outras modalidades de gêneros, posto que eles não apenas instrumentalizam as práticas de linguagem e aprendizagem de língua materna, mas também porque potencializam nos sujeitos – educandos e educadores – uma maior capacidade de inserção e, consequentemente, de participação ativa nas diversas esferas sociais.

3 O TEXTO COMO EIXO DE INTERAÇÃO SOCIAL

Marca inicial decorrente do pensamento bakhtiniano é a priorização da abordagem do texto como unidade real e concreta da comunicação discursiva, portanto o texto não se dá na concretude comunicativa como um conjunto de léxico e sentenças que, como se tivesse existência própria, pairasse no universo social acima das cabeças dos falantes, nelas se depositando apenas quando de sua necessidade de uso.

Para Bakhtin, o texto (verbal – oral ou escrito – ou também em outra forma semiótica) é a unidade, o dado primário e o ponto de partida para todas as disciplinas do campo das ciências humanas, apesar das suas finalidades científicas diversas. Ele é a realidade imediata para o estudo do homem social e da sua linguagem, pois a constituição do homem social e da sua linguagem é mediada pelo texto (RODRIGUES, 2011, p. 103).

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UNIDADE 2 | LINGUÍSTICA EM AÇÃO

Para melhor contextualizar, utilizemos uma aproximação metafórica: a língua não está guardada dentro de uma caixa de ferramentas que eventualmente o falante, ao querer se comunicar com outrem, abrisse e de dentro dela retirasse o léxico, o vocabulário, as sentenças, as orações, para com essas ferramentas se comunicar, e após ter concluído o evento comunicativo, novamente as guardar na caixa de ferramentas da língua, pronto a reabri-la na ocasião de uma nova necessidade de uso.

Ora, é contra essa visão abstrata da língua que se concretizaria em forma de um texto submetido a condições aleatórias que Bakhtin opõe-se, considerando-a alienada e lhe opondo, como base da verdadeira textualidade, sua condição ideológica e dialógica por excelência, “na qual os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, o texto passa a ser considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos” (KOCH, 2011, p. 17).

O texto, sob essa perspectiva, não pairaria acima das cabeças dos falantes, mas se enunciaria – isto é, se apresentaria formalmente como um enunciado – sempre em uma determinada situação histórica particular, enquanto fruto da ação entre um locutor e um interlocutor, que mantêm relações dialógicas como outros textos-enunciados.

Nessa linha de pensamento, o texto aparece como elemento fundamental de mediação entre o homem social e a sua linguagem, e pode ser observado sob dois ângulos distintos e complementares:

O polo da língua como sistema e do texto na sua imanência, e o polo da língua como discurso e do texto na sua condição de enunciado. O primeiro polo do texto, abstraído (retirado) da sua situação social, está relacionado com tudo aquilo que é e pode ser reproduzido e repetido no texto. [...] O segundo polo do texto é o do acontecimento irrepetível do enunciado, que pertence ao texto, mas que só se manifesta na situação, na interação com outros textos (enunciados) (RODRIGUES, 2011, p. 103-104).

É notória a presença, no primeiro polo de abordagem do texto, da visão estruturalista que fundamenta o objetivismo abstrato combatido por Bakhtin. Em tal visão estruturalista, a língua poderia ser decomposta e analisada independente da situação real de comunicação, aparecendo como realização “de um autor, de uma época, da língua nacional ou ainda para a potencial língua das línguas” (RODRIGUES, 2011, p. 104).

No polo oposto, Bakhtin sustenta o texto, não como estrutura, mas como conjunto de enunciados permeado por relações dialógicas dadas através de gêneros do discurso sempre amarrados a uma determinada situação histórica de interlocução social. Nesse sentido, a mola mestra de estudo da língua, cara aos professores de língua materna, seria o estudo do texto. “É no texto que a

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língua – objeto de estudo – se revela em sua totalidade, quer enquanto conjunto de formas e de seu reaparecimento, quer enquanto discurso que remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas dimensões” (GERALDI, 1993, p. 135).

Assim, disse Bakhtin (2003, p. 282), a língua materna – com sua composição vocabular e estrutura gramatical – é aprendida num processo contínuo de leitura e construção de enunciados, e “não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que nós ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam”.

A enunciação, nesse sentido, ao colocar a língua em funcionamento,

pressupõe um sujeito que se instala na língua e faz dela o centro de referência de seu discurso, também postulando, em contrapartida, a presença de um outro interacional e partícipe dos processos de comunicação social, que assim expressam uma relação dialética com o mundo.

Em se tratando do ato enunciativo, Benveniste (1970 apud GERALDI, 1996, p. 13) descreve algumas condições salutares para se compreender o mecanismo da enunciação, dentre os quais destaca:

• O fato de que, depois da enunciação, a língua efetua-se numa instância de discurso;• O fato de que, uma vez se declare o locutor e assuma a língua, o locutor implanta o outro

diante de si;• O fato de que, na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa

relação com o mundo;• O fato de que a mobilização e a apropriação da língua se dão pela necessidade de o locutor

referir, pelo discurso e para o alocutário, a possiblidade de co-referir identicamente, “no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor”.

FONTE: BENVENISTE, Emile. Aparelho formal da Enunciação. In: GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras, 1996.

NOTA

Se como quer Geraldi (2006), para a escola adquirir uma postura educacional significativa, que incorpore a dimensão de linguagem e de interação bakhtinianos, ela deve possibilitar aos educandos o lugar de sujeitos ativos no processo de ensino e aprendizagem através de um redirecionamento pedagógico segundo dois eixos de conteúdo: uso e reflexão da linguagem.

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UNIDADE 2 | LINGUÍSTICA EM AÇÃO

O que a escola vai possibilitar à criança? Pela escrita, cuja aprendizagem exige mediadores, expandem-se nas escolas as oportunidades de processos interlocutivos. [...] Se no período anterior à escola a criança foi capaz de extrair, nas situações mais variadas de conversações de que participou e continuará participando, a forma e o funcionamento da linguagem em uso, na escola abrem-se novas possiblidades de interações, mas elas mudam em sua natureza. Tratam-se de instâncias públicas de uso da linguagem (GERALDI, 1996, p. 39).

Embora haja formas linguísticas diferenciadas entre o mundo de dentro – instância pública – e o mundo de fora da escola, que implica reconhecer a existência de distintas variedades linguísticas (variedade culta x variedade não culta), tais diferenças repousam, entretanto, sobre um dado comum, a saber: que ambas se constituem através de processos históricos e interlocutivos, e que, portanto, para assumir estratégias pedagógicas sociodiscursivas, caberia à escola:

Proporcionar a maior diversidade possível de interações: é delas que a criança extrairá diferentes regras de uso da linguagem, porque diferentes são as instâncias. Neste processo ela não passa de um mundo a outro, sem correlacionar o novo que aprende ao que aprendeu antes. O significativo não é o que é necessário para “acessar” a outros conhecimentos, mas o que encontra ancoragem nos conhecimentos anteriores, construídos em processos interlocutivos que antecedem à entrada para a própria escola (GERALDI, 1996, p. 41).

Destarte, repensar os conteúdos de ensino e aprendizagem a partir dos usos sociais da linguagem, segundo uma fundamentação teórica que concebe a linguagem como mediação dos processos interacionais, requer reconsiderar as finalidades da própria disciplina de língua materna.

Por que ensinamos o que ensinamos hoje aos nossos alunos? Ainda, mais precisamente, se tomarmos os alunos como interlocutores do processo interativo de ensino e aprendizagem, do que esses alunos necessitam hoje para inserir-se nos diversos campos de uso da linguagem e para o qual a disciplina pode desempenhar um papel socialmente relevante? (RODRIGUES, 2011, p. 97).

Um primeiro eixo seria priorizar a expressividade ligada ao uso da linguagem, possibilitada através de práticas dialógicas ligadas aos processos de escuta, leitura e produção textual; enquanto um segundo eixo, de caráter mais revisional, abordaria conteúdos ligados à reflexão sobre a linguagem, por meio de práticas de análise linguística.

Em síntese, os usos e o processo de reflexão da linguagem poderiam ser agrupados em três unidades básicas de ensino: a prática de leitura, a prática de produção textual e a prática de análise linguística. A elas, os estudos de linguística aplicada mais avançados requisitariam a incorporação das teorias do letramento, de gêneros de discurso, assim como da oralidade no processo de ensino-aprendizagem.

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TÓPICO 3 | GÊNERO DISCURSIVO EM SALA DE AULA

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Dessa forma, ao se refletir sobre a finalidade da disciplina e para quem deve destinar-se a ação pedagógica nas escolas – segundo um processo de ensino-aprendizagem destinado a sujeitos sócio-historicamente situados – seria imprescindível contemplar os usos sociais “da língua oral e da língua escrita e a análise linguística como conhecimento de natureza operacional e reflexivo para tais usos, concebendo leitura, escuta e produção textual oral e escrita como conteúdos de ensino e aprendizagem na disciplina de Língua Portuguesa na atualidade” (RODRIGUES, 2011, p. 55).

Desde esse ponto de vista, mais do que ser encarado como unidade básica de ensino – no ensino tradicional o ensino de texto é dado por sequências de conteúdos aditivos em que sílabas formam palavras, que se agrupam em frases, que formam sentenças etc. –, o texto deve ser dialetizado enquanto eixo de interação entre educandos capazes a problematizar, interferir e resolver questões salutares – individuais e sociais – da vida cotidiana.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você viu que:

• Há uma discussão pontual acerca dos direcionamentos do professor de língua materna segundo as abordagens de texto e de gênero do discurso com foco na interação, de modo a instrumentalizar os objetivos do processo de ensino e aprendizagem a partir da dimensão sociointeracional da linguagem desenvolvida em torno de Bakhitn.

• Os aspectos dialógicos da linguagem e a língua como modo de ação entre sujeitos dão corpo a uma certa pedagogia da enunciação, constituindo-se como um dos pontos-chave dos estudos transdisciplinares de Linguística Aplicada, conquanto pensar o ensino de língua materna significa também pensar o letramento, os gêneros do discurso, as abordagens textuais etc.

• No caso do Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais operaram uma espécie de síntese dos aportes teóricos bakhtinianos, redirecionando-os para a objetivação de conteúdos e práticas discursivas no processo de ensino e aprendizagem, que atrelam a reflexão sobre o texto aos gêneros discursivos em sala de aula.

• Ancorado nos Parâmetros Curriculares Nacionais e nos postulados bakhtinianos, o texto passa a ser pensado como eixo singular de interação, enquanto os gêneros discursivos passam a ser tratados em sua aplicabilidade em sala de aula e, simultaneamente, em aulas pensadas como gêneros do discurso.

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) gênero – enunciados – culturab) ( ) estilo – gêneros – cidadec) ( ) tipo – falares – filosofiad) ( ) gênero – enunciados – cidade

2 Dentre os conteúdos de língua materna a serem observados no processo de ensino e aprendizagem de língua portuguesa, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais, deve-se possibilitar ao aluno “valer-se da linguagem para melhorar a qualidade de suas relações pessoais, sendo capazes de expressar seus sentimentos, experiências, ideias e opiniões, bem como de acolher, interpretar e considerar os dos outros, contrapondo-os quando necessário” (BRASIL, 2000, p. 42). Clara está a vinculação desse pensamento à concepção de língua como evento social em Bakhtin. A partir dessas observações, escreva sobre a importância de Bakhtin para o ensino de língua materna.

FONTE: BRASIL. PCN - PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: língua portuguesa/Se-cretaria de Educação Fundamental – Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

3 A linguística aplicada defende práticas escolares que possibilitem ao educando aprender a linguagem a partir da diversidade de textos que circulam socialmente. Os textos são, nessa abordagem bakhtiniana, resultantes de atividades _______, portanto eles nunca devem ser abordados na escola de forma _______, como se fossem apenas um conjunto de _______ sem vida a serem aprendidas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) inventadas – significativa – marcasb) ( ) abstratas – contextualizada – coisasc) ( ) discursivas – descontextualizada – regrasd) ( ) impensadas – marcante – regras

AUTOATIVIDADE

1 De acordo com as postulações sociodiscursivas de Bakhtin, todo texto se organiza dentro de um determinado _______ discursivo. Há uma grande e variada diversidade de gêneros, mas todos eles se constituem enquanto formas relativamente estáveis de _______ disponíveis em uma determinada _______.

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UNIDADE 3

ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade, você será capaz de:

• entender a complementariedade dos processos de alfabetização e letra-mento, que em uma perspectiva sociointerativa, demandam ao ensino de língua portuguesa a aplicação didática dos gêneros discursivos e do com-bate ao preconceito linguístico;

• compreender a leitura não como um processo de decodificação de signos linguísticos e de captação passiva da intenção autoral, mas como ação de sujeitos que constroem significados em uma relação dialógica de leitura;

• identificar a importância da substituição de práticas de escrita baseadas

em gêneros discursivos escolarizados, em prol de uma produção textual contextualizada ao mundo sociocultural dos educandos.

Caro acadêmico! Esta unidade de estudos encontra-se dividida em três tó-picos de conteúdos. Ao longo de cada um deles, você encontrará sugestões e dicas que visam potencializar os temas abordados, e ao final de cada um deles estão disponíveis resumos e autoatividades que visam fixar os temas estudados.

TÓPICO 1 – LETRAMENTO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

TÓPICO 2 – A LEITURA E A FORMAÇÃO DO LEITOR

TÓPICO 3 – A ESCRITA E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTO

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TÓPICO 1

LETRAMENTO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Prezado acadêmico, ao chegarmos a esta última unidade, esperamos poder juntos concluir que a linguagem não se dá como uma realidade autônoma, que repousaria em livros e gramáticas acima da realidade concreta vivida pelas pessoas, ou ainda, que ela não é um fenômeno em si, um ideal teórico que paira independente das circunstâncias específicas de uso pelos falantes.

As palavras têm valor e significado existenciais, elas variam e interferem em situações práticas e nas dinâmicas do convívio social. A linguagem, nesse sentido, nunca repousa apenas em dicionários – os quais cumprem a tarefa de armazenar, deixar registrados alguns usos consagrados da língua, conferindo maior estabilidade ao idioma, dentre outras funções.

Pensar assim é o mesmo que pensar a linguagem segundo uma concepção sociodiscursiva, por meio da qual os estudos de linguística aplicada se valem para superar a fragmentação disciplinar em torno de propostas curriculares que agrupem conceitos científicos em torno de uma formação humana integral e que também dê conta da diversidade social a par com a diversidade das linguagens, as quais estreitamente se vinculam.

Nesse sentido, é importante revisar os conceitos tradicionais de alfabetização e escolarização de modo a observar sua evolução e complexidade em direção ao conceito de letramento, conceitos que se fundem e vêm a nomear, nesse último, muito mais do que habilidades de leitura e escrita neutras em prol de práticas sociais relacionadas ao domínio da língua materna.

Pressupõe-se, desde aí, que o domínio das competências de leitura e escrita – pensadas especificamente sobre o ensino de língua portuguesa – mantém relações estreitas com o mundo vivido pelos sujeitos: mundo do trabalho, mundo cultural, mundo social etc. Para tanto, o trabalho de ensino não poderia prescindir, em tal contexto, dos dados históricos e socioeconômicos da realidade brasileira.

É o que está proposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, ao demandarem ao educador e às instituições educacionais ações convergentes que visem tornar a escola um lugar de inclusão e de diálogo constante com o mundo, com os avanços históricos e tecnológicos. Desde essa perspectiva, ressalta-se a importância do ensino de língua portuguesa mediante o trabalho com gêneros do discurso.

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UNIDADE 3 | ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

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Dada a desigualdade socioeconômica como realidade primeira da educação no Brasil, torna-se imprescindível uma atitude didático-pedagógica revisional contínua dos conceitos cristalizados de norma culta e erro gramatical, que fazem o abismo da linguagem, marcado pelo preconceito linguístico, participar do abismo social.

2 LETRAMENTO, ALFABETIZAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, logo em sua apresentação, convocam os atores escolares a refletir, para além do plano teórico, acerca de práticas pedagógicas em direção à formação de um sujeito crítico e cidadão, desde que se constata o percurso histórico da disciplina e seu comprometimento com uma abordagem sociointeracional da linguagem.

O domínio da língua, oral e escrita, é fundamental para a participação social efetiva, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento. Por isso, ao ensiná-la, a escola tem a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes linguísticos, necessários para o exercício da cidadania, direito alienável de todos (BRASIL, 2000, p. 15).

Nesse contexto, em que o domínio dos conteúdos de língua materna – tanto na modalidade oral quanto na modalidade escrita – está situado como ferramentas de participação social, contrasta com os dados gerais da realidade educacional brasileira, nos quais a repetência e o fracasso escolar em larga medida vinculam-se ao ensino da leitura e da escrita, que nas etapas iniciais de escolarização, notadamente, apresentam-se enquanto dificuldade em alfabetizar.

Assim, a discussão contemporânea sobre letramento, alfabetização e escolarização passa a ser terreno fértil para os estudos de linguística aplicada, na medida em que ela convoca diversos saberes para refletir sobre as relações e o aprendizado de língua escrita na escola e na sociedade. É o caso dos estudos sobre alfabetização, que, para além dos estudos tradicionais de didática, demandam

contribuições de outras áreas, como a psicologia da aprendizagem, a psicologia cultural e as ciências da linguagem. O avanço dessas ciências possibilita receber contribuições tanto da psicolinguística quanto da sociolinguística; tanto da pragmática, da gramática textual, da teoria da comunicação, quanto da semiótica, da análise do discurso (BRASIL, 2000, p. 22).

Nesse sentido, enquanto uma das áreas de atuação da linguística aplicada, o ensino e aprendizagem de língua materna, em seu enfoque metodológico, demandam tanto revisão do currículo quanto das práticas tradicionais de alfabetização, tal como propunham os Parâmetros Curriculares ao redirecionar a reflexão do “como se ensina” para o “como se aprende”, reorientando as reflexões em linguística aplicada para “a pesquisa sobre quais ideias (ou hipóteses) as crianças constroem sobre a língua escrita ao tentar compreendê-la” (BRASIL, 2000, p. 20).

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Destarte, a par com a realidade social brasileira, buscava-se entender por que crianças melhor situadas economicamente lidam, com maior facilidade, com as demandas escolares, o que aponta para a hipótese de elas deterem um saber pré-escolar, ou seja, uma forma de conhecimento prévio do mundo, provavelmente por estarem envolvidas em um meio que propicia um maior número de atividades sociais mediadas pela escrita.

Os resultados dessas investigações também permitiram compreender que a alfabetização não é um processo baseado em perceber e memorizar – isso não significa que não haja lugar para a percepção e a memória, mas que elas não são o centro do processo – e, para aprender a ler e a escrever, o aluno precisa construir um conhecimento de natureza conceitual: ele precisa compreender não só o que a escrita representa, mas também de que forma ela representa graficamente a linguagem (BRASIL, 2000, p. 21).

Assim, reconhece-se, no processo de escolarização, a passagem de uma fase anterior ao letramento, na qual predomina o uso da modalidade oral da língua, a uma fase posterior ao letramento, em que os usos da língua, mesmo em situações de oralidade, são mediados pelo conhecimento e pelo uso do código escrito.

As práticas sociais de leitura e de escrita assumem a natureza de problema relevante no contexto da constatação de que a população, embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais que envolvem a língua escrita (SOARES, 2004, p. 6).

Segundo o Dicionário Houaiss, o verbete ‘letramento’ traz em si a ideia de interação social e refere-se a um “conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito” (HOUAISS, 2015, p. 587). Por outro lado, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa concebem o Letramento como fenômeno “entendido como produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou escrever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma, de algumas dessas práticas” (BRASIL, 2000, p. 23).

NOTA

Nesse sentido, a alfabetização – que, em uma abordagem sociointerativa, deve deslocar o eixo tradicional dos exercícios de silabário da cartilha substituindo-o pelas variedades de texto – incorpora-se ao letramento, fenômeno que, numa perspectiva que vai além do conhecimento do código escrito, possibilita

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entender a razão pela qual, segundo Soares (2004), analfabetos que têm contato ou usam, mesmo que indiretamente, o código escrito, isto é, que se utilizam de algum modo da escrita, podem ser considerados letrados.

As pessoas lidam com a língua escrita em seu dia a dia, atendendo a demandas de suas relações familiares, de seu trabalho, enfim, das diferentes esferas sociais em que transitam costumeiramente e das novas esferas em que se inserem por conta de relações intersubjetivas que passam a estabelecer, dada a dinamicidade da mobilidade humana no meio social (RODRIGUES, 2011, p. 127).

Dessa forma, se quisermos resumir, compreende-se contemporaneamente letramento como um fenômeno relativo aos usos sociais da escrita, no sentido de haver uma ampla convivência social com demandas expressivas em torno da língua em sua modalidade escrita, que não se restringem à realidade escolar. “Há, muitas vezes, sujeitos não escolarizados que, apesar de não dominarem o código alfabético, fazem usos da língua escrita decorando a identificação de linhas de ônibus, nomes de ruas e congêneres, necessários à sua mobilidade social” (RODRIGUES, 2011, p. 128).

FIGURA 10 – LETRADOS COM PRECARIEDADE DA COMPETÊNCIA DE LEITURA

FONTE: Disponível em: <http://rotadosconcursos.com.br/sistema/public/ima-gens_provas/4096/18.JPG>. Acesso em: 15 set. 2017.

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Observemos no excerto a seguir, a partir de um prisma vygotskyano, a importância e a atualidade dos conceitos de alfabetização e letramento, segundo algumas implicações da psicologia do desenvolvimento infantil:“Aprender a ler e a escrever é um momento importante no desenvolvimento da criança, muito valorizado pela família e a escola. No entanto, o processo de leitura não consiste simplesmente em decifrar as letras, e sim dominar todo um sistema simbólico. O amadurecimento neuropsíquico que esse processo exige nem sempre é levado em conta quando se tenta impor a leitura a crianças tão jovens quanto quatro ou cinco anos. Justamente por isso, o letramento precoce é um assunto permeado por controvérsias. Para o psicólogo bielorrusso Lev Vygotsky, a alfabetização é resultado de um processo longo e repleto de etapas, das quais fazem parte, por exemplo, gestos e expressões. Ao fazer um símbolo no ar, a criança já manifesta uma linguagem mais próxima da escrita. Segundo essa concepção, o aprendizado gradual é imprescindível e deve ser incentivado nas classes de primeira infância, sem que atividades mecânicas de leitura e escrita atrapalhem ou forcem as etapas de desenvolvimento. [...] As situações lúdicas possibilitam também o desenvolvimento de esquemas mentais e o exercício da memória. A imitação, por exemplo, é uma parte importante das brincadeiras de criança: com muita frequência, os jogos são um eco do que as crianças viram e escutaram dos adultos. Para Vygotsky, o jogo não é uma recordação simples do vivido, mas sim a transformação criadora das impressões para a formação de uma nova realidade que responda às exigências e inclinações da própria criança. Em sua opinião, a estimulação da leitura precoce comprometeria tal formação, além de possivelmente ocasionar problemas como sobrecarga, deficiências na coordenação motora, apatia, desinteresse, desmotivação e estresse, ou seja, na educação infantil, incentivar o aprimoramento de características como a criatividade pode ser mais importante do que ensinar a ler o próprio nome”.

FONTE: MESQUITA, Paula. A hora de ler e escrever. Mente e Cérebro. São Paulo, Scientific American, nº 284, Ano XII, Setembro, 2016, p. 33.

IMPORTANTE

O letramento, nessa acepção contemporânea fundamentada em dimensões sociológicas e antropológicas, relaciona-se não apenas aos usos sociais da escrita, mas inclui práticas sociais ao redor do processo de escolarização, tanto absorvendo-o quanto indo além do processo de escolarização, na medida em que desvincula a ideia de alfabetização à de aprendizagem exclusiva do sistema de escrita de uma língua, mas revelando o letramento em práticas sociais de maior complexidade, decorrente da presença da escrita na vida cotidiana.

Somos hoje atingidos pela escrita independentemente dos espaços sociais que ocupemos. É notório que, em alguns núcleos urbanos, dá-se um desenho mais efetivamente grafocêntrico. Em outros, a escrita pode não ter essa natureza central nos processos interacionais, mas está presente de algum modo e afeta as relações humanas em alguma medida, envolvendo até mesmo sujeitos não escolarizados (RODRIGUES, 2011, p. 127).

Nessa perspectiva, o letramento transcende a ideia de alfabetização escolar, tradicionalmente restrita à aprendizagem da leitura e da escrita sem

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implicação direta com os usos sociais em torno de tais habilidades. De fato, na realidade histórica brasileira, observa-se um alargamento progressivo do conceito de alfabetização em direção ao de letramento:

A partir do conceito de alfabetizado, que vigorou até o Censo de 1940, como aquele que declarasse saber ler e escrever, o que era interpretado como capacidade de escrever o próprio nome; passando pelo conceito de alfabetizado como aquele capaz de ler e escrever um bilhete simples, ou seja, capaz de não só saber ler e escrever, mas de já exercer uma prática de leitura e escrita, ainda que bastante trivial (SOARES, 2004, p. 7).

Essa expansão necessária do conceito de alfabetização para o de letramento demonstra a necessidade de uma escola cujo papel considere, nos processos de escolarização, a realidade social que tem lugar fora dela:

Em que a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio. Em que a razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a expressão e a comunicação por meio de textos e não a avaliação da correção do produto. Em que situações didáticas têm como objetivo levar os alunos a pensarem sobre a linguagem para poderem compreendê-la e utilizá-la adequadamente (BRASIL, 2000, p. 22).

Nesse sentido, perpassa a ideia de uma escola antenada com as mudanças sociais e as exigências dos novos tempos históricos, que portanto devem imprimir modificações na finalidade da educação conforme as transformações se façam:

O que estamos querendo dizer é que, em nossas sociedades contemporâneas, marcadas crescentemente pela presença da língua escrita, os usos dessa modalidade tendem a se diversificar e se expandir a cada dia; processo marcado pela presença da tecnologia e pela paulatina automação dos serviços de todo tipo (RODRIGUES, 2011, p. 128).

Interessante observar que havia, desde o final do século XX, a expectativa de que o crescente avanço tecnológico viria suplantar o mundo do livro e da escrita em prol do mundo virtual e da imagem; expectativa essa que não se confirmou, ademais requerendo usuários da língua com maior competência na escrita para efetivamente obter sucesso frente a um mundo cada vez mais tecnológico.

Dessa forma, a plena participação social almejada em acordo com os avanços históricos e tecnológicos ainda demanda e demandará a competência e o domínio da língua em suas diversas modalidades, exigindo graus aperfeiçoados de letramento que levem o aluno/usuário a ser ativamente capaz de ler e interpretar os diferentes textos que perpassam, circulam e variam no tecido social.

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3 A AULA DE LÍNGUA PORTUGUESA

O ensino de língua materna é um dos temas centrais dos campos de estudo da linguística aplicada, pois nele evocam-se variados conceitos para se pensar a formação da cidadania sob uma perspectiva dos usos da linguagem, dentre os quais destacam-se os processos de alfabetização e letramento, os gêneros do discurso, ademais a convivência e o confronto entre as hierarquias sociais dadas através das concepções de norma culta e erro gramatical inerentes ao preconceito linguístico.

Alguém pergunta a um professor de português... – Ensina-se mesmo português, essa língua que a gente usa todo dia? – É claro, em escolas do primeiro ao terceiro graus, há aulas de português. Portanto... – A quem se ensina português? – Ora, além de estrangeiros interessados, ensina-se principalmente a brasileiros... – ... que já falam português! Ah! Então eles não falam bem o português? – Bem, claro que falam, desde crianças... (ALMEIDA, 2006, p. 10).

FIGURA 11 – LETRAMENTO ABSTRATO VERSUS USOS SOCIAIS DA LINGUAGEM

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-bURH1yPh-Kg/VNYeXVdmeHI/AAAAAAAAD-BI/USCJN8aexf0/s1600/Imagem4.jpg>. Acesso em: 20 set. 2017.

Vimos, no tópico anterior, que o processo de alfabetização tradicional visava capacitar o aluno a assimilar e reproduzir um modelo de língua, de certo modo autônomo, a despeito de seus usos e implicações sociais, no qual a modalidade escrita poderia ser metodologicamente encarada como uma tecnologia, isto é, como um fenômeno a ser focalizado independentemente do contexto de uso.

“Concepção de que importa alfabetizar os indivíduos e habilitá-los em domínios da escrita crescentemente mais complexos, sem considerar os propósitos a que tais domínios se prestam e em que contextos se instituem ou não, bem como as razões pelas quais se instituem ou não” (RODRIGUES, 2011, p. 132).

O modelo de letramento, pensado a partir de tal perspectiva, teria um viés acentuadamente técnico, na medida em que alfabetizar pressuporia um ordenamento progressivo e cronológico de estruturas mais simples da língua em

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direção a estruturas mais complexas, cujas implicações, usos e práticas sociais, apenas pressupostos, decorreriam da inserção dos sujeitos em um sistema neutro, lógico, próprio da língua materna.

Tal enfoque produziria sujeitos capazes de ler, interpretar e produzir textos abstratos, cuja autonomia seria propalada pela independência de suas capacidades linguísticas em relação aos contextos sociais, econômicos, históricos e culturais, e suas respectivas práticas a eles implícitas.

Muitas vezes a escola esquece que educação é um problema social, e encara-o como problema pedagógico. Sem o menor respeito pelas condições de vida de seus frequentadores, impõe-lhes modelos de ensino e conteúdos justamente produzidos para a conservação dessa situação. [...] Sem fazer a crítica verdadeira, histórica, do saber que coloca aos alunos, a escola considera todo e qualquer conteúdo válido, muitas vezes baseado em preconceitos, ignorâncias, verdades incontestáveis, dogmáticas (ALMEIDA, 2006, p.16).

Em contrapartida, desenvolveu-se um modelo ideológico que recupera, para o evento de letramento, seu cunho social e suas implicações plurais – por isso, pode-se falar em letramentos, como letramento escolar, familiar etc. – em torno de práticas e eventos ao redor da escrita, a ele associados.

Assim, podemos mencionar, hoje, os atos de ler uma notícia de jornal, escrever um e-mail, fazer uma lista de compras, ler Dom Casmurro, como alguns dentre muitos eventos de letramento que têm lugar no dia a dia das pessoas, dependendo de quem sejam, de onde vivam, de que usos façam da escrita em sua rotina de vida (RODRIGUES, 2011, p. 135).

Letramento, portanto, a partir dessa perspectiva sociointerativa e contemporânea, demonstra uma filiação evidente com a concepção de linguagem bakhtiniana que analisa os eventos da língua em relação direta com o contexto interacional, e dessa reporta-se aos usos da língua escrita que o sujeito faz em diversas esferas da sociedade, quando busca atender a propósitos distintos e variáveis, tal como suas necessidades cotidianas, novas demandas que se apresentem em sua mobilidade social etc.

Considerando que as interações humanas se dão tendo a linguagem como instrumento de mediação – tal qual propôs Vygotsky – e que os usos da linguagem se estabelecem por meio de gêneros do discurso – tal qual propôs Bakhtin –, a aula de Língua Portuguesa – como as aulas de quaisquer outras disciplinas – configura um desses usos da linguagem, com suas particularidades interacionais e configuracionais (RODRIGUES, 2011, p. 43).

A aula de língua portuguesa, nesse sentido, valer-se-á metodologicamente e estará centrada sobre o uso e a aplicabilidade dos gêneros do discurso – que são recomendados pelos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa como elementos mediadores das atividades de ensino, inclusive de leitura e produção textual – os quais, entretanto, pressupõem convergência interacional entre professor e alunos.

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Nenhum de nós tem dúvidas para reconhecer o que seja uma aula. E facilmente a distinguimos de uma palestra, de um pronunciamento político, de uma entrevista etc. Culturalmente, apropriamo-nos de conhecimentos para a identificação dos diferentes gêneros, quer se trate de gêneros escolares ou não, como conversa ao telefone, conferência, reunião de pais, reportagem etc. (RODRIGUES, 2011, p. 43).

Interação, convergência em sala de aula, requerem capacitação dos professores e combate contínuo contra os aspectos discriminadores e excludentes do ensino de língua portuguesa, razão pela qual se faz necessária uma atitude não apenas revisional, mas didática e metodológica acerca dos conceitos de norma culta e de erro gramatical, herdeiros da escrita, que sustentam em larga medida o preconceito linguístico em sociedade:

Somente o exercício do poder, reservando a uma minoria estrita o acesso ao mundo da escrita, permitiu a façanha da seleção, da distribuição e do controle do discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado, impenetrável para o não convidado. E de dentro desses muros, uma função outra agrega-se à escrita, como se lhe fosse própria e não atribuída pelo poder que emana de seus privilegiados construtores e constritores: submeter a oralidade à sua ordem, função jurídica por excelência, capaz de dizer o certo e o errado, ditar a gramática da expressão (GERALDI, 1996, p. 101).

3.1 A AULA DE LÍNGUA MATERNA E O PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Marcos Bagno (1999, p. 140) sustenta que o educador deve assumir três atitudes em busca da reversão do preconceito linguístico, a saber: primeiro, que abandone o tarefismo de mero repetidor/reprodutor da doutrina gramatical, assumindo, em seu lugar, uma “posição de cientista e investigador, de produtor de seu próprio conhecimento linguístico teórico e prático”, de modo a encontrar instrumentos didáticos que possam em alguma medida concorrer com os compêndios gramaticais tradicionais.

Segundo: fazer crítica da própria prática de ensino, apresentando outras leituras possíveis sobre os fenômenos linguísticos que o professor se vê obrigado a ensinar – sabe-se que a maior parte dos conteúdos trabalhados em sala de aula é imposta pela escola e pela sociedade, como é o caso dos vestibulares e dos concursos.

Terceiro, e não menos importante: o educador deve manter uma argumentação científica, quer dizer, pautada pelas conquistas da linguística aplicada e pelo foro institucional e científico instituído pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa.

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Atitudes importantes a serem tomadas contra o preconceito linguístico, a que Bagno (1999) chamará de CISÕES para um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso. Apresentamos a seguir as cinco primeiras apresentadas pelo linguista:

1. Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um usuário competente dessa língua, por isso ele SABE essa língua. Entre os três e quatro anos de idade, uma criança domina integralmente a gramática de sua língua. Sendo assim,

2. aceitar a ideia de que não existe erro de português. Existem diferenças de uso ou alternativas de uso em relação à regra única proposta pela gramática normativa.

3. Não confundir erro de português (que, afinal, não existe) com simples erro de ortografia. A ortografia é artificial, ao contrário da língua, que é natural. A ortografia é uma decisão política, é imposta por decreto, por isso ela pode mudar, e muda, de uma época para outra. Em 1899 as pessoas estudavam psychologia e história do Egypto; em 1999 elas estudam psicologia e história do Egito. Línguas que não têm escrita nem por isso deixam de ter sua gramática.

4. Reconhecer que tudo o que a Gramática Tradicional chama de erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação científica perfeitamente demonstrável. Se milhões de pessoas (cultas inclusive) estão optando por um uso que difere da regra prescrita nas gramáticas normativas, é porque há alguma regra nova sobrepondo-se à antiga. Assim, o problema está com a regra tradicional, e não com as pessoas, que são falantes nativos e perfeitamente competentes de sua língua. Nada é por acaso.

5. Conscientizar-se de que toda língua muda e varia. O que hoje é visto como “certo” já foi “erro” no passado. O que hoje é considerado “erro” pode vir a ser perfeitamente aceito como “certo” no futuro da língua. Um exemplo: no português medieval existia um verbo leixar (que aparece até na Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I). Com o tempo, esse verbo foi sendo pronunciado deixar, porque [d] e [l] são consoantes aparentadas, o que permitiu a troca de uma pela outra. Hoje quem pronunciar leixar vai estar cometendo um “erro” (vai ser acusado de desleixo), muito embora essa forma seja mais próxima da origem latina, laxare (compare-se, por exemplo, o francês laisser e o italiano lasciare). Por isso é bom evitar classificar algum fenômeno gramatical de “erro”: ele pode ser, na verdade, um indício do que será a língua no futuro.

FONTE: BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999, p. 142-145.

IMPORTANTE

Em uma perspectiva tradicional, muitos professores ainda defendem que o objeto de ensino-aprendizagem deve ser a norma culta, que, sabe-se, está atrelada a um padrão escrito que espelha, na maior parte das vezes, um padrão literário elevado, como a escrita de Machado de Assis, Graciliano Ramos etc.

Esse ensino tradicional, como eu já disse, em vez de incentivar o uso das habilidades linguísticas do indivíduo, deixando-o expressar-se livremente para somente depois corrigir sua fala ou sua escrita, age exatamente ao contrário: interrompe o fluxo natural da expressão e da comunicação com a atitude corretiva (e muitas vezes punitiva), cuja consequência inevitável é a criação de um sentimento de incapacidade, de incompetência (BAGNO, 1999, p. 107).

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O fato é que a norma culta – com suas regras sintáticas aproximadas dos grandes escritores e do modelo greco-latino que está na origem do idioma português – é uma variedade idealizada da língua que não corresponde sequer àquela que é praticada pelas pessoas cultas.

Outros termos empregados indistintamente pelos prescritivistas são: norma padrão, língua padrão, língua culta, padrão culto. Todos eles, porém, carecem de uma definição teórica rigorosa, sendo usados basicamente como um sinônimo geral de “bom português”, em contraste com tudo o que “não é português” (BAGNO, 1999, p. 109).

Contrário a tal perspectiva, o linguista desmonta os argumentos tradicionalistas de um jornalista que se propõe a demonstrar o emprego “correto”, gramatical, do verbo pedir, que, segundo o seu artigo de jornal, quando não traz implícita a ideia de licença ou permissão, obriga ao uso gramatical pedir que + subjuntivo. Assim, a sentença ele me “pediu para vir” aqui no lugar dele estaria incorreta, devendo ser dita ele me “pediu para que viesse” no lugar dele:

A locução pedir para é um exemplo do abismo que existe, sim, entre a verdadeira norma culta usada pelas pessoas cultas do Brasil e aquilo que [...] não especialistas em linguística, que se baseiam exclusivamente na norma gramatical mais conservadora e prescritiva, chamam de “norma culta”. O que Martins rotula de “linguagem coloquial” é, na verdade, uma manifestação da norma culta objetiva, real, empiricamente coletável e analisável. E a prova maior disso é que os falantes cultos (professores de português) [...] reconhecem tranquilamente a gramaticalidade, a aceitabilidade de construções como [essa]. Como é possível falar de “erro” se a construção não causa estranheza a falantes cultos e é perfeitamente assimilada do ponto de vista semântico e pragmático? (BAGNO, 1999, p. 111-113).

Assume o autor uma posição favorável à Sociolinguística, opondo à noção idealizada de “norma culta”, a seu ver vaga e preconceituosa das gramáticas tradicionais – que tentam “nos mostrar a língua como um pacote fechado, um embrulho pronto e acabado” (BAGNO, 1999, p.117) – a ela opondo a visão coerente com os avanços científicos da linguística variacionista.

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Atitudes importantes a serem tomadas contra o preconceito linguístico, a que Bagno (1999) chamará de CISÕES para um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso. Apresentamos a seguir as cinco últimas apresentadas pelo linguista:

1. Dar-se conta de que a língua portuguesa não vai nem bem, nem mal. Ela simplesmente VAI, isto é, segue seu rumo, prossegue em sua evolução, em sua transformação, que não pode ser detida (a não ser com a eliminação física de todos os seus falantes).

2. Respeitar a variedade linguística de toda e qualquer pessoa, pois isso equivale a respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa como ser humano, porque

3. a língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres humanos. Nós somos a língua que falamos. A língua que falamos molda nosso modo de ver o mundo e nosso modo de ver o mundo molda a língua que falamos. Para os falantes de português, por exemplo, a diferença entre ser e estar é fundamental: eu estou infeliz é radicalmente diferente, para nós, de eu sou infeliz. Ora, línguas como o inglês, o francês e o alemão têm um único verbo para exprimir as duas coisas. Outras, como o russo, não têm verbo nenhum, dizendo algo assim como: Eu – infeliz (o russo, na escrita, usa mesmo um travessão onde nós inserimos um verbo de ligação). Assim,

4. uma vez que a língua está em tudo e tudo está na língua, o professor de português é professor de TUDO. (Alguém já me disse que talvez por isso o professor de português devesse receber um salário igual à soma dos salários de todos os outros professores!).

5. Ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa respeitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. Ensinar para o bem é acrescentar e não suprimir, é elevar e não rebaixar a autoestima do indivíduo. Somente assim, no início de cada ano letivo este indivíduo poderá comemorar a volta às aulas, em vez de lamentar a volta às jaulas!

FONTE: BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999, p. 142-415.

IMPORTANTE

As variações linguísticas comprovam que os falantes cultos de língua portuguesa praticam uma norma culta “real”, como realmente se dá entre os falantes, que se diferencia da norma culta “ideal”, que deveria ser, presente nas gramáticas e nos dicionários. Trata-se de abordar a língua em ação, viva, que transforma-se a cada contexto histórico.

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LEITURA COMPLEMENTAR

A INVENÇÃO DO LETRAMENTO

Magda Soares

É curioso que tenha ocorrido em um mesmo momento histórico, em sociedades distanciadas tanto geograficamente quanto socioeconomicamente e culturalmente, a necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita. Assim, é em meados dos anos de 1980 que se dá, simultaneamente, a invenção do letramento no Brasil, do illetrisme, na França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele denominado alfabetização, alphabétisation. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra literacy já estivesse dicionarizada desde o final do século XIX, foi também nos anos de 1980 que o fenômeno que ela nomeia, distinto daquele que em língua inglesa se conhece como reading instruction, begning literacy tornou-se foco de atenção e de discussão nas áreas da educação e da linguagem, o que se evidencia no grande número de artigos e livros voltados para o tema [...] e a proposta da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de ampliação do conceito de literate para functionally literate, e, portanto, a sugestão de que as avaliações internacionais sobre o domínio de competências de leitura e de escrita fossem além do medir apenas a capacidade de saber ler e escrever.

Entretanto, se há coincidência quanto ao momento histórico em que as práticas sociais de leitura e de escrita emergem como questão fundamental em sociedades distanciadas geograficamente, socioeconomicamente e culturalmente, o contexto e as causas dessa emersão são essencialmente diferentes em países em desenvolvimento, como o Brasil, e em países desenvolvidos, como a França, os Estados Unidos, a Inglaterra. Sem pretender uma discussão mais extensa dessas diferenças, o que ultrapassaria os objetivos e possibilidades deste texto, destaco a diferença fundamental, que está no grau de ênfase posta nas relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e a aprendizagem do sistema de escrita, ou seja, entre o conceito de letramento (illettrisme, literacy) e o conceito de alfabetização (alphabétisatioon, reading instruction, beginning literacy).

Nos países desenvolvidos, ou do Primeiro Mundo, as práticas sociais de leitura e de escrita assumem a natureza de problema relevante no contexto da constatação de que a população, embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais que envolvem a língua escrita. Assim, na França e nos Estados Unidos, para limitar a análise a esses dois países, os problemas de illettrisme, de literacy//illiteracy surgem de forma independente da questão da aprendizagem básica da escrita.

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Na França, como esclarece Lahire, em L’invention de l’illettrisme (1999), e Chartier e Hébrard, em capítulo incluído na segunda edição de Discours sur la lecture (2000), o illettrisme – a palavra e o problema que ela nomeia – surge para caracterizar jovens e adultos do chamado Quarto Mundo (que designa a parte da população, nos países de Primeiro Mundo, mais desfavorecida. A expressão é usada também para nomear os países menos avançados, entre os países em desenvolvimento), que revelam precário domínio das competências de leitura e de escrita, dificultando sua inserção no mundo social e no mundo do trabalho. Partindo do fato de que toda a população – independentemente de suas condições socioeconômicas – domina o sistema de escrita, porque passou pela escolarização básica, as discussões sobre o illettrisme se fazem sem relação com a questão do apprendre à lire et à écrire, expressão com que se denomina a alfabetização escolar, e com a questão da alphabétisation, este termo em geral reservado às ações desenvolvidas junto aos trabalhadores imigrantes, analfabetos na língua francesa (LAHIRE, 1999, p. 61).

O mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde o foco em problemas de literacy/illiteracy emerge, no início dos anos de 1980, como resultado da constatação [...] de que jovens graduados na high school não dominavam as habilidades de leitura demandadas em práticas sociais e profissionais que envolvem a escrita. Também neste caso as discussões, relatórios, publicações não apontam relações entre as dificuldades no uso da língua escrita e a aprendizagem inicial do sistema de escrita – a reading instruction, ou a emergent literacy, a beginining literacy; assim, Kirsch e Jungeblut, como conclusão da pesquisa sobre habilidades de leitura da população jovem norte-americana, afirmam que o problema não estava na illiteracy (no não saber ler e escrever), mas na literacy (no não domínio de competências de uso da leitura e da escrita).

Essa autonomização, tanto na França quanto nos Estados Unidos, das questões de letramento em relação às questões de alfabetização não significa que estas últimas não venham sendo, elas também, objeto de discussões, avaliações, críticas. [...] O que se quer aqui destacar é que os dois problemas – o domínio precário de competências de leitura e de escrita necessárias para a participação em práticas sociais letradas e as dificuldades no processo de aprendizagem do sistema de escrita, ou da tecnologia da escrita – são tratados de forma independente, o que revela o reconhecimento de suas especificidades e uma relação de não causalidade entre eles.

No Brasil, porém, o movimento se deu, de certa forma, em direção contrária: o despertar para a importância e necessidade de habilidades para o uso competente da leitura e da escrita tem sua origem vinculada à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-se basicamente a partir de um questionamento do conceito de alfabetização. Assim, ao contrário do que ocorre nos países do Primeiro Mundo, como exemplificado com a França e os Estados Unidos, em que aprendizagem inicial da leitura e da escrita – a alfabetização, para usar a palavra brasileira – mantém sua especificidade no contexto das discussões sobre problemas de domínio de habilidades de uso da leitura e da escrita – problemas

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TÓPICO 1 | LETRAMENTO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

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de letramento – no Brasil os conceitos de alfabetização e letramento se mesclam, se superpõem, frequentemente se confundem. Esse enraizamento do conceito de letramento no conceito de alfabetização pode ser detectado tomando-se para análise fontes como os censos demográficos, a mídia, a produção acadêmica.

[...] Em síntese, e para encerrar este tópico, conclui-se que a invenção do letramento, entre nós, se deu por caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção do termo em outros países, como a França e os Estados Unidos. Enquanto nesses outros países a discussão do letramento – illettrisme, literacy, illiteracy – se fez e se faz de forma independente em relação à discussão da alfabetização – apprendre à lire et à écrire, reading instruction, emergent literacy, beginining literacy –, no Brasil a discussão do letramento surge sempre enraizada no conceito de alfabetização, o que tem levado, apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, a uma inadequada e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do conceito de letramento, por razões que tentarei identificar mais adiante, o que tem conduzido a um certo apagamento da alfabetização, talvez com algum exagero.

FONTE: SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, Minas Gerais, nº 25, Jan/Fev/Mar/Abr 2004, p. 5-8.

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Neste tópico, você viu que:

• A perspectiva sociointeracionista da linguagem representou uma evolução das formas de ensino e aprendizagem de língua materna, cuja tradição se pautava por um processo de escolarização em que alfabetizar assumia um teor predominantemente técnico, em direção à ideia de letramento e de uso dos gêneros discursivos, cada vez mais relacionados aos sujeitos e aos contextos de uso da língua em sociedade.

• Houve uma necessária revisão das práticas de alfabetização, tradicionalmente pensadas como um fenômeno autônomo, pautado quase exclusivamente pela aquisição do sistema convencional da escrita alfabética e ortográfica, como se tal aprendizagem fosse a condição necessária para a inserção do sujeito na complexidade do mundo mediado pela modalidade escrita da língua.

• O conceito de letramento em certa medida incorporou o de alfabetização, vinculando as habilidades de leitura e escrita às práticas sociais e profissionais em que os sujeitos estão inseridos. Nesse sentido, muitos sujeitos que não dominam plenamente tais habilidades, ou que leem precariamente, ainda assim conseguem mover-se e participar de algumas atividades inerentes ao mundo social mediado pela escrita.

• O letramento, nesse sentido, ao destacar a aquisição do código escrito como continuidade de práticas sociais vivenciadas pelos sujeitos, vincula-se aos gêneros discursivos enquanto ferramenta didático-pedagógica exemplar em promover elos entre a língua e o sujeito na sala de aula, corrigindo disparidades do ensino tradicional, que através da cristalização dos conceitos, como o de norma culta e erro gramatical, tem reiterado o preconceito linguístico nas aulas de língua portuguesa.

RESUMO DO TÓPICO 1

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) letramento – língua – social b) ( ) alfabetização – letramento – linguísticac) ( ) aprendizado – língua – linguísticad) ( ) alfabetização – letramento – social

2 Tradicionalmente, o termo Alfabetização associou-se à aquisição das habilidades de leitura e escrita por meio das instituições escolares. Essa compreensão, entretanto, não situava os sujeitos que, mesmo não escolarizados, sabem se locomover e criam recursos alternativos para saberem se portar em um mundo cada vez mais marcado pela cultura da escrita. Para abarcar fenômeno de tal complexidade, cunhou-se o termo Letramento, que, indo além da ideia de erudição, passou a abarcar as demandas sociais, familiares e também escolares, ao redor da escrita. A partir dessa reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) O letramento representa um avanço em relação à concepção tradicional de alfabetização, na medida em que incorpora as dinâmicas expressivas em torno da língua escrita, partilhada também por sujeitos não escolarizados ou semiescolarizados.

( ) Ao considerarmos a situação em que analfabetos conseguem utilizar os meios de transporte público, como os ônibus urbanos, valendo-se apenas de mediação gráfica, ou então da confirmação das linhas por conversação com outros usuários alfabetizados, podemos afirmar que tais situações convergem com a noção contemporânea de letramento.

( ) Letramento e Alfabetização, enquanto processos de aquisição das habilidades de leitura e escrita, são fenômenos que se equivalem, sendo, portanto, modos distintos de nomear o mesmo fenômeno.

( ) A língua, desde o ponto de vista interacional característico do conceito de Letramento, é um código lógico, cuja apreensão independe das relações e das práticas sociais vividas pelos aprendizes.

AUTOATIVIDADE

1 Em Linguística Aplicada, o processo de aquisição do código escrito de uma língua é conhecido como ______, o qual não pode desenvolver-se como uma atividade autônoma, mas sim inserido em um contexto de práticas sociais mediadas pela língua escrita, conhecido como ______, por meio do qual se promove a participação em eventos variados de leitura e escrita que devem considerar a realidade ______ dos sujeitos.

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) A sequência correta é V – F – V – F. b) ( ) A sequência correta é F – F – V – F.c) ( ) A sequência correta é V – V – F – F.d) ( ) A sequência correta é V – F – V – V.

3 O preconceito linguístico, um dos baluartes do ensino a serem continuamente combatidos nas aulas de língua portuguesa, assenta-se, em grande medida, em dois alicerces difíceis de erradicar: a noção de uma norma culta universal, e a noção de erro gramatical. Desde o ponto de vista da atitude do professor a ser tomada contra o preconceito linguístico e considerando as sentenças, associe os itens, utilizando o código a seguir:

I- Norma cultaII- Erro gramatical

( ) O professor deve chamar a atenção dos alunos para a existência de diversas variedades de uma mesma língua, demonstrando as condições sociais e históricas que tornaram uma delas a variedade de maior prestígio social.

( ) O professor deve chamar a atenção sobre as mudanças ortográficas que se fazem em acordos políticos entre as nações lusófonas, como o último acordo ortográfico de língua portuguesa, que fizeram palavras modificarem sua grafia, como na transformação da palavra mini-saia em minissaia.

( ) O professor lembra que a língua que pretende-se imitar é eleita por ser mais estética, ou seja, por ter uma expressividade geralmente mais bela, resultante do trabalho de escritores reconhecidos.

( ) A língua em sua modalidade falada escapa às discriminações de valor, e seus usos devem ser pensados como adequados/não adequados em relação aos contextos interacionais que respeitam os usos locais, sociais e individuais de uma mesma língua.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I – II – I – II. b) ( ) II – I – I – II. c) ( ) II – II – II – I. d) ( ) II – II – I – II.

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TÓPICO 2

A LEITURA E A FORMAÇÃO DO LEITOR

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? [...] Nunca lhe aconteceu ‘ler levantando a cabeça?’ É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volta e se nutre, que tentei escrever (BARTHES, 2004, p. 26).

Há um dado de erudição associado ao ato de ler que, em parte, é tanto aceitável quanto verificável. Trata-se de pensar que a boa escrita pressupõe leituras qualificadas, ou seja, escrever bem requer que se leia duas vezes melhor, se assim podemos dizer. O bom escritor, ou o bom produtor de textos, seria aquele que, nessa linha de raciocínio, possui um maior e mais qualificado repertório de leitura.

Esse tipo de leitura associa-se à erudição, ao sujeito pensante, crítico e ativo, sujeito ideal de toda formação cidadã. Em outras palavras, uma vez completado o ciclo educacional, o sujeito formado seria um autodidata, capaz de agir sobre o mundo reinventando-o. E, supondo o caso em que ele é professor, será capaz de, através do trabalho com a linguagem, reinventar a escola e modificar o meio social em volta da educação.

Nesse sentido maior, a escola seria um dos poucos espaços sociais que pode promover o contato dos alunos com textos que estão fora do circuito lucrativo, do comércio e das facilidades tecnológicas, televisivas e midiáticas. A boa educação consequentemente seria aquela capaz de estabelecer interações diferenciadas entre leitores e obras, tornando-os mais críticos a partir do acesso a textos qualificados para o dialogismo, para habilitar os sujeitos à tolerância e à convivência de pontos de vista distintos.

Assim, a instituição escolar, ao promover a boa leitura e, simultaneamente, a produção textual qualificada, seria capaz de subverter o paradigma contemporâneo que eleva o valor da utilidade em detrimento do sujeito pensante e reflexivo, consequentemente a escola assumiria a tarefa de promover mudanças dos valores culturais vigentes, quando tais valores se veem reduzidos e comparados a utensílios de uso comercial.

Entretanto, ao pensarmos a significação da leitura no ensino, não há como associá-la exclusivamente, o que seria o mesmo que restringi-la, à formação de grandes escritores ou de produtores de texto profissionais, mas sim constituir

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UNIDADE 3 | ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

práticas escolares que possibilitem ao aluno transitar pelos diversos gêneros de leitura e de escrita que são socialmente relevantes para o seu uso cotidiano.

Leitura e formação do leitor, portanto, a partir de uma abordagem interacionista de linguagem, devem ser pensadas dentro de um viés de construção ativa de significados pelo sujeito, que se opõe à concepção tradicional de leitura enquanto decodificação e silêncio, os quais são apenas uma etapa de um processo complexo maior que a linguística aplicada visa elucidar.

2 CONCEPÇÕES E ETAPAS DE LEITURA

Ao buscarmos definir o processo de leitura, aplicada ao ensino de língua materna, destaca-se, em primeira mão, a sua íntima relação com o processo de escrita, a ele complementar: “É nesse contexto – considerando que o ensino deve ter como meta formar leitores que sejam também capazes de produzir textos coerentes, coesos, adequados e ortograficamente escritos – que a relação entre essas duas atividades deve ser compreendida” (BRASIL, 2000, p. 52).

Observada essa íntima relação entre a leitura e a escrita, em que a formação de leitores competentes pode resultar, paralelamente, na formação de produtores de textos eficientes – não no sentido de formar escritores profissionais, mas de sujeitos capazes de escrever bem em relação ao gênero textual e ao contexto sociodiscursivo –, a leitura, nessa linha de raciocínio, abre ao produtor de textos um maior espectro de referências, ampliando seu universo de intertextualidade e fornecendo direcionamento para a sua escrita.

Apesar de apresentada como dois sub-blocos, é necessário que se compreenda que leitura e escrita são práticas complementares, fortemente relacionadas, que se modificam mutuamente no processo de letramento – a escrita transforma a fala (a constituição da “fala letrada”) e a fala influencia a escrita (o aparecimento de “traços de oralidade” nos textos escritos) (BRASIL, 2000, p. 53).

Segundo o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, a leitura é definida como: 1. Ato ou efeito de ler. 2. Arte de ler. 3. Hábito de ler. 4. Aquilo que se lê: Não sei qual a sua leitura. 5. O que se lê, considerado em conjunto: homem de muita leitura. Arte de decifrar e fixar um texto de um autor, segundo determinado critério (HOLANDA, 1986, p. 1019). Por sua vez, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define assim a leitura: 1. Ato de decifrar signos gráficos que traduzem a linguagem oral; arte de ler. 2. Ação de tomar conhecimento do conteúdo de um texto escrito, para se distrair ou se informar. 3. Maneira de compreender, de interpretar um texto, uma mensagem, um acontecimento. 4. Ato de decifrar qualquer notação; o resultado desse ato (HOUAISS, 2015, p. 585).

NOTA

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TÓPICO 2 | A LEITURA E A FORMAÇÃO DO LEITOR

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A leitura, nesse sentido, não se configuraria como um processo de decodificação de palavra a palavra visando extrair, de forma neutra, informações do texto escrito, mas, ao contrário, como um trabalho de construção de significados que relaciona variáveis, como: as caraterísticas do leitor, o contexto autoral, o conhecimento que o leitor possui da temática proposta, características ao redor da língua – tal como o gênero discursivo em que o texto é apresentado –, dentre outras variáveis que configuram a leitura como um processo ativo.

Os objetivos de Língua Portuguesa salientam também a necessidade de os cidadãos desenvolverem sua capacidade de compreender textos orais e escritos, de assumir a palavra e produzir textos, em situações de participação social. Ao propor que se ensine aos alunos o uso das diferentes formas de linguagem verbal (oral e escrita), busca-se o desenvolvimento da capacidade de atuação construtiva e transformadora (BRASIL, 2000, p. 46).

Em nossa abordagem sociointeracional da leitura, que filia-se à indicação bakhtiniana de ensino de língua materna, pressupõe-se o trabalho escolar mediante os gêneros do discurso, debruçando-nos sobre o texto-discurso de modo a nele identificar a composição textual que evidencia o papel dos interlocutores, também o estilo do texto dado em suas configurações específicas, e ainda os conteúdos nele explicitados.

Assim, no processo de construção intersubjetiva dos sentidos, os alunos devem ser confrontados a identificar os conteúdos temáticos que aparecem em determinado gênero discursivo, apresentados no texto-enunciado, primeiramente ao estabelecerem as relações grafêmicas e fonêmicas como modo de acesso à informação. “É flagrante que, se nossos alunos tiverem problemas de decodificação por não estarem inteiramente alfabetizados, nos defrontaremos com um primeiro obstáculo a ser superado: o código alfabético – por meio do qual o conteúdo temático é veiculado e se torna dizível no gênero discursivo” (RODRIGUES, 2011, p. 174).

Essa é a primeira barreira a ser ultrapassada quando se pretende definir, com alguma propriedade, o processo de leitura, pois ele ultrapassa a ideia de decodificação como simples decifração do código escrito ou de quaisquer outras concepções que o vinculem a habilidades de apenas reconhecimento e tradução de signos linguísticos, o que, em última análise, peca por desconsiderar a propriedade ativa do leitor de ir atribuindo significado ao que está lendo.

Trata-se de uma atividade que implica, necessariamente, compreensão na qual os sentidos começam a ser constituídos antes da leitura propriamente dita. Qualquer leitor experiente que conseguir analisar sua própria leitura constatará que a decodificação é apenas um dos procedimentos que utiliza quando lê (BRASIL, 2000, p. 53).

Nesse sentido, a competência de leitura está diretamente relacionada ao uso de estratégias em acordo com a necessidade do leitor ativo, que, muito mais do que decodificar, vai ao texto experimentando suposições, selecionando partes

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UNIDADE 3 | ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

mais relevantes ao seu propósito, e que tenha condição de, antes de interpretar o lido de modo particular, possa se dar conta da intenção autoral presente no texto, do que nele está implícito e do que pode relacionar-se com outros textos.

Há diversas sugestões para proceder uma leitura mais eficaz. Abaurre, Pontara e Fadel (2002) sistematizam sete passos que, uma vez executados, norteariam um bom processo de leitura:

1. Seleção – delimitar a unidade de leitura: o primeiro passo é estabelecer a unidade de leitura, ou seja, o setor do texto que forma uma totalidade de sentido, que pode ser qualquer subdivisão, como: seção, capítulo etc.

2. Identificar o tema do texto: para encontrar a temática do texto, podem ser realizadas as seguintes perguntas: a) do que se trata, qual o foco principal? (As informações se organizam em torno de qual assunto?); b) que grau de conhecimento tenho, enquanto leitor, sobre o tema abordado: alto – quando sou capaz de avaliar o que está sendo comunicado, médio – posso obter informações ainda desconhecidas, baixo – que não me habilita a avaliar a qualidade das informações advindas do texto.

3. Localizar o texto no tempo e no espaço: nesse passo, busca-se compreender a intenção autoral – quem é o autor? Quando escreveu? Quais as condições da época em que produziu a obra? Quais as principais características do seu pensamento? Quais influências recebeu?

4. Elaborar uma síntese do texto: momento em que o leitor faz seleção e organização dos elementos mais importantes do texto, estabelecendo critérios de relevância, entre o que é mais e o que é menos importante.

5. Organizar as próprias ideias com relação aos elementos relevantes: parte dos conhecimentos prévios que o leitor possui do tema, posicionando-se frente às novas informações apresentadas: concorda com elas? Discorda delas? Por quê?

6. Demonstrar capacidade para interpretar dados e fatos apresentados: a partir das relações estabelecidas, o leitor busca responder acerca do sentido do que acabara de ler.

7. Elaborar hipóteses explicativas para fundamentar a análise das questões tematizadas no texto: nessa etapa, vai-se além do que foi exposto pelo autor, momento em que se constrói novo conhecimento em torno da questão tematizada através da construção do sentido do texto na maneira como ele foi apropriado pelo leitor.

FONTE: ABAURRE, M. Luiza; PONTARA, M. Nogueira; FADEL, Tatiana. Português: língua e literatura. São Paulo: Moderna, 2002, p. 87-89.

NOTA

A fluência da leitura pressupõe, portanto, mais do que decodificação, estratégias que visam obter, utilizar e avaliar as informações à medida que, de forma não deliberada, o leitor constrói significados durante a leitura. São quatro as estratégias identificáveis em tal processo: seleção, antecipação, inferência e verificação.

Estratégias de seleção possibilitam ao leitor se ater apenas aos índices úteis, desprezando os irrelevantes; de antecipação permitem supor o que ainda está por vir; de inferência permitem captar o que não está dito explicitamente no texto e de verificação tornam possível o “controle” sobre a eficácia ou não das demais estratégias (BRASIL, 2000, p. 53).

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TÓPICO 2 | A LEITURA E A FORMAÇÃO DO LEITOR

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FIGURA 12 – LEITURA COMO PROCESSO ATIVO

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-ecO58eJ2Ja4/UaOEm60VEMI/AAAAAAAA-ABg/_td8nNjUIkQ/s1600/Image4.gif>. Acesso em: 25 set. 2017.

Dessa forma, uma vez que os alunos decodifi cam, quando dominam o sistema alfabético da própria língua, outras atividades são requeridas para se construírem os sentidos, ou seja, é preciso que haja ativação de conhecimentos prévios e que se estabeleça um horizonte apreciativo para que haja dialogismo na leitura, para que juntos dialoguem leitor e autor.

O conhecimento atualmente disponível a respeito do processo leitura indica que não se deve ensinar a ler por meio de práticas centradas na decodifi cação. [...] É preciso que antecipem, que façam inferências a partir do contexto ou do conhecimento prévio que possuem, que verifi quem suas suposições (BRASIL, 2000, p. 55).

Nesse sentido, os autores textuais, ao se enunciarem por meio da escrita, deixam lapsos de informação que só o leitor pode preencher e, dessa forma, construir os sentidos não de todo enunciados:

Ler não é extrair sentidos do texto, tampouco atribuir qualquer sentido ao texto. A primeira ação implicaria uma postura passiva do leitor; enquanto a segunda apagaria, sob vários aspectos, a voz do autor. Assim, se não se trata de atribuição de qualquer sentido, trata-se de interação do leitor com o autor (RODRIGUES, 2011, p. 175).

Ler, nesse contexto, em que se pressupõe uma concepção interacionista de linguagem, é dialogismo, é uma espécie de confronto entre os horizontes sociais, históricos e culturais do autor e do leitor, confronto por meio do qual espera-se que o leitor, a cada leitura, internalize relações intersubjetivas, expanda seu universo intertextual e, inevitavelmente, saia modifi cado.

A leitura, consequentemente, dá-se enquanto tecido comum ao autor e ao leitor, como na metáfora do bordado relatado a seguir, sempre renovado por um processo dialógico em que se entrama

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UNIDADE 3 | ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

as pontas dos fios do bordado tecido para tecer sempre o mesmo e outro bordado, pois as mãos que agora tecem trazem e traçam outra história. Não são mãos amarradas – se o fossem, a leitura seria reconhecimento de sentidos e não produção de sentidos; não são mãos livres que produzem o seu bordado apenas com os fios que trazem nas veias de sua história – se o fossem, a leitura seria um outro bordado que se sobrepõe ao bordado que se lê, ocultando-o, apagando-o, substituindo-o. São mãos carregadas de fios, que retomam e tomam os fios que no que se disse pelas estratégias de dizer se oferece para a tecedura do mesmo e outro bordado (RODRIGUES, 2011, p. 176).

Eis, no que tange à leitura, a tarefa primordial da escola: a formação de leitores competentes para lidar com a diversidade e a complexidade dos textos que circulam socialmente, de um aluno cidadão que decodifica, compreende, interpreta e retém o que lê, na medida em que sabe utilizar estratégias de leitura tal qual os bons leitores o fazem de modo autodidata.

2.1 ETAPAS DA LEITURA

O processo de leitura pode ser resumido em quatro etapas sequenciais: decodificação, compreensão, interpretação e retenção. A decodificação muitas vezes é relacionada à leitura superficial do texto, visto que, apenas por meio dela, não se modifica a visão de mundo do leitor, mas dá-se o necessário reconhecimento dos aparatos linguístico e fonológico da língua em direção a um significado, inicialmente mais próximo do sentido literal, dado por meio de automatismos de identificação das palavras e das frases enunciadas.

É preciso superar algumas concepções sobre o aprendizado inicial da leitura. A principal delas é a de que ler é simplesmente decodificar, converter letras em sons, sendo a compreensão natural dessa ação. Por conta dessa concepção equivocada a escola vem produzindo grande quantidade de “leitores” capazes de decodificar qualquer texto, mas com enormes dificuldades para compreender o que tentam ler (BRASIL, 2000, p. 55).

Uma vez decodificado o texto, o leitor passa à etapa de compreensão, por meio da qual busca o sentido ali enunciado de modo a identificar a tipologia textual, a intenção do autor, o contexto e a temática a que se refere, de forma a poder sintetizar o texto em palavras e ideias-chave. Nesse momento, a interação visa captar e resumir a intencionalidade, independentemente das inferências que pouco a pouco vão surgindo durante o processo de leitura.

Assim, ao ter captado o contexto histórico e social que embasou o texto enunciado e, consequentemente, a visão de mundo apresentada pelo autor, o leitor está livre para inferir hipóteses a partir dos fatos e das informações apresentados no texto, constituindo uma nova etapa de leitura – dialógica, no sentido bakhtiniano do termo –: etapa de interpretação.

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TÓPICO 2 | A LEITURA E A FORMAÇÃO DO LEITOR

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Uma prática constante de leitura na escola deve admitir várias leituras, pois outra concepção que deve ser superada é a do mito da interpretação única, fruto do pressuposto de que o significado está dado no texto. O significado, no entanto, constrói-se pelo esforço de interpretação do leitor, a partir não só do que está escrito, mas do conhecimento que traz para o texto (BRASIL, 2000, p. 57).

Na etapa de retenção, as informações levantadas nas etapas anteriores são retidas, armazenadas e reelaboradas através de comparações, analogias, reconhecimento de subentendidos, capacitando o leitor a aplicá-las em outros contextos, elaborando suas próprias análises e críticas.

Formar um leitor competente supõe formar alguém que compreenda o que lê; que possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos implícitos; que estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos já lidos; que saiba que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto; que consiga justificar e validar a sua leitura a partir da localização de elementos discursivos (BRASIL, 2000, p. 54).

Sintetizamos, a seguir, a título ilustrativo, três critérios possíveis de leitura e análise de texto, segundo norteamentos metodológicos para pesquisa e leitura de trabalhos científicos, portanto destinados a sujeitos escolarizados, que perfazem, em seu processo de leitura, as quatro etapas enunciadas, aqui repensadas em outra chave de leitura:

1. Análise textual: primeira abordagem do texto visando à preparação da leitura. É uma primeira leitura, de visão panorâmica, que faz sentir o estilo do autor e a estrutura do texto. Nessa etapa, o leitor busca alguns esclarecimentos para melhor compreensão do texto: a) dados a respeito do autor, de suas ideias; b) estudo do vocabulário, levantando termos e conceitos fundamentais para a compreensão do texto; c) esquematização do texto, apresentando uma visão de conjunto; d) resumo do texto, destacando as ideias mais relevantes.

2. Análise temática: etapa centrada em compreender a intenção autoral, o conteúdo da mensagem, e que se faz mediante alguns questionamentos, como: De que fala o texto? Como o texto está problematizado? Qual dificuldade deve ser resolvida? Qual problema a ser solucionado? Como o autor responde ao problema levantado? Quais ideias paralelas são apresentadas ao tema central?

3. Análise interpretativa: nessa etapa, o leitor com uma posição a respeito das ideias enunciadas, situando-a nas entrelinhas do que foi lido, é quando: a) o leitor situa o texto no contexto da vida e da obra do autor, assim como da cultura, da história; b) o leitor relaciona as ideias do autor a outras ideias relacionadas à mesma temática; c) o leitor exerce uma atitude crítica frente ao posicionamento do autor, testando a validade dos argumentos empregados, a originalidade da abordagem, levando o leitor a chegar a uma apreciação própria das ideias defendidas no texto; d) o leitor problematiza, põe em debate as questões implícitas e explícitas no texto; e) o leitor sintetiza de modo pessoal o que foi lido, reelaborando a mensagem a partir de suas reflexões.

FONTE: SEVERINO, Antonio J. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2002, p. 51-58.

NOTA

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UNIDADE 3 | ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

3 PRÁTICAS DE LEITURA EM SALA DE AULA

Primeiramente, devemos anotar que o processo de leitura, que na escola associa-se de modo complementar à formação do aluno enquanto produtor de textos, não se restringe à intencionalidade escolar. A leitura atende a diferentes objetivos do sujeito leitor, que se diferenciam conforme a sua inserção social e histórica e as inter-relações que estabelece com outros sujeitos também situados em contextos sociais e históricos próprios:

Lemos para buscar informações – a exemplo de ler uma notícia de jornal –, para estudar um texto – leituras que fazemos costumeiramente na escola –, por fruição – ler uma obra literária ou revistas de amenidades, por exemplo – ou por pretexto – entendido, nessa acepção, como instrumento para ações de outra natureza, como ler um romance para adaptá-lo a um enredo de filme (RODRIGUES, 2011, p. 159).

Essa diversidade de relações que sujeitos situados historicamente realizam por meio da leitura leva a pensar a formação do leitor incluindo os gêneros discursivos, que têm a virtude de trazer os textos socialmente relevantes para dentro dos muros escolares, tornando a escola um lugar de propiciar uma leitura de “inúmeras outras finalidades, a exemplo de ler por curiosidade – o que move a chamada imprensa marrom –; ler para agir – leitura de manuais e equipamentos domésticos ou displays de instrumentos eletrônicos, por exemplo; ler para se mover – ler placas de ruas ou indicadores de linhas de ônibus etc.” (RODRIGUES, 2011, p. 159).

Dessa forma, o trabalho em sala de aula visa ir além das clássicas leituras literárias que, ainda que relevantes, tinham como finalidade dotar o aluno de maior erudição, e passa a escola a voltar-se para abarcar o maior número de gêneros textuais que circulam socialmente, os quais têm sido incorporados e recomendados em documentos institucionalizados, como os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa:

Como se trata de uma prática social complexa, se a escola pretende converter a leitura em objeto de aprendizagem deve preservar sua natureza e sua complexidade, sem descaracterizá-la. Isso significa trabalhar com a diversidade de objetivos e modalidades que caracterizam a leitura, ou seja, os diferentes “para quês” – resolver um problema prático, informar-se, divertir-se, estudar, escrever ou revisar o próprio texto – e com as diferentes formas de leitura em função de diferentes objetivos e gêneros (BRASIL, 2000, p. 54-55).

Estabelecido o norteamento do ensino e aprendizagem da leitura por via dos gêneros discursivos, cabe à instituição escolar proceder rearranjos didático-pedagógicos que organizem o trabalho de leitura em torno da maior diversidade textual possível, para além da leitura voltada para resolução de questões diárias e práticas, contribuindo assim para a formação de leitores cidadãos. “Principalmente quando os alunos não têm contato sistemático com bons materiais de leitura e

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TÓPICO 2 | A LEITURA E A FORMAÇÃO DO LEITOR

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com adultos leitores, quando não participam de práticas onde ler é indispensável, a escola deve oferecer materiais de qualidade, modelos de leitores proficientes e práticas de leitura eficazes” (BRASIL, 2000, p. 55).

As práticas de leitura requerem condições favoráveis à leitura, que nos PCN (BRASIL, 2000, p. 58-59) podem ser assim resumidas:

• Dispor de biblioteca e materiais de leitura na escola;• Organizar momentos de leitura livre em que o professor também

leia;• Planejar as atividades diárias conferindo à leitura o mesmo papel

que as demais atividades;• Possibilitar a escolha de suas leituras pelos alunos. Fora da escola,

o autor, a obra ou o gênero são decisões do leitor. Tanto quanto for possível, é necessário que isso se preserve na escola;

• Quando houver oportunidade de sugerir títulos a serem adquiridos pelos alunos, optar pela variedade: é infinitamente mais interessante que haja na classe, por exemplo, 35 diferentes livros do que três livros iguais;

• Construir na escola uma política de formação de leitores na qual todos possam contribuir com sugestões para uma prática constante de leitura que envolva o conjunto da unidade escolar.

Ainda segundo os PCN, tais condições necessárias devem aliar-se a variadas propostas didáticas destinadas à formação de leitores, dentre as quais se destacam: leitura diária, leitura colaborativa, projetos de leitura, atividades sequenciais de leitura, atividades permanentes de leitura e leitura realizada pelo professor (BRASIL, 2000). Deslindaremos algumas delas, reproduzindo trechos dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e destacando os seus aspectos mais importantes.

A Leitura diária pode ser realizada: a) de forma silenciosa, individualmente; b) em voz alta, individualmente ou em grupo; c) pela escuta de alguém que lê. Para que ela ocorra, entretanto, alguns cuidados devem ser tomados (BRASIL, 2000, p. 60-65):

• Toda proposta de leitura em voz alta precisa fazer sentido dentro da atividade na qual se insere e o aluno deve sempre poder ler o texto silenciosamente, com antecedência – uma ou várias vezes;

• Quando há diferentes interpretações para um mesmo texto, faz-se necessário negociar o significado (validar interpretações), essa negociação precisa ser fruto da compreensão do grupo e produzir-se pela argumentação dos alunos. Ao professor cabe orientar a discussão, posicionando-se apenas quando necessário;

• Ao propor atividades de leitura convém sempre explicitar os objetivos e preparar os alunos. É interessante, por exemplo, dar conhecimento do assunto previamente, fazer com que os alunos levantem hipóteses sobre o tema a partir do título, oferecer informações que situem a leitura, criar um certo suspense quando for o caso etc.;

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• É necessário refletir com os alunos sobre as diferentes modalidades de leitura e os procedimentos que elas requerem do leitor. São coisas muito diferentes ler para se divertir, ler para escrever, ler para estudar, ler para descobrir o que deve ser feito, ler buscando identificar a intenção do escritor, ler para revisar. É completamente diferente ler em busca de significado – a leitura, de um modo geral – e ler em busca de inadequações e erros – a leitura para revisar. Esse é um procedimento especializado que precisa ser ensinado em todas as séries, variando apenas o grau de aprofundamento em função da capacidade dos alunos.

A Leitura colaborativa é a forma de leitura em que o professor, ao passo que lê um texto em sala de aula, convoca os alunos a participarem através de pistas linguísticas que possibilitam chegar a determinados sentidos.

A possibilidade de interrogar o texto, a diferenciação entre realidade e ficção, a identificação de elementos discriminatórios e recursos persuasivos, a interpretação de sentido figurado, a inferência sobre a intencionalidade do autor, são alguns dos aspectos dos conteúdos relacionados à compreensão de textos, para os quais a leitura colaborativa tem muito a contribuir (BRASIL, 2000, p. 61).

Os Projetos de leitura têm um objetivo que é comum, compartilhado por todos os envolvidos no projeto, conferindo aos alunos maior autonomia de leitura, distribuição de tarefas e maior flexibilidade ao tempo de realização das atividades, que em geral são: promoção de eventos de leitura, feira cultural, exposição de trabalhos, produção de vídeos etc.

Os projetos são situações em que linguagem oral, linguagem escrita, leitura e produção de textos se inter-relacionam de forma contextualizada, pois quase sempre envolvem tarefas que articulam esses diferentes conteúdos. São situações linguisticamente significativas, em que faz sentido, por exemplo, ler para escrever, escrever para ler, ler para decorar, escrever para não esquecer, ler em voz alta em tom adequado (BRASIL, 2000, p. 62).

As Atividades sequenciais de leitura se assemelham aos projetos, podendo deles participar, sem entretanto haver um resultado final determinado de antemão, pois o único objetivo é a própria leitura. No sequenciamento da leitura pode-se eleger gênero, tema, autor etc.

São situações didáticas adequadas para promover o gosto de ler e privilegiadas para desenvolver o comportamento do leitor, ou seja, atitudes e procedimentos que os leitores assíduos desenvolvem a partir da prática de leitura: formação de critérios para selecionar o material a ser lido, constituição de padrões de gosto pessoal, rastreamento da obra de escritores preferidos, etc. (BRASIL, 2000, p. 63).

As Atividades permanentes de leitura buscam a regularidade, propiciando uma didática que facilite o processo de leitura. É o caso da “Roda de leitores”, em que os alunos leem um livro em casa e, em certo dia acertado pelo grupo, comentam suas impressões acerca dos textos lidos. Em geral, é pertinente incluir uma breve caracterização biográfica do autor.

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Um exemplo desse tipo de atividade é a “Hora de...” (histórias, curiosidades científicas, notícias etc.). Os alunos escolhem o que desejam ler, levam o material para casa por um tempo e se revezam para fazer a leitura em voz alta, na classe. Dependendo da extensão dos textos e do que demandam em termos de preparo, a atividade pode se realizar semanalmente ou quinzenalmente, por um ou mais alunos a cada vez (BRASIL, 2000, p. 63).

Uma última prática, recomendada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, consiste na Leitura feita pelo professor, que trata de uma forma de leitura compartilhada e realizada pelo professor por abranger textos mais complexos ou de tamanho extenso, às vezes capítulos ou unidades de livros, e que é realizada visando dirimir dificuldades e, por vezes, acrescer uma beleza textual dificilmente percebida por um leitor não habilitado. “A leitura em voz alta feita pelo professor não é uma prática muito comum na escola. E, quanto mais avançam as séries, mais incomum se torna, o que não deveria acontecer, pois, muitas vezes, são os alunos maiores que mais precisam de bons modelos de leitores” (BRASIL, 2000, p. 64).

Essas práticas de leitura são recomendadas reiteradamente pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa porque muitas razões as fundamentam, dentre as quais cabe destacar (BRASIL, 2000, p. 64-65):

• Ampliar a visão de mundo e inserir o leitor na cultura letrada;• Estimular o desejo de outras leituras;• Possibilitar a vivência de emoções, o exercício da fantasia e da

imaginação;• Permitir a compreensão do funcionamento comunicativo da escrita:

escreve-se para ser lido;• Expandir o conhecimento a respeito da própria leitura;• Aproximar o leitor dos textos e os tornar familiares – condição para

a leitura fluente e para a produção de textos;• Possibilitar produções orais, escritas e em outras linguagens;• Informar como escrever e sugerir sobre o que escrever;• Ensinar a estudar;• Possibilitar ao leitor compreender a relação que existe entre a fala e

a escrita;• Favorecer a aquisição de velocidade na leitura;• Favorecer a estabilização de formas ortográficas.

Enfim, tornar os alunos bons leitores, desenvolvendo neles um compromisso com a leitura, é uma das tarefas cidadãs da escola, visto que não basta elencar práticas de leitura se elas não se destinarem, mediante práticas pedagógicas eficientes, a despertar o desejo de leitura, de aprender a ler para ler e para aprender.

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Neste tópico, você viu que:

• A leitura, entendida em uma proposta enunciativa-discursiva, dá-se como ato dialógico entre os contextos social, histórico e ideológico, que circundam o autor, o texto e o leitor. O leitor, nesse sentido, age no processo de leitura buscando novas experiências, defendendo suas hipóteses, ativando conhecimentos prévios, assumindo uma atitude não passiva, de confronto diante do texto.

• O leitor ativo busca pistas, formula e reformula hipóteses, negocia, aceita, rejeita conclusões apresentadas, põe interrogação onde há um ponto final; enfim, usa estratégias, aciona leituras prévias, afastando-se do tradicional entendimento de leitura como decodificação, que é apenas uma etapa do processo de leitura.

• Em linguística aplicada, além da decodificação (que pressupõe o domínio do código alfabético da língua), há três outras etapas no processo de leitura: compreensão (que busca entender a intenção autoral através da mensagem textual), interpretação (momento em que o leitor começa a testar suas próprias hipóteses, fazer inferências etc.), e a etapa de retenção (quando o leitor incorpora o significado dialógico do texto, levando-o para outras esferas da vida social para além do texto lido).

• Visando à formação de bons leitores e afinado com os avanços da linguística aplicada, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa recomendam algumas práticas de leitura para o exercício em sala de aula, dentre as quais cabe destacar: leitura diária, leitura colaborativa, projetos de leitura, atividades sequenciais de leitura, atividades permanentes de leitura e leitura realizada pelo professor.

RESUMO DO TÓPICO 2

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AUTOATIVIDADE

I- DecodificaçãoII- CompreensãoIII- InterpretaçãoIV- Retenção

( ) Nesta etapa, as informações levantadas nas etapas anteriores são armazenadas e reelaboradas através de comparações, analogias, reconhecimento de subentendidos, capacitando o leitor a aplicá-las em outros contextos.

( ) Etapa em que o leitor pode inferir hipóteses a partir dos fatos e das informações apresentadas no texto, constituindo uma etapa dialógica de leitura.

( ) Etapa que visa identificar a tipologia textual, a intenção do autor, o contexto e a temática a que se refere o texto lido.

( ) Etapa muitas vezes entendida como leitura superficial do texto, visto que, embora necessária, por si só não se modifica a visão de mundo de um leitor.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) I – III – IV – II. b) ( ) II – I – III – IV. c) ( ) IV – III – II – I. d) ( ) IV – III – I – II.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) compreensão – tema – social b) ( ) decodificação – texto – ativac) ( ) interpretação – assunto – linguísticad) ( ) retenção – texto – passiva

2 Ler, no sentido contemporâneo que lhe empresta a Linguística Aplicada, é muito mais do que um exercício de ______ dos signos linguísticos, mas ao contrário, um confronto entre os universos históricos do autor e do leitor mediados pelo ______, diante do qual o leitor almejado pela escola deve ter uma atitude ______, dialógica, que põe em jogo todos os seus conhecimentos prévios acerca da temática sugerida.

1 O leitor letrado, que tem pleno domínio do sistema alfabético de sua língua materna, percorre etapas e sequências durante o processo de leitura. Ele decodifica os signos linguísticos, compreende a intenção do autor, formula hipóteses, faz inferências, interpreta o texto lido e retém significados que reelabora em suas práticas sociais com o mundo. A partir dos pontos de vista das etapas de leitura e considerando as sentenças, associe os itens, utilizando o código a seguir:

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( ) As “Rodas de leitores”, em que os alunos leem um livro em casa e, em um dia acertado pelo grupo, comentam suas impressões acerca dos textos lidos, pode ser considerado uma modalidade de Projeto de leitura.

( ) A “Leitura feita pelo professor” é uma forma de leitura compartilhada, realizada pelo professor, que abrange textos mais complexos ou de tamanho extenso, às vezes capítulos ou unidades de livros, e que é realizada visando dirimir dificuldades que os alunos ainda são incapazes de superar sozinhos.

( ) A forma de leitura em que o professor, à medida que lê um texto em sala de aula, convoca os alunos a participarem através de algumas pistas linguísticas é conhecida como “Leitura colaborativa”.

( ) As “Atividades sequenciais de leitura” em nada se assemelham aos “Projetos de leitura”, embora possam deles participar, já que ambas as práticas de leitura têm um resultado final determinado de antemão.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) A sequência correta é V – F – V – F. b) ( ) A sequência correta é F – V – V – F.c) ( ) A sequência correta é V – V – F – F.d) ( ) A sequência correta é F – F – V – V.

3 Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa propõem diversas práticas de leitura que visam à formação de bons leitores em sala de aula, dentre as quais se destacam: leitura diária, leitura colaborativa, projetos de leitura, atividades sequenciais de leitura, atividades permanentes de leitura e leitura realizada pelo professor. A partir dessa reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas, associando as práticas de leitura aos enunciados relacionados a seguir:

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TÓPICO 3

A ESCRITA E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Prezado acadêmico, se no tópico anterior pudemos observar o quanto um processo eficiente e qualificado de leitura pode em larga medida embasar a produção textual dos alunos, é porque, mais do que a leitura, a produção de textos – seja na modalidade oral, seja na modalidade escrita da língua – acaba por configurar-se como objetivo central do ensino de língua portuguesa.

A escola se encarregaria de uma elaboração didática que mediaria as práticas de leitura e as práticas de escrita mediante as práticas de análise linguística, integrando esses três enfoques do processo de ensino e aprendizagem de língua materna ao exercício dos gêneros do discurso e dos estudos de letramento, distanciando-se, portanto, da ênfase tradicionalmente centrada na redação escolar.

A produção textual, visada pelos estudos de Linguística Aplicada, muda o enfoque teórico e metodológico, tradicionalmente comprometido em formar alunos aptos à redação escolar – em última instância destinando o estudo à aprovação em concursos e provas vestibulares que, na economia livre de mercado, regulam em grande medida a ascensão social –, cuja base está em uma concepção abstrata de língua, descomprometida com as modificações das relações sociais demandadas pela realidade dos sujeitos.

Nesse sentido, as práticas de letramento tradicionais visavam tão somente à aquisição da habilidade de escrita dada de forma independente das relações e práticas sociais vividas pelos sujeitos, os quais seriam continuamente demandados a uma produção artificial de textos para serem lidos quase exclusivamente pelos professores, e realizados desconsiderando as condições de produção e a situação social de interação a que se destinariam tais textos.

Descomprometida com as práticas sociais vividas além dos muros da escola, essa forma limitada de produção textual restringia-se quase exclusivamente à aplicabilidade da aquisição da competência escrita à redação escolar, ao invés de consagrar tais práticas ao exercício da reflexão e, muitas vezes, de capacitar os sujeitos para, mediante a produção textual oral ou escrita, intervir em seu mundo sociocultural.

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UNIDADE 3 | ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

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2 CONCEPÇÕES DE ESCRITA

A intersecção entre leitura e escrita tem seu ponto comum de encontro no texto, no qual está enunciado um conjunto de discursos que remete às relações intersubjetivas do leitor e do autor. A escrita, nesse sentido, pode ser concebida como um desses lugares de enunciação no qual o leitor qualificado arregimenta as diversas leituras retidas em seu universo intertextual, convergindo-as para uma direção marcada pelos vetores da produção escrita.

Esses vetores estão dados no mundo temporal, social e histórico no qual está inserido o sujeito autor de textos, que não está restrito, portanto, ao mundo interior da escola, nem a uma produção textual voltada quase exclusivamente para o mercado de trabalho, como no caso dos textos redacionais exigidos nas provas escolares, concursos ou vestibulares.

FIGURA 13 – ESCRITA DESVINCULADA DO MUNDO

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-ZDTn5kz-3pc/VXHh26_a15I/AAAAAA-AAF8U/8IMElHTZXI0/s640/P%2B8%2B2.jpg>. Acesso em: 25 set. 2017.

Ao contrário, o produtor de textos já tem uma direção advinda de sua prática interdiscursiva e condicionada pelos usos sociais da língua, ou seja, modelada pelo gênero discursivo com o qual ele irá se expressar. O oposto dessa situação é a metodologia das escolas tradicionais que limitam a escrita a um mundo isolado, particular, onde

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TÓPICO 3 | A ESCRITA E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTO

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produziam-se textos para o professor e para a escola, em uma situação artificializada de escrita, que fugia às condições dos usos sociais da língua. Escrever, por exemplo, fora de determinadas condições de produção – ou seja, fora de uma situação social de interação e seu gênero do discurso, desconsiderando para quem escrevemos, por que o fazemos etc. (RODRIGUES, 2011, p. 191).

A produção textual, no afã da linguística aplicada, afasta-se dessa tipologia de textos restritos à escola, para abrir-se à linguagem e à produção de textos “na” escola, onde a sala de aula substitui a tradicional pedagogia de transmissão de conhecimento pela pedagogia da interação, da promoção do diálogo entre os diversos sujeitos e os diversos saberes.

São esses saberes do mundo vivido de professores e alunos que se confrontam e dialogam com os conhecimentos sistematizados (científicos e escolares), e que vão produzir novas possibilidades de ação pedagógica. Nessa perspectiva, o professor desloca-se da posição de mero corretor de texto do aluno para seu interlocutor (RODRIGUES, 2011, p. 193).

Nesse sentido, um produtor de textos competente é aquele que se inteira das condições culturalmente postas ao produzir o seu discurso, que planeja o texto conforme sua intenção e prevê o leitor ao qual o texto se destina, portanto sabe selecionar o gênero discursivo apropriado aos seus objetivos, compreendendo as características inerentes ao gênero escolhido e à situação enunciativa a que se destina.

Por exemplo: se o que deseja é convencer o leitor, o escritor competente selecionará um gênero que lhe possibilite a produção de um texto predominantemente argumentativo; se é fazer uma solicitação a uma determinada autoridade, provavelmente redigirá um ofício; se é enviar notícias a familiares, escreverá uma carta (BRASIL, 2000, p. 65).

Escrever, portanto, deixa de ser pensada como uma atividade abstrata sem finalidade precisa, para ser compreendida – por meio dos gêneros do discurso e de uma concepção sociointeracionista da linguagem – numa relação direta com situações práticas específicas, das quais podem ser destacadas, a pensar com Geraldi (1993, p. 160):

• Que se tenha o que dizer;• Que se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;• Que se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;• Que o locutor [autor do texto] se constitua como tal, enquanto sujeito

que diz o que diz para quem diz (o que implica responsabilizar-se, no processo, por suas falas);

• Que se escolham as estratégias para realizar: o que se tenha a dizer, a razão para dizer o que se tem a dizer, o que se tenha para quem dizer o que se tem a dizer, que o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz.

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A produção de textos na escola deve voltar-se, dessa maneira, para uma outra forma de elaboração didática, que não a do professor como apenas balizador da norma-padrão ou corretor da grafia, mas numa abordagem interativa que capacite o aluno a uma textualidade participativa, portanto, de uma ação educativa que não se dê ao final do texto escrito, mas dada na interlocução com as práticas sociais que requisitam o educando a intervir em situações para além da sala de aula.

Vejamos um exemplo ilustrativo de uma produção textual realizada por meio dos gêneros do discurso e orientada a partir da interlocução na escola, em que o produtor textual/educando, aqui nomeado de Pedro, resolve reagir a uma publicação de jornal que, ao generalizar a violência em seu bairro, o atinge em seu brio de cidadão, que embora habitante do referido bairro, não possui índole violenta. O educando resolve dar sua contra-palavra publicamente, através do próprio jornal:

Como leitor do jornal, ou seja, como participante da esfera do jornalismo, sabe que o único gênero por meio do qual pode se enunciar nessa esfera é a carta ao leitor, que será lida inicialmente pelo editor da seção onde esse gênero é publicado. Sabe, também, que se a carta for longa será editada ou não publicada; também corre o risco de não ser publicada se ele se enunciar em um tom grosseiro e ofensivo. Diante desse horizonte apreciativo-enunciativo, tal como e como o concebe o Círculo de Bakhtin, redige uma carta curta, em que, num tom formal e educado, expõe sua discordância das posições apresentadas pelo jornalista que assina a reportagem (RODRIGUES, 2011, p. 194-195).

Resumidamente, o exemplo ilustra a posição de um educando ideal, orientado para assumir, por meio da escrita, uma posição social relevante e de responsabilidade, que detinha os conhecimentos necessários para uma produção textual socialmente eficiente, relacionadas a seguir:

• Que o educando tem conhecimento do gênero discursivo adequado, ou seja, “a carta ao leitor”.

• Que o educando sabe selecionar os modos de dizer, ao ter escolhido a estratégia enunciativa-discursiva “texto curto em tom respeitoso”.

• Que o educando estava ciente das finalidades específicas de sua produção textual, a saber: que seu texto seria produzido na esfera social do “jornalismo”; que o texto se destinava a interlocutores precisos – o “editor do jornal” e outros interlocutores, como ele, “leitores de jornal”; que o educando sabia o que dizer ao “argumentar pontos de vista discordantes dos apresentados pelo jornalista”; e, finalmente, que o educando, “ao defender os moradores do bairro, da generalização injusta do jornalista, perante os leitores do jornal”, revelou ter uma razão para dizer.

O que está em discussão aqui é como pensar uma escola que se paute pelas teorias do letramento e dos gêneros do discurso, de modo a formar um produtor textual competente, isto é, que planeja seu discurso conhecendo as possibilidades

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TÓPICO 3 | A ESCRITA E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTO

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que lhe estão postas culturalmente e que, dessa forma, sabe selecionar e respeitar as especificidades do gênero discursivo próprio à situação enunciativa para a qual se põe a escrever.

Não apenas isso, a formação da competência em produzir textos também demanda saberes reflexivos sobre a própria língua e a capacidade de não somente expressar, mas simultaneamente organizar o texto. Assim, se a expressão na escrita se relacionaria com um fluxo livre de ideias e palavras, a capacidade organizativa relaciona-se a bloqueios a esse fluxo, quando o produtor textual freia o texto, contempla, lê criticamente, revisa dados de correção de linguagem, analisa e, dessa forma, faz o autor leitor de si mesmo.

Um escritor competente é, também, capaz de olhar para o próprio texto como um objeto e verificar se está confuso, ambíguo, redundante, obscuro ou incompleto. Ou seja: é capaz de revisá-lo e reescrevê-lo até considerá-lo satisfatório para o momento. É, ainda, um leitor competente, capaz de recorrer, com sucesso, a outros textos quando precisa utilizar fontes escritas para a sua própria produção (BRASIL, 2000, p. 66).

Destarte, a competência na escrita requer saber não apenas aspectos discursivos da linguagem, mas que o educando seja capaz de entender o funcionamento da linguagem utilizada ao escrever, pois, sabemos, a escrita não funciona como espelho da fala, demandando, portanto, conhecimento dos aspectos notacionais da produção textual, assim como conhecimento dos aspectos revisionais e de análise linguística.

2.1 ANÁLISE LINGUÍSTICA E REVISÃO DE TEXTOS

Ao se pretender melhorar a capacidade de compreensão e expressão dos educandos, não apenas em situações de comunicação oral, mas principalmente de escrita, faz-se necessário expandir sua capacidade de interpretação e produção de textos para os quais torna-se importante tomar a própria língua como objeto de reflexão.

Tal atividade é sustentada, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 2000, p. 78), sobre dois pressupostos: “a capacidade humana de refletir, analisar, pensar sobre os fatos e os fenômenos da linguagem; e a propriedade que a linguagem tem de poder referir-se a si mesma, de falar sobre a própria linguagem”.

Assim, ao se refletir sobre a própria linguagem realiza-se uma atividade de análise linguística, que pode voltar-se ora para o uso dado em situações de interlocução que se dão naturalmente, ora para a descrição e categorização dos elementos linguísticos que permitem falar da língua independente do uso.

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Tanto em um quanto em outro tipo de análise não se pretende falar da língua em si, ou seja, falar por falar, mas exercer uma reflexão que vise melhorar a qualidade da produção textual.

O ensino de Língua Portuguesa, pelo que se pode observar em suas práticas habituais, tende a tratar essa fala da e sobre a linguagem como se fosse um conteúdo em si, não como um meio para melhorar a qualidade da produção linguística. É o caso, por exemplo, da gramática que, ensinada de forma descontextualizada, tornou-se emblemática de um conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve para ir bem na prova e passar de ano – uma prática pedagógica que vai da metalíngua para a língua por meio de exemplificação, exercícios de reconhecimento e memorização de nomenclatura. Em função disso, tem-se discutido se há ou não necessidade de ensinar gramática. Mas essa é uma falsa questão: a questão verdadeira é para que e como ensiná-la (BRASIL, 2000, p. 39).

Um exemplo do primeiro caso, também chamado de atividades epilinguísticas, ou seja, de análise linguística voltada para o uso, é “quando, no meio de uma conversa, um dos interlocutores pergunta ao outro ‘o que você quis dizer com isso?’, ou ‘Acho que essa palavra não é a mais adequada para dizer isso. Que tal...?’, ou ainda ‘Na falta de uma palavra melhor, então vai essa mesma’” (BRASIL, 2000, p. 38).

No segundo caso, chamada de atividades metalinguísticas, quando busca-se levantar as regularidades de aspectos da língua.

Assim, para que se possa discutir a acentuação gráfica, por exemplo, é necessário que alguns aspectos da língua – tais como a tonicidade, a forma pela qual é marcada nas palavras impressas, a classificação das palavras quanto a esse aspecto e ao número de sílabas, a conceituação de ditongo e hiato, entre outros – sejam sistematizados na forma de uma metalinguagem específica que favoreça o levantamento de regularidades e a elaboração de regras de acentuação (BRASIL, 2000, p. 39).

A análise linguística se expressa sobretudo através dos aspectos gramaticais do texto, convocando o escritor a monitorar a própria escrita, regulando a adequação ao gênero discursivo, bem como a outros itens gramaticais, como: coesão, coerência e correção da linguagem, portanto, é no interior da situação de produção textual que os aspectos gramaticais ganham maior relevância.

Estabelece-se, enquanto finalidade prática, um liame entre a análise linguística e a revisão de texto, ambas imbricadas à atividade da escrita.

Saber o que é substantivo, adjetivo, verbo, artigo, preposição, sujeito, predicado etc. não significa ser capaz de construir bons textos, empregando bem esses conhecimentos. Quando se enfatiza a importância das atividades de revisão é por esta razão: trata-se de uma oportunidade privilegiada de ensinar o aluno a utilizar os conhecimentos que possui, ao mesmo tempo que é fonte de conteúdos a serem trabalhados (BRASIL, 2000, p. 90).

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TÓPICO 3 | A ESCRITA E AS PRÁTICAS DE LETRAMENTO

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A revisão do texto tem um papel fundamental não apenas na prática da escrita, mas também por conjuntamente a ela articular a prática de leitura e a reflexão sobre a língua, e caracteriza-se pelos procedimentos que reitera-se sobre determinado texto até o ponto em que o escritor acredita que ele esteja suficientemente bem escrito, portanto, é uma atividade que pressupõe a produção de rascunhos abertos a alterações tanto formais quanto de conteúdo. “A maioria dos escritores iniciantes costuma contentar-se com uma única versão de seu texto e, muitas vezes, a própria escola sugere esse procedimento. Isso nada contribui para o texto ser entendido como processo ou para desenvolver a habilidade de revisar” (BRASIL, 2000, p. 73).

Nesse sentido, o trabalho com rascunhos passa a ser salutar, pois se configura como estratégia aberta à revisão constante, e também para que o educando possa perceber a provisoriedade dos textos e dê conta de seu próprio percurso. É nessa perspectiva que a revisão de textos passa a ser uma ferramenta didática que requer ser continuamente ensinada.

Isso significa deslocar a ênfase da intervenção, no produto final, para o processo de produção, ou seja, revisar, desde o planejamento, ao longo de todo o processo: antes, durante e depois. A melhor qualidade do produto, nesse caso, depende de o escritor, progressivamente, tomar nas mãos o seu próprio processo de planejamento, escrita e revisão dos textos (BRASIL, 2000, p. 74).

Em sala de aula, portanto, a revisão textual pretende-se uma atividade conjunta entre professor e alunos no intuito de detectar os pontos de divergência entre o que foi escrito e a intenção de dizer, assim como resolver problemas de texto – por exemplo, problemas com a correção da linguagem – mediante análise linguística.

A revisão de texto, como situação didática, exige que o professor selecione em quais aspectos pretende que os alunos se concentrem de cada vez, pois não é possível tratar de todos ao mesmo tempo. Ou bem se foca a atenção na coerência da apresentação do conteúdo, nos aspectos coesivos e pontuação, ou na ortografia. E, quando se toma apenas um desses aspectos para revisar, é possível, ao fim da tarefa, sistematizar resultados do trabalho coletivo e devolvê-lo organizadamente ao grupo de alunos (BRASIL, 2000, p. 81).

Se, de modo geral, a revisão de textos volta-se para a aplicação didática, progressiva e em interlocução, entre professor e aluno, acerca da coesão e coerência textuais e os aspectos gramaticais, as atividades de correção de linguagem merecem um certo destaque, visto que a revisão de textos praticada nas escolas tradicionais detém-se sobremaneira nesses aspectos, conferindo-lhes ou maior ênfase, ou dando-lhes um tratamento inadequado. São eles: a pontuação e a ortografia.

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O ensino de pontuação, para começar, não pode se confundir com o tradicional ensinar ‘sinais de pontuação’ para indicar pausas na leitura em voz alta, pois, mesmo que a pontuação possa ter essa função, ela é auxiliar. Ao contrário, a pontuação reporta-se a aspectos gráficos da escrita que visam indicar ao leitor unidades lógicas de processamento da leitura:

Aprender a pontuar é aprender a partir e reagrupar o fluxo do texto de forma a indicar ao leitor os sentidos propostos pelo autor, obtendo assim efeitos estilísticos. O escritor indica as separações (pontuando) e sua natureza (escolhendo o sinal) e com isso estabelece formas de articulação entre as partes que afetam diretamente as possibilidades de sentido (BRASIL, 2000, p. 88).

Nesse sentido, pode-se dizer que há mais de uma possibilidade de pontuar um texto, que não é nem a expressão direta da oralidade, tampouco uma soma de frases, mas sim uma espécie de organização do fluxo contínuo das palavras e frases, de modo a estabelecer ligação íntima e lógica entre as partes do texto. “A única regra obrigatória da pontuação é a que diz onde não se pode pontuar: entre o sujeito e o verbo e entre o verbo e seu complemento. Tudo o mais são possibilidades. Por isso – ao contrário da ortografia – na pontuação a fronteira entre o certo e o errado nem sempre é bem definida” (BRASIL, 2000, p. 89).

Quanto à ortografia, a ideia é substituir o ensino usual de apresentação de regras e fórmulas – geralmente seguidas das correções que o professor faz dos ditados e redações – por um trabalho de normatização ortográfica contextualizado, em que os alunos desenvolvam uma atitude crítica em relação à própria produção textual, que, em última instância, revela-se em desenvolver a preocupação com a adequação e correção dos textos.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, enquanto estratégias didáticas, organizam-se dois eixos para o ensino de ortografia, que devem favorecer suas especificidades. Eis os eixos e as especificidades a favorecer (BRASIL, 2000, p. 85):

• o eixo da distinção entre o que é “produtivo” e o que é “reprodutivo” na notação da ortografia da língua, permitindo no primeiro caso o descobrimento explícito de regras geradoras de notações corretas e, quando não, a consciência de que não há regras que justifiquem as formas corretas fixadas pela norma;

• o eixo da distinção entre palavras de uso frequente e infrequente na linguagem escrita impressa;

• deve favorecer a inferência dos princípios de geração da escrita convencional, a partir da explicitação das regularidades do sistema ortográfico;

• deve favorecer a tomada de consciência de que existem palavras cuja ortografia não é definida por regras e exigem, portanto, a consulta a fontes autorizadas e o esforço de memorização.

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3 DA REDAÇÃO À PRODUÇÃO TEXTUAL

Antes de nos debruçarmos sobre as concepções relevantes ao redor da escrita, é necessário acentuar que a produção textual envolve não apenas as produções orais e escritas de língua portuguesa pelos alunos, mas também é importante considerar a intersecção da produção textual com outras linguagens que não apenas a linguagem verbal. As novas tecnologias testemunham isso: uma nova face intersemiótica em que a palavra se produz em meio a um jogo contínuo de imagens.

No texto a seguir, observa-se a criação de textos situados na vida social e cultural dos alunos e a atuação de uma professora, dona Furquim, comprometida em formar produtores de texto.

A partir de hoje, em todas as aulas, vocês me tragam um pequeno texto livre. Uma história qualquer que tenha acontecido dia a dia. Dez linhas. Não é necessário mais que dez linhas. Entenderam?A classe inteira ficou encarando dona Furquim como se ela fosse a Mulher-maravilha. Será que dona Furquim estava caçoando da gente?- Dez linhas do quê, professora?Dona Furquim estava acabando de apanhar os livros de cima da mesa. Virou-se e repetiu, como se estivesse dizendo algo que nós devíamos saber de cor.- Vamos contar por escrito as coisas que acontecem todos os dias. O cotidiano de cada um. Mesmo que pareça um fato sem importância. Façam de conta que é uma brincadeira. Em casa, vocês arranjam um tempinho, passam para o papel um pouco da vida. Tanta coisa, não é mesmo? Sempre acontece tanta coisa na vida da gente!- Depois da aula geralmente a turma gostava de atirar bolotas de papel uns nos outros. Nesse dia ninguém atirou bolota em ninguém. Maria Clara de Ovo continuava coçando o dedo. O Neto cismou de perguntar se era para fazer a redação a tinta ou a lápis.Soara o sinal. Dona Furquim ia saindo:- À vontade. Tanto faz a tinta ou a lápis.Assim foi o primeiro dia de aula de dona Furquim. Ela nunca fez questão das coisas muito na ponta da língua. Gostava de dizer que é bom aprender para a vida. Como se aprende a andar. Foi por causa de dona Furquim que desse dia em diante passei a rabiscar coisas que aconteciam em minha vida. Enchi um caderno de redação e depois outro caderno de redação. Isto que estou contando aqui não passa de folhas soltas desses cadernos. No passar a limpo, procurei emendar os erros que dona Furquim havia corrigido. Emendei os erros, mas não modifiquei os fatos.

FONTE: DIAFÉRIA, Lourenço. Dona Furquim In: GERALDI, João Wanderley (Org). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006, p. 58.

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Quanto à produção escrita propriamente dita, cabe destacar a importância do ensino da redação escolar, desde que essa abordagem seja tomada como uma das modalidades de gênero discursivo escolarizado. Embora o resultado das redações seja em geral textos de conteúdo vago, abstrato, de estilo asséptico, formatadas com a finalidade única de atender aos parâmetros da norma gramatical padrão.

Mesmo que não concordemos com sua concepção de ensino e aprendizagem, ela [a redação] corresponde a uma situação social de interação: pertence à esfera escolar, tem finalidade discursiva (escrever um texto para o professor corrigir), concepção de autoria (posição de aluno) e interlocutor (o professor, a quem compete corrigir o texto tomando como base o respeito à norma-padrão e o enquadramento dentro de certas estruturas textuais (RODRIGUES, 2011, p. 192).

Enquanto gênero escolarizado, também relacionam-se: a aula, o ensaio, o seminário, o exercício de sala de aula, a prova, o livro didático. A finalidade da escola, entretanto, é maior, inclui não apenas essa modalidade de gênero do discurso, mas expande-se em um diálogo com textos e gêneros que permeiam o mundo vivido para além dos muros da escola.

Mudando de enfoque, é preciso pensar a sala de aula não como lugar de transmissão de conteúdos – cuja prevalência leva ao uso quase exclusivo dos gêneros discursivos escolarizados –, mas como lugar de interação dialógica, de convívio entre diversos saberes, enfim, de interação verbal.

A produção de textos na escola, nessa perspectiva, pressupõe a devolução da palavra ao aluno para que ele seja condutor do seu processo de aprendizagem. Isso não significa abolir o papel do professor, mas ressignificá-lo: de corretor da grafia e da norma-padrão do texto do aluno, professor e aluno passam a se debruçar sobre o dizer do aluno e o modo de dizer do aluno, em um processo dialógico de construção do conhecimento (RODRIGUES, 2011, p. 195).

Nesse sentido, a redação escolar deve ter seu lugar ocupado por práticas textuais intersubjetivas de maior eficácia para a formação do aluno produtor de textos. Requer, portanto, uma escola que incorpore práticas de produção textual dialógicas em seus procedimentos didático-pedagógicos.

3.1 PRÁTICAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL

Listamos, a seguir, práticas de escrita recomendadas de forma continuada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa para formação de produtores de texto competentes pela escola a partir de um tratamento didático específico que contém: projetos, textos provisórios, produção de apoio e situações de criação.

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Segundo os PCN (BRASIL, 2000, p. 69-77), o Tratamento didático refere-se aos procedimentos necessários para a prática constante de produção textual nas escolas, como:

• oferecer textos escritos impressos de boa qualidade, por meio da leitura. São esses textos que podem se converter em referências de escrita para os alunos;

• solicitar aos alunos que produzam textos muito antes de saberem grafá-los. Ditar para o professor, para um colega que já saiba escrever ou para ser gravado é uma forma de viabilizar isso. Quando ainda não se sabe escrever, ouvir alguém lendo o texto que produziu é uma experiência importante;

• propor situações de produção de textos, em pequenos grupos, nas quais os alunos compartilhem as atividades, embora realizando diferentes tarefas: produzir propriamente, grafar e revisar. Essa é uma estratégia didática bastante produtiva, porque permite que as dificuldades inerentes à exigência de coordenar muitos aspectos ao mesmo tempo sejam divididas entre os alunos. Eles podem, momentaneamente, dedicar-se a uma tarefa mais específica enquanto os outros cuidam das demais. São situações em que um aluno produz e dita a outro, que escreve, enquanto um terceiro revisa, por exemplo. Experimentando esses diferentes papéis enunciativos, envolvendo-se com cada um, a cada vez, numa atividade colaborativa, podem ir construindo sua competência para posteriormente realizarem sozinhos todos os procedimentos envolvidos numa produção de textos. Nessas situações, o professor tem um papel decisivo tanto para definir os agrupamentos como para explicitar claramente qual a tarefa de cada aluno, além de oferecer a ajuda que se fizer necessária durante a atividade;

• a conversa entre professor e alunos é, também, uma importante estratégia didática em se tratando da prática de produção de textos: ela permite, por exemplo, a explicitação das dificuldades e a discussão de certas fantasias criadas pelas aparências. Uma delas é a da facilidade que os bons escritores (de livros) teriam para redigir. Quando está acabado, o texto praticamente não deixa traços de sua produção. Este, muito mais que mostra, esconde o processo pelo qual foi produzido. Sendo assim, é fundamental que os alunos saibam que escrever, ainda que gratificante para muitos, não é fácil para ninguém.

Os Projetos, tal como nas práticas de leitura, são situações exemplares para a produção coletiva de textos de forma contextualizada, resultando em produtos diversos, como: cartazes de divulgação de festas escolares, panfletos, folhetos informativos, jornais mensais, cartilhas de cuidado com a saúde, murais, revistas sobre temas estudados, livros sobre temas pesquisados, coletâneas de textos de um mesmo gênero, dentre outros possíveis.

Outras vantagens dos Projetos, também apontadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 2000, p. 71), são:

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• de que podem apontar a necessidade de ler e analisar uma grande variedade de textos e portadores do tipo que se via produzir: como se organizam, que características possuem ou quais têm mais qualidade. Trata-se, nesse caso, de uma atividade de reflexão sobre aspectos próprios do gênero que será produzido. A tarefa de fazer um cartaz, por exemplo, poderá pôr em evidência o fato de que praticamente todos os cartazes são escritos com letras grandes – para permitir a leitura à distância – e com mensagens curtas – para que o leitor, mesmo caminhando, possa ler. Isso poderá alertar tanto alunos como professores sobre o fato de que cartazes produzidos com textos longos e letra manuscrita pequena (como algumas vezes se pode observar nos corredores das escolas) não são eficazes;

• o exercício de o escritor ajustar o texto à imagem que faz do leitor fisicamente ausente permite que o aluno aprenda a produzir textos escritos mais completos, com características de textos escritos mesmo. Por exemplo, deve aprender que não poderá usar dêiticos (ele, ela, aqui, lá etc.) sem que o referente já tenha aparecido anteriormente no texto (quem é ele, ela; onde é aqui, lá etc.); que não se pode ser tão redundante a ponto de correr o risco de o leitor desistir de ler o texto; que a correta ortografia pode ajudar na compreensão de quem lê; que, dificilmente, as pessoas suportam ler textos cuja letra é incompreensível;

• quando há leitores de fato para a escrita dos alunos, a necessidade de revisão e de cuidado com o trabalho se impõe, pois a legibilidade passa a ser um objetivo deles também e não só do professor;

• por intermédio dos projetos é possível uma intersecção entre conteúdos de diferentes áreas: por um lado, há os projetos da área de Língua Portuguesa que, em função do objetivo de trabalhar com textos informativos, privilegiam assuntos de outras áreas, dos temas transversais, por exemplo. Por outro lado, no ensino das outras áreas, é imprescindível que se faça uso do registro escrito como recurso de documentação e de estudo. Esse registro pode resultar na elaboração de portadores de textos específicos, ao final ou durante o trabalho. Por exemplo: fazer um diário de viagem (pelos lugares que estão sendo estudados); elaborar uma cartilha sobre o que é a coleta seletiva do lixo, sua importância e instruções para realização; escrever um livro sobre as grandes navegações; ou um panfleto com estatísticas a respeito de um assunto discutido;

• os projetos favorecem o necessário compromisso do aluno com sua própria aprendizagem. O fato de o objetivo ser compartilhado, desde o início, e de haver um produto final em torno do qual o trabalho de todos se organiza, contribui muito mais para o engajamento do aluno nas tarefas como um todo, do que quando essas são definidas pelo professor; determinadas práticas habituais que não fazem qualquer sentido quando trabalhadas de forma descontextualizada podem ganhar significado no interior dos projetos: a cópia, o ditado, a produção coletiva de textos, a correção exaustiva do produto final, a exigência de uma ortografia impecável etc.

Os Textos provisórios reportam-se a uma prática escolar que compreende a produção de textos como um processo no qual a materialidade da escrita permite um distanciamento tal que faz do escritor leitor e revisor de sua produção. A provisoriedade do texto é dada em geral por meio da produção de rascunhos, no qual a primeira versão redigida nunca é a versão última.

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A Produção com apoio é uma estratégia didática de contornar as inúmeras dificuldades apresentadas no processo de escrita, planejando por mais ênfase em algumas atividades a despeito de outras que podem não ser adequadas ao grupo de alunos em determinado momento. Eis algumas variáveis que, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 2000, p. 74-75), servem de apoio à produção textual na escola:

• reescrever ou parafrasear bons textos já repertoriados mediante a leitura;

• transformar um gênero em outro: escrever um conto de mistério a partir de uma notícia policial e vice-versa; transformar uma entrevista em uma reportagem e vice-versa etc.;

• produzir textos a partir de outros conhecidos: um bilhete ou carta que o personagem de um conto teria escrito a outro, um trecho do diário de um personagem, uma mensagem de alerta sobre os perigos de uma dada situação, uma notícia informando a respeito do desfecho de uma trama, uma crônica sobre acontecimentos curiosos etc.;

• dar o começo de um texto para os alunos continuarem (ou o fim, para que escrevam o início e o meio);

• planejar coletivamente o texto (o enredo da história, por exemplo) para que depois cada aluno escreva a sua versão (ou que o façam em pares ou trios).

As Situações de criação referem-se à disposição escolar de permitir ao aluno criar seus próprios textos, ensaiar suas questões individuais, mapear seus interesses, todas elas guiadas e avaliadas pelo professor, que passa a chamar a atenção para determinados aspectos, ajudando o aluno a expor suas preferências, dificuldades ou alternativas que desenhem um percurso próprio.

Uma forma de trabalhar a criação de textos são as oficinas ou ateliês de produção. Uma oficina é uma situação didática onde a proposta é que os alunos produzam textos tendo à disposição diferentes materiais de consulta, em função do que vão produzir: outros textos do mesmo gênero, dicionários, enciclopédias, atlas, jornais, revistas e todo tipo de fonte impressa eventualmente necessária (até mesmo um banco de personagens criados e caracterizados pelos próprios alunos para serem utilizados nas oficinas (BRASIL, 2000, p. 77).

A criação de textos relevantes para o aluno pressupõe um repertório qualitativo de modelos, pois nada se cria do ponto zero. É necessário ter boas referências a partir das quais seja possível criar e recriar a própria produção. Nesse sentido, uma contribuição interessante seria conhecer o processo criativo de outros escritores, sobretudo os consagrados e reconhecidos pela crítica especializada.

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Neste tópico, você viu que:

• Deve haver uma mudança de enfoque teórico e metodológico de produção textual que, em Linguística Aplicada, está voltada para dialogar, por meio de uma produção antenada aos gêneros discursivos, com as práticas sociais vividas além do espaço interior das escolas.

• Não se recomenda o trabalho centrado no gênero escolarizado redação escolar, visto que ele está apoiado em uma concepção abstrata de língua, descomprometida com as modificações das relações sociais demandadas pela realidade dos alunos.

• A escola avança quando busca desligar-se da produção artificial de textos para serem lidos quase exclusivamente por professores, recuperando as condições de produção e a situação social de interação a que se destinam os textos.

• As práticas de produção textual recomendadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa apontam estratégias de escrita contextualizada, a elas aliando práticas de análise linguística e revisão de textos a partir do exercício de uma reflexão também contextualizada ao mundo sociocultural dos alunos.

RESUMO DO TÓPICO 3

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1 O Gênero discursivo _______ escolar caracteriza-se por um evidente artificialismo, na medida em que o texto é escrito não em função de alguma demanda _____ do sujeito, mas para ser lida e corrigida pelo_______, o qual restringe seu papel ao de _____ desvios em relação à linguagem normativa-padrão.

AUTOATIVIDADE

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) redação – abstrata – professor – corrigirb) ( ) assunto – real – aluno – orientarc) ( ) assunto – abstrata – aluno – generalizard) ( ) redação – real – professor – corrigir

2 Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa propõem diversas práticas de escrita que visam à formação de bons produtores textuais, dentre as quais se destacam: projetos, textos provisórios, produção de apoio, e situações de criação. A partir dessa reflexão, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas, associando as práticas de escrita aos enunciados relacionados a seguir:

( ) As situações de criação reportam-se à produção de textos como um processo no qual a materialidade da escrita permite um distanciamento tal que faz do escritor leitor e revisor de sua produção. Importante nessa prática de escrita é a produção de rascunhos, na qual a primeira versão redigida nunca coincide com a versão última.

( ) A produção com apoio é uma estratégia didática de contornar as inúmeras dificuldades apresentadas no processo de escrita, planejando por mais ênfase em algumas atividades a despeito de outras que podem não ser adequadas ao grupo de alunos em determinado momento.

( ) As situações de criação referem-se à disposição escolar de permitir ao aluno criar seus próprios textos, ensaiar suas questões individuais, mapear seus interesses, todas elas guiadas e avaliadas pelo professor, que passa a chamar a atenção para determinados aspectos, ajudando o aluno a expor suas preferências e dificuldades.

( ) Os textos provisórios são situações exemplares para a produção coletiva de textos de forma contextualizada, resultando em produtos diversos, como: cartazes de divulgação de festas escolares, panfletos, folhetos informativos, jornais mensais, cartilhas de cuidado com a saúde, murais, revistas sobre temas estudados, livros sobre temas pesquisados, coletâneas de textos de um mesmo gênero, dentre outros possíveis.

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) A sequência correta é V – F – V – F. b) ( ) A sequência correta é F – V – V – F.c) ( ) A sequência correta é V – V – F – F.d) ( ) A sequência correta é F – F – V – V.

3 O ensino de língua portuguesa volta-se essencialmente para as práticas de uso da ______, assim busca aliar as práticas de leitura às práticas de produção _______ mediadas pela _____ linguística e pela _______ de texto. Assim, a escola pretende ir além da didática tradicional dos gêneros escolarizados.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) linguagem – redacional – abstrata – orientaçãob) ( ) linguagem – textual – análise – revisãoc) ( ) oralidade – local – análise– orientaçãod) ( ) escrita – textual – reflexão – revisão

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