Livro de poesia ilustrado : Projeto feito à mão
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3
LIVRO DE POESIA ILUSTRADO
PROJETO FEITO À MÃO
Julia Contreiras
orientadora: Clice Mazzilli
Universidade de São Paulo
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Curso de Design
Trabalho de conclusão de curso II
1º semestre de 2015
LIVRO DE POESIA ILUSTRADO
PROJETO FEITO À MÃO
Ao meu avô.
Aos meus pais.
A Ricardo e Márcio, técnicos do LPG.
A Irene Machado e Clice Mazzili, orientadoras.
A Marco Buti e Augusto Sampaio, professores.AgRADEcIMEnTOS
SUMáRIO RESUMO
INTRODUÇÃO
A POESIA DE MEU AVÔ
O PROCESSO
OS TIPOS MóVEIS NO LPG
AS xILOGRAVURAS
A ENCADERNAÇÃO
O FAZER COM AS MÃOS
O CADERNO DE PROjETO
BIBLIOGRAFIA
P.09
P.10
P.19
P.21
P.27
P.43
P.79
P.97
P.101
P.112
11
Este projeto de conclusão de curso aborda o tema
do livro ilustrado de uma maneira prática, feita
à mão. O projeto é de leitura, releitura, in-
terpretação, compreensão, desenho, entendimento,
proposição, investigação, montagem, gravação,
entalhe, entintagem, impressão, costura, refile.
É um projeto de design gráfico, que une a poe-
sia, os tipos móveis e a xilogravura em um objeto
livro, feito de papel, tinta e linha.
Este é um trabalho sobre o design gráfico pro-
duzido e pensado com o uso das mãos, do desenho
no papel, do entalhe na madeira, da diagramação
com o chumbo e da impressão por pressão.
RESUMO
tipos Móveis do lpg
13
Para introduzir o tema do livro ilustrado, sob
a perspectiva em que trabalhei a teoria durante
o primeiro semestre de 2014, apresento alguns
trechos extraídos do meu trabalho de conclusão
de curso 1, onde abordei o livro ilustrado para
adultos, a relação do desenho e do artista e uma
visão semiótica sobre a interpretação e geração
de relações entre imagens e texto no contexto
literário.
A ilustração presente no contexto literário não
exige menos competência de leitura, seja o lei-
tor adulto ou criança, sua função não é a de
facilitar ou auxiliar a compreensão do texto.
Ainda assim, nota-se uma certa resistência por
parte do público adulto no que tange ao livro
ilustrado de literatura adulta. Essa resistência
se observa, em parte, nas livrarias, onde encon-
tramos a sessão de livros infantis ilustrados e
a sessão de literatura adulta em geral. E o livro
de literatura adulta ilustrado, onde se encaixa?
Talvez nas edições comemorativas e especiais,
em sua maioria, nas quais a ilustração agrega
um caráter de obra de arte para o livro. Há uma
equivocada concepção de que a ilustração empo-
brece a leitura, excluindo a possibilidade da
imaginação por parte do leitor. Porém, o públi-
co para o livro ilustrado adulto vem crescendo,
principalmente em países como a França, aonde
existem editoras, como a Les Oiseaux de Passa-
InTRODUçÃO
O LIVRO ILUSTRADO PARA ADULTO
poesia Montada CoM os tipos Móveis
15
ge, especificamente voltadas para a publicação
de livros de literatura ilustrado para leitores
fluentes.
Nesse contexto, as imagens de um livro não
devem, necessariamente, estar vinculadas ao
ponto da narrativa em que se encontram fisica-
mente, elas são livres para tecer relações com
o contexto geral do texto verbal e ainda assim,
presentes todas em um livro objeto, estão ne-
cessariamente conectadas umas às outras concei-
tualmente.
A costura conceitual que se tece na leitura
de um livro ilustrado é imprevisível e varia de
acordo com o ponto de vista do leitor. Sendo
assim, a ilustração pode dar ênfase a determi-
nados aspectos do texto e ao mesmo tempo refle-
tir a leitura criativa pessoal do ilustrador,
sua compreensão dos significados, suas interpre-
tações.
A compreensão dos significados se dá pelos 3
aspectos básicos de um livro ilustrado: o texto
verbal, a imagem e o objeto livro. Assim, cada
pequena escolha no projeto de um livro ilus-
trado afetará no interpretante final, de forma
que ao entrar em contato com o objeto, o leitor
preenche os vazios de significados entre texto
verbal e imagem, compreende e inventa signi-
ficações outras. Como disse Marcel Duchamp “a
obra se completa com o público“, o adulto, en-
tão, participa da construção e interpretação
de significados de maneira mais complexa que
a criança, pois seu repertório é, inevitavel-
mente, maior, podendo assim interferir na sua
interpretação pessoal de maneira lógica. Des-
sa forma, o leitor adulto faz com que análises
muito diversas e interessantes, do ponto de
vista da construção intelectual e controlada do
raciocínio, possam acontecer.
A palavra “ilustração” pressupõe uma relação de
dependência unilateral, em que a imagem estaria
a serviço do contexto verbal. Porém, a ilus-
tração estabelece relações muito mais complexas
e variadas com o texto escrito, transgredin-
do as divisões físicas as quais cada código, o
da imagem e o da escrita, são impostos. Dessa
forma, tanto o elemento textual como o gráfico
podem funcionar de maneira autônoma e ao mes-
mo tempo dialogar entre si, gerando uma relação
de interdependência, em que a compreensão dos
significados se dá pelo conjunto da página. René
Magritte acreditava que o termo “ilustração” faz
entender que a imagem estaria subjugada ao tex-
to escrito, num nível inferior. Assim, trans-
gride o termo “ilustração”, trazendo o conceito
do encontro (rencontre heureuse), onde a imagem
e o texto, quando se encontram num determinado
contexto, promovem uma significação imprevisível.
Quando esse encontro é feliz, os laços formados
pela junção da imagem com o texto não podem ser
desfeitos. O encontro eleva os signos ao patamar
da imprevisibilidade de interpretantes. Rela-
ções inesperadas, tanto por parte do ilustrador
A ILUSTRAÇÃO E O ARTISTA
17
quanto por parte do autor, podem se revelar na
interpretação do leitor na medida em que cada
leitura é inédita e particular ao olhar de cada
indivíduo.
Magritte acreditava que o termo ilustração
só poderia ser usado se quisesse dizer “tornar
ilustre”, ou seja, que a ilustração transfor-
masse o livro em algo formidável e que houves-
se uma dependência equivalente entre ilustração
e texto. Seus trabalhos mais importantes no
contexto literário foram realizados em 1945,
quando ilustrou Les Chants de Maldoror de Du-
casse com 77 desenhos surrealistas, realizados
em bico de pena. juan Miró também contribui
muito para os estudos teóricos e práticos do
papel da ilustração no contexto literário. As-
sim como Magritte, Miró fala sobre o encontro,
mas o encontro do ilustrador com o escritor, do
interesse mútuo de cada um no trabalho do outro
e na criação em conjunto de uma obra completa.
Volta-se para os aspectos que envolvem a cria-
ção do livro, arquitetura e espírito do texto.
Em 1958, cerca de 80 xilogravuras de Miró
são publicadas no livro “À Toute Épreuve” de
Paul Éluard, refletindo um exaustivo trabalho
de cerca de 11 anos e de grande qualidade for-
mal, em que artista, autor, editor e impressor
trabalharam em conjunto. As ilustrações de Miró
são, sobre tudo, formas geométricas que fogem
da figuração e trabalham ludicamente com as co-
res e o branco da página na vizinhança no texto
de Éluard.
Por fim, a ilustração deve se manifestar como
uma expressão artística livre, em que o texto
literário se comporta como um impulso criativo
para a composição de signos e não como receita
ou limitante.
A leitura semiótica, como ferramenta de análise
e compreensão de informações, será utilizada no
ponto de vista da análise de signos e sua relação
com os significados, com o objetivo de mergulhar
nos múltiplos sentidos de uma obra literária
ilustrada. Dessa forma, apurar o olhar para o
desenvolvimento de trabalhos mais significativos
na criação de imagens dentro de um projeto de
livro ilustrado para adultos. Para tanto, é ne-
cessário que alguns conceitos sejam pontuados.
O aspecto principal da análise semiótica é
observar a movimentação dos signos codificados
dentro de suas linguagens específicas. A semiose,
como a ação do signo é sempre distinta à cada
leitura de texto e apresenta, assim, um sistema
de codificação, decodificação e recodificação de
informações, na medida em que nunca determina um
ponto final para interpretações. Nesse sentido,
podemos inferir que um texto verbal literário
tem um potencial infinito no aspecto de inter-
pretações ilustrativas. Dessa forma, possibilita
que cada manifestação gráfica individual de um
artista, seja de diferentes indivíduos ou seja
do mesmo indivíduo em momentos diferentes, é
distinta e desencadeia uma semiose única. Essa
questão fica clara quando observamos as ilus-
A LEITURA SEMIóTICA
19
trações feitas por Gustave Doré e por Salvador
Dalí do mesmo texto literário da história de Dom
Quixote de Miguel de Cervantes. Os contrastes
gráficos, tanto do traço quanto do detalhamento,
são tão distintos entre si que as diferenças
dos contextos em que as ilustrações foram pro-
duzidas ficam evidentes. Charles Sanders Peirce
trabalhava com a relação triádica da semiótica,
em que signo, objeto e interpretante atuam como
agentes da semiose. O signo está na posição de
representar, através de códigos de uma lingua-
gem, um objeto específico e o interpretante seria
a possibilidade de interpretação de um leitor
de acordo com as circunstâncias, fundamentando
uma relação dinâmica. Essas circunstâncias são
aspectos como a cultura, a sociedade, o tempo, o
repertório pessoal de cada um, bem como as emo-
ções e características específicas no momento em
que a leitura dos signos é realizada. Com isso,
podemos afirmar que as variações nas caracterís-
ticas e contexto de um leitor em contato com um
texto é tão definitiva para o interpretante final
como a interpretação pessoal do ilustrador. As
imagens, assim, assumem uma autonomia no momento
em que são concebidas, se tornando independentes
das intenções ou objetivos do artista, já que o
preenchimento de lacunas por parte do leitor é
algo significativo para uma análise semiótica. A
semiótica da cultura entende que o trabalho de
códigos na construção de linguagens culturais se
comporta como um sistema modelizante, em que um
conjunto de códigos de uma situação específica
configuram uma linguagem que pode ser recodifica-
da para outra linguagem e assim por diante, sem
que, nesse processo de tradução intersemiótico,
sejam perdidos significados. Dessa maneira, en-
tende-se que o texto verbal literário é uma co-
dificação de idéias que poderão ser decodificadas
a partir de uma leitura analítica por parte do
ilustrador. Dessa análise, os significados se-
rão recodificados dentro de uma outra linguagem,
como a da arte, completando um sistema modeli-
zante. O mesmo processo acontece na análise do
leitor, possibilitando uma compreensão e geração
de sentidos dinâmica, onde os códigos são sempre
transpostos de linguagem para linguagem, inter-
calando-se com o pensamento interpretativo. A
forma como o texto escrito e o texto ilustrativo
conversam dentro de uma página do livro é conhe-
cido como diagrama e a leitura dessa composição
é sempre um pensamento diagramático, em que a
linearidade não existe, mas sim os processos as-
sociativos e relacionais.
1 MeUReR, Clio. Miró, Magritte: sobre a ilustração li-
terária como tradução intersemiótica. 2008.
21
Durante o desenvolvimento do TCC1, defini que meu
trabalho prático seria projetar um livro ilus-
trado de literatura para leitores fluentes. Dessa
forma, passei a investigar que tipo de texto eu
usaria como base: um romance já publicado, um
texto inédito, prosa ou poesia. Ainda durante
essa investigação, recebi a notícia de que ha-
viam encontrado uma caixa de meu avô na antiga
casa em que morava em Brasília. Fui informada de
que na caixa havia dezenas de poemas de sua auto-
ria, bem como fotografias e documentos antigos. A
caixa foi enviada para a minha casa e, no final do
primeiro semestre de 2014, pude ler as poesias
de meu avô pela primeira vez.
Descobri, então, que meu avô tinha a intenção
de publicar seus 100 e tantos poemas na forma de
um livro. Porém, por algum motivo desconhecido,
não chegou a concluir esse projeto. Foi então
que decidi voltar o meu projeto prático para a
produção de um livro ilustrado dessas poesias.
Carlos Fernandes era meu avô materno e fale-
ceu em 2010 por problemas no coração. As poesias
falam de suas lutas políticas pela liberdade,
pela justiça e pela igualdade. Falam do amor, no
nível mais mundano ao mais transcendental. Falam
de esoterismo e de todas as suas crenças na bus-
ca pela consciência. Falam de seus companheiros,
seus amigos, suas amadas, suas filhas.
Guardo um enorme carinho pelo meu avô, um ho-
mem “místico”, como o diziam seus amigos. Dedico
esse trabalho a ele e a todos que tiveram a opor-
tunidade de conhecê-lo.
A POESIA DE MEU AVô
CaRlos feRnandes, 1958
23
O processo do meu trabalho prático neste TCC2
teve início ainda no primeiro semestre de 2014,
em paralelo ao desenvolvimento da primeira par-
te do TCC1, em que foquei, de maneira teórica,
a questão do livro ilustrado para adultos. Em
2014, entre o TCC1 e o TCC2, pude experimen-
tar técnicas, estudar procedimentos, conhecer
o trabalho de artistas, visitar exposições e
produzir experimentos.
Decidi que deveria trabalhar com a xilogravu-
ra quando assisti a uma palestra na FAU USP onde
um artista apresentou seu trabalho de ilustra-
ção para livros em que utilizava a gravura, os
carimbos, o linóleo e a madeira para produ-
zir imagens gravadas no papel. O processo e as
possibilidades envolvidas me intrigaram e foi,
então, que decidi investigar esse meio. Obtive
minhas primeiras goivas, tintas, rolo de entin-
tar e experimentei a gravação no linóleo. Os
primeiros testes de impressão foram decisivos
para que me decidisse pela técnica, já que to-
das as características intrínsecas a esse pro-
cesso me interessaram tanto pela sua dificuldade
quanto pela possibilidade de multiplicação.
No segundo s emestre de 2014 me matriculei
em uma matéria optativa na ECA ministrada pelo
professor Marco Buti, onde pude conhecer melhor
a história e as técnicas relacionadas à xilo-
gravura. Ao longo do semestre tive contato com
a gravura na madeira, testando suas durezas,
dificuldades e possibilidades de texturas e gra-
vação.
O PROcESSO
Minha Mão após tRabalho no lpg
25
Ao longo dessa disciplina ficou claro para mim
o seguinte fato: Os tipos móveis e a xilogravura
caminharam juntos na história das artes gráficas
e obedeciam aos mesmos processos de impressão.
Ambas as técnicas funcionam à partir de matrizes
em que o relevo é entintado e impresso em um su-
porte quando aplicado a uma determinada pressão.
Essa forte relação me fez optar também pelo uso
dos tipos móveis em meu trabalho de conclusão de
curso.
Com a definição das técnicas a serem trabalha-
das, li e reli incessantemente mais de 100 poe-
sias de meu avô, a fim de encontrar um filtro capaz
de unir algumas poucas delas para a realização
do livro ilustrado. Dessa forma, dentre muitas
seleções, defini que o livro conteria 20 poesias,
já que as técnicas a serem utilizadas, os tipos
móveis e a xilogravura, demandariam muito traba-
lho na execução e impressão.
OS critérios utilizados para a seleção das
poesias foram: 1) As poesias que mais me lembram
o meu avô; 2) As poesias que mais se aproximam
aos assuntos e interesses que permeiam a minha
vida nesse momento. Assim, com as 20 poesias
selecionadas em mãos, iniciei o planejamento do
livro. Considerei a futura encadernação e as
infinitas alterações que poderiam vir a surgir,
bem como os papéis disponíveis, a facilidade de
manuseio do material e muitos outros critérios a
serem detalhados mais a diante.
Ainda no fim de 2014, esboçando as caracte-
rísticas físicas do livro, decidi rascunhar um
cronograma. Segundo meu rascunho inicial, preci-
saria de muito mais que 6 meses para realizar o
trabalho da maneira que eu via como correta. As-
sim, percebi que seria impraticável, com apenas
5 meses de trabalho até a entrega final em junho
de 2015. Adaptei o cronograma para um trabalho a
ser realizado entre o mês de dezembro de 2014 e
junho de 2015.
Em dezembro, durante as férias, concluí o pla-
nejamento do livro, incluindo papéis, dimensões
gerais, dimensões das xilogravuras, diagrama-
ção básica das poesias e encadernação. Com essa
base, pude iniciar as etapas seguintes mais es-
pecíficas a cada processo. De janeiro até feve-
reiro, montei as poesias com os tipos móveis e
fiz as impressões. De março a abril, gravei as
xilogravuras. Em maio imprimi as xilogravuras e
fiz as encadernações. Durante todo esse processo
documentei cada passo com vídeos, fotografias,
anotações e desenhos.
Foi um processo bastante complexo e que exigiu
um enorme planejamento e organização para que,
no fim, eu pudesse apresentar esses 30 livros
originais feitos à mão.
27
29
O LPG é o Laboratório de Produção Gráfica da FAU
USP e situa-se no prédio anexo da faculdade.
Nesse laboratório há um espaço reservado para a
Tipografia, onde se encontram diversas famílias
tipográficas nas gavetas de tipos móveis, dispo-
níveis para o uso dos alunos. Os tipos móveis são
de chumbo e foram produzidos pelas fundidoras
brasileiras Funtimod e Manig.
No início de janeiro, fui ao LPG conversar com
os técnicos, Ricardo e Márcio, sobre o meu pro-
jeto e a possibilidade de realizá-lo no LPG. Eles
me apresentaram o catálogo de tipos disponíveis
e se prontificaram a me auxiliar na montagem e
impressão das 20 poesias. Nessa primeira visita
ao LPG, selecionei a fonte que usaria para meu
projeto, a ESCRITURA À MÁQUINA. Essa fonte é ba-
seada na máquina de escrever e só estava dispo-
nível no corpo 10. Havia 3 gavetas desses tipos
móveis que correspondiam a fonte que eu usaria,
porém apresentavam pequenas variações, de uma
gaveta para outra, de acordo com a fundidora em
que tinham sido produzidos. Meu projeto se li-
mitou a utilizar apenas essa fonte, nesse corpo,
aplicada às poesias, títulos, dedicatória e cré-
ditos do livro.
A montagem das matrizes das poesias foi algo
demorado e muito trabalhoso. Há uma série de re-
gras, limitações e possibilidades nesse proces-
so que pautam a construção de um grid a partir
da justaposição de infinitas peças de chumbos de
tamanhos e espessuras variados. A compreensão
dos sistemas métricos envolvidos nessa montagem
OS TIPOS MóVEIS nO LPg
gaveta de tipos - esCRitURa à MáqUina
31
baRRas de ChUMbo
Mesa de tRabalho no lpg
é crucial para que o trabalho seja executado de
uma maneira ágil e sistemática. Os cíceros, os
pontos, e os furos são elementos desse sistema
com os quais tive que lidar, compreendendo suas
funções e padrões, a fim de manter a diagramação
projetada em todas as poesias.
As etapas para a montagem e impressão de uma
poesia foram as seguintes:
1) AnTES DE cOMEçAR: Preparava a mesa de tra-
balho, trazendo a gaveta de tipos para perto,
abrindo a gaveta de espaços a serem utilizados,
posicionando o meu caderno entre a gaveta e a
plataforma de montagem, selecionando o texto da
poesia a ser montada e recolhendo os materiais
necessários para a montagem, como a pinça e o
componedor. As gavetas obedecem a ordem da gave-
ta francesa, em que cada compartimento abrigada
uma letra maiúscula, letra minúscula ou sinal,
dispostas de acordo com uma ordem específica.
Cada compartimento tem um tamanho determinado de
acordo com a reincidência daquela letra ou sinal
na língua francesa. Por exemplo, a letra “e” é
a mais usada na língua, então seu compartimento
de caixa baixa (letra minúscula) é o maior e que
contém mais peças. As gavetas são muito pesadas
quando estão bem cheias, mas é preciso trazê-la
para a mesa de trabalho, já que é preciso retor-
nar a ela com muita frequência.
No meu caderno de projeto, havia um esquema que
me indicava em qual compartimento da caixa es-
tava localizada determinada peça. Nesse caderno
33
iníCio da MontageM da poesia
CoMponedoR
eu também anotava o dia em que estava trabalhan-
do, o número da poesia a ser montada, bem como a
gaveta específica da qual retirava as peças para
compor a matriz.
2) MARgEM: Determinada as dimensões máximas da
poesia, eu posicionava uma margem superior e outra
lateral direita, que, vistas na matriz, aparecem
em lados invertidos. O título da poesia era po-
sicionado verticalmente, encaixado à margem late-
ral, na medida que ficasse perpendicular aos versos
da poesia. Cada poesia obedece a um alinhamento
diferente entre o título e o primeiro verso. Dessa
maneira, após planejado o alinhamento, eu posicio-
nava as peças de chumbo de uma forma a determinar
a altura da posição do primeiro verso.
3) cOMPOnEDOR: Cada linha da poesia era, pri-
meiramente, montada, letra a letra, espaço a
espaço, no componedor. Esse instrumento auxilia
na montagem, na medida em que permitia que eu me
movimentasse da gaveta de tipos até a plataforma
de montagem, segurando-o na mão esquerda. Com a
mãos direito, ia escolhendo cada peça na gaveta
e posicionando-a sequencialmente no componedor.
Quando a linha estava pronta e exatamente na
largura máxima da matriz, ela era transferida
com uma peça de 1 ponto, da mesma largura, até a
matriz situada na plataforma de montagem. Essa
transferência era feita com muita calma e aten-
ção, segurando com as duas mãos e exercendo uma
pressão nas duas extremidades da linha, para que
as peças não caíssem no meio do caminho.
35
poesia Montada
gaveta de espaços 4) FInALIZAçÃO: Após montar todas as linhas e
transferi-las para a matriz na plataforma de
montagem, era preciso acertar as pequenas dife-
renças de largura das linhas e encaixar uma mar-
gem após a última linha, para que fosse formado
um retângulo fechado de peças justapostas. As
peças de espaços servem para separar uma palavra
da outra, mas também são usadas para completar
pequenos vazios em cada linha. Dessa forma, to-
das as linhas deveriam estar com a mesma lar-
gura, independente da quantidade de letras que
cada uma continha. Em seguida, era necessário
amarrar um barbante ao redor da matriz, dando
várias voltas para que fosse feita a pressão ne-
cessária que mantivesse a matriz com sua peças
unidas.
5) PROVA E IMPRESSÕES: Por fim, a matriz pronta e
amarrada era transportada para uma chapa metáli-
ca até a mesa de impressão para que fosse tira-
da a prova. A movimentação da matriz era feita
apenas arrastando-a para os lados, com calma e
precisão. O barbante é responsável por manter as
pecas unidas, mas não garante pressão suficiente
para que a matriz seja suspendida. A prova era
feita entintando a matriz com o rolo e a tinta
tipográfica preta, arrastando-a para o prelo e
posicionando uma folha qualquer sobre a matriz.
Passando o prelo sobre a folha e a matriz en-
tintada, eu obtinha a uma prova impressa, onde
podia verificar pequenos erros ou ajustes a serem
feitos. Cada ajuste a ser feito, após a matriz
estar montada, devia ser realizado com o auxílio
37
iMpRessões na gRade de seCageM
papéis
da pinça que delicadamente retirava a peça er-
rada e a substituía pela peça certa, posicionan-
do-a exatamente no mesmo lugar. Se o erro fosse
maior, como o esquecimento de uma letra, de uma
palavra ou linha, era necessário levar a matriz
para a plataforma de montagem novamente, soltar
o barbante e corrigir o erro acertando os espa-
ços e todos os outros detalhes da matriz.
Em uma das provas impressas, eu anotava o có-
digo da gaveta que tinha utilizado para a monta-
gem. Esse procedimento era feito para que, após
concluídas todas as impressões, os técnicos do
LPG pudessem desmontar as matrizes e guardar
cada peça em seu devido lugar.
Após esse processo de prova, as matrizes es-
tavam prontas para serem impressas nos papéis
definitivos dos livros. Dessa forma, todas as
matrizes a serem impressas era levadas para a
mesa de impressão, a tinta era preparada e o pre-
lo era limpo para que não houvesse resíduos de
outras impressões. O prelo é uma prensa manual
composta por uma mesa e um rolo que se movimenta
sobre dois suportes laterais e ao ser puxado na
direção da matriz e do papel, exerce uma pressão
capaz de transferir a tinta aplicada à matriz
para o papel.
Os papéis que utilizei para a impressão das
poesias, e posteriormente das xilogravuras, foram
selecionados de acordo com a sua disponibilida-
de, gramatura, textura, cor e preço. Selecionei
4 tipos de papel, de 4 gramaturas diferentes, a
fim de produzir efeitos distintos na impressão
39
instRUMentos paRa iMpRessão
MatRizes no pRelo
das matrizes. As gramaturas dos papéis escolhi-
dos eram de 240g/m2, 190g/m2, 70g/m2 e 41g/m2.
Cada papel se comportou de uma maneira comple-
tamente diferente no momento em que entrava em
contato com a pressão do prelo sobre a matriz.
Os mais rugosos, exigiam mais tinta na matriz,
para que todos os detalhes fossem transferidos.
Os mais finos apresentavam uma marca em baixo re-
levo, por conta da pressão exercida pelo prelo.
Foram feitas 144 impressões do papel 120g/m2,
144 impressões do papel 70g/m2, 60 impressões do
papel 240g/m2 e também 60 impressões do papel
41g/m2. As páginas foram impressas frente e ver-
so, de acordo com a paginação do livro, somando
mais de 600 impressões no total. Essas mais de
600 impressões significam, mais de 600 vezes em
que o rolo passou na tinta e depois na matriz,
mais de 600 vezes que a folha virgem foi posicio-
nada sobre a matriz, obedecendo a um registro e
mais de 600 vezes que o prelo foi passado sobre a
matriz e a folha de papel. Ou seja, foi um pro-
cesso repetitivo e bastante metódico. Depois de
alguns dias montando 3 ou 4 matrizes, em apenas
um dia eu imprimia todas as páginas correspon-
dentes à um lado das folhas. Colocava as folhas
impressas para secar na grade e no dia seguinte
retornava para continuar o processo. Imprimia
então o verso dessas folhas já secas e novamente
as colocava na grade de secagem. Esse processo
foi repetido várias vezes, até que todas as ma-
trizes fossem montadas e impressas em todas as
folhas.
41
iMpRessões sobRepostas. folhas de pRoteção do pRelo
43
45
A madeira cedro-rosa vem de uma árvore nativa
do Brasil que atinge até 30 metros de altura.
É muito utilizada para recuperar ecossiste-
mas degradados e gera uma infinidade de uti-
lizações, entre elas, a artística. Optei pelo
uso do cedro-rosa para gravar as matrizes das
ilustrações, pois se mostrou ser muito versá-
til em termos de entalhe. Nela, percebi que
conseguiria gravar retas finas, planos, curvas
e detalhes sem que houvesse muita interferên-
cia dos veios, da sua dureza e dos possíveis
nós. Ao mesmo tempo, como a dureza da madeira
não era de alto grau, a força aplicada em sua
superfície pelo entalhe, gera uma série de pe-
quenos detalhes imprevistos no desenho prévio.
Ou seja, o desenho pensado nunca se aplica
exatamente na superfície da madeira e as sur-
presas sempre surgem no meio do processo. Nem
todas as lascas de madeira estão destinadas ao
desenho a que são impostas. Nesse sentido, o
desenho e o redesenho de uma gravura são dinâ-
micos, na medida em que o gravador aceita os
imprevistos ou os contorna, transformando-os e
adaptando-os à imagem final.
No início do projeto, eu não havia feito
nenhum esboço de como seriam as ilustrações e
ainda não havia planejado se o desenho obedece-
ria a planos geométricos, à formas orgânicas,
a detalhes minuciosos ou se seriam uma mistura
disso tudo. Dessa forma, optei pelo cedro-ro-
sa, madeira da qual eu já tinha um certo conhe-
cimento das características e comportamento.
AS xILOgRAVURAS
MatRizes de XilogRavURas
47
Antes de desenvolver qualquer imagem, o proje-
to exigia que eu planejasse toda a diagramação do
livro, incluindo as dimensões das ilustrações.
Dessa forma, defini que as ilustrações ocupariam,
no máximo, 17 cm de altura por 9 cm de largu-
ra e que estariam presentes acompanhando todas
as poesias, ou seja, seriam 20. Esse método de
pensar o todo primeiramente e partir para os
detalhes passo a passo, me ajudou a construir,
aos poucos, a imagem do livro como um objeto
composto por diversos elementos e, posteriormen-
te, criar essas imagens baseadas em idéias mais
maduras. Durante o desenvolvimento das poesias
na tipografia fiz o que podia para enriquecer meu
repertório sobre a vida do meu avô. Recolhi, na
casa da minha avó dezenas de fotos antigas de meu
avô, conversei muito com a minha mãe, tentando
resgatar na mente dela as lembranças de seu pai,
entrei em contato com seus amigos, companheiros
de luta, colegas de trabalho, troquei e-mails e
recebi relatos.
Em uma madeireira perto da USP, consegui com-
prar, já cortadas nas dimensões que eu especifi-
quei, os 26 blocos de cedro-rosa. Essa sobra de
6 blocos viriam a substituir alguma matriz, caso
fosse danificada no meio do processo de transpor-
te de um local para o outro, no tratamento da
madeira ou no momento do entalhe. Guardei todos
os blocos por alguns meses enquanto desenvolvia
o trabalho na tipografia, certificando-me que fi-
cassem em local seco e abrigado para que não so-
fressem deformações por conta da umidade.
Em março, quando já havia finalizado e impresso
todo o trabalho com os textos das poesias, vol-
tei-me para o desenvolvimento das gravuras. Ao
longo de todo o processo, enquanto minhas mãos
trabalhavam com os tipos, minha cabeça trabalha-
va com a tradução daquelas palavras. Essa tradu-
ção intersemiótica, da linguagem verbal para as
tantas outras linguagens que existem em nossas
mentes é algo constante e infinito. A todo tempo,
lendo os versos das poesias enquanto as montava
na tipografia, imagens eram construídas, descons-
truídas e reconstruídas até que algo me fixasse
em torno de alguma figura específica. As poesias
foram se encaixando nas definições dessas imagens
ao passo que, em certo momento, eu tivesse que
definir um desenho específico, o sentido de uma
linha, o movimento da figura. Esse momento diante
da madeira a ser gravada, com a goiva na mão, foi
quando finalmente me decidi por uma imagem, a fim
de associá-la a uma determinada poesia. Porém,
a mente nunca descansa e as traduções continuam
a ser feitas, mesmo quando se grava a superfície
da madeira. Como ilustradora, eu tive que lidar
com esse processo e me limitar a apenas uma ima-
gem para cada poesia, para que o projeto fosse
viável. Mas o ímpeto era de construir dezenas de
imagens e situações que complementassem a lei-
tura de cada poesia individualmente e do livro
como um todo.
As poesias de meu avô tratam de temas bastan-
te variados e muitas delas dizem respeito a mo-
mentos bem específicos de sua vida. Dessa forma,
49
linha do Relevo nas MatRizes procurei propor imagens que fizessem uma ponte
entre os significados de cada poesia e episódios
da vida pessoal de meu avô. O objetivo é de que
o livro possa ser apreciado por qualquer leitor
e não apenas aqueles que conhecerem meu avô in-
timamente. Independentemente da minha intenção,
essas imagens tem vida própria e podem gerar
interpretações das mais variadas, relacionadas
às poesias ou não e até totalmente distantes das
relações que eu fiz como tradutora. E é aí que
mora a beleza de um trabalho de tradução inter-
semiótica. Nunca se consegue prever ou controlar
o olhar do leitor. Quem lê, interpreta a sua ma-
neira, cada dia de um jeito, tecendo relações das
mais diversas. O meu trabalho, então, é o combus-
tível para a imaginação combinado a cada repertó-
rio específico dos leitores.
Primeiramente, pensei em todas as gravuras como
uma só. As coloquei lado a lado, numa extensa li-
nha de madeira e desenhei uma linha que transpas-
sasse todas elas. Essa linha definiria o que é chão
e o que é céu. Cada xilogravura é um fragmento do
que, como um todo, é a linha da vida de meu avô e
sua trajetória no mundo. Abaixo da linha, há um
relevo que varia de altitude a cada poesia e vai
levando o olhar do leitor no sentido da leitura do
livro, começando do ponto mais baixo com a pri-
meira poesia e chegando ao mais alto com a última
poesia, organizadas cronologicamente. Essa deci-
são de projeto se deu baseada em algo que muito
definia o meu avô: um homem que transitava entre
o mundo concreto e o mundo das idéias, dos senti-
51
beRço e MatRizes
gRavando UMa Xilo CoM a goiva eM “U”
mentos, do idealismo e do misticismo. Como diziam
seus companheiros “Desce prá Terra, meu amigo!”.
Meu avô, então, é o personagem principal das ima-
gens gravadas em madeira. A cada ilustração, esse
personagem surge em uma cena que transita entre
o relevo sólido do chão e a infinidade do espaço.
No desenvolvimento dessas gravuras, utilizei
goivas japonesas de aço e um suporte. Dentre os
vários tipos de goiva que existem, utilizei ape-
nas duas, a faca e a goiva em “u”. A faca é um
instrumento bastante afiado que é utilizado para
o desenho de contornos e linhas na madeira. Ela
corta a superfície da madeira em todos os senti-
dos, independente dos veios e depois destaca as
lascas a serem retiradas. A goiva em “u”, por ser
menos delicada, foi utilizada para retirar grandes
superfícies de madeira, regiões onde a tinta não
deveria ser depositada na passagem do rolo.
O berço, construído pelo meu pai, é responsável
por abrigar a placa de xilogravura, se mantendo
firme em relação à mesa de trabalho e oferecendo
uma quina onde se encaixam os cantos da placa. A
sua principal função é manter a placa de madeira
firmemente posicionada e imóvel enquanto o gravu-
rista imprime a força com as ferramentas sobre a
sua superfície. Sem o berço, a possibilidade das
ferramentas escaparem das mãos, perfurarem a mão
que não grava ou até lançarem a madeira longe é
grande. A gravação das xilogravuras foi um traba-
lho bastante elaborado e demorado em que me debru-
cei intensivamente no mês de Abril, concluindo-as
durante um feriado.
53
MatRizes pRontas
55
pRensa p300
beRço paRa a MatRiz
Antes de imprimir as xilogravuras, foi neces-
sário dar um acabamento nas placas de madeira, a
fim de preservar o material. Esse acabamento foi
feito com a goma laca, preparada em casa. A goma
laca é uma resina secretada por um inseto. Esse
material é tratado e refinado, até se transformar
na matéria prima para a fabricação do verniz.
A preparação é uma mistura obtida à partir de
100g da goma laca em forma seca, mais conhecida
como “asa de barata”, com 1 litro de álcool 99%.
Após 2 dias de cura, a goma está pronta para ser
usada. Ela é pincelada na superfície da madei-
ra em uma ou duas demãos, a fim de protegê-la da
umidade. A goma também veda os poros da madei-
ra, impedindo que a tinta fique ali depositada e
evita que farpas da madeira saiam facilmente,
passando para as mãos de quem a manuseia ou se
depositando no rolo de entintagem, prejudicando
seu desempenho.
Optei por fazer as impressões das xilogra-
vuras em casa com uma prensa da marca Trident,
modelo P300. Essa decisão foi tomada pois, após
algumas contas, concluí que levaria meses para
executar as mais de 600 impressões em algum ate-
lier livre, como do Sesc Pompéia onde se encon-
tram diversas prensas de vários tamanho, ou no
LPG da FAU que atualmente não dispõem de uma
prensa específica para gravura. Até então, eu não
tinha utilizado uma prensa para imprimir xilo-
gravuras, apenas o tinha feito manualmente, com
o uso de uma colher de pau. A impressão com a
colher é prática pois é possível realizá-la a
57
pRiMeiRos testes de iMpRessão
59
iMpRessões seCando qualquer hora, em qualquer local, sem depender
do funcionamento de um atelier ou de um técnico
de impressão. Porém, no meu projeto, existiam
duas questões que me fizeram optar pelo uso da
prensa: 1) A impressão com a colher exige muito
mais tempo do que com a prensa, além de deman-
dar um esforço tremendo do impressor, já que
esse deve pressionar com bastante intensidade a
superfície da colher no papel sobre a madeira.
Repetir esse processo mais de 600 vezes não se-
ria nada prático; 2) As poesias do livro foram
impressas tanto na frente quanto no verso e as
xilogravuras também deveriam constar em ambos os
lados. Dessa forma, a colher deveria esfregar o
papel exatamente sobre a impressão de uma poesia
de uma lado para que a imagem da xilo fosse gra-
vada do outro lado. Essa ação certamente dani-
ficaria o texto e a folha de papel, amassando ou
eliminando sua textura porosa, bem como criando
possíveis manchas de tinta.
Em apenas uma semana, me decidi pelo modelo
da prensa, pesquisei fornecedores, encontrei um
local no Brás onde poderia retirá-la imediata-
mente e adquiri essa peça tão importante para a
conclusão do meu trabalho.
Durante dias e com muita ajuda do meu pai (meu
técnico em impressão, marceneiro particular, im-
provisador e solucionador de problemas gerais),
montamos a prensa e conseguimos calibrar a al-
tura do rolo para que exercesse a pressão exata
sobre as xilogravuras e o papel. Desenvolvemos
um outro berço em que a xilogravura fosse en-
61
caixada a cada impressão. O berço contém a mes-
ma altura das xilogravuras e uma abertura nas
dimensões das placas, onde essas são encaixadas
após entintadas para impressão. Dessa forma, era
possível manter o rolo sempre na pressão certa
entre uma impressão e outra e assim a produção
das impressões se tornava mais eficiente. O berço
também exerce a função de manter a folha posi-
cionada e estável sobre um grid, já que ela per-
manece apoiada sobre a sua superfície durante a
impressão. Esses pequenos detalhes foram essen-
ciais para que as folhas de papel não amassassem
e ficassem com marcas indesejadas quando prensa-
das sobre a xilogravura.
Optei por utilizar a tinta à base de água por
3 motivos: 1) A tinta à base de água confere uma
textura aveludada e opaca às impressões, dife-
renciando-se da tinta tipográfica utilizada para
impressão das poesias. 2) A tinta à base de água
tem um tempo de secagem muito curto, o que fa-
cilitaria toda a logística de impressão frente
e verso e manuseio das folhas. O processo foi
repetido mais de 600 vezes e levou algumas se-
manas, apenas. Com a tinta à base de óleo, cuja
secagem é muito demorada, esse tempo, no míni-
mo, dobraria. 3) É muito simples limpar a tinta
à base de água das mãos e dos objetos. Dessa
forma, apenas com um pano úmido, eu conseguia
manter minhas mãos limpas para que manuseasse as
folhas de papel sem manchá-las.
Defini que escolheria mais duas cores, além
do preto, para inserir nas xilogravuras. Optei
63
por um vermelho sangue bastante saturado, cuja
vibração remete diretamente à posição política
de meu avô, suas lutas e seu ímpeto por justiça.
Para contrabalancear com essas duas cores muito
agressivas, o preto e o vermelho, optei por um
azul turquesa escuro. Essa terceira cor acom-
panhou as poesias mais ligadas aos sentimentos
pessoais de meu avô, mais íntimos. O azul também
deu origem a uma quarta cor, misturado a tinta
branca, que foi utilizada em apenas 2 livros.
Procurei experimentar várias formas de utili-
zação dessas 3 cores em conjunto. Primeiramente
inserindo o vermelho e o azul em algumas xilo-
gravuras no meio de um livro todo preto. Essas
xilogravuras foram entintadas por completo com
as tintas azul e vermelho. Alguns livros contêm
somente xilogravuras em preto, outros em preto
e vermelho e outros em preto, vermelho e azul.
Também experimentei entintar uma mesma matriz
com duas cores diferentes, separando as curvas
do relevo da cena na parte superior. Essa entin-
tagem dupla conferiu uma complexidade ao livro,
no folhear das páginas, já que as imagens mui-
to coloridas saltam aos olhos. Porém, de todos
esses experimentos, acredito que o livro total-
mente em preto se aproxima mais da linguagem da
xilogravura e dos tipos móveis, conferindo uma
unidade profunda ao objeto como um todo.
65
todas as XilogRavURas iMpRessas foRMando o CaMinho ContínUo
67
XilogRavURas iMpRessas eM dUas CoRes
livRo iMpResso. pp. 4 a 11
livRo iMpResso. pp. 12 a 19
livRo iMpResso. pp. 20 a 27
livRo iMpResso. pp. 28 a 35
livRo iMpResso. pp. 36 a 43
79
81
A encadernação dos livros foi a última etapa do
projeto realizado com as mãos. Sem nenhuma expe-
riência com a prática da encadernação, pesquisei
algumas técnicas, observei livros, estudei os
papéis e suas respectivas resistências em rela-
ção à agulha e a espessura da linha.
Ao produzir alguns experimentos, notei que
quanto menor a gramatura do papel, menos furos
eram necessários para encaderná-los.Dessa for-
ma, defini uma quantidade de furos para cada um
dos tipos de papel nos os quais os livros foram
impressos. Os livros de gramatura 41g/m2 tem
apenas 4 furos, os livros de gramatura 90g/m2
tem 6 furos, os de 130g/m2 tem 8 furos e, por
último, os livros de 240g/m2 tem 10 furos.
Primeiramente, precisei dobrar todas folhas
no meio, formando as cadernos. Cada livro tem
4 cadernos de três folhas. Em seguida, marquei
com um lápis os furos específicos de cada livro,
respeitando a lógica das gramaturas que tinha
estabelecido. Antes de costurar os cadernos,
foi necessário furar as folhas com uma agulha
média sobre um suporte de cortiça.
Após essa preparação inicial, a costura dos
cadernos pôde ser iniciada. A linha vai pas-
sando com um agulha pelos furos, saindo e en-
trando do caderno, a partir do furo mais baixo
até o mai alto. Chegando ao mais alto, a linha
adentra o próximo caderno pelo furo mais alto e
caminha pelos seus furos até o mais baixo. Che-
gando lá, é feito um nó unindo os dois primei-
ros cadernos e o processo se repete no caderno
A EncADERnAçÃO
livRos enCadeRnados
83
as 4 enCadeRnações: 10 fURos, 8 fURos, 6 fURos e 4 fURos seguinte, cruzando-se as alças da linha para
reforçar a costura. Esse processo se repete até
que todos os cadernos sejam costurados um ao
outro.
As encadernações foram feitas em três cores
de linhas, preto, vermelho e azul, de acordo
com as cores das xilogravuras impressas em cada
livro. Dessa forma, cada livro segue uma lin-
guagem particular. Algumas encadernações foram
feitas com linhas de duas cores, indicando que
no conteúdo do livro, há xilogravuras nas duas
cores também. E outras foram feitas com uma
linha dupla, da mesma cor, no caso do livro de
240g/m2, para que a costura desse conta de man-
ter os cadernos unidos, já que esse livro, es-
pecificamente, ficou bastante robusto em relação
aos outros 3 tipos.
No meu planejamento inicial, o livro seria
encapado, encobrindo a sua encadernação e anun-
ciando o título do livro na primeira capa com
uma xilogravura. Nessa xilogravura, gravei o
título “poemas gravados de meu avô”, seguindo a
tipografia utilizada nas poesias do miolo, mas
num corpo muito maior. Porém, ao imprimir al-
guns papéis com a xilogravura destinada para a
capa, não fiquei insatisfeita com o resultado,
que se distanciou da linguagem do livro. Dessa
forma, optei por deixar a costura aparente nas
lombadas dos livros e exclui a capa do projeto.
Assim, o processo de construção do objeto pode
ser visualizado como um todo em sua intimidade,
exibindo suas dobras, seus furos e sua costura.
85
O resultado final me agradou muito, na medi-
da em que pude visualizar, em forma de papel,
tinta e linha, todo o processo do trabalho de
meses, concretizado nesses objetos.
Como experimento, também produzi dois livros
sanfonados em que uni, em um deles, todas as
xilogravuras em preto e no outro, todas as 20
poesias. Costurei, seguindo a mesma lógica da
costura dos livros, uma folha à outra, só que
dessa vez com 20 furos, para que a junção de
duas folhas ficasse mais firme. Obtive, então, um
livro, que quando aberto por completo, chega a
mais 3 metros de largura. Assim, pode-se visua-
lizar todas as xilogravuras, lado a lado, bem
como as poesias também. Esse formato sanfonado
permite que a leitura não seja determinada, ne-
cessariamente, pela lógica linear. O livro pode
adquirir vários formatos e tamanhos, conferindo
uma experiência poética para o leitor.
87
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91
93
95
livRo sanfona das 20 XilogRavURas
97
livRo sanfona das 20 poesias
99
O projeto foi todo realizado manualmente, pois
senti que era necessário retornar ao princípio
dos processos para que pudesse compreendê-los e,
de certa forma, dominá-los. Para tanto, precisei
abdicar de todos os meus vícios digitais, tru-
ques computacionais e soluções automáticas. As-
sim, me voltei para meus únicos e mais valiosos
instrumentos de trabalho: minhas mãos.
Pensar e fazer projeto manualmente implica
em um grande planejamento de ações. Ainda mais
quando se lida com tipos móveis ou com a xi-
logravura, refazer, apagar ou reprojetar não é
simples e, em alguns casos, é até impossível.
Lidar com esses dois processos requer treino,
e repetição de movimentos para que a habilidade
seja conquistada e, então, para que o trabalho
ganhe uma fluidez, um ritmo, o meu ritmo. A des-
treza é adquirida com a regularidade da repeti-
ção do movimento, ao passo que a ferramenta se
torna uma extensão do gesto.
Ao montar os textos com os tipos móveis, as
mãos percorrem o mesmo caminho, saindo da ga-
veta e trazendo as pequenas peças de chumbo
para o componedor. A repetição eterna desses
movimentos faz com que as suas próprias mãos,
em um determinado momento, sem que se perceba,
recordem a localização de cada tipo na gaveta,
sem que seja necessário olhar o gabarito pendu-
rado na parede ou rabiscado em seu caderninho.
A partir desse momento, o trabalho ganha uma
fluidez enorme e passa a ser mais gestual do que
mental.
O FAZER cOM AS MÃOS
Minha Mão após tRabalho CoM os tipos Móveis
101
O mesmo ocorre com a xilogravura. A intenção
de gravar certa linha ou certa curva pode estar
muito clara na sua mente mas, nas primeiras in-
vestidas, a mão não obedece, a goiva escorrega,
a madeira reage inesperadamente. O treino e o
contato diário com as goivas na madeira fazem
com que, aos poucos, as mãos passem a reconhecer
padrões no entalhe. Os calos e bolhas começam
a aparecer, indicando que a repetição dos mo-
vimentos se intensifica. Nesse momento, as mãos
conseguem prever, quase que com exatidão, a pro-
fundidade do entalhe produzido com determinada
intensidade do gesto. É possível repetir cur-
vas milimetricamente. Mas ainda assim, a madeira
sempre guarda surpresas. As lascas estão vivas e
quando menos se espera, metade da cabeça de sua
figura foi para os ares.
O fazer com as mãos deixa marcas no processo.
O manuseio do papel, quando se lida com tinta,
passa a ser algo bastante complicado. Nem sempre
é possível manter as mãos perfeitamente limpas,
e então, as marcas, pequenos borrões, amassadi-
nhos e ranhuras vão surgindo, ao passo que, no
final de todo o processo, pode-se identificar uma
cronologia do manuseio nos próprios objetos.
Cada livro segue suas próprias particularida-
des de impressões, variações infinitas de entin-
tagem, furos mais abertos, mais fechados, dobras
mais bem definidas, menos definidas, manchas ines-
peradas, defeitos de impressão dos tipos e assim
por diante. Isso torna cada um deles um objeto
único, ainda que baseados em matrizes idênticas.
103
Desde o início do projeto, utilizei um caderno
para anotar todas as minhas idéias, definições e
esboços. Nele, desenvolvi o grid para a montagem
das poesias e desenhei a paginação e organização
de cada elemento nas folhas do livro. Dessa for-
ma, o caderno de projeto também serviu como base
e referência no momento das impressões, pois
continha todas as informações que eu precisava
para que as poesias e xilogravuras fossem posi-
cionadas na ordem correta da leitura do livro,
respeitando a encadernação futura.
Optei pelo uso desse caderno pois não utili-
zaria o computador em nenhum momento do desen-
volvimento do trabalho, exceto na diagramação
do relatório e armazenamento de fotografias e
vídeos. Dessa maneira, me forcei a colocar as
idéias no papel, em forma de desenhos, ao invés
de armazenar links na nuvem, o que foi muito im-
portante para toda a concepção do livro como um
projeto feito à mão.
A utilização de um caderno de projeto foi
muito útil, na medida em que no desenvolvimento
de um trabalho complexo e cheio de pequenos de-
talhes, as idéias que surgem não ficam perdidas.
Ele funciona como um caderno de lembranças, tam-
bém, onde eu pude vasculhar por antigas idéias e
anotações importantes.
Nas próximas páginas estão reproduzidas algu-
mas imagens desse caderno de projeto, exemplifi-
cando as anotações de cronograma, de diagrama-
ção, de controle de impressões e de idéias.
O cADERnO DE PROJETO
CadeRno de pRoJeto no lpg
105
107
109
111
113
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