LIVRO DE ARTISTA - UMA POÉTICA DE EXPRESSÕES PLURAIS

download LIVRO DE ARTISTA - UMA POÉTICA DE EXPRESSÕES PLURAIS

of 11

Transcript of LIVRO DE ARTISTA - UMA POÉTICA DE EXPRESSÕES PLURAIS

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    1/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    LIVRO DE ARTISTA: UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    Antonio Carlos de Almeida Portela

    Universidade Catlica do SalvadorMuseu de Arte Moderna da Bahia

    Resumo: O objeto de reflexo deste artigo o livro de artista Receitas do Papalagui,um dos trabalhos desenvolvidos durante a investigao de mestrado em Artes Visuais,

    na linha de pesquisa de processos criativos, cujo tema foi impresses. A poticainstaurada durante as investigaes se deu a partir da palavra impresses e de seussignificados, dos materiais e de suas inter-relaes simblicas, perpassando por umadiversidade de prticas e aes artsticas. A tessitura de suas pginas foi construdapelo constante mudar da idia, resultado do embate de materiais, conceitos emanipulaes artsticas.Palavras-chave: livro de artista, impresses, memria processual.

    Abstract: The object of reflection of this article is the artist book Receitas doPapalagui (Recipes of the Papalagui), one of the artworks developed during theMaster in Visual Arts, on the line research of creative processes, which subject wasimpressions. The poetical restored during the investigations was built from the wordimpressions and its meanings, also from the materials and their symbolic inter-relations, dealing with a diversity of practicals and artistic actions. The lines of its pageswere constructed by the constant changing of ideas, resulted from the encounter ofmaterials, concepts and artistic manipulations.Key-words:artist book, impressions, processes memories.

    182

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    2/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    183

    O objeto de reflexo deste artigo o livro de artista Receitas do Papalagui,

    um dos trabalhos desenvolvidos durante as

    investigaes de mestrado em Artes

    Visuais, na linha de pesquisa de processos

    criativos, cujo tema foi impresses. A

    potica instaurada durante as investigaes

    se deu a partir da palavra impresses e de

    seus significados, dos materiais e de suas

    inter-relaes simblicas, perpassando por

    uma diversidade de prticas e aes

    artsticas para possibilitar a compreensodas relaes entre Tradio e

    Contemporaneidade.

    Figura 01: detalhe do livro fechado

    Trata-se aqui de um objeto feito de chapas de ao galvanizado e de

    madeira, nas medidas de sessenta centmetros de largura por um metro de

    altura. Estas chapas so montadas com bordas de couro, e se fixam com

    ilhoses e parafusos, formando um grande livro, em cujas pginas esto

    registradas as experincias plurais de arte e de vida.

    O objeto se apropriou do carter alegrico de uma escrita que quis falar

    por imagens, formando uma trama de conceitos, tcnicas, idias, desejos e

    acontecimentos pessoais. A tessitura de suas pginas foi construda pelo

    constante mudar da idia e da realidade desta trama. Elas representaram

    entrelinhas visuais que no eram ditas, expressamente, mas eram

    imaginadas, interpretadas.

    Como livro de receitas, este objeto indicava ingredientes e mtodos de

    procedimento, apropriando-se de diversas tcnicas de impresso para montar

    a memria simblica do devir processual de vida e artstico, com gravuras,

    objetos, costuras, arranhuras, transferncias, colagens, revelaes, desenhos

    e xerocpias. Mas no afirmava e nem explicava os procedimentos, pelo

    contrrio, ele incitava a curiosidade e a constante experimentao, pois o livro

    expressava a pluralidade no s do tema impresses, como tambm de idiasque circunstanciaram a caminhada pessoal de artista.

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    3/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    184

    Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 06

    Outro aspecto relevante deste objeto foi a pluralidade das impresses

    registradas nas suas pginas. A diversidade abrangeu tcnicas de impresso,

    tais como, antropometria, xerocpia (Figura 3), xilogravura, transferncia

    (Figura 4), carimbo, costura, oxidao (Figura 2), fotografia (Figura 5), ponta

    seca, monotipia (Figura 6), entre outras. Fazendo uso delas, a pesquisa se

    intensificou com procedimentos que desafiaram o processo, ora gerando

    resultados esperados, ora desapontando expectativas. Foram desafios que

    geraram tenses durante a confeco de cada pgina, resultando em imagens

    que testemunhavam passagens nicas do processo

    criativo, mescladas com memrias de vida.

    A pluralidade alcanou nveis terico-prticos

    jamais planejados, pois, em cada tentativa de feitura

    das pginas, as problemticas conduziam a

    reflexes filosficas e procedimentos operatrios

    renovadores. Lidar com memrias de vida, e ao

    mesmo tempo lidar com os acasos operatrios do

    processo (Figura 7), puseram prova a relao

    entre o fazer e o pensar, buscando na teoria a

    fundamentao dos limites e na prtica artstica a

    arte de fazer descobertas.Figura 7: pgina intitulada 3 instncias de insucesso

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    4/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    185

    Notamos, por exemplo, a carga simblica da pgina em que aparece a

    camisola de pago usada no meu batismo (Figura 8), e a foto da minha me

    me segurando , vestido com esta mesma roupa; os adornos da pgina, a

    naftalina e o invlucro... quo representativa esta imagem e o quanto ela

    provocava sensaes, ou melhor, emoes durante a feitura da pgina? Como

    ser que estas nuanas se apresentam na obra? Ser que esta carga

    simblica foi revelada ao fruidor?Figura 8

    Talvez no se tenha uma compreenso

    simblica do contexto pessoal do artista, mas tudo

    indica que estas imagens levaram o artista e ofruidor a construir novos meios de compreenso

    destes smbolos universais, possibilitando o

    desdobramento de significados dos elementos de

    acordo com o repertrio de cada um.

    Neste vis, torna-se pertinente fazer uma

    referncia atitude heurstica das impresses,

    caracterstica dos trabalhos de Marcel Duchamp,que em Receitas do Papalagui se torna um

    mtodo de investigao que associa fatos da vida

    a problemas operatrios de procedimentos tcnicos, como tambm define um

    mtodo que educa a prpria vontade de apreender fatos especficos da vida e

    do processo para compreende-los de maneira mais ampla; as fontes e os

    documentos foram pesquisados e impressos num ciclo de invenes, de

    descobertas e aproximaes, ora motivadores ora frustrantes; esta impresso

    nas chapas galvanizadas acontecia para documentar e para pr prova estas

    sensaes.

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    5/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    186

    A exemplo destas mudanas, observamos nos desenhos do projeto a(s)

    mudana(s) ocorrida(s) na elaborao de certas pginas (Figura 8); algumas

    foram at descartadas, pois durante a execuo as problemticas tcnicas

    impulsionavam para outros caminhos, ocasionando mudanas da forma, dos

    materiais, do conceito e do sentimento na feitura destas pginas. Georges

    Didi-Huberman cita uma entrevista de Pierre Cabane com Marcel Duchamp

    que aponta exatamente para esta problemtica: Qual a gnese cerebral da

    obra Gand Verre? pergunta Cabane. E Duchamp responde: No sei (...)

    freqentemente so coisas tcnicas 1. Os pequenos problemas tcnicos e os

    elementos provocam elaboraes constantes deste devir de sensaes.

    Como coloca Didi-Huberman (1997), so incmodos que criamhipteses e deslocam o pensamento para outras reas do conhecimento

    (Idem). No caso do livro, o embate se estabeleceu no contato das lembranas

    pessoais e das memrias processuais com as tcnicas artsticas, contato este

    que direcionou os procedimentos para caminhos inesperados.

    Outra caracterstica da pluralidade de idias que compunham as pginas

    a pgina no representava em si uma obra j

    concluda. s vezes, diante de algumas pginas,vislumbrvamos como uma janela que se abria

    para dimenses bem maiores, ou seja, a pgina

    no encerrava a obra, ela era um projeto de uma

    idia redimensionvel, tanto em tamanho como

    em significado.

    Mas quem

    do livro o fato de que cad

    o Papalagui ? Papalagui a

    palavra que designa o Branco, o Estrangeironalngua dos samoanos. Traduzida ao p da letra,

    significa aquele que furou o cu; o primeiro

    missionrio europeu a desembarcar em Samoa

    (SCHEURMANN, 2001), pois os nativos da ilha de

    Samoa pensavam que as velas brancas dos

    barcos furavam o cu. O chefe polinsio Tuivii

    visitou a Europa no comeo dos anos vinte e, ao

    voltar para seu povo, fez um relato da viagem aoFigura 9: estudos para fabricao das pginas

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    6/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    mundo dos brancos, com o olhar atento de quem tem outra relao com a

    natureza e com o ser humano. Olhar de quem v a ns e a nossa cultura, para

    redimensionar a nossa prpria viso sobre ns, revelando-nos, pela sua

    simplicidade, o que no somos capazes de perceber de ns mesmos. Em um

    de seus relatos descreve como ficou surpreso ao constatar a importncia que

    os europeus davam ao livro:

    (...) todos os pensamentos[...] so logo inscritos em umasesteiras finas, brancas. Ento, diz o Papalagui que esto impressos,por uma mquina [...] e no uma vez s, em duas, mas muitas vezes,vezes infindveis, que ela escreve sempre os mesmos pensamentos.Depois, comprimem-se muitas esteiras de pensamento em pacotinhos,

    chamados livros que so enviados para todas as partes do pas. Todosque absorvem estes pensamentos, num instante contaminam-se. Elesengolem estas esteiras como se fossem bananas doces[...] (Tuivii inScheurmann, p. 91)

    Atravs de suas pginas, Receitas do Papalagui exps contedos

    despercebidos ou esquecidos, mas que, uma vez potencializados por imagens,

    foram revelados para o pblico, o qual, por sua vez, ressignificou estas

    imagens. No encontro entre obra e espectador o que valeu foi perceber atravs

    da obra e do espectador aquilo que no se via quando a obra fora realizada, e,at mesmo, aquilo que no se percebia na vivncia do cotidiano.

    No contexto do objeto-livro, Papalagui uma apropriao conceitual

    para confrontar o artista com seu prprio processo, como um personagem

    pensador, buscador do saber, que vive pensando, embriagado pelas idias e

    pensamentos, esquecendo do mundo sua volta, projetando seus desejos em

    pginas plurais de sua prpria existncia. Em outras palavras, o Papalagui

    uma autodescoberta, e se insere como prefcio de um documento visual do serque deseja enquanto pensa.

    Centraliza-se no Papalagui a persona, o modo pelo qual o artista, com

    suas idias, se apresenta ao mundo. Ser Papalagui ter facetas calcadas em

    dualidades, ou ...

    ... Ter o esprito que faz o ser humano pensar...... Tirar saber de tudo o que v...

    ... Ter pena daqueles que no exercem o saber...... Confundir saber com pensar...

    ... Ter costume, necessidade, obrigao de pensar...... Trocar o sentir pelo pensar, ou pensar sem sentir...

    ... Se dividir sempre !

    187

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    7/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    ... Separar as idias do corpo...... Deixar que as idias se devorem umas as outras...

    ... Achar que a idia to preciosa quanto a flor...... Envelhecer e enfeiar de tanto pensar...

    ... Ter uma cabea grande ...... Desejar, quando pensa, atingir os poderes secretos do Grande Esprito ...

    ...Inscrever todos os pensamentos nos livros...... Empacotar os pensamentos em livros...

    ... Contaminar todos pela absoro de seus pensamentos...... Encher a cabea de saber e ter de pensar...2

    Nesta contradio de pensamentos, ser Papalagui abrangeu perfis

    diferentes sobre o pensar, encontrando na mdia do livro a materializao de

    idias que problematizaram e fomentaram a pesquisa, pois como prope

    Scheurmann (2001):

    Desamos, por uma s vez, das alturas de nosso esprito at amaneira singela de pensar e de ver deste homem [o chefe Tuivii]dos mares do Sul que, ainda livre do fardo da instruo e aindaprimitivo no modo de sentir e de pensar, nos ajuda a descobrir emque ns perdemos o sentido sagrado do homem, criando, emcompensao, dolos sem vida.

    Em termos de conceito, ser que Receitas do Papalagui pode ser vistocomo um objeto artstico independente e autnomo ? Por que usar o livro como

    forma de expresso? Esta pergunta surgiram em detrimento dos dados

    levantados durante esta fase, encontrando referncias na modalidade do livro

    de artista para embasar este contexto.

    Adeptos das vanguardas como Lygia Pape, quando em 1959 inicia a

    trilogia Livro da Criao/Livro da Arquitetura/Livro do Tempo, e Artur Barrio,

    com os CadernosLivros tornam-se referncias importantes nesta pesquisa,

    uma vez que estes artistas basearam suas obras na vivncia e na experincia

    para configurar uma potica de trnsito da arte vida, ou da vida arte.

    Vale ressaltar a aproximao entre Receitas do Papalagui e o trabalho

    de Barrio. Este artista cuja particularidade de fazer de seus CadernosLivros o

    embrio terico de sua pesquisa, tornando-os espaos de pulso e crueza

    donde brotaram idias a serem colocadas em prtica enquanto projetos de

    ao (Bouso, 2000, p.14). neste sentido que se traa um paralelo entre os

    CadernosLivros e Receitas do Papalagui, pois, em cada pgina de um ou de

    outro, a leitura e a interpretao dos textos-visuais se abriram em novas188

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    8/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    perspectivas, em projetos a serem concretizados em dimenses e espaos

    diferentes.

    Toma-se tambm Barrio como referncia, quando se registra o contato

    sensorial provocado pelo seu Livro de Carne, no no sentido e na fora de

    despertar o fruidor para os problemas sociais que alis a tnica de sua

    potica mas pela simples sensao do toque, e pelo fato de ele transformar

    seus trabalhos em espaos frteis em que o tempo agente de mutao,

    transformando a prpria obra(Ibdem).

    Receitas do Papalagui tangencia este jogo do tempo pelo manuseio

    de suas pginas, retrocedendo-as, despregando-as, e criando um discurso

    plurivisual em seqncias espao-temporais para cada fruidor. Mas aparticularidade de Barrio que ele tem conscincia do tempo, pois como diz

    Bousso, ele no perde tempo tentando captur-lo; j, em com Receitas do

    Papalagui, o passado, o presente e o futuro eram capturados para a

    compreenso dos sentidos dos tempos.

    Diante de aproximaes e distanciamentos entre estes trabalhos, abre-

    se uma nova perspectiva de contemplar o recurso miditico do livro. Como livro

    do artista, este objeto representou um exemplar nico, realizado com astcnicas de impresso sobre suportes anlogos s gravuras, como a madeira e

    o metal, mas que extrapolou os conceitos de gravura e de livro diante da

    finalidade, da apresentao e manuseio.

    Recorrendo s referncias da Histria da Arte citadas por Jos Antonio

    Antn (2002), sabe-se que, desde Mallarm, o conceito de Livro do Artista

    concretiza-se como meio de expresso que propicia a unio entre a pintura, a

    escultura, a poesia experimental, as artes aplicadas, e os mais diversosprocedimentos artsticos e elementos plsticos tradicionais ou inovadores.

    Diante desta pluralidade, atesta-se o carter interdisciplinar do Livro do

    Artista, atravs das suas diversas formas de se expressar por imagens e isto

    incluindo a palavra como recurso matrico , trabalhando com as cores, com

    as dimenses, com as texturas, com o peso, com a montagem e com o

    manuseio, para instaurar uma relao ntima com o fruidor, o qual fora evocado

    por valores que estavam alm de sua significao cotidiana.

    189

    Promove-se uma interao entre o leitor e o livro-objeto com

    possibilidades tipolgicas formais, conceituais e tcnicas muito

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    9/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    variadas(Ibden). Fato notrio desta pluralidade a prpria variedade do objeto

    enquanto meio de expresso artstica que cria categorias e classificaes como

    livro do artista original, livro-objeto, livro- montagem e livro reciclado, livro de

    exemplar nico segundo seu contedo, pelo movimento ao qual pertence,

    pelo destino para o qual est sendo confeccionado, pelos materiais

    empregados, entre outros , e livros seriados.

    Neste vis, Receitas do Papalagui foi um exemplar nico que no

    manteve e nem negou a estrutura tradicional e formal de um livro, mas se

    realizou em sua tridimensionalidade, se situando no espao para atuar com

    este, condicionando o espectador a uma relao com o objeto e seu entorno.

    Promoveu-se um encontro no qual o leitor descobria os significados dos textos-visuais, dando-lhes novas formas e sentidos, pois, como diz Antn:

    A experincia com todas estas combinaesproporciona um sentido ldico e participativos da obra,haja visto que o livro do artista pode ser visto, tocado,pressentido, manipulado e sentido.

    Mas ser que este objeto extrapolou o conceito tradicional de livro pelo

    seu formato e dimenso, ou por ser um meio desprovido de regras semnticas,

    ou ainda por potencializar e questionar o livro como objeto de culto e de peso

    deveras de peso, pois o manuseio das pginas deve respeitar o peso do

    material, adicionado ao peso da carga simblica contida em cada pgina ?

    Se estas perguntas no obtiveram respostas de imediato, vale a

    experincia do manuseio das pginas para sentir as sensaes que o contato

    com este objeto proporcionou. Uma manobra sensorial, cujo intuito se

    aproximou daquele dos artistas neo-concretos produziram de propiciar aexperincia da integrao homem/mundo, estimulando a participao do

    pblico na obra de arte3.

    Levou-se em considerao, e louvor, os pensamentos de Lygia Clark

    sobre as questes fenomenolgicas da relao entre o ver, o pensar e o sentir

    em uma operao que se origina no ntimo do artista e se expande nas

    mltiplas relaes com o observador4.

    Ao longo da exposio, o objeto despertou ateno e convidou oespectador a manuse-lo. Talvez no fosse mais preciso colocar um aviso:

    190

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    10/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    Por favor, toquem nas obras, como fez Lygia Clark quando exps pela

    primeira vez seus objetos relacionais, pois, hoje em dia, as pessoas j se

    habituaram um pouco mais com a idia dos neoconcretos de transitar da arte

    vida num exerccio de renovao esttica.

    As questes levantadas pelo movimento neoconcreta vigoram ainda na

    contemporaneidade, porque ainda se vive, agora mais do que nunca, o desejo

    de se expressar e desvelar os sentidos atravs da arte. Como objeto, o livro

    continha em si as pginas da experincia pessoal, tanto artstica como de vida,

    sacralizadas pela ritualizao da aproximao do observador com a obra,

    desfetichizando esta relao ao considerar o fruidor um sujeito ativo, integrante

    da obra.Virar as pginas deixou de ser um exerccio meramente fsico para se

    tornar uma ao performtica, na qual o objeto o livro foi o sujeito da ao,

    aquele que converteu o movimento do corpo em um discurso do corpo,

    transformando o artista e o pblico em obra, ou melhor ainda, em sujeito e

    objeto de sua arte (Glusberg, 1985, p.43).

    Em sua ao fenomenolgica, Receitas do Papalagui se expandiu

    para as tendncias idiossincrticas que deram uma ampla viso do artista, desua compreenso de mundo, de sua imaginao visual, assim como exps sua

    experincia dos sentidos e sua habilidade de manipular os materiais que deram

    forma s suas idias.

    Ele reuniu diversas experincias artsticas que ganharam novos

    significados e costuraram-se com vivncias e/ou lembranas pessoais de vida.

    No se tratou de um catlogo, nem de um objeto meramente documental,

    pode-se dizer que sua fora estava na sua utilizao como um meio deexpresso, uma metalinguagem que explorou formatos pessoais; apelou para a

    qualidade dos materiais, a forma de encadernao; manipulou a fluidez de virar

    as pginas em uma ao prazerosa ou conflituosa; alm de ter entrelaado os

    diversos trabalhos realizados ao longo da pesquisa com lembranas,

    documentos, materiais e tcnicas anlogas ao tema impresses.

    A pluralidade que integrou tcnicas grficas, expresses artsticas,

    conceitos estticos e efeitos fenomenolgicos transformou Receitas do

    Papalagui em uma mdia portadora de enigmas, que buscava o reencontro

    191

  • 7/29/2019 LIVRO DE ARTISTA - UMA POTICA DE EXPRESSES PLURAIS

    11/11

    18 Encontr o da Associao Naciona l de Pesquisadores em Art es Plsticas

    Transversalidades nas Artes Visuais 21 a 26/ 09/ 200 9 - Salvador, Bahia

    192

    pessoal com a linguagem e com a imagem, criando textos imagticos que

    integrassem experincia artstica com histria de vida.

    NOTAS

    1 O trecho transcrito nos d uma viso mais precisa desta analogia: Je ne sais pas. Ce sont des chosestechniques souvent. [...] Il y a trs peu dides, au fond. Ce sont surtout des petits problmes techniquesavec les llements que jemploie: comme le verre, etc. Tout cela me forait laborer. [...] Vous saveztant peintre, on est toujours une sorte dartisan ( P. CABANE, 1967, p.65-66).2 Este trecho um resumo pessoal das idias centrais do captulo A grave doenaque pensar semparar, p. 85-92., da obra O Papalagui comentrios de Tuiavii, Chefe da tribo Tiava, nos mares do sul.3 Trecho da entrevista concedida a Lcia Carneiro e Ileana Pradilla.4 CANTON, op. cit., p. 142.

    REFERNCIAS

    NTON, Jos Emlio. El Libro de Artista. Disponvel em: Acesso em: 07/02/2002.BOUSSO, Vitria Daniela. A Metfora dos Fluxos in: Artur Barrio. A Metfora dosFluxos2000 / 1968. So Paulo: Pao das Artes, 2000. p.14.DIDI-HUBERMAN, Georges. LEmpreinte. Paris: Centre Georges Pompidou. 1997. p.127.

    GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. Srie Debates. So Paulo: Perspectiva,1985. p. 43.SCHEURMANN, Erich. O Papalagui comentrios de Tuiavii, Chefe da tribo Tiava,nos mares do sul. Traduo de Maria Jos Silveira. So Paulo: Marco Zero, 2001.PAPE, Lygia. Lygia Pape: entrevista a Lcia Carneiro e Ileana Pradilla. Rio deJaneiro: Nova Aguillar, 1998. p. 44-46 (Palavra do artista). Disponvel em: