LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal. (Seleção 2- Capítulos 4, 5 e 6)

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II II , ! GILLES LIPOVETSKY A felicidade paradoxal Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo Tradução Maria Lucia Machado 2~ reimpressão ~ COMPANHIA DAS LETRAS

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GILLES LIPOVETSKY

A felicidade paradoxalEnsaio sobre a sociedade de hiperconsumo

TraduçãoMaria Lucia Machado

2~ reimpressão

~COMPANHIA DAS LETRAS

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Copyright @ 2006 by Editions Gallimard SumárioEste livro, publicado no ãmbito do programa de participação à publicação Carlos Drummond de Andrade daEmbaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores[Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d'Aide à Ia Publication Carlos Drummond de Andrade del'Ambassade de France au Brésil, bénéficie du soutien du Ministere français desAffaires Etrangeres}.

Obra publicada como apoiodo Ministério francês encarregado da cultura - Centro Nacional do Livro[Ouvrage publié avec le concours du Ministere français chargé de Ia culture - Centre National du Livre].

Titulo originalLe bonheur paradoxal- Essai sur Ia société d'hyperconsommation

CapaRaul Loureiro

Imagem de capaIan MckinneJl/ Getty Images

PreparaçãoLeny Cordeiro

tndice remissivoLuciano Marchiori

RevisãoOtacílio NunesCecília Ramos Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 11

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (eIP)(CâmaraBrasileirado Livro)SP,Brasil) ,Lipovetsky, Gilles, 1944-

A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hipercon-sumo I GiIles Lipovetsky ; tradução Maria Lucia Machado. - SãoPaulo: Companhia das Letras, 2007.

PRIMEIRA PARTE

A SOCIEDADE DE HIPERCONSUMO . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Titulooriginal: Lebonheurparadoxal: essai sue Ia sociétéd'hyperconsommation

Bibliografia.ISBN978-85-359-1093-3

eDD-306.3

1.As três eras do capitalismo de consumoO nascimento dos mercados de massaProdução e marketing de massa . .Uma tripla invenção: marca, acondicionamento

e publicidade . . . .Os grandes magazines

A sociedade de consumo de massaA economia fordistaUma nova salvação

2626261.Bem-estar - Aspectos sociais 2.Consumo (Economia) - As-

pectos sociais 3. Desejo - Aspectos sociais 4. História social - 19705. Riqueza - Aspectos morais e éticos I. Título 11.Título: Ensaiosobre a sociedade de hiperconsumo.

07-6567

Indice para catálogo sistemático:1.Consumo: História social: Sociologia 306.3

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34[2010]Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 3204532-002 - São Paulo - spTelefone: (11)3707-3500Fax: (11)3707-3501www.companhiadasletras.com.br

2.Além da posição social: o consumo emocional . .Do consumo ostentatório ao consumo experiencialO consumointimizado . . . . . . . . . . . . . . .

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Paixão pelasmarcas e consumo democrático . . .Fetichismo das marcas, luxo e individualismoHiperconsumo e ansiedade ......

Poder e impotência do hiperconsumidorMedicalizaçãodo consumo ..Controle do corpo e espoliaçãoUm hipermaterialismo médico

46474951535557

o turboconsumismo . . . . . . . .O consumo hiperindividualistaO consumidor-viajante . . . . .O consumo contínuo . . . . . . . .Um turboconsumismo policrônico . .O efeito Diva . . . . . . . . . .O consumo balcanizado ...A criança hiperconsumidoraPowerAge . . . . . . . . . . . .

Entremedidaecaos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Consumidor "profissional" e consumidor anárquico .

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3.Consumo, tempo e jogo . . . . . . . . . . . . . 60O consumo como viageme como divertimento 61Hedonismo, lazer e economia da experiência 61A compra-prazer 66A febre da mudança perpétua . .. '" .. 67

O consumo, a infância e o tempo . .. ... .. 69Rejuvenescera experiência vivida. . . 69Nostalgia e desejo de insignificância 73

6. O fabuloso destino do Homo consumericus . . . . . . . . . 128Oconsumo-mundo. . . . . . . . . . . . . . . . 129Oconsumosemfreio . . . . . . . . . . . . . . . . . 129A espiritualidade consumista 131O hiperconsumidor cativado pela ética .. 133O consumismo sem fronteira 135

O consumo reflexivo .. . 136Da vitrine à consciência . . . .. .. 138O hiperconsumo como destino . . . . . . . . .. .. 139

Limites da mercantilização . . 142Relações mercantis e sociabilidade .. . . 144Aniquilação dos valores? . . . . . . . . . . . . 146A sentimentalização do mundo .. ... . . . . . 147Frivolidade e fragilidade 148

,4.A organizaçãopós-fordista da economia . . . . . . . . . . 76A economia da variedade .. 78Extensão das séries e produção personalizada . . . . .. 79

Asreorientaçõesdemarketingdagrandedistribuição. . . . 82A corrida à inovação 85A inflação das novidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86A economia da velocidade . . . . . . .. 89Cronoconcorrência . . . . . . . . . . .. 91

Imagem, preço e qualidade 92Hiperpublicidade e hipermarcas 95

SEGUNDA PARTE

5.Rumo a um turboconsumidor .. 98O consumo discricionário de massa 99A revolução do auto-serviço . . . . 100O hedonismo consumidor . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

PRAZERES PRIVADOS, FELICIDADE FERIDA . . . . . . . .151

7. Penía: gozos materiais, insatisfação existencialDa decepção .....................

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Consumo e decepção 161Os novos vetores da decepção . . . . . . . . . . . . . . . . 165Vida profissional, vida sentimental, vida malograda . . .168

Desejos, frustrações e publicidade 171A publicidade prometéica . . . . 173Extensão do domínio publicitário . . . . . . . . . . . . . . 175A ilusão da onipotência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177A publicidade-reflexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180

Tragédia do superconsumo? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184A falta, o agir e os outros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187

Pobreza e delinqüência: a violência da felicidade . . . .. . 189Exclusão,consumo e individualização .. . . 191Precariedade e individualismo selvagem . 195Misériamaterial, miséria interior .. . 198

Afliçõese renascimento . . . . . . .. ... .200A vida recomeçada 204

O triunfo de Knock . . . . . . . . . . . . . . . . . 238Orgia pesada, sexo ajuizado . . . . . . . . ... . 241Eros frenético . . . . 242Um hedonismo bem temperado .., . 244Sexo, amor e narcisismo .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 246

Noites de embriaguez e dias de festa . . . .,. . . . 248Drogas, desestruturação e criminalização . . . 248A ressurreição da festa . . . 251A festamaneira 256

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9. Super-Homem: obsessãopelo desempenho,prazeresdos sentidos . . . .. ., .., . . . 260

Vida profissional, vida privada .. . . ., .., . . . 262Trabalho e tempo livre . . . . . . . . . . . 265Feliz no trabalho? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

Corpos competitivos e corpos preguiçosos .. . . . . ., . 272A euforia esportiva . . . . . . . . . . . . . . .. . 273Sociedade dopante, esporte-Iazer e corpos preguiçosos . . 275

Superar-se ou sentir-se bem? 279"Maior bem-estar" e corpo das sensações .. . . . . . . . 282Medicalização, prudência e sofrimento . 287O consumo paliativo . . . . . . . . . . . . . . . . . ., . 290

Sexo-máquina? .. . . 291O amor, sempre . . . . . . .. .. . . 294Sexo-proeza, sexo emocional . . 297Miséria sexual e gozo sensual . 300Limites da revolução sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . 302

l.-:J-II

8.Dionísio:sociedadehedonista, sociedadeantidionisíaca ...206Asagraçãodaspequenasfelicidades .209O cotidiano ludicizado . . .209Lazerese tempo para si . 211Era das comunidades, era dos indivíduos . 214

Conforto e bem-estar sensitivo . 216Do conforto tecnicista ao bem-estar emocional. .219O amor pela casa: o conforto no conforto . . . . . . . . . 221Conforto, tecnologias de conexão e segurança 225O design polissensorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229

Beber e comer ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232Gargântua envergonhado . . . . . . . . . . . . . . . . 233Prazeres gastronômicos e cozinha hipermoderna . . 235

Odesvanecimentodo carpediem . . . . . . . . . . . . . 237

10. Nêmesis: superexposição da felicidade,regressão da inveja . . . 306

O mau-olhado . . . . . . . . . . . . . . . 309Quando a felicidade se mostra 312Ainvejaneutralizada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313

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Dizer a felicidade .........Medo da inveja e modernidade

Confiança, felicidadee inveja .Confiança, suspeita e inveja ..

Asmetamorfoses da inveja . . . . .Luxoe comparação provocanteInveja existenciale invejageralO recuo da inveja ........

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Apresentação

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11.Homofelix:grandeza e miséria de uma utopia. . . . 333Felicidadee esperança " . . . 336Sabedoria da ilusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338

Consumo destrutivo e consumo responsável . . . . . . . 340Uma sociedade de hiperconsumo durável? 341Hiperconsumo e anticonsumo 343Frugalidade e felicidade .. . . . . . . 345

A sabedoria ou a última ilusão . . . . . . . . . . . . . . . 348,A sabedoria light . . . . . . . . . . . . . . 349Ilusão da sabedoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351

Ética e estética: uma nova barbárie? 354Barbárie estética? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356Barbárie moral? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 357

O espírito de consumo: até onde? .. 359Arcaísmos? . . . . . . . . . . .. .. '" . . . . . . 365

O pós-hiperconsumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367O ecletismo da felicidade 369

Notas . . . . . . .índice remissivo .

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Uma nova modernidade nasceu: ela coincide com a "civili-zação do desejo"que foi construída ao longo da segunda metadedo século xx.

Essa revolução é inseparável das novas orientações do capi-talismo posto no caminho da estimulação perpétua da deman-da, da mercantilização e da multiplicação indefinida das necessi-dades: o capitalismo de consumo tomou o lugar das economiasde produção. Em algumas décadas, a affluent societyalterou osgêneros de vida e os costumes, ocasionou uma nova hierarquiados fins bem como uma nova relação com as coisase com o tem-po, consigo e com os outros. Avida no presente tomou o lugardas expectativas do futuro histórico e o hedonismo, o das mili-tâncias políticas; a febre do conforto substituiu as paixões nacio-nalistas e os lazeres, a revolução. Sustentado pela nova religiãodo melhoramento contínuo das condições de vida, o maior bem-estar tornou-se uma paixão de massa, o objetivo supremo das so-ciedades democráticas, um ideal exaltado em todas as esquinas.Raros são os fenômenos que conseguiram modificar tão profun-

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4. A organização pós- fordistada economia

qualidade, aceleraçãodo ritmo de lançamento dos produtos no-vos, preeminência do marketing, umas tantas novas estratégiasque, chocando-se de frente com o modo fordista de organizaçãoda produção, favoreceram a emergência de novos modelos deconsumo. Sobre o fundo de uma oferta pletórica e variada, des-padronizada e acelerada, a economia da sociedade de hipercon-sumo distingue-se pela "redescoberta do cliente".Aviragem queseproduziu é considerável:de um mercado comandado pela ofer-ta, passou-se a um mercado dominado pela procura.

Diversificaçãogalopante da oferta, que vai de par com a glo-balização das empresas, com o papel crescente das firmas multi-nacionais:asvendas mundiais das quinhentas primeiras delas tri-plicaram entre 1990e 2001, enquanto o PIBmundial aumentava50%.A fase IIItem por base a abertura dos espaços econômicosconcretizada, especialmente, na mudança de escala das opera-ções de fusão-aquisição, na corrida ao crescimento externo, naconcentração crescente dos mercados, na febre da internaciona-lização.Daí o desenvolvimento de empresas gigantescas,possui-doras de marcas mundiais que por vezesmobilizam orçamentosde comunicação da mesma ordem de grandeza que as despesasligadas à produção industrial. Avalia-seem 3mil o número des-sas grandes marcas mundiais: é sobre as ruínas do capitalismoregulamentado que se elevamnovos gigantes, as hipermarcas deambição mundial com comunicação global.De um lado, a socie-dade de hiperconsumo coincide com o triunfo da variedade e do"cliente rei"; do outro, é contemporânea da unificação mundialdos mercados e das gamas de produtos através dos desenvolvi-mento das megamarcas ou hipermarcas que, presentes nos cincocontinentes, se baseiam em um marketing global, em produtos eslogans, logotipos e imaginários geridos de maneira internacio-nal e mais ou menos adaptada às especificidadeslocais.

Além disso, a economia centrada nos bens materiais trans-

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A sociedade de hiperconsumo designa a terceira etapa his-tórica do capitalismo de consumo. Esta não se caracteriza ape-nas por novas maneiras de consumir, mas também por novosmodos de organização das atividades econômicas, novas manei-ras de produzir e de vender, de comunicar-se e de distribuir. Foi

todo o sistema da oferta que mudou de caráJer.Éamplamente aceitoque somos testel1}Únhas,desdeo último

quarto do século xx, de uma reestruturação do sistema capitalis-ta, marcada, de um lado, pela revolução das técnicas da informa-ção, do outro, pela globalizaçãodos mercados e a desregulamen-tação financeira.No entanto, essastransformações macroscópicasnão explicamtudo, longe disso.Ocorreram ao mesmo tempo, noplano das empresas,mudanças estruturais na abordagem do mer-cado, nos posicionamentos estratégicos, nos modos de concor-rência e nas políticas da oferta. Estáem funcionamento um outromodelo de organização cujos princípios se situam nos antípodasdo sistema em vigor nas fases r e lI.Segmentação dos mercados,diferenciação extrema dos produtos e dos serviços, política de

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formou-se em economia de serviço: a era da hipermercadoria éaquela que é dominada pelas prestações imateriais e pelo forne-cimento de serviços.I Nos paísesda OCDE(Organização para aCooperação e o Desenvolvimento Econômico), os serviços re-presentam agora dois terços da atividade econômica em valor deprodução. Essa dinâmica é reencontrada, naturalmente, na es-trutura e na evolução do consumo, tendo a participação dos ser-viços no consumo das famílias passado de 25% em 1960 para48,8% em 2000.A fase IIIaparece como o momento em que osdispositivos pós-fordistas se combinam com a terceirização e aindividualização galopante do consumo.

lhor às necessidades individualistas de diferenças, os industriaisempregaram novos modos de estimulação da procura baseadosna segmentação dos mercados, na multiplicação das referências,na oferta de variantes dos produtos a partir de componentes idên-ticos. O sistema da produção de massa cedeu o passo a uma ló-gicade proliferação da variedade.

Extensão das séries e produção personalizada

A ECONOMIA DA VARIEDADE

Em 1970,um carro era produzido em quatro versões,contramais de vinte, duas décadas mais tarde.2Em 1984,Bernard Ha-non, diretor-geral da Renault, já declarava que a firma fabricava,reunidas todas as opções, 200mil veículos diferentes.3Durante afase 11,o mercado dos tênis era pouco diferenciado: hoje a Ree-bok pode oferecer cerca de quinhentas a seiscentas referências.Aindústria da relojoaria ilustra igualmente o advento da econo-mia da variedade: estima-se em mais de 50mil o número de mo-delos registrados pela Swatch.O Japão levou a um ponto culmi-nante a espiral da diversificação dos produtos industriais: nosanos 1990,mais de trezentas novas bebidas não alcoólicase maisde duzentos modelos de walkman eram lançados todo ano nomercado; todo mês, a Seiko oferecia, em média, sessenta novosmodelos de relógio.4O marketing de massa foi substituído porestratégias de segmentação, ampliando sem parar a gama das es-colhase das opções,promovendo sériesmais curtas, visando maisespecificamentea subconjuntos do mercado.

A dinâmica de individualização dos produtos só pôde efe-tuar-se graças à alta tecnologia baseada na microeletrônica e nainformática. As novas tecnologias industriais permitiram o de-senvolvimento de uma "produção personalizada de massa" queconsiste em montar, de maneira individualizada, módulos pré-fabricados. Por muito tempo o segmento personalizado foi con-

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As fasesI e 11edificaram-se a partir da fabricação em grandesérie de produtos padronizados. Foi do modelo fordista-tayloris-ta de organização da produção que saiu a sociedade de consumode massa. Sem dúvida, desde os anos 1920surgiram estratégiasde segmentaçãodo mercado e de diversificaç,o dos produtos. As-sim, a GeneralMotors inaugurou, sob o impulso deAlfredSloan,uma política industrial de diferenciação,oferecendo diversasva-riantes de carros, de acordo com o princípio "um carro para ca-da um, segundo seus meios e segundo suas necessidades':Apesardisso, no conjunto, as políticas de diversificação permaneceramlimitadas, amplamente dominadas pelas grandes sériespadroni-zadas.

A fase IIIaparece no momento em que os princípios fordis-tas que organizam a produção das séries repetitivas apresentamsinais de perda de fôlegoe vêem-se questionados.A fim de opor-se à desaceleração do consumo ligada à saturação dos mercadosdomésticos dos bens de consumo duráveis e de responder me-

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siderado topo de linha, ao qual apenas os abastados podiam teracesso: hoje, é possível fabricar produtos personalizados ao mes-mo custo dos produtos padronizados. A Renault e a Peugeot ofe-recem a seus clientes, na internet, a definição e personalização deseu carro pela escolha, segundo seus gostos, da motorização, dacor, das opções, e isso em segmentos para grande público. Certosserviços oferecem 20 mil toques e logotipos destinados a perso-nalizar os telefones celulares. A Nike e a Kickers lançaram um ser-viço de personalização de seus calçados; Barbie propõe que asmeninas "componham" elas próprias a boneca de sua escolha. Aeconomia da fase III inverteu a lógica que, organizando a produ-ção padronizada de massa, instituía a preponderância da oferta:não se trata mais de produzir primeiro para vender em seguida,mas de vender para produzir, tornando-se o consumidor finaluma espécie de "comandante" do produtor. Oferecendo uma va-riedade crescente, multiplicando as opções que garantem a masscustomization, a fase III,na qual se estende a hipertrofia da ofer-ta, aparece como uma economia dominada pela demanda.

O que age no universo dos bens materiais age igualmente na

esfera dos serviços, como o demonstra o deseiolvimento daspolíticas de segmentação tarifária nos transportes e nas teleco-municações, a multiplicação dos canais de televisão, as ofertas deviagens personalizadas. Desde os anos 1990, as companhias fer-roviárias e aéreas abriram-se às estratégias tarifárias diferencia-das. Diferentemente das fórmulas clássicas em que o preço é fi-xo, qualquer que seja o cliente, daí em diante os níveis de tarifaçãovariam em função da situação do mercado, do momento da re-serva, do período do ano, do dia da semana ou da hora do trans-porte. Política de diversificação tarifária explorada em profusãotanto pelas agências de turismo quanto pelas operadoras de tele-fonia fixa e móvel.As fórmulas à Ia carte,a diferenciação das ga-

mas de preço e dos produtos tornaram-se os princípios organi-zadores da oferta industrial e dos serviços.

Em sua obra consagrada à história do marketing, Richard S.Tedlow propõe uma periodização análoga à apresentada aqui,mas interpretada sob um ponto de vista muito diferente. A seusolhos, é desde os anos 1950que o capitalismo se insere numa erade segmentação, que uma nova abordagem do mercado vem àluz, levando em conta especialmente os critérios de idade e os fa-tores socioculturais. A partir dessa época, as grandes marcas nãose preocupam mais em seduzir todos os segmentos da socieda-de, mas categorias particulares de consumidores: ao marketingde massa, em vigor desde os anos 1880,segue-se um marketingde segmentação.5

Seas transformações detectadas por Tedlowsão pouco du-vidosas, não é menos verdade que na fase11- a fase IIIno esque-ma de Tedlow- a dinâmica de segmentação permaneceu muitomais "imaterial" que material, manifestou-se claramente na pu-blicidade, mas muito menos na fabricação dos produtos6 e nasestratégias da grande distribuição. Por assim dizer, a comunica-ção estava "adiantada" em relação à produção, ainda dominadapelas grandes séries de itens padronizados, e em relação à grandedistribuição (supermercado, hipermercado), empenhada em me-canismos de racionalização extraídos do mundo da indústria demassa. Nesse plano, é mais como um prolongamento por exten-são que como uma ruptura que se apresenta a passagem da fase Ià fase lI,ambas empregando os princípios da organização indus-trial fordista. Muito diversaé a fase III,pelo fato de que fez a pro-dução, a distribuição e os serviços entrarem na era das opções ediferenciaçõesaceleradas.

Ao processo de segmentação parcial típica da fasepreceden-te, segue-se uma segmentação extrema, quase ilimitada, visandoa faixas etárias e grupos cada vezmais subdivididos, promoven-

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do necessidades e comportamentos cada vez mais diferenciados,oferecendo produtos e serviços cada vez mais dirigidos a um cer-to público, explorando nichos específicos e micromercados comduração de vida curta: preparação instantânea para bolos desti-nados ao segmento das mulheres casadas de 35 a cinqüenta anos,com filhos (Procter & Gamble); cosméticos para mulheres afro-americanas ativas de 25 a 35 anos (Esthée Lauder); jornada se-manal de redução dos preços para os clientes de 62 anos ou mais(magazines Duckwall-Alco). A época do hiperconsumo é inse-parável da hipersegmentação dos mercados.

O desenvolvimento das estratégias de diversificação é fre-qüentemente apresentado como signo do triunfo do "cliente rei",da preeminência do marketing sobre a produção, esforçando-seas empresas cada vez mais por responder o mais precisamentepossível às necessidades da demanda, por produzir o "personali-zado de massa". Mutação fundamental que pode ser analisada co-mo a radicalização da lógica-moda, que, apenas esboçada na faselI, chegaagora ao seu apogeu.Nãomais apenasa seduçãodosbens de conforto, mas, por acréscimo, a lógica da variedade, darenovação perpétua, das diferenciações marginais}onstitutivas,há séculos, da moda indumentária. É realmenté o "sistema damoda consumado" que ordena o funcionamento mercantil da fa-se ne uma organização moda, daí em diante hipermoderna oude marketing.

xima que se construiu a grande distribuição ao longo da fase n.Essa lógica "quantitativa" se perpetua, evidentemente, mas, aomesmo tempo, desenvolvem-se novas políticas comerciais que,baseadasem uma abordagem mais qualitativa do mercado, põema ênfase nas necessidades, nas expectativas, nas satisfações plu-rais dos clientes. Daí em diante, com a exceçãonotável do gran-de desconto, o objetivo não émais apenas oferecer os preços maisbaixos, mas fidelizar os clientes empregando estratégias em de-sacordo total com o modelo fordista.

Daí uma diversificaçãomais acentuada da grande distribui-ção, preocupada em desenvolver a qualidade de acolhida, a in-formação sobre os produtos, a remodelação das prateleiras em"universos", a assistência comercial, a entrega em domicílio, otransporte dos clientes, as políticas de fidelização.Ora são privi-legiados os meios que permitem tornar menos desagradável a"compra-corvéia": ajustamento dos horários de abertura, fórmu-las de crédito, facilidade de acesso, redução da espera nas caixas.Ora é reforçado o que pode maximizar a "compra-prazer": rota-ção rápida das coleções,mise-en-scenedos produtos, animaçõesdiversas,qualidade do ambiente, bar e restaurante, qualidade dosortimento. Antigamente concentrada no preço por suas estraté-gias, a grande distribuição começa a pôr no primeiro plano desuas prioridades a satisfação da pessoa do cliente.8Tanto na pro-dução quanto na distribuição, a hora é da diferenciação da ofer-ta, do suplemento de alma injetado nos produtos, da satisfaçãode clientelas-alvo, da diversificação crescente dos conceitos co-merciais e dos serviços.

Se a fase n foi a da revolução do supermercado e do hiper-mercado, a fase IIIé a da progressão rápida das "grandes áreas es-pecializadas"(Conforama, FNAC,Darty,Décathlon, Sephora, Ikea)que oferecem,com auto-serviço, um sortimento de produtos me-nos amplo, porém mais profundo que o dos não especializados.

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AS REORIENTAÇÕES DE MARKETINGDA GRANDE DISTRIBUIÇÃO

As estratégias de diferenciação e de segmentação alcança-ram igualmente o universo da distribuição. Foi em torno do ar-gumento "racional" do preço baixo (o desconto) e da eficácia má-

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Nascida nos anos 1970,a fórmula desenvolve-se num ritmo in-tenso a partir dos anos 1980;desde os anos 1990,o crescimentode seu montante de negócios é superior ao dos hipermercados.Asgrandes áreasespecializadasperfaziam, em 2004,41%do mer-cado da jardinagem, 66% do esporte, 41% dos grandes eletrodo-mésticos, 56% da telefonia.

Essas firmas têm a característica de oferecer uma especiali-zação do sortimento responsável por um princípio de coerência:universo da bricolagem, do esporte, da cultura, da beleza.Assim,é um universo de carência, por vezes um "estilo de vida", que évendido ao mesmo tempo que produtos. Uma fórmula sem dú-vida destinada a desenvolver-se, uma vez que se acha em resso-nância com o hiperconsumidor "profissional" e reflexivo, maissensível aos critérios de tecnicidade e à temática da "qualidade",mais capaz também de interpretar a informação e de compararas ofertas.

Igualmente em sintonia com o hiperconsumidor emocionalestão os novos tipos de lojas que procuram reforçar o compo-nente prazer do ato de compra, fazer os consumidpres viveremexperiênciasafetivase sensoriais.Certas redes de liv'rarias(Chap-ters,Virgin) agora instalam bares, poltronas, pequenas salas queconferem aos locais de venda uma dimensão de convívio.Outraslojas se esforçam em dar novo encanto a seus espaços, criandouma atmosfera de sonho, de poesia ou de jogo, pondo em cena ouniverso das crianças (Apache) e da natureza (Animalis, Nature&Découvertes), do esporte (Andaska,Citadium) e dos produtosantigos (Résonances), espetacularizando os locais de venda se-gundo os princípios do fun shopping.Assim restabelecem o anti-go aspecto "feérico" dos grandes magazines. Sob o impulso domarketing experiencial, a lógica-moda (sedução, animação, fan-tasia, decoração, ludismo) apoderou-se dos espaços de venda,

Iransformando-os em locais de atração, em "ambiências" emo-rionais e estéticas.

No ciclo de consumo IlI, a estratégiadospreços"reduzidos"não corresponde mais às expectativas de diferentes segmentos dedientes: trata-se de fazer das lojas "locais de vida", capazes de es-limular a compra festiva. Depois do ambiente minimalista e hi-perfuncional das "fábricas de vender", a hora é do retailtainment,do "hiperambiente" da mercadoria, feito de mise-en-scene de con-ceitos e de produtos, de telas de vídeo, de montagem musical, dequalidades sensoriais e decorativas. Eis o espaço comercial rees-Iruturado, por sua vez, pela forma-moda e pelas estratégias comI1nalidade emocionalista.IA CORRIDA À INOVAÇÃO

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A tendência à personalização dos produtos e dos serviçosdesenvolve-seem uma economia em que se impõe a preeminên-ria da inovação sobre a produção. Durante os dois ciclos ante-riores, a competitividade das empresas baseava-seno crescimen-10 da produtividade do trabalho, na redução dos custos, naexploração das economias de escala.Nos novos mercados globa-lizados, a realização de ganhos de produtividade já não basta, écada vezmais pela reatividade, pelo lançamento de produtos no-vos- sejaverdadeiro salto de desempenho,9seja simples reposi-donamento de produtos - que se constrói a vantagem compe-litiva e se realizao aumento das vendas.

Marx e Schumpeter puseram em evidência o fato de que ocapitalismo era um sistema baseado na mudança dos métodosde produção, na descoberta de novos objetos de consumo e denovosmercados. Mais sistemático que nunca, o processo de "des-Iruição criativa" inerente ao capitalismo passou para uma velo-

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cidade superior: no cosmo da hipermercadoria, a criação real oufictícia de novos produtos impõe-se como o novo imperativo ca-tegórico do desenvolvimento, um de seus instrumentos de mar-keting mais poderosos. Daí a importância das atividades e orça-mentos de pesquisa e desenvolvimento investidos, em particular,pelas empresas multinacionais. Em 2002, o orçamento de P&Ddestas representava a metade dos 677 bilhões de dólares investi-dos mundialmente nesse setor. Daí em diante, algumas socieda-des transnacionais (Ford, Daimler-Chrysler, Siemens, Toyota, Pfi-zer) têm orçamentos de P&Dcomparáveis aos de certos paísesimportantes, ou seja, de mais de 5 bilhões de dólares.

Mesmo em período de desaceleração do crescimento, as em-presas hesitam em reduzir drasticamente as despesas consagra-das à pesquisa e ao desenvolvimento. Quando a conjuntura é des-favorável, estas certamente se reduzem, mas muitas empresas jánão sacrificam seus orçamentos porque, quanto mais uma em-presa inova e põe no mercado produtos novos, mais o crescimen-to de seu montante de negócios, de sua produtividade e de seuvalor bolsista é importante. Em nossos dias, os setores em cresci-

mento são aqueles em que o ritmo das renovaçõel e de inovaçãodos produtos é mais elevado. Os novos produtos tornaram-seuma das chaves do crescimento das empresas: na fase III, o ino-vacionismo suplantou o produtivismo repetitivo do fordismo.

/Ou cerca de 5 mil novos produtos. O instituto de pesquisas Niel-,en calculou que, em torno dos anos 1990, nasciam, em média,lem novas referências alimentares por dia no mundo. Entre 2000(.2004, a PSAlançou 25 novos modelos, divididos entre Peugeot("Citroen. No mercado mundial, passou-se de 34 lançamentos deIIOVOSperfumes em 1987 a trezentos em 2001. Na fase lI, umaI-\randemarca lançava tradicionalmente, no mercado francês, umIIOVOperfume a cada sete anos; hoje, é a cada ano que cada gran-de marca introduz no mercado um ou mesmo vários perfumesIIOVOS.lIEssa febre de renovação aumentou muito a demanda dedenominações, a ponto de ocasionar uma verdadeira inflação delIomes de marcas: 50 mil marcas são registradas na França todo.1110.No total, estão registrados hoje 900 mil nomes de marcas.

No setor do vestuário, dominado daí em diante pela grandedistribuição, as coleções bianuais tradicionais deram lugar a dezou doze coleções nas empresas americanas mais na vanguarda. 12

Uma marca como a Zara renova seus modelos a cada duas sema-

lias, produzindo cerca de 12 mil designs por ano, diferenciados~egundo os países. Mesmo a Lacoste realiza dois desfiles por anopara apresentar suas novas coleções. As roupas íntimas já não es-l.tpam ao ritmo de lançamento da moda: Calvin Klein renova~lIaslinhas de lingerie todos os meses. A Reebok lança uma cole-,ão de calçados a cada três meses. A economia da hipermercado-ria coincide com a corrida desenfreada à renovação acelerada dosprodutos e modelos.

As indústrias culturais obedecem à mesma lei "frenética" do

IIOVOe do perecível. São sublinhadas com freqüência a domina-,."0 de um oligopólio de algumas das maiores empresas, as mega-fusões, a aceleração da concentração dos grupos que acompanham.\ liberalização das trocas econômicas e a maior financeirizaçãodesse setor. Oitenta e cinco por cento das gravações musicais ven-didas no mundo são produzidos por quatro grandes grupos; os

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IA inflação das novidades

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A evolução dos ritmos e imperativos de inovação é impres-sionante. Em 1966, 7 mil produtos novos faziam sua aparição nasprateleiras dos supermercados americanos: em nossos dias, elessão 16 mil, com uma taxa de insucesso de 95%. Todo ano, 20 milprodutos novos de grande consumo são oferecidos aos europeus,sendo a taxa de insucesso de 90%.10Em 1995, a Sony comerciali-

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quinze primeiros grupos audiovisuais representam quase 60%do mercado mundial dos programas; as sete maiores empresasamericanas do cinema monopolizam 80% do mercado mundial.Mas essealto grau de concentração das indústrias culturais nãodeve ocultar o outro grande fenômeno, constituído pela crescen-te variedade dos produtos e pela redução da duração de seu ciclode vida. A era da globalização é menos moldada pelos processosde padronização e de homogeneização que pela explosão da di-versidade, pelos imperativos da rapidez, pela dinâmica dos flu-xos permanentes.

A fim de minimizar os riscos em faceda incerteza do suces-so e de responder a uma demanda imprevisível,as indústrias cul-turais não cessamde multiplicar sua oferta de produtos. Nos Es-tados Unidos, o número de livros publicados aumentou mais de50% ao longo dos dez últimos anos; mais de 100mil livros sãopublicados todo ano: 135mil em 2001. Desde 1980,os EstadosUnidos publicaram 2 milhões de títulos contra 1,3milhão du-rante os cem anos anteriores. O movimento não poupa a Fran-

ça, onde foram publicados, em 2004,cerca de 60mil ~ítulosde li-vros contra 25 mil em 1980.Cada nova temporad1literária vêum dilúvio de títulos invadir as livrarias: 667 romances apenasno outono de 2004, ou seja,mais que o dobro do que oferecia atemporada de 1997.A dinâmica de proliferação incorpora igual-mente a indústria do cinema. Enquanto em 1976Hollywood rea-lizava 138filmes, no período 1988-99o número médio anual delongas-metragens produzidos elevou-se a 385; em 2001, os Esta-dos Unidoscomercializaram445filmes,excluídosospornôs. Gra-ças a essa dinâmica de superprodução, o número de filmes lan-çados na salas da França pôde aumentar 40% em dez anos,passando de 395, em 1995,a 560, em 2004.

A oferta pletórica, as exigências de rentabilidade rápida, aspoderosas máquinas promocionais provocaram uma redução da

duração de vida dos produtos culturais. O tempo curto apode-rou-se, por sua vez,do ritmo das obras do espírito. Cada vezmais,o livro torna-se um produto de circulação ultra-rápida nas pra-teleiras das livrarias. No presente, um terço das 550 salas pari-sienses oferecem um novo filme todas as semanas. Em 1956,osfilmesobtinham quase 50% de suas receitas em três mesesde ex-ploração; hoje, o essencialdos resultados é realizado em duas se-manas, para um fracasso, e em seis ou dez semanas, em caso desucesso.I) Por toda parte,a financeirizaçãodas indústriascultu-rais, a oferta superabundante, a demanda instável dos hipercon-sumidores ocasionaram a redução do tempo de vida das obras, arotação acelerada dos estoques, uma espécie de cultura em "flu-xo forçado".Indústrias do divertimento, marketing generalizado,obsessão com as sinergias: a cultura na fase III funciona cada vezmais como um investimento financeiro que deve obedecer à obri-gação de remuneração do capital empregado, como um produtomercantil "como os outros" ou quase como os outros. A despeitodos combates travados em nome da proteção da "diversidade cul-tural", a economia da hipermercadoria vê difundir-se irresistivel-mente a lógica do mercado em todos os ramos de atividade, umcapitalismo midiático dominado pelo aumento da velocidade edo descartável acelerado.

A economia da velocidade

Aaceleraçãoda obsolescênciados produtos está presente emtodos os setores. Um enorme número de produtos tem uma du-ração de vida que não excede a dois anos; estima-se que a dosprodutos high-tech foi diminuída pela metade desde 1990;70%dos produtos vendidos em grande escalanão vivemmais de doisou três anos; mais da metade dos novos perfumes desaparece aofim do primeiro ano. A renovação extremamente rápida da ofer-

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ta, mas também as demandas de consumos mais emocionais einstáveisestão na origem dessa escalada.Para estimular o consu-mo, os atores da oferta não procuram mais produzir artigos demá qualidade: renovam mais depressaos modelos, fazem-nos sairde moda oferecendo versões mais eficientes ou ligeiramente di-ferentes. Trata-se de seduzir pela novidade, de reagir antes dosconcorrentes, de acelerar o lançamento dos produtos, reduzir osprazos de concepção e de colocação de novos itens no mercado.Desde os anos 1990,a maior parte dos que decidem no mundoindustrial declara que o estado da concorrência os obrigou a di-minuir o tempo de concepção e de desenvolvimento dos novosprodutos. No fim dos anos 1970,a Chrysler precisava de quatroanos e meio para elaborar um novo modelo de automóvel: esseintervalo de tempo foi reduzido a menos de dois anos. A Xeroxconseguiu dividir por dois o tempo necessário para desenvolverseus novos produtos. À hora da internacionalização da econo-mia, a concorrência pelos custos já não é suficiente; a competi ti-vidade requer a intensificaçãodas velocidadesde reação e de cria-tividade. Passa-se da concorrência à hiperconcorrência, quando

o tempo curto dos ciclos de elaboração, a aceleraç10 da inova-ção, a velocidade de renovação dos produtos se tornam parâme-tros do desempenho econômico.

Naturalmente, os processos de redução do tempo na vidaeconômica não são de modo algum novos. Estão no centro daorganização taylorista da empresa.Mas, nesse dispositivo,ganhode tempo significavarapidez dos escoamentos, redução do tem-po de cada operação do processo de produção. Essesistema, pro-motor de uma temporalidade linear, homogênea, padronizada,está cada vezmais comprometido: foi substituído pela valoriza-ção de uma temporalidade descontínua, ilustrada pela rapidezde implantação nos mercados, a busca de velocidade nos ciclos,a corrida à inovação}4O desafio já não é tanto o de produzir em

massa e continuamente quanto o de garantir a entrada mais rápi-da dos produtos no mercado, responder à procura antes dos con-mrrentes. Nas economias pós-fordistas da fase 11I,o lugar essencialcabe à reatividade, à concepção, à inovação rápida dos produtos.

Cronoconcorrência

Nesse momento dos ganhos de conceptividade e de capaci-dade de inovação, o fator tempo tornou-se tão crucial que se im-põe o conceito de "cronoconcorrência», Nesse contexto de redu-ção do tempo para chegar ao mercado, as empresas, cada vez mais,anunciam antecipadamente a comercialização dos novos produ-tos. O Smart foi anunciado mais de quatro anos antes de seu lan-çamento, o Xsara Picasso, um ano antes de sua "saída»; a Sonyanunciou o Play Station 2 com um ano de antecedência. Nos Es-tados Unidos e na Grã-Bretanha, de 40% a 50% dos produtos sãoanunciados antecipadamente. Na França, 60% dos carros e dosjogos de vídeo são objeto de anúncio prévio.

Essa estratégia visa construir a notoriedade do produto e damarca, afetar as vendas dos produtos concorrentes, criar o dese-jo, favorecer o nível das vendas desde o lançamento: 1 milhão deexemplares do Play Station 2 foram vendidos no Japão no pri-meiro fim de semana de sua comercialização.'s Ao mesmo tem-po, esse tipo de prática reduz a duração de comercialização dosprodutos da série, visto que os consumidores esperam a saída donovo produto de preferência a comprar o que existe no merca-do. Não são mais apenas as vitrines reluzentes que desencadeiamas fúrias consumidoras, são os novos produtos anunciados me-ses e anos antes de sua comercialização. No ciclo III,o hipercon-sumidor já não consome apenas coisas e símbolos, consome oque ainda não tem concretização material.

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IMAGEM, PREÇO E QUALIDADE ciente que resultou na convocação para conserto de 1,3 milhãode veículos em 2005. É enganadora a tese que assimila a fase IIIao eclipse do produto, como se o valor imaterial houvesse conse-guido reduzir a nada ou a quase nada o valor funcional. Daí emdiante a qualidade se impõe como uma condição necessária parasobreviver nos mercados. Não é verdade que "tudo está na ima-

gem": porque é inseparável da busca da excelência técnica, doscontroles de qualidade, do desempenho dos produtos, o univer-so da hipermercadoria não pode, evidentemente, ser reduzidoaos jogos da imagem de marca.

Ao mesmo tempo, a fase III registra o sucesso dos medica-mentos genéricos, das marcas de distribuidores, das lojas de ma-xidesconto, dos produtos com os mais baixos preços da linha, dascompanhias low cost.No presente, as lojas de grandes descontossão freqüentadas por dois consumidores em três e um quinto doconsumo é feito fora das marcas. Por mais que a fabricação do

imaginário de marca absorva todos os esforços, vemos os setoresdos bens de consumo corrente empenhados em um trabalho sis-temático de supressão dos custos de marketing e de merchandi-sing. Se o topo de linha aumenta suas participações de mercado,o mesmo se passa com a base de linha. É preciso deixar de vei-cular a idéia segundo a qual só são relevantes as políticas de co-municação e de imagem. A fase da hipermercadoria é aquela emque o desconto não cessa de crescer, em que as grandes marcasfazem face, em certos mercados de grande consumo, a uma con-corrência desconhecida até então: aquela por preços sempre mais

baixos. Prodt!zir marcas e imagens de marca em vez de mercado-rias? Essa leitura da sociedade de hiperconsumo omite, surpreen-

dentemente, a pressão sobre os preços, a formidável expansão dasmarcas de distribuidores, dos produtos sem marca desprovidosde valores imateriais.ls Até onde vai o marketing da imagem quan-

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Paralelamente aos princípios de diferenciação e de renova-ção dos produtos, a exigência da qualidade modificou de modofundamental a organização da produção e dos serviços. A fase 11foi identificada muitas vezes a uma economia baseada no "com-plô da moda", na degradação da qualidade, nos vícios de cons-trução intencionais. 16 Seo universo III da mercadoria modernaacelera ainda mais a lógica-moda da produção, não deixou porisso de transformar sua economia, conseguindo combinar im-permanência perpétua e princípio de qualidade. Sob o estímuloda concorrência, os industriais propuseram-se como objetivo o"defeito zero" e a "qualidade total",por toda parte se exprimiramexigências crescentes em matéria de durabilidade, de segurança,de confiabilidade dos produtos. Longe de ser considerada comoum custo, a qualidade aparece como um investimento, um vetordecisivo da competição econômica. Passa-se ao ciclo da hiper-mercadoria quando os objetos industriais baratos conseguem al-

cançar níveis de qualidade próximos aos dos produ\os topo delinha. O descarte dos artigos já não é provocado pel~\mediocri-dade da fabricação, mas pela economia da velocidade, por pro-dutos novos,mais eficientes ou que respondam a outras necessi-dades.

Aí sevêem os limites do princípio apresentado por vezesco-mo a verdade essencial da economia globalizada: "marcas, nãoprodutos': 17 Sem dúvida, semelhante posicionamento estratégicoé pertinente nos setores do vestuário, dos perfumes e dos cosmé-ticos. Mas, e em outras partes? O que vale para os tênis ou os jeansnão vale para os produtos fabricados pelas indústrias automobi-lísticas, farmacêuticas ou eletrônicas. Não foi uma má política decomunicação que manchou recentemente a imagem da Merce-des entre os consumidores, mas uma política de qualidade defi-

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do se desencadeia a concorrência pelos preços, quando as publi-cidadesmartelam em todos os folhetos:"por que pagar tão caro"?

Progressão rápida das marcas de distribuição e do low costque não contradiz, mas, ao contrário, exprime o momento do hi-perconsumo experiencial. Pois o neocomprador não quer con-sumir menos, quer obter o mesmo menos caro.Elenão dá as cos-tas à qualidade, uma vezque o mercado torna possíveluma ofertade produtos econômicos de qualidade igual à dos produtos demarca, vendidos às vezes duas ou três vezesmais caro. Não hávergonha em pagar menos caro, a compra "esperta" torna-se va-lorizadora, marca de inteligência.Para muitos consumidores, nãoé a imagem do produto que importa: é antes de tudo o preço, e ofato de poder ter acesso,graças a essacompra, a uma experiênciasensorial, emocional, relacional.

Se o fenômeno desconto não cessa de ampliar-se, isso nãodepende apenas do aumento da precariedade e da pobreza, mastambém, paradoxalmente, da escalada das necessidades, dos de-sejos de lazer,de evasão e de comunicação, que levam à obriga-ção de fazer arbitragens nos orçamentos: economiza-se no ali-mentício para poder gastar em telefonia, viagens ou vtdeo. Se olow costprogride, é em razão da democratização do ~osto porviagem.A sensibilidade do hiperconsumidor aos preços traduzmenos o espírito de economia e o recuo para os bens de primei-ra necessidade que a extraordinária progressão da procura debens "supérfluos': Aquele que visita uma loja de descontos não éum subconsumidor, mas um hiperconsumidor que controla cer-tas despesas aqui a fim de poder ter acesso,ali, a prazeres diver-sificados, a consumos lúdicos, comunicacionais e emocionais.Não é a onipotência do logotipo que triunfa, mas a força dos va-lores hedonistas, o gosto pela mudança, o desejo generalizado departicipar da sociedade-moda.

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Hiperpublicidade e hipermarcas

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Não é menos verdade que a corrida à inovação e aos lança-mentos não pode dispensar as estratégias de comunicação desti-nadas a fazer vender, aumentar a notoriedade, construir a ima-gem de marca. Mesmo que, hoje, a publicidade não resuma porsi só a comunicação, ela continua a ser insubstituível como ala-vanca de notoriedade, e não cessade mobilizar, em mercados sa-turados, orçamentos cada vezmais importantes. Nos anos 1980,as despesas de publicidade triplicaram, no plano mundial. NaFrança, aumentaram 80%, ou seja, três vezesmais que o PIB.Emtrinta anos, as despesas publicitárias americanas foram multipli-cadas por dez. Entre 1985e 1998,as despesas das grandes socie-dades com patrocínio foram multiplicadas por sete. No caso decertas superproduções hollywoodianas, as despesas comerciaispodem ser superiores aos orçamentos de produção. Outras in-dústrias assinalam a inflação dos orçamentos de promoção. Seem 1985a Dior despendia 40 milhões de dólares para lançar umperfume, hoje os lançamentos desse tipo são avaliados em 100milhões de dólares. Da metade dos anos 1980ao fim dos anos1990, as despesas publicitárias da Reebok foram multiplicadaspor quinze.Asdespesasde promoção investidaspelaNike são tãoelevadasquanto as ligadas à fabricação dos tênis. Por toda parte,a fase IIIassinala-se pela explosão dos orçamentos de comunica-ção exigidos pela intensificação da concorrência, a semelhançados produtos, os imperativos de rentabilidade rápida e elevada.

A quantidade dos investimentos em comunicação não é oúnico fenômeno significativo.Assistimos,desde os anos 1980-90,a um aggiornamentoda publicidade,quesereestruturasegundoos mesmos princípios que fizeram estilhaçar-se as organizaçõesfordistas. Eis a publicidade anexada, por sua vez,pelas lógicasde

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diversificação e de renovação perpétua, características da socie-dade de hiperconsumo.

Em primeiro lugar,muitas campanhas se afastam da valori-zação repetitiva do produto, privilegiando o espetacular, o lúdi-co, o humor, a surpresa e a sedução dos consumidores. Apubli-cidade denominada "criativa" é a expressão dessa mudança. Jánão se trata tanto de vender um produto quanto de um modo devida, um imaginário, valores que desencadeiem uma emoção: oque a comunicação se esforça por criar cada vezmais é uma re-laçãoafetiva com a marca. Os intuitos da persuasão comercialmudaram; já não basta inspirar confiança, fazer conhecer e me-morizar um produto: é preciso conseguir mitificar e fazer amar amarca.Àsestratégiasmecanicistasseguiram-se asestratégiasemo-cionais, em concordância com o individualismo experiencial.

De outro lado, da mesma maneira que os mercados estãocada vez mais segmentados, a publicidade divide suas campa-nhas, fragmenta-se em múltiplas aplicações e estilos diversifica-dos. Àpublicidade repetitiva sucede uma publicidade baseada nacriatividade e na renovação freqüente das campanhas, a fim de

captar a atenção do hiperconsumidor "blasê', supersrturado demensagens. Hoje, os filmes publicitários devem ser renovados acada seisou oito meses.A Coca-Cola rodou dezessetefilmes em1997contra um único em 1986.Desde 1995,a Levi'slançou doisa três filmes por ano. Existem quinhentos anúncios da AbsolutVodkacombinando unidade ediferenças.19Acontececom acomu-nicação o mesmo que com os produtos e serviços: rapidez e va-riedade impõem-se como os novos imperativos das hipermarcas.

Não é um totalitarismo publicitário que avança, mas umahiperpublicidadeespetacular e deslocada, onírica e cúmplice; hi-perpublicidade irônica que olha para si própria, joga consigomesma e com o consumidor. Impõe-se uma nova era de publici-dade que, alinhando-se pelos princípios da moda (mudança, fan-

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tasia, sedução), está em sintonia com o comprador emocional ereflexivo da fase m.A força das imagens que contribui para edi-ficar as grandes marcas não institui uma ordem tirânica, mas ouniverso das marcas-estrelasplanetárias: a época do hiperconsu-mo coincide com o triunfo da marca como moda e como mundo.

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5. Rumo a um turboconsumidor famíliaspossuidoras de dois carros passou de 11,4%,em 1973,aquase 30% no fim dos anos 1990.Em 1981,10%dos lares tinhampelo menos dois aparelhos de televisão; eles eram mais de 40%em 1999.Cada vezmais, o multiequipamento em aparelhos desom, máquinas fotográficas, telefones torna-se a regra. Logo seráo caso dos computadores domésticos. Pluriequipamento que,inegavelmente, permite um afrouxamento dos controles fami-liais, uma maior independência dos jovens, mais governança desi no cotidiano. Em uma palavra, práticas de consumo mais in-dividualizadas.O que levaRobert Rochefort a sustentar a tese se-gundo a qual o "consumo individualista" de fato decolou apenasa partir da metade dos anos 1970e, sobretudo, 1980.2Podemossegui-Io nesse ponto? Como pensar historicamente o laço entreconsumo moderno e autonomia individual?Agora que uma no-va fasede regulação das sociedades mercantis tomou corpo, ru-mo a que destino se acha impelido o neoconsumidor?

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A fase III da economia de massa nasce no momento em queos lares alcançam uma forte taxa de equipamento. Se desde os anos1960, nos Estados Unidos, os mercados começam a ficar satura-dos, na França é apenas por volta do fim dos anos 1970 que a tec-nologização da vida cotidiana se generaliza em todos os grupossociais. Em 1954,8% das famílias operárias posstíam um auto-móvel, 0,8%, uma televisão, 3%, um refrigerado, 8%, uma má-quina de lavar. Em 1975, essas porcentagens elevavam-se, respec-tivamente, a 73%, 86%, 91%, 77%. No fim da década, mais de doisterços dos lares estão bem ou muito bem equipados de linha bran-ca. Nesses mercados, o consumo atinge seu ponto de saturação.

Para estimular a procura, as empresas encorajaram o plu-riequipamento das famílias. Até então, como bem sublinhou Ro-

bert Rochefort, prevalecia uma lógica de consumo de tipo "se-micoletivo",I baseado no equipamento do lar: um telefone, umatelevisão, um carro por família. A fase IIIlibertou-se dessa lógica,estando o consumo cada vez mais centrado no equipamento dosindivíduos que compõem uma mesma família. A proporção das

o CONSUMO DISCRICIONÁRIO DE MASSA

A escalada individualista das práticas de consumo que acom-panha a multiplicação dos objetos à disposição dos sujeitos é ho-je evidente. Mas não é menos verdade que o consumo individua-lista começou sua carreira histórica bem antes dos anos 1980:desde os anos 1950 e, sobretudo, 1960, o processo está em mar-cha. Não foi o pluriequipamento dos lares que fez nascer de mo-do súbito, mecânico, o "consumidor individualista"; foi todo um

conjunto de fatores, no topo do qual figuram a difusão dos obje-tos (automóvel, televisão, eletrodoméstico), o desenvolvimentodas indústrias culturais, as transformações da grande distribui-ção, a nova classe adolescente, o culto prestado aos prazeres pri-

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vados, às novidades e aos lazeres: fenômenos constitutivos da fa-se 11em seu conjunto.

Com a economia de consumo maciço e a elevação do nívelde vida que marcam os "Trinta Gloriosos", * já não são minoriasburguesas, mas a maioria que dispõe de um "poder de compradiscricionário': de um rendimento que ultrapassa o mínimo re-querido para satisfazer as estritas necessidades. Comprar o quedá prazer e não mais apenas aquilo de que se precisa já não é apa-nágio das camadas privilegiadas, mas, pouco a pouco, das pró-prias massas. A dimensão da escolha, as motivações individuais,os fatores psicológicos vão exercer uma influência cada vez maisdeterminante, estando as famílias em condição de consumir alémda simples cobertura de suas necessidades fisiológicas.) Foi coma "sociedade afluente" que o consumo entrou na era da indivi-dualização e da psicologização de massa. Como sublinha R. Cas-tel, produziu-se uma "quase mutação antropológica do ganho sa-larial': o operário tendo acesso a um "novo registro da existência':o do consumo, do "desejo': de uma certa forma de liberdade "cujacondição social de realização é o descolamento em relação à ur-gência da necessidade':4 O supérfluo, a moda, os lazeres, as férias

tornaram-se desejos e aspirações legítim~ em todos os grupossociais.5 Os gostos pelos bens duráveis, favorecendo a privatiza-ção da vida (televisão, automóvel), vão fazer furor. Não foi nosanos 1980, mas cerca de vinte ou 25 antes que o universo do con-sumo começou a ser remodelado, em enorme escala, sob o signodo indivíduo, de suas aspirações e de suas felicidades privadas.

sumo. Trata-se das transformações ocorridas no setor da grandedistribuição. Esta não apenas transpôs para sua esfera os meca-nismos produtivistas empregados no aparelho produtivo fordis-ta6e favoreceu a difusão dos bens de consumo no conjunto dapopulação, como também alterou, por meio do supermercado edo hipermercado,7 as práticas e o imaginário do ato de compra.Consagrando-se a oferecer,concentrado sob um mesmo teto, umamplo leque de produtos de grande consumo a preço baixo, agrande distribuição inventou uma técnica de venda revolucioná-ria: o auto-serviço,8talvez um dos dispositivos mais emblemáti-cos da segunda metade do século xx, e que se tornará, pouco apouco, o modelo dominante dos comportamentos individuaisem setores cada vezmais amplos da vida, seja a familiar,política,sindical ou religiosa.9

Auto-serviço: por essemeio, o processo de despersonaliza-ção da relação comercial iniciado pelos grandes magazines compreço fixoe afixado transpõe uma nova etapa, uma vezque o con-tato entre a oferta e a procura é direto, livre da mediação do ven-dedor. Lógicade despersonalização que funciona igualmente co-mo meio de autonomização do consumidor. De fato, eis o clienteentregue apenas a si, independente, livre para escolher,sem pres-sa, para examinar os produtos, comprar sem sofrer as pressõesdo comerciante. Não lhe vendem mais, ele compra.

Sem dúvida, os supermercados e os hipermercados quebra-ram o encantamento com a mercadoria que constituía o atrativodos grandes magazines.Mas não é menos verdade que, com o au-to-serviço, uma nova estratégia de sedução foi ativada pela gran-de distribuição, uma sedução baseada não mais na mise-en-scenefeérica dos produtos e do local de venda, mas na autonomia doconsumidor. A sedução da fase 11não se limita ao mito eufórico .

do consumo, ao espetáculo da profusão, à ambiência de prodi-galidade festivae de solicitude cercando asmercadorias,1Odepen-

I'II

A revolução do auto-serviço

Outros fatores, além do rendimento discricionário, contri-buíram, na fase 11,para instituir um cosmo individualista de con-

* Período de 1945-75, marcado por forte crescimento econômico. (N. T.)

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de também de dispositivos que, ao eliminar diversos constrangi-mentos comerciais,abriram o espaço da independência e da mo-bilidade individuais. Pelo auto-serviço, a grande distribuição tor-nou possíveispráticas e um imaginário de liberdade individual,um universo de compra marcado pelo princípio de livre disposi-ção de si; ela não apenas funcionou como um agente de demo-cratização do consumo, mas também contribuiu, em seu nível,para a individualização das práticas de compra, dos gostos e dasexigências.

o hedonismo consumidor

corresponde ao lançamento em órbita de um individualismo demassa, hedonista e consumista.

Hedonismo individualista que se concretizou em novas prá-ticas de consumo, passando este a ser uma das principais preo-cupações dos indivíduos. Forte aumento das despesas de lazer(elas são multiplicadas por 3,5 entre 1949e 1974),paixão pelasférias,'2recuo da moral da poupança e desenvolvimento do en-dividamento das famílias,13expansão das compras impulsivas,14gosto pela mudança e flutuações rápidas das preferências, dasmodas e das "paradas de sucesso":o indivíduo-consumidor já es-tá estabelecido.Não é possível reconduzir o consumo dos "Trin-ta Gloriosos" a um consumo familiar ou "semicoletivo" apoiadonas despesas de equipamento básico dos lares (moradia, cozinha,carro, aparelho de televisão).Isso é omitir o que lhe constitui umdos traços essenciais, ou seja, a generalização das práticas de la-zer livremente escolhidas em função dos gostos e das aspiraçõesde cada um. Com a expansão do tempo livre, dos lazeres,das fé-rias, difundiu-se o gosto pelas atividades lúdicas, a reivindicaçãode um tempo para si, de momentos de vida centrados nos dese-jos individuais. A fase 11impulsionou uma fun moralitybaseadana prioridade dos prazeres do instante e do indivíduo, nos so-nhos de evasões distrativas, na paixão pelas viagens, pelo mar,pelo sol. O tempo para si, as seqüências de vida próprias do in-divíduo ganharam direito de cidadania.

A ascensão de um consumo emancipado da lógica familialé particularmente visível através do que Edgar Morin chama de"a classe de idade adolescente",'5inseparável de publicações, defilmes, de estrelas, de modas indumentárias e musicais especifi-camente jovens. Enquanto o dinheiro para pequenas despesas setorna uma prática mais corrente,'6 uma proporção importantede jovens está equipada com um toca-discosl7e pode ouvir, nosrádios portáteis que se generalizam,'8a música de sua escolha,na

I A fase 11não se reduz à difusão de massa dos bens de con-forto. Ela criou, ao mesmo tempo, uma cultura cotidiana domi-nada pela mitologia da felicidade privada e pelos ideais hedonis-tas.11A sociedade do objeto apresenta-se como civilização dodesejo, prestando um culto ao bem-estar material e aos prazeresimediatos. Por toda parte exibem-se as alegrias do consumo, portoda parte ressoam os hinos aos lazeres e às férias, tudo se vendecom promessas de felicidade individual. Viver melhor, "aprovei-

tar a vida", gozar do conforto e das novidafs mercantis apare-cem como direitos do indivíduo, fins em si, preocupações coti-dianas de massa. Espalha-se toda uma cultura que convida aapreciar os prazeres do instante, a gozar a felicidade aqui e ago-ra, a viver para si mesmo; ela não prescreve mais a renúncia, fazcintilar em letras de neon o novo Evangelho: "Comprem, gozem,essa é a verdade sem tirar nem pôr". Essa é a sociedade de consu-mo, cuja alardeada ambição é liberar o princípio de gozo, des-prender o homem de todo um passado de carência, de inibição ede ascetismo. Não mais injunções disciplinares e rigoristas, masa tentação dos desejos materiais, a celebração dos lazeres e doconsumo, o sortilégio perpétuo das felicidades privadas. A fase 11

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qual se reconhecem. Ao contrário de um consumo semicoletivo,é bem mais "o indivíduo-ouvinte"19 que aparece nos anos 1950ese generaliza nos anos 1960.O elepê, o mercado de massa do dis-C% o rádio portátil e o toca-discos, os programas de rádio dirigi-dos ao público jovem (Salut lescopains,Popclubeoutros) anuncia-ram o fim da escuta coletiva em favorde processosde apropriaçãoindividual da música. O consumo individualista correlato à cul-tura de massa é filho da fase 11.

o TURBOCONSUMISMO

I

Mas não é menos verdade que, durante todo esse período,os modos de consumo permaneceram amplamente estruturadospelos habitus de classe e pelo equipamento semicoletivo dos la-res. Foi isso que fez eclodir a fase III,que aparece como a que, am-pliando incessantemente a gama das escolhas pessoais, liberta ascondutas individuais dos enquadramentos coletivos e desenvol-ve a individualização dos bens de equipamento. Para conceitua-lizá-la em uma fórmula, a fase IIIrepresenta, passagem da erada escolha à era da hiperescolha,do monoequ1pamento ao mul-tiequipamento, do consumismo descontínuo ao consumismocontínuo, do consumo individualista ao consumo hiperindivi-dualista.

o consumo hiperindividualista

Desde o fim dos anos 1970,enquanto a tecnologização mo-derna dos lares é quase generalizada, desenvolve-se seu plurie-quipamento, que significa a passagem de um consumo ordenadopela família a um consumo centrado no indivíduo. Os efeitosdes-sa multiplicação dos objetos pessoais são importantes, podendo

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cada um, dessa maneira, organizar sua vida privada em seu pró-prio ritmo, a despeito dos outros. Telefonescelulares,microcom-putadores, multiplicação das telas de televisão, dos aparelhos desom e máquinas fotográficas digitais: o multiequipamento e osnovos objetos eletrônicos da fase III provocaram uma escalada naindividualização dos ritmos de vida, um hiperindividualismoconsumidor concretizado em atividades dessincronizadas, práti-cas domésticas diferenciadas, usos personalizados do espaço, dotempo e dos objetos,e issoem todas as idades e em todos osmeios.

Objetos como o telefone celular, a secretária eletrônica, ocongelador, o microondas, o videogravador têm em comum per-mitir que os indivíduos construam de maneira autônoma seupróprio espaço-tempo. Ahora é da hiperindividualização da uti-lizaçãodos bens de consumo, das defasagensdos ritmos no inte-rior da família, da dessincronização das atividades cotidianas edos empregos do tempo. Em suas bandeiras, a sociedade de hi-perconsumo pode escrever em letras triunfantes: "Cada um comseus objetos, cada um com seu uso, cada um com seu ritmo devida".

Todas as esferas do consumo registram frontalmente esseformidável impulso de individualização. Sob esseaspecto, a evo-lução dos comportamentos alimentares é particularmente exem-plar. Enquanto a oferta é mais variada e mais exótica, os cardá-pios, os horários, os lugares da refeição dependem de escolhasmuito mais pessoaisque de regras coletivas:eis-nos à hora da de-sestabilização do sistema das refeições e da alimentação deses-truturada.21Mesmo a relação com a moda se subjetiviza,os adul-tos compram aquilo de que gostam, o que "lhes cai bem", e nãomais a moda pela moda - isso, é verdade, à diferença notáveldos jovensadolescentes.O que definea faseIIIé o menor poderdiretivo das regras coletivas, a personalização crescente das prá-ticas cotidianas, a maior liberdade de ação dos atores relativa-

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mente à sua classe de inclusão. As aspirações crescentes à auto-nomia e ao maior bem-estar, a escolha da primeira qualidade e adiferenciação da oferta mercantil, todos esses fatores tornarampossível um uso cada vez mais personalizado dos bens de consu-mo e, ao mesmo tempo, uma imensa desregulamentação do con-sumo, articulada em torno do referencial do indivíduo.

o consumidor-viajante

sito. Os "não-Iugares"23estão em via de tornar-se zonas comer-ciais repletas de produtos básicos, mas também de marcas, deprodutos culturais, de artigos de luxo.

Nas fasesI e lI, os consumidores deslocavam-se para se diri-gir às lojas;na fase III,é o comércio que vai a eles,instalando seuslocais de venda em função dos horários de freqüentação e dosfluxos de passagem.Assistimos à transformação progressiva dosespaços monofuncionais, outrora em sub-regime de consumo,em áreas hipermercantis polifuncionais: o montante de negóciospor metro quadrado nos aeroportos é agora superior ao das gran-des áreas e as lojas em estação têm um rendimento superior aodos comércios de centro de cidade.24Um espaço-tempo descon-tínuo é substituído por uma espécie de contínuo espaço-tempo-ral comercial. Por toda parte, a hora é da otimização mercantildos locais de passagem, da conquista de um espaço-tempo con-tínuo do consumo de produtos e serviços.

Produziu-se uma mutação: enquanto a fase 11estava centra-da quase exclusivamentenas prestações técnicas (facilitar o trans-porte, por exemplo),a faseIIInão cessa de diversificar e multi-plicar a oferta de serviços aos viajantes. O passageiro não é maisapenas aquele que toma o trem, o avião ou o carro, é um hiper-consumidor a ser atraído, ocupado e distraído. Já em 2000, a fir-ma Coop lançou na linha ferroviária Zurique-Berna uma lojaque ofereceum sortimento de cercade novecentos artigos de pri-meira necessidade. Em breve, sobre trilho ou no céu, a telecom-pra estará à disposição dos viajantes. A companhia Virgin intro-duziu jogos a dinheiro em suas linhas asiáticas. O Airbus A380poderia adotar caça-níqueis. A fase IIIvê a multiplicação dos ser-viços sem relação com a viagem, sendo o objetivo visado comer-cializar o tempo, estruturar o tempo por um sobreconsumo, umconsumo no consumo.

O trem e o avião eram antes de tudo meios de transporte rá-

I

O estágio IIInão institui apenas o reino dos ritmos de vidaà Ia carte, é acompanhado por novas ofertas e demandas relati-vas aos espaços-tempos do consumo.

Enquanto a mobilidade se intensifica e os indivíduos têmcada vez menos tempo a ser consagrado às suas compras, vemosos locais de trânsito começar a parecer pequenos ou grandes cen-tros comerciais. É assim que os aeroportos se tornam locais dehiperconsumo, com seu lote de lojas, duty-free, fitness-center, pis-cina, hotéis, restaurantes. No Japão, as estações assemelham-semais a centros comerciais que a locais onde se toma o trem. NaFrança, dirigentes da SNCF (Sociedade Nacional das Estradas deFerro Francesas) falam em "fazer a cidade ~etrar na estação":nessa perspectiva, a área comercial da estação Saint-Lazare deve-ria atingir 10 mil metros quadrados em 2008. A estação de Leip-zig criou uma zona comercial de 30 mil metros quadrados emtrês andares, incluindo 140 lojas. Na cidade e nas auto-estradas,os postos de abastecimento generalizaram os minimercados on-de se encontram bebidas, produtos frescos ou semifrescos, jor-nais e brinquedos: daí em diante, as receitas ligadas ao combus-tível não representam mais que 50% do montante de negóciosdos pontos de venda em auto-estrada.22 Lojas de alimentação, devestuário, de flores são igualmente implantadas nos corredoresdo metrô. Até os hospitais estão interessados no comércio de trân-

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pidos: são cada vezmais concebidos como "navios de cruzeiro" e"trens-bala comunicantes" cuja aposta é"viajar melhor", graças auma infinidade de serviços multimídia centrados em torno dodivertimento, dos jogos e da informação. Nas linhas de trens-ba-la, os passageiros terão acesso de alta velocidade à internet; umservidor permitirá ver filmes, ouvir música, relaxar com jogos devídeo, ler livros eletrônicos.As companhias aéreas oferecem cadavezmais prestações a seus clientes: música e filmes a pedido, jo-gosvirtuais,conexãocoma internet, TV aovivoe, embreve,li-gaçãoGSM(sistemamundial de telecomunicaçãomóvel).25Os res-ponsáveis pelo marketing das companhias aéreas já pensam emnovos serviços: cabeleireiros, sala de esporte, sauna, espaço in-fantil, miniloja. Para fidelizar os clientes e superar os concorren-tes num mercado desregulado, daí em diante é preciso cada vezmais conforto, mais serviços, mais distrações. De empresa detransporte, passa-se ao multisserviço aos viajantes. Já não se tra-ta tanto de ir mais depressa quanto de fazer passar mais rapida-mente o tempo da viagem e permitir um melhor controle subje-tivo do tempo. As conquistas técnicas centradas na diminuição

do tempo objetivo já não bastam: a época, hiperconsumo ex-periencial é a que privilegia uma abordagem mais qualitativa dotempo de transporte, a que visa, pelo consumo, a fazer esquecerque as viagensno espaço levam tempo.

o consumo contínuo

rias se dividem e se escalonam no tempo, as agências de viagemexibem suas ofertas o ano inteiro. As entregas em domicílio e aqualquer hora de pratos prontos desenvolvem-se com sucesso.As salasde cinema oferecem sessõestanto às dez horas da manhãquanto à meia-noite. O código do trabalho, na França, prevê queo domingo é o dia do repouso obrigatório, mas as infrações sãonumerosas e alguns grandes distribuidores abrem as portas ape-sar de tudo, jogando a política do fato consumado. Um poucoem toda parte, na Europa, as legislaçõessobre os horários de aber-tura dos comércios flexibilizam-se. É ao desmantelamento dasantigas regras limitadoras dos tempos de consumo mercantil queassistimos, este não devendo mais ter, "idealmente", momentosde interrupção ou de pausa.

Não se ignora que muitas instituições (sindicatos, associa-ções familiares, grupos de bairro, Igrejas) tentam opor-se à cida-de integralmente destinada ao consumo. Mas não é menos ver-dade que, no presente, mais de um francês em dois é favorávelàabertura das lojas aos domingos. Enquanto se afrouxam as legis-lações coercivas dos horários e dos dias, vemos delinear-se umaespéciede contínuo temporal consumidor liberto dos ritmos co-dificados do passado. O que está em ação é um processo de or-ganização de um universo hiperconsumista em fluxo estendido,funcionando ininterruptamente dia e noite, 365 dias por ano. Damesma maneira que o capitalismo desregulamentado e globali-zado se tornou "turbo capitalismo", 27 somos testemunhas da emer-gência de um "turboconsumismo" estruturalmente liberto dosenquadramentos espaço-temporais tradicionais.

Após a difusão dos bens mercantis em todo o corpo social(fase lI), a fase IIItrabalha em dilatar a organização temporal doconsumo, alongando os horários e os dias de abertura das lojas,eliminando progressivamente os tempos "vagos"ou "protegidos",entregando os dias de feriado e a vida noturna à ordem do mer-

Umamesma evoluçãomarca aorganização temporal do con-sumo. No presente, o rádio e a televisão funcionam sem inter-rupção; muitas sociedades de serviço adotam o esquema 24 ho-ras por dia, sete dias por semana; as lojas abertas à noite semultiplicam; o número dos distribuidores automáticos não ces-sa de crescer,permitindo as compras contínuas.26Enquanto asfé-

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cado. Enquanto se fala de "turismo noturno': a noite torna-se umsetor econômico de pleno direito, tendo seu montante de negó-cios duplicado desde a metade dos anos 1990.Em certas mega-lópoles dos EstadosUnidos ou do Japão, supermercados e livra-rias, restaurantes e salasde esporte freqüentemente estão abertosa toda hora do dia e da noite.Algumas firmas agora lançam as li-quidações no dia D à meia-noite. Depois das videolocadoras au-tomatizadas, as lojas de conveniência automáticas e refrigeradas(YaTooPartout,Casino 24), abertas a toda hora do dia e da noite,estão em plena expansão.28Em 2005,5 mil livrarias organizaram,nos Estados Unidos, uma Midnight MagicPartypor ocasião dolançamento do sexto volume das aventuras de Harry Potter; naGrã-Bretanha, mais de mil livrarias abriram à noite para o lan-çamento do livro.Um imenso território se abre às estratégias domarketing: não é senão o tempo da noite. Investindo no espaçonoturno, a economia hipermercantil abole todos os tempos depausa, constrói uma cidade aberta continuamente ao consumo,institui a comercialização ilimitada das trocas, 24 horas por dia,sete dias por semana.A sociedade de hiperconsumo, longe de ar-ruinar o sistema do desejo e do consumo,29empenha-se, não semsucesso, em mantê-l o cada vezmais desperfu,ampliando seu re-gime temporal.

A lógica do turboconsumismo encontra sua realizaçãoper-feita nas redes eletrônicas, graças às compras pela internet. Se,aolongo das fases I e lI, o cliente emancipou-se da influência do ven-dedor, na fase III o ciberconsumidor liberta-se de todos os entra-ves espaço-temporais, não estando mais obrigado a dirigir-se fi-sicamente a um local de venda e podendo fazer encomendas, emqualquer lugar e a qualquer hora, a uma máquina, e não mais auma pessoa. Supressão das barreiras ligadas não apenas ao espa-ço, mas também ao acesso à informação: graças aos sites de com-paração de preços, o internauta pode informar-se em tempo real

sobre os produtos e serviços, compará-Ios a qualquer hora do diae da noite antes de fazer a escolha adaptada às suas necessidades.É um sistema de informação sem limite, sem coerção de tempo ede lugar que especifica a época do turboconsumismo.

Um turboconsumismo policrônico

Nesse contexto de estilhaçamento dos enquadramentos es-paço-temporais do consumo, afirmam-se novos comportamen-tos, marcados pela exigência de eficácia e de rapidez, pela preo-cupação obsessivade ganhar tempo. Enquanto a grande maioriados consumidores desejapassar menos tempo fazendo suas com-pras, as caixas rápidas e os distribuidores automáticos multipli-cam-se. Para não perder tempo, cada vez mais franceses fazemsuas compras na hora do almoço e desejam poder ter acessoa co-mércios nos espaços de transporte (estação, metrô, aeroporto,posto de combustível).A comida rápida atinge uma clientela cadavezmaior.Asindústrias agroalimentícias oferecemum leque cres-cente de produtos de utilização rápida, pratos prontos, alimen-tos já preparados. A Décathlon acaba de lançar uma nova barra-ca de camping que, uma vez tirada de sua capa, desdobra-sesozinha em "dois segundos': O hiperconsumidor é esseindivíduoapressado, para o qual o fator tempo se tornou um referencialimportante, ordenando a organização do cotidiano. À obsessãocom a honorabilidade socialpelos símbolos mercantis segue-seacompulsão de ganhar tempo. Estamos no momento em que aeconomia de tempo parece mais importante que a economia tea-tral dos signos, no momento em que a corrida contra o tempoprevalece sobre a corrida à estima.

Em um ambiente reestruturado pelas novas tecnologias dainformação e da comunicação, a hipervelocidade, a acessibilida-de direta, o imediatismo impõem-se como novas exigênciastem-

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porais. Instalam-se caixas de retirada ultra-rápida dos bilhetesde transporte e telas informando em tempo real os prazos de es-pera nos locais de transporte. Mensagem de texto no celular, fo-to digital, TVsob demanda, DVD,e-mail: difunde-se o hábito dainstantaneidade das trocas e dos resultados, cada um querendopoder comunicar-se e ser contatado, ver e comprar depressa, portoda parte e a todo momento. A época do "saber esperar': em quea experiência da espera era um elemento de felicidade, recua emfavor de uma cultura da impaciência e da satisfaçãoimediata dosdesejos. "Faço uma foto: eu a vejo, a transmito, a apago": aqui oprazer se casa com a experiência da instantaneidade. Na civiliza-ção do hiperinstante, os serviços expressos e 24 horas multi-plicam-se, a porção das viagens decididas no último minuto edas reservas tardias aumenta: é o tempo da demora zero, do "oque quero, quando quero, onde quero': querendo o turboconsu-midor obter tudo, imediatamente, em qualquer dia, em qualquermomento. Enquanto proliferam as ofertas e demandas em tem-po real, o Homo consumans torna-se alérgico à menor espera, de-vorado que está pelo tempo comprimido do imediatismo e daurgência.30

A obstinação em comprimir o tempo foi interpretada comoum dos signosdo advento de uma nova condiçao temporal do ho-mem, marcada pela sacralização do presente, por um "presenteabsoluto", auto-suficiente, cada vezmais desligado do passado edo futuro. Invadindo o cotidiano, atingindo o conjunto das ativi-dades humanas, a ordem do tempo precipitado faz desaparecer,ao que nos dizem, a distância e o recuo necessáriosao pensamen-to, destrói os universos simbólicos, encerra o homem no imedia-tismo ativista.31Novo modelo de nossa relaçãocom o tempo, a ur-gência é apresentada como o "metatempo social"da fase1II.32

O turbo consumidor tornou-se, portanto, um doente da ur-gência, prisioneiro da ditadura do "tempo real"?Tanto quanto a

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irrupção de uma cultura da instantaneidade é uma idéia poucocontestável, convém mostrar-lhe os limites, não tendo o tempocomprimido conseguido de modo algum absorver a totalidadede nossas energias. Éverdade que o hiperconsumidor expõe umaevidente preocupação em fazer mais e mais depressa, não supor-ta perder tempo, quer a acessibilidadedos produtos, das imagense da comunicação a toda hora do dia e da noite. Mas, ao mesmotempo, assiste-se à proliferação de desejos e de comportamentoscujaorientação para osprazeressensoriaiseestéticos,para omaiorbem-estar, para as sensações corporais exprimem a valorizaçãode uma temporalidade lenta, qualitativa e sensualista."Slowfootl',escutas musicais, passeios a pé, excursões, spas e banhos turcos,meditações e relaxamentos: contra a fast live,os lazeres lentos en-contram amplo eco.Assim,somos testemunhas do gosto pelo fla-nar, pelas idas ao restaurante à noite, pela ociosidade na praia ounos terraços dos cafés. Nada de temporalidade uniformementeurgencial, mas um sistema composto de temporalidades profun-damente heterogêneas: ao tempo operacional opõe-se o tempohedonista, ao tempo corvéia, o tempo recreativo, ao tempo pre-cipitado, o tempo descontraído dos jogos e espetáculos, da dis-tensão, de todos os momentos centrados nos gozossensuais e es-téticos. O regime do tempo na sociedade de hiperconsumo nãotem nada de unidimensional; é, ao contrário, paradoxal, dessin-cronizado, heteróclito, polirrítmico. É sob o signo de uma ativi-dade consumidora policrônica que se organiza a fase III.

Se as imposições de velocidade intensificam-se, não perca-mos de vista, no entanto, o papel primordial desempenhado pe-lo ator individual, o "consumator" que, sem cessar,adota estraté-gias individuais, faz escolhas e arbitragens pessoais, acelerandoaqui para deixar tempo livre ali.Ganhar tempo não é apenas umaobrigação determinada de fora; talvez seja também uma estraté-gia destinada a aproveitar melhor outros momentos da vida. O

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tempo da instantaneidade se dissemina, mas seu "despotismo"está longe de ser total, estando o hiperconsumidor em condiçãode organizar à Iacarteseu emprego do tempo, de adotar ritmosdiferenciados segundo as situações e os momentos. De um lado,generaliza-se o sentimento de sujeição ao tempo acelerado; dooutro, desenvolvem-se o tempo livre, os tempos para si e consi-go, a individualização das maneiras de gerir o tempo pessoal, adissociação dos ritmos de vida, as práticas em que se aceita per-der tempo, em que se aproveita o tempo para se dedicar a si.

Apanhado na fuga acelerada da temporalidade, o turbocon-sumido r acha-se encerrado tão-só no tempo do imediatismo eestá por isso privado de distância simbólica e utópica? Será quevivenum estado de imponderabilidade temporal esvaziadade to-do laço com o passado? A idéia é frágil, no momento em quetriunfam o culto do património, a paixão pelo "autêntico': pelosobjetos carregados de sentido e de legendas.O turboconsumidorperdeu todo o interessepelo futuro? Como conciliar essatesecoma progressão dos consumidores "engajados", que se preocupamcom o futuro do planeta e procuram dar sentido às suas comprasao privilegiar os produtos solidários e ecologicamente corretos?

A verdade é que, quanto mais se afirma o imp~rativo de celeri-dade, mais se exprimem as considerações éticas, as posturas crí-ticas em relaçãoàsmarcas e ao consumo "irresponsável': Por maisque se eclipsem os ideais normativos, vemo-Ios ativos em novosterritórios, os do consumo, em particular. Sob esseaspecto,o tur-boconsumismo deve ser apresentado menos como uma ordemque fazdesaparecer o recuo dos sujeitos do que como uma dinâ-mica favorecedora do distanciamento do presente, da responsa-bilização ética do consumidor.

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() efeito Diva

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Se o ideal-modelo do turboconsumidor se impõe, é tambémporque a fase IIIdesestabilizou em profundidade os antigos mo-delos de classe,os códigos simbólicos diferenciais que estrutura-vam, desde as eras mais remotas, as práticas e os gostos indivi-duais. Eis-nos, pela primeira vez, em um sistema marcado nãopelo desaparecimento das diferenças de condição, mas pelo des-vanecimento das coerções e dos habitus de classe.Ao turbocapi-talismo desregulamentado corresponde um sistema de consumodesregulado, um turboconsumismo emancipado das culturas declasse.

Ainda no começo da fase lI,nas classespopulares, domina osentimento de inclusão em um mesmo mundo social estrutura-do por referências e um estilo de vida homogêneos. Está em vi-gor todo um conjunto de atitudes e de chamamentos à ordem,de piadas e de brincadeiras que se encarrega de opor-se às tenta-tivasde transpor as fronteiras de classe,à ambição de distinguir-se pela identificação com outros grupos. "Quem ela pensa queé?","não é natural que...","de onde ela saiu?":33o grupo exerce,não sem sucesso,pressões e coerções simbólicas, construindo umforte conformismo de classe.Nesse universo compartimentadopelo antagonismo entre "eles"e"nós",vestir-se,morar, comer, be-ber, divertir-se são atividades reguladas pelas maneiras de classe,modos de vida específicos,diferenças de habitus.Todos os agen-tes de uma mesma classee todas as práticas de um mesmo agen-te, escreve Bourdieu, apresentam uma "afinidade de estilo",um"ar de família",uma "sistematicidade" resultante do habitus so-cia}.34Foi a essa organização coletiva do consumo que a fase IIIpós fim.

Produziu-se uma mutação: no cenário da sociedade de hi-perconsumo, já não é inevitável que se compre o que compram

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os que nos são próximos socialmente, tendo o estilhaçamentodos sentimentos e das imposições de classe aberto a possibilida-de de escolhasparticulares e da livre expressãodos prazeres e gos-tos pessoais. O "cada um no seu lugar", exprimindo a primaziado grupo social, é substituído por um princípio de legitimidadeoposto: "cada um faz o que lhe agrada".Aquestão central não émais "ser como os outros': mas "o que escolher?"na oferta pletó-rica do mercado: o princípio de autonomia tornou-se a regra deorientação legítima das condutas individuais. O turboconsumis-mo define-se pelo descontrole social do comprador, por suaemancipação em relação às obrigações simbólicas de classe.As-sim, o direito de construir nosso modo de existência como "bemnos parece"já não encontra outro obstáculo além do nível do po-der de compra. No presente, é o dinheiro de que se dispõe, maisdo que a classe de origem, que faz a diferença nos gêneros de vi-da. Enquanto as decisõessedeslocamdo grupo para o sujeito sin-gular, o estilo de existência não compete mais que ao indivíduo.Livre da obrigação de moldar-se por um estilo de vida pré-for-mado e específico, o turboconsumidor se apresenta como esse

comprador móve~que não tem mais nenhuma ~onta a prestar aquem quer que seja. \

Naturalmente, em muitos domínios as escolhas e as práti-cas de consumo ainda podem ser relacionadas à classe social deinclusão. E nenhuma homogeneização dos gêneros de vida surgeno horizonte, as diferenças dos rendimentos recompõem, comtoda a evidência, fortes disparidades nas maneiras de consumir ede divertir-se.Mas, se os estilos de vida não convergem de modoalgum, não é menos verdade que não cessade recuar o poder or-ganizador dos habitus.Cada vezmais, a especificidade dos esti-los de vida das classesse reduz: daí em diante, os ideais de bem-estar, de viagens, de novidades, de magreza são partilhados portodos. O gosto pelasmarcas e pela moda espalha-se entre os ado-

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lescentes de todos os grupos sociais; a paixão pelos jogos, pelos('spetáculos, pela música alcança todas as camadas. As desigual-d,\des econômicas se aprofundam, as aspirações consumistas seaproximam; as práticas sociais divergem, o sistema referencial éIdêntico. Se a ordem social é clivada, o universo simbólico dasnormas é homogêneo. É assim que declinam as antigas estagna-,~õesde classe e o encerramento dos indivíduos em seu grupo deorigem.Aheterogeneidade social salta aos olhos, porém mais na-da lhe fundamenta culturalmente a reprodução, tendo cada umganhado o direito ao supérfluo, ao consumo, ao maior bem-es-lar. O que define a fase III não é a homogeneização social, é o me-nor poder diretivo dos modelos de classe,a liberdade de ação dosatores em relação às normas coletivas e aos habitus,a individua-lizaçãodas escolhas consumidoras.

A conseqüência dessa destradicionalização das classesé quese torna difícil prever as despesas de consumo a partir do lugarocupado na ordem social.Daí em diante, para rendimento igual,asmaneiras de consumir divergem notavelmente, as decisões decompra dependem menos de critérios socioprofissionais "rígi-dos" que de gostos pessoais,de critérios de idade ou de sexo.Cadavezmais, as arbitragens de cada um já não coincidem exatamen-te com a classede inclusão. Enquanto se atrofiam as identidadese os sentimentos de inclusão de classe, as escolhas de consumo,cada vezmenos determinadas unilateralmente pelo habitus e ca-da vezmais pela oferta mercantil e midiática, têm como caracte-rísticas.ser muito imprevisíveis, descoordenadas, desunificadas.Errância imprevisível que podemos chamar de "efeito Diva",emreferência ao filme de Jean-Jacques Beineix, no qual um jovemempregado dos correios, de condição modesta, vive em um 10ftbarroco, mostra-se apaixonado por ópera e dispõe de um equi-pamento de gravação musical profissional. De um sistema me-canicista, passou-se a um sistema probabilista ou indetermina-

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do, assemelhando-se o hiperconsumidor a uma "partícula ele-mentar" com percursos "caóticos": é um consumo desinstitucio-

nalizado, de geometria variável, que marca a fase III. Daí esse per-fil do turboconsumidor, tão freqüentemente descrito comoflexível e nômade, volátil e "transfronteiriço': eclético e fragmen-tado, zapeador e infiel.

o consumo balcanizado

Seo ciclo do turboconsumismo é contemporâneo do enfra-quecimento dos enquadramentos de classe,não o é menos de umfenômeno que, mesmo sendo de menor amplitude, é igualmentesignificativo da época: a comunitarização do consumo, da qualasmodas de jovens oferecemo exemplomais notório. Eis-nos naera do consumo em redes, descoordenado e balcanizado,descen-trado e disperso em neoclãs reunidos em torno de gostos e de in-teresses específicos, de gêneros de vida, de modas musicais, in-dumentárias ou esportivas. Nos ciclos anteriores, a divisão emclassese a oposição do superior e do inferior constituíam os prin-

cípios organizadores da ordem do consumo, ~sta ordenando-sede cima para baixo a partir de referências cons~nsuais.Essa épo-ca agora ficou para trás. O momento IIIvai de par com o estilha-çamento dessa lógica piramidal em favor de um modelo hori-zontal ou em redes, fragmentado e policentrado, no qual osmicrogrupos identitários se justapõem em um espaço heterogê-neo de gostos, de estéticas e de práticas. Após a era centralizada,a era multipolar e dispersa do hiperconsumo em que as diferen-ciações se efetuam a partir de uma multiplicidade de critérios,sejam eles de idade, de música, de esportes, de projetos de vida,de etnicidade, de orientação sexual.

A despeito das fortes correntes miméticas e conformistasque estruturam essesmicrogrupos, estes não são por isso menos

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representativos do turboconsumismo, em razão, especialmente,do caráter fluido, instável, individualista que lhes é próprio. Maisnada se assemelha às configurações rígidas e escalonadas de an-tigamente;nessascomunidades, é possível"entrar" e"sair" à von-I,.de,por busca identitária, adesões e escolhas pessoais efêmeras,nos antípodas da imposição "mecanicista" dos tempos anterio-res:a comunitarização hipermoderna não se inscreve na contra-corrente da cultura do indivíduo autônomo; ela é uma de suasfiguras paradoxais. Fragmentada, desregulada, volátil, a era quese anuncia institui um comunitarismo baseado na preocupaçãode afirmação de si, um consumo em patchworksclânicos trazidopela onda de individualização dos atores.

II.

A criança hiperconsumidora

A sociedade de hiperconsumo não vê apenas a desagregaçãodas culturas de classe;écontemporânea da promoção de um mes-mo modelo consumista-emocional-individualista em todas asclassesde idade. De um lado, as maneiras de consumir são cadavezmais marcadas pelas diferenças de idade; do outro, não hámais nenhuma categoria de idade - ainda que seja a primeirainfância - que não participe plenamente da ordem do consu-mo.A contar dos anos 1920,a publicidade enveredou pelo cami-nho da exaltação da juventude, enquanto as escolhas e decisõesde compra permaneciam reservadas essencialmente aos pais, deacordo com a cultura tradicional baseada na autoridade sobera-na dos pais e na obediência incondicional dos filhos. Foi apenascom os anos 1950-60 que os jovens adolescentes, por meio daprática do dinheiro para pequenas despesas, das publicidades eprodutos culturais que lhes eram destinados, começaram a emer-gir como consumidores "autônomos" e alvo comercial específi-co.A fase IIIainda aumentou um grau nessa lógica, exercendo a

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criança ou o pré-adolescente uma influência cada vezmais im-portante nas compras efetuadas pelos próprios pais: ele se tor-nou um comprador-decididor por seu dinheiro para pequenasdespesas, ao mesmo tempo que um prescritor de compras pelonovo papel que desempenha em relação aos pais,35Porque o mo-delo autoritarista está desqualificado,o filho hoje comunica suaspreferências, exprime pedidos, dá sua opi~'1iãoa respeito das es-colhas parentais. O filho "mudo" faz parte de uma época finda:na situação atual, ele escolhe, emite solicitações, dá sua opiniãopor ocasião das compras, os pais levando em conta seus desejose lhe transmitindo um estilo de consumo finalizado pelo prazer.Eis-nos na era da criança hiperconsumidora, escutada, tendo odireito de fazer as próprias escolhas,dispondo de uma parcela depoder econômico, controlando direta ou indiretamente uma par-te das despesasdas famílias.

Não se trata mais, como na fase I,de livrar-se dos costumesancestrais,mas de permitir a expressão dos desejossubjetivos, fa-vorecendo os comportamentos autônomos dos mais jovens porintermédio das compras e do dinheiro para pequenas despesas:emnossos dias, o consumo é pensado como instrumento de prazer,

de despertar e de desenvolvimento da autonota da criança. Aomesmo tempo, no que concerneaos pais, eleé do domínio de umalógicaexperiencial,sendo essencialmenteum momento de alegriaproporcionado pelo espetáculodo prazer dos filhos.A faseIIIé es-se cosmo em que prevalece o "consumo-amor", o consumo-festatanto dos menores como dos mais velhos.No momento em quedesabrocha o "filho-rei" informado, decididor e prescritor, o con-sumo se apresenta como um meio para "comprar a paz" na famí-lia, uma maneira de fazer-seperdoar por ausênciasmuito longas,ao mesmo tempo que como um direito do filho baseado no direi-to à felicidade,aos prazeres,à individualidade.

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PowerAge

As mudanças não são menos notáveis caso se considere a clas-se de idade denominada, desde os anos 1990, sênior, isto é, a daque-les com mais de cinqüenta anos. Representando cerca de 30% dapopulação total, dispondo de um poder de compra que aumentounotavelmente, tendo menos bocas a alimentar, os vovô-boomersefetuam quase a metade dos gastos ligados ao consumo; um carroem dois é comprado por eles; o mercado dos seniornautas progrideduas vezes mais depressa que a média; eles pesam 31% no montan-te de negócios da indústria do turismo americano. Acrescentemosque, com o alongamento da duração de vida e seu peso demográ-fico crescente, sua importância econômica vai inevitavelmente pro-gredir nas próximas décadas. A fase IIIé contemporânea da PowerAge, a era dominada pelos seniores metamorfoseados em hiper-consumidores emocionais de produtos e serviços.

Foi-se a época em que os aposentados estavam esgotados,com poucos anos por viver, em que os avós se contentavam emcuidar dos netos. Criados na sociedade de consumo, os senioresviajam, partem para o outro extremo do mundo, visitam cidadese museus, fazem cursos de informática, praticam esporte, que-rem parecer "mais jovens". A buli mia consumista já não é inter-rompida pela idade: a geração do vovô-boom mostra-se ávida deevasões distrativas, de maior bem-estar, de qualidade de vida as-sociada ao consumo de produtos dietéticos, aos prazeres do tu-rismo, aos cuidados cosméticos. Dizia-se que eles eram refratá-rios às mudanças: hoje, pessoas entre cinqüenta e 64 anos estãotão bem equipadas quanto as mais novas em DVD,máquina foto-gráfica e câmara de vídeo digital; recuperam seu atraso em equipa-mento de computador e estão cada vez mais dispostos a experi-mentar novas marcas e novos produtos, em particular no domínioda alimentação, visando melhorar o estado de saúde. O avanço

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da idade rimava com lentidão e inatividade, fidelidade às marcase subconsumo: tornou-se um período de vida marcado pelo he-donismo e a superatividade consumidora. No presente, o apo-sentado representa uma figura perfeita do indivíduo hipercon-sumidor, livredo imperativo de trabalho, absorvido apenas pelaspreocupações com o corpo e a saúde, viagens e saídas, prazeresprivados e familiares.Mesmo enrugado, Narciso continua Narci-so, tentando seduzir, viver plenamente o presente, embora ator-mentado pelas angústias do fim da vida. Daí em diante, o Narci-so sênior procura, no consumo, conservar-se em boa forma e boasaúde, mas também participar do movimento da vida social,"fi-car por dentro", aproveitar a vida e esquecer a marcha do tempo.Nas fasesI e 11,o consumo contribuiu para erradicar as tradiçõessociais "arcaicas"; de agora em diante, ele é mobilizado para re-duzir o sentimento íntimo do envelhecimento. Mais ainda quenas outras fases da vida, o hiperconsumo sênior funciona comouma espécie de terapia cotidiana, como uma maneira de conju-rar o sentimento de inutilidade, a angústia da solidão e do tem-po que passa. /

A fase11inaugurou as estratégias de seg~ntação do merca-do, mas essemarketing de geração era, em essência,voltado paraa juventude. As pessoas idosas eram sistematicamente negligen-ciadas, postas fora do circuito por políticas comerciais temerosasde envelhecer a imagem de marca de seus produtos. Isso está emvia de mudar, a fase III vê emergir, com mais ou menos destaque,um marketing destinado aos seniores. O movimento está longede assemelhar-se a um maremoto: 95% dos investimentos publi-citários, na França, visam aos jovens e à dona de casa com me-nos de cinqüenta anos. Mas não é menos verdade que uma mu-tação está em curso: faz-se publicidade para o "público-alvo"sênior, a faixa de idade que era objeto de exclusão por parte do

marketing começa a ganhar direito de cidadania, aparecendo co-mo uma nova "mina de ouro", o grande mercado do futuro.

Há alguns anos, os seniores representavam o papel de po-pulação uniforme, comercialmente assegurada. Daí em diante,trata-se de seduzi-Ios e fidelizá-Ios, criando uma comunicaçãoespecífica, oferecendo produtos adequados às suas situações e ne-cessidades próprias. O mercado das próteses, dos serviços perso-nalizados, das entregas em domicílio vai desenvolver-se. Nos Es-tados Unidos, contam-se cerca de 50 mil sites na Web dirigidosaos seniores; cadeias de hotel e agências de viagem oferecem re-duções ou serviços particulares aos maiores de sessenta anos. Asmarcas cosméticas (Roc) lançam campanhas publicitárias cen-tradas no rejuvenescimento do rosto, prometendo "dez anos amenos" às mulheres qüinquagenárias. Imagens publicitárias reú-nem o avô e o neto, homens e mulheres de sessenta anos apare-cem nos spots comerciais.Firmas recrutam empregados seniores,considerando que os clientes com mais de cinqüenta anos prefe-rem estar em contato com vendedores da mesma idade. Assim(Orno se desenvolve uma forte subdivisão do mercado dos "jo-vens" (bebê, criança, pré-adolescente, adolescente, jovem adul-to), o marketing sênior divide seusalvosem" masters","liberados':"pacatos': "grandes ancestrais": é um marketing hipersegmenta-do que cria os novos mercados das terceira e quarta idades, com-pletando, assim, a ordem turboconsumista. Na fase III,mais ne-nhuma idade deve escapar às redes do marketing, mais nenhumlimite deve deter o expansionismo comercial: da mesma manei-ra que o tempo do hiperconsumo é contínuo, 24 horas por dia,~65dias por ano, os indivíduos serão chamados, em breve, a tor-nar-se turbo consumidores ao longo de toda a vida, de um aosccm anos.

O reino do vovô-boom anuncia, portanto, o fim da cultura"antivelho': o desaparecimento da ditadura do juvenilismo?A fa-

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se IIIinstitui o regime tolerante e pluralista de todas as idades?Tenhamos cuidado para não confundir uma lógicacomercialcoma cultura vivida cotidiana: se é verdade que a época do ostracis-mo dos "velhos" está terminada, isso não significa de modo al-gum que o juvenilismo se desvanece.O inverso é que é verdade,pois, se os seniores tornam-se mais visíveis na publicidade, elesdesejam cada vez mais permanecer jovens e sedutores, sexual-mente ativos,"ser como todo mundo", por vezes"refazer a vida".O sucessodos produtos de cuidados pessoais e da cirurgia estéti-ca ilustra eloqüentemente esseprocesso: é quando o juvenilismomidiático-publicitário se torna menos extremista que ele triunfanos comportamentos e aspirações de cada um. Enquanto a so-ciedade e o mercado tendem a reconhecer os seniores, são elespróprios que querem cada vezmais se sentir jovens, experimen-tar novas emoções de todo tipo, reduzir os estigmas da idade. Ojuvenilismo não morre de modo algum: interioriza-se no maisíntimo dos seres.A fase IIInão desregula os espaços-tempos doconsumo senão sob os auspícios de um juvenilismo subjetiviza-do, ampliado, variado ao infinito, que se estende até o extremo

limite em que a capacidade de autonomia indi~ual desaparece.

ENTRE MEDIDA E CAOS

Seo modelo que se impõe é realmente o do turboconsumi-dor, é difícil subscrever as afirmações segundo as quais seríamostestemunhas de uma mudança radical de lógica em comparaçãoaos anos 1980.Segundo essas teses, surge uma época nova, mar-cada pelo advento do "consumidor empreeendedor", que substi-tui o individual pelo familial, o egoísmo pela solidariedade, oinútil pelo essencial,o efêmero pelo durável.36Findo o consumi-dor individualista, eis chegado o tempo do consumidor" experf'

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e responsável. Digamos com clareza:para sermos exatos e preci-sos, as descrições desse neoconsumidor não conseguem justifi-car a idéia de uma superação do "individualismo triunfante". Émuito redutora a interpretação que assfmilaeste último à osten-tação do Eu e ao desejo de não ser confundido com os outros. Alógica do indivíduo vai bem além das paixões egotistas, uma vezque se caracteriza pela emancipação das condutas pessoais emrelação aos enquadramentos coletivos assim como pela rápidaprogressão dos cultos do divertimento, do maior bem-estar e dasaúde. É inegávelque os imaginários do consumo se transforma-ram, mas essasmudanças não significamde modo algum que elessejam detentores de uma inversão de lógica consumidora. A des-continuidade é apenas de superfície, não sendo aquilo a que as-sistimos mais que a acentuação, sem dúvida irreversível, da di-nâmica do princípio de individualidade.

Quer-se provas disso?Elassemultiplicam. O que há de maisexpressamente individualista, ou mesmo de narcísico, que as no-vas preocupações relativas à saúde, ao corpo e à aparência? Hátanta, se não mais, motivação individualista no crescimento dosconsumos de saúde quanto nas despesas destinadas a atrair oolhar do outro. Como, nesse plano, justificar a idéia de "uma vi-rada de 180 graus" do consumidor37quando se banalizam a ci-rurgia estética, a recusa dos sinais da idade, as práticas de manu-tenção e de forma, os desejos de soberania pessoal sobre o corpo?O efêmero recua? O ciclo de vida dos produtos não cessa de di-minuir. O fato de se desenvolverem os setores da educação, dasviagens, da comunicação, do bem-estar corporal e mental signi-fica que o fútil ficou para trás? Não é realmente o que sugeremos jogos de vídeo, os chats,os disfarces eletrônicos do Eu, a ne-cessidadede comunicar-se por comunicar-se, a telerrealidade, osparques temáticos de lazer.É forçoso constatar que o turbocon-sumidor se aproxima tanto do que é essencial à vida quanto do

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que é mais frívolo.Medicalização da existência, espiral dos laze-res, jogos, zappingdos produtos: ao deixar os anos 1980,o trem-bala individualista não reduziu sua corrida - acelerou-a.

Os consumidores atentos às causas humanitárias, preocu-pados com selos verdes e produtos éticos mostram-se mais soli-dários?Mas, se a tendência ao consumo "cidadão" é inegável,emquê ela faz sair da constelação do indivíduo, em outras palavras,dos engajamentos de tipo opcional, mínimo e indolor? Elasigni-fica sobretudo que o individualismo não é sinônimo de egoísmoabsoluto: este pode ser compatível com o espírito de responsabi-lidade, com a preocupação com certos valores, ainda que fossesegundo um regime de geometria variável, "sem obrigação nemsanção".38

Consumidor ''profissional'' e consumidor anárquico

A idéia de Homo consumans gerindo suas atividades de ma-neira "profissional", comprometendo-se no rumo de uma "vidacontrolada", veicula demais a imagem sem complicações de um

consumidor racional e equilibrado.A consideraçãjAo quadro deconjunto revela traços muito mais contrastados. De um lado, nos-sa época celebra a responsabilidade individual e os comportamen-tos de prevenção, presta um culto à saúde, ao equilíbrio íntimo, àqualidade de vida. A multiplicação das informações e a elevaçãodo nível de instrução da população favoreceram, sem nenhumadúvida, a "profissionalização" das atividades consumidoras. Mas,do outro lado, observa-se uma infinidade de fenômenos sinôni-

mos, ao contrário, de excesso e de descontrole de si: fashion vic-tims, compras compulsivas, superendividamento das famílias, "fa-náticos" por jogos de vídeo, ciberdependentes, toxicomanias,práticas viciosas de todo tipo, anarquia dos comportamentos ali-mentares, bulimias e obesidades. O que se anuncia é tanto um in-

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dividualismo desenfreado e caótico quanto um consumidor" ex-ped' que se encarrega de si de maneira responsável.

O relaxamento dos controles coletivos, as normas hedonis-tas, a escolha da primeira qualidade, a educação liberal, tudo is-so contribuiu para compor um indivíduo desligado dos fins co-muns eque, reduzido tão-só às suasforças,semostra muitas vezesincapaz de resistir tanto às solicitações externas quanto aos im-pulsos internos. Assim,somos testemunhas de todo um conjun-to de comportamentos desestruturados, de consumos patológi-cos e compulsivos. Por toda parte, a tendência ao desregramentode si acompanha a cultura de livre disposição dos indivíduos en-tregues à vertigem de si próprios no supermercado contemporâ-neo dos modos de vida. Àmedida que se amplia o princípio depleno poder sobre a direção da própria vida, as manifestações dedependência e de impotência subjetivasse desenvolvemnum rit-mo crescente. O que se representa na cena contemporânea doconsumo é tanto Narciso libertado quanto Narciso acorrentado.

O estágio IIIpôs em órbita um consumidor amplamenteemancipado das imposições e ritos coletivos. Mas essa autono-mia pessoal traz consigo novas formas de servidão. Se ele estámenos submetido aos valores conformistas, está mais subordi-nado ao reino monetizado do consumo. Seo indivíduo é social-mente autônomo, ei-Io mais do que nunca dependente da formamercantil para a satisfação de suas necessidades. Consideradosum a um, os atos de consumo são menos dirigidos socialmente,mas, juntos, o poder de enquadramento da existência pelo mer-cado aumenta. A influência geral do consumo sobre os modos devida e os prazeres amplia-se tanto mais quanto impõe menos re-gras sociais coercitivas.

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ti.

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6. O fabuloso destino doHomo consumericus

o consumo de massa não se ergueu sobre um solo virgem.Foi contra todo um conjunto de usos, de costumes e de mentali-dades pré-modernas que se impôs e depois sedifundiu. Essaépo-ca de modernização-racionalização agindo sobre o fundo de seucontrário está terminada, tendo agora desaparecido o antagonis-mo que existia entre as normas modernas do consumo e as "tra-dições". A fase III pode ser apresentada como o momento em quea comercialização dos modos de vida já não encontra resistên-cias culturais e ideológicas estruturais, em que tudo o que sub-sistia de oposição cedeu diante das sereias da mercadoria. Chegaa hora em que todas as esferas da vida social e individual são, deuma maneira ou de outra, reorganizadas de acordo com os prin-cípios da ordem consumista.

A constatação da generalizaçãodo modo mercantil de satis-fação das necessidades não é nova, teóricos importantes. subli-nharam, desde a fase lI,essa reorganização de fundo da socieda-de capitalista. Tudo indica, no entanto, que uma nova etapa foitransposta. A sociedade de hiperconsumo significa muito mais

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que a extensão sem fim da esfera da economia política, ela desig-lia o estágio em que o próprio não-econômico sevê revestido daforma consumista doravante globalizada. O momento primeiroda economia política generalizada está ultrapassado: eis-nos àhora do consumismo sem fronteiras, do consumo-mundo, essacena histórica em que não apenas as trocas são reguladas pelomercado, mas em que mesmo o que não é comercializado é co-lhido pelo ethosconsumista. Na sociedade de mercado que orga-niza a fase IlI,a figura do consumidor é observada em todos osníveis da vida social, imiscui-se em toda parte, em todos os do-mínios, sejam econômicos ou não: ela se apresenta como o espe-lho perfeito no qual se decifra a nova sociedade dos indivíduos.

Daí algumas temíveis questões. Quais são, afinal, os efeitossobre o homem do consumo-mundo tentacular? Existem,apesarde tudo, esferas"protegidas" dessa nova forma de "colonização"?Como se sabe, não faltam avisos relativos à violência da mercan-tilização da vida. Alguns vêem aí um terrorismo assustador, umtotalitarismo de novo estilo, despersonalizando e embrutecendoos seres. Outros apontam o fim próximo dos valores transcen-dentes e das formas da sociabilidade. Outros ainda se alarmam àidéia de que a mercadoria possa chegar a sufocar os sentimentoshumanos mais elevados.Deve-se lhes dar razão?O futuro da so-ciedade de hiperconsumo pode ser apreendido diferentementede um enredo-catástrofe?

o CONSUMO-MUNDO

O consumo sem freio

A propensão a ser comprador das novidades mercantis nãotem nada de espontâneo. Para que surgisse o consumidor mo-

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demo foi preciso, nas fases I e 11,afastar os indivíduos das nor-mas particularistas e locais, desculpabilizar a vontade de despen-der, desvalorizar a moral da poupança, depreciar as produçõesdomésticas, foi preciso inculcar novosmodos de vida, liquidandoos hábitos sociaisque resistiamao consumo mercantil. Foi livran-do-se dos comportamentos tradicionais, arruinando as normaspuritanas, fazendo cair no esquecimento as culturas camponesase operárias que se construiu o planeta do consumo de massa.Noséculo XIX,os grandes magazines inventaram o "shopping' comonova ocupação distrativa e criaram a necessidade irresistível deconsumir nas classes burguesas. Mais tarde, o célebre "five dol-larsday"de Ford é pensado como a possibilidade, para o operá-rio, de ter acesso ao status de consumidor moderno. Nos anos1920,à publicidade, nos Estados Unidos, atribuiu-se a tarefa deformar um consumidor adaptado às novas condições da produ-ção em grandes séries.O sistemado crédito, ao longo dessesmes-mos anos, e, depois, no pós-guerra, permitiu o desenvolvimentode uma nova moral e de uma nova psicologia em que não eramais necessário economizar primeiro para comprar em seguida.Ninguém discordará disto: o sucessoé total, o "adestramento" noconsumo moderno teve êxito além de todas as expectativas.

Não há mais, de fato, normas e mentalidades opondo-sefrontalmente ao desencadeamento das necessidades monetiza-das. Todasas inibições, todas as barreiras "arcaicas"foram liqui-dadas; permanecem em ação apenas a legitimidade consumista,as incitações aos gozos do instante, os hinos à felicidade e à con-servação de si. O primeiro grande ciclo de racionalização e demodernização do consumo está terminado: mais nada está porabolir, todo mundo já está formado, educado, adaptado ao con-sumo ilimitado. Começa a era do hiperconsumo quando as anti-gas resistênciasculturais caíram, quando as culturas locais já nãoconstituem freios aos gostos pelas novidades. A fase IIIé essa ci-

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vilizaçãoem que o referencialhedonista se impõe como uma evi-dência, em que a publicidade, os lazeres, as mudanças perpétuasdo cenário de vida "fazem parte dos costumes": o neoconsumi-dor já não semostra sobre um fundo de cultura antinômica.2

A espiritualidade consumista

Mesmo a religião não constitui mais um contrapoder noavançodo consumo-mundo. Àdiferença do passado,a Igrejanãoalega mais as noções de pecado mortal, não exalta mais nem osacrifício nem a renúncia. O rigorismo e a culpabilização forammuito atenuados, ao mesmo tempo que as antigas temáticas dosofrimento e da mortificação. Enquanto as idéias de prazer e dedesejo são cada vezmenos associadas à "tentação", a necessidadede carregar sua cruz na terra desapareceu. Já não se trata tantode inculcar a aceitaçãodas provações quanto de responder às de-cepções relativas às mitologias seculares que não conseguiramcumprir sua promessa e de proporcionar a dimensão espiritualnecessária ao desabrochamento completo da pessoa, De uma re-ligião centrada na salvação no além, o cristianismo se transfor-mou em uma religião a serviço da felicidade intramundana, en-fatizando os valores de solidariedade e de amor, a harmonia, apaz interior, a realização total da pessoa.3Por aí se vê que somosmenos testemunhas de um "retorno" do religioso que de umareinterpretação global do cristianismo, que se ajustou aos ideaisde felicidade,de hedonismo, de desabrochamento dos indivíduosdifundidos pelo capitalismo de consumo: o universo hiperbólicodo consumo não foi o túmulo da religião,mas o instrumento desua adaptação à civilizaçãomoderna da felicidade terrestre.

Quando uma concepção intramundana e subjetiva da sal-vação domina, cresceparalelamente a mercantilização das ativi-dades religiosas e pararreligiosas,4 tendo os indivíduos necessi-

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dade de encontrar "no exterior" meios para consolidar seu uni-verso de sentido, que a religiãoinstitucional já não conseguecons-truir.5 Em parte alguma o fenômeno é tão evidente quanto no"amontoado místico-esotérico" e nos circuitos que assumem aNew Age.Nessa esfera de influência, multiplicam-se as livrariasespecializadas e os salões de exposição, toda uma oferta comer-cial feita de grupos de trabalho com gurus, centros de desenvol-vimento pessoal e espiritual, estágios de zen e de ioga,grupos detrabalho sobre os "chacras", consultas de "medicina espiritual",cursos de astrologia e de numerologia etc. Enquanto as obras dereligião e os romances espirituais são grandes sucessosde livra-ria, muitos editores investem nesse novo "segmento" promissor.Na sociedade de hiperconsumo, mesmo a espiritualidade é com-prada e vendida. Se é verdade que a reativação pós-moderna doreligioso exprime certo desencanto com o materialismo da vidacotidiana, o certo é que o fenômeno é cada vezmenos exterior àlógicamercantil. Eisque a espiritualidade se tornou mercado demassa, produto a ser comercializado, setor a ser gerido e promo-vido. O que constituía uma barreira à explosão da mercadoriametamorfoseou-se em alavancade seu alargamento. A fase IIIé aque vê esfumar-se o abismo entre o Homo reIigiosuse o Homoconsumencus.

Aomesmo tempo, sobre um fundo de enfraquecimento dascapacidades organizadoras das instituições religiosas, a tendên-cia forte é para a individualização do crer e do agir, para a afeti-vização e a relativização das crenças. Hoje, mesmo a espirituali-dade funciona em auto-serviço, na expressão das emoções e dossentimentos, nas buscas animadas pela preocupação com omaiorbem-estar pessoal, de acordo com a lógica experiencial da faseIII. Cadavezmais,é a buscada realizaçãopsicológicado sujeitoque se encontra no centro tanto das experiências dos crentes pro-priamente ditos quanto das novas "religiões sem Deus".6 O que

constitui o valor da religião não é mais sua posição de verdadeabsoluta, mas a virtude que lhe é atribuída de poder favorecer oacesso a um estado superior de ser,a uma vida subjetiva melhoremais autêntica.' Naturalmente - é útil sublinhá-Io -, crer nãoé consumir: inscrevendo-se na continuidade de uma tradição,buscando o "essenéial",o divino e o sentido da vida, o espírito defé não pode ser confundido com o espírito pragmático do con-sumismo. Mas não é menos verdade que a reafirmação contem-porânea do religioso se acha marcada pelos próprios traços quedefinem o turboconsumidor experiencial: participação tempo-rária, incorporação comunitária livre, comportamentos à Iacar-te,primado do maior bem-estar subjetivo e da experiência emo-cional. Nesse plano, o Homo religiosus aparece mais como acontinuação do Homo consumericuspor outros meios que comosua negação.Não se trata, é evidente, de reabsorção do religiosono consumo: simplesmente, assistimos à extensão da fórmula dosupermercado até os territórios do sentido, à penetração dosprin-cípios do hiperconsumo no próprio interior da alma religiosa.

o hiperconsumidor cativado pela ética

A ética constitui um outro "setor" de ponta do consumo-mundo. É certo que o mercado dos produtos socialmente corre-tos e verdes ainda está balbuciante: 1% a 5% do consumo total,segundo os países.No entanto, desde2001,o comércio socialmen-te correto registra uma importante progressão em volume, em di-versidade de produtos, bem como em notoriedade. Cadavezmaisconsumidores declaram ser sensíveis aos produtos oriundos docomércio socialmentecorreto;uma importante proporção de con-sumidores europeus afirma estar disposta a pagar mais caro se oproduto respeita normas ecológicasou éticas;segundo o Institu-to Mori, apenas um quarto dos consumidores se diz indiferente a

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esses critérios. Dezoito por cento dos britânicos e 14% dos holan-deses já boicotaram produtos em função de critérios "cidadãos".Em nossas sociedades, não se consomem mais apenas "coisas", fil-mes e viagens, compram-se "produtos éticos" e ecológicos. Outrotempo, outras motivações: aos militantes políticos seguem-se osnovos consumidores "engajados': ávidos por selos éticos e produ-tos com sentidos associados à defesa das crianças, dos famintos,dos animais, do meio ambiente, das vítimas de todo tipo. ~ sobos auspícios do consumo "correto': da despesa cidadã, ecológica esocialmente responsável que se constrói a fase m.

Simultaneamente, a mercadoria "responsável" tem comocomplemento um consumo de ações humanitárias, a expansãodas grandes festas midiatizadas da beneficência de massa comsuas estrelas e seus jogos, seus risos e seus choros, seus dilúviosde apelos e de doações. O hiperconsumidor experiencial aprovaos megaespetáculos da bondade, os testemunhos pungentes, orock caritativo, as estrelas a serviço da solidariedade, tudo banha-do numa ambiência festiva e interativa. A fase terminal do con-

sumo se completa na sagração do valor ético, instrumento de afir-mação identitária dos neoconsumidores e gerador de emoçõesinstantâneas para os espectadores das maratonas filantrópicas.

Ao festival do objeto acrescentam-se agora o consumo cida-dão e a festa dos bons sentimentos. Saem as "águas geladas docálculo egoísta", entra a beneficência da felicidade dada e recebi-da ao vivo e em primeiro plano. Findas as rivalidades simbólicasda troca-dom selvagem, nosso potlacht é feérico, consensual ecompassivo, é o da bondade total, do dom consumido e mass-mi-diatizado, prometido, expedido e zapeado. Depois do consumodemonstrativo das classes ricas, os crescendos do Bem televisual.Não há mais antagonismo entre hedonismo e desinteresse, indi-vidualismo e altruísmo, idealismo e espetaculosidade, consumis-mo e generosidade, nossa época confundiu essas antigas frontei-

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ras, para maior felicidade do hiperconsumidor sentimental-mi-diático,mobilizado episodicamente e à distância.

o consumismo sem fronteira

A dinâmica do consumo-mundo não se detém aí. São todasas grandes instituições sociais que se vêem reformatadas, "revis-tas e corrigidas" pelo turboconsumismo. O casal?Elese desinsti-tucionaliza e se privatiza, tornando-se mais contratual, mais ins-tável,cada um se pretendendo autônomo e procurando preservarsua disponibilidade num compromisso pensado como rescindí-vel.Baixa do número de casamentos, aumento das uniões livres,progressão do divórcio, precariedade dos laços: a família já nãoescapa inteiramente às estratégias temporárias, individualizadas,contratualizadas do indivíduo-consumidor. A relação com a po-lítica? Enquanto aumenta a volatilidade eleitoral, muitos cida-dãosmostram uma adesãomaisvagaaospartidos políticos,orien-tam-se mais individualmente, mudam devoto segundo anaturezae as apostas das eleições:o voto-estratégia do consumidor políti-co tende a substituir o voto de classeà moda antiga. O sindicalis-mo?Também aqui, ganha o laço temporário e distanciado, tendoo filiado progressivamente se tornado um simples contribuinte,um "cliente" tratando a organização sindical como uma simplesinstituição: ao engajamento identitário que prevalecia ainda hápouco se seguiu uma relação de tipo utilitarista.8

Onde devem ser estabelecidas as fronteiras do consumo-mundo no momento em que o consumismo alcança domíniostão diversos quanto a sexualidade e a procriação, o espermato-zóide e os óvulos, a espiritualidade e a cultura, o esporte e a es-cola? Enquanto se exige que os serviços públicos se comportemcomo empresas do setor da concorrência, até as aposentadoriassão confiadas, ou estão em via de sê-Io, às companhias de segu-

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ros e aos fundos de pensão em nome do interesse dos consumi-

dores, dos usuários e aposentados. O fato está aí: com a expan-são da sociedade de mercado, o universo do cliente ou do usuá-rio torna-se o paradigma dominante, uma espéciede "fenômenosocial total': Estamos na época em que, em todas as esferas,se im-põem, mais ou menos, o princípio do auto-serviço e a efemeri-dade dos laços, a instrumentalização utilitarista das instituições,o cálculoindividualistadoscustose dosbenefícios.

O que dizer, se não que o mercado se tornou, muito alémdas transações econômicas, o modelo e o imaginário que regemo conjunto das relações sociais, se não ainda que o consumidorse apresenta como a figura predominante do sujeito social? Aemancipação dos atores em face das imposições coletivas, o re-cuo do Estado,aextensãoda esferamercantila esferasque anti-gamente dela estavam excluídas generalizaram, em todos os do-mínios, a lógica das opções pessoais,as relaçõescontratualizadase temporárias, a perspectiva do cliente, a busca da melhor rela-çãoqualidade-preçoe damaximizaçãodasvantagens.A fase IIIpodeserdefinida comoasociedadeem que a forma-consumoaparece como o esquema organizador das atividades individuais,em que o ethosdo consumismo reestrutura todas as esferas, in-clusiveas que são externas à troca paga. Uma nova figura emble-mática do indivíduo tomou corpo: ela não é mais que a do hi-perconsumidor globalizado.

o CONSUMO REFLEXIVO

A fase 11do consumo de massa foi acompanhada por viru-lentas denúncias da mercantilização das necessidades e da pro-gramação dos modos de vida. As correntes esquerdistas, a juven-tude rebelde, a ecologia radical lançaram-se à guerra contra as

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pseudonecessidades, o consumo ilusório dos objetos, o esbanja-mento das riquezas. Toda uma geração reprovou o reino da pas-sividadeedo condicionamentogeneralizadoemnome da liber-dade total, da criatividade, do gozo passional.

Essa fase,manifestamente, deu o que tinha a dar, não tendoo espírito revolucionário resistido aos encantos do Éden consu-mista. Edificou-se uma nova cultura que substitui os sonhos dadescontinuidade histórica pelo culto do desabrochamento subje-tivo, da qualidade de vida, da saúde infinita. Isso significa o desa-parecimento de toda oposição ao mundo da mercadoria, o triun-fo de uma humanidade totalmente integrada, sem discordâncianem antagonismo? De modo nenhum. Por mais que se imponhaum universo marcado pela aprovação generalizadadas condiçõesde vida, somos testemunhas de uma espécie de democratizaçãodo dissentimento, tendo a crítica do mundo consumista se tor-nado a coisa do mundo mais bem partilhada. Qual domínio ain-da estáa salvodos lamentose dosprotestosdo consumidor?Er-guemo-nos contra a colonização publicitária do espaço público;preocupamo-nos com as ondas nefastas propagadas pelos telefo-nes celulares e pelos fornos de microondas; deploramos o desa-parecimento do sabor dos alimentos; revoltamo-nos contra osalimentos transgênicos e os produtos poluentes; queixamo-nosdas praias superlotadas e da desfiguraçãodas paisagens;vocifera-mos contra as novas incivilidades telefônicas, as hordas de turis-tas, a feiúra dos hipermercados; acusamos a televisão de nos tor-nar imbecis e a publicidade, de nos transformar em carneiros dePanurgo. Àmedida que a ordem mercantil invade os hábitos devida, as desaprovações e insatisfaçõesmultiplicam-se, todo mun-do se tornou mais ou menos crítico de um mundo que ninguém,no fundo, quer substancialmente diferente. É de fato a "socieda-de unidimensional" (Marcuse) que triunfa, só que ela não signi-fica de maneira alguma desaparecimento das forças oposicionis-

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tas e identificação completa dos indivíduos com a existência queé a deles.Émesmo o contrário: há tanto mais postura críticaquan-to mais a adesão ao statu quoé profunda.

Da vitrine à consciência

o que caracteriza a sociedade de consumo, escreviaem 1970Baudrillard, "é a ausência de 'reflexão', de perspectiva sobre simesma... não existemais que a vitrine na qual o indivíduo já nãoreflete a si próprio, mas se absorve na contemplação dos obje-tos/signos multiplicados':9Como não ver a diferença em relaçãoao momento III, que provoca - embora não de modo exclusivo

ou regularmente - distanciamento e desconfiança dos sujeitos?Da mesma maneira que se intensifica a autonomização dos indi-víduos em facedas grandes instituições coletivas,há uma maiordistância em relação àsmarcas e aos produtos de consumo. O quenão quer dizer desinteresse, mas aumento da reflexividade doconsumidor que, daí em diante, dispõe de uma massa de infor-mações e de conhecimentos midiático-científicos para efetuarsuas compras. Tudo o que era vivido imediatamente e sem dis-tância tornou-se mais problemático, é acompanhado de avalia-ção e de vigilância, de necessidade de informação, de saber e deexame, por vezes de desconfiança. Na era dos novos riscos ali-mentares e da obsessão sanitária, o Homo consumericusnão ces-sa de convocar o Homo scientificus para orientar-se e escolhercom "conhecimento de causa': minimizar a ação dãs substânciasnocivas, empregar estratégias de prevenção dos riscos.Na fase IIl,comprar não funciona mais semsaber,sem recuo informado, semreflexão"científica':Fim da época da mercadoria despreocupadae inocente: eis-nos no estágio reflexivolOdo consumo erigido emproblema, objeto de dúvida e de interrogação. O ciclo III designa

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o advento do consumo como mundo e como problema, comocomplicação e como consciência refletida.

Assim, o "estágio do espelho" foi substituído pelo "estágiodo especulativo" do consumo, aquele em que os comportamen-tos de compra se efetuam à luz dos conhecimentos "científicos"veiculados pelas mídias. Transformação que participa sem difi-culdade do novo planeta dos indivíduos. Numa época em que oshomens têm cada vezmais a impressão de que o controle de suaexistênciacoletivaIhesescapa,é em torno dos modos de vida quese intensificam as interrogações e atitudes críticas.Mudando seushábitos, fazendo escolhas"esclarecidas': o neoconsumidor erige-se em ator livre que avalia os riscos e discrimina os produtos. O"tomar a palavra"" não é apenas uma reação causada por expe-riências de consumo decepcionantes ou apresentadas como pe-rigosas, é um dos caminhos seguidos pelo indivíduo para afir-mar sua subjetividade autônoma e sua identidade pessoal.Atravésda rejeição e das escolhas conscientes, o consumidor experimen-ta uma maneira de ser sujeito, cuja autonomia se concretiza naprudência, no discernimento, na capacidade de mudar e de ques-tionar o existente. Não se trata de uma simples defesa contra omundo exterior, mas de um instrumento de apropriação indivi-dual de uma parte do mundo dominado pelo mercado. O que sepoderia chamar de "cogitohiperconsumidor" aparece como umadas expressões da escalada individualista, uma maneira de cons-truir um poder pessoal sobre um território extremamente pró-ximo no momento em que os grandes projetos coletivos perde..ram sua antiga força de mobilização.

O hiperconsumo como destino

Enquanto a reflexividadeconsumidora tende a generalizar-se, as flechas lançadas contra o desencadeamento das necessida-

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des mudaram de direção. A ecologia radical e política que, nosanos 1960-70,preconizava a austeridade voluntária e a "autoli-mitação das necessidades"deu lugar às demandas de proteção domeio ambiente, à agroecologia, à gestão duradoura dos recursosda Terra. Às utopias da ruptura seguiram-se os apelos à salva-guarda do "patrimônio comum da humanidade", às palavras deordem "comam melhor, consumam saudavelmente" sucederamos elogios ao slowfood.O que conta antes de tudo é a defesa dosgrandes equilíbrios planetários, a produção de mercadorias re-cicláveis,a reconciliação da economia ~da ecologia. O protestoglobalizante e maniqueísta transformou-se em ferramenta deretlexividade pragmática feita de contestações pontuais, de sen-sibilização às urgências da hora, de apelos a uma modificação"realista" e necessária das práticas produtivas, das políticas pú-blicas e dos modos de consumo. Depois das paixões revolucio-nárias, o princípio de precaução e a sabedoria avaliadora dos ris-cos maiores: a época não é mais da redefinição completa dasnecessidades e menos ainda do culto da vida frugal, mas do eco-consumismo, dos selos verdes, da ecologia industrial.12Biopro-dutos, desenvolvimento duradouro, ecossistemaindustrial: a eco-logia não constitui mais um contrapoder à economia mercantil,funciona como instrumento de sua reciclagem,vetor de uma ofer-ta mais respeitadora dos grandes equilíbrios da natureza. Seé ine-gável que a sensibilidade ecológica continua a ser um amontoa-do constituído de correntes divergentes, não é menos verdadeque elaseesforçapara criar um "suplemento de alma': para "cons-cientizar" a produção e o consumo. Quanto menos existe utopiarevolucionária, mais aumenta a retlexividadedo consumo-mun-do repintado na cor verde.

Apesar disso, a radicalidade crítica não baixou as armas: osativistasantiglobalizaçãoandam naspáginasdosjornais eamcdo-naldização do planeta figura mais do que nunca como o grande

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Satã.13Volta ao ponto de partida? Não é nada disso.Os novos ati-vistasproclamam que "o mundo não é uma mercadoria", os aná-temas fazem sucesso, mas o que é visado é menos o consumo-mundo do que as desregulamentações do "horror econômico".Oultraliberalismo, as imposições do FMIsão postos no pelourinho,mas o objetivo perseguido é fazer que os países em desenvolvi-mento entrem na era do bem-estar material. A destruição dosplantios de milho transgênicos, os apelos em favor da taxa Tobin*ou da anulação da dívida dos países pobres, tudo isso não cons-titui desconstruções do mundo consumista, mas demandas deregulação e de "humanização" da globalização. Semuitos aspec-tos do hiperconsumo são postos no banco dos réus e se os anti-consumo militam contra o carro, a televisão ou a publicidade, éforçoso constatar que mais nenhum modelo fiávelde sociedadealternativa está à nossa disposição: temos a postura da denúnciaradical, menos a esperança e a organização prática de um outromundo. A solução milagrosa e o lúdico substituíram as perspec-tivas de revolucionar realmente a organização mercantil dos mo-dos de vida.'4O que o consumo-mundo propõe é como um des-tino irresistível.

Esse"rearmamento da crítica" foi analisado com pertinên-cia como um protesto "essencialmente moral" que, produzidopela nova preeminência ideológica do direito dos indivíduos,"participa em profundidade daquilo que recusa na superfície".15Acrescentareique essa forma paradoxal de participação na socie-dade contemporânea não se nutre apenas da sagração dos direi-tos humanos, mas também das aspirações e finalidades nascidasdos desenvolvimentos do consumo de massa. Recusa da unifor-

* Inspirada em uma proposta de James Tobin, Prêmio Nobel de Economia, es-sa taxa é a aplicação de um imposto às transações financeiras, com o objetivode evitar a especulação.(N. T.)

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mização planetária, ofensiva contra os OGMS(organismos gene-ticamente modificados), cruzada contra as marcas e a publicida-de, tudo isso se alimenta dos ideais de felicidade e de qualidadede vida, de hedonismo e de maior bem-estar que só o capitalis-mo de consumo conseguiu difundir em grande escala.16Se a no-va radicalidade é filha de seu tempo, é por ter se adaptado às nor-mas do hiperconsumo que ela não cessa de vilipendiar.

LIMITES DA MERCANTILIZAÇÃO

o estágio IIIsignificao momento em que a esfera comercialse torna hegemônica, em que as forças do mercado invadem aquase totalidade dos aspectosda existênciahumana. Pode-secom-preender, nessas condições, a urgência que há em interrogar-sesobre o tipo de ser humano e de vida social modelados pelo quealguns chamam de novo "totalitarismo mercantil". Seo processode mercantilização não for contido, não é imenso o risco de quese degradem a sociabilidade, a confiança social, a empatia, todosos valores e sentimentos que definem nossa humanidade? O queserá dos laços comunitários, das relaçõesbaseadas na afeição,noamor e na dedicação em sociedades que não conhecem mais queas trocas venais?A natureza humana não está ameaçada quandoa maior parte de nossas relações se torna monetária e contra-tual?I7Assim,é possívelque, à sombra do consumismo eufórico,esteja sendo preparada uma nova humanidade ou "pós-humani-dade" de pesadelo.

Alguns já o afirmam alto e bom som: o mundo no qual vi-vemos não tem mais nada a ver com o passado, a era do consu-mo-mundo conseguiu criar um estado de imanência total em quenão existem mais que as paixões pela segurança, a saúde e o go-zo festivo,em que o indivíduo não tem mais substância existen-

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cial,vive sem íntimo nem interioridade num tempo inteiramen-te positivado, expurgado de toda imprevisibilidade, de todo ris-co, dos conflitos e antagonismos que constituíam a história.18Afase IIIconseguiu, portanto, fazer triunfar definitivamente o "ho-mem-massa", esse"homem medíocre" denunciado por Ortega yGasset, incapaz de esforço,de exigência,de superação de si e que,mimado pela história, se contenta em ser o que é em uma perpé-tua imanência?19Não acredito nisso.

Mesmo o "último homem': que poderia ser representado pe-lo hiperconsumidor, esforça-seem fazermelhor, em "crescer",emviver por algo além da segurança e dos divertimentos. A luta pe-lo reconhecimento, os desejos de transcendência de si não foramde modo algum varridos: paixão pelo risco e pela façanha, von-tade do trabalho bem-feito, gosto pela criação intelectual, artísti-ca ou empresarial, desejo do poder são fenômenos que revelamque nem tudo, na fase 1Il,se resume à lógica do consumível. Sobo reino da positividade do bem-estar, continua a trabalhar a ne-gatividade humana, o desejo de vencer e de ganhar, a aspiração asuperar-se. Ainda que a experiência mercantil ocupe uma partecada vez mais importante de nosso tempo, a relação consigo ecom os outros não se reduz a atividades consumistas. Superar-se, ser bem-sucedido no que se empreende, vencer asprovações,inventar, criar, todas essaspaixões que Nietzsche associavaà idéiade vontade de poder estão, afinal, inalteradas. "Aluta pelo poder,a ambição de ter 'mais' e 'melhor' e 'mais depressa' e 'com maisfreqüência'... a força imensa que quer despender-se e criar"20pa-ra crescer, para dominar, pela "sensação de um máximo de po-der",nada de tudo isso desapareceu.Àmedida que o ato de con-sumir estende sua influência, as exigências de superação de si, asde ser estimado e de ter auto-estima pelo que se realiza não ces-sam de se reafirmar.A existênciahumana não ficou integralmen-

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Relações mercantis e sociabilidade

e pelas trocas inter-humanas tenha sido aniquilado? A realidadeobservável não confirma esse esquema. O tempo consagrado à te-levisão e ao vídeo aumenta, mas, paralelamente, constata-se umatendência ao acréscimo - ainda que leve - da freqüência aosmuseus, teatros, circos, locais de exposição ou de patrimônio. Onúmero de idas ao cinema declina, mas a freqüência aos parques

de lazer e a participação nos espetáculos de rua e nos festivais cres-ce.24Os bistrôs de bairro desaparecem, mas uma nova geração decafés "especializados" (bares de cerveja, de vinho, de caraoquê, ci-bercafé) nasce. Os jovens se comunicam por SMS,mas gostam dese encontrar entre si para discutir, ir ao cinema, fazer compras,comer um hambúrguer. O lar tende a tornar-se um espaço propí-cio para passar o tempo livre, mas as saídas à noite para a casa dosamigos são mais freqüentes que antigamente. De maneira maisampla, um número crescente de franceses declara preferir aos la-zeres domésticos os lazeres que os levem a sair de casa.25

Contrariamente a uma idéia muito repisada, a sociedade de

hiperconsumo não é sinônimo de encasulamento e de "confina-mento interativo generalizado". O equipamento audiovisual doslares não suprimiu de modo algum a necessidade de estar emcontato com o "mundo" e de encontrar os amigos. Estamos mui-to longe da sociedade dita "fortemente com uni cante, mas fraca-mente defrontante":26 ao contrário, o gosto pelo ao vivo, o desejode sair, de "ver gente", de participar de grandes reuniões festivasé que parecem representar as tendências mais significativas. Ob-servando-se o florescimento dos clubes e associações, nada per-mite afirmar que no futuro se encontrará cada vez menos o ou-tro, num estado crescente de "solidão interativa". A difusão socialdos novos objetos de comunicação inverterá essa orientação? Averdade é que são os indivíduos mais bem equipados de novastecnologias que "saem" mais e encontram mais gente.27Estudosrecentes mostraram que as relações virtuais não ameaçam as re-

te a cargo da ordem mercantil e hedonista: não nos tornamos osconsumidores de nossa própria vida.

Se a vontade de superar-se não está em perigo, o que é feitoda relação com os outros, das paixões e das formas da sociabili-dade? Desde a fase lI, os pensadores críticos desenvolveram a idéiade que o consumo espetacular devia ser compreendido como "aorganização sistemática da falência da capacidade de encontro",como uma "comunicação sem resposta"causadora de um "autis-mo generalizado".21A ordem despótica do consumo não é senãoa que institui a unilateralidade da comunicação, uma relação so-cial abstrata que impede toda forma de reciprocidade entre osseres: a televisão é, assim, "a certeza de que as pessoas não se fa-lam mais, de que estão definitivamente isoladas em face de umapalavra sem resposta".22A problemática da dessocializaçãosiste-mática foi ainda mais reforçada com o desenvolvimento das re-des e das novas tecnologiasda informação, que substituiriam pro-gressivamenteaantigavida emsociedadepelasinteraçõesvirtuais.Estudos afirmam que a utilização da internet "diminui o círculodas relações sociais próximas e distantes, aumenta a solidão, di-minui ligeiramente a quantidade do suporte social":23em 2001,dentre 13milhões de adolescentes americanos, 2 milhões prefe-{iamcomunicar-se com os amigospor meio da rede a fazê-lopes-soalmente. O mundo que virá seria o das comunidades virtuaiscujo efeito é de destruir a comunidade real, o encontro direto, olaço coletivo.

É inegável que a televisão, o carro, os lazeres contribuírampara provocar o abandono de todo um conjunto de lugaresde en-contro tão diversos quanto os bistrôs de bairro, a missa, os lava-douros públicos.Mas isso significaque o gosto pela sociabilidade

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lações pessoais: elas as completam, os indivíduos que costumamutilizar os serviços da internet continuam a manter relações forada rede ou procuram ampliar seu horizonte de encontros reais.Evitemos o clichê do declínio da vida social: por ora, não há pe-rigo real referente às inclinações à sociabilidade, tendo o desen-volvimento do virtual e das mídias mais probabilidades de refor-çar a importância vivida dos contatos diretos que de depreciá-Ios.Se as relações de vizinhança se enfraquecem, não é em favor dareclusão doméstica, mas de uma "sociabilidade ampliada" maisseletiva,mais efêmera, mais emocional, em outras palavras, pos-ta no diapasão do ethoshiperconsumidor.

Aniquilação dos valores?

o consumo-mundo abole a confiança social, o altruísmo ea empatia? Não há nenhuma dúvida de que vemos exprimir-se,em nossas sociedades, uma ampla desconfiança em relação aosdirigentes políticos e às elites econômicas. Alguns observadoresassinalam a inquietante difusão do cinismo no corpo social, umaproporção importante da população, especialmenteentre osmaisjovens e mais desfavorecidos,tem a convicçãode que "as pessoassão fundamentalmente más':28Se,além disso, levarmos em contao aumento das incivilidades, das delinqüências e outras ativida-des criminosas/9 o quadro de conjunto é inegavelmente poucoanimador.

No entanto, outras razões permitem mostrar-se menos pes-simista. Pois a "decomposição dos valores" tem limites: os direi-tos humanos, as liberdades públicas e individuais, o ideal de to-lerância, a rejeição da violência, da crueldade, da exploração dosmais fracos são princípios que não naufragaram. Mesmo que oespírito de sacrifício e o ideal de "viver para outrem" já não se-jam muito professados, não se pode assimilar a cultura de hiper-

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consumo ao grau zero dos valorese dos comportamentos altruís-tas. Os sentimentos de empatia e os gestos de solidariedade sãoespécies em via de extinção? Como compreender, nesse caso, amultiplicação das associações e dos voluntários?30A despeito detodas as formas de indiferença ao outro existentes, nossas socie-dades favorecemmais a identificação com outrem que sua ruína.As capacidades compassivas, o senso da indignação, os atos deajuda mútua e de solidariedade, tudo isso não foi erradicado: as-siste-seapenas ao desenvolvimento de uma generosidadecircuns-tancial, emocional, indolor.31Sempre receptivo à infelicidade deoutrem, sempre desejoso de sentir-se útil aos outros, o "coração"do indivíduo hiperconsumidor não deixou de bater: é ritmadode uma outra maneira.

A sentimentalização do mundo

Falência de todo ideal? Absorção de todos os aspectos daexistência pela troca paga? Basta considerar a questão do amorpara perceber bem depressa o ponto em que o processo mercan-til encontra seus limites.Aocontrário do que podiam pensar cer-tos materialistas do século XIX,o amor como valor, longe de de-clinar,continua a ser posto num pedestal.Nos filmes,nas canções,nos romances, na imprensa, por toda parte o amor se apresentacomo um ideal superior, a quintessência da vida, a imagem maisemblemática da felicidade. "Dessentimentalização" do mundo?Jamais o casal foi tão baseado no sentimento, jamais a idéia de"bom casamento" excluiu tanto o casamento de interesse.E o quehá de mais prioritário, de mais imperativo para nós que a afei-ção parenta!? Ainda que as questões de dinheiro sejam onipre-sentes no cotidiano, uma outra lógica, antinômica porque afeti-va, "desinteressada",exterior ao valor mercantil, não cessade serfavorecida por uma imensa legitimidade, de modelar nossas ex-

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pectativas, de regular nossas vidas. Não fazemos mais que con-sumir amor nas mídias de massa, cremosnele, reconhecemos-lheum valor excepcional, organizamos-desorganizamos partes in-teiras de nossa existência em função dos movimentos do cora-ção.Um eixo importante da vida permanece fundamentalmenteheterogêneo às forças do mercado: nem tudo, é evidente, foi co-lonizado pelo valor de troca. É essa própria dimensão que cons-titui o que para nós é a maior riqueza, o relevo mais intenso davida privada. Essaparte fora do mercado não é nem residual nemarcaica. É bem o contrário: quanto mais se amplia a comerciali-zação dos modos de vida, mais se afirma o valor do pólo afetivona esfera privada. O universo do consumo-mundo não põe fimao princípio da afetividade sentimental, consagra-o como valorsuperior, correlativo à cultura do indivíduo que, aspirando à au-tonomia pessoal, recusa as regulações institucionais do tempoprivado. Éassim que a cultura do amor se generaliza na propor-ção mesma em que se intensifica, ao mesmo tempo, a dinâmicado indivíduo e a da mercantilização das necessidades.32

Frivolidade efragilidade

Essas análises não têm por objetivo inocentar a fase III doconsumo. Tranqüilizem-se, não ignoro totalmente as ameaçasque ela faz planar sobre nós. Apenas me esforço em pensá-Ias evi-tando as facilidades da denúncia apocalíptica. Quais são os efei-tos do consumo-mundo? Para onde vamos? A que infortúniosestamos expostos? À "revolução das esperanças", trazida pela faseli, sucederam a consciência dos "danos do progresso", a suspeitaem relação às novas tecnologias, o temor da degradação do nívelde vida. Se a sociedade de hiperconsumo conseguiu neutralizaras lutas simbólicas que orquestravam os atos de consumo, ela nãocessa de reproduzir novas conflituosidades entre o homem e as

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coisas, o homem e si próprio, o homem e o social. Atrás das lu-zes da frivolidade consumista continuam a contorcer-se as an-gústias do mal-estar, do "duro desejo de durar", da luta pela vidae pela sobrevivência. No momento mesmo em que nossas socie-dades são mais ricas e mais poderosas do que nunca, tomam no-vo impulso os temores da exclusão e das restrições, as obsessõescom a idade, a saúde e a segurança: a humanidade, afinal, conti-nua a mostrar-se igualmente vulnerável e frágil.

No horizonte, desenha-se não a aniquilação dos valores edos sentimentos, mas, mais prosaicamente, a desregulamentaçãodas existências,a vida sem proteção, a fragilizaçãodos indivíduos.A sociedade de hiperconsumo é contemporânea da espiral da an-siedade, das depressões, das carências de auto-estima, da dificul-dade de viver.Lembramo-nos das palavras deWoodyAllen:"Deusestá morto, Freud está morto e eu mesmo não me sinto lá muitobem"; cada um acha cada vezmais penoso assumir as dificulda-des da vida, cada um tem a impressão de que a vida é mais pesa-da, mais caótica, mais "impossível"no momento mesmo em queas condições materiais progridem. Enquanto brilha a euforia dobem-estar, cada um tem, mais ou menos, a impressão de não tervivido o que teria desejado viver, de ser mal compreendido, deestar à margem da "verdadeira vida".Se a maioria, nas pesquisas,declara-se feliz,todo mundo, a intervalos mais ou menos regula-res, se mostra inquieto, taciturno, insatisfeito com sua vida pri-vada ou profissional.A civilizaçãoque se anuncia não abole a so-ciabilidade humana, ela destrói a tranqüilidade consigo e a pazcom o mundo, tudo se passando como se as auto-insatisfaçõesprogredissem proporcionalmente às satisfações fornecidas pelomercado. Um passo para a frente, um passo para trás: a alegria, afrivolidade de viver não têm encontro marcado com o progres-so. Sempre mais satisfações materiais, sempre mais viagens, jo-gos, esperança de vida: contudo, isso não nos escancarou as por-tas da alegria de viver.

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8. PaulYonnet, Travail, loisir, Paris,Gallimard, 1999,p. 75.9. Observador Cetelem 1999.

10.William Severini Kowinski, The malling of America: an inside look atthegreat consumerparadise,NovaYork.Morrow, 1985,pp. 349-50.

11.A expressão consumo experiencial foi introduzida em marketing porMorris Holbrook e Elizabeth Hirschman, "The experiental aspects of consump-tion. Consumer fantaisies, feelingsand fun': ]ournal of ConsumerResearch,vol.9, n22, 1982.Sobre o marketing experiencial,G. Ritzer,Enchantinga disenchan-tedworld: revolutionizing the meansof consumption,Pine ForgePress,1999;Oli-vier Badot e Marc Dupuis, "Le réenchantement de Iadistribution", LesÉchos-L'Art du Management, 18 de abril de 2001; Bernard Cova, "Expérience etmarketing': Business Digest, n2 129, abril de 2003; Yves Evrard e Christophe Bé-navent, "Extension du domaine de I'expérience", Décisions Marketing, n2 28,2002.

12.Sigmund Freud, Essaisdepsychanalise,Paris, Payot, Petite Bibliothe-que Payot, p. 45. No século XVIII,uma vasta literatura já sublinhou os laços queunem o prazer à diversidade e à mudança; ver Robert Mauzi, L'idéedu bonheurdans Ia littérature et Iapenséefrançaise au XVlflCsiecle,Paris,Albin Michel,1994,capo 10.

13. Alvin Toffier, op. cit., capo X.

14.Assim, a fase IIIfunciona segundo duas lógicas contrárias, desenvol-vendo-se o consumo lúdico paralelamente ao consumo ansioso ou desconfia-do (qualidade do produto, perigo das mercadorias, dos organismos genetica-mente modificados).

15.Anne Godignon e Jean-Louis Thirlet, "Pour en finir avec le conceptd'aliénation",LeDébat,nQ56,setembro-outubro de 1989.

16.GuyDebord, La sociétédu spectacle,Paris,Champ Libre,1971,p. 15.17.Raoul Vaneigem, Traitédesavoir-vivre à l'usagedesjeunesgénérations,

Paris, Gallimard, 1967,P.159.

18.Claude Lévi-Strauss, "La technique du bonheur aux U.S.A.': L'âge d'or,nQ 1, 1946.

19. Philippe Muray, Apres l'histoire, Paris, Les Belles Lettres, tomo I, 1999;tomo lI, 2000; igualmente, Exorcismes spirituels, 11I,Paris, Les Belles Lettres, 2002.

20. Roger Caillois, Lesjeux et leshommes, Paris, Gallimard, Idées, 1967,p.61.

21. lbid., p. 62.

22. Sob muitos aspectos, elas se reforçam, como o demonstra o desenvol-vimento das publicações, dos programas televisivos, dos objetos, dos locais, doslazeres, dos jogos destinados explicitamente às crianças e às diferentes catego-rias de idade.

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23.Eugen Fink, Le jeu comme symbole du monde, Paris, Minuit, 1966,p.229.

24. lbid., p. 228.

4. A ORGANIZAÇÃO PÓS-FORDISTA DA ECONOMIA [pp. 76-97]

1.A formulação clássica da questão encontra-se em Daniel Bell, VersIasociétépost-industrielle, Paris, Robert Laffont, 1976.Hoje, os setores dos servi-ços empregam mais de 77% da mão-de-obra e representam 75% do valor agre-gado produzido pela economia americana, J.Ritkin, op. cit., p. 112. Na França, o"terciário", que concentrava 48,8% do emprego em 1970, reunia 73% dele em2000.

2. Philippe Delmas,Lemaitre deshorloges,Paris,Odile Jacob,1991,p. 115.3. Entrevista com Pierre Rosanvallon, "Ou va I'industrie française?",Le

Débat, n2 28, janeiro de 1984.4. Dominique Turpin, "Marketing: lesstratégies japonaises",RevueFran-

çaisedeGestion,n2 91, novembro-dezembro de 1992.5. Um exemplo clássico é fornecido pelas campanhas publicitárias "Gera-

ção Pepsi". Desde os anos 1950 e sobretudo 1960, a Pepsi-Cola adotou uma es-tratégia de segmentação do mercado, não se baseando mais no terreno dos pre-ços, mas na juventude e num certo estilo de vida. Sobre esse ponto, Richard S.Tedlow,L'audaceet le marché. L'invention du marketing aux États Unis, Paris,Odile Jacob, 1997, em particular, para a "guerra das colas", pp. 53-142.

6. Até 1955,a Coca-Cola só estava disponível na célebre garrafinha de vi-dro imortalizada por Andy Warhol. Foi apenas a partir da metade dos anos 1970que a firma efetuou uma alteração, escolhendo uma política de diversificaçãosistemática que resultará numa ampla gama de produtos, de acondicionamen-tos e de formatos, cf. R.Tedlow,op. cito

7. Esse ponto é desenvolvido em meu livro L'empire de éphémere,Paris,Gallimard, 1987, 2! parte. [Ed. bras. O império do efêmero,SãoPaulo, Compa-nhia das Letras, 1989.]

8. Sobre esses pontos, bem como sobre os outros aspectos da transforma-ção da grande distribuição, ver o excelente livro de Philippe Moati, L'avenir deIa grande distribution, op.cito

9. No presente, a rentabilidade de um novo produto depende em grandeparte de seu grau de inovação, cf. R. Cooper e E. Kleinschmidt, "New products:what separateswinners from losers?",]ournal ofProduct lnnovation Management,4,1987, pp. 169-84; igualmente, B. Zirger e M. Maidique, "A mo dei of new pro-duct development: an empirical test",ManagementScience,36, 1990, pp. 867-83.

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10. Jean-Claude Andréani, "Marketing du produit nouveau: 95% des pro-duits nouveaux échouent': RevueFrançaisedu Marketing, n2 182, 2001/2, pp. 5-11.

11.Élyette Roux, "Temps du luxe, temps des marques': in GillesLipovetskye ÉlyetteRoux, Le luxe éternel,Paris, Gallimard, 2003, p. 112.

12.Céline Abecassis-Moedas, "L'évolution du rôle des acteurs dans Ia fi-liere. Application à Ia conception de nouveaux produits d'habillement", in Del'idée au marehé(coordenado por Alain Bloche Delphine Manceau), Paris,Vui-bert, 2000, p. 330.

13.Françoise Benhamou, L'éeonomiede Ia eulture, Paris, LaDécouverte,2004, p. 69.

14. Pierre Veltz, Le nouveau monde industriel, Paris, GaIlimard, 2000. Domesmo autor, Mondialisation, villes et territoires, Paris, PUF,2005.

15.Todos esses pontos são analisados por Delphine Manceau, "L'annoncepréalable de nouveaux produits: préparer le marché ou gêner les concurrents",in De l'idée au marehé,op. cit., pp. 49-68.

16.VancePackard, L'art du gaspillage,op.cito17.Naomi Klein, No logo,Paris, Leméac/ Acte Sud, 2000.

18.Sobre os desafios do desconto, Jean-Noel Kapferer, Cequi va ehangerlesmarques,Paris,Éditions d'Organisation, 2005.

19.Essesexemplos são extraídos de Nicolas Riou, Pubfietion, Paris, Édi-tions d'Organisation, 1999.

das ruas comerciais e com investimentos reduzidos ao mínimo, os produtos ali-mentícios vendidos inicialmente por diferentes especialistas.

8. É em 1916que aparece a primeira loja com auto-serviço sob o impulsode Clarence Saunders, com a marca Piggly Wiggly. Essa fórmula é introduzidana França em 1948por Goulet Turpin; Étienne Thil, Les inventeurs du eommer-eemoderne,Paris,Arthaud, 1966.

9. Gilles Lipovetsky, L'eredu vide, op.cito10. Todas essas características são brilhantemente descritas por Jean Bau-

drillard, La sociétédeeonsommation,op. cito11.No começo dos anos 1960, Edgar Morin já escreve: "A cultura de mas-

sa orienta a busca da salvação individual no lazer": a novidade, acrescenta ele,"são os progressosde uma concepção lúdica da vida";E.Morin, L'esprit du temps,Paris, Grasset, 1962, pp. 92-3.

12.Entre 1961 e 1981,o número de pessoas que saíram de férias ao menosuma vez por ano triplicou, passando de 10 para quase 30 milhões. Em 1974, umfrancês em dois saiu de férias.

13.No fim da Segunda Guerra Mundial, os americanos praticamente nãotinham dívidas; no começo dos anos 1960, duas famílias em três tinham umaforma ou outra de dívida a reembolsar. As atitudes positivas em relação ao cré-dito aos consumidores tornam-se majoritárias; G. Katona, op. cit., pp. 202-16.Igualmente, John K.Galbraith, L'erede l'opulenee, Paris, Calmann-Lévy, 1970,pp. 188-99.

14.Vance Packard, La persuasion clandestine,Paris, Calmann-Lévy, 1958,pp. 102-9.

15.Edgar Morin, "Salut les copains", Le Monde, 6 e 7 de julho de 1963, re-tomado em Sociologie, Paris, Fayard, Points, 1994, pp. 399-407.

16.Em 1956, o poder de compra dos americanos de treze a dezenove anosera avaliado em 7 bilhões de dólares, dispondo o adolescente "médio" de onzedólares por semana, cf. David Halberstam, Lesfifties. La révolution amérieainedesannées50,Paris, Seuil, 1995,p. 351.O poder de compra dos jovens francesesera estimado, em 1966, em 5 bilhões de francos.

17. Desde 1966, 42% daqueles entre quinze e vinte anos dispõem de umtoca-discos, Anne-Marie Sohn, Âge tendre et têtede bois.Histoire desjeunes desannéessoixante,Paris, Hachette-Littératures, 2001, p. 68.

18. Em 1967-8, dois ouvintes em três possuíam um rádio portátil, citadopor Jean-François SirineIli,"Lecoup de jeune des sixties",in La eulture de masseen Franeede Ia Belle Époqueà aujourd'hui (sob a direção de Jean-Pierre Riouxe J. F. Sirinelli), Paris, Fayard, 2002, p. 127.

19. Ludovic Tournes, "Reproduire I'oeuvre: Ia nouveIle économie musica-le': in La eulture demasse,op.cit., pp. 253-5.

5. RUMO A UM TURBO CONSUMIDOR [pp. 98-127]

1.Robert Rochefort, La société des eonsommateurs, Paris, Odile Jacob, 1995,p.83.

2. Ibid., pp. 75-100.

3.GeorgeKatona, La sociétédeeonsommationdemasse,Paris,Hommes etTechniques, 1966, pp. 3-36.

4. Robert Castel, Lesmétamorphosesde Ia question sociale,Paris, Fayard,1995,p. 336.

5. Entre a metade dos anos 1950 e o fim dos anos 1970, já se pode obser-var uma redução das particularidades do mundo operário, aproximando-se arepartição de suas despesas orçamentárias da repartição média, cf. Henri Men-dras, La seeonde Révolution Française, Paris, GaIlimard, Folio Essais, 1994, p. 373.

6. Sobre a grande distribuição como "avatar comercial do fordismo': Phi-lippeMoati,L'avenirdeIagrandedistribution,op.cit.,pp.23-68.

7. O primeiro supermercado surge nos Estados Unidos, em 1930,sob amarca King CuIlen.A inovação consiste em reunir sob um mesmo teto, longe

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20. O mercado do disco estava avaliado em 18milhões em 1956,41 em 1963,130 em 1975.Nos anos 1960, 60% a 70% das compras de discos eram efetuadaspelos jovens. Venderam-se 750 mil cassetes em 1967 e 18 milhões em 1979; verLudovic Tournes, art. cit., pp. 243-5.

21.Claude Fischler, L'homnivore, Paris, Odile Jacob, Points, 1993,pp. 212-6.22. François Bellanger, Bruno Marzloff, Transit. Les lieux et les temps de Ia

mobilité, Paris, Mitions de I'Aube, 1996.23.Marc Augé, Non-lieux, Paris, Seuil, 1992.24. François Bellanger, Bruno Marzloff, op. cit., pp. 179e 203.25. Nos aviões de longo curso, os equipamentos eletrônicos destinados ao

conforto e às distrações dos passageiros são idênticos, em valor, aos destinadosà pilotagem do avião.

26. Luc Gwiazdzinski, La ville 24 heures sur 24, Paris, Éditions de I'Aube,2002.

I

27. Edward N. Luttwak, Le turbo-capitalisme, Paris, Odile Jacob, 1999.28. Sobre todos esses pontos, Luc Gwiazdzinski, op. cit.; do mesmo autor,

La nuit, derniere frontiere de Ia ville, Paris, Éditions de I'Aube, 2005.29. Bernard Stiegler, Mécréance et discrédit, Paris, Galilée, 2004, p. 169.30. Sobre a temática do imediatismo e da urgência, Zaki Laidi, Le sacre du

présent, Paris, Flammarion, Champs, 2000; Nicole Aubert, Le culte de l'urgence,Paris, Flammarion, 2003. Propus uma interpretação da economia contemporâ-nea do tempo em "Temps contre temps ou Ia société hypermoderne': in GillesLipovetsky e Sébastien Charles, Les temps hypermodernes, Paris, Grasset, 2004.

31.Zaki Laidi, op. citoIgualmente, Jean Cheneaux, Habiter le temps, Paris,Bayard, 1996.

32. Zaki Laidi, op. cit., p. 217.

33. Richard Hoggart, La culture du pauvre, Paris, Minuit, 1970, pp. 130-1.Igualmente, Pierre Bourdieu, La distinction, Paris, Minuit, 1979,pp. 443-4.

34. Pierre Bourdieu, ibid., pp. 190-3.

35. Em 2000, o poder de compra direto das crianças de oito a quinze anosestava compreendido entre 12 e 15bilhões de francos. Estima-se que os de sete-doze anos exerçam uma influência sobre 40% das despesas das famílias. Por es-se novo papel, as crianças podiam gerar cerca de 600 bilhões de francos por ano.

36. R. Rochefort, op. cit., p. 128. Igualmente, do mesmo autor, Le consom-mateur entrepreneur, Paris, Odile Jacob, 1997.

37. R. Rochefort (1995), p. 128.

38.Analisei essa questão em Le crépuscule du devo ir,Paris, GalIimard, 1992.

I

I

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6. o FABULOSO DESTINO DO HOMO CONSUMERICUS [pP. 128-49]

1.H. Marcuse, H. Lefebvre, J.Baudrillard, G. Debord são suas figuras maisrepresentativas.

2. Os limites encontrados no presente pelo processo de comercializaçãodas necessidades não são mais externos, mas inerentes à modernidade, consti-tutivos dela mesma (os direitos humanos). Dimensão fundamental que impe-de que a integralidade das realidades e experiências humanas caia no puro con-sumível.

3. Sobre todos esses pontos, cf. o notável estudo de Yves Lambert, Dieuchange en Bretagne, Paris, Cerf, 1985,muito particularmente pp. 355-83.

4. Françoise Champion e Martine Cohen, "Recompositions, décomposi-tions. Le renouveau charismatique et Ia nébuleuse mystique-ésotérique depuisles années soixante-dix", Le Débat, n2 75, maio-agosto de 1993.

5.Daniele Hervieu-Léger, Lepélerin et le converti, Paris, Flammarion, 1999,pp.180-1.

6. Cf. o número especial de Esprit, "Le temps des religions sans Dieu", ju-nho de 1997.

7. De l'émotion en religion (sob a direção de Fr. Champion e D. Hervieu-Léger), Paris, Centurion, 1990. Igualmente, Jean-Louis Schlegel, Religions à Iacarte, Paris, Hachette, 1995, pp. 103-26.

8. Pierre Rosanvallon, La question syndicale, Paris, Calmann-Lévy, 1988,pp. 29-59.

9. J. Baudrillard, La société de consommation, op. cit., p. 294.10. Sobre a modernidade reflexiva, Ulrich Beck, La société du risque. Sur

Ia voie d'une autre modernité, Paris, Aubier, 2001. Igualmente, Antony Giddens,Les conséquences de Ia modernité, Paris, l'Harmattan, 1994, pp. 43-51. [Ed. bras.As conseqüências da modernidade, São Paulo, Unesp, 1991.]

11.Esse conceito é extraído de Albert Hirschman, Face au déclin des entre-

prises et des institutions, Paris, Éditions Ouvrieres, 1972.12. Pierre Alphandery, Pierre Bitoun, Yves Dupont, L'équivoque écologi-

que, Paris, La Découverte, 1991.Igualmente, Suren Erkman, "l'écologie indus-trielle, une stratégie de développement", Le Débat, n2 113,janeiro-fevereiro de2001.

13.Sobre as novas posturas de oposição, Philippe Raynaud, "Les nouvel-les radicalités': Le Débat, n2 104, março-abril de 1999. E Marcel Gauchet, La dé-mocratie contre elle-même, Paris, GalIimard, 2002, pp. 315-25.

14. É assim que as ações ditas de "resistência cultural" (rabiscos em pai-néis publicitários, logotipos deturpados, esvaziamento de pneus de 4X4, "rai-des" na internet) tendem a moldar-se segundo as formas tomadas à civilização

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lúdico-mercantil (humor, animações engenhosas, "rapto" do palhaço Ronalddo McDonald's, paródias de missa na "igreja do Santissimo Consumo"). Du-rante a desobediência civil,o "espetáculo"continua: a antipublicidade está ain-da carregada de espirito publicitário.

15.MarcelGauchet, op.cit.,pp. 321-5.16.Não se pode, ainda por cima, separar a nova fortuna dos direitos hu-

manos da expansão do universo do consumo. Ao elevar a busca das felicidadesprivadas a norma de vida, este contribuiu para desqualificar as grandes visõesdo futuro que sacrificam o individuo no altar da história e da nação, ele digni-ficou o eixo do presente social e, correlativamente, o individuo e seus direitoscomo fundamento último e norma organizadora da vida pública.

17.JeremyRifkin,L'âgede I'acces,Paris, La Découverte, 2000, pp. 309-25.18. Philippe Muray, Apres l'histoire 11,Paris, Les Belles Lettres, 2000, pp.

166 e 178-9.

19. José Ortega y Gasset, La révoltedesmasses,Paris,Gallimard, 1967.20. Nietzsche, La volonté depuissance,Paris, Gallimard, Tel, tomo I, pp.

229 e 234.21.Guy Debord, La sociétédu spectacle,op.cit.,pp. 141-2.22. Jean Baudrillard, Pour une critique de I'économie politique du signe, Pa-

ris, Gallimard, 1972,p. 211.23. Citado em Sciences Humaines, n2 108, agosto-setembro de 2000, p. 10.24. Olivier Donnat, Les pratiques culturelles des Français, Paris, La Docu-

mentation Française, 1998, pp. 217-22.25. Ibid., pp. 17-24 e pp. 45-51.26. Philippe Breton, L'utopie de Ia communication, Paris, La Découverte,

1997, p. 160.27. François Ascher, Métapolis ou I'avenir des vil/es, Paris, Odile Jacob, 1995,

pp. 138-40.28. D. Kanter e Ph. Mirvis, The cynical American, Jossey, Bass, 1989.29. Sébastien Roché, Le sentiment d'insécurité, Paris, PUF,1993.Ver igual-

mente Jean de Maillard, Le marché Jait sa loi, Paris, Fayard, 2001.30. Em 2004, a França enumerava cerca de 12 milhões de voluntários.

Quanto aos niveis de confiança mútua, variam de um pais a outro. t provávelo elo entre um alto nivel de vida e um alto grau de confiança interindividual.Ronald Inglehart, La transitionculturelle,Paris, Economica, 1993,pp. 39-47.

31.Sobre esses pontos, o leitor pode remeter-se à minha obra, Le crépus-cule du devoir, Paris, Gallimard, 1992, pp. 142-50.

32. O que não quer dizer que o amor não traga a marca do hiperconsu-mo. De fato, é cada vez mais por compras e presentes que se exprime o amordos pais pelos filhos (Natal, aniversário, lazeres). O amor no casal seguirá esse

modelo? O Dia dos Namorados já se tornou a segunda ocasião do ano em im-portância, depois do Natal, para oferecer presentes.

7. PENfA: GOZOS MATERIAIS, INSATISFAÇÃOEXISTENCIAL [pp. 157-205]

1. Tibor Scitovsky, L'économie sans joie, Paris, Calmann-Lévy, 1978, pp.43-67.

2. Ibid., pp. 130-8.3. Ibid., pp. 207-26.4. Ibid., pp. 251-65.5. Albert Hirschman, Bonheur privé, action publique, Paris, Fayard, 1983,

PP.49-76.6. Ibid., pp. 77-80 e 111-5.7. Ibid., pp. 13-34.8. O despertar contemporâneo das espiritualidades enraíza-se, segundo o

que às vezes se diz, na decepção experimentada em relação ao mundo do "ter".Na verdade, os protestos dos neocrentes contra o consumo são limitados e, so-bretudo, muito desiguais. A insatisfação se deve, principalmente, a um univer-so despojado dos deuses, desencantado, em que as ideologias já não fornecemsistema de unidade, de certeza, de inteligibilidade do mundo vivido. t dessa in-certeza hipermoderna, e não do consumo infeliz, que se elevam as novas for-mas do crer. Sobre esse ponto, DanieIe Hervieu-Léger, Re!igion pour mémoire,Paris, Cerf, 1993, pp. 106-9.

9. Sobre as lógicas que estão no principio da decepção relativa à arte con-temporânea, Anne Cauquelin, Petit traité d'art contemporain, Paris, Seuil, 1996.

10. Por meio de seus sites de relacionamento, a internet está igualmente

na origem de um novo gênero de decepção resultante da defasagem entre aspossibilidades infinitas e os "resultados" inferiores às expectativas, entre as fan-tasias multiplicadas e o real, entre o ser virtual com quem se comunica e a pes-soa de carne e osso.

11. John Kenneth Galbraith, Le nouve! État industriel, Paris, Gallimard,1968, pp. 205-25. [Ed. bras. O novo Estado industria~ São Paulo, Pioneira, 1983.]

12.Henri Lefebvre, La vie quotidienne dans le monde moderne, Paris, Gal-limard, 1968.

13. Benjamin R. Barber, Djihad versus McWorld, Paris, Desclée de Brou-wer, 1996, pp. 47-60.

14.Stuart Ewen,Consciencessousinfluence.Publicité etgenesede Iasociétéde consommation,Paris,Aubier,1983.

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