Literatura e Psicanálise - Corte e Sutura

download Literatura e Psicanálise - Corte e Sutura

of 5

Transcript of Literatura e Psicanálise - Corte e Sutura

  • 7/26/2019 Literatura e Psicanlise - Corte e Sutura

    1/5

    4 92005 - AL ETR IADisponvel em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

    L I T E R A T U R A E P S I C A N L I SE *

    c o r t e e s u t u r ac o r t e e s u t u r ac o r t e e s u t u r ac o r t e e s u t u r ac o r t e e s u t u r a

    Ruth Silviano BrandoUFMG

    RRRRRE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OA escrita como travessia no corpo da linguagem e no corpodo sujeito falante, a partir das metforas cirrgicas do corte eda sutura.

    PPPPPA L AA L AA L AA L AA L AV R A SV R A SV R A SV R A SV R A S -----C H AC H AC H AC H AC H AV EV EV EV EV Eescrita, travessia, corpo

    Valry, em seu Discurso aos cirurgies,1elogia a arte desses profissionais, destacandoa percia e o estilo que dela se depreende. H em seu texto um elogio da mo e do fazer quelhe prprio, alm da associao da mo do cirurgio dos artistas. Refletindo sobre asmutilaes que o ser humano pode se impor, Valry lembra o duplo efeito que a ferida podeter no ser humano, pois se causa de morte, pode ser tambm condio de vida, no ato

    cirrgico. Acentuando a semelhana que h entre as duas artes, a do cirurgio e a dos artistas,ele fala de um estilo cirrgico, o que me permite pensar que tambm na escrita osprocedimentos de corte e sutura podem ocorrer, produzindo diferentes efeitos no corpotextual.

    Em relao obra da mo e ao estilo cirrgico, Jean-Michel Rey,2grande leitor deValry, explicita como, neste escritor, o gesto cirrgico ganha uma dimenso e um sentidode enorme amplitude. Assim, ele mostra de que maneira as reflexes de Valry do umadimenso outra ao ato cirrgico e ao estatuto do corpo, medida que o cirurgio touche la vie,3o que permite que se perceba um lao que se estabelece entre atos materiais e

    figuras de abstrao,4e que se faa a passagem do concreto ao abstrato. A obra da moseria por isso um ndice de pertencimento espcie humana, ou seja, daquilo que torna ohumano, humano.

    Rey destaca a ligao que Valry faz entre a mo do cirurgio e o ato de desenhar ede ler, acrescentando que a funo da mo, por suas intervenes, no se limita estrita

    * Texto apresentado no Colquio LIPSI: Literatura e Psicanlise: o E da questo, dia 6/9/2003.1VALRY.Oeuvres, p. 907-923.2REY. Le tableau et la page.3REY. Le tableau et la page, p. 16.4REY. Le tableau et la page,p. 17.

  • 7/26/2019 Literatura e Psicanlise - Corte e Sutura

    2/5

    A L E T R I A - 2 0 0 55 0 Disponvel em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

    anatomia, pois se desloca para outras dimenses, inventando um outro regime defuncionamento, abrindo vias imprevisveis ao prprio ato de pensar. 5

    Outra forma de percia se pode esperar na realizao de outro corte, que, pensadotopologicamente, engendra outra lgica de espao e tempo, na qual os termos se articulamna verticalidade de umponto instante que aponta para uma outra ordem, como se nota num

    fragmento de texto de Eduardo Vidal:

    o corte divide uma superfcie delimitada por uma borda de dupla volta em duasdimenses heterogneas que se mantm conjugadas no axioma do fantasma: essa voltaa mais que o corte oferece ao analisante possibilitar dizer em que ponto-instanteseengendrou o desejo do analista.6

    Entendo que esse ponto instante seja crucial para a realizao de uma travessia quese opera no corpo mesmo da linguagem, propiciando novo recorte corporal que terconseqncias ou efeitos da maior importncia para o sujeito que, por sua condio mesmode falante, pode ser mortificado pela lmina cortante da linguagem.

    Recorro aqui palavra experincia, um termo cujo radical aponta para a idia deperigo, pois se pode pensar que a fina linha que enlaa o real ao simblico da ordem do fiofino de uma lmina, do fio da navalha, cujo risco pode ser aquele de uma operao que sefaz com um corte de justa medida. Como o corte cirrgico, o corte na superfcie da linguagempode produzir uma ferida e sua posterior cicatriz ou uma amputao, que uma violnciaque ultrapassa o buraco da linguagem.

    Como nas cirurgias, o corte na superfcie da linguagem, corte no corpo literrio quese estende como uma grande superfcie, pode produzir uma ferida ou mais uma amputaoe sua posterior cicatriz, ou no. Quando Valry fala em corte e sutura, referindo-se aos

    cirurgies, pode-se pensar na preciso que se deve esperar de uma habilidade prpria tantodo cirurgio como de quem trabalha com a espessura nem sempre capturvel da linguagem.

    Em relao travessia do sujeito, possvel pensar no resto que o corte produz ou nasutura que se deve optar por se fazer ou no. preciso que se faa um uso determinado dosrestos, objetos a,que podem ou no obturar a falta, o que faz uma enorme diferena emtermos de uma clnica ou de um determinado tipo de escrita: psicoterapias ou literaturabelles-lettres.

    Estou ainda tentando explicitar a articulao entre linguagem, o escrito, a escrita eclnica e, para isso, recorro a um texto ainda indito de Celso Renn Lima, no qual o autor

    afirma:

    Assim, o objeto pequeno a, instalado no lugar de agente, pode fazer trabalhar umsujeito para que S1, um nome, possa ser produzido, deslocando o saber para o lugar daverdade. Este movimento, se fizermos uma pequena retrospectiva, nos diz que odeslocamento efetivado foi produto da transferncia que , na verdade, o motor capazde fazer girar os discursos.7

    5REY. Le tableau et la page,p. 17.6VIDAL. Revista da Escola Letra Freudiana, p. 46-47.7LIMA. Uma histria... uma anlise.. . uma passagem..., p. 6. (Texto indito)

  • 7/26/2019 Literatura e Psicanlise - Corte e Sutura

    3/5

    5 12005 - AL ETR IADisponvel em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

    Assim uma travessia pode acontecer, conclui Celso Renn Lima, falando daseparao entre o sujeito barrado pela castrao e o objeto aao qual se articulava.

    Referindo-se a outras formas de clnica ou de discurso, Renn Lima revela como oobjeto a,em vez de fazer girar os discursos, pode paralis-los:

    vemos o objeto pequeno a, no como causa, mas como algo a ser encampado pelosaber, na esperana de que possamos ter sujeitos cuja diviso fique escamoteada pelauniformidade deste saber que comanda a partir mesmo da incidncia da mestria sobrea qual ele se sustenta.8

    De forma anloga, penso na possibilidade de uma travessia da escrita como umpercurso, um trajeto feito pelo escritor com sua obra, caminho entrelaado sua vida,capaz de provocar viradas que vo produzir novas escanses e, da, quem sabe, novaspalavras e invenes ou reinvenes da vida.

    H vrias espcies de fios ou linhas, materiais ou metafricos, como os que tecem avida, a linguagem. Ou fios ou linhas com que se tecem tapetes, tecidos, bordados e tambma tapearia literria feita de escrita. Fios de escrita como os do croch ou do frivolit. Ocroch tem um instrumento: a agulha de croch. Ela pode juntar fios diferentes, fios decores diferentes ou vindos de peas diferentes, de tecidos heterogneos, at de temposdiferentes. No me esqueo de que frivolitsignifica tambm frivolidade, palavra que meparece apontar para leveza e a aparente inutilidade das coisas leves, frvolas, a que falta opeso da seriedade. Afinal, as coisas srias tm que estar ligadas a uma produtividade, tmque ser teis e produzir coisas que do dinheiro na sociedade do gozo consumista.

    Alis, lembro que, por vezes, os fios do croch, como os dofrivolit, podem se estenderinfinitamente, a partir de modelos reinventados, ou, ao contrrio, prolongar-se

    penosamente, num tormento sem fim das coisas que no acabam, de forma semelhante aoalongar-se de um fio intil e desesperador, se o sujeito no se desenreda dele: como umaanlise sem fim ou um livro sem fim, cujas frases, como fios, se arrastam, numa proliferaomortfera de significantes.

    Um escritor pode escrever para viver ou viver para escrever. Escrever para viverseria escrever para sustentar a vida, para se sustentar a sem morrer, adoecer ou suicidar.Viver para escrever seria dar forma ao caos da vida, dar forma voragem das palavras queo assolam e o levam loucura.

    Em qualquer dos casos, h que haver certa percia para que o escritor ou aquele que

    sofre com o fio contnuo de suas repeties no se confunda demais com os fios que podemacabar por encarcer-lo, como o sujeito pode se deixar mortificar pelos significantes que oparasitam.

    A vida, enquanto no-loucura, um tempo que resiste s formas radicais de alienaodo sujeito, quando ele no pode suportar a dor da perda, deixando-se ir em direo melancolia ou ao suicdio.

    Sobre Artaud, sua loucura, sua travessia na loucura e sua dor de viver, muito seescreveu, mas quero me referir a dois trabalhos sobre ele. O de Jacques Derrida9destaca o

    8LIMA. Uma histria... uma anlise.. . uma passagem..., p. 6. (Texto indito)9DERRIDA; BERGSTEIN. Enlouquecer o subjtil.

  • 7/26/2019 Literatura e Psicanlise - Corte e Sutura

    4/5

    A L E T R I A - 2 0 0 55 2 Disponvel em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

    que ele chamou de subjtil na obra do poeta, valorizando como ponto de letra, lugar litoralque aponta para o real, esse lugar entre o sujeito e o objeto, de onde foi possvel fazeremergir novamente um novo sujeito e sua obra, mesmo que de forma breve ou precria.

    Outro trabalho o de Jean-Michel Rey, que escreveu um livro notvel sobre Artaude sua volta escrita, depois de anos no silncio da loucura. Diferentemente de Derrida,

    que fez uma leitura pontual, a partir de apenas um conceito operacional, Rey privilegiouum longo processo de passagem que Artaud fez por textos alheios, por identificaes oufontes das quais teve que se separar num determinado momento para criar um nome, fazeruma assinatura:

    A escrita comea quer dizer, recomea a cada vez que o sujeito encontra seudialeto ou o inventa, mesmo que tal fato ocorra atravs da traduo, a cada vez que semostra capaz de se separar de suas fontes, de se arrancar da marca do outro, de sesubtrair da empresa anterior, a cada vez que possa captar a necessidade de pontos deretorno, a cada vez que tenta recuperar a infncia, isto , que aprende a falar por simesmo, em seu nome.10

    Levando em conta a extenso do campo literrio formado de fios diversos, de umcampo cultural em que as lnguas se traduzem e se modificam, atravs do trabalho com atradio que implica a traduo, a reescrita, o ensasta mostra que o escritor um leitorque passa por textos alheios, copia-os, recria-os, d-lhes um novo estatuto.

    Nascer na poesia, nascer da poesia, renascer na lngua e torn-la viva, arrebatando-a da petrificao do senso comum, das engrenagens por vezes enferrujadas da gramtica,da rigidez de uma semntica congelada, dessemantizando-a, tudo isso supe uma operaode risco no corpo do texto, corpo que tem uma histria, uma tradio. Esse gesto de recriao

    deve ter a percia de quem corta e sutura ou deixa as fissuras por onde a escrita possarespirar, por onde a falta se deixa ver.

    Passar pela traduo, pelo dilogo bablico das lnguas, pelo campo de limitesilimitados da literatura, revisitando suas fontes, articulando fronteiras, franqueando inditasveredas, passando pela resistncia dos litorais, rasurando, acrescentando enxertos, revirandoas bordas linguageiras, rearranjando as peas do conjunto arquitetnico talvez seja esteo processo cirrgico que aponta para o E da questo: processo de leitura, no mais ahermenutica, mas a que opera, corta e/ou sutura.

    RRRRR S U M S U M S U M S U M S U M Lcriture comme traverse dans le corps du langage et dansle corps du sujet parlant, suivant les mtaphores chirurgicalesde la coupe et de la suture.

    MMMMMO T SO T SO T SO T SO T S-----C L SC L SC L SC L SC L Scriture, traverse, corps

    10REY. O nascimento da poesia, p. 72-73.

    AA

  • 7/26/2019 Literatura e Psicanlise - Corte e Sutura

    5/5

    5 32005 - AL ETR IADisponvel em: http://www.letras.ufmg.br/poslit

    RRRRRE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A S B I B L I O G R F I C A SB I B L I O G R F I C A SB I B L I O G R F I C A SB I B L I O G R F I C A SB I B L I O G R F I C A S

    DERRIDA, Jacques; BERGSTEIN, Lena. Enlouquecer o subjtil.So Paulo: Unesp, 1998.

    LIMA , Celso Renn. Uma histria...uma anlise...uma passagem...(indito).

    REY, Jean-Michel. Le tableau et la page.Paris: LHarmattan, 1997.

    REY, Jean-Michel. O nascimento da poesia.Antonin Artaud. Trad. Ruth Silviano Brando.Belo Horizonte: Autntica, 2002.

    VALRY, Paul. Oeuvres.Paris: Gallimard, 1957.

    VIDAL, Eduardo. Psicanlise em intenso e em extenso. Revista da Escola da Letra Freudiana.Documentos para uma escola. Rio de Janeiro, n. 3. p. 46-47, 2001.