Literatura e Letramento

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Setembro a Dezembro de 2014 FUXICO Nº 30 4 Entre desigualdades e direitos: a literatura e o letramento em contraste Alexandre Ferreira Martins Graduando de Licenciatura em Letras pela UFRS artigos Se já se consideram enfa- donhos todos os clássicos da literatura brasileira dados em uma sala de aula, quem dirá ter de ler um texto que busque discutir os problemas de se negar a importância das obras literárias para a sala de aula não pelo caráter estético que nelas é contemplado, mas sim pela forma de imaginação empática que a literatura, de uma forma geral, fornece aos seus leitores, e também pelos fatores que, ao longo da história, foram condicionados em função da própria literatura e de outros denominadores sociais. Certa vez, li um artigo de Antonio Cândido (para quem não o conhece, um grande crítico da literatura brasileira) intitulado “O Direito à Literatura”, e passei a refletir um pouco sobre se considerar a existência de um direito à literatura, da limitação do acesso às literaturas mais eruditas às classes sociais menos abastadas e, nessa mesma medida, sobre a relevância dessa discussão, considerando outras limitações que foram constituídas em detrimento da literatura. Em seu panorama histórico, os fatores de ordem social sempre foram intervenientes nas diferentes formas de acesso aos gêneros literários. Em tempos passados, outras formas de limitação de acesso a eles eram latentes na Inglaterra. O ensaio intitulado Um quarto só para si, de Virginia Woolf, retoma as escritoras que, no século anterior ao seu, tiveram de ocultar seus nomes por trás de pseudônimos masculinos. A indiferença do mundo que Keats, Flaubert e outros homens de gênio acharam tão difícil de suportar, era, no caso delas, não a indiferença, mas a hostilidade. O mundo não lhes dizia como dizia a eles: "Escrevam se qui- serem; é-me indiferente". O mundo dizia com uma garga- lhada grosseira: "Escrever, para que serve o que escre- vem?" (WOOLF, 2005, p. 81) Em pleno século XIX, Charlotte Bronte e Marian Evans sofreram com a hostilidade im- posta pelas convenções sociais da época e, por decisão própria, impuseram o anonimato, de mo -do a preservar não a si mesmas, mas sim aos textos que escreviam. Contrariamente ao caso de Gustave Flaubert escritor que subverteu a ordem social e o papel feminino alu- dido por Virginia Woolf, es- critoras como Charlotte Bronte, em Jane Eyre, acortinavam-se por meio de pseudônimos, mas não se abstinham de imprimir em suas obras as nuances da pro- blemática que existia em relação à mulher. Vítimas da indiferença de gênero, elas encaravam a autoria como uma questão mera- mente convencional, de ordem editorial, mas que refletia, indu- bitavelmente, na recepção por parte do público leitor. O acesso à literatura era cingido, como se demonstrou, por fatores de or- dem social, e o problema não se centrava no seu usufruto pelo público leitor; antes, a questão instaurava-se nas convenções que limitavam o acesso de mu- lheres à escrita literária. Quase dois séculos depois, a literatura superou, em grande parte, as distinções de gênero referidas e, em meio a uma era Cláudia Sperb

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Artigo publicado em jornal acadêmico.

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Setembro a Dezembro de 2014 FUXICO Nº 30 4

Entre desigualdades e direitos: a literatura e o

letramento em contraste

Alexandre Ferreira Martins

Graduando de Licenciatura em Letras pela UFRS

artigos

Se já se consideram enfa-donhos todos os clássicos da

literatura brasileira dados em uma sala de aula, quem dirá ter de ler um texto que busque

discutir os problemas de se negar a importância das obras literárias para a sala de aula –

não pelo caráter estético que nelas é contemplado, mas sim pela forma de imaginação

empática que a literatura, de uma forma geral, fornece aos seus leitores, e também pelos

fatores que, ao longo da história, foram condicionados em função da própria literatura e de outros

denominadores sociais. Certa vez, li um artigo de

Antonio Cândido (para quem não

o conhece, um grande crítico da literatura brasileira) intitulado “O

Direito à Literatura”, e passei a refletir um pouco sobre se considerar a existência de um

direito à literatura, da limitação do acesso às literaturas mais eruditas às classes sociais menos

abastadas e, nessa mesma medida, sobre a relevância dessa discussão, considerando outras

limitações que foram constituídas em detrimento da literatura. Em seu panorama histórico, os

fatores de ordem social sempre foram intervenientes nas diferentes formas de acesso aos

gêneros literários. Em tempos passados, outras

formas de limitação de acesso a

eles eram latentes na Inglaterra. O ensaio intitulado Um quarto só para si, de Virginia Woolf, retoma

as escritoras que, no século anterior ao seu, tiveram de ocultar seus nomes por trás de

pseudônimos masculinos. A indiferença do mundo que

Keats, Flaubert e outros homens

de gênio acharam tão difícil de suportar, era, no caso delas, não

a indiferença, mas a hostilidade. O mundo não lhes dizia como

dizia a eles: "Escrevam se qui-serem; é-me indiferente". O mundo dizia com uma garga-

lhada grosseira: "Escrever, para que serve o que escre-vem?" (WOOLF, 2005, p. 81)

Em pleno século XIX, Charlotte Bronte e Marian Evans sofreram com a hostilidade im-

posta pelas convenções sociais da época e, por decisão própria, impuseram o anonimato, de mo

-do a preservar não a si mesmas, mas sim aos textos que escreviam. Contrariamente

ao caso de Gustave Flaubert – escritor que subverteu a ordem social e o papel feminino – alu-

dido por Virginia Woolf, es-critoras como Charlotte Bronte,

em Jane Eyre, acortinavam-se

por meio de pseudônimos, mas não se abstinham de imprimir em

suas obras as nuances da pro-blemática que existia em relação à mulher. Vítimas da indiferença

de gênero, elas encaravam a autoria como uma questão mera-mente convencional, de ordem

editorial, mas que refletia, indu-bitavelmente, na recepção por parte do público leitor. O acesso

à literatura era cingido, como se demonstrou, por fatores de or-dem social, e o problema não se

centrava no seu usufruto pelo público leitor; antes, a questão instaurava-se nas convenções

que limitavam o acesso de mu-lheres à escrita literária.

Quase dois séculos depois, a

literatura superou, em grande parte, as distinções de gênero

referidas e, em meio a uma era

Cláudia Sperb

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entre os níveis mais populares e os mais eruditos.

Torna-se uma tarefa de difícil compreensão a aceitação de um direito à literatura, tendo em

vista que o letramento, fator que o deveria preceder, foi por muito tempo restrito, em dife-

rentes contextos, a classes abastadas. Em termos sociais e culturais, a utilização, por parte

da escola, dos mesmos instru-mentos de exclusão social como ferramentas de inclusão e de

desenvolvimento de compe-tência linguística representa a porta de entrada para o

letramento. É somente com a promoção de políticas educa-cionais – como as que atual-

mente vigoram no Brasil, e, mais do que de políticas, de

atitudes, por parte dos professores, que traduzam uma mudança real das represen-

tações sociais antes estra-tificadoras – que os ditos clás-sicos da literatura mostrar-se-

ão, em completude e em uni-versalidade, como possibilidades de remissão das distâncias im-

postas pela desigualdade eco-nômica. Para tanto, o letra-

mento torna-se matéria impres-cindível, admitindo-se que, du-

rante a formação do leitor, a literatura é uma das formas de comunicação na formação do su-

jeito leitor: através dela, e também de outros gêneros tex-tuais, os indivíduos têm a pos-

sibilidade de se incluírem sócio-culturalmente em contextos nos quais antes não se inseririam.

Em “O Direito à Literatura”, Antônio Cândido retoma as modi-ficações sociais por ele presen-

ciadas e, nesse mesmo sentido, sabe-se que parte do seu dis-curso prevalece em tempos

atuais – principalmente no que concerne a determinados condi-cionamentos, em função, eviden-

temente, da própria represen-tação dos sujeitos relativamente

à sociedade da qual fazem parte. Sendo assim, no segundo de-cênio do século XXI, ainda se

perpetua a divisão em classes dos elementos artísticos que compõem a visão de literatura do

autor, mas estabelece-se a importância do gênero para a formação do sujeito leitor. A

literatura assume-se como disciplina e como instrumento

na qual o acesso à informação torna-se uma possibilidade quase

universal, a problemática emer-gida é outra: a título exem-plificativo, Jane Eyre, que, em

tempos longínquos, fora um ro-mance escrito sob o advento da opressão de gênero, tornou-se,

pela lógica capitalista, um dos elementos instauradores da divisão de classes.

Os ditos grandes clássicos da literatura estão cingidos a grupos de prestígio em função da

natureza desigual do acesso ao letramento, enquanto este, por sua vez, é reduzido em função da

gênese capitalista, que o limita a classes desprestigiadas. O problema do direito à literatura

está no modo como a instituição escolar deveria assumir os

gêneros textuais, em especial os literários, intentando o letra-mento dos aprendizes, de ma-

neira a desestruturar a desi-gualdade que é originária da luta de classes. É evidente que uma

literatura depende de um público leitor que possua as condições essenciais (de ordem eminen-

temente socioeconômica) para nela imergir e a ela conceder a emergência.

Assim, para se constituir um direito, a literatura não deveria estar condicionada a fatores

como o mencionado. Para esse desvínculo, ainda que se possa valer de uma educação bancária,

aludindo às palavras de Paulo Freire, e que dissemine uma cultura escolar em vias de formar

não cidadãos, mas sim traba-lhadores, a escola representa a instituição social capaz de trans-

gredir, por meio do letramento, os limiares dos condicio-namentos socioeconômicos.

Cândido (2004) assume que o direito à literatura decorre, também, da ausência de opor-

tunidades de acesso e não da incapacidade dos leitores, como se poderia supor. Com base no

argumento do autor, as socie-dades que apresentam, por nor-ma, a igualdade social, têm como

princípio a transição, por parte de seus componentes didáticos,

Nayara

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denar mulheres e homens bra-

sileiros, especificamente o ser-tanejo sisaleiro, apesar de mui-

tas pelejas e resistências. No final do século XIX, o bea-

to Antônio Conselheiro, ar-

regimentando seguidores para construir sua utopia no povoado

de Belo Monte, às margens do rio Vaza-Barris, marcou o ima-ginário do povo nordestino, por

extensão, na população do Ter-ritório do Sisal.

A imagem-símbolo de Antô-nio Conselheiro aparece no ima-ginário dos povos do Sertão/

Sertões como um religioso, bastante devoto ao cristianis-

mo, que mobilizou milhares de cam-poneses, inspirado na ex-

pressão do sentimento de fé cristã, real-çando nesta tradi-ção o espírito de solidariedade

e de compartilhamento. (ARAÚJO, 2013, p. 141)

O misticismo do povo, que teve no sebastianismo de Antô-nio Conselheiro a sua expressão

didático, estando em correlação direta com os estudos de língua.

O estudo com base em

gêneros textuais, nesse sentido,

é o caminho através do qual o

professor pode vir a conduzir o

aluno à desmitificação dos

próprios clássicos da literatura,

entendidos, pelo senso comum,

como exemplos incontestáveis

de perfeição estética e como

f o r m a s i n a t i n g í v e i s e

cristalizadas de língua escrita.

Por essa razão, o letramento dos

aprendizes é de suma impor-

tância para o próprio estabe-

lecimento das obras literárias,

uma vez que ele abre espaço ao

livre acesso aos textos de liter-

atura e permite que os sujeitos

leitores não apenas entrem em

contato com as diferentes moda-

lidades escritas de literatura co-

mo também sejam críticos ao lê-

las. Como bem humanizador, a

literatura é, incontestavelmente,

um direito humano e, como tal,

deve ser desmitificada. Se se

estabeleceu uma ordem desigual

à distribuição dos textos

literários, na medida em que

eles próprios foram estratifi-

cados, o fundamental é que o

direito à literatura seja

compreendido, antes de

qualquer coisa, como um

resultado do direito ao

letramento.

Referências

BRITTO, L. P. L. (2007). Escola,

ensino de língua, letramento e

conhecimento. In Calidoscópio,

Vol. 5, n. 1, p. 24-30, jan/abr.

CÂNDIDO, A. (2004). O Direito

à Literatura. In. Vários escritos.

São Paulo/Rio: Duas cidades;

Ouro sobre Azul. Disponível em

< h t t p : / / p t . s c r i b d . c o m /

doc/62187793/CANDIDO-A-O-

direito-a-literatura>.

WOOLF, Virginia (2005). Um

Quarto Só para Si. Trad. e

Prefácio de Maria de Lourdes

Guimarães. Rio de Janeiro:

Relógio D’Água Editores.

Semelhantes ao Mandacaru, resistindo a tudo e todos

Edite Maria da Silva de Faria

Professora da UNEB

Sou semelhante ao mandacaru, resisto a tudo e todos.

Neuza

A voz de Neuza traz à tona

toda a luta pela vida e também cidadania dos sertanejas/os sis-

saleiras/os. Conhecer suas his-tórias, trajetórias de vida que, desde crianças, os interrogam e

interrogam a educação sobre os significados políticos da miséria,

da fome, da luta pela terra, pe-la identidade e pela sua cultura, pe-la vida e dignidade contribu-

em para afirmar seu protago-nismo.

O extraordinário espírito de luta e esperança dos seguidores

de Zumbi dos Palmares e de

Antônio Conselheiro que so-breviviam em condições pre-

cárias, as mais adversas, seja devido à pobreza e, sobre-tudo, devido às truculências

do coronelismo e ao descaso do governo.

Realidade que colocava em evidência o sofrimento e o de-sencanto que, infelizmente,

chega aos dias atuais, pois a miséria, a injustiça e as desi-

gualdades continuam a con-

Tomé