Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido...

100
1 Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br PROJETO DE PESQUISA COLETIVA Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa WILLY KELLER 1900-1979 (Karola Zimber) 2011 Sumário: I PARTE Constança: a família, os primeiros estudos e a formação profissional Teatro na Alemanha. A Alemanha nos anos 30. Keller entra em confronto com o regime. Fuga para o Brasil. Os primeiros anos no Brasil Operário em Porto Alegre. A luta antifascista: o encontro com Friedrich Kniestedt. São Paulo: trabalho num restaurante. Mudança para o Rio de Janeiro. A luta antifascista prossegue. Os exilados: um grupo heterogêneo e pouco solidário. A volta ao teatro. A vida sorri enfim para Keller. A viagem à Alemanha. Encontro com Brecht. O Instituto Cultural Brasil-Alemanha no Rio de Janeiro. Um parênteses: qual o perfil ideológico de Keller? II PARTE Os boletins da “Notgemeinschaft der Deutschen Antifaschisten”. Teatro em língua alemã. O Teatro Experimental do Negro. Willy Keller, tradutor de literatura brasileira. As traduções do alemão para o português. Willy Keller, crítico de arte. Honrarias no final da vida.

Transcript of Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido...

Page 1: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

1

Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br

PROJETO DE PESQUISA COLETIVA Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa

WILLY KELLER 1900-1979 (Karola Zimber)

2011

Sumário:

I PARTE

• Constança: a família, os primeiros estudos e a formação profissional

• Teatro na Alemanha.

• A Alemanha nos anos 30.

• Keller entra em confronto com o regime. Fuga para o Brasil.

• Os primeiros anos no Brasil

• Operário em Porto Alegre.

• A luta antifascista: o encontro com Friedrich Kniestedt.

• São Paulo: trabalho num restaurante.

• Mudança para o Rio de Janeiro.

• A luta antifascista prossegue.

• Os exilados: um grupo heterogêneo e pouco solidário.

• A volta ao teatro.

• A vida sorri enfim para Keller.

• A viagem à Alemanha. Encontro com Brecht.

• O Instituto Cultural Brasil-Alemanha no Rio de Janeiro.

• Um parênteses: qual o perfil ideológico de Keller?

II PARTE

• Os boletins da “Notgemeinschaft der Deutschen Antifaschisten”.

• Teatro em língua alemã.

• O Teatro Experimental do Negro.

• Willy Keller, tradutor de literatura brasileira.

• As traduções do alemão para o português.

• Willy Keller, crítico de arte.

• Honrarias no final da vida.

Page 2: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

2

I PARTE

Constança:

a família, os primeiros estudos e a formação

profissional

Willy Keller nasce em 9 de junho de 1900, com o nome de Karl Wilhelm

Keller, na cidade de Constança, à beira do lago do mesmo nome. Os alemães

denominam o lago de Bodensee, um nome intraduzível, ou de Schwäbisches

Meer (mar da Suábia), talvez por ser este o maior lago da Alemanha e também

por separar, ou unir, três países: Alemanha, Áustria e Suíça.

Esta proximidade com a fronteira parece prenunciar o futuro de Keller.

São poucas as informações sobre a família de Keller. Seu pai, Karl Keller

era professor ginasial e havia nascido em Karlsruhe em 1864. Sua mãe,

Margarete Dell era de Weinheim.

Em 1929 Keller casa-se com Ellen Heydemann, de Munique e, em 1930,

nasce o único filho do casal, Peter. Ellen é secretária, profissão que mais tarde

vai garantir a sobrevivência da família no exílio.

Karl, nome herdado do pai, logo é abandonado e Keller passa a preferir,

na vida artística e como escritor e tradutor, o diminutivo Willy ou os

pseudônimos JJSansombre e Thomas. Muitos anos mais tarde, quando Keller

cria um movimento antifascista e edita um boletim, ele passa a assinar W. Keller

ou K.W.Keller, talvez querendo separar o intelectual do ativista político.

Não encontramos menção a outros parentes. Na década de 50, no

entanto, quando Keller, já morando no Brasil, viaja à Alemanha, deixa dois

endereços para contato: o de Fritz Keller em Mannheim e o de Hans Gossler em

Freiburg. Gossler, de acordo com Cristian, neto de Keller, seria um parente. Em

sua correspondência com Ulrich Becher, guardada no arquivo Becher da “Die

Deutsche Bibliothek” em Frankfurt/M, encontra-se a informação de que, em

Page 3: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

3

dado momento, Keller visita também uma irmã de sua mãe que vive em

Kandern.

As cidades mencionadas e seus familiares acham-se, sobretudo, no sul

da Alemanha, principalmente nas províncias de Baden-Baden e Würtemberg, o

que parece sugerir que a família tinha raízes firmes nesta região.

Cristian, neto de Keller, lembra em entrevista a mim concedida em 28 de

junho de 1995, um episódio que teria acontecido com um irmão de Keller que

entrara para o exército, se tornara mais tarde funcionário da alfândega, tendo

carimbado seu próprio passaporte para sair da Alemanha.

Durante os anos entre 1906 e 1909, Keller frequenta como qualquer

garoto a escola primária em Kehl, à beira do Reno, e depois o ginásio em

Weinheim, cidadezinha a noroeste de Mannheim, de onde provinha sua mãe.

Segundo Cristian, neto de Keller, na mesma entrevista, Willy queria

estudar música, com o que seu pai não concorda. Não se sabe se a opção de

Keller pelo teatro teve a aprovação do pai.

De qualquer modo, em 1919 Keller entra como aluno na “Hochschule für

Musik und Theater des Nationaltheaters” (=Conservatório e Escola Dramática

do Teatro Nacional) em Mannheim, fazendo um curso de teatro de 2 anos sob a

direção de Paul Tietsch. A música é, ao lado do teatro, a grande paixão de Keller

ao longo de sua vida.

Num currículo enviado ao Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro,

1956, Keller menciona que concluiu seus estudos com um certificado de aptidão

(=Befähigungsnachweis) para exercício da atividade teatral da Cooperativa dos

Associados Alemães ao Teatro e da Associação Teatral Alemã

(=Befähigungsnachweis zur Ausübung der Bühnentätigkeit der Genossenschaft

Deutscher Bühnenangehöriger und des Deutschen Bühnenvereins) bem como

com a formação profissional de diretor e dramaturgo.

Teatro na Alemanha

Em 1921, Keller começa a trabalhar como ator no Teatro Municipal de

Recklingshausen (=Stadttheater von Recklingshausen), pertencente à

Associação Teatro Municipal Herne-Recklingshausen. Seu primeiro papel é

Page 4: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

4

desempenhado na peça de Schiller Die Räuber (= Os salteadores). Seu contrato

é renovado por um ano e o diretor do teatro, Richard Dornseiff, entrega-lhe

então a direção de duas peças, uma de Chekov e outra de Walter Harlan1. Keller

refere-se a este episódio como o despertar do seu interesse pela direção. Ele faz,

em seguida, mais um curso suplementar de direção teatral e, a partir de 1925,

dedica-se exclusivamente à direção.

Em 1924 e 1925 trabalha no Rhein-Mainisches Künstlertheater (Teatro

artístico Reno-Meno) em Frankfurt/M, como primeiro diretor. Em 1927 e 1928,

participa dos Festivais (Festspiele) de Heidelberg como suplente de diretor. Em

1928 e 1929, exerce a função de suplente de diretor no Teatro Renaissance de

Berlim. De 1929 até 1932, é o primeiro diretor do Teatro Municipal de

Würzburg e, de 1932 até 1934, é também o primeiro diretor no Teatro Municipal

de Osnabrück.

Nesta época, a vida cultural na Alemanha (República de Weimar) acusa,

segundo John Willett em seu livro Die Eröffnung des politischen Zeitalters auf

dem Theater (= Abertura da temporada política no teatro), a influência das

novas idéias vindas da União Soviética desde 1917. As relações com a jovem

União Soviética tornam-se mais estreitas. O interesse pelos assuntos

econômicos e sociais, o diálogo crítico com a sociedade, é mais importante do

que o desenvolvimento de novos critérios formais. Comum aos artistas desta

época é também o pacifismo. A qualidade técnica dos teatros alemães alcança

notoriedade e a habilidade dos seus técnicos, que implantam pela primeira vez a

iluminação cênica e inventam o palco giratório, torna-se conhecida.

É neste ambiente que surgem figuras como Erwin Piscator (1893-1966) e

Bertolt Brecht (1898-1956).

O teatro de Piscator é francamente panfletário, concebido desde o início

como um instrumento de luta de classes: um teatro que pretende intervir nos

acontecimentos, fazer política. Ao lado desde teatro de agitação, aparece um

teatro com finalidades didáticas: ao invés de dirigir a consciência de classe para

determinados objetivos, pretende criar primeiro a consciência de classe. É, neste

sentido, que Brecht desenvolve entre 1928 e 1931 suas “Lehrstücke” (= peças

didáticas).

1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da

Sociedade Literária (Literaturgesellschaft) de Leipzig, dramaturgo no Teatro Lessing e escritor em

Berlim.

Page 5: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

5

Assim, são as idéias de Brecht e Piscator que dominam o cenário teatral

durante a formação e o desenvolvimento profissional de Willy Keller.

A Alemanha nos anos 30

Os assim chamados anos 30 na Alemanha são marcados, como todos

sabem, por três fatores principais: a dívida referente à derrota na Primeira

Grande Guerra, o crack da bolsa de Nova York em 1929 e a ascensão de Hitler ao

poder em 1933.

Como perdedora da Guerra, a Alemanha vê-se obrigada a abrir mão de

suas colônias na África, a ver seu território abocanhado pelos vencedores e a

pagar-lhes uma vultosa soma em dinheiro, além de se sentir humilhada com a

cerimônia da assinatura da paz em pleno Palácio de Versalhes na França, sua

tradicional inimiga. Durante os anos 20, a Alemanha consegue, no entanto,

equilibrar suas finanças e chegar a sentir o gosto do bem-estar, trazido pelo

esplendor capitalista americano dos chamados anos de ouro. Entretanto, a

humilhação de Versalhes não fora esquecida.

Os acontecimentos financeiros de 1929 na Wall Street, porém, imprimem

novos rumos ao país. O crack da bolsa abre um período de recessão econômica

que só vai terminar em 1932. Seu efeito imediato é a interrupção do fluxo de

capitais à Europa, comprometendo a economia capitalista como um todo e,

sobretudo, a Alemanha na situação de dependente dos créditos americanos para

saldar suas dívidas da Guerra. Nos anos seguintes, observa-se a queda anormal

da produção industrial e agrícola, o endividamento exagerado dos pequenos

agricultores, a triplicação do desemprego na indústria e a derrocada financeira e

monetária.

Em 1931, por exemplo, o “Creditanstalt”, o maior banco comercial da

Áustria, abre falência, seguido de outros bancos europeus. Com isso, o capital

americano aplicado na Alemanha volta aos USA e o marco alemão, sem a

cobertura americana, perde valor. Em agosto deste mesmo ano, o governo

alemão congela todos os créditos externos.

Page 6: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

6

Em 1932, a produção industrial atinge seu ponto mais baixo: 30% menor

do que a de 1929, sendo a Alemanha um dos países em que se concentram as

maiores perdas. O colapso da produção na indústria pesada é o mais evidente. O

comércio internacional retrai-se para menos de 40% de seu volume de 1929 em

valor, e a 74% em volume físico.

Uma das manifestações mais dramáticas da depressão atinge o

proletariado industrial, pois a estratégia adotada para contornar a crise define-

se pela redução da produção e não dos preços. Na Alemanha, o número de

desempregados atinge a cifra de 3,8 milhões de pessoas em dezembro de 1930.

Com o esfacelamento do comércio mundial, a partir da crise de 1929, o

capitalismo tradicional, numa tentativa de sobrevivência, toma o rumo do

capitalismo monopolista, rumo este também marcado por modificações

ideológicas, em que o Estado assume um papel bem maior, não só na Alemanha,

como também na Itália e nos próprios USA com o “new deal” do presidente

Roosevelt. Isto significa que, na área econômica, os países industrializados não

abrem mais seu capital para o exterior, tornando as economias cada vez mais

fechadas, com leis protecionistas contra mercadorias e dinheiro estrangeiros.

Com isso, a economia mundial assume a desagregação já instaurada e a

transforma na criação de mercados nacionais imperialistas. A Inglaterra, por

exemplo, fecha-se em torno de suas colônias, a França em seu império, a

Alemanha e os países da Europa Oriental recorrem à autarquia e ao

protecionismo.

Na Alemanha, o capitalismo monopolista, associado a uma ideologia

imperialista e em conjunto com o espírito de vingança oriundo da humilhação

sofrida em Versalhes, forma uma mistura explosiva, alimentada pela burguesia.

Primeiro, o chanceler Gustav Stresemann consegue o reconhecimento do país

como grande potência. Depois, em março de 1930, o chanceler Heinrich

Brüning, em sua luta contra a depressão econômica, acaba por adotar medidas

clássicas que arrocham os salários, retiram subvenções aos desempregados,

limitam importações, controlam o comércio exterior. Estas medidas, no

entanto, revelam-se ineficazes e a depressão aumenta. Nesta conjuntura,

aumentam também a agitação social e as mobilizações operárias. A

radicalização entre os militantes do Partido Comunista e as classes médias,

ameaçadas pela proletarização, instaura-se. O grande capital que apoia o

Page 7: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

7

Nazismo recebe, então, também o apoio destas classes médias que aí se

refugiam.

O Nazismo, em si, não é nenhuma corrente ideológica original, mas uma

sistematização de várias teorias apresentadas no livro Mein Kampf (=Minha

luta) por Adolf Hitler, seu autor. A doutrina nazista (abreviação de nacional-

socialista) é propositadamente confusa e ambígua. Apodera-se dos tópicos

referentes à eliminação da luta de classes, defendidos pela classe operária e os

despoja de seu teor internacionalista e proletário, para adequá-los à ideologia

do capital nacional, fortalecendo-o face a capitais rivais. Assim, a doutrina

nazista repele qualquer possibilidade de revolução social, despreza a democracia

liberal, considerando-a fraca e incapaz (lembremo-nos que, durante todo o

período em que vige a República de Weimar - 1918-1933 - a democracia é

largamente exercitada, a ponto de nenhum partido político obter a maioria no

parlamento, o que complica muito a situação fragilizada do país). Além da

democracia, o nazismo também não leva em consideração o pacifismo e os

direitos individuais frente ao Estado. O nazismo exorta a formação da juventude

no exército, dando ênfase ao seu desenvolvimento físico e a uma educação

dirigida para a defesa de sua própria ideologia. Preconiza a purificação da raça,

com a esterilização dos portadores de doenças hereditárias e defende o aumento

das taxas de natalidade. O partido e a ideologia nazistas contam, então, com o

apoio do grande capital, da classe média e, agora, da juventude. Em 1930, há

cerca de 400 mil jovens no exército; em 1933 há 1,5 milhão. Além disso, existem

ainda as forças paramilitares como a SA (“Sturmableitung”=tropa de assalto) e a

SS (“Schutzstaffel”=destacamento de proteção).

O partido nazista chega ao poder, portanto, graças a uma conjuntura

econômica infeliz, aliada a uma deterioração do sistema parlamentar alemão.

Ao assumir a chancelaria em janeiro de 1933, Hitler implanta por inteiro

a ideologia nazista no país: assina um acordo com a igreja, proibindo os padres

de qualquer manifestação política, transforma o partido nazista em partido

único, proíbe os intelectuais de se expressarem contrariamente ao regime e

decreta a perseguição aos judeus. Quem desobedece é simplesmente preso.

Hitler consegue, desta maneira, diminuir o desemprego, pois tem como

aliados os donos do grande capital e, sem agitação social, tenta levar a

Alemanha à auto-suficiência. Em 1936, a indústria alemã (principalmente a de

Page 8: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

8

armamentos) atinge os níveis alcançados em 1929 antes da crise. Em 1939 não

há praticamente desemprego. O imperialismo alemão tem, agora, todo o

caminho livre à sua frente.

Os anos da maturidade de Keller coincidem com esta difícil época dos

últimos anos da República de Weimar e da ascensão do nazismo.

No ensaio “A razão do absurdo: Christian Morgenstern” (1871-1914),

publicado na revista Humboldt 12, de 1965, à página 52, Keller tece os seguintes

comentários sobre esses anos da história alemã:

Abrangem igualmente a época da ascensão nacional da Alemanha, a época da cultura burguesa capitalista, a época de um desenvolvimento material constante, a época, portanto, cujas instituições pareciam tão sólidas, que a humanidade se julgava no limiar da paz perpétua. [...] O ano de 1914 destruiu aquela esperança, que se fundava em uma teoria simplista da evolução, e, repentinamente, o povo alemão se viu frente a problemas, dos quais havia tomado conhecimento apenas na periferia durante os anos do bem estar. Um passado julgado morto despontava subjugando a Europa e o mundo.

O ensaio parece ser uma reflexão sobre as razões da derrocada de 1918 e,

sobretudo, sobre a incapacidade da Alemanha em resolver seus problemas,

culminando com a ascensão do nazismo e em uma catástrofe de proporções

mundiais que arruinou a vida de milhões, inclusive a de Keller.

Apesar dos muitos problemas, as artes haviam florescido na República de

Weimar e, no teatro, este período produtivo só é sufocado pelo nazismo. Keller,

no artigo “Seminário sobre o teatro alemão” publicado no jornal O Estado de

São Paulo de 5/10/1972, assim se manifesta: “Uma grande força criadora

caracterizava o teatro alemão no período de 1918 a 1930, quando autores

possuíam o que faltava aos dirigentes políticos da época: clarividência para

perceber o desastre que seria o regime nazista.”

Keller entra em confronto com o regime.

Fuga para o Brasil.

Page 9: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

9

Em 1934, Hitler é chanceler, empossado em 30 de janeiro de 1933. Em 27

de fevereiro do mesmo ano, o “Reichstag” (=Parlamento) é incendiado e o

episódio serve de pretexto para a prisão de mais de 10.000 funcionários e

membros do SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands = Partido Social

Democrata da Alemanha) e do KPD (Kommunistische Partei Deutschlands =

Partido Comunista da Alemanha), assim como de opositores em geral. Nessa

época, Keller tem afinidades com o SPD e é também filiado ao Sindicato dos

Trabalhadores Teatrais. No dia 10 de maio de 1933, inicia-se a grande queima

pública de livros em toda a Alemanha. O confronto de Keller com os nazistas

teria que vir mais cedo ou mais tarde.

Em 1934, Keller dirige em Osnabrück uma peça de Shakespeare, que

obtém enorme sucesso e provoca a inveja do diretor de ópera que o denuncia

como antinazista. Keller menciona em um currículo encaminhado ao Instituto

Nacional do Livro em 21/10/1956 que, em outubro de 1934, também dirige uma

comédia que provoca a ira das autoridades: Trata-se de Kuckukseier (=Os ovos

do cuco) do crítico teatral Wolfgang Götz (1885-1955). Os Ovos do cuco sugere

a ocupação indevida de um lugar, pois o cuco, como o nosso chupim, costuma

pôr seus ovos no ninho alheio. Isto pode ter sido uma referência aos nazistas e

explica a reação irada destes. É possível que tanto o sucesso de uma peça de

Shakespeare e a conseqüente inveja de um colega, como a representação de uma

peça em que se critica o nazismo, somados à ligação de Keller com o SPD e o

Sindicato, tenham resultado em sua perseguição pelas autoridades. Maria

Sommer da editora “Gustav Kiepenheuer Bühnenvertriebs GmbH”, em

entrevista a mim concedida em setembro de 1995, não acredita que a encenação

da peça de Götz tenha provocado a ira dos nazistas contra Keller. No entanto,

em uma carta a esta mesma Maria Sommer, Keller confirma que, no dia

seguinte à representação da mencionada peça alemã, teve impedida sua entrada

no teatro e que a partir dessa data começa sua perseguição pelo regime.

Susanne Bach, em entrevista a mim concedida em setembro de 1995, em

Munique, admite ainda a existência de um outro problema na vida de Keller.

Sua esposa, Ellen Heydemann, tem ascendência judia e, portanto, sua vida e a

de seu filho estão seriamente ameaçadas. A iniciativa de emigrar parece ter

Page 10: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

10

partido de Ellen, atemorizada com o crescente antissemitismo, enquanto Keller

parece ser surpreendido pelos acontecimentos.

Em um currículo enviado ao Instituto Goethe de Munique em

21/10/1963, Keller fala de processos contra sua pessoa em Osnabrück e Berlim.

Seu salário é bloqueado e sua casa submetida a buscas pela Gestapo, a polícia

secreta do estado. Keller esconde-se primeiro em Berlim e foge depois para o

Sarre (Saarland), então sob a proteção das Nações Unidas. Num questionário

respondido ao “Institut für Zeitgeschichte” (Instituto para História

Contemporânea) em 1/05/1971, Keller menciona que fugiu em 10 de novembro

de 1934 para Saarbrücken, capital do Sarre, após a expedição de uma ordem de

prisão contra sua pessoa no dia 9 do mesmo mês. Face a tal ameaça, sua mulher

Ellen prepara a fuga para o Brasil. Ela relata assim o episódio:

A Gestapo sabia naturalmente da minha intenção e tentou convencer-me a fazer com que meu marido voltasse para Berlim, garantindo-lhe livre trânsito, pois seria leviano abandonar sua profissão, uma vez que já tinha um nome na Alemanha como diretor teatral. Como ele impunha condições à Gestapo declarei, após os papéis para emigração terem ficado prontos com auxílio do Consulado Brasileiro e da Companhia de Navegação Chargeurs Réunis, que eu mesma iria a Saarbrücken, para convencer meu marido das “boas intenções” da Gestapo e trazê-lo de volta. Prometi deixar meu filho Peter de 4 anos 1como garantia na Alemanha. Mas no dia seguinte, peguei meu filho e consegui chegar a Saarbrücken, e de lá a Le Havre, passando por Paris, onde, no Natal, embarcamos na terceira classe de um pequeno vapor francês.2

A família Keller chega a Porto Alegre em janeiro de 1935.

Segundo testemunho de Cristian Keller, dado por telefone em junho de

1995, Ellen já havia estado no Brasil em 1933. Talvez isto explique o fato de

Ellen ter conseguido obter os papéis necessários para emigrar no curto prazo de

algumas semanas.

A escolha do Brasil como país de exílio faz-se por razões supostamente

práticas: segundo a versão de Cristian, Ellen, a mulher de Keller, tem um tio em

Porto Alegre o que lhe permite lançar mão da carta ou da passagem de

chamada, aberta àqueles que já possuem parentes no país. Numa entrevista a

Werner Röder do “Institut für Zeitgeschichte”, datada de 1971, Keller revela que

2Apud Izabela Kestler. Das Exil der deutsprachigen Schriftsteller und Publizisten in Brasilien.

Frankfurt/M, Peter Lang, 1992, p.95.

Page 11: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

11

a decisão de emigrar para o Brasil se deve à existência de parentes distantes de

sua mulher neste país. No entanto, em conversa por mim mantida com

familiares, em Valinhos, em junho de 1995, estes não se lembram deste parente,

e nossa tentativa de localizá-lo por meio de um anúncio no jornal de língua

alemã Brasil Post, de 16 de dezembro de 1994, infelizmente, não dá em nada.

Também pode ter acontecido que este tio nunca tenha existido, tendo servido

apenas para justificar e legitimar a vinda de Ellen ao Brasil em 1933, para

organizar a fuga, comprando uma carta de chamada.

É curioso observar que as circunstâncias da vinda da família Keller ao

Brasil apresentam versões diferentes, já que na já citada entrevista a Werner

Röder do “Institut für Zeitgeschichte”, Keller também afirma que viaja para o

Brasil na companhia de Ulrich Becher, como membro do grupo Görgen. Há, na

verdade, um chamado grupo Görgen de exilados no Brasil. Este grupo é

coordenado por Hermann Mathias Görgen, ministro das finanças do governo

austríaco no exílio. É sua tarefa conseguir asilo, num país sul-americano, para

emigrantes que estão fugindo para a Suíça onde, sem conseguir visto de

permanência, ficam sob ameaça de deportação. Görgen consegue para estas

pessoas passaportes checos do governo Benesch. O cônsul brasileiro em

Genebra concede-lhes os vistos, sem mostrar os passaportes ao consulado

alemão, para que este não os assinale com J de judeu, o que impediria seus

portadores de entrar no Brasil, devido ao antissemitismo do governo Vargas.

Ora, Keller refere-se a um tal Heinrich Görgen, pensando, porém, em Hermann

Mathias Görgen. Este grupo inclui, realmente, Ulrich Becher e sua esposa Dana

Roda-Roda Becher, e chega ao Brasil em maio de 1941, passando pela França,

Espanha e saindo de Lisboa em 27 de abril do mesmo ano. Todavia, na relação

dos participantes do grupo não consta o nome de Keller. Werner Röder, em

carta a mim enviada em 14/11/1995 levanta duas explicações possíveis para o

fato:

1 - [...] a superposição de experiências semelhantes, próprias e alheias, não é incomum na percepção de vítimas de perseguições distantes no tempo, e 2 - há uma falha possível na reconstrução do depoimento de Keller a partir da transcrição da gravação.

Page 12: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

12

Além disso, a fixação do ano de 1935 para a chegada de Keller ao Brasil é

por ele confirmada através de outros fatos, registrados por Keller, em seus

currículos.

A partir dos depoimentos de emigrantes e de contemporâneos, sabe-se

dos obstáculos que se opunham à emigração: dificuldades em obter passaporte

e visto de saída, recusa de países como a França e a Espanha em conceder vistos

de passagem, a expansão nazista, a recusa de vários países em conceder vistos

de permanência e os esquemas de suborno e corrupção envolvidos. Assim,

preocupados em não comprometer outras pessoas ou em não fechar eventuais

rotas de fuga, os emigrantes nem sempre relatam os fatos de forma verídica.

Sobre a prática ilegal de compra de passagens/cartas de chamada, Maria

Luiza Tucci Carneiro escreve em seu livro O anti-semitismo na era Vargas, de

1988, na página 162, o seguinte:

A exigência de apresentação de uma carta de chamada para a obtenção de visto de entrada no Brasil, gerou um verdadeiro “comércio de falsas cartas” envolvendo autoridades e funcionários do Itamarati e Consulados, além da proliferação de agências especializadas que agiam encobertas por certas repartições federais.

E, mais adiante, na página 226, faz menção à agência de viagens Josef

Hartmann que, por meio da “Palestine e Orient Lloyd”, vende vistos de entrada

e passagens para o Brasil.

Ao que tudo indica, várias são as circunstâncias que se somam para levar

Willy Keller à emigração, interrompendo, assim, de forma abrupta sua carreira

de diretor teatral na Alemanha.

Na entrevista a Werner Röder antes mencionada, Keller diz:

Na minha fuga não considerei que, ao abandonar o âmbito das línguas européias, eu sacrificaria completamente meus interesses profissionais. Isto repousa de um lado, no fato de que então, como também hoje, não se tinham dados concretos sobre o Brasil, e por outro no fato de que eu me achava num estado de depressão que paralisava meu raciocínio. Por motivos de ordem profissional e pessoal eu deveria ter escolhido a Inglaterra ou os Estados Unidos como país de exílio [...]

É possível que Keller tivesse amigos ou relações profissionais nestes

países que lhe permitissem uma integração mais rápida, mas, com a

possibilidade de usar a carta/passagem de chamada, acaba no Brasil.

Page 13: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

13

Os primeiros anos no Brasil

No período de 1933 a 1945 o Brasil recebe de 16.000 a 19.000 emigrantes

de língua alemã. Este número é considerado pequeno se comparado ao de

outros países com extensão territorial e população inferiores. A Argentina, por

exemplo, recebe no mesmo período mais de 35.000 pessoas e o Chile, 12.000.

Até 1930, o Brasil é um país relativamente aberto à imigração. Com a

subida de Vargas ao poder e principalmente a partir de 1937, com o início do

Estado Novo, a situação muda drasticamente e são tomadas medidas sempre

mais severas impedindo a entrada de imigrantes. É importante também notar

que o Brasil não reconhece os refugiados como "asilados", mas considera-os

"imigrantes" sujeitos às políticas de imigração vigentes. As restrições à

imigração são justificadas por motivos reais ou supostos de ordem econômica e

social, ou baseadas em teorias raciais pseudocientíficas que visavam a melhoria

da raça por meio da opção por imigrantes de raças “boas”, em contraposição aos

imigrantes de raças “ruins”. A partir de 1937 as restrições, sobretudo, à entrada

de judeus, que constituem o maior contingente de refugiados, aumentam. Em

1937, 9.263 judeus recebem um visto de entrada. Em 1939 este número cai para

2.289.

O intercâmbio comercial com a Alemanha é intenso e existe, por parte do

Brasil, isto é, tanto por parte do governo como por parte de muitos oficiais do

exército, uma declarada simpatia pelo estado nazista. O fracassado golpe

comunista de 1935, que conta com a participação de agentes estrangeiros, cria o

receio de influências subversivas de grupos internacionais. Também a

preocupação com a unidade da nação brasileira, suas características nacionais,

língua, religião, traços raciais, faz-se sentir, unidade ameaçada, em especial, por

alemães e italianos que tendem a preservar sua língua e tradições nas colônias

que fundam. O antissemitismo, que pode ser incluído entre as restrições aos

estrangeiros em geral, e a pressão exercida pelos diplomatas alemães junto ao

governo para impedir a entrada de refugiados no Brasil, constitui um outro

fator a limitar a entrada de estrangeiros no país. A partir de 1938 a política

Page 14: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

14

getulista em relação Alemanha começa a mudar com a eliminação do

integralismo e os ataques contra grupos nazistas, sobretudo, no sul do país. A

partir de 1941 inicia-se uma aproximação gradativa aos Estados Unidos que já

haviam declarado guerra à Alemanha e a seus aliados. Finalmente, em agosto de

1942, o afundamento de cinco navios mercantes brasileiros por submarinos

alemães resulta na declaração de guerra aos países do Eixo.

Imitando a legislação americana são estabelecidas cotas de imigração e

privilegiados agricultores, detentores de profissões técnicas, pessoas que

possam aportar capital ao Brasil, imigrantes de países com os quais o Brasil tem

afinidades culturais e religiosas, como espanhóis, portugueses e italianos. A

ambiguidade de motivos fica evidente quando se pretende trazer agricultores e

ao mesmo tempo não se permite a aquisição de terras por estrangeiros, o que

reduz esses agricultores a meros trabalhadores rurais; também, ao mesmo

tempo em que se pretende trazer imigrantes espanhóis e italianos, existe o

receio de que venham pessoas ligadas ao sindicalismo e a movimentos de

esquerda que poderiam perturbar a ordem social. A concentração de pessoas de

um país em uma mesma região passa ser limitada, para evitar o que se chamou

de formação de “quistos raciais”. Entre 1934 e 1938 vigoram as assim

denominadas “cartas de chamada” que permitiam a estrangeiros residentes no

país trazer seus parentes para o Brasil.

As diversas leis e resoluções emitidas, algumas secretas e de caráter

sempre mais restritivo, dirigidas em especial contra a imigração judaica, são

listadas detalhadamente nas obras já mencionadas de Izabela Furtado Kestler,

Die Exilliteratur und das Exil der deutschprachigen Schriftsteller und

Publizisten in Brasilien, e Maria Luiza Tucci Carneiro, O anti-semitismo na era

Vargas. Mais recentemente um grupo de pesquisadores em torno da

historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro vem pesquisando os arquivos do

DEOPS de São Paulo, e os arquivos do Itamaraty, trazendo novas informações

sobre o esquema repressivo do estado getulista e suas relações com o

nazifascismo.

Pessoas são presas, torturadas e deportadas. Lembra Boris Fausto em

História do Brasil, São Paulo, Edusp, 1994, p. 376: “O Estado Novo perseguiu,

prendeu, torturou, forçou ao exílio intelectuais e políticos, sobretudo de

esquerda e alguns liberais.”

Page 15: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

15

A partir de 1938, após o fracassado golpe integralista, mas sobretudo após

o rompimento das relações diplomáticas com os países do Eixo e a entrada do

Brasil na guerras, a repressão se dirige contra os alemães, italianos e japoneses e

seus descendentes. As respectivas línguas são proibidas; escolas associações e

jornais são fechados, estrangeiros não podem viajar. A repressão não distingue

os refugiados do nazismo de simpatizantes e adeptos.

Se as boas relações iniciais entre Brasil e Alemanha não facilitaram a vida

dos refugiados que são opositores do regime nazista e perseguidos pelo mesmo,

a mudança na política brasileira, por seu lado, também não beneficia os

refugiados, que são vistos apenas como estrangeiros, cidadãos de um país

inimigo. Ironicamente, muitos destes refugiados já haviam perdido a cidadania

alemã. Numa viagem a uma localidade de nome Ingá, por exemplo, Max

Hermann Maier e um companheiro hospedam-se numa pensão e registram-se

como "sem nacionalidade", já que a alemã havia sido cassada. À noite, são

chamados pelo chefe de polícia que insiste em que são alemães. São finalmente

obrigados a registrar-se como tal para evitar a prisão.

Keller fala da situação da seguinte maneira na sua entrevista a Werner

Röder: “quatorze dias após minha chegada ao Brasil recebi pela primeira vez a

visita da polícia; durante a guerra tive até quatro buscas domiciliares por

semana, a última em 1946.”

É preciso notar, no entanto, que em 1943 Keller já havia fundado no Rio

de Janeiro seu movimento antifascista e estava publicando um boletim em

língua alemã, o que certamente deve ter provocado as reações por parte das

autoridades brasileiras.

Uma pergunta que fica em aberto é a questão da distribuição do boletim

antifascista de Keller. Considerando a repressão existente, a proibição da língua

alemã, as dificuldades de comunicação, a impossibilidade de viajar, as

dificuldades financeiras, como Keller distribuía os 500 exemplares de seu

boletim, como recebia as notícias do Brasil e do exterior, como se comunicava

com seus leitores?

Aparentemente o boletim foi distribuído principalmente no Rio de

Janeiro. Quando fiz esta pesquisa, constatei que o nome de Keller era

praticamente desconhecido em São Paulo. Keller reproduz em seu boletim

cartas vindas do sul do país, citando as localidades, sem porém mencionar o

Page 16: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

16

nome de seus correspondentes. Talvez pessoas detentoras da cidadania

brasileira, que podiam viajar, distribuissem o boletim. E as notícias, as

informações sobre a situação na Alemanha? Embora não obtivesse provas nesse

sentido, é possível que Keller tivesse contatos nos consulados estrangeiros e até

com diplomatas alemães opositores do nazismo.

Operário em Porto Alegre.

Uma viagem ao Rio à procura do teatro

Ao chegar ao Brasil, Willy Keller fixa residência em Porto Alegre, onde

passa a trabalhar na fábrica de espelhos do suposto tio de Ellen e esta também

consegue emprego como secretária lá.

Keller fala desta primeira experiência no Brasil no artigo “Aventuras de

Tradutor” de 1958, publicado na Revista Leitura 10, do Rio de Janeiro. Diz ele:

Em fins de janeiro de 1935, desembarquei em Porto Alegre esbulhado e perseguido pelos nazistas, então no poder na Alemanha...e em alguns outros países deste engraçado mundo. Poucas semanas antes era ainda um bem renumerado e respeitado diretor teatral, com seus livros, seus amigos, seus comes e bebes e suas pequeninas mas teimosas necessidades intelectuais e, de repente, vi-me transformado em operário braçal, quase um analfabeto, sem possibilidade de comunicar-me com a população indígena, sem poder ler um jornal e sem níquel no bolso para matar a tremenda sede que me perseguia dia e noite.

Neste mesmo artigo, Keller informa que, em meados de 1935, decide

viajar para o Rio de Janeiro em uma tentativa desesperada de fazer contato com

o teatro e o cinema brasileiro. Mediante o pagamento de 10 mil réis, embarca

num navio da Companhia Carbonífera Riograndense.

Encontra um Rio de Janeiro, assim descrito por Ruy Castro nO Anjo

pornográfico, página 151:

Em meados de 1941 [...] dizia-se que o teatro brasileiro ia do Rocio à Cinelândia - ou seja, de mal a pior. O Rocio era o antigo nome da praça Tiradentes, reduto do teatro de revista desde tempos pré-diluvianos. E a Cinelândia, que supostamente abrigava o teatro ‘sério’, era o território de Procópio Ferreira, Jaime Costa e Dulcina de Morais. O

Page 17: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

17

eixo Procópio-Jaime-Dulcina dominava o palco e a gerência. [...] Como empresários e donos de seus narizes, era natural que só escolhessem peças de acordo com seu estilo. E, como eram todos comediantes, só queriam saber de comédias.

No Rio de Janeiro, Keller não encontra, portanto, o que busca. No já

citado artigo “Aventuras de tradutor”, assim ele expressa seu desencanto: “A

minha desilusão foi total. Tinha chegado o momento em que precisava

reconhecer que não só tinha perdido o meu país, como também minha posição

social e minha profissão, tudo, portanto, que dava sentido à minha existência.”

Em carta ao escritor, dramaturgo e professor Hans Rothe, que emigra em

1934 para os USA, Keller volta a falar de sua desilusão com a falta de uma

indústria cinematográfica organizada ou de grupos teatrais nos quais pudesse

encontrar uma colocação. Comenta a atividade de diretor de cinema da seguinte

forma: “Mas naquela época ainda não se conhecia esta profissão, e o homem

que dava o dinheiro também dirigia o filme.”3

Willy Keller parece ser, na época, a única voz crítica no mundo artístico

brasileiro.

Em maio de 1995, Dulcina de Morais, uma das estrelas do teatro de então,

vem a receber o prêmio Sharp de teatro. Em artigo publicado na Folha de São

Paulo de 3/5/95, na “Folha Ilustrada” à página 3, com o título “Prêmio Sharp

lembra rainha do teatrão”, Sérgio Augusto pronuncia-se sobre a situação do

teatro brasileiro desse tempo e corrobora as palavras de Keller. Diz ele:

A importância de Dulcina se mede menos pelas suas qualidades histriônicas do que por sua abnegada dedicação ao teatro, onde formou, com o marido Odilon Azevedo morto em 1972, a mais famosa dupla de atores da ribalta brasileira.[...] mesmo aqueles que se incomodavam com os excessos interpretativos dela e consideravam Odilon um dos maiores canastrões do planeta - como era o caso do humorista Sérgio Porto -, respeitavam o empenho empresarial da dupla e suas contribuições para o aprimoramento da atividade teatral. Foi graças a Dulcina e Odilon que se aboliu entre nós a figura do ponto e se instituiu a folga teatral às segundas-feiras.

O artigo continua: “Tempos heróicos aqueles. Montagem que emplacasse 50

récitas era considerada um sucessão.”

Há, porém, outras vozes menos pessimistas que têm uma visão um pouco

diferente do teatro brasileiro da época. Bárbara Heliodora em Quem é quem nas

3Apud Izabela Kestler, p.95.

Page 18: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

18

artes e nas letras no Brasil, de 1966, atesta, por exemplo, que Jayme Rodrigues

Costa encena 170 originais. Jayme Costa preocupa-se especialmente com os

jovens autores e atores brasileiros, e lança também nada menos de 39 artistas.

Traz para o Brasil, pela primeira vez Cosi é se vi pare (=Assim é, se lhe parece),

de Pirandello, Ana Christie, de O’Neill, e A morte do caixeiro viajante, de

Arthur Miller. Jayme Costa dá, assim, seu tributo ao teatro brasileiro. Isto

mostra que a atividade teatral no Brasil, nesta época, não é afinal tão

insignificante.

Também Décio de Almeida Prado, em seu livro Peças, pessoas,

personagens, aponta para a contribuição de Procópio Ferreira, ao lado de

Dulcina e Odilon. Mesmo fazendo inúmeras restrições ao teatro de Procópio,

Décio de Almeida Prado reconhece suas qualidades de ator e comenta à página 4

o seguinte: “Procópio contentou-se apenas em fazer rir - ninguém contribuiu

tanto e de forma tão continuada quanto ele para manter a alegria em nossos

palcos. Que este título baste para nossa gratidão e sua glória.”

A luta antifascista:

o encontro com Friedrich Kniestedt

De volta a Porto Alegre, onde ainda passará alguns meses, Keller encontra

Friedrich Kniestedt, em quem acha um parceiro político.

Friedrich Kniestedt é mais velho, nasce na Alemanha em 1873. É

fabricante artesão de escovas e vassouras. Aos 23 anos, entra pela primeira vez

em conflito com as autoridades alemãs, quando se empenha por melhores

condições de trabalho para o operariado. Ameaçado de prisão, foge para Paris e

reúne-se aos socialistas em torno de Jean Jaurés (1859-1914) socialista,

fundador do L’Humanité. Kniestedt é um homem simples, de pouca cultura.

Classifica-se a si próprio como anarquista, mas é acima de tudo um

individualista. Em 1909, Kniestedt emigra para o Paraná e passa a trabalhar

numa plantação de café. Em 1913, volta para Berlim e opõe-se às preparações de

guerra da Alemanha. Ameaçado novamente de prisão, foge em 1915 para o Rio

Grande do Sul. Em 1933, funda a Liga para Defesa dos Direitos Humanos,

Page 19: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

19

organiza movimentos antinazistas e edita várias revistas. Por pressão dos

diplomatas alemães, as autoridades brasileiras cassam sucessivamente as

impressões das revistas que Kniestedt, por sua vez, volta a editar com outro

nome.

O movimento organizado por Kniestedt não exerce, porém, influência

além das cercanias de Porto Alegre.

Keller fala do encontro com Kniestedt e de seu movimento na entrevista a

Werner Röder de outubro de 1971, arquivada no “Institut für Zeitgeschichte”.

Diz ele:

Mas - sem o meu interesse por assuntos políticos, sem minha tentativa de resistir, sem o fato de ter encontrado já um núcleo de resistência em Porto Alegre, e por sinal na pessoa de Friedrich Kniestedt, sem este estímulo eu não teria suportado a emigração, eu me teria suicidado. Assim a política entrou apesar de tudo na minha vida. Devo à política e à minha própria participação ativa a minha sobrevivência.

Não foram encontrados registros sobre a participação de Keller nas

atividades do SPD, nem sobre o seu envolvimento com o movimento sindical na

Alemanha, mas no Brasil a atividade política, em forma de luta antifascista,

ocupa muito de suas energias e serve, nas suas próprias palavras, sobretudo à

sua autoafirmação.

Keller torna-se um dos redatores da revista de Kniestedt junto com outros

exilados. Após a mudança para o Rio, Keller organiza seu próprio movimento, o

“Notgemeinschaft deutscher Antifaschisten” (=Associação de Emergência dos

Antifascistas Alemães).

Keller e Kniestedt mantêm uma ativa correspondência em que discutem

assuntos pessoais e políticos. Às vezes, Keller fala do fim da guerra onde haverá

“o grande ajuste de contas”. Outras vezes, Keller mostra-se desiludido. Acha a

“guerra perdida para a humanidade”. São também amargos seus comentários

sobre “os adeptos de última hora”, os maus elementos entre os exilados, “os

oportunistas”.

O relacionamento entre Keller e Kniestedt é rompido após o fim da

guerra, quando Kniestedt pede ao governo brasileiro que levante as sanções

contra os cidadãos alemães. O pedido irrita Keller, mas na já mencionada

entrevista a Werner Röder ele não nega os méritos de Kniestedt:

Page 20: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

20

Nossos caminhos se separaram no fim. Apesar disso quero atestar-lhe uma postura raramente sincera, na medida em que suas publicações já não tornam isso evidente. Era uma pessoa absolutamente correta, que sempre comprovou de maneira renovada essas suas qualidades em diversas situações.

Estas palavras cabem também sob medida ao próprio Keller.

São Paulo:

trabalho num restaurante

Não obtendo emprego satisfatório em Porto Alegre, Keller vem para São

Paulo.

Na década de trinta existe em São Paulo uma numerosa e próspera

colônia alemã. A grande maioria descende de emigrantes vindos no século

passado e está bem estabelecida no comércio e na indústria. Casas comerciais

como as casas Fuchs, Lemcke, Kosmos, a Casa Alemã (mais tarde Galeria

Paulista), a Pharmacia Allemã, a Goldene Hirsch Apotheke (Botica ao Veado de

Ouro), empreendimentos industriais como o Frigorifico Eder, a Cia.

Melhoramentos, os Laticínios Vigor, empresas agrícolas como a Roselândia e a

Dierberger Agrícola pertencem a alemães ou aos seus descendentes. Os alemães

têm seus clubes e suas associações culturais e recreativas, suas escolas, suas

igrejas e seus restaurantes. Clubes como o Sportklub Germania (atual Clube

Pinheiros), a Associação Católica Kolping, a Lyra, escolas como a Escola Alemã

(depois Colégio Visconde de Porto Seguro), a Escola Alemã Vila Mariana (hoje

Colégio Benjamim Constant), a Sant'Anna Schule (hoje Colégio Imperatriz

Leopoldina), escolas e associações que se mantêm em grande parte até hoje,

com outros nomes e integrados à vida brasileira.

Sobre o relacionamento entre os imigrantes mais antigos e os novos

imigrantes de São Paulo, Carolina Aust escreve no artigo “Musiker, Maler,

Graphiker, Dichter, Schriftsteller und Journalisten: ein Bericht über die

deutsche Emigration zwischen 1933 -1946 nach Brasilien”, publicado no Staden

Jahrbuch de 1993, à página 56, o seguinte:

Page 21: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

21

Entre os diversos grupos de emigrantes não existiam além disso maiores relações, pois as pessoas provenientes principalmente da grande burguesia eram nacionalistas alemães ou mantinham posições de direita. Em conseqüência existiam poucos contatos com os imigrantes socialdemocratas ou católicos de centro.

A falta de solidariedade entre os diversos grupos de exilados e entre os

imigrantes antigos e os novos imigrantes transparece em todos os testemunhos.

Em São Paulo, Keller consegue emprego no restaurante de um teuto-

brasileiro. Sobre esta experiência, Keller revela o seguinte na entrevista a

Werner Röder:

Assim acabei em São Paulo como contador, no então maior restaurante da cidade.[...] Quando começou a guerra em 1939 perdi meu emprego porque me recusei a dar meu voto e minha concordância simbólica ao "Reich" e seu glorioso "Führer" Adolf Hitler, num navio alemão ancorado no litoral brasileiro fora do limite de três milhas.

A coincidência de datas permite supor que se trata do “Windhuk”, um

navio de carga e passageiros, um dos mais modernos e luxuosos navios alemães

da época, que fazia a rota Hamburgo-África do Sul. Em julho de 1939, o navio

sai para sua 13ª e última viagem que se transforma numa aventura temerária. O

navio chega à Cidade do Cabo com 240 tripulantes e 400 passageiros quando o

capitão recebe a informação da iminente declaração de guerra por parte da

França e da Inglaterra à Alemanha. A maioria dos passageiros fica na Cidade do

Cabo. O navio prossegue para Lobito, em Angola, onde se confirma a notícia da

declaração de guerra. O “Windhuk” fica por dois meses em Lobito. Cinco

tripulantes fogem num barco salva vidas e retornam à Alemanha após 73 dias de

viagem, percorrendo mais de 8.000 km. O “Windhuk”, perseguido por navios

ingleses e franceses, inicia a fuga pelo Atlântico e, no dia 7 de dezembro de 1939,

chega ao porto de Santos. O Brasil é, na ocasião, um país neutro. Como a “Afrika

Linie” continua pagando o salário dos tripulantes e a colônia alemã recebe a

tripulação com simpatia, o navio permanece por vários anos atracado no porto.

Essa simpatia, contudo, não é partilhada por Keller. Não sabemos qual era a

posição política dos tripulantes: sua idade variava entre os 16 e os 59 anos, a

maioria estava ali exercendo um trabalho. Em 1942, o Brasil declara guerra à

Alemanha e, então, os tripulantes do “Windhuk” são internados em campos de

Page 22: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

22

prisioneiros e o navio é vendido à Marinha Americana. Antes disso, alguns

tripulantes enchem os motores do navio com areia e cimento, destruindo-os. O

navio é recuperado com o nome de “Lejeune” e usado no transporte de tropas.

Em 1948, o “Windhuk/Lejeune” é desativado e, em 1966, é sucateado. Os

refugiados do “Windhuk” no Brasil somam-se ao já heterogêneo grupo de

exilados alemães.

Em conseqüência da recusa de Keller em visitar o navio e prestar

solidariedade ao regime nazista, ele perde seu emprego no restaurante.

Os anos da Segunda Guerra e a aculturação no

Brasil: mudança para o Rio de Janeiro

A perda do emprego no restaurante em São Paulo significa um duro golpe

para a família Keller. Na já mencionada entrevista a Werner Röder de 1971,

Keller declara que

a partir deste momento minha família se viu ameaçada pela ruína total. Mudamos inicialmente para o Rio de Janeiro, procurando abrigo na casa de uma cunhada. Minha esposa conseguiu achar trabalho, eu não. Com o primeiro salário de minha mulher alugamos uma casinha, naqueles tempos ainda acessível por um preço modesto. Nossa primeira mesa foi uma caixa virada, nossas primeiras cadeiras caixas viradas, nossas primeiras camas tábuas pregadas uma na outra. Eu cuidava da casa nessa época. Essa repentina troca de papéis não fez bem de início, nem a mim nem a minha mulher. Apesar disso algum acaso que não sei explicar permitiu que sobrevivêssemos. No intervalo passaram-se trinta e dois anos e resignei-me ao meu destino.

A partir de 1939, Willy Keller passa a morar definitivamente no Rio de

Janeiro. Uma volta à Alemanha está descartada. Keller preocupa-se, então, em

aprender o português, e, ao mesmo tempo, em não perder sua língua materna.

Nesta terra, Brasil, cuja língua a princípio nunca acreditei poder entender e ou falar, descobri que minha pátria não é a terra alemã que supostamente carregamos conosco grudada na sola do sapato, mas sim a língua alemã [...] A luta para aprender uma língua estrangeira e

Page 23: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

23

não esquecer a língua materna, tornou-se o conteúdo propriamente dito da minha vida.4

Keller continua tentando desenvolver suas atividades antifascistas e

procura mostrar que existe uma outra Alemanha.

Estes primeiros anos no Rio são extremamente difíceis do ponto de vista

material. É Ellen, mulher de Keller, que garante a sobrevivência da família.

Elvira Heydemann, a cunhada, irmã de Ellen, revela em entrevista a mim

concedida em junho de 1995: “Foi minha irmã que, com grande sacrifício,

sustentou a família”.

Em 1946, Willy Keller liga-se, no Rio de Janeiro, por um curto período ao

grupo teatral alemão criado por Wolfgang Hoffmann-Harnisch e seu filho Wolf

Harnisch. Após o rompimento com Hoffmann-Harnisch, Keller prossegue com

seu próprio grupo que atua até 1957.

A partir de meados da década de 40 e na década de 50, Keller consegue

integrar-se à vida intelectual brasileira: publica críticas, ensaios, relatórios de

viagem, em revistas literárias do Rio de Janeiro, mais explicitados adiante.

Participa de atividades teatrais em língua portuguesa, é membro da Sociedade

Brasileira de Autores Teatrais e do PEN Clube.

Em 1946, Paschoal Carlos Magno sugere o nome de Keller como dirigente

do Teatro Experimental do Negro e, em 1951, Henrique Pongetti convida-o para

dirigir uma peça. Seguem-se outros convites de grupos profissionais e

amadores.

A luta antifascista prossegue

4 POHLE, Fritz. Emigrationstheater in Südamerika. Hamburg, Hamburger Arbeitsstelle für Deutsche

Exilliteratur, 1989, p. 41.

Page 24: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

24

“O ser não político é um absurdo nestes tempos. Deveria ser castigado por

cumplicidade.”5

A avaliação da atividade dos grupos antifascistas no Brasil resulta, em

geral, bastante negativa. Izabela Kestler considera que estes grupos não têm

nenhuma importância ou influência, sendo mesmo desconhecidos da maioria

dos próprios exilados. Verificamos que esses grupos, no fundo, servem apenas

para definir a posição política de seus integrantes, ou para garantir o próprio

futuro político de seus fundadores numa Alemanha libertada.

No artigo “Deutschsprachige Exilschriftsteller in Brasilien”, publicado na revista

Língua e Literatura 6, de São Paulo,1970, às páginas 353-371, Ray-Güde Mertin

escreve sobre as tentativas de criação de grupos antifascistas o seguinte:

Com exceção de Willy Keller e sua Associação parece-me que não houve no Brasil grupos solidários de escritores exilados - como no México ou em Buenos Aires. Para a situação destes é característico que durante uma conversa com um deles o conceito 'Literatura no exílio' e 'escritor no exílio' não encontrou nenhuma compreensão. Willy Keller expressou-se de forma muito consciente a respeito deste problema: 'Eu sou um emigrante nato, uma volta à Alemanha seria impossível para mim. O que me une à Alemanha é a língua.

Em 1935, em Porto Alegre, Keller havia-se unido ao grupo em torno de

Kniestedt. Quando muda para São Paulo em 1936, e para o Rio de Janeiro em

1939, o contato com Kniestedt em Porto Alegre torna-se difícil. Em uma carta

datada de 7 de janeiro de 1942, endereçada a Kniestedt, Keller lamenta a falta

de contato, fala da censura brasileira que dificulta a comunicação e pretende

enviar material para a revista de Kniestedt em Porto Alegre. No Rio de Janeiro,

em fins de 1943, Keller funda, como já se disse atrás, seu próprio movimento

antifascista, a “Notgemeinschaft der deutschen Antifaschisten” (=Associação de

emergência dos antifascistas alemães). O próprio Keller não tem ilusões sobre a

eficácia destes movimentos. Nas suas próprias palavras na entrevista a Werner

Röder:

No Brasil não existia nenhuma organização. O grupo por mim criado, a Associação dos Antifascistas Alemães, constituída posteriormente à "Organização" de Kniestedt, [...] também não era uma organização. Sua fundação foi uma necessidade, pois sem ela não teria existido no Rio uma representação pública dos antinazistas alemães.

5 KELLER,Willy: In eigener Sache. Boletim da Associação dos Antifascistas Alemães 2, 15 de janeiro de

1944.

Page 25: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

25

É curioso observar que uma organização com este mesmo nome,

“Associação dos Antifascistas Alemães” é citada por von der Mühlen como

atuando desde 1935 no Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Pelotas e Rio Negro,

sem que haja uma investigação maior desta problemática. Sabe-se que Ulrich

Becher publicou no Rio de Janeiro, em 1943, com prefácio de Willy Keller, Das

Märchen vom Räuber, der Schutzmann wurde (=O conto do ladrão que se

tornou policial) com o auxílio desta organização, como a primeira publicação do

que deveria vir a ser a “Notbücherei deutscher Antifaschisten” (=biblioteca de

emergência dos antifascistas alemães). Ulrich Becher dá notícia desse fato em

sua obra Spiele der Zeit, à página 324:

Willy Keller, diretor teatral de Mannheim, um conhecido de Bert Brecht, e eu, arriscamo-nos até a criar uma Biblioteca Alemã Antifascista de Emergência (Notbücherei Deutscher Antifaschisten), para influenciar as grandes ilhas de língua alemã no Rio Grande do Sul e no Paraná, hitlerizadas em 90%.

A partir de 1943 e até meados de 1947, a organização de Keller passa a

publicar também um boletim (=Rundschreiben), uma circular datilografada e

mimeografada, com artigos do próprio Keller, notícias sobre as atividades dos

nazistas no Brasil e na América do Sul, transcrições de notícias publicadas em

jornais brasileiros e estrangeiros e até do "Völkischer Beobachter" (=Observador

Popular), o órgão central do partido nazista alemão, notícias sobre o andamento

da guerra e sobre a situação na Alemanha. Em 1945, terminada a guerra,

aparecem as primeiras notícias sobre os campos de concentração que o boletim

publica com destaque. Mais tarde, Keller comemora o ressurgimento dos

movimentos sindicais na Alemanha e na Europa o que, em sua opinião, é o

prenúncio de mudanças políticas profundas. Em dezembro de 1945, Keller fala

da sua tentativa de organizar um auxílio para os detentos dos campos de

concentração, que fracassa por não ser ainda possível enviar encomendas à

Alemanha, pois até mesmo cartas têm que ser encaminhadas pela Cruz

Vermelha. Além desse noticiário político, o boletim traz também notícias

literárias, textos de autores alemães e brasileiros. O boletim é obra de Keller: é

composto em média por 7 páginas e Keller fala em 500 exemplares distribuídos.

Page 26: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

26

Intercalado com o boletim em língua alemã, Keller publica também um outro

boletim denominado “INFA” destinado à imprensa brasileira.

O boletim da “Associação dos Antifascistas Alemães” evidencia que Keller

mantém um contato estreito com as organizações antifascistas nos Estados

Unidos, no México, no Uruguai, na Argentina, na Inglaterra, que está bem

informado sobre situação na Alemanha, que tem acesso a publicações

estrangeiras e que mantém contato com os principais líderes do exílio nos

demais países. Uma análise mais detalhada sobre esses boletins é oferecida mais

adiante em “Keller ensaísta político”.

É evidente o sentimento de frustração de Keller em relação aos imigrantes

mais antigos, aos seus companheiros de exílio. No boletim nº 2 de janeiro de

1944, página 1, por exemplo, Keller escreve:

[....] o que primeiro chama nossa atenção é que existem dois tipos de emigrantes: políticos e não políticos. É lamentável constatar que aqueles q u e n ã o q u e r e m s a b e r n a d a d e p o l í t i c a excedem de longe, em números, os emigrantes políticos. Esse peso morto que os emigrantes políticos têm de carregar, é que faz o trabalho tão pesado, e muitas vezes o torna tão inútil. Uma pessoa que não está disposta a participar ativamente na construção política da sociedade, não deveria poder participar dos direitos e vantagens que essa sociedade garante. Adolf Hitler não instruiu apenas de forma prática o povo alemão sobre a seguinte questão: pode um povo, um indivíduo isolado permitir-se manter uma postura apolítica diante de acontecimentos políticos.

A habilidade e a persistência em manter sua associação nas adversas

condições brasileiras, isto é, em meio à repressão aos exilados por parte do

governo Vargas, à proibição de organizações políticas lideradas por

estrangeiros, à proibição da própria língua alemã faz de Keller um dos exilados

mais atuantes do Brasil.

Os exilados:

Page 27: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

27

um grupo heterogêneo e pouco solidário

Na 2ª metade da década de trinta comunistas exilados, socialdemocratas, membros de pequenos partidos de esquerda, pacifistas e representantes de um ambiente intelectual, entretanto, proibido na Alemanha, reuniram-se em primeiros agrupamentos.6

Desta maneira, Patrick von zur Mühlen resume a situação dos exilados.

A discordância entre esses grupos, porém, logo se instala e se acentua em

1939 por ocasião do pacto Hitler-Stalin, só havendo uma melhoria nas citadas

relações após a invasão da União Soviética pelos alemães em 1941.

Na América Latina as duas organizações mais importantes são a “Freies

Deutschland” (=Alemanha Livre) sediada no México e liderada sobretudo por

comunistas, e a organização “Das andere Deutschland” (=A outra Alemanha)

em Buenos Aires. Esta última é liderada por August Siemsen, que mantém

contato tanto com Kniestedt como com Keller. Numa carta a Kniestedt datada

de janeiro de 1943, Keller fala de uma reunião a ser realizada em Montevidéu

(Conferência de Montevidéu), coordenada por Siemsen, numa tentativa de

reunir os diversos grupos atuantes na América Latina e superar as constantes

discordâncias existentes entre eles.

No Brasil, a grande maioria dos imigrantes antigos, no entanto, não tem

interesses políticos e, por isso, não apoia as iniciativas dos exilados. Alguns são

até mesmo francamente simpáticos ao nazismo.

Entre os exilados, ligados a ideologias de esquerda, e os católicos e

conservadores existem também sérias diferenças.

Antes da declaração de guerra do Brasil à Alemanha, os diplomatas

alemães denunciam os exilados às autoridades brasileiras.

Em 1942, com a entrada do Brasil na guerra contra a Alemanha, a

situação ainda se torna mais difícil; os cidadãos de língua alemã passam a ser

simplesmente inimigos sem distinção entre simpatizantes ou inimigos do

6 Mühlen, Patrick von zur. Fluchtweg Spanien-Portugal. Die deutsche Emigration und der Exodus aus

Europa 1933-1945. In; Lehmann, Klaus Dieter (org). Exil in Brasilien, die deutschsprachige Emigration

1933-1945.Bonn, J.H.W. Dietz ,1992, p.20.

Page 28: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

28

nazismo. Antes disso, a língua alemã já havia sido proibida. Estrangeiros não

podem exercer atividades políticas ou viajar livremente e o governo exerce sua

severa censura. Os exilados em geral não têm recursos financeiros e, finalmente,

as dimensões do país também dificultam os contatos.

Durante os anos de 1942 e 1943, em cartas a Kniestedt, Keller fala de suas

preocupações com os oportunistas e adeptos de última hora que vêem, nos

movimentos antifascistas, a possibilidade de conseguir uma espécie de atestado

de idoneidade que lhes traga benefícios e segurança no após-guerra.

Em 1945, Keller rompe com Kniestedt. As razões são expostas numa

circular, onde Keller define, mais uma vez, sua posição ideológica, declarando-

se adepto do materialismo histórico, solidário com os movimentos de esquerda

e com os movimentos trabalhistas internacionais. No boletim informativo de

agosto de 45, Keller denuncia duas multinacionais, a Shellmex e a General

Motors da Argentina, que contratam nazistas para cargos executivos. No

boletim de setembro do mesmo ano de 1945, Keller escreve um artigo “Am

Rande der Zeit “ (=No limiar do tempo), em que lamenta a falta de uma

reviravolta revolucionária na Alemanha e na Europa do após-guerra.

Em uma carta de 3 de fevereiro de 1946 a Ulrich Becher, Keller volta a se

preocupar com o que chama de denunciantes e espiões e cita nominalmente

Fränkel, Hirnasch e Röttger. Fränkel, por exemplo, pertence à ala direita do

SPD e ataca constantemente os grupos antifascistas de Buenos Aires e o grupo

de Keller no Brasil.

Keller é um ferrenho opositor do nazismo, isto não significa, porém, que

ele concorde com todos demais exilados antinazistas, que abraçam os mais

diversos matizes políticos. Diz ele na entrevista de 1971 a Werner Röder:

Eu mesmo me colocaria, na minha posição de então [...] à esquerda do partido comunista. Toda organização funcional é para mim um horror. Eu jamais poderia pertencer a um partido político, pois estes são em última análise sustentados por seus funcionários. Eu porém, mesmo concordando em grande parte ideologicamente, não me enquadro em uma organização. Sou um outsider, porém um outsider disciplinado. Estou disposto a deixar de lado minhas opiniões pessoais no detalhe, desde que isto beneficie as idéias básicas que represento. As pessoas que vieram ao nosso encontro, e para as quais tentamos representar a consciência política dos alemães no Brasil, eram liberais. E porque eram liberais, eles nos toleraram, apesar de serem, em sua maioria, de opinião que íamos longe demais em nossas idéias de reforma social.

Page 29: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

29

Através de uma carta de Hans Röttgen a Willy Keller, datada de 14 de

julho de 1946, fica-se sabendo da proposta de Keller para criar uma “ala

esquerda” dentro do SPD. Mas, já em 16 de agosto do mesmo ano, Keller escreve

a Wilhelm Sanders, residente em Londres, comentando a inviabilidade da

criação de tal “ala” do SPD no Brasil. Diz ele: ”Não existe no Brasil uma

organização solidária de alemães politicamente interessados, e nem pode haver

diante das leis vigentes.”

Em 1947, Keller continua a preocupar-se em prestar auxílio material a

antifascistas e a perseguidos do regime na Europa. No “Institut für

Zeitgeschichte” estão arquivadas cartas de agradecimento de várias pessoas e

organizações que receberam auxílio de Keller.

O balanço final que Keller faz de sua própria atividade política no Brasil é

melancólico. No currículo que prepara para o Instituto Nacional do Livro em

1956, Keller diz:

Dediquei os dez primeiros anos no Brasil, exclusivamente, ao combate ao nazismo, sacrificando os meus interesses pessoais e os interesses da minha família à política. Desiludido com o êxito da guerra, abandonei em 1946 todas as atividades políticas.

Keller é, sem dúvida, um político ativo e competente, profundamente

envolvido com a atividade antifascista e, se não obtém resultados melhores, não

é certamente por falta de empenho pessoal.

O grupo de Keller, de que faz parte o conhecido jornalista e desenhista

Gustav Epstein, não é o único a atuar no Brasil. O movimento de Kniestedt em

Porto Alegre é, na verdade, o primeiro movimento antifascista no Brasil. O

próprio partido nazista age no Brasil, sobretudo por meio dos diplomatas

alemães. Também a Schwarze Front (=Frente Negra), uma dissidência do

Partido Nazista tenta articular-se no país. A restrição do governo brasileiro à

entrada de comunistas resulta na presença de grupos mais conservadores. O

diretor teatral austríaco Karl von Lustig-Prean, por exemplo, alia-se a grupos

que pretendem o restabelecimento da monarquia na Áustria; em princípios de

1940, Lustig Prean cria o “Movimento dos Alemães Livres” e, já em 1946, é

fundada também a “Vereinigung der deutschen Sozialdemokraten”

(=Associação dos Socialdemocratas Alemães) da qual participa, entre outros, o

diretor teatral Hoffmann-Harnisch.

Page 30: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

30

Uma investigação mais detalhada das circunstâncias que envolvem os

exilados de língua alemã no Brasil mostra que é possível dividi-los em três

grandes grupos.

O mais numeroso, abrange aqueles perseguidos por motivos raciais e

religiosos, e seus parceiros de casamento não incluídos nessa categoria, mas

que, no entanto, seguiram seus companheiros no exílio. São pessoas de classe

média, empresários, comerciantes, profissionais liberais, funcionários que, de

repente, perdem seus empregos, têm seus passaportes cassados, vêem suas

propriedades ameaçadas de confisco e temem por sua integridade física. Patrik

von zur Mühlen, em seu livro anteriormente citado, avalia que 95% dos

emigrantes pertencem a esse primeiro grupo.

O sofrimento de milhares de pessoas perseguidas por motivos raciais e

religiosos, sua fuga atribulada e as circunstâncias do exílio sobrevivem em

depoimentos individuais e na memória dos seus protagonistas.

A fuga e o exílio de alguns grupos recebe um registro mais destacado,

como aquele grupo que se fixa na colônia agrícola de Rolândia, no estado do

Paraná, e também aquele liderado por Hermann Mathias Görgen.

Do grupo de Rolândia constam judeus, pessoas consideradas "não gratas"

pelo regime nazista, mas também católicos e luteranos.

O grupo trabalha num empreendimento idealizado pelos políticos Erich

Koch-Weser (1875-1944), fundador do Partido Democrático Alemão e ocupante

de cargos importantes na Alemanha até 1929, e Johannes Schauff (1902-1990).

Esse empreendimento é planejado já antes de 1933 com a finalidade de dar um

meio de subsistência aos alemães desempregados pela crise econômica de

1929/30, mas acaba tornando-se um importante centro de refugiados. O grupo

é composto, como vimos acima, de pessoas perseguidas por motivos raciais e

religiosos mas também de pessoas que, sem exercerem uma militância política,

se preocupam com os rumos do regime nazista e a ele se opõem por motivos

ideológicos. A história dessa colônia é contada por Ethel Volfszon Kosminky em

Rolândia, a terra prometida. A epígrafe do livro, através das palavras de uma

testemunha, lança alguma luz sobre o grupo: “O marido judeu, a mulher ariana

segundo Hitler e a babá que os acompanhou porque já estava há muito tempo

na família; um piano de cauda e milhares de livros.”

Page 31: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

31

Alguns desses imigrantes deixam sua experiência registrada em obras

que relatam o cotidiano do exílio no Brasil, como Rudolf Isay (1886-1956),

jurista e mais tarde professor em Bonn, em Aus meinem Leben (=Minha Vida),

de 1960; o também jurista Max Hermman Maier (1891-1976) e sua esposa

Mathilde Maier em, respectivamente Ein frankfurter Rechtsanwalt wird

Kaffeepflanzer in Brasilien (=Um advogado de Frankfurt se torna plantador

de café no Brasil, de 1975 e Alle Gärten meines Lebens (=Os jardins da minha

vida) de 1978, este último publicado também pela editora Massao Ohno, em

São Paulo, em 1981, e Karin Schauff com 3 livros: Ein Sack voll Ananas,

brasilianische Ernte (Um saco de abacaxis, colheita brasileira) de 1974, Das

Klingelband (=O cordão de sinos), de 1979 e Brasilianischer Garten. Bericht

aus dem Urwald (=Jardim brasileiro, relato da mata virgem) de 1983.

O grupo de Hermann Mathias Görgen compõe-se dos refugiados que,

entre 1940 e 1941, haviam procurado um abrigo inicial nos diversos países

europeus. Entretanto, a situação torna-se insustentável, não só pela expansão

da Alemanha nazista, mas também pela recusa dos países vizinhos em conceder

vistos de permanência aos refugiados ou até mesmo vistos de passagem. É nesta

atmosfera sufocante que um político pertencente à oposição católica na

Alemanha, Hermann Mathias Görgen (1908-1994), consegue agrupar 45

refugiados e remetê-los ao Brasil. Uma descrição da verdadeira epopéia que

envolve a viagem do grupo encontra-se no livro Exil in Brasilien (=Exílio no

Brasil) de Klaus Dieter Lehmann. No livro, a maioria dos participantes é

constituída de pessoas perseguidas por motivos raciais e religiosos. Fazem parte

desse grupo o escritor Ulrich Becher e sua esposa Dana, o político Johannes

Hoffmann e a romanista Susanne Bach. Ulrich Becher permanece no Brasil de

1941 a 1944, quando emigra para os Estados Unidos. Em 1948 retorna

definitivamente à Europa. No Brasil, Becher participa do grupo antifascista de

Keller. Deixa três obras inspiradas no exílio brasileiro: os dramas Makumba

(publicado primeiro com o título Der Herr kommt aus Bahia = O Senhor vem

da Bahia) e Samba, e a coletânea de poemas Brasilianischer Romanzero

(=Romanceiro Brasileiro). Hoffmann retorna à Europa em 1945. Em 1947

torna-se primeiro ministro do Sarre independente, renunciando ao cargo

quando o Sarre opta pela reintegração à Alemanha. Susanne Bach, aproveitando

sua formação como romanista e a experiência do trabalho em uma livraria no

Page 32: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

32

exílio francês, abre um antiquário no Rio de Janeiro, onde vive até 1983, quando

retorna definitivamente à Alemanha. Görgen torna-se professor em Juiz de Fora

e na Universidade Federal de Santa Maria. Após o retorno à Europa, onde vem a

falecer em 1997, mantém suas relações com o Brasil, na condição de dirigente da

Sociedade Brasil-Alemanha e do Centro Latino-Americano em Bonn, e edita até

sua morte em 1994, os Cadernos Germano-Brasileiros.

Outra parte do grupo Görgen estabelece-se em Juiz de Fora, onde monta

um estabelecimento industrial.

Um outro grupo, constituído de apenas algumas dezenas de pessoas,

deixa sua marca na cultura e ciência brasileiras. É o grupo dos intelectuais,

jornalistas e escritores, dos artistas, músicos e pintores, e dos cientistas que

participam da formação da Faculdade de Filosofia da Universidade de São

Paulo.

No artigo “Deutschsprachige Exilschriftsteller in Brasilien nach 1933”

(=Escritores de língua alemã no Brasil depois de 1933), publicado na revista

Língua e Literatura de 1976, Ray-Güde Mertin faz inicialmente um resumo da

problemática que envolve a literatura no exílio para, em seguida, relatar as

circunstâncias do exílio, o caminho de alguns exilados em particular, as

condições do exílio no Brasil e as dificuldades enfrentadas pelos exilados. De

acordo com suas próprias palavras, o texto limita-se a alguns nomes nos quais,

segundo a autora, as condições do exílio podem ser mais bem demonstradas.

Ray-Güde Mertin chega a conhecer pessoalmente Willy Keller, no Rio de

Janeiro, em 1974, ocasião em que este lhe comunica a impossibilidade de um

retorno à Alemanha, declarando: “Sou um emigrante nato, um retorno à

Alemanha seria impossível para mim. O que me liga à Alemanha é a língua.”

No artigo ”Autores alemães do exílio no Brasil” publicado na revista

Humboldt de 1985, Susanne Bach, ela própria exilada, fala de alguns

intelectuais de língua alemã exilados no Brasil, citando em especial Stefan

Zweig, Herbert Caro e Willy Keller. Mas, há também que considerar nomes

como os de Otto Maria Carpeaux e Anatol Rosenfeld, por exemplo.

Stefan Zweig, austríaco, exaustivamente estudado por Alberto Dines em

Morte no paraíso, chega ao Brasil em 1940, continua exercendo sua profissão

de escritor por algum tempo, mas não resiste ao exílio e suicida-se em

Petrópolis em 1942.

Page 33: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

33

Herbert Caro (1906-1991), alemão, jurista, chega ao Brasil em 1935. Em

1939, passa a trabalhar na famosa Sala dos Tradutores da editora Globo de

Porto Alegre, traduzindo literatura inglesa e, sobretudo, alemã. Entre outros

autores de primeira grandeza, traduz Thomas Mann. Entre 1957 e 1969, Herbert

Caro é responsável pela biblioteca do Instituto Goethe em Porto Alegre. Nesse

mesmo período, Willy Keller dirige o Instituto Goethe do Rio de Janeiro e, no

entanto, não se tem notícia até agora de intercâmbios ou contatos estabelecidos

entre ambos. Em Porto Alegre, Rosana J. Candeloro vem procedendo ao

levantamento do seu espólio. Parte de seu trabalho já se encontra acessível no

texto “Herbert Caro”, publicado em Cadernos Porto & Vírgula em Porto Alegre

pela Unidade Editorial em 1995.

O alemão Anatol Rosenfeld (1912-1973), chega ao Brasil em 1937.

Formado em filosofia, germanística e história pela Universidade Humboldt de

Berlim, atua, no Brasil, como jornalista colaborador da Folha de São Paulo e

como professor, tendo produzido muitos trabalhos sobre literatura alemã.

Otto Maria Carpeaux (1900-1978), austríaco, chega ao Brasil em 1939 e

fixa residência no Rio, na mesma época em que Keller também aí reside. Neste

caso, também não encontramos nenhuma informação que revele alguma

proximidade entre os dois. Sua obra é objeto da dissertação de mestrado Um

diálogo crítico. Otto Maria Carpeaux e as “ciências do espírito” apresentada à

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP por Maria do Carmo

Waizbort em 1992.

A cultura brasileira, até então muito dependente da cultura francesa,

abre-se com estes intelectuais também para a cultura da Alemanha e da Áustria.

Susanne Bach lembra que a literatura de língua alemã não era desconhecida no

Brasil, mas a falta de bons tradutores impedia uma maior difusão de suas obras.

Além dos intelectuais que acabamos de nomear paradigmaticamente,

cientistas perseguidos pelo regime nazista também encontram abrigo na recém-

fundada Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo e são tema do

artigo “Der Beitrag deutscher Wissenschaftler zum Aufbau der Philosophischen

Fakultät der Universität São Paulo (=A contribuição dos cientistas alemães para

a formação da Faculdade e Filosofia da Universidade de São Paulo), publicado

no Staden Jahrbuch de 1964 por Carolina Aust.

Page 34: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

34

Carolina Aust nasce em Straßburg em 1909, estuda francês, história e

germanística, doutora-se na Suíça e vem para o Brasil em 1936. É a um tempo

autora e personagem de seus textos, tendo convivido com muitos dos exilados e

partilhado de seus problemas e aflições.

Entre os cientistas refugiados no Brasil, está o seu próprio pai, o zoólogo

Ernst Ludwig Bresslau. Aposentado compulsoriamente na Universidade de

Colônia, Bresslau é contratado pela Universidade de São Paulo em 1934.

Permanece por pouco tempo no cargo, pois falece em 1936.

Outros cientistas contratados pela USP são os químicos Heinrich

Rheinboldt (1891-1955) e Heinrich Hauptmann (1905-1960), o botânico Felix

Rawitscher (1890-1957) e o também zoólogo Ernst Marcus, que sucede a

Bresslau.

Além de intelectuais e cientistas, há jornalistas, publicitários, artistas,

pintores e músicos que, como os intelectuais, têm suas obras destruídas e, sendo

impedidos de exercer suas atividades pelo regime nazista na terra natal,

procuram refúgio no Brasil. Dois textos sobre este grupo encontram-se à

disposição do leitor no livro de Izabela Kestler Die Exilliteratur und das Exil der

deutschsprachigen Schriftsteller und Publizisten in Brasilien de 1992, já

mencionado anteriormente, e o artigo “Musiker, Maler, Graphiker, Dichter,

Schriftsteller und Journalisten: ein Bericht über die deutsche Emigration

zwischen 1933 und 1946 nach Brasilien” de Caroline Aust, publicado no Staden

Jahrbuch de 1993. Na obra de Kestler, estão reunidos os resumos biográficos de

37 exilados, são relatadas suas atividades na política, no teatro, suas atividades

como jornalistas e escritores, comentadas as obras que escreveram no Brasil e

sobre o Brasil. O texto analisa ainda a posição brasileira em relação aos exilados

durante a era Vargas, de 1930 a 1945, as relações políticas e comerciais entre o

Brasil e a Alemanha que determinam esse posicionamento, a legislação

brasileira referente aos emigrantes e os fundamentos ideológicos dessa

legislação. Izabela Kestler chega a uma conclusão muito similar à de Tucci

Carneiro em O anti-semitismo na era Vargas de 1988, isto é, os exilados ficam

impiedosamente expostos à xenofobia e ao antissemitismo brasileiros. No artigo

de Caroline Aust há, sobretudo, lembranças pessoais dos artistas plásticos, dos

pintores, dos músicos, que conheceu pessoalmente.

Page 35: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

35

Há casos em que vários motivos se superpõem para levar as pessoas ao

exílio. São pessoas perseguidas ao mesmo tempo por sua atividade intelectual,

artística ou política, e também por razões religiosas e raciais. No caso específico

de Keller, há a considerar que ele é um adepto do teatro brechtiano, professa

uma ideologia de esquerda, nutre simpatias pelo partido socialista - o SPD - e

está ligado ao sindicato de classe. Sua mulher Ellen não satisfaz as leis raciais do

nazismo. Em 1935, as leis raciais de Nürenberg passam a proibir o casamento

entre alemães e judeus e permitem a anulação dos matrimônios mistos já

realizados. Há, como vemos, razões de sobra para fazer com que a família Keller

deixe o país.

Alguns aspectos distinguem o exílio no Brasil do exílio em outros países

sul-americanos, em especial, no México e na Argentina.

No Brasil, ao contrário dos países mencionados, não existem

organizações políticas fortes reunindo os exilados, a exemplo da “Freie

Deutsche” (=Alemães Livres) do México e “Das andere Deutschland” (=A outra

Alemanha) de Buenos Aires. O grupo de Friedrich Kniestedt em Porto Alegre e

o movimento antifascista de Willy Keller não passam de tentativas de organizar

movimentos antifascistas no Brasil. O movimento de Kniestedt, que tem a

colaboração de Keller, não atua além dos arredores de Porto Alegre, mesmo

publicando um boletim e usufruindo de contatos dentro do próprio consulado

alemão. É, assim, que consegue informações internas que acabam causando

profunda irritação aos diplomatas alemães, que se empenham, então, em tirar

de circulação o boletim.

As razões para a não existência de organizações políticas fortes, reunindo

os exilados no Brasil, assentam, por um lado, nas divergências ideológicas entre

os exilados e, por outro, na falta de interesse político da maioria deles. Há até

casos, como o de Richard Katz, em que o refugiado, num primeiro momento,

não consegue sequer assumir-se como tal. Seu exílio no Brasil é

eufemisticamente designado como mais uma das suas muitas viagens ao

exterior, no desempenho de sua profissão de escritor.

Os exilados no Brasil formam, assim, grupos heterogêneos com poucos

denominadores em comum: judeus, católicos conservadores, pessoas que

professam ideologias de esquerda, como o próprio Keller, e até mesmo

dissidentes do Partido Nazista, pertencentes à Schwarze Front (=Frente negra)

Page 36: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

36

de Otto Strasser. Atritos e divergências são comuns entre eles, e isso os

enfraquece.

Resumindo, pode-se dizer que divergências ideológicas, problemas do

cotidiano, a luta pela sobrevivência, as distâncias territoriais, a repressão das

autoridades brasileiras, a perseguição pelos diplomatas nazistas, o desinteresse

pela política em geral, a falta de apoio por parte das respectivas comunidades,

exceção feita à comunidade judaica que foi solidária com seus companheiros

exilados, e também o desejo de voltar ao país de origem, não faz dos exilados de

cultura alemã no Brasil um grupo solidário.

Durante os dez primeiros anos de vida no Brasil, Keller empenha-se

numa quase solitária luta contra o fascismo. Os colaboradores de que temos

notícia são poucos. Entre eles estão Kurt Übel e Hans Kegel. Isto cria uma

situação de confronto em bases muito desiguais, não só com os imigrantes mais

antigos, mas com seus próprios companheiros de exílio, a quem Keller chama

em diversas ocasiões de oportunistas e delatores. Sua posição ideológica é

rigidamente anti-nazista e ele mesmo coloca-se em suas próprias palavras "à

esquerda do Partido Comunista".

Se a atividade política dos refugiados não obtém repercussão no Brasil e

se os refugiados não alcançam reconhecimento por parte da Alemanha no

após-guerra, como opositores do nazismo, a influência dos refugiados nas mais

diversas áreas intelectuais, artísticas e científicas da cultura brasileira é, no

entanto, inegável, embora ainda aguarde investigação detalhada.

A volta ao teatro

Em 1941, Willy Keller está no Brasil há seis anos, reside no Rio de Janeiro

e seu filho tem onze anos. Está desempregado e é sua mulher que mantém a

família. Keller fica, então, incumbido dos afazeres domésticos, num momento

em que está desiludido com a falta de interesse político dos imigrantes e dos

exilados mais antigos ou mais recentes. É também em 1941 que os alemães

atacam navios brasileiros; o governo Vargas é cada vez mais pressionado no

sentido de declarar guerra aos países do eixo. Tropas americanas estacionam no

Page 37: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

37

Nordeste brasileiro em fins de 1941. A situação dos exilados de língua alemã vai-

se tornando mais difícil.

Movido por todos estes acontecimentos, preocupado em aprender a

língua portuguesa e sem ser capaz, apesar de tudo, de esquecer o teatro, Willy

Keller inscreve-se no Curso de Arte de Dizer e Interpretação, criado pelo Liceu

Literário Português no Rio de Janeiro. Sabe-se, então, pelo jornal A Noite de

21/12/1941 que Willy Keller consegue atuar, enfim, como ator. O jornal comenta

a encenação da Casa de Bonecas de Ibsen, no Teatro Ginástico, sob a direção de

Simões Filho, considerado um "perfeito técnico de cena e jornalista", em que

Keller faz o papel do Dr. Rank e seu desempenho é, assim, elogiado pelo jornal:

Dentre eles, cumpre destacar um fenômeno - Willy Keller - um alemão (não pertence ao Eixo; ça va sans dire...). Trata-se de um estrangeiro de belo talento artístico, e que se meteu na cabeça essa coisa comovedora para nós brasileiros: interessa-se tanto pelo estudo e conhecimento do vernáculo, que deseja ser comediante no idioma de Camões.

O teatro brasileiro abre finalmente as portas a Keller.

Em julho de 1941, Keller participa da encenação da peça O Infante de

Sagres de Jayme Cortezão, no Teatro da República, peça dirigida também por

Simões Filho. São dois espetáculos em favor da reconstrução da matriz da igreja

de Santo Antônio das Posses. Keller faz, aqui, o papel de Valarte, um nobre da

corte escandinava. Em outubro do mesmo ano, participa de uma demonstração

do curso, fazendo o papel de copeiro em um episódio de uma peça de Tristan

Bernard.

Em junho de 1942, Keller faz o papel de um gago, o Dr.Alvarenga, na peça

de Cristovam de Camargo, O mistério da casa verde, encenada no Teatro

Ginástico, novamente sob a direção de Simões Filho.

Em outubro de 1945, já é "diretor de cena e ensaiador" de um espetáculo

beneficente patrocinado pela Pequena Cruzada uma organização assistencial

católica, considerada de utilidade pública. A peça apresentada é um musical de

autoria de Gustavo A.Doria e Davy Rissin e tem a participação de personagens

da sociedade carioca.

Em 1946, Keller abandona a militância política, mas continua fiel às suas

idéias, pronto a defender seus pontos de vista sempre que existe uma

oportunidade.

Page 38: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

38

A Segunda Grande Guerra termina em maio de 1945; Getúlio Vargas é

deposto no mesmo ano. Em fins de janeiro de 1946, o general Eurico Gaspar

Dutra assume a Presidência da República, é verdade que com o apoio de Vargas,

que por sua vez é empossado como senador pelo Rio de Janeiro.

A esta altura, alguns dos exilados já emigraram para outros países ou

retornaram à Alemanha. Ulrich Becher vai para os Estados Unidos em 1944;

Kniestedt, com quem Keller já havia rompido, morre em 1947; outros retomam

suas atividades políticas ou profissionais na Europa. Em 1971, na entrevista a

Werner Röder do “Institut für Zeitgeschichte” de Munique, Keller recorda a

situação: “Quando a pressão da imigração cessou, eles (os imigrantes) voltaram

à sua vida privada como seres humanos, que foram banidos de sua pátria,

contra sua vontade e que não tinham propriamente ambições políticas.

À mudança política no Brasil não correspondem, porém, mudanças

significativas quanto à situação dos imigrantes. Respondendo, em maio de 1971,

a uma em forma de questionário montado pelo “Institut für Zeitgeschichte”

Keller diz:

É indiscutível, que a emigração não terminou em 1945. De acordo com as condições locais e políticas dos países de imigração esse fim deve ser fixado para uma data posterior. O dia D no Brasil seria o ano de 1956. Só neste ano o Ministério do Exterior acreditou não haver restrições políticas à criação do Instituto Cultural Brasil-Alemanha.**

É também nessa época que Keller se interessa em participar do teatro

brasileiro do círculo dos exilados/imigrantes de cultura alemã que permanecem

no Brasil. Liga-se, então, ao grupo teatral de Hoffmann-Harnisch, fundado no

Rio de Janeiro, no qual atuam Wolf Harnisch, filho do fundador, e o ator

Werner Hammer, e passa a dirigir algumas peças durante a década de 40, como

por exemplo, Deus lhe pague de Joracy Camargo, por ele mesmo traduzida

como Vergelt’s Gott - Bettlerkomödie. Trata-se de um grupo teatral que se

empenha em oferecer a um público selecionado - os exilados e imigrantes de

língua alemã - peças brasileiras e de outras nacionalidades, faladas em alemão.

Todavia, em 1948, quando dirige Deus lhe pague, Keller e Werner

Hammer já estão separados do grupo de Hoffmann-Harnisch, devido a

divergências políticas. Os dois atuam, agora, com um grupo próprio que se

mantém até 1957.

Page 39: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

39

Apesar de ver no teatro uma fonte de divertimento, Keller não deixa de se

mostrar preocupado com os objetivos políticos e sociais das peças de que

participa, deixando entrever a influência de Piscator e de Brecht, seus

contemporâneos em Berlim até a emigração deles em 1933. Keller define, assim,

seu ponto de vista: “Eu achava que um teatro de emigrantes que representa para

emigrantes não podia fingir que nada havia acontecido entre 1933 e 1945.” 7

Isto também leva a crer que Keller faz uso do teatro como instrumento de

luta antinazista. No entanto, não se dispõe ainda de nenhuma investigação que

avalie, por exemplo, as interferências de Keller, quer na tradução das peças

brasileiras para o alemão, quer na sua atuação como dirigente teatral, quer

como ator, no sentido de lhes atribuir mensagens políticas de esquerda.

Em carta de outubro de 1957 endereçada a Becher, Keller menciona ainda

outras peças que teria encenado, como por exemplo, Witwe jedoch ehrenhaft

(=Viúva, porém honesta) de Nelson Rodrigues. Outras três peças, Der Fall

Pinedus (=O caso Pinedus) de Paolo Levy, Sturm im Wasserglas (=Tempestade

no copo d´água) de Bruno Frank e Der Regenmacher (=O fazedor de chuva)

de autor não identificado, são referidas apenas pelo título, sem outras

explicações. Em homenagem ao centenário da morte de Joseph von

Eichendorff, Keller encena ainda em 1957, para um clube do Rio, o "Clube Beira

Mar", a peça Die Freier (=Os pretendentes), gratuitamente, como escreve a

Ulrich Becher .

É nesta mesma década de 40 que Paschoal Carlos Magno indica o nome

de Keller para dirigir o Teatro Experimental do Negro, fundado em 1944 por

Abdias do Nascimento. Keller permanece com o grupo pelo menos até 1947.

Em 1951, Henrique Pongetti sugere o nome de Keller para dirigir

Manequim no Teatro Copacabana. Este espetáculo leva, por sua vez, Waldemar

de Oliveira a convidar Keller para dirigir também o Teatro de Amadores de

Pernambuco.

Desta maneira, o teatro volta a existir na vida de Keller.

A vida sorri enfim para Keller

7 Apud Izabela Kestler, p.165.

Page 40: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

40

Ao deixar a Alemanha Keller perde definitivamente seu país. Em

entrevista a Vivian Wyler, encontrada num recorte de jornal brasileiro sem

identificação e data, no espólio do tradutor, Keller, assim, se refere à sua

emigração:

Quando cheguei, estava de passagem. Tinha saído de uma Alemanha onde circulavam idéias com as quais eu não concordava. Cheguei a um país que desconhecia e ao qual não me apeguei, na certeza da volta. Veio a guerra. A reviravolta na minha vida, a contingência de ter que começar tudo de novo. Homem de teatro lá, fiz teatro aqui no Rio, em Pernambuco e em Alagoas.

A relação de Keller com o Brasil é de início ambígua: fala na certeza da

volta, certeza destruída pela guerra. Entretanto, esforça-se para aprender a

língua portuguesa, tomar contato com o teatro brasileiro, com a vida intelectual

brasileira. Afinal, em 1955 faz uma viagem à Alemanha e permanece por 10

meses no país.

De volta ao Brasil, publica o artigo "Cinema e Realidade" no Jornal de

Letras de novembro de 1955, em que defende a necessidade de se divulgar a

cultura brasileira, de se promoverem exposições com os nossos pintores, de se

traduzirem as obras de nossa literatura, de se levar a música do país ao exterior,

de se mobilizarem os bons ensaístas para que expliquem nossa sociedade, isto é,

para que falem das razões sociais e culturais que subjazem à arte brasileira. O

artigo termina com a seguinte frase de Keller: “A vida no Brasil é, apesar de

tudo, mais de acordo com o verdadeiro destino do homem. E isto se reflete na

sua arte.”

Em outra ocasião, voltando de Fortaleza a bordo de um Caravelle, Keller

dá uma entrevista sobre o Brasil e seu teatro ao crítico Van Jafa que a publica no

Correio da Manhã de 04/06/67 com o título “Willy Keller confidencial”. Diz ele:

O Brasil não foi só o país que me acolheu numa situação difícil como também uma grande experiência. Deu-se aqui que eu tive contato algo violento com o mundo românico. Aqui eu aprendi uma segunda língua e seus fenômenos, sob dois ângulos lingüísticos diferentes. Se eu quero fazer comparação então eu deveria dizer que eu estava cego de uma vista, que somente com a aprendizagem da língua portuguesa eu recuperei a outra vista. Em vez de pensar linearmente, comecei a pensar plasticamente. [...] Durante longos anos eu vivi no Brasil na

Page 41: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

41

plena miséria intelectual até que o teatro me devolveu aquilo que eu quero denominar 'minha dignidade'. Foi Henrique Pongetti que me convidou para dirigir Manequim (1951, Teatro Copacabana) e esta representação representava uma reviravolta na minha vida. Em conseqüência deste espetáculo recebi um convite de Waldemar de Oliveira para dirigir o Teatro de Amadores de Pernambuco (em seu currículo Keller menciona também o Teatro Universitário). Foi naquela ocasião que eu cheguei a descobrir o Nordeste do Brasil que eu considero a minha segunda terra. [...] Foi em Recife que eu me encontrei de novo e daqui em diante o destino deixou de fazer caretas para mim e começou a sorrir. Dirigi durante alguns anos espetáculos teatrais no Rio de Janeiro e, principalmente, no Nordeste.

Graças às indicações de Henrique Pongetti e Waldemar de Oliveira, o

nome de Keller integra-se ao cenário teatral.

A Maceió, Willy Keller chega a viajar três vezes: a primeira em 1954,

integrando uma equipe do Ministério de Educação e Cultura para proferir

conferências sobre teatro; a segunda vez em 1955, convidado pela então

primeira dama do estado, Leda Collor de Mello, para dirigir o Teatro de

Amadores de Maceió - o TAM, e a terceira em 1956, para voltar a dirigi-lo.

Keller dirige, aqui, três peças: Pluft, o fantasminha de Maria Clara Machado;

Amanhã, se não chover de Henrique Pongetti e Os inimigos não mandam

flores de Pedro Bloch. Ainda em Maceió, Keller profere a palestra "Shakespeare

e a juventude brasileira" inaugurando, a 9 de março, o Teatro Universitário de

Maceió.

Também em 1955, Keller recebe em Natal a Medalha de Prata como

melhor diretor de peça de autor nacional no Festival Nortista do Teatro

Amador. No ano seguinte, 1956, recebe em Recife a medalha de ouro de melhor

diretor no Festival do Teatro Amador com a peça Pluft, o fantasminha.

Em 1956, Keller encena uma peça com o grupo Eva e seus artistas que

fica em cartaz, no Rio de Janeiro, por 4 meses. Esta temporada longa ilustra o

sucesso comercial da peça, embora Keller a considere sem valor. Keller dirige

ainda as peças Amigo da onça de Bekeffi e Stella e A mancha de Pedro Bloch.

Em carta a Ulrich Becher, datada de 24 de outubro de 1956, queixa-se, no

entanto, de problemas financeiros e da interferência de outros diretores no

Teatro Amador de Maceió.

Em 1957, Keller é nomeado primeiro diretor do Instituto Goethe do Rio

de Janeiro e o tempo para dedicar ao teatro fica escasso.

Page 42: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

42

Mas em 1957 e 1958, Keller consegue ainda dirigir duas peças de Nelson

Rodrigues: Viúva porém honesta, em 13/09/57 no Teatro São Jorge do Rio de

Janeiro, e Os sete gatinhos, em 17/10/1958 no Teatro Carlos Gomes também no

Rio de Janeiro. Na revista SBAT de julho/agosto de 68, na página 31, o autor

Nelson Rodrigues agradece a Willy Keller: “A Willy Keller, diretor de Os sete

gatinhos, e criador de um espetáculo maravilhoso de compreensão e fidelidade

do espírito da peça. Grande amigo, grande diretor, grande artista, grande

homem de teatro.”

Em 1957, o jornal O Globo escolhe Keller como um dos "Cariocas

Honorários" do ano, devido aos relevantes serviços prestados ao teatro e à

literatura brasileira. Keller agradece com uma carta bem humorada, irônica ou

talvez reveladora de sua modéstia, que o O Globo publica em primeiro de

fevereiro de 1957 :

[...] Fazemos um exame de nossos atos para descobrir as razões que levaram os responsáveis pelo O Globo a escolher o nosso nome, exatamente o nosso, enquanto havia centenas de outras pessoas, entre os estrangeiros residentes no Rio, muito mais em evidência do que nós. E sentimos o rubor da vergonha subir às nossas faces, porque aqueles que conhecem tão bem os nossos méritos, devem conhecer também nossas falhas, nossos fracassos. Quer dizer: no ato de julgar o nosso procedimento cívico e intelectual, pessoas bondosas e compreensivas descobriram que as nossas virtudes prevaleceram sobre nossos pecados. É comovente saber que nossa contribuição para o aperfeiçoamento do teatro brasileiro não passou despercebida e que os nossos esforços em prol de uma aproximação cultural mais íntima entre os povos não foram em vão.

O trabalho de Keller no teatro brasileiro é, assim, reconhecido através de

medalhas, do título de cidadão carioca e de elogios publicados em jornais.

Às vezes o trabalho não anda como Keller deseja e ele se queixa ao amigo

Ulrich Becher. Na carta de 24 de outubro de 1956, em que fala de problemas

financeiros e da interferência de terceiros que perturbam seu trabalho com o

Teatro Amador de Maceió, a linguagem é veemente:

Meu trabalho 'artístico' aqui no Brasil é o de carregador de adubo, daquele que revira a terra seca, e a do semeador, onde o futuro e as características da paisagem tropical se reservam o direito de fazer nascer as ervas daninhas, onde semeamos trigo, e matagal intransponível onde pensávamos ter semeado flores.

Page 43: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

43

A crítica severa também se estende à própria atividade, como se

depreende da carta de 19 de março de 1959 a Ulrich Becher: “Continuo a viver a

minha vida de estelionatário intelectual, enfiando todas as manhãs a mão na

caixa vazia para emprestar algo e poder continuar vivendo acima das minhas

possibilidades.”

As atividades de Keller no teatro, no entanto, não cessam. Em 1959

recebe, junto com Luis de Lima, o prêmio de melhor professor de teatro como

noticia o Jornal do Comércio em 13/12/1959. Sobre esta premiação escreve a

jornalista e atriz Luiza Barreto Leite no Jornal do Comércio de 18/12/1959:

[...] Willy Keller e Luis de Lima, demasiado conhecidos e admirados no meio de teatro para precisarem de qualquer apresentação, se bem que sua extraordinária contribuição à cultura de nossos estudantes de arte dramática, sobretudo quando trabalharam de comum acordo na escola do Duse, não tenha infelizmente, durado sequer o tempo indispensável à formação de uma turma e, por conseguinte, à comprovação pública de sua eficiência. Mas quem acompanhou suas aulas, tão diversas na forma, quanto semelhantes na essência, tendo oportunidade de assistir, em Pernambuco, à demonstração dos alunos formados em dois escassos meses aqui no Rio, ou quem como eu, obtivera a graça de ser assistente de Willy Keller em um esplêndido curso Shakespeariano organizado por Santa Rosa, no Conservatório de Teatro, durante umas férias memoráveis, não lamentará jamais o suficiente que o Brasil não saiba aproveitar em definitivo mestres de tal categoria.

No entanto, Keller não vive só de teatro e do Instituto Goethe. A partir da

década de 50, passa a dedicar-se também, e intensamente, à tradução não mais

só de peças teatrais, mas também de poesias e de ficção.

A viagem à Alemanha. Encontro com Brecht

Em 1955, como vimos, Keller viaja à Alemanha, na condição de delegado

da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, após uma ausência de 20 anos.

Quando fala dessa viagem transparece o seu desencanto:

Voltei à Alemanha depois de vinte anos de ausência. Quero advertir as más línguas: não houve choque emocional, nem lágrimas. Entrei em terras germânicas com os sentimentos bem controlados, o coração batendo normalmente. Por fim, não foi a saudade a razão da minha

Page 44: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

44

viagem. Viajei como delegado da Sociedade Brasileira de Autores e Compositores Teatrais para reatar relações com a Associação Alemã dos Autores e Compositores Teatrais, que foram interrompidas em conseqüência da última guerra. Deixei a Alemanha há muitos anos em protesto a um regime desumano, quando não havia mais outras possibilidades de salvaguardar a minha integridade física e intelectual e voltei agora trazendo a paz e a confraternização que os autores teatrais brasileiros ofereceram aos seus colegas alemães. [...] Percorri diversas cidades nestes primeiros quinze dias, Düsseldorf, Frankfurt, Mannheim, Heidelberg, Stuttgart, em busca de um mundo perdido, mas não encontrei nada daquilo que excitava minha imaginação. Tudo era diferente: cidades novas, distâncias mais curtas, todo mundo falava o alemão, o ar mais leve, o trânsito silencioso e poucos amigos e parentes, muito poucos. Uma pequena parte deles se foi com endereço desconhecido. Não deixaram nem um túmulo para registrar sua passagem pela vida. Ainda tenho impressão de ser uma sombra que se move entre seres, aparentemente, vivos.8

A viagem prolonga-se por 10 meses até o inicio de 1956. Keller é reticente

quanto aos motivos dessa estadia mais prolongada, mas é provável que

procurasse bases para alicerçar um desejado intercâmbio artístico entre os dois

países.

Na Alemanha, Keller corresponde-se, entre 08/02 e 13/03 de 56, com

Ulrich Becher, primeiro em Nova York e depois já em Basiléia. As cartas trazem

o registro de Augsburg e Mannheim. Keller fala da estréia de uma peça a que

assistiu em Augsburg no Teatro Municipal da cidade e expressa seu desejo de

encenar Samba de Becher em Baden-Baden. Faz menção a um artigo sobre

teatro brasileiro escrito para uma revista de Berlim Oriental, Theater der Zeit.

Deixa endereços onde pode ser alcançado, enquanto continua viajando pela

Alemanha: o de Fritz Keller em Mannheim e o de Hans Gossler em Freiburg

que, segundo o neto também é parente, e registra também uma visita a uma

irmã de sua mãe em Kandern.

A viagem serve, portanto, também para encontrar parentes, reatar velhos

laços. É possível que Keller tenha procurado editoras interessadas nas suas

traduções para o alemão de peças brasileiras; é possível também que, nesta

ocasião, tenha feito contato com o Instituto Goethe em Munique.

Keller passa algumas semanas em Berlim. Faz longos passeios pela

cidade, especialmente por Berlim Oriental. O muro ainda não existe, será

construído em 13 de agosto de 1961 e a comunicação é fácil entre as duas zonas

da cidade. Suas impressões estão registradas no artigo “Uma poesia

8 KELLER, Willy- A procura da nova literatura alemã. Jornal de Letras, VII,75, Rio de Janeiro 1955.

Page 45: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

45

desconhecida de Bert Brecht”, publicado na revista Humboldt 7 de 1967, do qual

extraímos o seguinte trecho:

[...] a maioria das pessoas cultiva uma espécie de heroísmo passivo. Praticamente não há ninguém que não se tivesse distinguido por um ato de bravura moral. Com este narcótico procura-se paralisar a consciência torturada e encontrar a paz de alma tão ardentemente desejada.

Mas Keller quer conhecer a nova literatura, o novo teatro alemão. Seus

passeios acabam quase sempre nas livrarias da Friedrichstraße e no teatro do

Schiffbauerdam, fundado por Brecht em 1948. Os nomes que surgem são,

porém, já seus conhecidos de antes da guerra: Thomas Mann, Kassak, Kreuder,

Zuckmeyer, Brecht.

No teatro encontra velhos amigos em especial Karl von Appen, um dos

cenógrafos de Brecht e também o próprio Brecht. Deste encontro Keller diz, no

artigo acima citado: “ Não houve perguntas sobre o passado, ou sobre o destino

pessoal.”

É no “Schiffbauerdamm” que atua, desde 1948, o “Berliner Ensemble”

dirigido por Brecht e sua esposa, a atriz Helene Weigel (1900-1971). Keller havia

traduzido a peça de Antônio Callado, A última experiência e a entrega a Brecht.

Este devolve-a já no dia seguinte com o comentário: “Bravo, os brasileiros

descobriram Ibsen.”

Keller está nesta época também traduzindo poesias de poetas brasileiros

contemporâneos e entrega os trabalhos a Brecht, acreditando que sobretudo

Carlos Drummond, uma voz irmã, nas palavras de Keller, deveria interessá-lo.

Mas Brecht apenas devolve a tradução de um poema de Domingos Carvalho da

Silva intitulado Lírica, repleta de modificações.

O tom de Keller é nostálgico quando afirma, ainda no mesmo artigo: “Eu

[...] perdera como emigrante o teatro como profissão, mas continuava

inquebrantável sua força de atração sobre mim.”

Na carta de 8 de fevereiro de 1956 a Ulrich Becher, Keller ainda em

Augsburg, comenta seu desejo de voltar logo ao Brasil pois não suportaria uma

segunda emigração. A hipótese teria sido considerada?

Keller deve também ter ficado decepcionado com a falta de

reconhecimento que tiveram na Alemanha todos aqueles que combateram o

Page 46: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

46

nazismo dentro ou fora do país. Hans Albert Walter, em Deutsche Exilliteratur:

1933-1950, à página 9, assim, comenta a situação:

A resistência antifascista dos exilados não só não recebeu o merecido reconhecimento público, como ainda foi menos reconhecida do que a oposição interna ao nacionalsocialismo - lembremo-nos das discussões sobre a legitimidade do atentado de 20 de julho de 1944 que se prolongaram por anos.9

Keller volta ao Brasil, a família já está integrada ao país. Em 1959 Keller é

o avô feliz de dois netos. Em carta a Becher, datada de 19 de março desse ano,

escreve : “... e se eu pudesse escolher uma profissão, seria a de avô, somente

avô”.

O Instituto Cultural Brasil-Alemanha no Rio de

Janeiro

O Diário de Notícias do Rio de Janeiro, de 18 de abril de 1957, traz uma

manchete anunciando a fundação da Sociedade Cultural Brasil-Alemanha:

”Maior aproximação cultural entre o Brasil e a Alemanha”. Trata-se de um

artigo de Keller, enquanto diretor e secretário executivo da associação. Diz ele:

Agora, no Brasil, voltando do Norte, onde estive fazendo teatro, com amadores de Maceió, surpreendi-me com um delicioso titulo de 'Cidadão Carioca' e, em seguida, com o convite para secretário, cargo executivo da recém-criada Associação de Cultura Alemã Brasileira.

O jornal O Globo de 14/06/1957 também publica a manchete: “Unir

Brasil e Alemanha pela ciência e cultura” e fala da inauguração do Instituto

Cultural no dia anterior com a presença do embaixador alemão Werner

Dankwort, do presidente do Instituto - Ministro Mota Filho - e de Willy Keller.

Em 27 de setembro de 1958, o Ministério da Justiça reconhece o Instituto como

de utilidade pública. Keller dirige a associação, mais tarde chamada Instituto

Goethe, até 1969. 9 Walter, Hans Albert. Deutsche Exilliteratur: 1933-1950. Darnstadt e Neuwied,Hermann Luchterhand,

1972.

Page 47: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

47

Durante sua gestão de doze anos, Keller tem oportunidade de aplicar as

idéias didáticas que tem sobre o teatro à programação do Instituto, e também de

se dedicar à música, pois essa é a saída para “um homem sobrecarregado de

trabalhos que nem sempre [lhe] agradam]”, diz ele, na entrevista de 04/06/67

ao Correio da Manhã, que se “as circunstâncias que [o] castigaram muito

tivessem um pouquinho de compaixão [com ele] permitiriam que [ele] voltasse

mais uma vez ao teatro”.

No primeiro ano da atividade efetiva, 1958, é inaugurada a biblioteca do

Instituto e é iniciada uma atividade intensa. Neste ano, o evento mais

importante é a exposição do Balé Triádico de Oskar Schlemmer (1888-1943),

pintor e artista gráfico, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Keller

organiza a visita de vários grupos à exposição, produz um texto informativo

sobre o mesmo e ainda escreve um ensaio sobre esse tema, publicado no

Correio da Manhã do Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 1958. O

envolvimento intenso com as coisas que faz é uma das características de Keller.

Keller viaja pelo Brasil, profere palestras nos Institutos Goethe de Porto

Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife, São Paulo, atende a convites de

universidades e associações culturais. Convida intelectuais e cientistas

brasileiros e estrangeiros para falar no Instituto Goethe do Rio. Dedica especial

atenção à música e ao teatro: convida grupos musicais e teatrais estrangeiros

para o Brasil e procura difundir a música brasileira no exterior.

No dia 4 de janeiro de 1970, O Estado de São Paulo noticia que Keller

recebe o prêmio Estácio de Sá de música erudita, conferido pelo Museu da

Imagem e do Som do Rio de Janeiro, por ter promovido a participação de

músicos estrangeiros no Ciclo Bach e pelo seu empenho em difundir a música

brasileira na Europa.

Keller vai conhecendo, assim, o Brasil, convivendo com intelectuais

brasileiros, dominando a língua portuguesa e, enfim, é quase um brasileiro.

Page 48: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

48

Um parêntese:

qual o perfil ideológico de Keller?

Não encontramos evidências de uma militância política de Keller na

Alemanha a não ser uma referência às suas ligações com a SPD, o Partido

Socialdemocrata Alemão e a sua atividade no sindicato teatral.

Keller fala de uma ordem de prisão contra sua pessoa em 9 de novembro

de 1934, de processos em Osnabrück e Berlim, de buscas que a GESTAPO faz

em sua casa. A ordem de prisão é expedida em seguida à encenação de uma peça

em Berlim (Die Kukuckseier = Os ovos do cuco, de Wolfgang Götz). A mulher de

Keller, Ellen, menciona denuncias de um colega invejoso diante do sucesso da

peça.

Em junho de 1933 o SPD é extinto e muitos de seus membros são presos.

Qualquer oposição ou discordância ao regime, por mais frágil, poderia resultar

em perseguições. Denúncias estão na ordem do dia.

Os problemas relativos à ascendência judia de Ellen pesam na decisão de

emigrar, tanto quanto os eventuais problemas políticos de Keller.

A impressão que fica dos relatos de Keller e de outras testemunhas é que

Keller só passa a envolver-se em atividades políticas no Brasil, quando encontra

Kniestedt em Porto Alegre. Mesmo assim, Keller não reconhece, nem na

organização comandada por Kniestedt nem na sua própria, qualquer

importância maior.

Na atrás mencionada entrevista a Werner Röder do “Institut für

Zeitgeschichte” Keller pronuncia-se a respeito de sua posição ideológica e

coloca-se à esquerda do Partido Comunista; discorre também sobre as

influências que havia sofrido e dos contatos que havia tido. Não se fica a saber,

porém, da natureza desses contatos, assim como também não se fica sabendo se

se trata de relacionamentos de amizade ou profissionais, se houve atividades

isoladas ou projetos comuns.

Faz menção a Marx, cujas teses econômicas não considera superadas em

1971 e depois tece considerações sobre outras influências: Dostojewski e Kafka

Page 49: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

49

e, também, Hermann Hesse, resumindo: ”A quintessência tornou-se para mim

um pensamento humanista ao qual permaneci fiel toda a minha vida.

Outros nomes são lembrados: Franz Pempfert (1879-1954), jornalista,

comunista, exilado que faleceu no México; Herwarth Walden, pseudônimo de

George Lewin (1878-1941), desaparecido na URSS durante a 2ªGuerra,

negociante de arte, escritor e músico, fundador da revista Der Sturm (= A

Tempestade), difusora do expressionismo; Karl Kraus (1874-1936) , jornalista,

fundador da revista Die Fackel (A Tocha ), crítico severo da enganosa moral

burguesa.

São, no entanto, as relações de Keller com August Siemsen, a figura

central do movimento antifascista na Argentina, que talvez possam contribuir

melhor para esclarecer o perfil ideológico de Keller.

Na América Latina apenas duas organizações antifascistas, formadas por

refugiados de língua alemã, têm repercussão além de seus países de origem. No

México, é a organização “Freies Deutschland” (= Alemanha Livre) totalmente

dominada por comunistas alemães, funcionários da KPD (Kommunistische

Partei Deutschlands = Partido Comunista Alemão) e funcionários do

“Komintern” ( Internacional Comunista). Keller cita os nomes de alguns de seus

participantes entre suas relações, mas não encontramos registro de um contato

de Keller com esse grupo, nos documentos a que tivemos acesso. Na Argentina

é fundado em 1937 o movimento “Das andere Deutschland” (= A outra

Alemanha), organizado como uma ampla coligação entre comunistas e as mais

diversas tendências socialistas.

Ao lado de sua participação no movimento de Kniestedt, Keller mantém

um relacionamento estreito com o movimento “Das andere Deutschland”

(DAD), sobretudo, com seu líder, August Siemsen. É essa organização que serve

de modelo para Keller quando este cria seu próprio movimento e seu boletim

informativo.

O pedagogo August Siemsen nasce na Alemanha em 1884. Já durante a

República de Weimar desenvolve uma intensa atividade política: em 1919 é

vereador em Essen pelo SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands =

Partido Socialdemocrata da Alemanha). Em 1921 é condenado a seis meses de

prisão por sua participação num conselho operário. Trabalha como professor e

dirige duas revistas socialistas Sozialistische Kultur (Cultura Socialista) e

Page 50: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

50

Sozialistische Erziehung (Educação Socialista) e participa de várias iniciativas

para um ensino não autoritário. Em 1931 elege-se membro do Parlamento do

Reich pelo SPD. Ameaçado pelos nazistas, refugia-se em 1931 na Suíça. Em 1936

vai para Buenos Aires como professor da Escola Pestallozzi.

Em 1937 Siemsen funda, junto com outros imigrantes, a organização

“Das andere Deutschland” = DAD que, a partir de maio de 1938, publica um

informativo com o mesmo nome. Inicialmente apresentado na forma de um

folheto mimeografado, o informativo chega a atingir uma edição de 4 a 5.000

exemplares e é distribuído por toda a América Latina e até mesmo na América

do Norte. O DAD, como já mencionado, é uma coligação entre comunistas,

socialistas, socialdemocratas e mesmo burgueses progressistas. Siemsen é o

líder do movimento, seu inspirador e também o responsável pelo informativo.

Segundo Eisenbürger o movimento estava aberto às mais variadas tendências, e,

baseado num socialismo não definido de forma detalhada, pretendia praticar

um humanismo socialista. O antinazismo e a postura humanista parecem ser as

principais afinidades entre Keller e Siemsen.

O boletim informativo da DAD deixa de chegar ao Brasil com a entrada

do país na guerra e isso motiva Keller a produzir seu próprio informativo.

A subordinação dos comunistas aos fins políticos específicos da URSS,

deixando de lado o principal objetivo do DAD e de Keller, que é o combate ao

nazismo, leva ao rompimento entre eles e o DAD e a uma situação de conflito.

Tanto Siemsen como Keller sempre tiveram a preocupação de manter unidos os

partidos de esquerda. Em 1943, na Conferência de Montevidéu a que

compareceram 40 delegados, entre eles Kniestedt, o DAD tenta mais um vez

preservar essa união das esquerdas, sem resultado. A recusa em aceitar a

liderança autoritária dos comunistas e uma subordinação aos interesses

políticos mais imediatos da União Soviética é mais um ponto em comum entre

Keller e Siemsen: socialistas, mas não comunistas, uma postura antes de tudo

humanista.

Siemsen retorna à República Federal da Alemanha em 1952. Desiludido

com os rumos do país vai, em 1955, para a República Democrática Alemã onde

morre em 1958.

Além de seu relacionamento com Kniestedt e Siemsen, Keller mantém

uma longa amizade com o escritor Ulrich Becher (1910-1992).

Page 51: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

51

Não há registro de uma atividade política de Becher na Alemanha. A

informação de que seus livros foram queimados pelos nazistas carece, segundo

Izabela Kestler, de comprovação e Becher nunca perdeu a cidadania alemã.

Talvez o fato de Becher ser um escritor ainda pouco conhecido na época, fez com

que os nazistas não dessem atenção aos seus textos antimilitaristas e

anticapitalistas.

Em 1934 Becher casa-se com Dana Roda-Roda filha do jornalista e

escritor austríaco Alexander Roda-Roda. Tenta emigrar para os Estados Unidos

mas não é bem sucedido e, em 1941, o casal vem ao Brasil junto com o grupo

Görgen. Em 1944, graças à influência de Alexandre Roda-Roda, o casal Becher

consegue finalmente ir para os Estados Unidos. Em 1948 Becher volta

definitivamente para a Europa.

No Brasil Becher participa do movimento antifascista de Keller e planeja,

junto com Keller, organizar uma biblioteca antifascista. O único texto publicado

por essa biblioteca, como se viu acima, é uma obra do próprio Becher, Das

Märchen vom Räuber der Schutzmann wurde (O conto do ladrão que se tornou

policial) uma alusão aos nazistas e a Hitler. Esta é, possivelmente, a única obra

em língua alemã publicada no Brasil neste período. Becher escreve também para

os informativos antifascistas do México e da Argentina.

Entretanto, enquanto Keller se torna um admirador do Brasil e um

importante mediador cultural entre o Brasil e a Alemanha, Becher tem uma

relação ambígua com o país, escrevendo textos condescendentes ou pejorativos

sobre o país. Enquanto Keller é um ativista político que dedica muito de seu

esforço à luta antinazista, Becher é antes de tudo escritor e é nesse campo que

talvez se situe o relacionamento entre ambos, um relacionamento que sobrevive

à distancia no tempo e no espaço, pois continua mesmo com Becher vivendo nos

Estados Unidos e na Europa.

No fim da guerra Keller tenta ainda uma aproximação com o SPD, mas

em 1946 acaba abandonando toda atividade política, decepcionado com o que

chama de o êxito da guerra.

Fica evidente que Keller cultiva uma posição radical de esquerda, é

inflexível em suas crenças, seus princípios éticos e morais, mas nem por isso

deixa de ser um homem profundamente humanista, um admirador de Brecht,

olhando sempre para os oprimidos, os mais desvalidos, para os marginalizados,

Page 52: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

52

deixando para a posteridade um exemplo de vida íntegra e extremamente

produtiva na área das relações culturais Brasil-Alemanha. O Brasil teve em

Keller um verdadeiro amigo.

II PARTE

Os boletins da “Notgemeinschaft der

Deutschen Antifaschisten”

Em 1943, já definitivamente estabelecido no Rio de Janeiro, Keller funda,

como se viu, seu próprio movimento antifascista, denominado

“Notgemeinschaft der Deutschen Antifaschisten” (Associação de Emergência

dos Antifascistas Alemães) e passa a editar um boletim que chama de circular

(Rundschreiben) ou carta (Brief). O boletim e o movimento são criados na

esteira da organização “Das andere Deutschland” (=A outra Alemanha), de

Buenos Aires. Uma informação mais detalhada sobre essa organização e seu

fundador August Siemsen foi dada no capítulo “Um parênteses: qual o perfil

ideológico de Keller?” A partir do boletim nº 10, datado de julho de 1945, Keller

coloca no cabeçalho da sua publicação a observação “fundada em 1935”. Como

Keller chega ao Brasil nesse ano e, logo, se associa à organização antifascista de

Kniestedt em Porto Alegre, fica a impressão de que, com essa observação, Keller

pretende enfatizar sua presença no movimento citado.

No arquivo do ”Institut für Zeitgeschichte”, de Munique estão 16 boletins

produzidos por Keller, numerados de 1 a 17 e uma edição especial, sem número.

Faltam os números 6 e 14. No arquivo há, além disso, dois impressos especiais

destinados à imprensa brasileira, denominados por Keller de INFA.

Infelizmente, o boletim nº 1 está em péssimas condições de conservação e

não permite a reconstituição de seu conteúdo. Os boletins, do número 1 ao

número 5, são redigidos em alemão.

Page 53: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

53

No boletim no 2, de 15 de janeiro de 1944, encontramos o ensaio “In

eigener Sache” (=Em causa própria). Keller faz, aqui, uma crítica amarga aos

imigrantes que, em sua maioria, se recusam a participar da política e se

aproveitam da segurança que lhes garante uma sociedade democrática,

respeitadora dos direitos humanos, sem dar nenhuma retribuição a essa mesma

sociedade. Keller lembra que é a apatia, a conivência da burguesia que permite a

destruição da República de Weimar e a ascensão do nacionalsocialismo. Mas,

Keller também não poupa da crítica os imigrantes que fazem política, sobretudo

em benefício próprio, pensando desde já em exigir indenizações pelas

dificuldades e sofrimentos passados durante a emigração, esquecendo-se

daqueles que morrem nos campos de concentração e nas prisões. Keller

pergunta: “Com que meios os emigrantes políticos servem ao grande objetivo de

uma renovação moral e social da sociedade humana?” Keller fala da falta de

ideais, dos princípios abandonados sem maiores preocupações, dos

compromissos espúrios assumidos entre opositores. Keller elogia o grupo em

torno de Kniestedt, que reúne membros com opiniões políticas diferentes, “mas

unidos contra a opressão, a miséria social, contra a guerra e o racismo”. E

conclui: “[...] uma nova ordem só é possível, se o ser humano, que deve ser seu

suporte, garantir essa ordem com sua pessoa e sua convicção, e não se satisfizer

com artimanhas dialéticas baratas”. A partir do número 2, os boletins obedecem

a um esquema definido, imitando uma revista e procurando trazer informações

diversificadas aos seus leitores. É provável que muitos imigrantes ainda não

dominem o português e que Keller, com seu boletim, seja a única fonte de

informação sobre as condições políticas no exterior. Nos boletins 2, 3, 4 e 5

estão incluídos trechos curtos, de algumas linhas, em português. Os boletins

compreendem um artigo principal, redigido em geral pelo próprio Keller,

algumas vezes, um artigo de uma personalidade brasileira ou estrangeira, um

item denominado “Voz da América”, com notícias de jornais dos Estados Unidos

ou pronunciamentos de personagens desse país, um subtítulo “Notícias”, com

resumos de artigos de jornais estrangeiros e brasileiros, especialmente do sul do

país, cartas de leitores, anúncios de livros em alemão, poesias de autores

brasileiros traduzidas para o alemão por Keller, efemérides de personalidades

do socialismo. Marx, Engels, Mehring são lembrados por meio de escritos dos

próprios filósofos, de artigos de Keller ou de correligionários.

Page 54: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

54

No boletim nº 3, de 15 de fevereiro de 1944, Keller publica o ensaio “Die

Geheime Waffe” (=A arma secreta). O autor discorre, aqui, sobre um dos

grandes mistérios da guerra, ou seja, a resistência oferecida pelo povo alemão ao

inimigo, apesar de ser evidente, para todo observador criterioso, qual o fim

dessa luta, diante da superioridade dos aliados. Prevê que, após a derrota

militar e o desaparecimento das organizações, o caos reinará na Alemanha. Sua

crítica dirige-se à imprensa aliada que alardeia bombasticamente grandes

vitórias, ao mesmo tempo em que afirma a derrota iminente da Alemanha,

como se a guerra fosse um grande espetáculo. Para Keller, há que lembrar a

crueldade no campo das batalhas, as perdas de vidas humanas. Não é verdade

que os alemães estão em retirada, pelo contrário, eles ainda oferecem grande

resistência. Para Keller, a guerra não é uma sucessão de atos heróicos

individuais, como a imprensa aliada faz os leitores suporem. E, como e por que

o povo alemão suporta tudo isso? Keller atribui essa resistência à força da

Gestapo, à fraqueza dos intelectuais alemães e também à falta de confiança do

povo alemão nas promessas aliadas. É somente o desespero, a falta de

esperança, que mantém o povo alemão lutando.

No boletim nº 4, de 15 de março de 1944, Keller apresenta o texto

“Politische Wandlung” (=Transformação política), em que se refere à mudança

da constituição russa. Menciona os problemas existentes na fronteira entre a

União Soviética e a Polônia e posiciona-se claramente ao lado daquele país e de

Stalin, ao considerar possível reunir as diferentes etnias russas numa mesma

direção política. Para Keller, a União Soviética prepara-se para um longo

período de paz. Keller cita o discurso de Stalin em que ele declara que o objetivo

dos aliados não é a destruição da Alemanha, o que seria não só impossível como

pouco desejável para o futuro, mas a destruição do nazismo, do exército de

Hitler e de seus dirigentes. A batalha de Stalingrado está no fim, o exército

alemão perde seu ímpeto. A União Soviética está no auge de sua força. A

propaganda soviética exorta soldados e trabalhadores alemães a desistirem da

luta, a voltarem a suas próprias fronteiras, a aderirem ao socialismo da União

Soviética. Keller alude ao “Comitê Alemanha Livre” criado naquele país para,

através da propaganda política, alcançar e desestabilizar o exército alemão.

Diante da falta de reação por parte dos alemães, Keller prevê que, para destruir

o nazismo, é preciso destruir a Alemanha. Pelo exposto, verifica-se que, nestes

Page 55: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

55

ensaios, Keller revela-se um adversário do nazismo, mas já se notam também

suas primeiras preocupações com o destino da Alemanha no pós-guerra.

No boletim no 5, é apresentada uma tradução livre do ensaio “Regímen”

do autor português Guerra Junqueiro com o título em alemão “Der

Faschismus”. Keller faz suas as palavras do velho escritor português, cuja obra

mostra conhecer, e, em vez de se referir a Portugal, retrata a Alemanha,

salientando que o poder ditatorial é pernicioso em todas as épocas e em todos

lugares.

O boletim no 6 não consta da coletânea nem do arquivo, não havendo

notícias sobre sua localização.

O boletim nº 7 data de fins de 1944, quando deve ter-se tornado cada vez

mais problemático editar um impresso em língua alemã. Neste boletim há a

transcrição do Manifesto do Comitê para uma Alemanha Democrática elaborado

e publicado em Nova York, assinado não só por exilados alemães nos USA, mas

também por escritores e pessoas de prestígio da sociedade norte-americana.

No boletim nº 8, de maio de 1945, deparei-me com o ensaio “Alemães

antifascistas no Brasil”. Trata-se da resposta a um artigo publicado no Diário de

notícias de 30 de setembro de 1943 no Rio de Janeiro, em que é criticada a

criação do “Comitê dos Alemães Livres” em Moscou. O autor do artigo do jornal

considera que não há, nem dentro nem fora da Alemanha, uma oposição

antinazista organizada, excetuando-se algumas reações individuais, e que os

antinazistas do “comitê” não passam de oportunistas que se agrupam

tardiamente, prevendo a próxima derrota da Alemanha. Keller polemiza,

lembrando que há sim uma forte oposição ao nazismo no Brasil, mas a proibição

de qualquer atividade política para estrangeiros, o enquadramento de todos os

alemães na categoria de estrangeiros inimigos e a falta de apoio do exterior não

permitem uma repercussão maior dos movimentos antifascistas no país. A

perseguição aos alemães e a seus descendentes, durante o período da guerra, é

severa, implica no confisco de bens, em prisões e violências. É, contudo, curioso

observar que, nos primeiros anos do exílio, Keller também mostra a mesma

atitude que, agora, critica nos brasileiros, ao considerar todos os alemães

residentes no Brasil como simpatizantes do nazismo. Só a partir de 1943, Willy

Keller começa a admitir a existência de uma oposição antinazista entre os

Page 56: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

56

alemães e seus descendentes no Brasil e preocupa-se, então, em fazer justiça a

esses grupos e em defendê-los.

No boletim nº 9, de 1 de junho de 1945, Keller apresenta um ensaio

sarcástico com o título “Os campos de concentração e a moral internacional”,

em que ao comentar que o mundo descobriu enfim a existência dos campos de

concentração, Keller refere-se à hipocrisia com que o mundo negocia com o

Terceiro Reich, mantém relações diplomáticas com os países fascistas e não

toma nota dos desmandos e atrocidades cometidas contra minorias e contra o

operariado. Este mesmo boletim apresenta ainda o artigo intitulado “Pode um

povo ser culpado da guerra” assinado por “um jurista”. O texto faz uma defesa

do povo alemão, baseada em conceitos jurídicos, mostrando que as atenções de

Keller, como editor, continuam focalizadas na Alemanha. O número 9 inclui um

trecho de um texto de Engels em alemão, traduzido para o português por Keller.

O boletim nº 10, de 10 de julho de 1945 oferece o ensaio “O ressurgimento

das organizações trabalhistas na Alemanha”, em que Keller discorre sobre a

autorização dada pelo marechal Zhukov, para o funcionamento de sindicatos e

uniões livres na Alemanha, na zona de ocupação soviética. Louva o “realismo”

soviético, ao mesmo tempo em que teme uma volta a um passado histórico,

considerando que o futuro da Alemanha só pode existir dentro do socialismo, e

que esta nova ordem deve surgir do seio do povo. Terminando o ensaio Keller

faz um apelo em língua portuguesa, à página 2:

Saudamos os operários alemães, saudamos os operários da Europa e do mundo. Confiamos em que os vínculos fraternais que uniam as organizações trabalhistas em toda parte do mundo sejam novamente entrelaçados para o bem de todos os homens conscientes de seus deveres para com a humanidade.

É mister observar que Keller designa a si próprio, várias vezes, como

socialista, adepto do materialismo histórico, afirma sua posição à esquerda do

comunismo. Condena energicamente a guerra e os nacionalismos. Sua

esperança está no socialismo, sendo, por isso um marxista, não um comunista.

Neste boletim há uma poesia de Carlos Drummond de Andrade, traduzida para

o alemão por Keller, com o título de “Nach dem Fall von Barcelona” (=Após a

queda de Barcelona).

Page 57: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

57

O boletim nº 11, de 5 de setembro de 1945, traz o ensaio “Der englischen

Arbeiterpartei zum Gruß” (=Saudando o Partido Trabalhista Inglês). Trata-se

de um texto assinado pela Associação de Emergência dos Antifascistas alemães,

mas o estilo é de Keller. Nele, são festejados “dois acontecimentos de

importância: o fim da 2ª Guerra Mundial e a vitória do Partido Trabalhista nas

eleições inglesas. O texto termina com o voto de que trabalhadores ingleses e

alemãe possam voltar a retomar brevemente suas relações internacionais. No

mesmo boletim encontramos ainda outro ensaio: “Am Rande der Zeit” (=No

limiar do tempo), em que Keller avalia os dois golpes pesados sofridos pelos

antifascistas alemães nos últimos doze anos: o fim da República de Weimar com

a conseqüente ascensão do nazismo e o fato do Terceiro Reich não ter sido

derrubado por um golpe revolucionário. Na Alemanha repete-se unicamente o

que acontece em outros países europeus como a Grécia, a Itália, a França, onde

os movimentos de resistência interna não podem provocar uma reviravolta

revolucionária. Somente a vitória aliada leva a uma mudança do poder político,

mas, aqui, não há uma revolução e sim a restauração de um estado anterior.

Keller faz referência à conferência de Potsdam e às duras condições impostas à

Alemanha derrotada. Pondera que, para os antifascistas alemães, a destruição

do militarismo prussiano e do poder político dos barões da indústria e dos

latifundiários é condição para a criação de uma república socialista alemã, livre

dos males do passado. Concita os homens levados pelo senso histórico e pelo

seu amor à humanidade a trabalhar para uma frente internacional de

compreensão que permita construir um mundo em que os seres humanos

possam viver dignamente como tais. A partir do número 11, até o último boletim

- o número 17, isto é, de 1945 até 1947, os boletins voltam a ser redigidos em

alemão, segundo Keller, a pedido de seus leitores.

No boletim nº12, de 15 dezembro de 1945, Keller tece considerações a

respeito de seu próprio boletim. Informa que nessa data a distribuição chega a

500 exemplares com uma média de sete páginas por exemplar, ou seja, um

montante de 3.500 folhas impressas. A respeito do INFA (informativo para a

imprensa brasileira), Keller esclarece que são distribuídos cerca de 200

exemplares, com uma média de três a quatro páginas, somando mais de 800

folhas, num total, portanto, de cerca de 4.300 folhas impressas. Além do esforço

envolvido na redação e impressão dos boletins existe também o aspecto

Page 58: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

58

financeiro. Keller menciona que o boletim recebe a ajuda de simpatizantes, mas

que é essencialmente sustentado por um grupo de amigos do Rio de Janeiro e de

São Paulo. Keller faz finalmente um apelo “aos amigos” para que enviem

contribuições que sustentem a sobrevivência do boletim. Alude também à

legalização do grupo de amigos junto às autoridades brasileiras, o que sugere

que Keller realmente pensa em exercer algum tipo de atividade política no pós-

guerra. É preciso lembrar também que em 1943, quando Keller começa a editar

seu boletim, o Brasil já se encontra de relações rompidas com a Alemanha, a

língua alemã está proibida de fato e não é permitido a estrangeiros organizar

partidos políticos. Distribuir um impresso em língua alemã é com certeza uma

atitude desafiadora. Neste mesmo boletim, Keller publica “Rückblick Ausblick”

(=Olhando paras trás, olhando para a frente) e a tradução do“Soneto” (=Sonett)

de Tobias Barreto. O boletim comemora os dois anos de sua publicação. Keller

menciona, aqui, um grupo anônimo, constituído por pessoas unidas por laços de

amizade que, em 1933, por ocasião da ascensão ao poder do nazismo, decide dar

combate à ditadura e servir à liberdade e à justiça social. Relembra as relações

com organizações antifascistas em toda América do Sul e as relações antigas nos

Estados Unidos e na Inglaterra. Elogia a organização Das andere Deutschland

(=A outra Alemanha) de Buenos Aires, liderada por August Siemsen, como um

grupo capaz de representar da melhor forma os antifascistas da América do Sul.

Essa organização mantém uma publicação que, pelo menos durante um certo

período, chega ao Brasil. Quando as comunicações se tornam mais precárias,

Keller acha, então, necessário editar seu próprio boletim informativo. Lamenta

que o envelhecimento dos imigrantes mais antigos e a falta de interesse político

da juventude tornem o trabalho político sempre mais difícil. Conclui, dizendo

esperar que o elevado ideal de libertar a humanidade da guerra, da fome e da

falta de trabalho leve mais pessoas a se juntarem ao seu grupo e a vencerem ou a

caírem com ele.

No boletim nº 13, de 27 de fevereiro de 1946, tem-se acesso ao ensaio

“Furor Teutonicus”. Trata-se, aqui, de um protesto contra o plano dos aliados de

transformar a Alemanha num país agrícola, destruindo todos os

empreendimentos comerciais e industriais. Keller denuncia a exploração da

fragilidade momentânea do povo alemão, afirmando que o plano, um plano de

destruição do país, só será implantado, porque manipula o sentimento de culpa

Page 59: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

59

coletiva dos alemães. Keller rechaça essa idéia da culpa coletiva que, segundo

ele, só serve para deixar que fiquem no anonimato os reais responsáveis pela

guerra. Atribui a passividade dos alemães diante desse plano a uma mórbida

tendência do povo alemão para destruir a própria vida e a vida em geral. Keller

recorda que, em 1918, a revolução socialista na Alemanha é abortada e que a

destruição das fontes de produção, agora em 1946, só pode levar a classe

operária à total miséria. Keller apela para que o poder seja entregue aos

sindicatos, para que o operariado assuma todos os empreendimentos comerciais

e industriais e para que seja instaurada a ordem socialista. Conclui, dizendo que

deverá soprar na Europa o novo vento de uma união fraterna das classes

operárias. Este boletim é dedicado ao centenário de nascimento do político,

jornalista e escritor Franz Mehring (1846-1919). Contém duas poesias de Solano

Trindade, traduzidas para o alemão por Keller: “Meu canto de guerra” e “O

canto do trabalhador”.

O boletim seguinte sem número - uma edição especial - datado de maio

de 1946, é dedicado inteiramente ao 1º de maio e igualmente redigido em

alemão. Nele Keller publica o artigo “Notwendige Betrachtungen”

(=Considerações necessárias), em que relembra as origens do 1º de maio,

lamenta o retrocesso da humanidade ao sucumbir a duas guerras mundiais.

Pondera que o ser humano, infelizmente, aprecia as amenidades do capitalismo,

embora anseie por uma ordem mais estável. Aprecia a revolução russa, porque,

segundo ele, desperta enormes esperanças. Todavia, Keller faz uma pergunta

crucial: será que a União Soviética é, de fato, um estado socialista? E Keller

reflete que, sendo objetivo máximo do socialismo a sociedade sem classes, o que

implica também na eliminação do estado que nada mais é do que um órgão da

sociedade de classes, a União Soviética, enquanto estado socialista, entrará

inevitavelmente em confronto com os estados capitalistas. Se a União Soviética,

porém, simplesmente submete ao estado os monopólios e os bancos, a

centralização do poder econômico e político em um só órgão significa um estado

extremamente forte e um concorrente imbatível dos estados capitalistas. O

operariado, então, nada deve esperar da União Soviética nessas circunstâncias.

Keller acha injustas as punições impostas aos países europeus derrotados, à

Itália e à Alemanha, porque são castigos imputados aos povos, aos operários

desses países. Termina desejando a criação da união livre, internacional,

Page 60: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

60

independente dos socialistas, a vitória definitiva do reino da liberdade, da

justiça social e da igualdade, a mesma descrita por Marx e Engels em suas obras.

No boletim nº 15, de julho de 1946, Keller escreve o artigo “Offener Brief

an einen Genossen” (=Carta aberta a um companheiro), em que se define como

socialista e internacionalista. Declara que o seu combate ao nazismo não deve

ser entendido como uma tentativa de divisão das esquerdas alemãs, embora ele

seja contrário aos partidos que trabalham como se fossem meros órgãos

técnicos. Não aceita um partido que exija obediência cega de seus membros, um

partido que admita que “o socialismo possa crescer pacificamente dentro da

ordem capitalista”. Keller manifesta sua clara opção pelo SPD, o Partido Social

Democrata Alemão, que considera suficientemente elástico para abrigar as

massas operárias e a burguesia mais progressista. No mesmo boletim há ainda o

ensaio “Wirkungsvoller als die Atombombe” (=Mais eficiente que a bomba

atômica), em que Keller explica que mais poderosas que a bomba atômica, são

as decisões políticas a serem tomadas pelas Nações Unidas por um lado e, por

outro, pela União Soviética. A organização política da zona de ocupação

soviética na Alemanha já foi iniciada. É, na verdade, uma intervenção que está

longe de trazer ordem ou justiça ao povo alemão, mas pelo menos estabelece

normas que permitem ao cidadão orientar sua vida pessoal e profissional,

enquanto que a política sem objetivos, adotada nas demais zonas de ocupação,

em nada beneficia a população. O elogio ao que chama de política criativa e

pouco ortodoxa da União Soviética é evidente. Keller termina o texto, aludindo a

uma reunião secreta entre líderes de partidos comunistas onde, supostamente,

se articula um acordo para atenuar as reparações exigidas da Alemanha. Prevê-

se a não separação das regiões do Reno e do Ruhr do território alemão e a

revisão das fronteiras do leste, com a devolução dos territórios anexados à

Polônia. Acredita Keller que, no dia em que a União Soviética se decidir a

realizar esse programa, ela terá ao seu lado toda a nação alemã, e o poder das

potências ocidentais na Europa ficaria, assim, definitivamente quebrado. Neste

mesmo boletim, Keller exorta os companheiros a filiarem-se ao SPD, o Partido

Socialdemocrata e propõe-se a lutar na ala esquerda do partido, esperando que

este seja suficientemente flexível para abrigar, não só o operariado, mas

também a burguesia progressista, que se encontra desligada, em definitivo, do

capitalismo.

Page 61: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

61

No boletim no 16, de outubro de 1946, Keller oferece o ensaio intitulado

“Ein Irrtum und seine Berichtigung” (=Um engano e sua correção). Trata-se de

uma resposta às reações provocadas pela “Carta aberta a um companheiro”

publicada no número anterior, em que Keller exorta todos os antinazistas, ainda

residentes no Brasil, a aderir à ala esquerda do SPD. Para surpresa de Keller,

muitos dos imigrantes procuram posições na nova ala proposta, mas como

funcionários. A direção do SPD em Hannover manda uma carta assinada pelo

companheiro Sanders, exilado em Londres, estabelecendo regras não

consoantes com os ideais de Keller. Por detrás dessa atitude do partido, há que

levar também em consideração o fato referente à não aceitação de August

Siemsen, líder do grupo antifascista de Buenos-Aires e amigo de Keller. Por

solidariedade, Keller volta atrás e desiste de sua filiação ao partido. Aí, Keller

conclui que partidos e organizações acabam como instrumentos dos

mandatários políticos e considera que é preferível auferir da vantagem de ser

responsável por seus atos a ser um mero instrumento. A partir deste momento,

Keller desiste de qualquer atividade política dentro de uma organização ou

partido.

No último boletim, nº 17, de março de 1947, Keller apresenta o texto

“Europäischer Gedanke und Reaktion” (=Pensamento e reação europeus). Neste

artigo, o autor analisa relações possíveis entre as guerras, discorre sobre o

conceito de autodeterminação dos povos que, estranhamente, só parece válido

para as nações aliadas, não levando em conta a fragmentação a que se vêem

submetidas várias nações da Europa depois da guerra. Outro conceito abordado

por Keller é o da “federação/união européia”. Entretanto, segundo ele, tal

conceito, bom em si mesmo, torna-se suspeito ao receber o apoio de antigos

inimigos, tais como Churchill que, através dele, pretende garantir a hegemonia

do Império Britânico em decadência, e os neonazistas que vêem nele um meio

de voltar ao poder e de satisfazerem seus ódios e ambições. Estrategicamente,

escolhem um inimigo comum - a União Soviética - e falam de uma terceira

Guerra Mundial, travada naturalmente em terras européias, para consolidar

essa união. Keller é de opinião que deve haver, sim, união, mas que a nova

Europa não deve ser construída sobre velhos preconceitos, não deve ser uma

democracia formal, escondendo contradições capitalistas. Deve ser, sim, uma

organização socialista de operários e camponeses, abrangendo todos os povos,

Page 62: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

62

para trazer paz à humanidade. Após o fracasso da idéia que o levara a querer

filiar-se ao que chama “a ala esquerda da SPD”, Keller desiste em definitivo de

qualquer atividade política. Passa a ocupar-se com atividades humanitárias,

organizando remessas de auxílios aos antifascistas europeus e aos libertos dos

campos de concentração. Neste último boletim, há uma longa lista de pessoas e

organizações européias às quais a Associação de Keller presta auxílio.

A leitura dos ensaios de Keller permite algumas conclusões sobre sua face

ideológica: é um homem socialista, adepto do materialismo histórico, um

crítico, atento dos movimentos políticos e partidários. Tem esperanças na União

Soviética como defensora de um socialismo democrático, mas a partir de 1946

questiona essa esperança. Espera, porém, que a União Soviética evite que os

operários dos países vencidos sejam onerados pelas pesadas penas a eles

impostas. Recusa-se a obedecer a qualquer coisa sem a prerrogativa da

discussão. Keller é um ser humano radical, um homem que respeita a sua

inteligência e a sua sensibilidade acima de tudo.

Quem seriam os colaboradores e quem seriam os leitores do boletim de

Keller? Uma parte da resposta à primeira pergunta pode ser encontrada na

rubrica Notícias. São artigos não só de jornais e revistas estrangeiros, como Em

guarda de Washington, Time, Free world, Fortune, Aufbau e The nation de

Nova York, Chicago sun, The american mercury, A voz de Lisboa, Die Zeitung

de Londres, o próprio Völkischer Beobachter - órgão oficial do Partido Nazista-,

mas também de jornais nacionais como Diário da Tarde de Curitiba, Folha

Carioca, A Noite e O Globo do Rio de Janeiro. Em muitas das notícias não há

indicação da fonte. Até o fim da guerra, em 1945, são freqüentes as informações

sobre o conflito: o racionamento de alimentos na Alemanha; a reconstrução de

Londres iniciada no ano de 1944, atrocidades nazistas na Holanda, os cuidados

que os russos prestam aos seus feridos, crueldades cometidas pela SS, corpo de

elite e guarda pessoal de Hitler, na Alemanha; um artigo em memória de Hans e

Sophie Scholl executados na Alemanha por sua oposição ao nazismo; uma

estatística sobre a quantidade de bombas jogadas sobre cidades alemãs;

expectativas sobre o futuro da Alemanha e da Europa; um comentário sobre a

situação dos prisioneiros políticos na Espanha; o desânimo e a tristeza que reina

na Alemanha arrasada.

Page 63: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

63

Durante o período da guerra o acesso a jornais e revistas estrangeiras é

extremamente difícil, a comunicação não só é precária dentro do próprio Brasil,

mas também com o exterior, sem contar os empecilhos criados pela censura

brasileira. A habilidade de Keller em conseguir informações é digna de nota. É

certo que Keller dispõe de uma ampla rede de contatos tanto com pessoas como

com organizações, no Brasil e no exterior, sobretudo na Argentina e no México,

mas também na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Após 1945, surgem as primeiras notícias sobre os campos de

concentração, a situação dos prisioneiros libertados dos campos, a

administração aliada na Alemanha, mas também informações sobre atividades

culturais, notas sobre refugiados que voltam a assumir postos administrativos e

políticos, notícias sobre nazistas que tentam voltar a ocupar cargos na economia

e na administração.

Além dos refugiados e dos exilados vivendo em outros países da América,

Keller conta com leitores entre os alemães e seus descendentes espalhados pelo

Brasil, especialmente nos estados do sul.

Os boletins mostram também que Keller reavalia algumas de suas

posições. Se começa considerando todos os imigrantes antigos e seus

descendentes como simpatizantes do nazismo, sua opinião modifica-se no

decorrer dos anos. Keller passa a insistir na existência de “outros alemães”, de

uma “outra Alemanha”. Ao final da guerra, Keller recusa energicamente a noção

da “culpa coletiva” do povo alemão, mostra-se um patriota preocupado com o

destino do seu país.

Se em diversas ocasiões, Keller demonstra sua admiração pela União

Soviética, e sobretudo, sua confiança no país enquanto patrocinador de um

socialismo democrático, essa posição é questionada no pós-guerra.

Em todos os boletins há ensaios de Keller, ilustrando suas idéias e sua

cosmovisão.

Teatro em língua alemã

Page 64: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

64

Keller dedica os dez primeiros anos de sua vida no Brasil, de 1935 até o

início de 1946, a duas atividades principais: ao combate ao fascismo e ao

aprendizado da língua portuguesa. A primeira deixa duas frustrações amargas: a

pouca ressonância junto à colônia de língua alemã e seus descendentes no Brasil

e, no pós-guerra, a falta de reconhecimento dessa atividade na Alemanha

libertada.

Graças ao aprendizado da língua portuguesa, no entanto, Keller tem

acesso à atividade teatral brasileira, atividade esta que lhe é extremamente

gratificante. Keller passa a dirigir peças de teatro, participa da criação de grupos

teatrais profissionais e amadores, trabalha até como professor de arte

dramática.

Keller começa, porém, por um tipo de teatro pouco investigado no Brasil,

pelo chamado teatro alemão. Trata-se de um teatro produzido em língua alemã

e destinado ao reduzido público também de língua alemã no Brasil. Assim, as

peças encenadas, procedentes de várias literaturas, inclusive da brasileira, são

apresentadas em alemão para um público composto, num primeiro instante, por

simpatizantes do nazismo e nazistas e, num segundo momento, após 1945,

sobretudo, por judeus exilados. Seu objetivo iminente é o entretenimento.

Fritz Pohle, em Emigrationstheater in Südamerika. Abseits der “Freien

Deutschen Bühne” Buenos Aires (=Teatro de imigrantes na América do Sul. À

margem do “teatro alemão livre” Buenos Aires), de 1989, faz uma análise do

teatro em língua alemã produzido na América do Sul por diversos grupos de

exilados, excetuando o grupo mais importante - o de Buenos Aires -, objeto de

estudo de outras obras.

O capítulo dedicado ao Brasil consta de três textos. O primeiro, com o

título de “Exiltheater in Rio de Janeiro” (=Teatro de exílio no Rio de Janeiro) é

da autoria de Willy Keller. O segundo, “Freies Europäisches

Künstlertheater/Kammerspiele” (=Teatro de Artistas Europeu Livre /Teatro de

Câmara) é de autoria de Fritz Pohle e enumera as peças representadas pelo

grupo. O terceiro texto, novamente de autoria de Pohle, traz o título de “Estado

Novo und deutschsprachiges Emigrationstheater” (=Estado Novo e Teatro de

Emigração em Língua Alemã) e investiga os problemas encontrados para se

fazer um teatro em língua alemã no Brasil de Vargas. Estes textos, bem como as

Page 65: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

65

referências de Keller ao seu trabalho no âmbito do teatro em língua alemã, seja

em cartas ou em artigos de sua autoria, embasam o presente capítulo.

As primeiras tentativas de fazer um teatro em língua alemã no Brasil

devem-se a Karl von Lustig-Prean, antigo diretor da Ópera Popular de Viena e

inimigo político de Keller que, no capítulo “Exiltheater in Rio de Janeiro” do

livro Emigrationstheater in Südamerika, de 1989, narra as dificuldades

encontradas para se fazer representar uma peça em alemão no país. A primeira

dificuldade recai sobre a escolha da peça, pois é necessário que esta ainda não

tenha entrado no índex do governo alemão. A segunda dificuldade diz respeito

ao aluguel do espaço físico, normalmente uma casa particular. A casa não pode

pertencer a judeus. A terceira dificuldade encontra-se no recrutamento dos

atores: eles também não podem ser judeus. E, por último, não é permitida a

presença de judeus entre o público. Ou seja, o chamado teatro alemão acaba

sendo feito, numa primeira fase, só para nazistas ou para seus simpatizantes; a

grande maioria dos exilados fica marginalizada.

Assim, é somente após 1945 que o teatro em língua alemã pode se

expandir no Brasil.

Em 1946, é fundado no Rio de Janeiro o grupo teatral “Freies

Europäisches Künstlertheater” do qual participam Willy Keller, o ator Werner

Hammer e Wolfgang Hoffmannn-Harnisch e seu filho Wolf Harnisch. O grupo é

constituído de pessoas de origens diferentes, de austríacos, suíços, tchecos,

noruegueses, alemães judeus e não judeus, unidos pelo interesse na língua

alemã.

Este grupo teatral funciona como uma sociedade financiada pela venda de

ingressos, portanto, numa situação precária. Em geral, não ocorrem mais de

duas encenações de cada peça. São inúmeras as despesas a serem cobertas:

aluguel, propaganda, direitos autorais, decorações, pagamento de operários. A

Embaixada Alemã chega a contribuir com uma modesta soma, mas são os

integrantes que arcam com a maior parte dos custos.

Em 1948, Willy Keller encena para o grupo em pauta a peça de Joracy

Camargo Deus lhe pague, traduzida por ele próprio com o título de Vergelt’s

Gott para o programa. No entanto, curiosamente, no texto o título é

Bettlerkomödie, ou seja, comédia de mendigos. A segunda peça encenada por

Keller, em 1949, é A portas fechadas de Jean-Paul Sartre, o que, segundo Keller,

Page 66: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

66

é a primeira apresentação de uma peça de Sarte no Brasil. A encenação é um

sucesso com três representações.

O grupo encena cerca de quarenta peças, entre elas Rotkäpchen und der

böse Dr.Wolf (=Chapéuzinho Vermelho e o malvado Dr. Lobo), peça de autoria

de Keller. Há preocupação em oferecer ao público peças de boa qualidade, sem

desprezar, como coloca Keller, o teatro enquanto diversão. Duas são as peças de

autores brasileiros encenadas pelo grupo: além da já mencionada comédia de

Joracy Camargo, a peça de Paschoal Carlos Magno intitulada em alemão

Morgen ist es anders (=Amanhã é diferente). Não há referências ao tradutor.

Em 1948, Keller e Werner Hammer rompem com Hoffmann-Harnisch

por razões sobretudo políticas: como mencionado antes, Keller quer um teatro

que enfatize a crítica social, ao mesmo tempo em que considera que um teatro

produzido por imigrantes para imigrantes não pode ignorar simplesmente os

acontecimentos entre 1933 e 1945.

Keller continua, então, até 1957 com seu próprio grupo, que herda o

antigo nome de “Freies Europäisches Künstlertheater” até 1950, quando é

substituído por “Kammerspiele: Teatro Independente Europeu”.

Hoffmann-Harnisch vê no teatro um meio de divulgar a cultura alemã,

encenando clássicos. Procura um público mais amplo. Chega a fazer teatro

bilíngüe, isto é, faz apresentar, no começo do espetáculo, um resumo da peça

que, depois, é representada em alemão e levada em “tournée” pelo sul do Brasil,

com o apoio dos governadores de estado. Isto leva Pohle a interpretar a postura

de Hoffmann-Harnisch como um distanciamento dos objetivos do teatro alemão

no Brasil, como uma aproximação, um reconhecimento, dos nacionalistas, ou

seja, dos antigos nazistas. Em 1951, tanto Hoffmann-Harnisch quanto seu filho

voltam à Alemanha.

Keller também está preocupado com a falta de um público maior para o

teatro em língua alemã: além de ser em si reduzido, existem diferenças

ideológicas profundas entre esse público. Para Keller há que considerar

igualmente o envelhecimento, a falta de renovação desse público. Além disso, há

a considerar que os imigrantes e seus descendentes já dominam a língua

portuguesa e estão integrados na vida cultural do país.

A última peça por ele encenada é Die Freier (=Os pretendentes) de

Joseph von Eichendorf, em comemoração do centenário da morte do autor.

Page 67: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

67

Em 11 de outubro de 1962, o jornal Deutsche Nachrichten, publicado em

São Paulo em língua alemã, registra a encenação da peça As mãos de Eurídice

em tradução alemã de Keller, no auditório da Pró Arte, mas sob a direção de

Wolfgang Haller. O espetáculo alcança grande sucesso.

Apesar do seu empenho em produzir um teatro em língua alemã, Keller

consegue, aos poucos, transferir o seu trabalho para o teatro brasileiro, quer

com grupos amadores quer com grupos profissionais, dá aulas de arte

dramática, escreve para jornais e revistas.

Entre essas múltiplas atividades está a participação de Keller no “Teatro

Experimental do Negro”. Nas suas próprias palavras:

Depois seguiu-se uma fase da minha carreira teatral que não conduziu a nenhum objetivo, mas que considero importante. Em 1946 associei-me ao Teatro do Negro fundado por Abdias do Nascimento[...] A partir daí pertenci ao teatro brasileiro como um ‘outsider’, assim como também só pertenci ao teatro alemão como ‘outsider’.10

O Teatro Experimental do Negro

O Teatro Experimental do Negro é um fenômeno artístico brasileiro

relativamente pouco conhecido. Todavia, o número de obras que trata do

assunto não é inexpressivo. Em 1961, surge o livro organizado por Abdias do

Nascimento, Dramas para negros e prólogos para brancos; em 1966, Tomás

Efrain Bó publica Teatro Experimental do Negro. Testemunhos; em 1978

Abdias do Nascimento traz a lume O genocídio do negro brasileiro; em 1983,

Ricardo Gaspar Müller apresenta à Universidade Federal de Minas Gerais a

dissertação de Mestrado O teatro experimental do negro; e em 1995, Leda

Maria Martins apresenta A cena em sombras.

Com base na leitura desses textos e de posse de dados colhidos nos

arquivos da biblioteca do Instituto Hans Staden em São Paulo, no arquivo sobre

a literatura no exílio da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, no arquivo

particular de Elvira Heydemann, cunhada de Wilhelm Keller, em Valinhos, em

10

Pohle, p.41.

Page 68: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

68

currículos e ensaios do próprio tradutor, redigiu-se este capítulo, a fim de se

recuperar o trabalho de Keller junto a este grupo e a deixar mais clara a sua

inserção na cultura brasileira. Significativa é também a foto de Abdias do

Nascimento, Ruth de Souza, Aguinaldo Camargo, Willy Keller, Zélia e Maria de

Lourdes Medeiros e da Princesa Teresa de Orleans e Bragança, apresentada no

livro Exil in Brasilien, organizado por Klaus-Dieter Lehmann e publicado pela

editora Die Deutsche Bibliothek em Frankfurt a.M., em 1994, especialmente

editado para uma exposição sobre a emigração dos intelectuais de língua alemã

no Brasil entre 1933 e 1945, e que fornece a primeira pista sobre a participação

de Keller no Teatro Experimental do Negro - TEN.

Keller atua junto ao Teatro Experimental do Negro desde 1946, por

indicação do diplomata e autor Paschoal Carlos Magno, laureado com o prêmio

da Academia Brasileira de Letras pela sua peça Pierrot e fundador da Casa do

Estudante do Brasil em 1929 e do Teatro do Estudante em 1938.

Pelo livro Teatro Experimental do Negro sabe-se que Abdias do

Nascimento, seu fundador, nasce em 1914, em Franca, estado de São Paulo. Sua

mãe é costureira e seu pai sapateiro. Forma-se em economia e exerce várias

profissões: repórter, contador, gerente de banco. Em 1941, numa viagem a Lima,

Abdias do Nascimento assiste à representação do Imperador Jones de O'Neill,

onde o negro Brutus Jones é representado por um ator branco. Nasce ali a idéia

de um teatro negro para o Brasil.

O TEN visa criar um espaço para o dramaturgo, o diretor e o ator

negros. Faz parte, porém, de um projeto mais amplo de divulgação e valorização

da cultura negra, e pretende também tomar iniciativas políticas que tenham

uma repercussão prática. Em um discurso pronunciado na Associação Brasileira

de Imprensa (ABI), em 1949, por ocasião da Conferência Nacional do Negro, e

depois publicado no livro Dramas para negros e prólogos para brancos, na

página 15, Abdias do Nascimento fala assim do Teatro do Negro: “O Teatro

Experimental do Negro pertence à ordem dos meios. Ele é um campo de

polarização psicológica, onde se está formando o núcleo de um movimento

social de vastas proporções.”

Entre os eventos efetivamente organizados com estes objetivos mais

amplos estão a Convenção Nacional do Negro de 1945 em São Paulo, a

Conferência Nacional do Negro maio de 1949, realizada na Associação Brasileira

Page 69: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

69

de Imprensa no Rio de Janeiro, tendo como organizadores Edison Carneiro,

Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos, contando com a participação do

representante da ONU no Brasil e o lº Congresso do Negro Brasileiro, realizado

de 26 de agosto a 4 de setembro de 1950, também na Associação Brasileira de

Imprensa no Rio de Janeiro.

Segundo um artigo de Abdias do Nascimento no Diário de Notícias do

Rio de Janeiro, de 11/06/1946, o Teatro Experimental do Negro participa em

dezembro de 1944 de uma realização do Teatro do Estudante no Teatro

Municipal do Rio de Janeiro. Trata-se da representação da peça Palmares. O 3º

ato tem o título de a "República dos Negros". Paschoal Carlos Magno quer que

Zumbi e também as personagens secundárias sejam interpretadas por negros.

No início das atividades do TEN, a União Nacional dos Estudantes cede

algumas salas ao grupo para desenvolvimento de suas atividades culturais e

educativas, como relata seu fundador Abdias do Nascimento no mesmo artigo.

Desentendimentos levam, porém, à expulsão do grupo do local. A atriz e

empresária teatral Bibi Ferreira oferece então, ao TEN, uma sala no Teatro

Fênix. Entretanto, também este local tem que ser abandonado, pois o dono

recusa-se a alugá-lo para este tipo de espetáculo. O prefeito do Rio oferece, em

seguida, um prédio desocupado, o Pavilhão Mourisco, mas o presidente do

Clube Botafogo impede a cessão do local. O preconceito e a falta de apoio oficial

sempre se fazem sentir.

Num artigo sem assinatura, publicado no jornal O Globo de 17 de outubro

de 1944, sob a rubrica “Ecos e Comentários”, a iniciativa do TEN aparece

comentada. O artigo começa por negar a necessidade de um teatro negro,

considerando que, mesmo no tempo da escravidão, os negros eram bem

tratados e que as torturas e maus tratos não passavam de exceções. Diz o artigo

que “sem preconceitos, sem estigmas, misturados e em fusão nos cadinhos de

todos os sangues, estamos construindo a nacionalidade e afirmando a raça de

amanhã.”

Apesar das dificuldades, o grupo consegue estrear em 8 de maio de 1945

no Teatro Municipal do Rio, com a peça O Imperador Jones de Eugene O'Neill.

A peça conta a história de um negro que se arvora em imperador de um grupo

de negros, explorando-os e maltratando-os. Os negros revoltam-se e Brutus

Jones foge pela floresta em busca do litoral, onde espera salvar-se. A peça

Page 70: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

70

reproduz essencialmente seu monólogo durante a fuga, atormentado pelo medo

e pela própria consciência. O negro Jones é interpretado por Aguinaldo de

Camargo, os cenários são do pintor italiano Enrico Bianco, que vem ao Brasil

em 1937. A data da estréia coincide com a vitória aliada sobre as forças do

fascismo, o que atrapalha um pouco o espetáculo, pois nas ruas a multidão

festeja a vitória com danças e desfiles, soltando foguetes e cantando. O acesso ao

teatro é dificultado e o barulho interfere no espetáculo. A respeito desta estréia

Henrique Pongetti escreve no capítulo “Brancos e Negros”, o seguinte: “Lá fora

os buscapés, as bombas, as girândolas e os chuveiros de prata espoucavam

botando barulho de guerra nos sambas comemorativos da paz.”

A peça O imperador Jones é representada uma única vez no Teatro

Municipal do Rio, e sem que o grupo tenha a possibilidade de fazer antes um

ensaio geral, já que o teatro se encontra ocupado por um grupo de amadores

formado por gente da sociedade. Depois dessa única apresentação, o TEN fica

sem local de trabalho, como assinala Henrique Pongetti em O Globo de

10/05/1945: “O Teatro Experimental do Negro está agora sem casa para

prosseguir.”

Em sua dissertação de mestrado O Teatro Experimental do Negro datada

de 1983, Ricardo Gaspar Müller faz a análise de algumas peças apresentadas

pelo grupo e fala da atividade política deste grupo de teatro. Na apresentação, o

autor menciona as dificuldades por ele enfrentadas para avaliar esta

experiência, em suas palavras, “[...] já tão recuada no tempo, tão esquecida e em

geral ausente dos registros correntes de nossa história intelectual e política.”

Müller faz menção a nove peças, levadas à cena pelo grupo, reunidas em uma

antologia organizada por Abdias do Nascimento com o título Dramas para

negros e prólogos para brancos, publicada no Rio de Janeiro, pelo próprio

TEN, em 1961. São elas: Auto da noiva de Rosário Fusco, peça escrita

especialmente para o TEN e datada de 1946; O filho pródigo de Lúcio Cardoso

escrita para o TEN em 1947 e encenada no mesmo ano; Anjo negro de Nelson

Rodrigues de 1946, mas encenada pelo TEN em 1948; Filhos de santo de José

de Morais Pinho, de 1948, encenada no mesmo ano; O emparedado de Tasso

Silveira de 1948; O castigo de Oxalá de Romeu Crusoé escrita em 1952;

Sortilégio escrita por Abdias do Nascimento em 1951 e encenada em 1957;

Page 71: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

71

Além do Rio de Agostinho Olavo e Aruanda de Joaquim Ribeiro - estas duas

peças sem outras referências.

Sete peças pertencem a autores negros: Rosário Fusco, José de Morais

Pinho, Tasso Silveira, Romeu Crusoé, Abdias do Nascimento, Agostinho Olavo e

Joaquim Ribeiro e duas a autores brancos: Lúcio Cardoso e Nelson Rodrigues.

Müller baseia seu estudo, de caráter sobretudo sociológico, na análise

textual das quatro primeiras peças O castigo de Oxalá, Auto da noiva,

Sortilégio e O filho pródigo e dos eventos políticos da época.

O conflito nas peças dos autores negros analisadas por Gaspar Müller é

similar, girando em torno do encontro do homem negro com a mulher branca,

encontro que quase sempre acaba de maneira infeliz, terminando com a volta do

negro às suas origens, ao seu povo e à sua religião. Não há solução para o

problema do negro, a não ser a volta ao seu próprio grupo.

A peça de Lúcio Cardoso é considerada por Décio de Almeida Prado como

um "monumento de literatice" sem nenhum vínculo com a realidade do negro

ou com sua problemática.

As peças reunidas na antologia organizada por Abdias do Nascimento não

são, no entanto, as únicas apresentadas pelo TEN, cujo repertório é bem mais

amplo. Incluem-se, aí, a já citada peça de Eugene O'Neill O Imperador Jones

bem como O moleque sonhador e, ainda, Todos os filhos de Deus tem asas do

mesmo autor, esta encenada no Teatro Fênix, do Rio de Janeiro, em 1946. As

peças aludem sempre à união entre brancos e negros.

Em 1949, em discurso pronunciado na ABI, Abdias do Nascimento fala

em outras peças que o TEN pretende levar aos palcos: Calígula de Albert

Camus, O mulato de Langston Hughes, escritor e poeta negro americano que

viveu de 1902 a 1967, Dom Perlimplin e Belisa de Garcia Lorca e O caminho da

cruz de Henri Gheon, poeta francês, que viveu de 1875 a 1944.

O TEN acaba agraciado tanto por O'Neill como por Camus que desistem

de seus direitos autorais, para ajudar o grupo.

Tudo leva a crer que o TEN se dissolve aos poucos: não existe uma

atividade continua, as representações são cada vez mais espaçadas. O TEN não

consegue uma sede própria, não consegue contratar profissionais qualificados.

O preconceito e a falta de recursos acabam por inviabilizá-lo.

Page 72: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

72

Em 1952, Abdias do Nascimento organiza uma outra companhia negra

que se apresenta na boate Acapulco e no Teatro Recreio, no Rio de Janeiro, com

uma revista em dez quadros intitulada Rapsódia negra. A forma adotada, de

teatro de revista e a apresentação em uma casa noturna, sugerem a preocupação

em fazer um teatro talvez mais comercial, em arrecadar fundos para o grupo.

Em um artigo na revista O cruzeiro de 10 maio de 1953, de Clóvis Garcia,

intitulado O Imperador Jones, é mencionado o projeto do TEN de encenar a

peça de Augusto Boal O logro.

As informações recolhidas mostram que a atividade teatral do TEN

parece concentrar-se, sobretudo, nas décadas de quarenta e cinqüenta. Gaspar

Müller apresenta o ano de 1968 como o do encerramento da atuação do TEN.

Em 1978, ao fazer um retrospecto das atividades do TEN, em O genocídio

do negro brasileiro, Abdias do Nascimento refere-se, de forma genérica, às

dificuldades sofridas pela área cultural no Brasil a partir de 1964, sem referir-se,

porém, especificamente ao TEN.

Leda Maria Martins em A cena em sombras de 1995, faz uma comparação

entre o teatro do negro no Brasil e o teatro do negro nos Estados Unidos, bem

como aborda a situação do negro nas duas sociedades. A autora conclui na

página 83 que “as dificuldades financeiras, os problemas internos do próprio

grupo e os efeitos da Ditadura Militar em todas as atividades culturais e

artísticas aceleram o fim melancólico de uma experiência rica e singular no

contexto do teatro brasileiro.”

A participação de Willy Keller no grupo parece ter ficada limitada ao ano

de 1946 quando é indicado por Paschoal Carlos Magno.

Em uma entrevista ao jornal Resistência de 27/11/1946 e num artigo no

Diário Trabalhista de 11/12/1946, Abdias do Nascimento manifesta seu

entusiasmo pela colaboração de Keller, dizendo: “Doravante contamos com a

inestimável colaboração do eminente ensaiador alemão Willy Keller [...].”

E:

Willy Keller [...] , após largar o trabalho de um dia árduo, se dirige para a Escola Nacional de Música, onde, de empregadas domésticas, operários, pequenos funcionários públicos, vai modelando as vocações que amanhã serão legítimos orgulhos dos nossos palcos. Possuidor de uma paciência inesgotável, Keller transmite aos amadores negros lições do mais alto valor para a arte de representar. Nunca se exalta. Sempre calmo e bem humorado, sabe tornar os ensaios em algo interessante, com dissertações eruditas em linguagem tão simples que os menos instruídos entendem perfeitamente.

Page 73: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

73

A foto atrás referida, em que figuram Zélia e Maria de Lourdes Medeiros,

Ruth de Souza, Teresa de Orleans e Bragança, Willy Keller e o fundador do

grupo Abdias do Nascimento foi tirada provavelmente em 1946, por ocasião do

2º aniversário do TEN, comemorado no Teatro Regina do Rio de Janeiro no dia

9 de dezembro de 1946, ocasião em que Willy Keller dirige O moleque sonhador

de Eugene O'Neill. A peça conta a história de um jovem negro, interpretado por

Abdias do Nascimento, que se torna bandido e comete um assassinato.

Perseguido pela polícia vai, assim mesmo, visitar a avó moribunda, Mammy

Saunders, interpretada por Ruth de Souza. Todavia, por causa de um incidente,

a peça tem que ser representada sem cenários. É Willy Keller quem salva a

encenação, levando os atores a imitar gestos como abrir portas, etc., sugerindo,

dessa forma todo o cenário ausente.

Tal inovação leva Ascendino Leite a comentar no capítulo “Moleque

sonhador”, da antologia Dramas para negros e prólogos para brancos, à

página 87, que o incidente teria arrastado a representação ao ridículo, não fosse

a capacidade criadora do dirigente. Keller ainda encena no TEN a 2ª cena do ato

V do Otelo de Shakespeare, em que contracenam Abdias do Nascimento como

Otelo e Cacilda Becker como Desdêmona. Trata-se da última cena do drama,

quando Otelo mata Desdêmona, convencido de sua traição.

Os festejos do aniversário do TEN são prestigiados por outros artistas e

grupos teatrais: Procópio Ferreira recita a poesia As mãos, Ziembinski e Maria

Della Costa participam de uma cena de A rainha morta, Aguinaldo Camargo

atua em O negro Damião, uma adaptação de Terras do Sem-Fim, de Jorge

Amado, Luiza Barreto Leite, artista e jornalista, fundadora do grupo "Os

Comediantes", declama o monólogo Mariana Pineda de Garcia Lorca, Olga

Navarro e Zimbienski atuam em uma cena de Desejo de O'Neill e Graça Mello e

Jackson de Souza se apresentam em O ladrão azarado do próprio Graça Mello.

Todo o espetáculo é acompanhado pela Orquestra Afro-Brasileira.

Em um discurso pronunciado na Associação Brasileira de Imprensa em

maio de 1949, por ocasião da Conferência Nacional do Negro, Abdias do

Nascimento agradece a todos que, de alguma forma, colaboraram com o TEN,

entre eles a Willy Keller.

Page 74: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

74

A participação no TEN é importante para Keller, pois é sua primeira

participação no teatro em língua portuguesa. O acesso de Keller ao TEN deve-se

provavelmente à fragilidade econômica e profissional do grupo. Se, por um lado,

o TEN não possui recursos financeiros para contratar profissionais, Keller

anseia, por outro lado, a qualquer custo por participar do teatro brasileiro.

Keller, como exilado, impedido de atuar em seu próprio país mostra também

uma sensibilidade especial para o drama do negro brasileiro, exilado em sua

própria terra.

Na década de 70, o TEN desaparece do cenário nacional. Nas palavras de

Leda Maria Martins à página 83: “O esforço de descentramento promovido pelo

TEN não sobreviveu ao aparato ideológico e às séries de condições que vêm, há

séculos, excluindo as minorias dos centros de produção e decisão [...].”

É curioso observar que, no livro Quem é quem nas artes do Brasil de

Bárbara Heliodora, os nomes de Willy Keller, de Abdias Nascimento, Aguinaldo

Camargo e Áureo Nonato não aparecem no capítulo dedicado ao teatro.

O silêncio espalha-se sobre os atores, escritores e diretores brasileiros

negros do TEN e destrói uma das frentes em que seria possível a Willy Keller

participar ativamente da cultura de seu país adotivo.

Apesar de intensa, falta à participação de Keller no teatro a continuidade,

seja no tempo, seja na ligação mais permanente com determinados grupos. Um

problema talvez não somente de Keller, mas do teatro brasileiro em geral. A

atividade teatral de Keller fica registrada em ensaios, em críticas, em notícias de

jornal e na memória dos que trabalharam com ele.

Décio de Almeida Prado em sua Apresentação do Teatro Brasileiro

Moderno, logo na primeira página, faz menção ao caráter efêmero das

encenações teatrais e justifica a publicação de seus ensaios, citando

T.C.Worsley: “As peças elas mesmas podem sobreviver, se o merecem, mas cada

determinada encenação ou cada particularidade do desempenho só viverá

enquanto delas persistir um traço na memória ou alguma notação escrita.”

Willy Keller, tradutor de literatura brasileira

Page 75: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

75

Ao longo de sua vida Keller traduziu um significativo número de obras de

autores brasileiros, o que atesta o domínio da língua portuguesa.

Não se pretende, neste capítulo, fazer análises de quaisquer textos

traduzidos por Keller. O objetivo é apenas mostrar o volume de obras da

literatura brasileira traduzidas pelo autor.

Na área do teatro são várias as traduções de Willy Keller. De Pedro Bloch

verteu para o alemão As mãos de Eurídice, com o título Eurydikes Hände, Esta

noite choveu prata, com o título Heute Nacht regnete es Silber e Os inimigos

não mandam flores, com o título Feinde schicken keine Blumen. Estas três

peças são editadas em forma de textos destinados ao teatro (Textbücher) pela

editora Fischer, sem datas. A tradução da peça Sorriso de pedra é arrolada no

currículo de Keller, mas não se encontraram outras informações sobre esta

tradução, bem como sua localização. De Joracy Camargo, traduz Deus lhe

pague, como Vergelt’s Gott. Também neste caso não há registro da data no texto

original que se encontra no arquivo da Universidade de Hamburgo. Segundo

Keller, a peça é editada pela editora Fischer, mas esta não tem, hoje, mais

informações sobre ela. Tal como a peça de Joracy Camargo, os textos de

Henrique Pongetti A história de Carlitos e Amanhã se não chover também

caíram no esquecimento da editora Fischer. Sabemos destas traduções apenas

através dos currículos deixados por Keller. Além destes autores, Willy Keller

também traduziu para a alemão O auto da compadecida de Ariano Suassuna,

com o título Das Testament des Hundes, editado em forma de texto para o uso

em teatro pela editora Gustav Kiepenheuer de Berlim em 1962. Nos currículos

de Keller há ainda menção à tradução de A última experiência de Antônio

Callado que teria sido editada pela editora Fischer Infelizmente, também não há

outras informações sobre esta publicação.

A editora Fischer informou, em carta de 20 janeiro de 1995 que, dos

autores por mim arrolados - Callado, Camargo e Bloch - apenas três traduções

de obras de Pedro Bloch, a saber, Eurydikes Hände, Feinde schicken keine

Blumen e Heute Nacht regnet es Silber estão editadas pela Fischer, em forma de

Textbücher, isto é, de livros-texto, destinados a grupos teatrais que adquirem os

direitos de representação, e não como edições destinadas ao comércio. A editora

esclarece ainda que os contratos para edição de traduções costumavam ser

celebrados entre a editora e a SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).

Page 76: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

76

Na revista SBAT de julho de 1968, Keller elucida igualmente o sucesso

alcançado pelas peças acima mencionadas. Todas essas peças são levadas aos

palcos europeus. Heute Nacht regnet es Silber (=Esta noite choveu prata), por

exemplo estréia no "Torturmtheater” (=Teatro da Porta da Torre), na cidade de

Sommerhausen, com o ator Malipiero, ator italiano que atua, na época, na

Alemanha. Eurydikes Hände (=As mãos de Eurídice) é representada inúmeras

vezes na Alemanha, além de ser apresentada em língua alemã na Argentina, no

Chile, na Suíça e na Áustria. Só no Brasil, afirma Mario Cacciaglia em seu livro

Pequena história do teatro no Brasil de 1986, a peça é representada 30.000

vezes.

As peças traduzidas por Keller são, em geral, grandes sucessos de público,

se bem que de qualidade literária discutível. A respeito deste assunto, assim se

manifesta Décio de Almeida Prado:

As mãos de Eurídice correu mundo a partir da primeira representação brasileira feita por Rodolfo Mayer em 1950, porque tinha a sabedoria, ou a esperteza, de comprimir todo um elenco imaginário de personagens - marido, mulher, amante, sogro, sogra, filhos - na figura de um único interprete. 11

Keller vive, como vimos, sua primeira experiência como tradutor quando

faz a versão para o alemão de Deus lhe pague de Joracy Camargo. A tradução

alemã Vergelt’s Gott é encenada em 1948 no Teatro Serrador do Rio de Janeiro,

e em Buenos Aires, pelo grupo de Paul Walter Jakob. No já mencionado artigo

"Aventuras de Tradutor", publicado na revista Leitura, Keller fala dos 25 anos

de Deus lhe pague e chama Joracy Camargo de “seu compadre”, que lhe reabre

o caminho para as letras assim como, anos mais tarde, Henrique Pongetti lhe

reabriria o caminho para o palco.

A peça de Joracy Camargo é um imenso sucesso de público; escrita em

1932, comemora, após 30 anos, nada menos de 10.000 apresentações. Em 1973,

Joracy Camargo tem 75 anos, e o Jornal de Letras no 269 de janeiro de 1973

festeja os 40 anos da peça.

Sábato Magaldi, no entanto, em Panorama do teatro brasileiro, à página

187, nega ao texto qualquer qualidade literária, sem lhe tirar, porém, o mérito

11

Prado,Decio de Almeida- O teatro brasileiro moderno, São Paulo, Perspectiva/EDUSP,1988,p56-57.

Page 77: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

77

de ter trazido o nome de Marx pela primeira vez aos palcos, de corresponder a

um anseio de crítica à ordem burguesa e de “satirizar a filantropia estabelecida,

de porta de igreja”. E ainda: “A aceitação da peça não impede que ela nascesse

de um lugar comum, se nutrisse de frases feitas e desembocasse em

subfilosofia.”

O ponto de vista do diretor e do ator Willy Keller é, todavia, bem

diferente. No artigo, “Aventuras de um Tradutor”, publicado na revista Leitura

18 de 1958, ele dá vazão ao seu entusiasmo: “Ao escrevê-la Joracy Camargo não

se preocupava em fazer literatura [...]; preocupava-se, e muito, em dar ao teatro

o que é do teatro: um enredo bem construído, bons papéis para os atores e um

diálogo que prende a atenção dos espectadores.”

A peça de Ariano Suassuna O Auto da compadecida é traduzida por

Keller com o título de Das Testament des Hundes (=O testamento do cachorro).

A história desta tradução e da representação da peça é contada por Maria

Sommer da editora Kiepenheuer de Berlim, em carta por mim recebida em 17 de

agosto de 1995. Diz ela que na década de 50, Keller havia feito uma visita à

editora. Em setembro de 1960, Keller escrevera uma carta a Maria Sommer,

referindo-se à visita anterior e sugerindo para publicação a tradução da peça

mencionada que, entretanto, não interessara à editora. Mas, um jovem diretor

polonês, ainda desconhecido na Alemanha, Konrad Swinarski, acabara por

sugerir mais tarde à editora justamente esta peça de Suassuna. Isto levara a

Kiepenheuer a entrar em contato com Keller que já havia traduzido O Auto da

compadecida e a enviara, então, à Alemanha. No dia 21 de setembro de 1962, a

peça estreara em Berlim na tradução de Keller e sob a direção do mesmo

Konrad Swinarski: uma “estréia memorável na história do teatro”, nas palavras

de Maria Sommer.

A peça de Suassuna inaugura o famoso “Schaubühne” de Berlim –

“Schaubühne am Halleschen Ufer”. Durante os anos de 1970 a 1985, o

“Schaubühne”, sob a direção de Peter Stein, é um centro europeu do teatro

político literário. No cartaz que anuncia a peça está o nome do autor, o título

Das Testament des Hundes oder Die Geschichte der Barmherzigen (=O auto da

compadecida) seguido do subtítulo “Ein Volksstück aus dem brasilianischen

Norden” (=Uma peça popular do norte brasileiro), o nome do tradutor Willy

Page 78: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

78

Keller, dos componentes do elenco e do diretor Konrad Swinarski. O cartaz

exibe ainda uma foto, em cujo centro está a Compadecida.

Durante os anos seguintes de 1962 a 1989, o Auto da compadecida é

representado mais 26 vezes em cidades alemãs e européias de língua alemã. Em

10 de outubro de 1962, o jornal O Estado de São Paulo publica um artigo com o

título "Elogios unânimes a 'A Compadecida' na estréia alemã". As informações

contidas no artigo são todas do próprio Keller. Nos dois parágrafos iniciais do

artigo, lê-se: “O encenador Willy Keller, responsável pela versão alemã de 'A

Compadecida', de Ariano Suassuna, informa-nos que o espetáculo alcançou

grande êxito na montagem do teatro 'Schaubühne', estreado na segunda

quinzena de setembro, em Berlim.”

Comentários de 10 jornais, ainda conforme o artigo do jornal, remetidos a

Keller dão conta do apreço da crítica pelo texto e pela produção. A acolhida

anuncia uma carreira excepcional para o espetáculo, confirmando o êxito obtido

pelo autor nordestino em todo Brasil.

Para Keller, o pronunciamento mais importante é o de Friedrich Luft, nas

palavras de Keller o “mais temido crítico de cinema e de teatro”, responsável

pela “Voz da crítica” no RIAS - Rundfunk für den amerikanischen Sektor de

Berlim, folhetinista dos jornais Neue Zeitung e Die Welt, que publica

justamente neste último noticiário, de 24 de setembro de 62, uma nota que é

republicada em português no O Estado de São Paulo de 10 de outubro do

mesmo ano, dizendo o seguinte:

O elenco corajoso mostrou-se muito bem aconselhado ao escolher para inauguração do novo teatro a peça popular do Nordeste brasileiro O Testamento do Cão ou O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Um texto muito bom, ingênuo e verdadeiramente inteligente, de sólida construção e de um realismo forte. Um novo teatro tão agradável! Uma peça tão engraçada e astuta! Uma representação tão certa, surpreendente e chistosa! Desejamos a este elenco e ao seu teatro longa vida.

[...] Informa-nos Willy Keller que esta é a quinta peça brasileira representada em língua alemã, em tradução sua. Outras cinco esperam a vez, entre elas A falecida de Nelson Rodrigues e Frankel de Antônio Callado.

Page 79: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

79

A revista Humboldt 6 de 1962 publica, nas páginas 101 a 103, fotos da

encenação, menciona a autoria de Keller como tradutor e também faz alusão à

nota crítica de Luft.

Em 1986 a Édition Diá de St.Gallen também publica a peça de Ariano

Suassuna com o título Das Testament des Hundes. A edição traz um posfácio de

Ray-Güde Mertin em que não há qualquer menção a Keller. Porém, no início do

livro, encontra-se uma nota que dá conta da edição anterior, em forma de

manuscrito fora do comércio, distribuída em 1962 pela editora Gustav

Kiepenheuer de Berlim. Esclarece também que a tradução de Keller, revista para

esta edição, baseia-se no manuscrito original.

No artigo “Novo ano teatral”, publicado na revista Leitura 17 de 1959,

Keller critica não só o fechamento de várias casas de espetáculo no Rio de

Janeiro, como também a alienação dos autores teatrais em relação aos

problemas que “torturam a nação”. Considera o teatro nordestino uma exceção.

Keller menciona ainda outras obras que traduz, sem, contudo,

acrescentar outras informações. Encaixam-se nesta situação A falecida e

Vestido de noiva de Nelson Rodrigues e Almas de lama e aço de Gustavo

Barroso. Também não foram encontradas informações junto às editoras ou nos

arquivos consultados, referentes a essas obras. No seu currículo, há ainda

menção a traduções de obras, sem especificação, dos seguintes autores: Antônio

Bandeira, Eurialo Canabrava, Vinícius de Morais, Padre Antônio Vieira, Ricardo

Meirelles, Sérgio Fonta, Luiz Gutemberg e Lygia Fagundes Telles. Não foi

possível saber se Keller chega a encaminhar os originais às editoras ou se estes

continuam no seu espólio, aguardando publicação.

No âmbito da poesia, escolhe poemas avulsos de vários autores

brasileiros, nem sempre passíveis de ter o seu original identificado, e verte-os

para o alemão como, por exemplo, “Meu canto de guerra”(=Mein Kriegsruf) de

Solano Trindade, “Eram cinco estrelas do mar” (=Fünf Sterne über dem Meer)

de Joaquim Cardoso, “Lirismo” (=Lyrisches Gefühl) de Domingos Carvalho da

Silva, “Trem de ferro”(=Eisenbahn) de Manuel Bandeira, “A fuga impossível”

(=Unmögliche Flucht) de Augusto Frederico Schmidt, “O telefone” (=Das

Telefon) de Antônio Rangel Bandeira, “Soneto” (=Sonett) de Tobias Barreto,

entre outros que reproduzimos na parte do trabalho reservada a anexos. Willy

Keller junta, mais tarde, estas traduções na Antologie des Zufalls (=Antologia

Page 80: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

80

do acaso), publicada em Berlim, pela editora Rotbuch em 1960. Alguns destes

poemas traduzidos aparecem também publicados sob o título “Brasilianische

Dichtung heute” na revista Humboldt 1 de 1961, às páginas 25-36, e nos boletins

da Associação dos Antifascistas Alemães. Mais tarde, Willy Keller enfrenta o

desafio da poesia de João Cabral de Melo Neto e passa para o alemão O cão sem

plumas como Der Hund ohne Federn, publicado em Stuttgart pela editora Rot

em 1960.

No campo da prosa, Keller traduz de Afonso Henriques Lima Barreto as

Recordações do Escrivão Isaías Caminha a que dá o título alemão

Erinnerungen des Schreibers Isaias Caminha. Trata-se, no entanto, de uma

tradução nunca publicada, cujo original datilografado se encontra no arquivo da

Universidade de Hamburgo.

Além de Lima Barreto, a obra de Graciliano Ramos exerce fascínio sobre

Willy Keller, levando-o a verter para o alemão São Bernardo, publicado em

1960 pela editora Carl Hanser em Munique, e reeditado em 1962 pela editora

Aufbau de Berlim e, ainda, em 1965 pela editora Fischer Bücherei em

Frankfurt/M. São Bernardo obtém, portanto, três edições: a primeira em 1960

pela editora Carl Hanser de Munique; a segunda em 1962 pela editora Aufbau

de Berlim e a terceira em 1965 pela editora Fischer Bücherei de Frankfurt/M. A

primeira é uma bem cuidada edição capa dura e inclui um glossário. A editora

Aufbau apresenta a sua edição com uma capa de proteção e um posfácio,

assinado por Alfred Antkowiak. Neste posfácio, há informações sobre a história

brasileira desde a chegada de D. João Vl até a época da edição, além de um

retrospecto da literatura nacional, sem apelos ao exotismo; ao contrário, o autor

do posfácio mostra grande preocupação com os aspectos sociais do Brasil. Já a

terceira edição de São Bernardo é de bolso. A editora Fischer, em carta a mim

enviada em março de 1994, esclarece que, a cada edição deste tipo, costumam

ser lançados no mercado de 8 a 10.000 exemplares. Embora não saiba dizer se

todos eles chegam a ser vendidos, o fato ilustra o bom acolhimento desta obra

no mercado alemão. Encontra-se, nesta edição, um texto promocional “de

orelha”, onde o Brasil é visto como país exótico, sem dúvida, um chamariz para

o leitor, como se pode constatar a seguir: “como talvez nenhum outro livro nos

últimos anos, este romance põe o leitor em contato com o mundo fascinante do

continente sul-americano.”

Page 81: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

81

O crítico Günter Lorenz, ainda no artigo da revista Humboldt 14, de 1960,

na página 95, também se refere as estas edições, esclarecendo:

A primeira edição de um dos seus livros (o autor fala de Graciliano Ramos), o romance “S.Bernardo” (Hanser Verlag, 1960), soçobrou sem ninguém dar por isso na torrente de livros, talvez por nessa altura não ter ainda chegado a era da literatura latino-americana, talvez por a ignorância alemã das coisas da literatura alemã já não reconhecer, então, o ainda bastante generalizado meio exótico da América Latina, talvez, também, por lhe faltar o golpe de vista para o invulgarmente invulgar: a verdade é que Ramos é - como o são muitos dos seus compatriotas - moderno de uma maneira absolutamente intemporal, o que vem fundamentar a sua pretensão de ser um 'clássico'.

Logo em seguida, aparece no mercado a tradução de Vidas Secas como

Karges Leben, publicada em Frankfurt/M, em 1961, pela editora Suhrkamp.

Este texto vem a ser reeditado em 1966, agora, com o título Es ist weit bis Eden

pela editora Erdmann em Herrenhalb e, um ano depois, em 1967, com o título

Es ist noch weit bis Eden, em Stuttgart, pela Europäische

Bildungsgemeinschaft.

Em Bibliographie der aus dem Spanischen, Portugiesischen und

Katalanischen ins Deutsche übersetzten Literatur (1945-1983), por exemplo,

Gustav Siebenmann e Donatella Casetti citam as obras de Graciliano Ramos

traduzidas por Keller. Vidas secas é editado, em 1966, pela editora em

Herrenalb com o título de Vidas Secas - Es ist noch weit bis Eden (Vidas secas -

é ainda longe para o Éden) e não com o título Verdorrtes Leben (=Vidas

Ressecadas), tal como arrolado no currículo de Keller. O crítico Günter Lorenz

comenta, na revista Humboldt 6, de 1966, à página 95, num artigo intitulado

“Vidas Secas”, o seguinte:

O fato da editora Erdmann, sempre esforçada em novas descobertas literárias, ter publicado o romance de Ramos Vidas Secas, agora na bem conseguida tradução de Wilhelm Keller, numa boa apresentação gráfica e com o extraordinário título 'posteriormente sentido', 'Nach Eden ist es weit' (Para Eden é longe), merece ser considerado como realização digna de realce. Porque este maravilhoso livro não foi criado com o propósito de prender um público dirigido a temas e ações violentas.

Uma segunda edição, com o título Es ist noch weit bis Eden (=Ainda falta

muito para chegar ao Éden) é lançada em 1967 pelo “Europäischem Buchklub,

Europäischer Bildungsgemeinschaft”, em Stuttgart. A terceira edição é

Page 82: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

82

publicada pela editora Suhrkamp, em 1981, com o título de Karges Leben

(=Vidas pobres).

Finalmente, Keller traduz Angústia (= Angst), que não consta de nenhum

de seus currículos, provavelmente por ter sido publicada somente em 1978 pela

editora Suhrkamp, isto é, posteriormente à elaboração daqueles documentos.

Heloísa Ramos, em conversa telefônica comigo em junho de 1995,

informa que a iniciativa de traduzir Graciliano parte de Keller: “Um dia, em

1957 ele apareceu em casa com a tradução”. Segundo Heloísa Ramos, Keller

mostra uma grande preocupação em entender e traduzir corretamente os

termos regionais e organiza, por isso, um glossário. Heloísa Ramos alude ainda

ao empenho de Keller em conseguir a publicação das obras, não só na

Alemanha, mas em outros países europeus, bem como sua correção no

pagamento dos direitos autorais. Em suas palavras, Keller é “um grande amigo”.

Sobre as traduções de Graciliano Ramos, o próprio Keller fala em O

Jornal do Rio de Janeiro de 18 de julho de 1969 o que segue: “Tradução honesta

é difícil. No caso de Graciliano Ramos, seus personagens, dialetos, temos que

criar uma linguagem sintética, inventar o correspondente ao ambiente e às

pessoas criadas. É um problema de estilística de grande responsabilidade.”

Keller traduz também O rei da terra (Der König der Welt) de Dalton

Trevisan, não publicado, cujo texto original datilografado se encontra no

arquivo da Universidade de Hamburgo. Consta que a letra de Willy Keller era

tão ruim, que sua esposa Ellen lhe datilografava todos os trabalhos.

Numa entrevista a Vivian Wyler, encontrada num recorte de jornal sem

identificação e sem data, Keller fala sobre o trabalho da tradução: “Sempre

traduzi o que quis traduzir: geralmente livros que representam manifestações

pessoais, quase sempre opostas às oficiais.”

E no artigo “O que é uma agência literária. Livros da América Latina:

como chegam até a Alemanha” apresentado na revista Humboldt 59 de 1989, às

páginas 60-67, Ray-Güde Mertin enumera as dificuldades que a literatura

latino-americana, em particular a brasileira, encontra para ser publicada na

Alemanha: a enorme quantidade de títulos que chega às editoras, a falta de

tradutores que têm conhecimento do português, as falsas expectativas dos

leitores, a idéia de um “colorido exotismo tropical” mas também a esperança do

leitor em encontrar informações sobre o país que deveriam ser procurados mais

Page 83: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

83

adequadamente em livros especializados. Em 1987, por exemplo, são publicadas

traduções de 44 línguas, mas apenas 30 títulos do português ou seja 0,7%.

As traduções do alemão para o português

Keller traduz também do alemão para o português. No seu currículo

menciona: Erdgeist de Wedekind, traduzido em colaboração com Eustáquio

Duarte e publicado pelo Ministério da Educação e Cultura com o título de O

gnomo e Der Gruftwächter (=O guardião do túmulo) de Kafka, em parceria

com Aníbal Machado, tradução sobre a qual não há outros registros. Traduz

também para o português The comedy of errors de Shakespeare, mas a partir da

versão alemã realizada pelo escritor e dramaturgo Hans Rothe, que ele adapta

em colaboração com Henrique Pongetti, de modo a permitir encenações que não

exijam muitos recursos e destinadas a um público de baixo poder aquisitivo,

adaptação essa que chega a ser editada pelo Serviço Nacional do Teatro. Trata-

se, em realidade, de uma adaptação, ou recriação, como dizem os autores na

nota introdutória, e o objetivo é dar ao teatro brasileiro uma peça que possa ser

representada em qualquer lugar, sem grandes investimentos em cenários e

roupas, sem muitos recursos técnicos. Trata-se da idéia de levar o teatro ao povo

e, mais uma vez aqui, se faz notar a influência de Brecht.

No artigo “Autores alemães de exílio no Brasil”, publicado na revista

Humboldt 50 de 1985, nas páginas 41 e 42, Susanne Bach oferece alguns

esclarecimentos sobre o mundo do teatro no Brasil. Diz ela:

Dos escritores que tinham vinculação com o teatro, alguns foram para a Argentina, por exemplo, Paul Walter Jacob, outros para o Brasil, acima de tudo, Willy Keller, que bem ligeiro aprendeu a dominar a língua do país e traduziu, entre outras coisas, o “Erdgeist”, que aliás foi levado à cena. Junto com o autor brasileiro Aníbal Machado, traduziu “Gruftwächter” de Franz Kafka - mas essa versão nunca foi impressa nem sequer representada.

A Funarte, em carta a mim enviada em 14 de outubro de 1994, assinala

também a tradução de O jardim do paraíso, cujo título original não identifica,

de Rudolf Bernauer e a de Aquele que diz sim, aquele que diz não (=Der Jasager

Page 84: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

84

und der Neinsager) de Brecht, em colaboração com Luis de Lima, obras sobre as

quais não encontramos outras informações.

Willy Keller, crítico de arte

A partir da década de cinqüenta, Keller passa a colaborar, entre outras,

em duas publicações do Rio de Janeiro dedicadas à literatura e às artes: o

Jornal de Letras "mensário de literatura e Arte", que tem por diretor

responsável Elysio Condé e como diretores João e José Condé e Leitura, "revista

dos melhores escritores". Nestas publicações, Keller escreve, sobretudo, para as

rubricas "Teatro" e "Cinema", mas também para “Literatura”.

Em 1955 publica no Jornal de Letras, fascículo 75, (coleção arquivada no

Instituto de Estudos Brasileiros em São Paulo), o artigo “À procura da nova

literatura alemã”. O texto é escrito durante a sua estadia de dez meses na

Alemanha. Trata-se, como já se viu, de um retorno à terra natal depois de uma

ausência de 25 anos. Keller confessa que anseia por conhecer o novo teatro, a

nova literatura alemã. Em toda parte encontra, porém, cansaço e desânimo.

Uma amiga lhe diz que todos ainda estão marcados pelo medo. Os nomes da

literatura e da dramaturgia alemãs ainda são os mesmos conhecidos de Keller:

Thomas Mann, Kassak, Kreuder, Zuckmayer e Brecht.

Fica surpreso em encontrar uma literatura toda especial dedicada

exclusivamente ao rádio, à produção de peças radiofônicas. Os trabalhos são

muito bem pagos e existe uma grande preocupação literária e lingüistica. Nesta

área, Keller destaca os autores Günter Eich e H.O.Wuttig.

Outro fato que o impressiona é o trabalho do autor suíço Max Frisch

denominado O leigo e a arquitetura que, segundo Keller, não tem pretensões

literárias mas sim didáticas e instrutivas. É de opinião que o trabalho poderia

ser entendido no Brasil, pois o país tem uma arquitetura desenvolvida, expressa

em construções individuais, mas despreza o planejamento das cidades.

No artigo "Cinema e Realidade", publicado no Jornal de Letras 77, de

1955, na página 12), Keller critica severamente dois filmes alemães, identificados pelos títulos em português de “Manequim para o Rio” e “Estrela do

Page 85: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

85

Rio” que veiculam imagens do Brasil, e que revelam um desconhecimento total

da realidade brasileira.

Iniciando o artigo mencionado, Keller escreve:

Li num livro sobre história que o Brasil foi descoberto em 1500. Não acredito, isto é, não acredito mais. Convenci-me nos últimos dois meses que o Brasil é um país completamente desconhecido. Completamente, também não! As pessoas mais esclarecidas sabem pelo menos que no nosso país se fala o castelhano e que o seu ex-presidente Café Filho se chamava Péron, também ex.

O artigo prossegue assinalando os erros grosseiros contidos nos dois

filmes, mas também o que Keller chama de “exploração pornográfica de

situações dúbias à custa de um determinado povo, neste caso o brasileiro”.

Keller volta da viagem à Alemanha e fala do interesse que existe pelo Brasil e

que deveria ser aproveitado para divulgar a arte e a literatura brasileira. O

artigo é um longo elogio ao Brasil:

Aqui na Alemanha, compreendi que o Brasil, realmente, tem de oferecer ao mundo uma coisa de importância vital para o futuro dos homens, isto é, a sua humanidade.[...] O Brasil é um dos poucos países onde se reconhece ainda o valor do indivíduo. E esta bagunça brasileira que às vezes nos faz sofrer danadamente, no fundo, é muito mais humana do que a felicidade a preços fixos que os diversos governos deste mundo oferecem a seus cidadãos, transformando-os num conjunto de peças sem alma e espírito. [...] A vida no Brasil é, apesar de tudo, mais de acordo com o verdadeiro espirito do homem e isto se reflete na sua arte. Se estas manifestações de arte brasileira alcançam a Europa elas podem contribuir para que este continente, ao qual devemos tanto, saia da inércia em que se encontra e volte à vida.

Estes artigos revelam um Keller atento e participante da vida cultural

brasileira, um observador do movimento cultural no mundo, um conhecedor do

teatro brasileiro e alemão, da literatura brasileira e alemã. Keller mostra-se

também um conhecedor das técnicas teatrais.

Em 1956, Willy Keller faz um balanço geral do teatro brasileiro e publica-

o na revista Theater der Zeit (=Teatro de hoje), nº3, p. 35-39, com o título

“Brasilianisches Theater gestern und heute” (Teatro brasileiro ontem e hoje).

Neste texto, Keller faz um retrospecto histórico, tocando em vários tópicos que,

comentamos a seguir.

Page 86: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

86

Diz que o teatro brasileiro deve sua criação a um capricho do imperador,

preocupado em controlar o tédio dos seus funcionários e também em

proporcionar um divertimento à nobreza rural emergente. Keller reconhece que

o Brasil atravessa numa época em que grupos teatrais portugueses passam a

fazer tourneés pelo Brasil, visitando o Rio de Janeiro e São Paulo e, algumas

vezes aventurando-se até a Bahia e o Recife. O teatro português está, então,

fortemente influenciado pelo teatro francês e Keller conclui que o que se vê no

país, na verdade, não passa de um transplante do teatro francês falado em

português. Esse tipo de teatro dura praticamente até o início da 1ª Guerra

Mundial. Mesmo autores brasileiros escrevem peças que parecem traduções do

francês, sem considerar temas ou problemas brasileiros. Só, muito lentamente,

os atores começam a falar a língua do povo e figuras típicas do cenário brasileiro

passam a ser incluídos nos enredos. Durante a 1ª Guerra Mundial, a influência

européia diminui e surge, então, segundo Keller, uma nova geração de

dramaturgos: Henrique Pongetti, Álvaro Moreira e Joracy Camargo. É Joracy

Camargo com sua peça Deus lhe pague que impressiona profundamente Keller.

A peça tem, segundo o tradutor, dois méritos principais: a simplicidade técnica

que permite sua encenação mesmo em locais com poucos recursos e com grupos

reduzidos, o que é importante diante dos teatros pouco aparelhados e da falta de

atores no país, e o fato de trazer para o palco dois mendigos, figuras típicas das

ruas brasilieiras, introduzindo, assim, a crítica social no teatro. Keller cita, como

sucessores de Joracy Camargo, Silveira Sampaio e Abilio Pereira de Almeida,

cuja peça Santa Marta Fabril havia causado “grande comoção no ano anterior”.

Com a 2ª Guerra Mundial chegam ao Brasil diretores fugitivos do fascismo que

trazem novas técnicas e novos pontos de vista para o teatro brasileiro. Uma

crítica recorrente de Keller em seus ensaios é o que ele chama de “Starbetrieb”

(estrelismo), a concentração de grupos teatrais em torno de um ator, a estrela,

que reúne em si a pessoa do ator, diretor, produtor, e cenógrafo. Keller justifica

os problemas do teatro com as difíceis condições materiais, a extensão do

território brasileiro, os altos custos de manutenção, o reduzido retorno

financeiro devido ao pouco tempo que as peças ficam em cartaz. O teatro

amador desempenha, segundo o ensaísta, um papel importante na evolução do

teatro brasileiro. Os grupos amadores não têm problemas financeiros e também

são constituídos por pessoas de nível cultural elevado. Keller cita em especial

Page 87: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

87

Valdemar de Oliveira, criador do Teatro Amador de Pernambuco que, durante

cinco anos, encena no Brasil as principais peças da literatura mundial. É

Valdemar de Oliveira que também reconhece a necessidade da

profissionalização de diretores teatrais. Assim, contrata, entre outros, os dois

diretores poloneses Ziembisnki e Turkow, e também o próprio Keller.

No Rio de Janeiro, lembra Keller, é criado, em 1947, o grupo “Os

comediantes” do qual participam entre outros o pintor Barreto Leite, o artista

plástico Santa Rosa, a jornalista Luisa Barreto Leite e novamente Ziembinski

como diretor. Um feito memorável do grupo é a apresentação de Vestido de

noiva, de Nelson Rodrigues. Ao lado desses grupos amadores brasileiros

também existem grupos franceses, ingleses e alemães como o grupo de Keller.

Uma outra influência importante é a do teatro estudantil, onde Keller cita em

especial Paschoal Carlos Magno. Keller lamenta que no Brasil muitas gerações

sejam formadas pelo cinema e pelo rádio, ficando a influência cultural do teatro

restrita a poucas camadas sociais. Frisa sempre de novo a necessidade de um

teatro ligado aos problemas do país e considera que, somente no Nordeste,

existe um verdadeiro teatro enraizado nas tradições populares. Keller lembra os

grandes contrastes existentes no Brasil, tais como analfabetismo frente aos mais

altos anseios culturais. Esses anseios impulsionam finalmente a criação de

grupos como o Teatro Brasileiro de Comédia em São Paulo, que passa a encenar

um repertório de nível internacional. Keller termina dizendo que tudo leva a

crer que, ao imenso crescimento do teatro brasileiro nos últimos 20 anos, deva-

se seguir um período de aperfeiçoamento espiritual e também o crescimento da

responsabilidade social perante o povo .

A crítica ao teatro do Brasil, antes agressiva, cede e Keller passa a mostrar

uma atitude compreensiva misturada a uma crítica construtiva.

Em 1957, Willy Keller volta a manifestar-se na revista Leitura no 3 com o

artigo “Sentido e importância da atualidade teatral”. Neste ensaio, discorre

sobre o significado de “atual” que, segundo ele, quer dizer “presente”. Desta

forma, a crítica social contida, por exemplo, numa peça como Kabale und Liebe

(=Amor e Cabala) de Schiller só pode referir-se à própria época do autor.

Atualizá-la serve apenas para provar que está superada. Assim, Keller critica

severamente a moda corrente de “atualizar “peças históricas, modernizando a

decoração e banalizando o teor, algumas vezes, patético dos textos. Recorda

Page 88: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

88

uma encenação de Hamlet, para ele “uma tragédia que representa um ponto alto

na história humana”, em que Shakespeare liberta o homem de um destino

inexorável e permite à personagem formar seu próprio destino, na qual o diretor

transforma a personagem num “caso” ao alcance do médico da próxima

esquina.

No número seguinte da revista atrás mencionada Leitura 4 de 1957,

Keller publica à página 55 o artigo “Arquitetura teatral”, em que tece

comentários acerca da reconstrução dos teatros alemães destruídos durante a 2ª

Guerra Mundial. Considera que um teatro destinado a representações musicais

deve ser planejado de forma diferente da de um teatro destinado à

representação de peças faladas. Refere-se aos problemas da acústica e da

visibilidade, menciona os novos teatros construídos em Frankfurt M. e em

Mannheim - cidade onde havia estudado teatro. Discute como deve ser o teatro

de uma sociedade democrática. A opinião de Keller é polêmica, pois remete as

discussões para o plano do estilo arquitetônico funcional com galerias, ou em

forma de anfiteatro. É categórico, ao afirmar que a acústica tem que ser perfeita,

a visibilidade ótima e as instalações técnicas excelentes. A expressão

arquitetônica de um teatro moderno deve ser bela e denunciar, ao mesmo

tempo, o século XX, a que pertence. Keller lamenta o fato de os arquitetos não

se preocuparem com estes detalhes, uma vez que não têm noção do que seja

teatro.

No fascículo seguinte, o 5, da mesma revista, ainda no ano de 1957, Keller

publica um texto intitulado “I Bienal das Artes Plásticas de Teatro”, em que dá

testemunho de sua participação ativa no evento citado, ocorrido no Pavilhão

das Indústrias, no Ibirapuera. O primeiro prêmio vai para a Áustria que recebe a

Medalha de Ouro da Presidência da República. Como dignas de nota são

apresentadas as exposições dos Estados Unidos, bem como a apresentação do

ballet Triádico de Oskar Schlemmer da Bauhaus na Alemanha e os cenários das

óperas de Wagner. Keller considera a apresentação brasileira desse balé digna

dos maiores elogios, ainda mais levando-se em conta a total falta de apoio

oficial.

No fascículo 6 da mencionada revista, ainda no ano de 1957, Willy Keller

escreve um ensaio sobre “O teatro de Ionesco”. O crítico oferece uma análise da

peça A cantora careca levada ao palco no Rio de Janeiro sob a direção de Luiz

Page 89: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

89

de Lima. Keller não considera Ionesco um gênio ou desbravador, nem um crítico

construtivo da sociedade e de seus problemas. Segundo ele, Ionesco fica apenas

nos desafios verbais, da mesma forma que o dadaísmo, quando este já

espantava há trinta anos os burgueses com suas brincadeiras. Trata-se de uma

crítica ácida não só a Ionesco, mas também à sociedade que manipula autores,

no sentido de só conceder espaço àqueles que não produzem trabalhos ousados

demais, a ponto de perturbarem a paz dessa mesma sociedade. O autor que quer

sobreviver é obrigado a extirpar o que, na obra, há de inovador, transformando-

a numa caricatura. Willy Keller critica os teatros construídos no Brasil que

atenderiam mais à “especulação imobiliária “do que às necessidades de um

teatro moderno.

Willy Keller também escreve no jornal Correio da Manhã do Rio de

Janeiro. No artigo “Ballet triádico” publicado em 19/10/1958, faz o resumo de

uma conferência sua, proferida por ocasião da exposição do Ballet Triádico de

Oskar Schlemmer no Museu de Arte do Rio de Janeiro. O autor passa em

retrospectiva a relação entre ator e espaço no teatro grego, no teatro da

Renascença, e chega até nossos dias. No teatro grego, explica ele, não existe

separação entre palco e público já que os dois formam um espaço orgânico, na

medida em que o público rodeia os atores. A Renascença introduz o palco

separado do público por uma parede imaginária transparente. Com isso, atores

e cenários têm que orientar-se obrigatoriamente no sentido da boca da cena,

com perda de orientação espacial. O palco transforma-se numa caixa, o que já

prenuncia as cenas planas do cinema.

Schlemmer, no período de 1920 a 1929, como professor na “Bauhaus”,

tenta restabelecer a unidade espacial destruída pelo que ele chama de teatro de

caixa, ou seja, aquele palco em que existe um plano delimitado por paredes,

separado do público. O formato deste palco exige que os atores representem

bem de frente para o público. Nas representações da “Bauhaus”, os atores e

espectadores ficam reunidos na caixa, o que devolve a dimensão da

profundidade ao teatro. Desta forma, Schlemmer consegue restabelecer a

unidade palco-platéia dentro da própria caixa. Na opinião de Keller, Schlemmer

esgota a estratégia teatral em pauta, ao mesmo tempo em que impossibilita a

repetição de sua experiência. No entanto, deixa entrever já a necessidade de

ampliar o espaço da caixa para incluir atores e público.

Page 90: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

90

Em 1959, Willy Keller volta a escrever na revista Leitura no 17, redigindo

um texto sobre o “Novo Ano Teatral”. Lamenta o fechamento de três teatros

cariocas: o “Phenix”, demolido apesar de tombado pela Prefeitura, o “Glória”,

simplesmente fechado sem explicações, e o “Folies” transformado em loja

comercial, sem falar do “Serrador”, também ameaçado de fechamento. Embora

os teatros no Brasil não sejam sempre lucrativos, a lei os protege oficialmente,

no entanto, ninguém respeita a lei!

O ensaísta atribui parte da culpa ao próprio teatro atual. No teatro

primitivo, não existia separação entre palco e público, e este era envolvido

emocionalmente na ação do espetáculo de formas diversas: através da dança, do

canto, caindo numa espécie de êxtase. No teatro moderno, porém, quer-se um

público distante, envolvido de modo crítico com o espetáculo. O problema está

nas estratégias a serem usadas para atingir esse objetivo. Keller, defende, neste

texto, o uso do apelo a valores morais, espirituais, intelectuais, conquistados

pela humanidade ao longo da história. Enquanto na Antigüidade o teatro era

expressão da cultura da época, pois crença e experiência de vida formavam uma

unidade, nos dias de hoje, não conseguimos mais alcançar essa unidade política

e religiosa. Mas isso, segundo Keller, não é razão para nos abandonarmos à

indiferença.

O autor critica os autores brasileiros que não tomam conhecimento dos

problemas que preocupam a nação, excetuando, no entanto, os dramaturgos do

Nordeste. Queixa-se o articulista de que os autores brasileiros também não

prestam atenção aos demais autores sul-americanos, não reparando nos

“fenômenos” Guilherme Figueiredo e Pedro Bloch que têm suas peças

apresentadas em toda a América do Sul. Tal reconhecimento do teatro brasileiro

poderia ser expandido a outros dramaturgos e seria mesmo desejável, segundo

Keller, um intercâmbio teatral no continente. Os críticos preocupam-se em

demasia com o teatro europeu esquecendo-se de incentivar o teatro brasileiro.

Os atores continuam a esconder-se atrás de máscaras, ao invés de usar a própria

personalidade para dar vida às personagens. “Pathos” e caricatura continuam

dando a tônica do teatro no Brasil, empobrecendo, assim, as representações.

Depois do surgimento do grupo dos ”Comediantes“ e do TBC , Keller

considera que o teatro no Brasil entra, novamente, numa fase de agonia.

Page 91: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

91

Em 1965, Keller publica na revista alemã Humboldt no 5, de 1965, à

página 52, um ensaio sobre o poeta expressionista Christian Morgenstern (1871-

1914), com o título “A razão do absurdo”. Trata-se de um longo texto,

focalizando seus experimentos com a linguagem. Morgenstern dá expressão

poética aos conceitos do filósofo Fritz Mauthner. A palavra é algo fugidio,

monstro e quimera, em mudança constante. O sentido da palavra pode ser

interpretado, mas não se lhe pode atribuir uma forma imutável. Keller vê

Morgenstern como antecipador da evolução moderna que destaca a palavra da

sua conexão social, privando-a de ser um elemento intencional de significação

coletiva para tornar-se expressão da solidão individual. Morgenstern, segundo

Keller, preocupa-se com a arbitrariedade da linguagem que conceitua o mundo

e, por isso, tenta renovar o meio de expressão como protesto contra o despontar

da era das massas que transforma o homem em artigo de consumo.

Em 4 de março de 1967 sai, no suplemento literário de O Estado de São

Paulo, o artigo de Keller intitulado “Brecht, a sobremesa”. O autor analisa, aqui,

duas peças de Brecht recentemente traduzidas e encenadas no Rio de Janeiro: O

senhor Puntila e seu criado Matti (Herr Puntila und sein Knecht Matti) e

Terror e miséria do Terceiro Reich (Furcht und Elend des dritten Reiches).

Keller aponta primeiro para a alteração da grafia do título que, no Brasil,

aparece como O senhor Puntila ( e seu criado Matti) Keller lembra que Matti é

uma espécie de “alter ego” de Puntila e personagem tão importante como este,

portanto, não deve ficar entre parênteses, levando o espectador a imaginar de

antemão que se trata de uma personagem subalterna. Keller chama, igualmente,

a atenção para o fato de, na tradução e encenação brasileiras, terem sido

suprimidas a música e as canções do original. Na concepção de Brecht, o canto e

a música são os meios pelos quais o autor se comunica com a platéia de forma

direta, com o objetivo de despertar nela a competência crítica. Keller explica

que, na apresentação do Berliner Ensemble, os títulos são substituídos no início

de cada quadro pela “Canção de Puntila “, entoada por um dos personagens, a

cozinheira. Por esse ângulo, o senhor Puntila atinge a categoria de herói de

tragédia grega, mas é ao mesmo tempo apresentado como fanfarrão, o que para

Keller funciona como exemplo do fino humor de Brecht. A encenação brasileira

desvirtua a peça de Brecht, transformando-a numa mera chanchada. Está-se

diante de uma adaptação e não de uma peça original.

Page 92: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

92

No caso da segunda peça , Terror e miséria do Terceiro Reich, percebe-se

a tentativa de estabelecer uma relação entre a realidade apresentada na peça e a

realidade do Brasil. Mas, como diz Keller, o Brasil fica tão longe do terror e da

miséria do Terceiro Reich, que qualquer ponto de contato é impossível.

Keller percebe que as peças de Brecht podem ser vistas como

desatualizadas, quando observadas do prisma da crítica sócio-política do

momento, na medida em que o Terceiro Reich é passado. No entanto, ganham,

por outro lado, em autenticidade literária, pois refletem um problema

acontecido na Alemanha em um dado tempo, mas que pode vir a ocorrer em

outras partes do mundo em qualquer época, podendo mesmo ser considerado

um problema universal, traduzido pela possibilidade de determinados grupos

ficarem à mercê das loucuras de outros. Keller reconhece em Brecht um clássico

e, como tal, todas as tentativas de atualizar suas peças devem ser encaradas com

muito cuidado. É lamentável, segundo Keller, que a maioria das peças de Brecht

tenha sido traduzida do inglês, e não do alemão, para o português.

Neste mesmo ano, Keller publica o artigo “Uma poesia desconhecida de

Brecht” na revista Humboldt no7, de 1967, na página 94, em que se pronuncia

sobre seu encontro com Brecht durante a estadia na Alemanha em 1955. Keller

descreve sua tentativa para interessar Brecht pela poesia brasileira, em especial,

pela obra de Carlos Drummond de Andrade. Entretanto, Brecht limita-se a

alterar a tradução de uma poesia de Domingos Carvalho da Silva feita para o

alemão por Keller. O encontro revela-se decepcionante para Keller, como se

conclui da seguinte observação que faz no artigo : “Não houve perguntas sobre o

passado, ou sobre o destino pessoal.” Ao que tudo indica, Brecht parece ter

ignorado Keller por inteiro.

Keller colabora também com o jornal Deutsche Nachrichten de São Paulo

e com as publicações da SBAT.

Durante sua gestão do Instituto Goethe do Rio de Janeiro profere

inúmeras palestras sobre temas variados, que podem ir da música à arquitetura,

tanto no Instituto do Rio, como em outros Institutos Goethe do Brasil e também

em universidades brasileiras.

Os escritos de Keller revelam uma respeitável bagagem cultural brasileira

que certamente o credenciam como tradutor da literatura do Brasil.

Page 93: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

93

Sabe-se que Keller escreveu peças de teatro. Conhecem-se até alguns de

seus títulos, mas sua localização continua uma incógnita. Ao que tudo indica,

devem repousar no baú que contém seu espólio, na posse da família, ou com

João das Neves ou em arquivos, ainda não descobertos, estudados, catalogados

e preparados para consulta.

No currículo enviado em 1956 ao Instituto Nacional do Livro, Keller

menciona uma peça de sua autoria, O macaco Simão, peça para adolescentes de

12 a 120 anos, revista por Angelo Labanca. Não foi possível obter outras

informações sobre esta obra.

No arquivo do Instituto Hans Staden é mencionada outra obra de Keller:

Rotkäppchen und der böse Dr.Wolf (=Chapéuzinho Vermelho e o malvado Dr.

Lobo). Segundo notícia no jornal Deutsche Nachrichten de julho de 1954, trata-

se de uma peça que foi representada pelo grupo “Kammerspiele”. No verbete

relativo a Keller do Biographisches Handbuch der deutschsprachigen

Emigration, de 1983, outras obras de Keller são mencionadas: Streitgespräche

für Männer (=Discussões para Homens), Steigbügels Stimme aus der Gruft (=A

voz de Steigbügel do Túmulo) e Gelächter hinter Gittern (=Risos atrás das

grades). Além disto, não há outras informações. As obras não se encontram nos

arquivos alemães consultados, nem na biblioteca de Nova York, nem em

arquivos brasileiros.

Honrarias no final da vida

Em 1957, como se viu, Keller torna-se "Carioca Honorário" e, em 1959,

recebe o prêmio de melhor professor de arte dramática. Em 1963, recebe a Cruz

do Mérito, 1ª classe da República Federal da Alemanha. O jornal Deutsche

Nachrichten (=Notícias Alemãs), editado no Brasil em língua alemã, noticia o

fato em 6 de abril de 1963. Junto com Keller recebem a honraria Peter Amann,

da comunidade católica do Rio de Janeiro, o pastor Schupp, da comunidade

evangélica, e o diácono do asilo de Jacarepaguá. O presidente da Höchst, sr.

Kurz, recebe a Grã Cruz do Mérito.

Page 94: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

94

Em 1968, Keller recebe a medalha Alexandre von Humboldt da República

Federal Alemã, o prêmio Estácio de Sá para música erudita, atribuído pelo

Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e, ainda neste mesmo ano, por

decreto de 22 de maio, a Ordem do Cruzeiro do Sul, no grau de oficial.

São prêmios e honrarias que reconhecem o trabalho cultural de Keller,

sobretudo seu trabalho de mediador cultural.

Em fins de 1969, Keller deixa a direção do Instituto Goethe. No ano

seguinte, Keller completa 70 anos, 35 anos de Brasil.

Em agosto de 1970, Keller está na Alemanha, em Mannheim. Em carta a

Ulrich Becher, datada de 2 de agosto, fala de uma operação, de exames que

resultam satisfatórios, conta que sua aposentadoria ainda não saiu e menciona

uma viagem aos Estados Unidos.

Os anos seguintes não são ociosos. Em 1972, Keller participa como

palestrante de um seminário sobre o teatro alemão realizado no Instituto

Goethe do Rio, conforme notícia de 05/10/72 nO Estado de São Paulo. Nestes

últimos anos continua a dedicar-se às suas atividades de tradutor. A situação

familiar parece tranqüila, o filho está formado, Keller tem dois netos. Sua saúde,

porém, não resiste. O câncer abala-lhe as energias e Keller morre em 24 de abril

de 1979 no Hospital São Silvestre do Rio de Janeiro. Atendendo a seu pedido

expresso, seu corpo é cremado em São Paulo (na época não há crematório no

Rio) no dia 25 de abril de 1979.

Obras de Willy Keller:

Peças de teatro

Rotkäppchen und der böse Dr.Wolf (= Chapéuzinho Vermelho e o malvado Dr. Lobo). Peça não localizada. Mencionada em notícia no jornal Deutsche Nachrichten de julho de

1954, trata-se de uma peça que foi representada pelo grupo Kammerspiele. Streitgespräche für Männer (= Discussões para Homens). Peça não localizada. Mencionada no verbete relativo a Keller do Biographisches Handbuch der deutschsprachigen Emigration, de 1983. Steigbügels Stimme aus der Gruft (= A voz de Steigbügel do Túmulo). Peça não localizada. Mencionada no verbete relativo a Keller do Biographisches Handbuch der deutschsprachigen Emigration, de 1983.

Page 95: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

95

Gelächter hinter Gittern (= Risos atrás das grades). Peça não localizada. Mencionada no verbete relativo a Keller do Biographisches Handbuch der deutschsprachigen Emigration, de 1983. O macaco Simão. Peça não localizada. Mencionada no currículo enviado em 1956 ao Instituto Nacional do Livro. Peça para adolescentes de 12 a 120 anos, revista por Angelo Labanca.

Ensaios

In eigener Sache (=Em causa própria). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 2: 1, 1944. Die geheime Waffe (=A arma secreta). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 3:1, 1944. Politische Wandlung (=Mudança política). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 4:1, 1944. Alemães antifascistas no Brasil. In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 8:1, 1945. Os campos de concentração e a moral internacional. In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães. Rio de Janeiro, 9: 1, 1945. O ressurgimento das organizações trabalhistas na Alemanha. In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 10: 1, 1945. Der englischen Arbeiterpartei zum Gruß (=Cumprimentando o Partido Trabalhista inglês). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 11: 1, 1945. Am Rande der Zeit (=À margem do tempo). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 11: 1, 1945. Rückblick, Ausblick (=Retrospecto, perspectivas). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 12: 1, 1945. Furor teutonicus. In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 13: 7, 1946. Notwendige Betrachtungen (=Observações necessárias). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, s.n.: 4, 1946. Offener Brief an einen Genossen (=Carta aberta a um companheiro). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 15: 1, 1946.

Page 96: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

96

Ein Irrtum und seine Berichtigung (=Um erro e sua correção). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 16: 1, 1946. Europäischer Gedanke und Reaktion (=Pensamento europeu e reação). In: Boletim da Associação de Emergência dos Antifascistas Alemães, Rio de Janeiro, 17: 1, 1947. Cinema e realidade. In: Jornal das Letras, Rio de Janeiro, Vll (77): s.p., 1953. À procura da nova literatura alemã. In: Jornal das Letras, Rio de Janeiro, Vll (75): s.p., 1955. S.a. - Maior aproximação cultural entre o Brasil e a Alemanha. In: Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 18 de abr. 1957, s.p. Sentido e importância da atualidade teatral. In: Leitura, Rio de Janeiro, 15 (2): s.p., 1957. Arquitetura teatral. In: Leitura, Rio de Janeiro, 15 (4): 55, 1957. l Bienal das artes plásticas de teatro. In: Leitura, Rio de Janeiro, 15 (5): 52, 1957. O teatro de Ionesco.In: Leitura, Rio de Janeiro, 15 (6): 55-56, 1957. Ballet triádico. In: Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 19 de out. de 1958, s.p. O museu Bertolt Brecht. In: Leitura, Rio de Janeiro, 16 (7): s.p., 1958. Aventuras de tradutor. In: Leitura, Rio de Janeiro, 16 (10): s.p.,1958. Novo ano teatral. In: Leitura, Rio de Janeiro, 17 (21): .55-56, 1959. Brasilianische Dichtung Heute (=Literatura brasileira hoje). In: Humboldt, Bonn, 1 (1): p.25-31, 1961. Traduções como ponte intelectual entre o Brasil e a Alemanha. In: Humboldt, Bonn, 2, (6): 99-103, 1962. A razão do absurdo: Christian Morgenstern. In: Humboldt, Bonn, 12: p.52, 1965. A razão do absurdo. In: Humboldt, Bonn, 5 (12):.52-55, 1965. Brecht, a sobremesa. In: O Estado de São Paulo. São Paulo, 4 de março de 1967, Supl. Lit., s.p. Uma poesia desconhecida de Bert Brecht. In: Humboldt, Bonn, 7 (16): 94, 1967.

Page 97: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

97

Fatzer – ll. In: Revista da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, Rio de Janeiro, 415: 2, 1977. Seminário sobre o teatro alemão. In: O Estado de São Paulo, 5/10/1972. Exiltheater Rio de Janeiro (=Teatro de exílio no Rio de Janeiro). In: POHLE, Fritz - Emigrationstheater in Südamerika. Abseits der “Freien deutschen Bühne”, Buenos Aires. Hamburgo, Hamburger Arbeitsstelle für deutsche Exilliteratur, 1989, p. 37-54.

Traduções Peças de teatro: Eurydikes Hände (=As mãos de Eurídice, de Pedro Bloch). Esta peça foi editada pela S. Fischer em forma de livro-texto, destinada a grupos teatrais interessados na aquisição do direito de encenar a peça. A edição não se destinava ao comércio livreiro. Heute Nacht regnete es Silber (=Esta noite choveu prata, de Pedro Bloch). Esta peça foi editada pela S. Fischer em forma de livro-texto, destinada a grupos teatrais interessados na aquisição do direito de encenar a peça. A edição não se destinava ao comércio livreiro. Feinde schicken keine Blumen (=Os inimigos não mandam flores, de Pedro Bloch). Esta peça foi editada pela S. Fischer em forma de livro-texto, destinada a grupos teatrais interessados na aquisição do direito de encenar a peça. A edição não se destinava ao comércio livreiro. Sorriso de pedra, (de Pedro Bloch. Esta peça é mencionada por Keller em seus curricula, mas a editora Fischer não soube dar informações sobre ela. Vergelt’s Gott (=Deus lhe pague, de Joracy Camargo). Esta peça é mencionada por Keller em seus curricula. O original encontra-se no arquivo da Universidade de Hamburgo. A história de Carlitos, de Henrique Pongetti). Esta peça é mencionada por Keller em seus curricula, mas a editora Fischer não soube dar informações sobre ela. Amanhã se não chover, de Henrique Pongetti). Esta peça é mencionada por Keller em seus curricula, mas a editora Fischer não soube dar informações sobre ela.

Das Testament des Hundes (=O auto da compadecida, de Ariano Suassuna). 1ª ed. St.Gallen/Wuppertal, Diá, 1968. A última experiência, de Antônio Callado). Esta peça é mencionada por Keller em seus curricula.

Page 98: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

98

A falecida, de Nelson Rodrigues Esta peça é mencionada por Keller em seus curricula. Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues). Esta peça é mencionada por Keller em seus curricula. Almas de lama e aço, de Gustavo Barroso). Esta peça é mencionada por Keller em seus curricula.

Poemas Mein Kriegsruf (= Meu canto de guerra, de Solano Trindade). Este poema foi publicado na revista Humboldt 1961, e posteriormente inserido por Keller em uma antologia publicada pela editora Rotbuch de Berlim, em 1960. Também foi publicado no boletim editado por Keller “Notgemeinschaft der Deutschen Antifaschisten”(=Associação dos Anifascistas Alemães), número 13, de 27 de fevereiro de 1946. Lied des Arbeiters(=Canto do trabalhador, de Solano Trindade). Este poema foi publicado na revista Humboldt 1961, e posteriormente inserido por Keller em uma antologia publicada pela editora Rotbuch de Berlim, em 1960. Também foi publicado no boletim editado por Keller “Notgemeinschaft der Deutschen Antifaschisten”(=Associação dos Anifascistas Alemães), número 13, de 27 de fevereiro de 1946. Fünf Sterne über dem Meer (=Eram cinco estrelas do mar, de Joaquim Cardoso). Este poema foi publicado na revista Humboldt 1961, e posteriormente inserido por Keller em uma antologia publicada pela editora Rotbuch de Berlim, em 1960. Lyrisches Gefühl (= Lirismo, de Domingos Carvalho da Silva). Este poema foi publicado na revista Humboldt 1961, e posteriormente inserido por Keller em uma antologia publicada pela editora Rotbuch de Berlim, em 1960. Eisenbahn (=Trem de ferro, de Manuel Bandeira). Este poema foi publicado na revista Humboldt 1961, e posteriormente inserido por Keller em uma antologia publicada pela editora Rotbuch de Berlim, em 1960. Unmögliche Flucht (=A fuga impossível, de Augusto Frederico Schmidt). Este poema foi publicado na revista Humboldt 1961, e posteriormente inserido por Keller em uma antologia publicada pela editora Rotbuch de Berlim, em 1960. Das Telefon (=O telefone, de Antônio Rangel Bandeira). Este poema foi publicado na revista Humboldt 1961, e posteriormente inserido por Keller em uma antologia publicada pela editora Rotbuch de Berlim, em 1960. Sonett (=Soneto, de Tobias Barreto). Este poema foi publicado na revista Humboldt 1961, e posteriormente inserido por Keller em uma antologia publicada pela editora Rotbuch de Berlim, em 1960. Também foi publicado no boletim editado por Keller “Notgemeinschaft der Deutschen Antifaschisten”(=Associação dos Anifascistas Alemães), número 12, de 15 de dezembro de 1946. Der Hund ohne Federn (=O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto). Publicado pela editora Rot de Stuttgart em 1960.

Page 99: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

99

Nach dem Fall von Barcelona (=Após a queda de Barcelona, de Carlos Drummond de Andrade). Publicado no boletim editado por Keller “Notgemeinschaft der Deutschen Antifaschisten”(=Associação dos Anifascistas Alemães), número 10 de 10 de julho de 1945. Der Faschismus (=Regímen, de Guerra Junqueiro). Publicado no boletim editado por Keller “Notgemeinschaft der Deutschen Antifaschisten”(=Associação dos Anifascistas Alemães), número 5 de 1 de maio de 1944. Narrativas Erinnerungen des Schreibers Isaias Caminha (= Recordações do Escrivão Isaías Caminha , de Afonso Henriques Lima Barreto). Esse texto nunca foi publicado. O original encontra-se no arquivo da Universidade de Hamburgo. São Bernardo (= São Bernardo, de Graciliano Ramos). O romance foi publicado pela editora Carl Hanser de Munique em 1960, reeditado pela editora Aufbau de Berlim em 1962 e, finalmente, em 1965, a editora Fischer Bücherei de Frankfurt a. M. lançou o romance numa edição de bolso. Karges Leben (1961), Es ist weit bis Eden (1966) (= Vidas secas, de Graciliano Ramos). A editora Suhrkamp de Frankfurt a. M. publicou o romance em 1961. A editora Erdmann de Herrenalb reeditou o romance em 1966 com o titulo de Es ist weit bis Eden. Outra reedição foi lançada em 1967 pela Europäische Bildungsgemeinschaft com o título Es ist noch weit bis Eden e, finalmente, a Suhrkamp lançou em 1981 uma edição novamente intitulada Karges Leben. Angst (= Angústia, de Graciliano Ramos). Publicado em 1978 pela Suhrkamp. Der König der Welt (= O rei da terra, de Dalton Trevisan). Texto não publicado. Os originais encontram-se nos arquivos da Universidade de Hamburgo. O jardim do paraíso (=Der Garten Eden de Rudolf Bernauer). Esta tradução é mencionada por Keller em seus curricula. Aquele que diz sim, aquele que diz não (=Der Jasager und der Neinsager de B. Brecht). Esta tradução é mencionada por Keller em seus curricula. O gnomo (=Erdgeist de Franz Wedekind). Esta tradução é mencionada por Keller em seus curricula. O guardião do túmulo (=Der Gruftwächter de Franz Kafka). Esta tradução é mencionada por Keller em seus curricula. A comédia de equívocos (=The comedy of errors de Shakespeare). Esta tradução é mencionada por Keller em seus curricula.

Page 100: Literatura Brasileira de Expressão Alemã · PDF file1 - Walter Harlan, nascido em 1867 e falecido em 1931, em Berlim, foi jurista e jornalista dirigente da Sociedade Literária (Literaturgesellschaft)

100

Entrevista

a Werner Röder do Institut für Zeitgeschichte em Munique. Editor dos boletins da

Notbücherei deutscher Antifaschisten (=biblioteca de emergência dos antifascistas alemães)

Fonte:

Zimber, Karola Maria Augusta. Willy Keller: Um tradutor alemão de literatura

brasileira. Dissertação de Mestrado (FFLCH-USP), São Paulo, 1998.