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2009 Marcos Soares LITERATURA EM LÍNGUA INGLESA Tendências Contemporâneas

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2009

Marcos Soares

LITERATURA EM LÍNGUA INGLESA

Tendências Contemporâneas

IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

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Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.

S676 Soares, Marcos. / Literatura em Língua Inglesa: Tendências Contempo-râneas. / Marcos Soares. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2009.

152 p.

ISBN: 978-85-387-0982-4

1. Literatura inglesa – História e Crítica. 2. Literatura inglesa – Movimentos Literários. 3. Literatura inglesa – Tendências. I. Título.

CDD 820.9

Marcos Soares concluiu pós-doutorado em Literatura Americana pela Universida-de de Yale (Estados Unidos), é doutor em Literatura Inglesa e graduado em Inglês pela Universidade de São Paulo (USP).

Marcos Soares

Sumário

A tradição e o romance contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel ........ 11

O sonho americano .................................................................................................................. 11

A crise de 1929 ........................................................................................................................... 13

Os pobres no romance americano ...................................................................................... 15

A tradição e o conto contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel ........ 25

O conto em língua inglesa ..................................................................................................... 25

Tendências contemporâneas do conto em língua inglesa ........................................ 31

A tradição e o teatro contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel ........ 37

O modelo dramático ................................................................................................................ 37

A crise do drama burguês ...................................................................................................... 39

A crise do drama e o teatro da língua inglesa ................................................................. 40

A literatura de fantasia em inglês ....................................... 51

Fantasia: escapismo ou desejo da utopia? ....................................................................... 51

O romance e a história romanesca...................................................................................... 53

A literatura de fantasia moderna ......................................................................................... 55

A literatura de terror em língua inglesa ........................... 63

O romance gótico...................................................................................................................... 63

O desenvolvimento da tradição do gótico ...................................................................... 66

A literatura de terror cruza o Atlântico .............................................................................. 68

A ficção científica em língua inglesa ................................. 77

As origens ..................................................................................................................................... 77

A crítica aos regimes totalitários .......................................................................................... 78

A crítica às “utopias” capitalistas .......................................................................................... 80

A literatura pós-colonial em língua inglesa .................... 87

As origens históricas do pós-colonialismo ....................................................................... 87

O pós-estruturalismo ............................................................................................................... 89

A literatura pós-colonial.......................................................................................................... 91

Hibridismo: celebração ou violência? ................................................................................ 93

A literatura da Era Bush ........................................................101

As origens históricas da Era Bush ......................................................................................101

A ofensiva conservadora ......................................................................................................104

A Era Bush ..................................................................................................................................105

A literatura da Era Bush .........................................................................................................106

O futuro .......................................................................................................................................108

Literatura e outras artes I: as literaturas de língua inglesa e o cinema ...................115

Literatura e cinema: uma relação de mais de um século ..........................................115

O cinema busca sua especificidade ..................................................................................117

Adaptação ou interpretação? .............................................................................................118

Literatura e outras artes II: as literaturas de língua inglesa e a música ....................129

Literatura e música: poesia, teatro, romance ................................................................129

O jazz como resistência .........................................................................................................131

Música e estereótipo na prosa americana ......................................................................133

A música como forma ............................................................................................................135

Gabarito .....................................................................................141

Referências ................................................................................145

Anotações .................................................................................151

Apresentação

Dada a importância da língua inglesa no mundo, não é de se espantar que, entre todas as literaturas nacionais da atualidade, as de língua inglesa tenham enorme destaque na produção cultural contemporânea. Basta uma análise rápida das listas de livros mais lidos de quase todos os países do mundo para verificar a pujança das literaturas em idioma inglês. Impulsionada pela poderosa indústria cultural americana, que se serve de contos, poemas, peças e romances em inglês em suas adaptações cinematográficas e televisivas, é com tranquilidade que as literaturas de língua inglesa dominam o lucrativo mercado editorial mundial.

Este livro procura traçar algumas das tendências contemporâneas dessa lite-ratura. Para isso, buscou-se mapear a produção em diversos gêneros literários (a poesia, o conto, a peça teatral e o romance), escritos por autores de diversos países de língua inglesa. Embora os Estados Unidos e a Inglaterra tenham maior desta-que, o escopo do livro inclui autores sul-africanos, neozelandeses e australianos.

A trajetória de cada capítulo obedece a uma mesma estrutura: procura-se lo-calizar as tendências contemporâneas dentro de certas tradições literárias. Assim, a tentativa é de estabelecer os modos pelos quais autores e obras atuais dialogam com uma linhagem que nasceu no passado. Logo, além dos escritores contempo-râneos, os capítulos retomam o trabalho de clássicos como William Shakespeare, Edgar Allan Poe e James Joyce, para nomear apenas alguns.

Do ponto de vista dos assuntos abordados, procurou-se analisar não apenas os gêneros, obras e autores do chamado cânone literário (aqueles consagrados pela crítica e pelas histórias e manuais de literatura) como também aspectos da produção literária contemporânea que até pouco tempo eram desdenhados pela crítica mais “séria”, mas que ganham importância cada vez maior nas discussões atuais, como é o caso da ficção científica e da literatura de fantasia. Além disso, os dois últimos capítulos se voltam para a análise das relações entre a literatura e outras artes – a saber, o cinema e a música.

Um último aspecto que é importante enfatizar é a visão de literatura que está presente em cada capítulo. Aqui a literatura é vista como um instrumento de des-coberta e análise do mundo e da sociedade em que foi produzida. De acordo com essa visão, aspectos da vida social que estão difusos na vida cotidiana podem ser potencializados na literatura, de modo que nossa percepção deles possa ser mais clara. Por isso, é muito comum que cada capítulo traga informações históricas importantes para a compreensão da obra literária.

Finalmente, procurou-se sempre que possível comentar obras que tenham tradução brasileira, com o intuito de encorajar o leitor a usar este livro como ponto de partida para a leitura das próprias obras literárias, que jamais podem ser substituídas por comentários ou resumos.

Divirtam-se!

Marcos Soares

Desde sua criação, o Prêmio Nobel de Literatura teve um papel funda-mental na criação do cânone das literaturas em língua inglesa, revelando para um grande público internacional autores que se tornaram importan-tes no mercado literário e nos programas dos cursos de Letras no mundo todo. Alguns são muito conhecidos no Brasil: os nomes dos dramaturgos Eugene O’Neill e Samuel Beckett, dos romancistas William Faulkner, Ernest Hemingway e John Steinbeck e do poeta T. S. Eliot figuram no programa de praticamente todo curso de Letras Inglês no país.

O Nobel foi criado em 1901 e até hoje já foi concedido a 105 escritores. As literaturas de língua inglesa aparecem de modo bem visível na lista de agraciados: das 105 pessoas premiadas, 26 são de língua inglesa. O pri-meiro foi o romancista britânico Rudyard Kipling (1865-1936), em 1907, enquanto a última premiação para escritores de língua inglesa é bem re-cente: a inglesa Doris Lessing (1919-) em 2007.

Mas como o universo literário desses 26 autores é bastante amplo, vamos nos concentrar em quatro romancistas norte-americanos que rece-beram o prêmio: Sinclair Lewis (1885-1951), John Steinbeck (1902-1968), William Faulkner (1897-1962) e Toni Morrison (1931-), procurando traçar a trajetória que liga a tradição dos três primeiros à prática contemporânea de Morrison, uma das mais expressivas romancistas de língua inglesa da atualidade.

O sonho americanoDos 26 escritores de língua inglesa que já receberam o Nobel, nove

são norte-americanos. É praticamente impossível identificar um elemento único que agrupe esses escritores, que se dedicam a gêneros, assuntos e experiências formais bastante diversos. Mas se quiséssemos fazer uma

A tradição e o romance contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel

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A tradição e o romance contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel

tentativa de generalização, poderíamos dizer que na obra de todos eles existe uma crítica ao que nos Estados Unidos se conhece como o american dream, o “sonho americano”.

O que é, afinal, o sonho americano? A expressão foi cunhada pelo historiador James Truslow Adams em 1931:

O sonho americano é o sonho de uma terra na qual a vida deveria ser melhor, mais rica e mais plena para todos, com oportunidades para cada pessoa de acordo com suas habilidades. Não se trata de sonhar simplesmente com carros caros e salários altos, mas com uma ordem social na qual cada homem e cada mulher tenha a chance de alcançar o máximo de seus desejos e capacidades e ser reconhecido pelo que é, independente das circunstâncias de seu nascimento ou posição social, sem encontrar os obstáculos que existem nas velhas civilizações, sem as restrições que se desenvolveram para o benefício de certas classes em detrimento do ser humano de toda e qualquer classe. (ADAMS, 2001, p.10. Tradução nossa.)

É claro que, ao se referir às “velhas civilizações”, o historiador relembra os mitos tanto dos primórdios da fundação da nação americana quanto da Guerra de Independência (1776). Em ambas as ocasiões, tratava-se justamente de reco-meçar na terra nova sem as restrições dos antigos regimes europeus – no caso, o domínio inglês. Aquilo que se conhece como a época de ouro da literatura nor-te-americana, escrita nos séculos XVIII e XIX, celebra justamente esse sonho de liberdade universal, distante da perseguição religiosa, dos preconceitos e das restrições econômicas que reinavam na velha Europa. Em contraste com o ca-ráter predatório da colonização europeia do Brasil, nos Estados Unidos havia o desejo real de construção de uma sociedade mais justa, em que os problemas de classe social que perturbavam a ordem europeia fossem deixados definitiva-mente para trás.

O sonho americano persiste de tal modo no imaginário coletivo da vida nos Estados Unidos que até Barack Obama retomou essa ideia em sua campanha:

Qual é a promessa que devemos cumprir?

É a promessa que afirma que cada um de nós tem a liberdade de fazer de nossas vidas aquilo que quisermos, mas que também temos a obrigação de tratar a todos com dignidade e respeito.

É a promessa que diz que o mercado deve recompensar o esforço e a inovação, gerando crescimento, mas que os negócios devem cumprir sua responsabilidade de criar empregos, cuidar do trabalhador americano e respeitar as regras do jogo.

Esta é a promessa da América que devemos manter. (OBAMA, 2009. Tradução nossa.)

Igualdade econômica, respeito coletivo, liberdade e fraternidade universais: fazem parte do discurso de Obama os ideais expressos na Revolução Americana, há mais de dois séculos.

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A crise de 1929Embora poucos possam duvidar da justeza dos princípios defendidos pelo

ideal do sonho americano, quando o historiador James Adams cunhou a expres-são, em 1931, a possibilidade concreta da sua realização parecia mais distan-te do que nunca: alguns anos antes, em 1929, o mundo havia sofrido uma das suas piores crises econômicas. A quebra da Bolsa de Valores de Nova York re-presentou uma verdadeira catástrofe e marcou o fim de uma década de imensa prosperidade nos Estados Unidos. Fortunas foram perdidas do dia para a noite, causando desemprego em massa e um grau de pobreza que o país jamais havia visto. Esse período da história do país é conhecido como a Grande Depressão ou meramente Depressão. Dizem os historiadores Nevins e Commager:

Com rudeza dramática e chocante, veio a quebra de outubro de 1929. No dia 24, mais de 12 milhões de ações mudaram de mãos num delírio de vendas; no dia 29, veio a catástrofe. Ações de companhias de primeira linha, como a American Telephone and Telegraph, a General Electric e a General Motors, caíram de 100 a 200 pontos numa semana. No fim do mês, os acionistas haviam sofrido perdas no montante de mais de 15 bilhões de dólares; no final do ano a retração dos títulos de todos os tipos atingira a fantástica soma de 40 bilhões de dólares. Milhões de investidores perderam as economias de toda uma vida, mas a espiral da depressão não parou aí: as investidoras fecharam suas portas, fábricas interromperam suas atividades, bancos faliram e milhões de desempregados andavam pelas ruas à procura de trabalho, em vão. Centenas de milhares de famílias perderam seus lares; a coleta de impostos caiu a um ponto em que as cidades eram incapazes de pagar seus professores primários; a indústria da construção quase morreu; o comércio exterior, já muito afetado, declinou a níveis sem precedentes. (NEVINS; COMMAGER, 1986, p. 454)

É desse cenário desolador que surgirá uma nova geração de escritores norte--americanos.

Sinclair LewisMesmo antes da crise de 1929, Sinclair Lewis, o primeiro escritor americano

a ganhar o Nobel, em 1930, já havia denunciado a estreiteza da vida americana em seus melhores romances: Rua Principal (1920) e Babbitt (1922). Em ambos os casos, o escritor tece uma crítica feroz ao materialismo da vida americana e à mentalidade tacanha do cidadão comum. Babbitt, o personagem principal do romance do mesmo nome, é o protótipo do americano médio dos anos 1920, um homem de negócios de classe média, de mentalidade estreita e hábitos me-díocres. O romance, que tem um humor ácido, mostra o lado ridículo de uma vida sem ambição, regrada e mecânica, que gira em torno da rotina e do dinhei-ro. A vida da pequena cidade americana, que antes fora elogiada como exemplo máximo de uma vida afeita aos valores simples, honestos e corretos, é vasculha-

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da impiedosamente pela lente de Lewis, que revela o lado mesquinho de uma existência liberta de qualquer desejo ou necessidade que não os da simples so-brevivência material.

O sucesso dos romances de Sinclair Lewis demonstrou que o país estava pronto para uma literatura de crítica social, que fizesse um mapeamento das mazelas de uma sociedade aparentemente perfeita, mas que escondia proble-mas que mereciam discussão ampla. Consolidou-se, assim, nos Estados Unidos, o que a crítica chamou de literatura de consciência social, principalmente no ro-mance, gênero que aliava a descrição de pessoas e lugares à análise de situações e à reportagem, e que parecia, portanto, especialmente apropriado para a tarefa de levar adiante a denúncia da crise do sonho americano.

Para os escritores engajados socialmente, tal tarefa parecia ainda mais urgen-te depois de 1929, quando a situação ficou pior, fazendo com que o número de pessoas que tinham acesso ao sonho americano ficasse ainda mais restrito. É claro que os pobres e as ditas minorias raciais e sexuais – mulheres e negros prin-cipalmente – ficaram excluídos do sonho. Os escritores dos quais vamos tratar se singularizam justamente por reintroduzirem a perspectiva desses grupos na li-teratura norte-americana, dando visibilidade às suas vidas e aos seus problemas. Como esses problemas não são especificamente americanos, pois se encontram em praticamente todos os países do mundo, o assunto desses romances deixou de ser “regional” e específico para ganhar o centro das discussões em diversos países, onde milhares de pessoas também eram atraídas para as cidades indus-triais mais ricas, em seguida sendo jogadas na miséria física, psicológica e espi-ritual mais abjeta. Essa literatura, portanto, encontrou um público interessado muito além das fronteiras dos Estados Unidos, o que em parte explica a escolha dos escritores para a premiação do Nobel.

Vale a pena lembrar que, com a crise financeira do final de 2008, uma das ten-dências contemporâneas do mercado literário de língua inglesa é reavivar o inte-resse por esses escritores. Isso já está acontecendo nos Estados Unidos e talvez pos-samos esperar por algo parecido no Brasil, com relançamentos e novas traduções.

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Os pobres no romance americano

John SteinbeckDe todos os romancistas americanos premiados que receberam o Nobel,

talvez um dos mais conhecidos seja John Steinbeck, premiado em 1962. Steinbeck nasceu na Califórnia e situou muitas de suas histórias no vale de Sali-nas, perto de São Francisco, região enormemente atingida pela crise econômica do período. Seus trabalhos mais conhecidos são Ratos e Homens (1937) e A Leste do Éden (1952), mas seu romance mais importante é, sem sombra de dúvida, As Vinhas da Ira, escrito em 1939 e banido de várias bibliotecas e escolas públicas do país por “imoralidade”. Nele, há muito pouco que lembre o sonho americano. O livro conta a história de migrantes – a família Joad – expulsos de suas terras em Oklahoma após a Depressão. De fato, a produção agrícola foi uma das áreas mais terrivelmente afetadas pela crise e milhares de famílias se viram impossibilitadas de pagar suas dívidas, perdendo suas terras para os bancos de Wall Street, em Nova York. O romance narra a viagem da família para a Califórnia, onde esperava conseguir emprego na plantação de laranjas. A viagem é descrita com enorme realismo e crueza de detalhes, em parte pelo fato de o livro ser baseado em re-portagens escritas por Steinbeck para um jornal em São Francisco.

Um dos elementos mais notáveis desse romance extraordinário é o jogo que Steinbeck faz com o foco narrativo. Como isso se dá no livro? Desde o início da história, o narrador acompanha os membros da família e adota seu ponto de vista. Ao adotar essa perspectiva, ele deixa que o leitor se aproxime das personagens, que se revelam pessoas como nós, com desejos, medos e sonhos. Assim, a escolha do foco narrativo revela a humanidade e a dignidade épica das personagens, cujas posses, tradição e memória são espoliadas, mas que resistem mesmo assim.

Porém, quando toma o ponto de vista das pessoas que observam a família de pobres, adotando a linguagem e também os preconceitos de observadores distan-tes que veem naquele grupo de pessoas esfarrapadas nada além de um bando de animais, o narrador permite que os leitores possam comparar as diversas perspec-tivas que o romance oferece, tirando suas próprias conclusões. O humanismo re-sultante é realmente comovente e o romance é justamente lembrado como tendo uma das mais tocantes cenas de conclusão da história da literatura mundial.

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A tradição e o romance contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel

William FaulknerOutro importante ganhador do Nobel é o romancista William Faulkner, pre-

miado em 1949. Como Steinbeck, ele também faz parte da tradição de escritores que mapeou a catástrofe da Depressão e seu efeito sobre as pessoas simples. Mas em Faulkner o cenário é diferente: ele descreve a vida no Sul dos Estados Unidos e a tentativa de algumas pessoas de manterem certa pose aristocrática (típica do Sul americano no século XIX) enquanto procuram lidar com a dificul-dade econômica causada primeiro pela derrota na Guerra Civil em 1864, para o Norte industrializado, e depois pela Depressão de 1929.

Para o Sul norte-americano, que foi aniquilado na Guerra Civil, forçado a mo-dernizar uma sociedade que mal havia se “aburguesado” (modernizado) e ainda se via preso às tradições sulinas mais antiquadas – esses são temas de épicos como ...E o Vento Levou (1936), de Margareth Mitchell –, os resultados logo de início se revelaram desastrosos. Sua estrutura social, econômica e política per-manecia essencialmente rural, estruturalmente despreparada para lidar com os desafios e ideais da industrialização rápida que haviam se tornado os slo-gans dos ideólogos da modernização. Montava-se, assim, o cenário que viria a mobilizar as simpatias e os esforços técnicos e temáticos de William Faulkner (cf. SOARES, 2003, p. 50).

Entre seus melhores romances estão O Som e a Fúria (1929) e Luz em Agosto (1932), compostos em uma prosa exigente, que quebra a cronologia tradicional e experimenta diversos focos narrativos, incluindo as perspectivas de analfabe-tos, doentes mentais, crianças e marginais.

Uma de suas obras mais importantes é Enquanto Agonizo, escrita em 1930, ou seja, apenas um ano após a quebra da Bolsa de Valores. Esse romance é bem pa-recido com As Vinhas da Ira, pois também é a história da viagem de uma família de brancos pobres.

Mas no romance de Faulkner a audácia da arquitetura geral é ainda maior: a narrativa está dividida em meia centena de pequenos capítulos, cada um en-cabeçado pelo nome da personagem que monologa. Essa descentralização faz com que o leitor descubra aos poucos e com dificuldade o que está acontecen-do – as peripécias de uma família de lavradores pobres que viaja para enterrar a mãe morta. Enquanto o corpo de Addie apodrece no trajeto para a cidade de

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Jefferson, seus filhos e seu marido refletem sobre os eventos de suas vidas mise-ráveis de forma não linear, sem começo, meio e fim bem delimitados. Cada um fala de um trecho da história e é o leitor que tem que montar o quebra-cabeça, formando um todo a partir da soma desses trechos.

E ainda vale a pena enfatizar que alguns dos efeitos mais curiosos do livro têm origem em dois procedimentos, que podem pegar de surpresa o leitor menos avisado:

muitas vezes, o mesmo fato é narrado por personagens diferentes, que �apresentam versões diversas do que aconteceu;

um dos narradores é a própria mãe morta, que do caixão comenta a vida �familiar.

Aos poucos o centro do enredo se define mais claramente em torno do membro mais novo da família, o menino Vardaman, que fica entusiasmado com a viagem à cidade grande porque a irmã lhe promete um trenzinho de brinque-do. Depois de se fazer o enterro, quase não há dinheiro, encontrar trabalho na cidade grande é quase impossível e o menino tem que se contentar com dois “presentes”: uma banana e a nova esposa do pai. Assim, a viagem da família do campo para a cidade aponta não apenas para um movimento demográfico, mas também para uma promessa frustrada, pois o espaço urbano não pode dar à fa-mília de agricultores a vida melhor com que eles sonham na medida em que não pode absorvê-los como trabalhadores e sim, no máximo, como consumidores.

O final do romance marca o fim de uma época e o enterro da mãe e sua rápida substituição pela nova esposa do pai apontam para novos rumos. A aceitação dessa nova esposa pela família está vinculada a um objeto que ela traz consigo – um gramofone, envolto por uma aura que a partir de então a família passa a cultuar silenciosamente, em detrimento de qualquer possibilidade de diálogo ou contato humano mais rico. Nesse sentido, o destino de Vardaman, início da nova geração, parece o mais paradigmático: após o enterro da mãe e a entrada na cidade, onde todos ficam fascinados pelos objetos nas vitrines das lojas, o pe-queno menino pede uma explicação para os fatos que se desenrolam (a morte da mãe, a nova esposa). A resposta que recebe é lacônica: “Você não prefere uma banana?” Nesse momento, o romance revela sua atualidade ao refletir sobre a vida de milhares de pessoas que veem seus sonhos de consumo se transforma-rem em decepção ou em pesadelo.

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A tradição e o romance contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel

O fim do sonho americano no romance contemporâneo

A tradição do romance norte-americano como retrato e crítica social deságua em uma das mais importantes tendências contemporâneas das literaturas em língua inglesa. Entretanto, se para a geração anterior o trauma inicial havia ocor-rido com a Depressão de 1929, para parte importante dos escritores dessa ten-dência na literatura contemporânea os movimentos de protesto dos anos 1960 forneceram a educação estética e política. Para toda uma geração, a década de 1960 foi marcada pelas batalhas do feminismo, a luta pelos direitos civis dos afro-americanos e o movimento estudantil em torno das questões anti-bélicas (que se acirraram com a invasão do Vietnã). Inspirados pelos ideais de libertação dos anos 1960, esses escritores começaram a produzir uma literatura arrojada, afastando-se das universidades para criticar o que achavam ser uma sociedade burguesa irremediavelmente condenada à extinção.

Na prosa, vemos surgir uma geração de escritores combativos e inovado-res como Kurt Vonnegut Jr. (1922-2007), Norman Mailer (1923-2007), Thomas Pynchon (1937-), E. L. Doctorow (1931-) e Toni Morrison (1944-). Uma das últimas autoras de língua inglesa premiada pelo Nobel é justamente uma escritora que dialoga com a tradição de Steinbeck e Faulkner – a extraordinária romancista afro-americana Toni Morrison, que levou o prêmio em 1993.

O tema central de Toni Morrison é a vida de outro grande grupo de pessoas excluídas do sonho americano: as mulheres negras, descendentes dos escravos nos Estados Unidos. Afirma uma crítica norte-americana:

A ficção ricamente tramada de Morrison propiciou-lhe fama internacional. Em romances fascinantes e de grande abertura, trata a identidade complexa dos negros de forma universal. Em O Olho Mais Azul (1970), uma de suas primeiras obras, uma jovem negra obstinada conta a história de Pecola Breedlove, que sobrevive a um pai molestador. Pecola acredita que seus olhos escuros se tornaram azuis magicamente e farão com que seja amada. [...] Sula (1973) descreve a grande amizade entre duas mulheres. Morrison pinta as mulheres afro-americanas como personagens plenas, únicas e não estereótipos. Seu Cânticos de Salomão (1977) ganhou vários prêmios. Segue a vida do negro Milkman e suas relações complexas com a família e a comunidade. Bebê de Piche (1981) lida com as relações entre brancos e negros. A Bem- -Amada (1987) é a história angustiante de uma mulher que mata seus filhos para impedir que vivam como escravos. Emprega técnicas de sonho do realismo mágico ao retratar uma figura misteriosa, Beloved, que volta a viver com a mãe que cortou sua garganta. Morrison sugere que, embora seus romances sejam obras de arte consumadas, contêm sentido político: “Não estou interessada em entregar-me a um exercício privado de minha imaginação. Sim, a obra tem que ser política.” (VANSPANCKEREN, 1994, p. 108)

Em um de seus romances traduzidos no Brasil, O Olho Mais Azul, de 1970, ela aponta como um dos problemas centrais da vida dos negros sua identificação

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com a cultura de massas hegemônica. Sua personagem central, Pecola, é apai-xonada pela atriz infantil Shirley Temple, famosa em Hollywood nos anos 1930. Como o título indica, a menina sonha que um dia seus olhos serão azuis como os de seu ídolo infantil, cuja fotografia ela vê em diversos objetos, desde canecas até bonecas. Desnecessário dizer que a lacuna entre promessa e vida real é gri-tante. Segue-se a frustração inevitável.

Nesse romance, um problema central é a relação entre o imaginário da per-sonagem e a ideologia da mercadoria, que pretende satisfazer os desejos mais profundos de seus compradores e pode criar traumas irreversíveis por meio do choque da fantasia com a realidade. É o que acontece com Pecola, conforme as pessoas que se aventurarem pelo romance poderão ver.

Para a geração dos anos 1960, o desejo de mudar o mundo e transformar o sonho americano em realidade não aconteceu. Mas tal geração de escritores continua insistentemente a apontar as falhas e empecilhos que impedem que o sonho se realize.

Texto complementar

Pantera negraToni Morrison reavalia suas opiniões sobre a identidade afro-americana

(MACHADO, 2003)

O dia 7 de outubro de 1993 soprou da Escandinávia uma frase que nunca deixou de acompanhar a escritora Toni Morrison. Foi com surpresa que nesse dia ela e todo o resto do mundo ouviram: “O Nobel de Literatura vai para Toni Morrison, que em seus romances, marcados por forças visionárias e impor-tância poética, dá vida a um aspecto essencial da realidade americana.”

O “aspecto essencial da realidade americana” em questão não era segre-do. Seguindo a trilha de autores como Ralph Ellison, ela construíra toda a sua ficção em cima das conflituosas relações de negros e brancos na América.

Foi com o tema de uma moça pele de ébano que sonhava em ser loiri-nha e de olhos azuis como Shirley Temple que a primeira Nobel negra da história fizera sua estreia. Era 1970, e a então professora e editora Morrison

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começava, com O Olho Mais Azul, a afiar as garras que lhe valeram o apelido de Pantera Negra, em analogia ao grupo que inserira com força o debate das questões raciais na sociedade americana.

Mais de 30 anos depois, os primeiros passos da escritora chegam às pra-teleiras do Brasil pela Companhia das Letras.

Em entrevista à Folha por telefone, a Nobel [...] comentou sua estreia lite-rária e as mudanças na situação do negro desde que ela colocou a persona-gem Pecola Breedlove nas páginas americanas. Leia trechos a seguir.

O Olho Mais Azul foi publicado no início dos anos 1970, em um perí-odo de grande ebulição no movimento negro americano. O que mudou nesse quadro nos últimos 30 anos?

Acho que em alguns lugares da América o racismo ainda é tão brutal quanto o que retrato em O Olho Mais Azul. Mas hoje existe ao menos uma cadeia social que leva adiante a ideia de que não pega bem se mostrar pu-blicamente racista.

Isso, infelizmente, não impede que a lista de crimes por ódio racial ainda seja acachapante nos Estados Unidos. A maior mudança talvez tenha sido nas leis e também no surgimento de uma elite negra norte-americana.

As jovens negras ainda rezam para ter olhos azuis, como a persona-gem do seu livro?

Hoje não temos de sonhar pelos olhos azuis, podemos comprá-los (risos). Na verdade acontece algo curioso. Ter a pele muito branca hoje aparenta algo doentio. Se o parâmetro de beleza já foi ter a pele cor de marfim, com a qual sonhava Pecola, hoje é das bronzeadas que se gosta mais. Meus es-tudantes em Princenton, por exemplo, têm vergonha de muita brancura. Os códigos de pele mudaram, e o Brasil é o ideal nesse aspecto, como verifiquei aí, em 1990.

Falando em Brasil, o debate sobre a política de cotas para negros tem sido muito presente no começo do governo Lula. A senhora acha que um país mestiço como o Brasil tem condições de implementar as chama-das ações afirmativas?

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Com certeza vai ser um processo cheio de controvérsias, como foi por aqui. Nunca vai agradar a todos. No Brasil, é muito óbvia a mistura racial. Se você escarafunchar pelas árvores genealógicas daí sempre vai achar alguma raiz negra. É importante que se tenha a consciência de que é tão pouco o que se pode perder com reparações aos que nunca tiveram as mesmas van-tagens que os riscos devem ser corridos.

A senhora “correu riscos” com o posfácio que fez à reedição de O Olho Mais Azul em 1993, ano em que ganhou o Nobel. Foi bastante dura com o livro. A senhora o reescreveria?

O romance em si não me parece que deveria ser rescrito, mas há um capí-tulo, aquele que é narrado pela mãe de Pecola, que me parece ter problemas técnicos. A mãe dá a entender que sabe de tudo o que se passou com Pecola, sendo que ela não teria como saber. E aí o romance intercala a voz dela com a minha voz. Hoje eu não faria algo assim, eu saberia muito melhor como descrever a estreiteza dos pensamentos da mãe de Pecola.

Muitos críticos dizem que O Olho... é um livro menor na sua obra. O que a senhora pensa disso?

Eu realmente não me importo. Acho que todos esses rótulos são muito chatos. É meu primeiro livro, não importa se é maior ou menor. É isso.

Como é a convivência com o rótulo “vencedora do Nobel”. O Nobel é também uma jaula?

Claro que o Nobel leva a vantagens grandiosas, mas que podem facilmen-te se transformar em desvantagens igualmente grandes. A expectativa sobe incrivelmente, as pessoas em volta de você começam a te tratar de modo totalmente distinto, não com a mesma candura de antes. Faço questão de afirmar que não construí uma persona, uma Toni Morrison diferente, por ser Prêmio Nobel. Autografo livros, faço palestras, dou entrevistas. Andar por aí como um rótulo ambulante não cria boa literatura. Conheço outros Nobel, como Kenzaburo Oe e García Márquez e sei que não é dos prêmios que eles tiram a alegria de suas ficções.

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A tradição e o romance contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel

Dicas de estudoLEWIS, Sinclair. � Babbitt. São Paulo: Nova Cultural, 2003.

STEINBECK, John. � As Vinhas da Ira. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2008.

FAULKNER, William. � Enquanto Agonizo. Porto Alegre: L&PM, 2009.

MORRISON, Toni. � O Olho Mais Azul. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

TEMPOS MODERNOS. Essa deliciosa comédia de Charles Chaplin é um dos �melhores filmes sobre os Estados Unidos da Depressão.

DOCTOROW, E. L. � O Livro de Daniel. São Paulo, Nova Cultural, 1988.

Esse é mais um romance extraordinário que faz parte da mesma tradição que os outros indicados.

Estudos literários1. Discorra brevemente sobre os traços centrais do que se conhece como ro-

mance de consciência social norte-americano.

A tradição e o romance contemporâneo: as literaturas de língua inglesa e o Prêmio Nobel

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2. Para a geração de escritores engajados dos anos 1930, o evento histórico mais marcante foi:

a) a invasão do Vietnã.

b) a quebra da Bolsa de Nova York.

c) a Guerra de Independência.

d) a migração para a Califórnia.

3. Uma das características centrais que ligam os romances de consciência so-cial dos anos 1930 à literatura de crítica social contemporânea é:

a) o elogio ao sonho americano.

b) a crítica à contracultura.

c) a introdução do ponto de vista de grupos excluídos.

d) a aliança entre romance e reportagem.