Liso e estriado - Deleuze

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Capítulo LISO E ESTRIADO de Mil Platos Vol5 de Deleuze

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  • 14. 1440 O LISO E O ESTRIADO

    Quilt

    O espao liso e o espao estriado, o espao nmade e o espao sedentrio, o espao onde se desenvolve a mquina de guerra e o espao institudo pelo aparelho de Estado, no so da mesma natureza. Por vezes podemos marcar uma oposio simples entre os dois tipos de espao. Outras vezes devemos indicar uma diferena muito mais complexa, que faz com que os termos sucessivos das oposies consideradas no coincidam inteiramente. Outras vezes ainda devemos lembrar que os dois espaos s existem de fato graas s misturas entre si: o espao liso no pra de ser traduzido, transvertido num espao estriado; o espao estriado

  • constantemente revertido, devolvido a um espao liso. Num caso, organiza-se at mesmo o deserto; no outro, o deserto se propaga e cresce; e os dois ao mesmo tempo. Note-se que as misturas de fato no impedem a distino de direito, a distino abstrata entre os dois espaos. Por isso, inclusive, os dois espaos no se comunicam entre si da mesma maneira: a distino de direito determina as formas de tal ou qual mistura de fato, e o sentido dessa mistura ( um espao liso que capturado, envolvido por um espao estriado, ou um espao estriado que se dissolve num espao liso, que permite que se desenvolva um espao liso?) H, portanto, um conjunto de questes simultneas: as oposies simples entre os dois espaos; as diferenas complexas; as misturas de fato, e passagens de um a outro; as razes da mistura que de modo algum so simtricas, e que fazem com que ora se passe do liso ao estriado, ora do estriado ao liso, graas a movimentos inteiramente diferentes. E preciso, pois, considerar um certo nmero de modelos, que seriam como que aspectos variveis dos dois espaos e de suas relaes.

    Modelo tecnolgico. Um tecido apresenta em princpio um certo nmero de caractersticas que permitem defini-lo como espao estriado. Em primeiro lugar, ele constitudo por dois tipos de elementos paralelos: no caso mais simples, uns so verticais, os outros horizontais, e ambos se entrecruzam perpendicularmente. Em segundo lugar, os dois tipos de elementos no tm a mesma funo; uns so fixos, os outros mveis, passando sob e sobre os fixos. Leroi-Gourhan analisou essa figura dos "slidos flexveis", tanto no caso da cestaria como da tecelagem: as montantes e as fibras, a urdidura e a trama1. Em terceiro lugar, um tal espao estriado est necessariamente delimitado, fechado ao menos de um lado: o tecido pode ser infinito em comprimento, mas no na sua largura, definida pelo quadro da urdidura; a necessidade de um vai-e-vem implica um espao fechado (e as figuras circulares ou cilndricas j so elas mesmas fechadas). Enfim, um tal espao parece apresentar necessariamente um avesso e um direito; mesmo quando os fios da urdidura e os da trama tm exatamente a mesma natureza, o mesmo nmero e a mesma densidade, a tecelagem reconstitui um avesso ao deixar de um nico lado os fios amarrados. No foi em funo de todas essas caractersticas que Plato pde tomar o modelo da tecelagem como paradigma da cincia "regia", isto , da arte de governar os homens ou de exercer o aparelho de Estado?

    1 Leroi-Gourhan, Lhomme et la matire, Albin Michel, pp. 244 ss. (e a oposio do tecido e do feltro).

  • Porm, entre os produtos slidos flexveis est o feltro, que procede de maneira inteiramente diferente, como um anti-tecido. O feltro no implica distino alguma entre os fios, nenhum entrecruza-mento, mas apenas um emaranhado das fibras, obtido por prensagem (por exemplo, rodando alternativamente o bloco de fibra para frente e para trs). So os micro-filamentos das fibras que se emaranham. Um tal conjunto de enredamento no de modo algum homogneo: contudo, ele liso, e se ope ponto por ponto ao espao do tecido ( infinito de direito, aberto ou ilimitado em todas as direes; no tem direito nem avesso, nem centro; no estabelece fixos e mveis, mas antes distribui uma variao contnua). Ora, mesmo os tecnlogos que manifestam as maiores dvidas a respeito do poder de inovao dos nmades, rendem-lhes ao menos a homenagem do feltro: esplndido isolante, genial inveno, matria de que feita a tenda, a vestimenta, a armadura, entre os turco-mongis. Os nmades da frica e do Magreb, sem dvida, tratam a l mais como tecido. Mesmo correndo o risco de deslocar a oposio, no haveria duas concepes e at duas prticas muito diferentes da tecedura, que se distinguem um pouco como o prprio tecido e o feltro? Com efeito, no sedentrio, o tecido-vestimenta e o tecido-tapearia tendem a anexar casa imvel ora o corpo, ora o espao exterior; o tecido integra o corpo e o exterior a um espao fechado. Ao contrrio, o nmade, ao tecer, ajusta a vestimenta e a prpria casa ao espao exterior, ao espao liso aberto onde o corpo se move.

    Entre o feltro e o tecido existem muitos abraamentos, muitas misturas. No se poderia deslocar ainda uma vez a oposio? Por exemplo, as agulhas tricotam um espao estriado, e uma das agulhas desempenha o papel de cadeia, e a outra de trama, ainda que alternadamente. O croch, ao contrrio, traa um espao aberto em todas as direes, prolongvel em todos os sentidos, ainda que esse espao tenha um centro. Ainda mais significativa seria a distino entre o bordado, com seu tema ou motivo central, e a colcha de retalhos, o patchwork, com seu pedao por pedao, seus acrscimos de tecido sucessivos e infinitos. Claro que o bordado pode ser extraordinariamente complexo, nas suas variveis e constantes, nos seus fixos e mveis. O patchwork, por sua vez, pode apresentar equivalentes de tema, de simetria, de ressonncia que o aproximam do bordado. No obstante, no patchwork o espao no de modo algum constitudo da mesma maneira que no bordado: no h centro; um motivo de base (block) composto por um elemento nico; a repetio desse elemento libera valores unicamente rtmicos, que se distinguem das harmonias do bordado (em especial no crazy patchwork, que ajusta vrios pedaos de tamanho, forma e cor variveis, e que joga com a textura dos tecidos). "Ela trabalhava nisso

  • havia quinze anos, levando-a consigo por toda parte numa sacola informe de brocado, que continha toda uma coleo de pedaos de tecido colorido, com todas as formas possveis. Ela jamais conseguia decidir-se a disp-los segundo um modelo definitivo, por isso ela mudava-os, recolocava-os, refletia, mudava-os e recolocava-os novamente, como pedaos de um jogo de pacincia nunca terminado, sem recorrer s tesouras, alisando-os com seus dedos suaves..."2 E uma coleo amorfa de pedaos justapostos, cuja juno pode ser feita de infinitas maneiras: como veremos, o patchwork literalmente um espao riemaniano, ou, melhor, o inverso. Donde a constituio de grupos de trabalho muito particulares na prpria fabricao do patchwork (a importncia do quilting party na Amrica, e seu papel do ponto de vista de uma coletividade feminina). O espao liso do patchwork mostra bastante bem que "liso" no quer dizer homogneo; ao contrrio, um espao amorfo, informal, e que prefigura a op'art.

    2 Faulkner, Sartoris, Gallimard, p. 136.

    Uma histria particularmente interessante a esse respeito seria a do acolchoado, a do Quilt. Chama-se quilt a reunio de duas espessuras de tecidos pespontados conjuntamente, entre os quais introduz-se freqentemente um enchimento. Da a possibilidade de que no haja direito nem avesso. Ora, quando se segue a histria do quilt numa curta seqncia de migrao (os colonos que deixam a Europa pelo Novo Mundo), percebe-se que se passa de uma frmula onde o bordado domina (quilts ditos "ordinrios") a uma frmula patchwork ("quilts de aplicaes" e sobretudo "quilts de pedaos afastados"). Com efeito, se os primeiros colonos do sculo XVII levam seus quilts ordinrios, espaos bordados e estriados de uma extrema beleza, cada vez mais desenvolvem uma tcnica em patchwork no final do sculo XVII, primeiramente devido penria txtil (restos de tecidos, pedaos de roupas usadas recuperados, utilizao das sobras recolhidas no "saco de retalhos''), depois em virtude do sucesso da indumentria em algodo dos ndios. K como se um espao liso se destacasse, sasse de um espao estriado, mas havendo uma correlao entre ambos, um retomando o outro, este atravessando aquele e, no entanto, persistindo uma diferena complexa. Em conformidade com a migrao e seu grau de afinidade com o nomadismo, o patchwork tomar no apenas nomes de trajetos, mas "representar" trajetos, ser inseparvel da velocidade ou do movimento num espao aberto.

    ! Sobre essa histria do quilt c cio patchwork na imigrao americana, cf. Jonathan Holstein, Quilts, Muse des arts dcoratifs, 1972 (com reprodues e bibliografia). Holstein no pretende que o quilt seja a fonte principal da arte americana, mas nota a que ponto pde inspirar ou relanar certas tendncias da pintura americana: de um lado, com o "branco sobre

  • branco" dos quilts ordinrios, de outro, com as composies-patchwork ("nelas encontram-se efeitos o/;, imagens em srie, o emprego de campos coloridos, uma compreenso real do espao negativo, a maneira da abstrao formal, etc", p. 12).

    Modelo musical. Foi Pierre Boulez quem primeiro desenvolveu um conjunto de oposies simples e de diferenas complexas, mas tambm de correlaes recprocas no simtricas, entre espao liso e espao estriado. Criou esses conceitos e esses termos no campo musical, e os definiu justamente em diversos nveis, a fim de dar conta ao mesmo tempo da distino abstrata e das misturas concretas. No nvel mais simples, Boulez diz que num espao-tempo liso ocupa-se sem contar, ao passo que num espao-tempo estriado conta-se a fim de ocupar. Desse modo, ele torna sensvel ou perceptvel a diferena entre multiplicidades no mtricas e multiplicidades mtricas, entre espaos direcionais e espaos dimensionais. Torna-os sonoros e musicais. Sua obra pessoal sem dvida feita com essas relaes criadas, recriadas musicalmente4.

    4 Pierre Boulez, Penser la musique aujordhui, Mdiations, pp. 95 ss. Resumimos a anlise de Boulez no pargrafo seguinte.

    Num segundo nvel, cabe dizer que o espao pode sofrer dois tipos de corte: um, definido por um padro, o outro, irregular e no determinado, podendo efetuar-se onde se quiser. Num terceiro nvel ainda, convm dizer que as freqncias podem distribuir-se em intervalos, entre cortes, ou distribuir-se estatisticamente, sem corte: no primeiro caso ser chamada "mdulo" a razo de distribuio dos cortes e intervalos, razo que pode ser constante e fixa (espao estriado reto), ou varivel, de maneira regular ou irregular (espaos estriados curvos, focalizados se o mdulo for varivel regularmente, no focalizados se for irregular). Mas quando no h mdulo, a distribuio das freqncias no tem corte: torna-se "estatstica", numa poro de espao, por pequeno que seja; nem por isso deixa de ter dois aspectos, dependendo se a distribuio igual (espao liso no dirigido), ou mais ou menos raro, mais ou menos denso (espao liso dirigido). No espao liso sem corte nem mdulo, pode-se dizer que no h intervalo? Ou, ao contrrio, tudo a se tornou intervalo, intermezzo? O liso um nomos, ao passo que o estriado tem sempre um logos, a oitava, por exemplo. A preocupao de Boulez a comunicao entre dois tipos de espao, suas alternncias e superposies: como "um espao liso fortemente dirigido tender a se confundir com um espao estriado", como um "espao estriado, em que a distribuio estatstica das alturas utilizadas de fato se d por igual, tender a se confundir com um espao liso"; como a oitava pode ser substituda por "escalas no oitavantes", reproduzindo-se segundo um

  • princpio de espiral; como a "textura" pode ser trabalhada de modo a perder seus valores fixos e homogneos para tornar-se um suporte de deslizamentos no tempo, de deslocamentos nos intervalos, de transformaes sonart comparveis s da op'art.

    Para voltar oposio simples, o estriado o que entrecruza fixos e variveis, ordena e faz sucederem-se formas distintas, organiza as linhas meldicas horizontais e os planos harmnicos verticais. O liso a variao contnua, o desenvolvimento contnuo da forma, a fuso da harmonia e da melodia em favor de um desprendimento de valores propriamente rtmicos, o puro traado de uma diagonal atravs da vertical e horizontal.

    Modelo martimo. Certamente, tanto no espao estriado como no espao liso existem pontos, linhas e superfcies (tambm volumes, mas, por enquanto, deixemos essa questo de lado). Ora, no espao estriado, as linhas, os trajetos tm tendncia a ficar subordinados aos pontos: vai-se de um ponto a outro. No liso, o inverso: os pontos esto subordinados ao trajeto. J era o vetor vestimenta-tenda-espao do fora, nos nmades. a subordinao do hbitat ao percurso, a conformao do espao do dentro ao espao do fora: a tenda, o iglu, o barco. Tanto no liso como no estriado h paradas e trajetos; mas, no espao liso, o trajeto que provoca a parada, uma vez mais o intervalo toma tudo, o intervalo substncia (donde os valores rtmicos)5.

    5 Sobre esse atrelamento do dentro ao fora, nos nmades do deserto, cf. Annie Milovanoff, "La seconde peau du nmade". F. sobre as relaes do iglu com o fora, nos nmades do gelo, Edmund Carpenter, Eskimo.

    No espao liso, portanto, a linha um vetor, uma direo c no uma dimenso ou uma determinao mtrica. um espao construdo graas s operaes locais com mudanas de direo. Tais mudanas de direo podem ser devidas natureza mesma do percurso, como entre os nmades do arquiplago (caso de um espao liso "dirigido"); mas podem dever-se, todavia mais, variabilidade do alvo ou do ponto a ser atingido, como entre os nmades do deserto, que vo em direo a uma vegetao local e temporria (espao liso "no dirigido"). Dirigido ou no, e sobretudo no segundo caso, o espao liso direcional, e no dimensional ou mtrico. O espao liso ocupado por acontecimentos ou hecceidades, muito mais do que por coisas formadas e percebidas. um espao de afectos, mais que de propriedades. uma percepo hptica, mais do que ptica. Enquanto no espao estriado as formas organizam uma matria, no liso materiais assinalam foras ou lhes servem de sintomas. um espao intensivo, mais do que extensivo, de distncias e no de medidas. Spatium intenso em vez de

  • Extensio. Corpo sem rgos, em vez de organismo e de organizao. Nele a percepo feita de sintomas e avaliaes mais do que de medidas e propriedades. Por isso, o que ocupa o espao liso so as intensidades, os ventos e rudos, as foras e as qualidades tcteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo6. Estalido do gelo e canto das areias. O que cobre o espao estriado, ao contrrio, o cu como medida, e as qualidades visuais mensurveis que derivam dele.

    6 As duas descries convergentes do espao de gelo e do espao de areia: E. Carpenter, Eskimo, e W. Thesiger, Le dsert des dserts (no dois casos, indiferena astronomia).

    aqui que se colocaria o problema muito especial do mar, pois este o espao liso por excelncia e, contudo, o que mais cedo se viu confrontado s exigncias de uma estriagem cada vez mais estrita. O problema no se coloca nas proximidades da terra. Ao contrrio, a estriagem dos mares se produziu na navegao de longo curso. O espao martimo foi esfriado em funo de duas conquistas, astronmica e geogrfica: o ponto, que se obtm por um conjunto de clculos a partir de uma observao exata dos astros e do sol; o mapa, que entrecruza meridianos e paralelos, longitudes e latitudes, esquadrinhando, assim, regies conhecidas ou desconhecidas (como uma tabela de Mendeleiev). Ser preciso, segundo a tese portuguesa, assinalar uma guinada por volta de 1440, que teria marcado uma primeira estriagem decisiva, tornando possveis os grandes descobrimentos? Preferimos seguir Pierre Chaunu, quando invoca uma longa durao em que o liso e o esfriado se afrontam no mar, e a estriagem se estabelece progressivamente7. Com efeito, antes da determinao muito tardia das longitudes, h toda uma navegao nmade emprica e complexa que faz intervir ventos, rudos, cores e sons do mar; depois, uma navegao direciona!, pr-astronmica e j astronmica, que procede por uma geometria operatria, baseada ainda unicamente na latitude, sem possibilidade de "assinalar o ponto", s dispe de portulanos e no de verdadeiros mapas, sem "generalizao traduzvel"; e os progressos dessa navegao astronmica primitiva, primeiro nas condies especiais de latitude do oceano Indico, depois nos circuitos elpticos do Atlntico (espaos retos e curvos)8. como se o mar tivesse sido no apenas o arqutipo de todos os espaos lisos, mas o primeiro desses espaos a sofrer uma estriagem que o tomava progressivamente, e o esquadrinhava aqui ou ali, de um lado, depois do outro. As cidades comerciantes participaram dessa estriagem, com freqncia inovaram, mas apenas os Estados podiam conduzi-la a bom termo, elev-la ao nvel global de uma "poltica da cincia"9. Gradualmente, instaurou-se um dimensional, que subordinava o direcional ou se superpunha a ele.

    7 Cf. a explanao de Pierre Chaunu, Lexpansion europenne du XIIIe auI XV siecle, pp.

  • 2S8-.505.8 Especialmente Paul Adam, "Navigation primitive et navigation astronomique", in

    Colloques d'histoire martimo V (cf. a geometria operatria da estrela polar).9 Guy Beaujouan, ibid.

    Sem dvida, por isso que o mar, arqutipo do espao liso, foi tambm o arqutipo de todas as estriagens do espao liso: estriagem do deserto, estriagem do ar, estriagem da estratosfera (que permite a Virilio falar de um "litoral vertical" como mudana de direo). E no mar que pela primeira vez o espao liso foi domado, e se encontrou um modelo de ordenao, de imposio do estriado, vlido para outros lugares. O que no contradiz a outra hiptese de Virilio: ao trmino de seu esfriamento, o mar restitui uma espcie de espao liso, ocupado pelo fleet in being e, mais tarde, pelo movimento perptuo do submarino estratgico, extravasando todo esquadrinhamento, inventando um neo-nomadismo a servio de uma mquina de guerra todavia mais inquietante que os Estados que a reconstituem no limite de seus estriamentos. O mar, em seguida o ar e a estratosfera ressurgem como espaos lisos, mas para melhor controlar a terra estriada, na mais estranha das reviravoltas10. O espao liso dispe sempre de uma potncia de desterritorializao superior ao estriado. Quando h interesse pelos novos ofcios e mesmo pelas novas classes, como no interrogar-se a respeito desses tcnicos militares que dia e noite vigiam telas de radar, que habitam ou habitaro por muito tempo submarinos estratgicos e satlites, e que olhos, que ouvidos de apocalipse forjam para si, pois j mal so capazes de distinguir um fenmeno fsico, um vo de gafanhoto, um ataque "inimigo" procedente de um ponto qualquer? Tudo isso no s para lembrar que o prprio liso pode ser traado e ocupado por potncias de organizao diablicas, mas para mostrar, sobretudo, independemente de qualquer juzo de valor, que h dois movimentos no simtricos, um que estria o liso, mas o outro que restitui o liso a partir do estriado. (Mesmo em relao ao espao liso de uma organizao mundial, no existiriam igualmente novos espaos lisos, ou espaos esburacados, nascidos guisa de defensiva? Virilio invoca os comeos de um hbitat subterrneo, na "espessura mineral", e que pode ter valores muito diversos).

    10 Paul Virilio, l.'insecurit du territoire: sobre como o mar torna a produzir um espao liso com o fleet in being, etc; e sobre como se destaca um espao liso vertical, de dominao area e estratosfrica (especialmente o cap. IV, "Le littoral vertical").

    Voltemos oposio simples entre o liso e o estriado, pois ainda no estamos em condies de considerar as misturas concretas e dissimtricas. O liso c o estriado se distinguem em primeiro lugar pela relao inversa do

  • ponto e da linha (a linha entre dois pontos no caso do estriado, o ponto entre duas linhas no caso do liso). Em segundo lugar, pela natureza da linha (liso-direcional, intervalos abertos; estriado-dimensional, intervalos fechados). H, enfim, uma terceira diferena que concerne superfcie ou ao espao. No espao estriado, fecha-se uma superfcie, a ser "repartida" segundo intervalos determinados, conforme cortes assinalados; no liso, "distribui-se" num espao aberto, conforme freqncias e ao longo dos percursos (logos e nomos).

    11 E. Laroche marca bem a diferena entre a idia de distribuio e a de partilha, entre os dois grupos lingsticos a esse respeito, entre os dois gneros de espao, entre o plo "provncia" e o plo "cidade".

    Porm, por mais simples que seja, no fcil situar a oposio. No possvel contentar-se em opor imediatamente o solo liso do pecuarista-nmade e a terra esfriada do cultivador sedentrio. E evidente que o campons, mesmo sedentrio, participa plenamente do espao dos ventos, das qualidades sonoras e tcteis. Quando os gregos antigos falam do espao aberto do nomos, no delimitado, no repartido, campo pr-urbano, flanco de montanha, plat, estepe, no o opem agricultura, que, ao contrrio, pode fazer parte do nomos; eles o opem polis, urbe, cidade. Quando Ibn Khaldoun fala da Badiya, da beduinidade, esta compreende tanto os cultivadores quanto os pecuaristas nmades: ele a ope Hadara, isto , "citadinidade". Essa preciso certamente importante; no entanto, no muda muita coisa, pois desde os tempos mais remotos, seja no neoltico c mesmo no paleoltico, a cidade que inventa a agricultura: sob a ao cia cidade que o agricultor, e seu espao estriado, se superpem ao cultivador em espao ainda liso (cultivador transumante, meio-sedentrio ou j sedentrio). Desse modo, podemos reencontrar nesse nvel a oposio simples que antes recusvamos, entre agricultores e nmades, entre terra estriada e solo liso: mas passando pelo desvio da cidade, enquanto fora de estriagem. Portanto, no apenas no mar, no deserto, na estepe, no ar que est em jogo o liso e o estriado; na prpria terra, conforme se trate de uma cultura em espao-nomos, ou de uma agricultura em espao-cidade. Bem mais: no seria preciso dizer o mesmo da cidade? Ao contrrio do mar, ela o espao estriado por excelncia; porm, assim como o mar o espao liso que se deixa fundamentalmente esfriar, a cidade seria a fora de estriagem que restituiria, que novamente praticaria espao liso por toda parte, na terra e em outros elementos fora da prpria cidade, mas tambm nela mesma. A cidade libera espaos lisos, que j no so s os da organizao mundial, mas os de um revide que combina o liso e o esburacado, voltando-se contra a

  • cidade: imensas favelas mveis, temporrias, de nmades e trogloditas, restos de metal e de tecido, patchwork, que j nem sequer so afetados pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitao. Uma misria explosiva, que a cidade secreta, c que corresponderia frmula matemtica de Thom: "um alisamento retroativo"12. Fora condensada, potencialidade de um revide?

    12 Esta expresso aparece em Ren Thom, que a emprega em relao com uma variao contnua onde a varivel reage sobre seus antecedentes: Modeles mathmatiques de la morphogenese, 10-18, pp. 2 1 8-2 19.

    Portanto, a cada vez a oposio simples "liso-estriado" nos remete a complicaes, alternncias e superposies muito mais difceis. Mas essas complicaes s fazem confirmar a distino, justamente porque colocam em jogo movimentos dissimtricos. Por ora, seria preciso dizer simplesmente que existem dois tipos de viagem, que se distinguem segundo o papel respectivo do ponto, da linha e do espao. Viagem-Goethe e viagem-Kleist? Viagem francesa e viagem inglesa (ou americana)? Viagem-rvore e viagem-rizoma? Mas nada coincide inteiramente, e alm disso tudo se mistura, ou passa de um para outro. que as diferenas no so objetivas; pode-se habitar os desertos, as estepes ou os mares de um modo esfriado; pode-se habitar de um modo liso inclusive as cidades, ser um nmade das cidades (por exemplo, um passeio de Miller, em Clichy ou no Brooklin, um percurso nmade em espao liso, faz com que a cidade vomite um patchwork, diferenciais de velocidade, retardos e aceleraes, mudanas de orientao, variaes contnuas... Os beatniks devem muito a Miller, embora tenham modificado a orientao, fazendo um novo uso do espao fora das cidades). H muito tempo Fitzgerald dizia: no se trata de partir para os mares do Sul, no isso que determina a viagem. No s existem estranhas viagens numa cidade, tambm existem viagens no mesmo lugar; no estamos pensando nos drogados, cuja experincia por demais ambgua, mas antes nos verdadeiros nmades. a propsito desses nmades que se pode dizer, como o sugere Toynbee: eles no se movem. So nmades por mais que no se movam, no migrem, so nmades por manterem um espao liso que se recusam a abandonar, e que s abandonam para conquistar e morrer. Viagem no mesmo lugar, esse o nome de todas as intensidades, mesmo que elas se desenvolvam tambm em extenso. Pensar viajar, e tentamos anteriormente erigir um modelo tecnolgico dos espaos lisos e esfriados. Fm suma, o que distingue as viagens no a qualidade objetiva dos lugares, nem a quantidade mensurvel do movimento nem algo que estaria unicamente no esprito mas o modo de espacializao, a maneira de estar no espao,

  • de ser no espao. Viajar de modo liso ou estriado, assim como pensar... Mas sempre as passagens de um a outro, as transformaes de um no outro, as reviravoltas. No filme No decorrer do tempo, Wenders faz com que se entrecruzem e superponham os percursos de dois personagens, um que faz uma viagem ainda goetheana, cultural, memorial, "educativa", esfriada por toda parte, enquanto o outro j conquistou um espao liso, feito apenas de experimentao e amnsia, no "deserto" alemo. Mas, estranhamente, o primeiro que abre para si o espao e opera uma espcie de alisamento retroativo, ao passo que sobre o segundo novamente formam-se estrias, tornando a fechar seu espao. Viajar de modo liso todo um devir, e ainda um devir difcil, incerto. No se trata de voltar navegao pr-astronmica, nem aos antigos nmades. hoje, e nos sentidos os mais diversos, que prossegue o afrontamento entre o liso e estriado, as passagens, alternncias, e superposies.

    Modelo matemtico. Foi um acontecimento decisivo quando o matemtico Riemann arrancou o mltiplo de seu estado de predicado, para convert-lo num substantivo, "multiplicidade". Era o fim da dialtica, em favor de uma topologia e uma topologia das multiplicidades. Cada multiplicidade se definia por n determinaes, mas ora as determinaes eram independentes da situao, ora dela dependiam. Por exemplo, pode-se comparar a extenso da linha vertical entre dois pontos e a extenso da linha horizontal entre dois outros: percebe-se como a multiplicidade aqui mtrica, ao mesmo tempo em que se deixa estriar, e que as determinaes so grandezas. Em compensao, no se pode comparar a diferena entre dois sons de altura igual e intensidade distinta com dois sons de intensidade igual e de altura distinta; nesse caso s possvel comparar duas determinaes se "uma parte da outra, contentando-nos ento em julgar que esta menor que aquela, sem poder dizer em quanto". Essas segundas multiplicidades no so mtricas, e s se deixam estriar e medir por meios indiretos, aos quais no deixam de resistir. So anexatas e, contudo, rigorosas. Meinong e RusselI invocavam a noo de distncia, e a opunham de grandeza (magnitude)14.

    13 Sobre a apresentao das multiplicidades de Riemann e de Helmholtz, cf. Jules Vuillemin, Philosophie de l'algbre, PUF, pp. 409 ss.

    14 Cf. Russell, The Principies of Mathematics, Allen ed., cap. XXXI. A explanao que segue no se conforma teoria de Russell. Encontra-se uma excelente anlise das noes de distncia e de grandeza segundo Meinong e Russell em Albert Spaier, La pense et Ia quantit, Alcan.

    As distncias no so, para falar com propriedade, indivisveis: deixam-

  • se dividir, precisamente no caso em que uma determinao est em situao de ser parte da outra. Mas, contrariamente s grandezas, elas no se dividem sem mudar de natureza a cada vez. Uma intensidade, por exemplo, no composta por grandezas adicionveis e deslocveis: uma temperatura no a soma de duas temperaturas menores, uma velocidade no a soma de duas velocidades menores. Mas cada intensidade, sendo ela mesma uma diferena, se divide segundo uma ordem na qual cada termo da diviso se distingue do outro por sua natureza. A distncia , pois, um conjunto de diferenas ordenadas, isto , envolvidas umas nas outras, de maneira tal que se pode avaliar qual maior e menor, independentemente de uma grandeza exata. O movimento, por exemplo, ser dividido em galope, trote e passo, mas de tal modo que o dividido mude de natureza a cada momento da diviso, sem que um desses momentos entre na composio do outro. Nesse sentido, essas multiplicidades de "distncia" so inseparveis de um processo de variao contnua, ao passo que as multiplicidades de "grandeza", ao contrrio, repartem fixos e variveis.

    Por isso, parece-nos que Bergson (muito mais que Husserl, ou mesmo que Meinong e Russell) teve uma grande importncia no desenvolvimento da teoria das multiplicidades. Pois desde o Essaisur les donnces immediates, a durao apresentada como um tipo de multiplicidade, que se ope multiplicidade mtrica ou de grandeza. que a durao no de modo algum o indivisvel, mas aquilo que s se divide mudando de natureza a cada diviso (a corrida de Aquiles se divide em passos, mas justamente esses passos no a compem como grandezas)15.

    15 A partir do captulo II do Essai, Bergson emprega repetidamente o substantivo "multiplicidade", em condies que deveriam despertar a ateno dos comentadores: a referncia implcita a Riemann no nos parece oferecer dvidas. Em Matire et mnioire, ele explicar que a corrida ou mesmo o passo de Aquiles se dividem perfeitamente em "submltiplos", mas que diferem em natureza daquilo que dividem; o mesmo ocorre com o passo da tartaruga; e "em ambos os casos", a natureza dos submltiplos distinta.

    Em contrapartida, numa multiplicidade concebida como extenso homognea, a diviso sempre pode ser levada to longe quanto se quiser, sem que nada mude no objeto constante; ou ento as grandezas podem variar sem outro efeito seno um aumento ou uma diminuio do espao que esfriam. Bergson distinguia, pois, "dois tipos bem diferentes de multiplicidade", uma qualitativa e de fuso, contnua; a outra, numrica e homognea, discreta. de se notar que a matria opera uma espcie de vaivm'entre as duas, ora ainda envolvida na multiplicidade qualitativa, ora j desenvolvida num "esquema" mtrico que a impele para fora de si mesma. A confrontao de Bergson com Einstein, do ponto de vista da Relatividade,

  • continua incompreensvel se no for reportada teoria de base das multiplicidades riemanianas, tal como Bergson a transforma.

    Sucedeu-nos com freqncia encontrar todo tipo de diferenas entre dois tipos de multiplicidades: mtricas e no mtricas; extensivas e qualitativas; centradas e acentradas; arborescentes e rizomticas; numerrias e planas; dimensionais e direcionais; de massa e de malta; de grandeza e de distncia; de corte e de freqncia; esfriadas e lisas. No s o que povoa um espao liso uma multiplicidade que muda de natureza ao dividir-se o caso das tribos no deserto: distncias que se modificam constantemente, maltas que no param de se metamorfosear , mas o prprio espao liso, deserto, estepe, mar ou gelo, uma multiplicidade desse tipo, no mtrica, acentrada, direcional, etc. Ora, poderia se pensar que o Nmero pertence exclusivamente ao primeiro tipo de multiplicidades, e que lhes proporciona o estatuto cientfico de que so privadas as multiplicidades no mtricas. Mas isto s verdade em parte. certo que o nmero o correlato da mtrica: as grandezas s estriam o espao remetendo a nmeros e, inversamente, os nmeros chegam a exprimir relaes cada vez mais complexas entre grandezas, suscitando por essa via espaos ideais que reforam a estriagem e a tornam coextensiva a toda a matria. Existe, portanto, uma correlao que constitui a cincia maior, entre a geometria e a aritmtica, a geometria e a lgebra, no seio das multiplicidades mtricas (os autores mais profundos a esse respeito so aqueles que viram, desde as formas mais simples, que o nmero possua aqui um carter exclusivamente cardinal, e a unidade um carter essencialmente divisvel16).

    16 Cf. Bergson, Essai, Ed. du Centenaire, p. 56: se uma multiplicidade "implica a possibilidade de tratar um nmero qualquer como uma unidade provisria que se acrescentaria a ela mesma, inversamente, por sua vez, as unidades so verdadeiros nmeros, to grandes quanto se quiser, que se consideram, porm, como provisoriamente indecomponveis para os compor entre si".

    Diramos, em compensao, que as multiplicidades no mtricas ou de espao liso s remetem a uma geometria menor, puramente operatria e qualitativa, onde o clculo necessariamente muito limitado, onde as operaes locais sequer so capazes de uma tradutibilidade geral, ou de um sistema homogneo de referncia. Contudo, essa "inferioridade" apenas aparente; pois essa independncia de uma geometria quase analfabeta, amtrica, torna possvel, por sua vez, uma independncia do nmero que j no tem por funo medir grandezas no espao esfriado (ou a se esfriar). O prprio nmero se distribui no espao liso, j no se divide sem mudar de natureza a cada vez, sem mudar de unidade, cada uma das quais representando uma distncia e no uma grandeza. o nmero articulado,

  • nmade, direcional, ordinal, o nmero numerante que remete ao espao liso, assim como o nmero numerado remetia ao espao estriado. Por isso, de toda multiplicidade deve-se dizer: j nmero, todavia unidade. Mas no o mesmo nmero nos dois casos, nem a mesma unidade, nem a mesma maneira pela qual a unidade se divide. E a cincia menor nunca deixar de enriquecer a maior, comunicando-lhe sua intuio, seu andamento, sua itinerncia, seu sentido e seu gosto pela matria, pela singularidade, pela variao, pela geometria intuicionista e pelo nmero numerante.

    Mas s consideramos at agora um primeiro aspecto das multiplicidades lisas ou no mtricas, por oposio s mtricas: como uma determinao pode estar em situao de fazer parte de uma outra, sem que se possa assinalar uma grandeza exata nem uma unidade comum, nem uma indiferena situao. o carter envolvente ou envolvido do espao liso. Porm justamente o segundo aspecto mais importante: quando a prpria situao de duas determinaes exclui sua comparao. Sabemos que esse o caso dos espaos riemanianos, ou antes das pores riemanianas de espao, uns em relao aos outros: "Os espaos de Riemann so desprovidos de qualquer espcie de homogeneidade. Cada um deles caracterizado pela forma da expresso que define o quadrado da distncia entre dois pontos infinitamente prximos. (...) Disso resulta que dois observadores vizinhos podem referir, num espao de Riemann, os pontos que esto em sua vizinhana imediata, mas no podem, sem uma nova conveno, situar-se um em relao ao outro. Cada vizinhana , pois, como uma pequena poro de espao euclidiano, mas a ligao de uma vizinhana vizinhana seguinte no est definida e pode ser feita de uma infinidade de maneiras. O espao de Riemann mais geral apresenta-se, assim, como uma coleo amorfa de pores justapostas, que no esto atadas umas s outras"; e possvel definir essa multiplicidade independentemente de qualquer referncia a uma mtrica, mediante condies de freqncia, ou antes de acumulao, vlidas para um conjunto de vizinhanas, condies inteiramente distintas daquelas que determinam os espaos mtricos e seus cortes (mesmo que disso derive uma relao entre os dois tipos de espao17).

    17 Albert Lautman, Les schmas de structure, Hermann, pp. 2.3, 34-35.

    Em suma, caso se siga esta belssima descrio de Lautman, o espao riemaniano um puro patchwork. Tem conexes ou relaes tcteis. Tem valores rtmicos que no se encontram em outra parte, ainda que possam ser traduzidos num espao mtrico. Heterogneo, em variao contnua, um espao liso enquanto amorfo, no homogneo. Definimos, pois, um duplo carter positivo do espao liso em geral: de um lado, quando as

  • determinaes que fazem parte uma da outra remetem a distncias envolvidas ou a diferenas ordenadas, independentemente da grandeza; de outro lado, quando surgem determinaes que no podem fazer parte uma da outra, e que se conectam por processos de freqncia ou acumulao, independentemente da mtrica. So os dois aspectos do nomos do espao liso.

    Contudo, encontraremos sempre uma necessidade dissimtrica de passar do liso ao esfriado, bem como do esfriado ao liso. Se verdade que a geometria itinerante e o nmero nmade dos espaos lisos no param de inspirar a cincia regia do espao esfriado, inversamente, a mtrica dos espaos esfriados (metron) indispensvel para traduzir os elementos estranhos de uma multiplicidade lisa. Ora, traduzir no um ato simples; no basta substituir o movimento pelo espao percorrido, preciso uma srie de operaes ricas e complexas (e Bergson foi o primeiro a diz-lo). Tampouco um ato secundrio. Traduzir uma operao que, sem dvida, consiste em domar, sobrecodificar, metrificar o espao liso, neutraliz-lo, mas consiste, igualmente, em proporcionar-lhe um meio de propagao, de extenso, de refrao, de renovao, de impulso, sem o qual ele talvez morresse por si s: como uma mscara, sem a qual no poderia haver respirao nem forma geral de expresso. A cincia maior tem perpetuamente necessidade de uma inspirao que procede da menor; mas a cincia menor no seria nada se no afrontasse s mais altas exigncias cientficas, e se no passasse por elas. Vejamos apenas dois exemplos da riqueza e necessidade das tradues, que comportam tantas oportunidades de abertura quantos riscos de fechamento ou de parada. Primeiro, a complexidade dos meios graas aos quais se traduz intensidades em quantidades extensivas ou, mais geralmente, multiplicidades de distncia em sistemas de grandezas que os mensuram e os esfriam (funo dos logaritmos a esse respeito). De outro lado, e sobretudo, a fineza e complexidade dos meios pelos quais as pores riemanianas de espao liso recebem uma conjuno euclidiana (funo de um paralelismo dos vetores numa estriagem infinitesimal'x). No se deve confundir a conexo prpria das pores de espao riemanianos ("acumulao") com essa conjuno euclidiana do espao de Riemann ("paralelismo"). Contudo, ambos esto ligados, se relanam. Nunca nada se acaba: a maneira pela qual um espao se deixa estriar, mas tambm a maneira pela qual um espao estriado restitui o liso, com valores, alcances e signos eventualmente muito diferentes. Talvez seja preciso dizer que todo progresso se faz por e no espao estriado, mas no espao liso que se produz todo devir.

    Seria possvel dar uma definio matemtica muito geral dos espaos lisos? Parece que os "objetos fractais", de Benoit Mandelbrot, vo nessa

  • direo. So conjuntos cujo nmero de dimenses fracionrio ou no inteiro, ou ento inteiro, mas com variao contnua de direo. Por exemplo, um segmento cujo tero principal substitudo pelo ngulo de um tringulo eqiltero, repetindo em seguida a operao em cada um dos quatro segmentos, etc, ao infinito, segundo uma relao de homotetia um tal segmento constituir uma linha ou curva infinita de dimenso superior a 1, mas inferior superfcie (=2). Resultados semelhantes podem ser obtidos por esburaca-mento, suprimindo "vos" a partir de um crculo, em vez de acrescentar "cabeas" a partir de um tringulo; do mesmo modo, um cubo que se esburaca segundo um princpio de homotetia torna-se menos que um volume e mais que uma superfcie ( a apresentao matemtica da afinidade entre um espao livre e um espao esburacado).

    18 Sobre esta conjuno propriamente euclidiana (muito diferente do processo de acumulao), cf. Lautman, pp. 45-48.

    Sob outras formas ainda, o movimento browniano, a turbulncia, a abbada celeste so outros tantos "objetos fractais" 19. Talvez dispusssemos assim de uma nova maneira para definir os conjuntos vagos. Mas, sobretudo, o espao liso recebe assim uma determinao geral, que explica suas diferenas c relaes com o estriado: 1) ser chamado estriado ou mtrico todo conjunto que possuir um nmero inteiro de dimenses, e onde se possam assinalar direes constantes; 2) o espao liso no mtrico se constitui por construo de uma linha de dimenso fracionria superior a 1, de uma superfcie de dimenso fracionria superior a 2; 3) o nmero fracionrio de dimenses o ndice de um espao propriamente direcional (com variao contnua de direo, sem tangente); 4) o espao liso se define desde logo pelo fato de no possuir dimenso suplementar quela que o percorre ou nele se inscreve: nesse sentido, uma multiplicidade plana, por exemplo uma linha, que, enquanto tal, preenche um plano; 5) o prprio espao e o que ocupa o espao tendem a identificar-se, ter a mesma potncia, sob a forma anexata e, no entanto, rigorosa do nmero numerante ou no inteiro (ocupar sem contar); 6) um tal espao liso, amorfo, se constitui por acumulao de vizinhanas, e cada acumulao define uma zona de indiscernibilidade prpria ao "devir" (mais que uma linha e menos que uma superfcie, menos que um volume e mais que uma superfcie).

    19 Benot Mandelbrot, Les objets fractais, Flammarion.

  • A propsito dos "objetos fractais" de B. Mandelbrot

    A curva de Van Koch: mais que uma linha, menos que uma superfcie!

    O segmento AE (1) amputado de seu segundo tero, o qual substitudo pelo tringulo BCD (2). Em (3) repete-se esta operao sobre cada um dos segmentos AB, BC, CD e DK, separadamente. Obtm-se um traado anguloso, onde todos os segmentos so iguais. Sobre cada um desses segmentos repete-se uma terceira vez (4) a operao anterior (2) e (3); e assim, sucessivamente, ao infinito. Obtm-se, no limite, uma "curva" feita por um nmero infinito de pontos angulosos e que no admite tangente em qualquer de seus pontos. O comprimento dessa curva infinito e sua dimenso superior a um: ela representa um espao de dimenso 1,261 859 (exatamente log 4/log 3).

  • A esponja de Sierpinsky: mais que uma superfcie, menos que um volume!

    A lei de esvaziamento desse cubo intuitiva, apreensvel num simples golpe de vista: cada buraco quadrado est rodeado por oito buracos com um tero de sua dimenso: esses oito buracos esto rodeados por outros oito buracos, tambm um tero menores. E assim, sucessivamente, indefinidamente. O desenhista no pde representar a infinidade de buracos cada vez mais minsculos para alm da quarta ordem, mas evidente que esse cubo acaba sendo infinitamente oco, seu volume total tende a zero, ao passo que a superfcie total lateral dos esvaziamentos cresce ao infinito. A dimenso desse "espao" 2,7268. Est, pois, "compreendido" entre uma superfcie (de dimenso 2) e um volume (de dimenso 3). O "tapete de Sierpinsky" uma das faces desse cubo, enquanto os esvaziamentos so quadrados e a dimenso dessa "superfcie" de 1,26 1 8. (Reproduzido de Studies in Geometry, de Leonard Blumenthal e Karl Mayer, Freeman and Company, 1970).

  • Modelo fsico. Atravs dos diferentes modelos, uma certa idia da estriagem se confirma: duas sries de paralelas, que se entrecruzam perpendicularmente, e das quais algumas, verticais, desempenham mais a funo de fixas ou constantes, as outras, horizontais, mais a funo de variveis. Muito grosseiramente, o caso da urdidura e da trama, da harmonia e da melodia, da longitude e da latitude. Quanto mais regular o entrecruzamento, tanto mais cerrada a estriagem, mais o espao tende a tornar-se homogneo: nesse sentido que a homogeneidade nos pareceu ser, desde o incio, no o carter do espao liso, mas exatamente o contrrio, o resultado final da estriagem, ou a forma-limite de um espao estriado por toda parte, em todas as direes. E se o liso e o homogneo aparentemente se comunicam, somente porque o estriado no chega a seu ideal de homogeneidade perfeita sem que esteja prestes a produzir novamente o liso, seguindo um movimento que se superpe quele do homogneo, mas permanece inteiramente diferente dele. Em cada modelo, com efeito, o liso nos pareceu pertencer a uma heterogeneidade de base: feltro ou patchwork e no tecelagem, valores rtmicos e no harmonia-melodia, espao riemaniano e no euclidiano variao contnua que extravasa toda repartio entre constantes e variveis, liberao de uma linha que no passa entre dois pontos, desprendimento de um plano que no procede por linhas paralelas e perpendiculares.

    Essa ligao do homogneo com o estriado pode exprimir-se nos termos de uma fsica elementar, imaginria: 1) Voc comea esfriando o espao com verticais de gravidade, paralelas entre si; 2) Essas paralelas ou foras tm uma resultante que se aplica num ponto do corpo que ocupa o espao, centro de gravidade; 3) A posio desse ponto no muda quando se modifica a direo das foras paralelas, quando se tornam perpendiculares sua primeira direo; 4) Voc descobre que a gravidade um caso particular de uma atrao universal, segundo linhas retas quaisquer ou relaes biunvocas entre dois corpos; 5) Voc define uma noo geral de trabalho, pela relao fora-deslocamento numa direo; 6) Voc tem assim a base fsica de um espao estriado cada vez mais perfeito, no apenas na vertical e na horizontal, porm em todas as direes subordinadas a pontos. Nem sequer necessrio invocar essa pseudo-fsica newtoniana. Os gregos j passavam de um espao estriado verticalmente, de cima para baixo, a um espao centrado, s relaes simtricas e reversveis em todas as direes, isto , estriado em todos os sentidos de maneira a constituir urna homogeneidade. Por certo havia ali como que dois modelos do aparelho de Estado, o aparelho vertical do imprio, o aparelho istropo da cidade20. A

  • geometria est no cruzamento entre um problema fsico e um assunto de Estado.

    20 Sobre esses dois espaos, cf. J.-I'. Vcrnant, Mytbc et pense chez les Grecs, t. I, pp. 174-175.

    Ora, evidente que a estriagem assim constituda tem seus limites: no s quando se faz intervir o infinito, em grande e pequena escala, mas tambm quando se considera mais de dois corpos ("problema dos trs corpos"). Examinemos, no nvel mais simples, como o espao escapa aos limites de seu esfriamento. Num plo, escapa pela declinao, isto , pelo menor desvio infinitamente pequeno entre a vertical de gravidade e o arco de crculo ao qual essa vertical tangente. No outro plo, escapa pela espiral ou pelo turbilho, isto , uma figura em que todos os pontos do espao so ocupados simultaneamente, sob leis de freqncia ou acumulao, de distribuio, que se opem distribuio dita "laminar" correspondente estriagem das paralelas. Ora, do menor desvio ao turbilho, a conseqncia boa e necessria: o que se estende de um a outro precisamente um espao liso que tem por elemento a declinao e por povoamento a espiral. O espao liso constitudo pelo ngulo mnimo, que desvia da vertical, e pelo turbilho, que extravasa a estriagem. a fora do livro de Michel Serres, ter mostrado essa ligao entre o clinamen como elemento diferencial gerador, e a formao dos turbilhes e turbulncias como ocupando um espao liso engendrado; com efeito, o tomo antigo, de Demcrito a Lucrcio, sempre foi inseparvel de uma hidrulica ou de uma teoria generalizada das fluxes e dos fluxos. Nada se compreende do tomo antigo se no se v que lhe prprio circular e fluir. No nvel dessa teoria aparece a estrita correlao entre uma geometria arquimediana, muito diferente do espao homogneo e estriado de Euclides, e uma fsica democritiana, muito diferente da matria slida ou lamelar21. Ora, a mesma coincidncia quer que esse conjunto j no seja de modo algum ligado a um aparelho de Estado, mas a uma mquina de guerra: uma fsica das maltas, das turbulncias, das "catstrofes" e epidemias, para uma geometria da guerra, de sua arte e suas mquinas. Serres pode assim enunciar o que lhe parece ser o objetivo mais profundo de Lucrcio: passar de Marte a Vnus, colocar a mquina de guerra a servio tia paz22. Mas essa operao no passa pelo aparelho de Estado; ao contrrio, ela exprime uma ltima metamorfose da mquina de guerra e se realiza em espao liso.

    21 Michel Serres, La naissance de La physique dans le texte de Literce: "A fsica se apia sobre um espao vetorial, muito mais que sobre um espao mtrico" (p. 79). Sobre o problema hidrulico, pp. 104-107.

    22 M. Serres, pp. 35, 135 ss.

  • J encontramos em outro lugar uma distino entre "ao livre" em espao liso e "trabalho" em espao estriado. Com efeito, no sculo XIX prossegue uma dupla elaborao: a de um conceito fsico-cientfico de Trabalho (peso-altura, fora-deslocamento), e a de um conceito scio-econmico de fora de trabalho ou de trabalho abstrato (quantidade abstrata homognea aplicvel a todos os trabalhos, suscetvel de multiplicao e diviso). Havia aqui uma ligao profunda entre a fsica e a sociologia: a sociedade fornecia uma medida econmica do trabalho, e a fsica, por sua vez, uma "moeda mecnica" do trabalho. O regime do salariado tinha por correlato uma mecnica das foras. Jamais a fsica foi mais social, visto que em ambos os casos tratava-se de definir um valor mdio constante, para uma fora de elevao ou de trao exercida o mais uniformemente possvel por um homem-padro. Impor o modelo-Trabalho a toda atividade, traduzir todo ato em trabalho possvel ou virtual, disciplinar a ao livre, ou ento (o que d no mesmo) rejeit-la como "lazer", que s existe por referncia ao trabalho. Compreende-se desde logo porque o modelo-Trabalho fazia parte fundamentalmente do aparelho de Estado, no seu duplo aspecto fsico e social. O homem-padro foi primeiramente o dos trabalhos pblicos23.

    23 Anne Querrien mostrou bem a importncia das Pontes e Vias (Ponts et chausses) nessa elaborao do conceito de trabalho. Por exemplo, Navier, engenheiro e professor de mecnica, escreve em I 8 1 9: "F. preciso estabelecer uma moeda mecnica com a qual se possa estimar as quantidades de trabalho empregadas para efetuar todo tipo de fabricao".

    No na fbrica de alfinetes que se colocam inicialmente os problemas do trabalho abstrato, da multiplicao de seus efeitos, da diviso de suas operaes; primeiro nos canteiros pblicos, e tambm na organizao dos exrcitos (no apenas disciplina dos homens, mas tambm produo industrial das armas). Nada mais normal: no que a mquina de guerra implicasse ela mesma esta normalizao. Mas o aparelho de Estado, nos sculos XVIII e XIX, dispunha desse novo meio para apropriar-se da mquina de guerra: submet-la antes de qualquer outra coisa ao modelo-Trabalho do canteiro e da fbrica, que se elaborava em outra parte, porm mais lentamente. For isso, a mquina de guerra talvez tenha sido a primeira a ser esfriada, a desprender o tempo de trabalho abstrato multiplicvel nos seus efeitos, divisvel em suas operaes. a que a ao livre em espao liso devia ser vencida. O modelo fsico-social do Trabalho pertence ao aparelho de Estado, assim como sua inveno, por duas razes. De um lado, porque o trabalho s aparece com a constituio de um excedente, s h trabalho de estocarem, de sorte que o trabalho (propriamente dito) comea apenas com o que se denomina sobretrabalho. De outro lado, porque o

  • trabalho efetua uma operao generalizada de estriagem do espao-tempo, uma sujeio da ao livre, uma anulao dos espaos lisos, que encontra sua origem e seu meio no empreendimento essencial do Estado, na sua conquista da mquina de guerra.

    Contraprova: ali onde no h mais aparelho de Estado, nem sobretrabalho, tampouco h modelo-Trabalho. Haveria variao contnua de ao livre, que passa da fala ao, de tal ao a tal outra, da ao ao canto, do canto fala, da fala ao empreendimento, num estranho cromatismo, com momentos de pico ou de esforo que o observador externo pode apenas "traduzir" em termos de trabalho, surgindo este de maneira intensa e rara. verdade que sempre se disse dos negros: "Eles no trabalham, no sabem o que o trabalho". verdade que foram forados, mais do que ningum, a trabalhar segundo a quantidade abstrata. Tambm parece verdade que os ndios sequer entendiam, e eram inaptos para qualquer trabalho organizado, mesmo escravagista; os americanos no teriam importado tantos negros se pudessem utilizar os ndios, que preferiam deixar-se morrer. Alguns etnlogos notveis colocaram uma questo essencial, e souberam revirar o problema: as sociedades ditas primitivas no so sociedades de penria ou de subsistncia, por falta do trabalho, mas, ao contrrio, so sociedades de ao livre e de espao liso, que no tm necessidade alguma de um fator-trabalho, assim como no constituem estoque24. No so sociedades de preguia, ainda que sua diferena com o trabalho possa exprimir-se sob a forma de um "direito preguia". Essas sociedades no so sem lei, ainda que sua diferena com a lei possa exprimir-se sob a aparncia de uma "anarquia". Elas tm antes a lei do nomos, que regula uma variao contnua da atividade, com seu prprio rigor, sua prpria crueldade (livrar-se daquilo que no se pode transportar, ancios ou crianas...).

    24 um lugar-comum nos relatos dos missionrios: nada corresponde a uma categoria do trabalho, mesmo na agricultura transumante, onde, contudo, as atividades de desmoita so penosas. Marshall Sahlins no se contentou em assinalar a brevidade do tempo de trabalho necessrio manuteno e reproduo, mas insiste em fatores qualitativos: a variao contnua que regula a atividade, a mobilidade ou a liberdade de movimento que exclui os estoques e se mede conforme a "comodidade de transporte do objeto" ("La premire socit d'abondance", Temps modernes, out. 1968, pp. 654-656, 662-663, 672-673).

    Mas se o trabalho constitui um espao-tempo esfriado que corresponde ao aparelho de Estado, no isto verdade sobretudo das formas arcaicas ou antigas? Pois ali que o sobretrabalho isolado, discriminado sob forma de tributo ou de corvia. ali, portanto, que o conceito de trabalho pode aparecer em toda sua nitidez: por exemplo, as grandes obras dos imprios, os trabalhos hidrulicos, agrcolas ou urbanos, onde se impe um escoamento

  • "laminar" das guas por fatias supostas paralelas (estriagem). No regime capitalista, ao contrrio, parece que o sobretrabalho cada vez menos discernvel do trabalho "propriamente dito", e o impregna completamente. Os trabalhos pblicos modernos no possuem o mesmo estatuto que os grandes trabalhos imperiais. Como seria possvel distinguir o tempo necessrio para a reproduo de um tempo "extorquido", j que deixaram de ser separados no tempo? Essa observao certamente no vai contra a teoria marxista da mais-valia, pois Marx mostra precisamente que essa mais-valia deixa de ser localizvel em regime capitalista. at mesmo seu aporte fundamental. Marx pode tanto melhor pressentir que a prpria mquina torna-se geradora de mais-valia, e que a circulao do capital recoloca em xeque a distino entre um capital varivel e um capital constante. Nessas novas condies, continua sendo verdade que todo trabalho sobretrabalho; mas o sobretrabalho j nem sequer passa pelo trabalho. O sobretrabalho, e a organizao capitalista no seu conjunto, passam cada vez menos pela estriagem de espao-tempo correspondente ao conceito fsico-social de trabalho. antes como se a alienao humana fosse substituda, no prprio sobretrabalho, por uma "servido maqunica" generalizada, de modo que se fornece uma mais-valia independentemente de qualquer trabalho (a criana, o aposentado, o desempregado, o telespectador, etc.) No s o usurio enquanto tal tende a se tornar um empregado, mas o capitalismo j no opera tanto atravs de uma quantidade de trabalho como atravs de um processo qualitativo complexo, que coloca em jogo os modos de transporte, os modelos urbanos, a mdia, a indstria do entretenimento, as maneiras de perceber e sentir, todas as semiticas. como se, ao cabo da estriagem que o capitalismo soube levar a um ponto de perfeio inigualvel, o capital circulante necessariamente recriasse, reconstitusse uma espcie de espao liso, onde novamente se coloca em jogo o destino dos homens. Certamente, a estriagem subsiste em suas formas mais perfeitas c severas (j no apenas vertical, mas opera em todos os sentidos); no obstante, remete sobretudo ao plo estatal do capitalismo, isto , ao papel dos modernos aparelhos de Estado na organizao do capital. Em compensao, no nvel complementar dominante de um capitalismo mundial integrado (ou antes integrador), um novo espao liso produzido onde o capital atinge sua velocidade "absoluta", fundada sobre componentes maqunicos, e no mais sobre o componente humano do trabalho. As multinacionais fabricam uma espcie de espao liso desterritorializado onde tanto os pontos de ocupao como os plos de troca tornam-se muito independentes das vias clssicas de estriagem. O novo reside sempre nas novas formas de rotao. As atuais formas aceleradas da circulao do capital tornam cada vez mais relativas as

  • distines entre capital constante e varivel, e mesmo entre capital fixo e capital circulante; o essencial est antes na distino entre um capital estriado e um capital liso, e na maneira pela qual o primeiro suscita o segundo, atravs de complexos que sobrevoam os territrios e os Estados, e mesmo os diferentes tipos de Estados.

    Modelo esttico: a arte nmade. Vrias noes, prticas e tericas, so apropriadas para definir uma arte nmade e seus prolongamentos (brbaros, gticos e modernos). Primeiramente, trata-se de uma "viso aproximada", por oposio viso distanciada; tambm o "espao ttil", ou antes o "espao hptico", por diferena ao espao ptico. Hptico um termo melhor do que ttil, pois no ope dois rgos dos sentidos, porm deixa supor que o prprio olho pode ter essa funo que no ptica. Alos Riegl, em pginas admirveis, foi quem deu a esse par Viso aproximada-Espao hptico um estatuto esttico fundamental. Contudo, devemos negligenciar provisoriamente os critrios propostos por Riegl (depois por Worringer, e atualmente por Henri Maldiney) a fim de ns mesmos arriscarmos um pouco, e servir-nos livremente dessas noes25. O Liso nos parece ao mesmo tempo o objeto por excelncia de uma viso aproximada e o elemento de um espao hptico (que pode ser visual, auditivo, tanto quanto ttil). Ao contrrio, o Estriado remeteria a uma viso mais distante, e a um espao mais ptico mesmo que o olho, por sua vez, no seja o nico rgo a possuir essa capacidade. Ademais, sempre preciso corrigir por um coeficiente de transformao, onde as passagens entre estriado e liso so a um s tempo necessrias e incertas e, por isso, tanto mais perturbadoras. a lei do quadro, ser feito de perto, ainda que seja visto de longe, relativamente. Pode-se recuar em relao coisa, mas no 6 bom pintor aquele que recua do quadro que est fazendo. E mesmo a "coisa": Czanne falava da necessidade de j no ver o campo de trigo, de ficar prximo demais dele, perder-se sem referncia, em espao liso. A partir desse momento pode nascer a estriagem: o desenho, os estratos, a terra, a "cabeuda geometria", a "medida do mundo", as "camadas geolgicas", "tudo cai a prumo"... Sob pena de que o estriado, por sua vez, desaparea numa "catstrofe", em favor de um novo espao liso, c de um outro espao estriado...

    25 Os textos principais so: A. Riegl, Sptrmisch e Kunstindusrie, Vienne; W. Worringer, Abstraction et Einfhlung, Klincksieck; H. Maldiney, Regar, parole, espace, sobretudo "L'art et le pouvoir du fond", e os comentrios de Maldiney sobre Czanne.

    Um quadro feito de perto, mesmo que seja visto de longe. Diz-se igualmente que o compositor no ouve: pois tem uma audio aproximada, enquanto o ouvinte ouve de longe. E o prprio escritor escreve com uma

  • memria curta, enquanto se presume que o leitor seja dotado de uma memria longa. O espao liso, hptico e de viso aproximada, caracteriza-se por um primeiro aspecto: a variao contnua de suas orientaes, referncias e junes; opera gradualmente. Por exemplo, o deserto, a estepe, o gelo ou o mar, espao local de pura conexo. Contrariamente ao que se costuma dizer, nele no se enxerga de longe, e no se enxerga o deserto de longe, nunca se est "diante" dele, e tampouco se est "dentro" dele (est-se "nele"...). As orientaes no possuem constante, mas mudam segundo as vegetaes, as ocupaes, as precipitaes temporrias. As referncias no possuem modelo visual capaz de permut-las entre si e reuni-las numa espcie de inrcia, que pudesse ser assinalada por um observador imvel externo. Ao contrrio, esto ligadas a tantos observadores que se pode qualificar de "mnadas", mas que so sobretudo nmades entretendo entre si relaes tteis. As junes no implicam qualquer espao ambiente no qual a multiplicidade estaria imersa, e que proporcionaria uma invarincia s distncias; ao contrrio, constituem-se segundo diferenas ordenadas que fazem variar intrinsecamente a diviso de uma mesma distncia26.

    26 Todos esses pontos j remetiam a um espao de Riemann, na sua relao essencial com as "mnadas" (por oposio ao Sujeito unitrio do espao euclidiano): cf. Gilles Chatelet, "Sur une petite phrase de Riemann", Analytiques n 3, maio 1979. Porm, se as "mnadas" no so mais consideradas como fechadas sobre si, e supe-se que entretenham relaes diretas entre si gradualmente, o ponto de vista puramente monadolgico revela-se insuficiente, e deve ceder lugar a uma "nomadologia" (idealidade do espao estriado, mas realismo do espao liso).

    Essas questes de orientao, referncia e juno so dramatizadas pelas peas mais clebres da arte nmade: esses animais torcidos no tm mais terra; o solo no pra de mudar de direo, como numa acrobacia area; as patas se orientam em sentido inverso ao da cabea a parte posterior do corpo revirada; os pontos de vista "monadolgicos" s podem ser juntados num espao nmade; o conjunto e as partes do ao olho que as olha uma funo que j no ptica, mas hptica. uma animalidade que no se pode ver sem toc-la com o esprito, sem que o esprito se torne um dedo, inclusive atravs do olho. (De maneira muito mais rudimentar, tambm o papel do caleidoscpio: dar ao olho uma funo digital.) O espao esfriado, ao contrrio, definido pelas exigncias de uma viso distanciada: constncia da orientao, invarincia da distncia por troca de referenciais de inrcia, juno por imerso num meio ambiente, constituio de uma perspectiva central. Porm, menos fcil avaliar as potencialidades criadoras desse espao estriado, e como, ao mesmo tempo, pode ele sair do liso e relanar o conjunto das coisas.

  • O estriado e o liso no se opem simplesmente como o global e o local, pois, num caso, o global ainda relativo, enquanto, no outro, o local j absoluto. Ali onde a viso prxima, o espao no visual, ou melhor, o prprio olho tem uma funo hptica e no ptica: nenhuma linha separa a terra e o cu, que so da mesma substncia; no h horizonte, nem fundo, nem perspectiva, nem limite, nem contorno ou forma, nem centro; no h distncia intermediria, ou qualquer distncia intermediria. Por exemplo, o espao esquim27.

    27 Cf. a descrio do espao do gelo, e do iglu, por Edmund Carpenter, Eskimo: "No h distncia intermediria, nem perspectiva ou contorno, o olho s pode captar milhares de plumas vaporosas de neve. (...) Uma terra sem fundo nem horda (...) um labirinto vivo com os movimentos de um povo em massa, sem que muros planos estticos detenham o ouvido ou o olho, e o olho possa deslizar aqui, passar para l."

    Porm, de um modo inteiramente outro, num contexto completamente diferente, a arquitetura rabe traa um espao que comea muito prximo e muito baixo, que coloca embaixo o leve e o areo, ao passo que o slido ou o pesado se situam em cima, numa inverso das leis da gravidade em que a falta de direo, a negao do volume, tornam-se foras construtivas. Um absoluto nmade existe como a integrao local que vai de uma parte a outra, e que constitui o espao liso na sucesso infinita das junes e das mudanas de direo. um absoluto que se confunde com o prprio devir ou com o processo. o absoluto da passagem, que na arte nmade se confunde com sua manifestao. Na arte nmade o absoluto local, justamente porque nela o lugar no est delimitado. Em contrapartida, se nos reportamos ao espao ptico e estriado, de viso distanciada, vemos que o global relativo que caracteriza esse espao requer tambm o absoluto, mas de uma maneira totalmente distinta. O absoluto passa a ser o horizonte ou o fundo, isto , o Englobante, sem o qual no haveria global ou englobado. E sobre esse fundo que se destaca o contorno relativo ou a forma. O absoluto pode ele mesmo aparecer no Englobado, mas unicamente num lugar privilegiado, bem delimitado enquanto centro, e cuja funo, portanto, rechaar fora dos limites tudo aquilo que ameaa a integrao global. V-se claramente como o espao liso subsiste, mas para que dele saia o estriado, pois o deserto ou o cu, ou o mar, o Oceano, o Ilimitado, desempenha sobretudo o papel de englobante, e tende a tornar-se horizonte: a terra est, assim, rodeada, globalizada, "fundada" por esse elemento que a mantm em equilbrio imvel e torna possvel uma Forma. E, uma vez que o prprio englobante aparece no centro da terra, ele adquire uma segunda funo, que consiste dessa vez em rechaar para um pano de fundo detestvel, uma morada dos mortos, tudo o que poderia subsistir de liso ou de no mensurado28. A

  • estriagem da terra implica como condio esse duplo tratamento do liso: de um lado, levado ou reduzido ao estado absoluto de horizonte englobante; de outro lado, expulso do englobante relativo. As grandes religies imperiais, portanto, tm necessidade do espao liso (do deserto, por exemplo), mas para dar-lhe uma lei que se ope totalmente ao nomos, e que converte o absoluto.

    28 Encontramos esses dois aspectos, o Englobante e o Centro, na anlise que J.-P. Vernant faz do espao de Anaximandro (Mythe et pense chez les Grecs, t. I, III'' parte). De um outro ponto de vista, essa toda a histria do deserto: sua possibilidade de tornar-se o englobante, e tambm de se ver rechaado, rejeitado pelo centro, como numa inverso de movimento. Numa fenomenologia da religio, tal como Van der Leeuw soube faz-la, o prprio nomos aparece efetivamente como o englobante-limite ou fundo, mas tambm como o rechaado, o excludo, num movimento centrfugo.

    Talvez isso explique a ambigidade que vemos nas belas anlises de Riegl, Worringer e Maldiney. Eles apreendem o espao hptico nas condies imperiais da arte egpcia. Definem-no pela presena de um fundo-horizonte, pela reduo do espao ao plano (vertical e horizontal, altura e largura) e pelo contorno retilneo que encerra a individualidade, subtraindo-a da mudana. Tal a forma-pirmide sobre fundo de deserto imvel, que tem em todas as suas faces uma superfcie plana. Mostram, em compensao, de que modo, com a arte grega (depois, na arte bizantina, e at a Renascena), distingue-se um espao ptico que arrasta o fundo com a forma, faz com que os planos interfiram, conquista a profundidade, trabalha uma extenso voluminosa ou cbica, organiza a perspectiva, joga com relevos e sombras, luzes e cores. Mas, dessa maneira, desde o incio, deparam-se com o hptico num ponto de mutao, nas condies em que ele j serve para estriar o espao. O ptico tornar essa estriagem mais perfeita, mais cerrada, ou melhor, diferentemente perfeita, cerrada de outro modo (no o mesmo "querer-artista"). Resta o fato de que tudo se passa num espao de estriagem que vai dos imprios s cidades, ou aos imprios evoludos. No por acaso que Riegl tende a eliminar os fatores prprios de uma arte nmade ou mesmo brbara; e que Worringer, no momento em que introduz a idia de uma arte gtica no mais amplo sentido, acaba reportando essa idia, por um lado, s migraes do Norte, germnicas e celtas, por outro, aos imprios do Oriente. Entre os dois, contudo, havia os nmades, que no se deixam reduzir aos imprios com os quais se enfrentavam, nem s migraes que desencadeavam; e precisamente os godos faziam parte desses nmades da estepe, junto com os srmatas e os hunos, vetor essencial de uma comunicao entre o Oriente e o Norte, mas tambm fator irredutvel a uma ou outra dessas duas dimenses29.

    29 Sejam quais forem as interaes, h uma especificidade da "arte das estepes", que

  • passar para os germanos da migrao: apesar de todas suas reservas acerca de uma cultura nmade, Ren Grousset o notou bem, Lempire des steppes, Payot, pp. 42-46. a irredutibilidade da arte cita arte assria, da arte srmata arte persa, da arte huna arte chinesa. Pode-se dizer que a arte das estepes exerceu influncia mais do que recebeu (cf. especialmente a questo da arte ordos e suas relaes com a China).

    Por um lado, o Egito j tinha seus hicsos, a sia menor seus hititas, a China seus turco-mongis; por outro lado, os hebreus tinham seus habiru, os germanos, os celtas e os romanos tinham seus godos, os rabes seus bedunos. H uma especificidade nmade cujas conseqncias se tende a reduzir rpido demais, situando-as nos imprios ou entre os migrantes, referindo-as a um ou a outro, negando-lhes sua prpria "vontade" de arte. Uma vez mais, recusa-se que o intermedirio entre o Oriente e o Norte tenha tido sua especificidade absoluta, recusa-se que o intermedirio, o intervalo, tenha justamente esse papel substancial. Alis, ele no o tem enquanto "querer", tem apenas um devir, inventa um "devir-artista".

    Quando invocamos uma dualidade primordial do liso e do estriado, para dizer que as prprias diferenas "hptico-ptico", "viso prxima-viso longnqua", esto subordinadas a essa distino. No se deve, pois, definir o hptico pelo fundo imvel, pelo plano e pelo contorno, visto que se trata de um estado j misto, em que o hptico serve para esfriar, e s se serve de seus componentes lisos para convert-los num outro espao. A funo hptica e a viso prxima supem primeiramente o liso, que no comporta nem fundo, nem plano, nem contorno, mas mudanas direcionais e junes de partes locais. Inversamente, a funo ptica desenvolvida no se contenta em impelir a estriagem a um novo ponto de perfeio, conferindo-lhe um valor e um alcance universais imaginrios; tambm serve para tornar a produzir o liso, liberando a luz e modulando a cor, restituindo uma espcie de espao hptico areo que constitui o lugar no limitado da interferncia dos planos30. Em suma, o liso e o esfriado devem primeiramente ser definidos por eles mesmos, antes que deles decorram as distines relativas do hptico e do ptico, do prximo e do distante.

    30 Sobre essa questo da luz e da cor, em especial na arte bizantina, cf. Henri Maldiney, pp. 20.? ss. e 239 ss.

    a que intervm um terceiro par: "linha abstrata-linha concreta" (ao lado de "hptico-ptico" e "prximo-distante"). Worringer deu uma importncia fundamental a esta idia de linha abstrata, vendo nela o prprio comeo da arte ou a primeira expresso de um querer artista. A arte, mquina abstrata. Sem dvida, tambm a tenderamos a fazer valer de antemo as mesmas objees feitas anteriormente: para Worringer, a linha abstrata

  • aparece a princpio sob a forma imperial egpcia, geomtrica ou cristalina, a mais retilnea possvel; s depois teria passado por um avatar particular, constituindo a "linha gtica ou setentrional" num sentido muito amplo31.

    31 Riegl j sugeria uma correlao hptico-prximo-abstrato". Mas Worringer que desenvolve esse tema da linha abstrata, e, se ele a concebe essencialmente sob a forma egpcia, descreve tambm uma segunda forma, onde o abstrato adquire uma vida intensa e um valor expressionista, permanecendo inorgnico: Abstractum et Einfhlung, cap. V, e sobretudo L'art gothique, pp. 61-80.

    Para ns, ao contrrio, a linha abstrata em primeiro lugar "gtica", ou melhor, nmade, e no retilnea. Por conseguinte no compreendemos da mesma maneira a motivao esttica da linha abstrata, nem sua identidade com o comeo da arte. Enquanto a linha egpcia retilnea (ou "regularmente" arredondada) encontra uma motivao negativa na angstia daquilo que passa, flui ou varia, e erige a constncia e a eternidade de um Em-si, a linha nmade abstrata num sentido completamente distinto, precisamente porque de orientao mltipla, e passa entre os pontos, entre as figuras e entre os contornos: sua motivao positiva est no espao liso que traa, e no na estriagem que operaria para conjurar a angstia e dominar o liso. A linha abstrata o afecto dos espaos lisos, e no o sentimento de angstia que reclama a estriagem. Por outro lado, verdade que a arte no comea seno com a linha abstrata; mas no porque a retilnea seria a primeira maneira de romper com uma imitao da natureza, imitao no esttica, da qual ainda dependeriam o pr-histrico, o selvagem, o infantil como aquilo que carece de uma "vontade de arte". Ao contrrio, se existe plenamente uma arte pr-histrica, porque ela tem o manejo da linha abstrata, embora no retilnea: "A arte primitiva comea no abstrato e mesmo no pr-figurativo, (...) no incio, a arte abstrata e no pde ser outra em sua origem".

    32 Leroi-Gourhan, Le geste et Ia parole, Albin Michel, t. I, pp. 263 ss; t. II, pp. 219 ss. ("As marcas rtmicas so anteriores s figuras explcitas.") A posio de Worringer era muito ambgua; pois, ao pensar que a arte pr-histrica era sobretudo figurativa, ele a exclua da Arte, a um mesmo ttulo que as "garatujas infantis": Abstraction et Einfhlung, pp. 83-87. Depois, sugere a hiptese de que os habitantes das cavernas talvez sejam o "ltimo membro terminal" de uma srie que teria comeado com o abstrato (p. 166). Mas uma tal hiptese no foraria Worringer a remanejar sua concepo do abstrato, e a deixar de identific-lo ao geomtrico egpcio?

    Com efeito, a linha tanto mais abstrata quanto no h escrita, seja porque a escrita ainda no existe, seja porque s existe fora ou ao lado. Quando a escrita se encarrega da abstrao, como nos imprios, a linha j negada tende necessariamente a tornar-se concreta e mesmo figurativa. As crianas j no sabem desenhar. Mas quando no h escrita, ou ento quando

  • os povos no necessitam de escrita pessoal, porque esta lhes fornecida por imprios mais ou menos vizinhos (caso dos nmades), ento a linha s pode ser abstrata, goza necessariamente de toda potncia de abstrao, que no encontra alhures qualquer outra sada. Por isso, acreditamos que os diversos grandes tipos de linha imperial, a linha retilnea egpcia, a linha orgnica assria (ou grega), a linha englobante chinesa, supra-fenomnica, j transformam a linha abstrata, arrancam-na de seu espao liso e lhe conferem valores concretos. Pode-se dizer, contudo, que essas linhas imperiais so contemporneas linha abstrata; nem por isso ela est menos no "comeo", visto que o plo sempre pressuposto de todas as linhas capazes de constituir um outro plo. A linha abstrata est no comeo, tanto por sua prpria abstrao histrica como por sua datao pr-histrica. Por isso, aparece na originalidade, na irredutibilidade da arte nmade, mesmo quando h interao, influncia, afrontamento recprocos com linhas imperiais da arte sedentria.

    Abstrato no se ope diretamente a figurativo: o figurativo jamais pertence como tal a uma "vontade de arte"; tanto que no se pode estabelecer uma oposio em arte entre uma linha figurativa e uma outra que no o seria. O figurativo ou a imitao, a representao, so uma conseqncia, um resultado que provm de certas caractersticas da linha quando ela toma tal ou qual forma. Portanto, primeiro preciso definir essas caractersticas. Seja um sistema onde as transversais esto subordinadas a diagonais, as diagonais a horizontais e verticais, as horizontais e verticais a pontos, mesmo que virtuais: um tal sistema retilneo ou unilinear (seja qual for o nmero de linhas) exprime as condies formais sob as quais um espao estriado, e a linha constitui um contorno. Uma tal linha representativa em si, formalmente, mesmo se ela nada representa. Ao contrrio, uma linha que nada delimita, que j no cerca contorno algum, que j no vai de um ponto a outro, mas que passa entre os pontos, que no pra de declinar da horizontal e da vertical, de desviar da diagonal mudando constantemente de direo esta linha mutante sem fora nem dentro, sem forma nem fundo, sem comeo nem fim, to viva quanto uma variao contnua, verdadeiramente uma linha abstrata, e descreve um espao liso. No inexpressiva. verdade, contudo, que no constitui qualquer forma de expresso estvel e simtrica, fundada numa ressonncia dos pontos, numa conjuno das linhas. Mas nem por isso deixa de ter traos materiais de expresso que se deslocam com ela, e cujo efeito se multiplica pouco a pouco. nesse sentido que Worringer diz da linha gtica (para ns, a linha nmade que joga com a abstrao): tem a potncia de expresso e no a forma, tem a repetio como potncia e no a simetria como forma. Com

  • efeito, graas simetria que os sistemas retilneos limitam a repetio, impedindo sua progresso infinita, e mantm a dominao orgnica de um ponto central e de linhas radiadas, como nas figuras refletidas ou estelares. Mas desencadear a potncia de repetio como uma fora maqunica que multiplica seu efeito e persegue um movimento infinito o prprio da ao livre, que procede por defasagem, descentramento, ou ao menos por movimento perifrico: um politetismo defasado, mais do que um antitetismo simtrico33. No se deve, pois, confundir os traos de expresso que descrevem um espao liso, e que se conectam a uma matria-fluxo, com as estrias que convertem o espao, dele fazendo uma forma de expresso que esquadrinha a matria e a organiza.

    33 Worringer ope a potncia de repetio, mecnica, multiplicadora, sem orientao fixa, e a fora de simetria, orgnica, aditiva, orientada e centrada. Ele v nessa oposio a diferena fundamental entre a ornamentao gtica e a ornamentao grega ou clssica: l.'art gothique, pp. 83-87 ("a melodia infinita da linha setentrional"). Num belo livro, Esthtiques dOrient et d'Occident, Alcan, Laure Morgenstern desenvolve um exemplo preciso, e distingue o "antitetismo simtrico" da arte persa sassnida e o "antitetismo defasado" da arte dos nmades iranisantes (srmatas). Muitos comentadores insistiram, contudo, nos motivos simtricos e centrados da arte nmade ou brbara. Mas Worringer respondia antecipadamente: "Em vez de uma estrela regular e geomtrica sob todas essas relaes, em vez da roscea ou de outras figuras em repouso, aparece a roda que gira, a turbina ou a roda chamada sol; todos esses modelos exprimem um movimento violento; a direo do movimento no irradiante, mas perifrica". A histria tecnolgica confirma a importncia da turbina na vida nmade. Num outro contexto bio-esttico, Gabriel Tarde opunha a repetio como potncia indefinida simetria como limitao. Com a simetria, a vida produzia um organismo, e tomava uma forma estelar, ou refletida, redobrada (Radiados e Moluscos). E verdade que nesse caso desencadeava um outro tipo de repetio, na reproduo externa; cf. L'opposition universelle, Alcan.

    As mais belas pginas de Worringer so aquelas em que ope o abstrato ao orgnico. O orgnico no designa algo que seria representado, mas, antes, a forma da representao, e mesmo o sentimento que une a representao a um sujeito (einfhlung). "No interior da obra de arte desenrolam-se processos formais que correspondem s tendncias naturais orgnicas no homem." Mas, justamente, o que se ope nesse sentido ao orgnico no pode ser o retilneo, o geomtrico. A linha orgnica grega, que submete o volume ou a espacialidade, substitui a linha geomtrica egpcia que as reduzia ao plano. O orgnico, com sua simetria, seu contorno, seu fora e seu dentro, se referem ainda s coordenadas retilneas de um espao esfriado. O corpo orgnico se prolonga em linhas retas que o conectam ao longnquo. Donde o primado do homem, ou do rosto, porque ele esta forma de expresso mesma, a um s tempo organismo supremo e relao de todo organismo com o espao mtrico em geral. Ao contrrio, o abstrato comea somente com o

  • que Worringer apresenta como o avatar "gtico". Dessa linha nmade diz: mecnica, mas de ao livre e giratria; inorgnica, mas no entanto viva, e tanto mais viva quanto inorgnica. Distingue-se ao mesmo tempo do geomtrico e do orgnico. Eleva intuio as relaes "mecnicas". As cabeas (inclusive a do homem, que j no rosto) se desenrolam e se enrolam em fitas num processo contnuo; as bocas se arregaam em caracol. Os cabelos, as roupas... Essa linha frentica de variao, em fita, em espiral, em ziguezague, em S, libera uma potncia de vida que o homem corrigia, que os organismos encerravam, e que a matria exprime agora como o trao, o fluxo ou o impulso que a atravessa. Se tudo vivo, no porque tudo orgnico e organizado, mas, ao contrrio, porque o organismo um desvio da vida. Em suma, uma intensa vida germinal inorgnica, uma poderosa vida sem rgos, um Corpo tanto mais vivo quanto sem rgos, tudo que passa entre os organismos ("uma vez que os limites naturais da atividade orgnica foram rompidos, no h mais limites..."). Com freqncia quis-se marcar uma espcie de dualidade na arte nmade, entre a linha abstrata ornamental e os motivos animalistas; ou, mais sutilmente, entre a velocidade com a qual a linha integra e arrasta traos expressivos, e a lentido ou a paralisia da matria animal assim atravessada. Entre uma linha de fuga sem comeo nem fim, e um giro sobre si quase imvel. Mas todos esto de acordo, finalmente, que se trata de um mesmo querer, ou de um mesmo devir34.

    14 Sobre todos esses pontos, cf. o livro muito intuitivo de Georges Charrire, Lart barbare, Ed. du Cercle d'art, onde encontramos um grande nmero de reprodues. Sem dvida, Ren Grousset quem melhor insistiu na "lentido" como plo dramtico da arte nmade: Lempire des steppes, p. 45.

    Ora, no porque o abstrato engendraria por acaso ou por associao motivos orgnicos. Precisamente porque nele a pura animalidade vivida como inorgnica, ou supra-orgnica, pode to bem combinar-se com a abstrao, e mesmo combinar a lentido ou o pesadume de uma matria com a extrema velocidade de uma linha que unicamente espiritual. Essa lentido pertence ao mesmo mundo da extrema velocidade: relaes de velocidade e lentido entre elementos, que de toda maneira excedem o movimento de uma forma orgnica e a determinao dos rgos. ao mesmo tempo que a linha escapa da geometria, graas a uma mobilidade fugitiva, e que a vida se desprende do orgnico, por um turbilho no mesmo lugar e permutador. Essa fora vital prpria da Abstrao que traa o espao liso. A linha abstrata o afecto de um espao liso, assim como a representao orgnica era o sentimento que presidia o espao esfriado. Por isso, as diferenas hptico-ptico, prximo-distante, devem ser subordinadas diferena entre a linha abstrata e a orgnica, encontrando seu princpio

  • numa confrontao geral dos espaos. Alm disso, a linha abstrata no pode ser definida como geomtrica e retilnea. Da decorre a questo: o que se deve chamar de abstrato na arte moderna? Uma linha de direo varivel, que no traa qualquer contorno e no delimita forma alguma...35

    35 Em seu prefcio a Abstraction et Einfhlung, Dora Vallier tem razo de marcar a independncia respectiva de Worringer e Kandinsky, e a diferena de seus problemas. Nem por isso deixa de sustentar que entre eles pode haver convergncia ou ressonncia. De um certo modo, toda arte abstrata, e o figurativo apenas decorre de certos tipos de abstrao. Mas, num outro sentido, se existem tipos de linha muito diferentes, geomtrico-egpcia, orgnico-grega, vital-gtica, etc, trata-se de determinar qual delas permanece abstrata ou realiza a abstrao enquanto tal. Pode-se duvidar que seja a linha geomtrica, dado que esta traa ainda uma figura, mesmo que abstrata ou no representativa. A linha abstrata seria antes aquela que Michael Fried define a partir de certas obras de Pollock: multidirecional, sem interior nem exterior, sem forma nem fundo, no delimitando nada, no descrevendo um contorno, passando entre as manchas e os pontos, preenchendo um espao liso, agitando uma matria visual hptica e prxima, que "a um s tempo atrai o olho do espectador e no lhe deixa lugar algum para repousar" ("Trois peintres amricains", em Peindre, pp. 267 ss.). No prprio Kandinsky, a abstrao realizada menos pelas estruturas geomtricas do que pelas linhas de marcha ou de percurso que parecem remeter a motivos nmades mongis.

    No cabe multiplicar os modelos. Sabemos, com efeito, que h muitos outros: um modelo ldico, onde os jogos se afrontariam segundo seu tipo de espao, e onde a teoria dos jogos no teria os mesmos princpios, por exemplo o espao liso do go e o espao estriado do xadrez; ou ento, um modelo noolgico que concerne no aos contedos de pensamento (ideologia), mas forma, maneira ou ao modo, funo do pensamento segundo o espao mental que ele traa, do ponto de vista de uma teoria geral do pensamento, de um pensamento do pensamento. Etc. Bem mais, seria preciso levar em conta ainda outros espaos: o espao esburacado, a maneira pela qual comunica de modo diferente com o liso e o estriado. Mas, justamente, o que nos interessa so as passagens e as combinaes, nas operaes de estriagem, de alisamento. Como o espao constantemente estriado sob a coao de foras que nele se exercem; mas tambm como ele desenvolve outras foras e secreta novos espaos lisos atravs da estriagem. Mesmo a cidade mais esfriada secreta espaos lisos: habitar a cidade como nmade, ou troglodita. s vezes bastam movimentos, de velocidade ou de lentido, para recriar um espao liso. Evidentemente, os espaos lisos por si s no so liberadores. Mas neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstculos, inventa novos andamentos, modifica os adversrios. Jamais acreditar que um espao liso basta para nos salvar.

  • 15. CONCLUSO: REGRAS CONCRETAS E MQUINAS ABSTRATAS

    Einstein no computador

    E

  • Estratos, estratificao.

    Os estratos so fenmenos de espessamento no Corpo da terra, ao mesmo tempo moleculares e molares: acumulaes, coagulaes, sedimentaes, dobramentos. So Cintas, Pinas ou Articulaes. Tradicionalmente, distingue-se, de modo sumrio, trs grandes estratos: fsico-qumico, orgnico, antropomrfico (ou "aloplstico"). Cada estrato, ou articulao, composto de meios codificados, substncias formadas. Formas e substncias, cdigos e meios no so realmente distintos. So componentes abstratos de qualquer articulao.

    Um estrato apresenta, evidentemente, formas e substncias muito diversas, cdigos e meios variados. Portanto, possui a um s tempo Tipos de organizao formal e Modos de desenvolvimento substancial diferentes, que o dividem em paraestratos e epist