Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

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Faltava no Brasil a publicação de um Dicionário dedica- do à temática do Lazer. Mas agora esta lacuna está preenchida! Este livro é fruto do empenho coletivo de administra- dores, bacharéis em artes cénicas, comunicação social, relações públicas, turismo, economistas, educadores, jor- nalistas, psicólogos, professores de educação física e sociólogos. Esta obra pioneira possibilita aos profissionais, pesqui- sadores e interessados no assunto o acesso a 50 verbetes relacionados ao lazer, tornando-se uma referência obri- gatória para aqueles que desejam aprofundar conheci- mentos sobre o tema. Christianne Luce Gomes organizadora l dicionário crítico do azer *4.*--\

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Faltava no Brasil a publicação de um Dicionário dedica-

do à temática do Lazer. Mas agora esta lacuna já está

preenchida!

Este livro é fruto do empenho coletivo de administra-

dores, bacharéis em artes cénicas, comunicação social,

relações públicas, turismo, economistas, educadores, jor-

nalistas, psicólogos, professores de educação física e

sociólogos.

Esta obra pioneira possibilita aos profissionais, pesqui-

sadores e interessados no assunto o acesso a 50 verbetes

relacionados ao lazer, tornando-se uma referência obri-

gatória para aqueles que desejam aprofundar conheci-

mentos sobre o tema.

Christianne Luce Gomesorganizadora

l dicionário crítico doazer

*4.*--\

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Christianne Luce Gomes

(Organizadora)

DICIONÁRIOCRÍTICO DO LAZER

Autêntica

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opyright © 2004 by Christianne Luce GomesSUMÁRIO

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Gomes, Christianne LuceG683 Dicionário crítico do lazer / organizador por

Christianne Luce Gomes. - Belo Horizonte:

Autêntica, 2004.

240 p.ISBN 85-7526-144-4

l.Lazer-dicionários.2.EducacãoFísica.I.Título.

CDD 379.8(038)

Apresentação 7

1. Acampamento - Edmur António Stoppa 9

2. Animação cultural - Victor Andrade de Melo 12

3. Arte-Victor Andrade de Melo 15

4. Brincadeira - José Alfredo Oliveira Debortoli 19

5. Brinquedo - Rogério Correia da Silva 25

6. Cidadania - Silvia Cristina Franco Amaral 30

7. Cinema - Victor Andrade de Melo 35

8. Clown - Ana Elvira Wuo 40

9. Colónia de férias - Cristiane Queiroz de Souza Assunção 45

10. Consumo - Janete da Silva Oliveira, Ricardo Ferreira Freitas 48

11. Conteúdos culturais - Victor Andrade de Melo 51

12. Cultura-Vânia de Fátima Noronha Alves 54

13. Dança - Maria Inês Galvão Souza, Victor Andrade de Melo 60

14. Diversão - Maria Cristina Rosa 64

15. Equipamento de lazer - Ana De Pellegrin 69

16. Espaço de lazer - Ana De Pellegrin 73

17. Espetáculo - Denise da Costa Oliveira Siqueira, Ricardo Ferreira Freitas 75

18. Esporte-Victor Andrade de Melo 8019- Eventos - Antonia Marisa Canton 85

20. Festa - Maria Cristina Rosa 8821- Formação profissional - Hélder Ferreira Isayama 93

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22. Género- Silvana Vilodre Goellner. 97

23. Gestão - Patrícia Zingoni 100

24. Globalização - João Luís de Araújo Maia, Ricardo Ferreira Freitas 104

25. Hotéis de lazer - Olívia Cristina Ferreira Ribeiro 107

26. Indústria cultural - Ricardo Ferreira Freitas, Ronaldo Helal, Fernanda Pizzi 112

n. Internet - Gisele Maria Schwartz 116

28. Lazer - Concepções - Christianne Luce Gomes 119

29. Lazer - Educação - Luciana Marcassa 126

50. Lazer - Ocorrência histórica - Christianne Luce Gomes 133

51. Lúdico - Christianne Luce Gomes 141

$2. Marketing - Daniel Braga Hubner. 147

$3. Meio ambiente - Heloísa Turini Bruhns 152

$4. Mercado de trabalho - Marcelo Weishaupt Proni 158

55. Mídia - Giovani De Lorenzi Pires, Cássia Hack 162

56. Ócio - Luciana Marcassa 165

57. Parques - Olívia Cristina Ferreira Ribeiro 172

58. Planejamento - Daniel Braga Hubner. 177

59. Políticas públicas - Silvia Cristina Franco Amaral 181

10. Política de lazer - António Carlos Bramante 185

H. Projeto - Patrícia Zingoni 188

12. Qualidade de vida - Euclides Guimarães, Vera Lúcia Alves Batista Martins 191

13. Recreação - Luciana Marcassa 196

1.4. Rua de lazer - Vima Carolina Carvalho Munhoz , 203

15. Serviços de lazer - Marcelo Weishaupt Proni 207

16. Shopping Center- Ricardo Ferreira Freitas 211

17. Televisão - Giovani De Lorenzi Pires, Sérgio Dorenski Dantas Ribeiro 213

18. Tempo livre - Valquíria Padilha 218

\9. Terceiro setor - Cássio Avelino Soares Pereira 222

'0. Trabalho - Ricardo Antunes 227

APRESENTAÇÃO

A ideia de elaborar o Dicionário Crítico do Lazer partiu do desejo e danecessidade de reunir, em uma obra, um corpo de conhecimentos que fundamen-tasse alguns dos vocábulos e expressões de referência no campo de estudos sobre olazer. Idealizada no Centro de Estudos de Lazer e Recreação (CELAR), do Departa-mento de Educação Física da Universidade Federal de Minas Gerais, esta obra re-presenta um convite à reflexão crítica sobre o lazer, um tema que cresce em impor-tância - social, política, económica e pedagógica - no despertar deste século XXI.

O Dicionário Crítico do Lazer tem como objetivo possibilitar aos académi-cos, profissionais e pesquisadores de diversas áreas o acesso a uma obra compostapor 50 verbetes relacionados à temática do lazer, com o propósito de situá-los nestecampo de estudos, aprofundar o conhecimento sobre o assunto e, conseqiientemen-te, instigar diálogos sobre o tema.

A concretização deste desafio foi possível a partir da colaboração dos 38 estu-diosos aqui presentes, convidados em virtude de seu conhecimento sobre o assuntoem questão, bem como pela sua significativa produção académica e profissional. EsteDicionário foi fruto, portanto, do empenho coletivo dos administradores, bacharéisem: artes cénicas, comunicação social, relações públicas e turismo; economistas, edu-cadores, jornalistas, psicólogos, professores de educação física e sociólogos aqui reu-nidos, os quais evidenciaram a fecunda possibilidade de empreender discussões mul-tidisciplinares sobre o lazer.

Como os autores tiveram liberdade de posicionamento em face das ques-tões debatidas em seus escritos, os textos não expressam a visão de todos oscolaboradores do Dicionário. Além disso, é importante esclarecer que os verbe-tes aqui contidos não têm a intenção de prescrever uma abordagem única, mas

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lê problematizar aspectos essenciais para uma abordagem crítica sobre o lazer.no-adamente nos dias atuais. Por essa razão, tivemos o cuidado de relacionar as refe-ências que fundamentaram as reflexões empreendidas pelos autores com a inten-ão de que essas fontes instiguem outros estudos sobre determinado assunto.

Nosso anseio é que a obra auxilie o trabalho didático de académicos de diver-

os cursos de graduação, estudantes no nível de pós-graduação (Especialização, Mes-rado e Doutorado) e professores de instituições de ensino superior que lecionem.isciplinas relacionadas ao lazer, estimulando reflexões sobre o assunto. Esperamos,inda, que o Dicionário enriqueça o estudo de pessoas, em geral, interessadas emprofundar conhecimentos sobre o lazer.

Christianne Luce Gomes

[Organizadora]

ACAMPAMENTO

:IONAWO CRITICO DO LAZER]

Palavra derivada de"campo", que tem sua origem na palavra latina campus (MAGNE, 1953),acampamento é o ato ou efeito de acampar ou, ainda, o lugar onde se acampa. Comosinónimo de acampamento, encontra-se, também, a palavra"acantonamento", origináriado verbo acantonar, vinda, por sua vez, da palavra francesa cantonner(BwNo, 1966).

Há em todo o Brasil, principalmente na Região Sudeste do País, a presença deuma centena de espaços de lazer chamados de acampamentos de férias e, em alguns

casos, de acantonamentos de férias, que são locais destinados a receber grupos de

crianças e adolescentes nos períodos de férias escolares ou, ainda, grupos de escolas,igrejas, famílias e empresas em outras épocas do ano. Para a realização dessas tempo-radas, os locais são dotados de infra-estrutura física, material e humana para recepcio-

nar, hospedar e animar os participantes por períodos de até 25 dias, realizando ativida-des culturais de acordo com os variados interesses propostos por Dumazedier.

Atividade realizada no País desde meados da década de 1940, de inspiraçãoamericana, foi inicialmente desenvolvida pela Associação Cristã de Moços (ACM),desenvolvendo atividades com seus associados. Posteriormente, foi fundado, em 1947,

o Acampamento Paiol Grande, sociedade civil sem fins lucrativos, primeiro acam-pamento do País a possuir uma área própria para a realização de suas atividades,iniciada com a temporada de férias de janeiro e fevereiro de 1948, com cerca de 70

rapazes, entre 10 e 16 anos.

Espaço importante para a convivência e a troca de experiências entre os parti-

cipantes de variadas idades, os locais contam, em seus quadros de recursos huma-nos, com a atuação de profissionais e estudantes de diversas áreas de formação, como

educação física, turismo, pedagogia, arte-educação e outras que deveriam atuar como

mediadores entre os participantes e as atividades a se realizarem no local.

Nesse sentido, as possibilidades de atuação profissional são bastante grandes,principalmente com relação à organização e à orientação de atividades, existindoatualmente um número variado de opções voltadas aos mais diferentes tipos de acam-pamentos, como locais em que o trabalho realizado está relacionado ao desenvolvi-

mento dos esportes (basquetebol, hipismo, ténis), ao estudo de línguas, a diabéticos,dentre outros.

A seleção dos profissionais à monitoria das atividades é feita, geralmente, porentrevistas e mediante um treinamento no local onde o acampamento vai ser reali-zado. As características procuradas nos candidatos estão relacionadas, principal-mente, a aceitação da filosofia de trabalho do local, à estética pessoal do candidato, ànecessidade da pessoa de gostar do trabalho com crianças e adolescentes e ser extro-vertida, situação que leva ao entendimento equivocado de que o bom profissional é

[ACAMPAMENTO] 9

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aquele associado à pessoa mais "palhaça", engraçada (confundindo seriedade na açãoprofissional com sisudez, daí a importância de a pessoa ser extrovertida), e com issoperdendo-se os limites necessários a uma boa atuação profissional.

Entre as características apontadas por vários estudiosos na área do lazer como im-

portantes em um animador cultural, a de maior presença, talvez, seja a questão da ligação

afetiva com a prática, sendo muito comum em acampamentos, por exemplo, a presença

de pessoas com 16 e 17 anos, ex-partidpantes que, por questão de idade, não podem mais

ser acampantes. Com raras exceções, é exigida na seleção dos candidatos a competência

técnica específica para a realização das funções de monitoria de atividades.

A forma de "contratação", geralmente, está relacionada ao trabalho comofree-

lancer, ou seja, as pessoas são chamadas pela própria gerência e/ou coordenação dos

locais, que possuem um rol de interessados e que vão participando à medida que há

disponibilidade de tempo para a realização do trabalho, sendo paga a remuneração

de acordo com o número de dias trabalhados. Esse tipo de inserção no mercado de

trabalho revela a precarização das relações trabalhistas nesses espaços, em que grande

parte das pessoas atua como mão-de-obra informal e de alta rotatividade, de baixo

custo para o empregador. O local funciona como um "bico" para o empregado, uma

vez que trabalha sem qualquer vínculo empregatício, colocando em evidência a ques-

tão do profissionalismo no lazer. Essa informalidade, reflexo da situação social do

País, é encontrada em outros espaços de atuação semelhantes aos acampamentos deférias, como os hotéis de lazer e clubes sociais.

No entanto, é importante destacar que, embora o mercado de trabalho em acam-

pamentos de férias tenha uma abrangência muito grande, ainda se caracteriza como

uma atividade, geralmente, marcada por uma visão bastante restrita em relação aos

estudos relativos à área do lazer, entendida como uma área de "fácil" atuação, aberta

a todos os interessados, mesmo àqueles sem qualquer qualificação profissional. As-

sim, fica evidente, na maioria dos espaços, a falta de uma política básica de recursos

humanos, tanto no que diz respeito a sua seleção, formação e atuação, quanto em

relação ao desenvolvimento de uma ação específica na área do lazer.

Pesquisa realizada em dois tradicionais acampamentos do Estado de São Pau-

lo revela a necessidade de um repensar na atuação dos profissionais nesses locais,

pois, geralmente, a ação é realizada sem qualquer sustentação teórica na área do

lazer que possa fundamentar tanto a formação específica de profissionais para o

exercício da função, quanto a filosofia de trabalho, apoiada apenas nas experiências

acumuladas com o passar dos anos, situação importante, mas que, por si só, não

se basta, haja vista que deve ser embasada pela teoria ou teorias relativas à áreado lazer. (STOPPA, 1999)

10 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

Essa pesquisa chega a pormenores inusitados em relação às questões pertinentesaos acampamentos, por exemplo, a interferência do adulto no brincar das crianças e ado-lescentes. Um dos motivos da interferência é a obrigatoriedade na participação das ativi-dades de lazer. Essa é uma questão que ocorre, embora os discursos oficiais afirmem ocontrário, o que revela uma falta de coerência entre o discurso da direção dos locais e aação efetivada durante a realização das atividades.

A ocorrência dessa obrigatoriedade é criticada até mesmo por alguns profissio-nais do acampamento entrevistados na pesquisa de campo, embora afirmem querealizam seu trabalho mesmo discordando dele, pois é preciso "vestir a camisa dolocal", uma vez que concordaram com a filosofia de trabalho desenvolvida no espa-ço, e explicada no treinamento, antes da temporada de férias.

Para as crianças e adolescentes, essa questão também não passa despercebida.Para eles a obrigatoriedade acontece, pois em diversos momentos da programaçãofaltam opções, o que os levam, obrigatoriamente, a participar da atividade proposta eainda são insistentemente convidados pela monitoria das atividades.

Segundo a pesquisa, a ocorrência dessa situação fez criar, num grupo de crian-ças em um dos acampamentos, determinada forma de organização contra esse tipode obrigatoriedade para minimizar a situação adversa. Apesar de toda a pressão, umdos participantes revelou que é fácil burlar a obrigatoriedade, o que mostra a resistên-cia das crianças em relação a esse problema. Segundo o relato, em último caso basta irpara a enfermaria e dizer que não está se sentindo bem. É a senha para escapar daatividade. Esse tipo de situação ocorria, principalmente, em atividades que exigiamcorrer pelo acampamento, cuja dificuldade está relacionada ao desnivelamento do ter-reno. Na enfermaria, era comum encontrar esses grupos sentados, conversando entre siou com as enfermeiras, sem qualquer problema aparentemente maior que os impedis-sem de participar das atividades.

Dada a ocorrência de questões como essa, entende-se que a atuação desses pro-fissionais não tem privilegiado a vivência do elemento lúdico para as crianças e ado-lescentes participantes, caracterizando a ação não como mediadora entre a culturaque a criança traz consigo e o acampamento e suas possibilidades de lazer, mas comocentralizadora em todas as tomadas de decisão.

Edmur António Stoppa

BibliografiaBUENO.F.S. Grande dicionário etimológico prosódico da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1966.

MAGNE, A. Dicionário etimológico da língua latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1953.

STOPPA,E.A.Acampamentos deferias. Campinas: Papirus, 1999.

WERNECK, C. L.; STOPPA, E. A.; ISAYAMA, H. F. lazer e mercado. Campinas: Papirus, 2001.

[ACAMPAMENTO] '11

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ANIMAÇÃO CULTURAL

Essa expressão pode ser definida como uma das possibilidades de intervenção peda-gógica nos momentos de lazer. O termo "animação" é originário do grego "anima",que, traduzido para a língua portuguesa, significa "alma". Define a peculiaridade deação de um profissional que tem a cultura como foco e estratégia central de atuação.Epistemologicamente, parece-nos mais adequado do que outras expressões corren-temente utilizados no Brasil, como recreação e ação cultural.

Algumas ressalvas, contudo, precisam ser feitas: a) a Animação Cultural não éexclusiva do âmbito do lazer; podemos, por exemplo, também pensar em ações dessanatureza rio espaço escolar, algo que tem estado em voga nas recentes teorias peda-gógicas que se aproximam dos Estudos Culturais; b) existem diferentes propostas deAnimação Cultural ligadas às peculiaridades do campo de intervenção, à visão demundo, às intencionalidades e ao compromisso social do profissional de lazer; c) senão é a única possibilidade de atuação no âmbito do lazer, tem sido comumente abor-dada por estudiosos do assunto; d) é de alguma forma tematizada por várias disci-plinas académicas: Antropologia, Comunicação Social, Arte, Educação Física, Psico-logia, Serviço Social, dentre outras.

Existem muitas expressões que, mesmo preservando certas especificidades, seaproximam conceitualmente da Animação Cultural: promoção cultural, difusão cul-tural, ação cultural, desenvolvimento cultural, dentre outras. Na França e na Espa-nha, mais comumente, utiliza-se o termo Animação Sodocultural. Nesses países, existeaté mesmo uma formação, em nível superior, específica para a preparação do profis-sional, próxima da Educação Social. Já na Inglaterra, é corrente o uso da denomina-ção Desenvolvimento Comunitário Sociocultural.

José António Caride Gomez (1997) classifica as perspectivas de AnimaçãoCultural em três grupos: tecnológico, interpretativo e dialético. Na primeira pers-pectiva, o profissional atua como um "engenheiro cultural", verticalmente identi-ficando e implementando o que julga necessário para seu público, serh solicitaruma participação ativa deste na definição dos caminhos a seguir: o animador é oúnico responsável por descrever e prescrever ações e soluções. Compreende a rea-lidade como genérica e o grupo como homogéneo, determinando hierarquicamenteos comportamentos que devem ser observados. Por desconsiderar as subjetivida-des e deixar pouco espaço para a participação crítica dos indivíduos, julga-se quenessa perspectiva há poucas possibilidades de contribuição para a superação daordem social. É a mais comumente encontrada no âmbito do lazer nas atuaçõesdos "recreadores tradicionais".

12 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

Já na perspectiva interpretativa, o animador atua como um "formador cultu-ral". Como considera que as subjetividades são absolutamente diferentes e toda rea-lidade particular, entende que deve, sim, interpretar as necessidades do grupo, masapenas oferecer um conjunto de atividades, convidando as pessoas a tomar parte noprocesso de reflexão. Acaba, assim, desconsiderando as tensões culturais que edu-cam de forma restrita o gosto e funcionam mesmo como elementos impeditivos deum acesso mais amplo às diversas linguagens nos momentos de lazer. Além disso,crê que basta educar subjetividades para que a coletividade seja modificada, nãopercebendo que os indivíduos devem aprender e ser estimulados a construir açõesconjuntas. Nesse sentido, também acaba contribuindo modestamente para a cons-trução de um novo modelo de sociedade. Essa é uma perspectiva muito encaminha-da por museus e centros culturais, por exemplo.

O animador cultural que atua a partir da perspectiva dialética pretende cons-truir uma democracia cultural. Entendendo que a realidade é complexa e historica-mente construída, percebe que é fundamental gerar movimentos comunitários. Não setrata de impor uma programação nem somente convidar, mas gerar propostas em con-junto com o público, a partir de seu envolvimento, crendo em estratégias de mediaçãopara ampliar o grau de compreensão e de vivências culturais do grupo. Espera que acomunidade envolvida possa paulatinamente desvelar os mecanismos e se empenharna sua emancipação. Por isso, acreditamos que esta perspectiva possa constituir umaação transformadora da sociedade.

Didaticamente, para que se compreenda melhor a natureza de intervenção doanimador cultural, podemos reconhecer três grandes padrões de organização cultu-ral que, obviamente, devem ser concebidos a partir da lógica de trocas e circularidade. Achamada "cultura erudita" é aquela relacionada a manifestações que historicamente seorganizam em escolas e/ou tendências que reúnem manifestações que apresentam carac-terísticas em comum (barroco, surrealismo, por exemplo), reconhecidas por instituiçõessacralizadas (museus, bibliotecas), nas quais se destacam grandes ícones (Rembrandt,Salvador Dali, por exemplo). Por estar de alguma forma ligada às classes dominantes,possui caráter normativo, estabelece padrões estéticos e suas instituições possuem certograu de prestígio e poder de decisão.

A chamada"cultura de massas" é a chave da constituição da sociedade do espetá-culo. Comumente são produções de caráter comercial denotado, de fácil acesso, de qua-lidade discutível, menos elaboradas do ponto de vista estético. Certamente temos quetomar cuidado com preconceitos, não reforçando a ideia de que somente o que vem dacultura erudita possa e deva ser valorizado. Mas também não podemos cair na apreen-são simplista de que tudo é igual, cabendo às pessoas escolher o que acham de boaqualidade: há tensões culturais que devem ser cuidadosamente consideradas.

[ANIMAÇÃO CULTURAL] 13

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O acesso restrito à "cultura de massas", fartamente incentivado pelos meios decomunicação, tem grande relação com a manutenção do status quo, não só porqueas manifestações constituem-se como poderosos mecanismos de difusão de represen-tações, como mesmo porque podem encaminhar uma lógica ascética restritiva. Deve-mos ter claro que tais manifestações são normalmente construídas em razão de modastemporárias e de relações impessoais, produtos descartáveis logo substituíveis. Nãopodemos, contudo, deixar de perceber que os enquadramentos não são lineares e, mes-mo, que existem produtos híbridos no âmbito desse modelo de organização.

O terceiro padrão refere-se à chamada "cultura popular", uma produção ligada adeterminada tradição, com poder restrito, a não ser quando estabelece contatos com osoutros padrões. Com isso não devemos encará-la como estática, mas sim desconfiardos graus de intercâmbio com outros níveis de organização, nem tampouco como apá-tica, mas identificar os seus mecanismos de resistência pela ressignificação.

Tendo em conta tais padrões, o desafio do animador cultural é difundir as mani-festações da "cultura erudita", estimulando que os indivíduos se entendam como pos-síveis produtores (quando confeccionam algo e/ou quando dialogam criticamente como produzido); lidar estrategicamente com a "cultura de massas" não no sentido de serestritamente contra, mas no de paulatinamente contestar seu sentido restritivo; e di-fundir e colaborar com esforços de recuperação dos elementos da "cultura popular".

A intervenção cultural não se trata somente de pensar nos conteúdos e valores,mas também nas representações e sensibilidades. Determinadas percepções e sensi-bilidades podem se ajustar ou contestar determinado conjunto de valores, mas muitodificilmente poderão prescindir dele. Ao observarmos de forma mais complexa e di-nâmica tal articulação, pode-se até mesmo dizer que as sensibilidades, simultane-amente, expressam e contestam conjuntos de valores, da mesma forma que os valo-res se ajustam e contestam determinadas percepções. Há uma forte e contínua relaçãoentre forma e conteúdo.

Com isso, lembramos que a Animação Cultural é também, e talvez fundamental-mente, um processo de educação estética, de educação das sensibilidades, o que podepermitir aos indivíduos desenvolverem o ato de julgar e criticar a partir do estabeleci-mento de novos olhares acerca da vida e da realidade. A Animação Cultural não devenegligenciar que há um claro processo de empobrecimento das sensibilidades, enten-dendo que isso tem relações com a redução da capacidade de pensar e de se posicionarcriticamente. Por isso é que compreendemos que a educação estética pode transformara existência cotidiana injetando nela um princípio fundamental de liberdade e escolha.

Podemos conceber a atuação do animador cultural como a de um estimuladorde novas experiências estéticas, alguém que, em um processo de mediação e diálogo,pretende apresentar e discutir, induzir e estimular o acesso a novas linguagens; um

[DICIONÁRIO CRITICO no LAZER]

ofissional que educa ao incomodar e informar sobre as possibilidades de melhororver, acessar e produzir diferentes olhares.

Victor Andrade de Melo

BibliografiaAUGUSTIN, Jean-Pierre, GILET, Jean-Claude. L 'animation professionnelle. Paris: UHarmattan, 2000.

BERNETJaumeTrilla.AmmaciónsodocwZfura/: teorias, programas y âmbitos. Barcelona: Ariel, 1997.

GOMEZ, José António Caride. Paradigmas teóricos em Ia animación sociocultural. In: BERNET, Jaume

Trilla. Animación sociocultural: teorias, programas y âmbitos. Barcelona: Ariel, 1997. p. 41-60.

MELO, Victor Andrade de. Educação estética e animação cultural. Licere, Belo Horizonte, v. 5, n. l,

p. 101-112,2002.

MELO, Victor Andrade, ALVES JÚNIOR, Edmundo de Drummond. Introdução ao lazer. São Paulo:

Manole,2003.

ARTE

O conceito de arte tem sido uma busca constante e motivo de polémica desde a Anti-guidade grega, muito anteriormente ao surgimento da Estética, entendida como umadisciplina filosófica específica para o estudo dos modos específicos de apropriaçãoda realidade, na qual se destacam as questões ligadas à sensibilidade. Vale destacar,aliás, que se no âmbito dessa disciplina se observam reflexões sobre as manifesta-ções artísticas, estas não são exclusivas; a preocupação é com todo conjunto de rela-cionamentos no qual se destaque a mediação das sensações.

Se a estruturação dessa disciplina data do século XVIII, desde os gregos se dis-cutia o que seria a arte e qual seria sua função, debates de alguma forma conectadoscom as reflexões acerca dos conceitos de beleza e de sua relação com a compreensãodo que seria verdade. Em Platão, por exemplo, podemos identificar certa oposição en-tre arte e filosofia, fruto de uma disputa pela supremacia na produção de conhecimen-to. Compreendia-se que a arte somente imitaria a vida, permitindo, portanto, um simu-lacro de entendimento. Enquanto isso, a Filosofia transcenderia e permitiria o acessoaos objetos em si, em decorrência de sua possibilidade de contemplação.

Estavam lançadas as bases de uma compreensão que, ora mais ora menos, vaiperpassar a história da sociedade ocidental: o conhecimento racional é o que deveser mais valorizado. Com isso, aponta-se um caminho de separação, de distancia-mento entre a arte e a vida, algo que traz impactos e deve ser cuidadosamente consi-derado na intervenção do animador cultural. Há um rosário de equívocos historica-mente construídos que precisam ser desfeitos urgentemente na contemporaneidade.

[ARTE] 15

Page 9: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Depois de um longo percurso de tentativas de definição da arte a partir de suaessência, mais recentemente podemos destacar a contribuição de Morris Weitz (1955).O autor defende que a própria lógica da produção artística desautoriza qualquer ten-tativa de defini-la pela essência, já que é um campo que se caracteriza notavelmentepor ser aberto e mutável em razão da constante busca de originalidade. Propõe, assim,que abandonemos a busca por uma definição do conceito, chamando a atenção paraque possamos compreender uma dupla dimensão: a classifícatória e a apreciativa: nemtudo que é rotulado como "arte"é, dessa forma, vivenciado pelas pessoas.

A partir dessa provocação, novos estilos de definição começam a ser gestados.Desloca-se o eixo da busca das propriedades da arte para seu processo de geração,para a organização do campo. Essa preocupação está, por exemplo, contemplada nateoria institucional da arte proposta por George Dickie (1971). Para ele, quem devedefinir o que é uma manifestação artística são os indivíduos e as instituições quetransitam nesse campo de relações.

Se a proposta de Dickie avança no sentido de chamar a atenção para o contextosocial, rearticulando arte e sociedade, é limitada na medida em que é puramenteformal. Na verdade, o autor não só não resolve o problema de definição com sua isen-ção, como também acaba por limitar o campo a seus extratos mais estandartizados.Tal compreensão acabaria por excluir grande parte das possibilidades de inovação ecriação; a produção dos Impressionistas e de Van Gogh, só para ficar nesses exem-plos, só seria considerada como artística muito depois de sua ocorrência, já que hou-ve resistências claras no momento em que emergiram; se formos pensar na arte con-temporânea, tal fato se tornaria ainda mais limitante. Além disso, elimina um grandeconjunto de obras que não frequentam museus, centros culturais e/ou são menosvisualizadas pelas instituições nem sempre atentas do mundo artístico.

Mais ainda, em um mundo onde o mercado é extremamente voraz, segmentado ediscriminatório, tal teoria seria no mínimo perigosa para o próprio desenvolvimentoartístico e para pensarmos a questão da produção e da difusão cultural.

Já Arthur Danto (1981) tende a conceituar a arte em razão de sua ocorrênciahistórica: seria aquilo que, em cada contexto específico, fosse definido como tal. SeDanto critica Dickie por sua falta de compreensão histórica, no fundo acaba incor-rendo em problema semelhante, pois quem vai definir o que é arte em cada momen-to senão os indivíduos e instituições ligadas ao mundo artístico?

Mais recentemente, tende-se a definir a arte como uma prática sociocultural.Assim sendo, solicita uma preparação prévia no sentido de ser vivenciada plena-mente e de compreensão de suas peculiaridades, que se não observada, mesmo quenão funcione como elemento absolutamente impeditivo de seu acesso, pode, sim,

[DICIONÁRIO CRfnco DO LAZER]

funcionar como dificultador de sua fruição e de sua produção, aqui entendida tantocomo confecção como possibilidade de diálogo crítico. Não há uma essência, massim uma existência (construída de forma múltipla) que define o papel que ocupa nasociedade. Esta forma de existir, entretanto, não pode ser encarada como único parâ-metro de definição, e sim como desafio para que se concebam diversas formas deampliação de seus sentidos, de seus significados, de suas formas de vivência.

Vale a pena destacar que, a partir dessa perspectiva, tem sido comum a recupe-ração do pensamento pedagógico de John Dewey: a arte como experiência. Esse au-tor não tinha por objetivo definir de forma categórica o que é arte, mas construirconceitos que permitissem que com ela trabalhássemos de forma a ampliar os li-mites de suas compreensões habituais. Não se trata de estabelecer uma verdadeacerca da arte, mas repensá-la a partir do entendimento de sua importância, deseu papel na vida dos indivíduos, de sua função social, encarando-a fundamental-mente como uma forma específica de contato com a realidade, que traz impactospara além da própria obra em si. Se também tal proposta apresenta limites e pos-sibilidades de crítica, parece que permite encaminhar profícuas perspectivas de in-tervenção pela e a partir da arte.

A arte poderia ser entendida como o que as pessoas sentem como arte. A ques-tão passa a ser que condições concretas os indivíduos têm de sentir ou não a partirde determinadas obras. Obviamente há uma relação clara entre as condições obj.e-tivas (o económico, as possibilidades de acesso, a oportunidade de experiências, osestímulos no decorrer da vida, por exemplo) e as vivências subjetivas. Os indivíduosdeveriam ser educados e oportunizados a ampliar as suas possibilidades de extrairsensações de manifestações as mais diversas possíveis. Ressignifica-se, com isso, opapel da arte na vida dos indivíduos e o espaço que ocupa nas agências de formação(escola, família, tempo livre).

Ao mesmo tempo, os indivíduos devem ser estimulados a se compreender comoprodutores, não aceitando os limites, muitas vezes rígidos, impostos pelas institui-ções artísticas formais, o que pode desautorizar suas críticas pessoais acerca dasobras e desconsiderar sua formas específicas de manifestação a partir de um critérioduvidoso de qualidade.

Assim, o posicionamento de alguém que não seja crítico profissional deve sertambém considerado e não descartado a priori como "opinião de um não entendi-do", ainda mais se estiver pautado em construções de conhecimento constantes acer-ca do acessado. As manifestações artísticas também não podem ter seu valor julga-do de forma apriorística, de maneira preconceituosa: o samba pode ser tão artequanto a música clássica; a pintura naifnão é menos valorosa do que as obras

[ARTE] 17

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expostas em famosos museus; a dança das ruas pode ter um status artístico tão respei-tável quanto o do bale clássico. A valor da manifestação não deve ser estabelecido poralgo que venha de fora, mas construído a partir dos efeitos que ocasiona nos diferentesindivíduos, considerando que estes devem ter acesso a processos de formação.

A experiência estética é o grande valor das obras de arte, aquilo que devem

ocasionar. Sem essa experiência, esvazia-se a potencialidade de sua intervenção.

Um quadro bastante valorizado por uma instituição famosa não deixa de ser arte

quando não é reconhecido por um indivíduo, mas para ele deixa de ser encaradocomo tal. O potencial da arte está na sua experimentação e no que desencadeia a

partir dessa vivência. Quando permite ao indivíduo exercer sua possibilidade de

crítica e de escolha; quando amplia, ao incomodar, as formas de ver a realidade;

quando educa para a necessidade de olhar cuidadosamente (tão importante em

um mundo de signos e símbolos); também quando desencadeia vivências praze-rosas (embora estas não devam ser consideradas como único padrão de julgamen-

to: por vezes não é essa a intencionalidade do artista), a arte cumpre sua função

social. Quando cumpre esses papéis, a arte extravasa sua existência para além da

manifestação em si. Quando não, as obras podem não passar de algo amorfo paraalguns, privilégio de uma minoria.

Perceba-se que não estamos a falar da arte como meio de educação. Ela éuma parte importante de nossa vida (somente não assim reconhecida em razãodos quadros de tensões sociais) e possui uma ligação inextricável com a realidade.Portanto, a experiência artística (compreendida, ressalte-se, como produção de um

objeto específico, mas também como diálogo crítico com as obras) passa a ser uma

vivência fundamental para que os seres humanos melhor compreendam o que está

a seu redor. A arte não tem uma função, é uma função. Não se trata somente depensar em uma educação pela arte, mas, fundamentalmente, em uma educaçãopara a arte.

Para tal, então, como profissionais de lazer, devemos investir em processos de

educação artística que, na verdade, se estruturariam como de educação estética. Al-

guns parâmetros claros devem ser observados: a) a necessidade de superação do dis-

tanciamento entre a arte e a vida: tem uma existência concreta, expressa uma apre-

ensão acerca da realidade, não é menos importante do que outras formas de

conhecimento; em uma última instância, podemos falar da possibilidade de viver avida como uma arte; b) a necessidade de compreender com profundidade e ampli-

dão o papel e a função da arte: deve desencadear sensações naqueles que a procuram

(ser experienciada corporalmente), não pode ser ascética, não é para poucos privile-giados, é uma forma de expressão acessível a todos.

PICIONARIO CRITICO DO LAZER]

Ao contemplar os interesses artísticos em seu programa, o profissional de lazerdeve ter em vista que deve contribuir para educar a sensibilidade de seu público-alvo, apresentando, em um processo paulatino de mediação e diálogo, novas lingua-gens e possibilitando a vivência de novas experiências, a partir das quais pode cons-

truir conhecimento acerca das peculiaridades de cada manifestação em sua

diversidade de correntes e propostas. Obviamente nesse processo não cabe precon-

ceito a priori com qualquer manifestação. O intuito não é de se posicionar contra

qualquer forma de organização artística, mas de ampliar os limites de experiência

estética dos indivíduos, dando condições para que se possa escolher com mais clare-

za e critério, de acordo com os desejos e escolhas.

Não se trata de somente incorporar esses interesses na perspectiva da contem-

plação. Podemos (e devemos) também contribuir para despertar nos indivíduos seu

senso de produção artística. Não se trata de trabalhar no sentido de formar renoma-

dos artistas plásticos, músicos ou escritores, mas sim estimular em cada um as sen-sações ocasionadas pelo ato de pintar, cantar, tocar, representar, escrever. Ainda mais,

estimular a percepção de que se essa produção pode se dar em diálogo com o que já

existe configurado, não necessariamente precisa se comparar ou se limitar ao que já

é valorizado pelo circuito de produção artística.

Victor Andrade de Melo

Bibliografia

BARBOSA, Ana Mae. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.

FARIAS, Agnaldo. Arte brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2002.

JIMENEZ, Marc. O que é estética? São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999.

MELO, Victor Andrade. Educação estética e animação cultural. Licere. Belo Horizonte, v. 5, n. l, p. 101-

112,2002.

MELO, Victor Andrade; ALVES JÚNIOR, Edmundo de Drummond. Introdução ao lazer. São Paulo:

Manole,2003.

SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arfe. São Paulo: Editora 34,1998.

BRINCADEIRA

São diversos os estudos, as questões, bem como as contradições que envolvem a com-preensão do brincar e da brincadeira. Concepções distintas, usos, utilidades e sensi-bilidades divergentes; diferentes olhares sobre um conhecimento e uma experiên-cia que requerem, antes de tudo, ser tomados do ponto de vista de um fenómeno

[BRINCADEIRA] 19

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cultural, identidade inalienável do humano, expressão da condição humana: cultu-. ral, histórica, ética, estética e política. Animais não brincam! Os seres humanos, ao

observarem determinados comportamentos dos animais, os categorizam a partirdaquilo que se assemelha à sua condição humana. O brincar radicalmente se mani-festa como dimensão que é simbólica, constitui inserção cultural, se expressa comolinguagem e como processo de elaboração de significados e sentidos coletivos, con-textualizados e enraizados no universo social que o legitima.

No sentido de Vigotski (1998), brincadeira não é sinónimo de prazer, o brincarnão é espontâneo, o brincar não é natural nem próprio das crianças, ainda que seexpresse pelas/nas crianças em suas formas mais genuínas. O brincar só pode sercompreendido como processo de inserção em um tempo-espaço de aprendizadosdemarcadamente sociais. Para Brougére (1994), expressa uma necessidade humana deexplorar os objetos culturais de forma a ampliar o universo simbólico que potencializaas mais diferentes representações do real. Constitui-se, por isso, como imaginação enarrativa, processo de problematização e reconstrução da realidade. Alguns autoresprocuram diferenciar brincadeira de jogo, afirmando que a brincadeira não possui umsistema de regras que estruturam sua experiência.

O brincar e a brincadeira, mais que conceitos, materializam-se como concep-ções e princípios profundamente complexos: quanto mais os tentamos agarrar,mais eles se dissolvem e nos contradizem. Afirmo que a brincadeira expressa umadas formas mais sutis e sofisticadas de partilha de regras, por mais tácitas que sejam.Uma brincadeira entrecruza histórias, tempos e espaços. Não se brinca apenas comum objeto. Brinca-se com uma memória coletiva que muitas vezes transcende quembrinca e o próprio momento da brincadeira: objetos, tempos, substâncias, regiões,épocas, cidades, países, estações do ano, rituais, os mais amplos e ricos contextoshumanos. Prefiro dizer que toda brincadeira consiste num jogo, no sentido mais ple-no da construção de regras e instauração de uma dinâmica coletiva de significaçãode suas relações.

Contudo, nem todo jogo é uma brincadeira, nem todo jogo se expressa comopossibilidade de reconstrução e ressignificação da realidade, o que pressupõe, se-gundo Souza (1996), uma produção "lúdica" (dimensão dos sujeitos e linguagemque expressa uma racionalidade que envolve o corpo, a memória, o simbólico e umuniverso de significação coletiva e não individual) ou, no sentido de Benjamim(1984), uma possibilidade de experimentar e narrar uma história a partir do que,muitas vezes, foi tomado como "lixo" dessa própria história: aquilo que foi/é des-cartado por sua aparente inutilidade pode ser (re)humanizado, (re)significado,(re)apropriado como sentido, significado e história. Nisso, certamente, as criançassão as maiores mestras.

20 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

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Contudo, não há uma verdade única sobre o brincar e há muitas investidas paradele se apropriar fazendo usos os mais diversos. Também é importante ressaltar que obrincar é contextualizado e carrega, por isso, as marcas do contemporâneo, tornando-se a própria representação de uma sociedade que coloca para si ideias e ideais de pra-zer individualidade, consumo, provisoriedade, descartabilidade. O brincar, nesse senti-do, acaba sendo usado paradoxalmente não como fonte de criação e produção do mundo,

mas como artefato de reprodução de estruturas que devem ser ensinadas às crianças,tanto no sentido técnico quanto moral, transformados em conhecimento e padrão decomportamento futuro. É, necessário, pois, atentar para alguns discursos correntes so-bre as brincadeiras e seus muitos equívocos, como os exemplos a seguir.

Brincadeira pedagógica: as brincadeiras são chamadas pedagógicas quan-do relacionadas diretamente ao que se considera como aprendizagens escolares, namaioria das vezes articuladas a uma ideia de alfabetização e de aprendizagens mate-máticas. São diferentes jogos que promovem o diálogo das crianças com as letras e osnúmeros, um esforço para dar um tom mais agradável ao que se quer ensinar. Umaideia de"atividade lúdica" aparece intimamente relacionada a uma ideia de fazer comprazer. Esse discurso carrega consigo o paradoxo de afirmar que o que as criançastêm para fazer, conhecer e aprender é tão monótono que precisa de outra roupagempara se tornar mais agradável.

Brincadeira recreativa: denominada como "recreação" ou "atividade recrea-tiva", normalmente, está relacionada a uma ideia funcional de ocupação do tempoou "recuperação/desgaste de energias acumuladas"; ou, como assinala Kuhkmann Jr.(2000), essa concepção se fez presente na educação das crianças, principalmente, apartir da década de 1940, quando as crianças eram tomadas como único elementoda relação pedagógica, o que produziu um afastamento do lugar do adulto das rela-ções pedagógicas, reforçando outro entendimento de "ludicidade" relacionado à ideiade atividades espontâneas e prazerosas por meio das quais as criança entrariam emcontato com o ambiente e com os objetos, sendo esses os princípios fundamentais demediação do seu desenvolvimento.

Brincadeiras livres: essa noção é comumente utilizada para os momentosem que as crianças brincam sem uma interferência direta do adulto, deixando queelas mesmas escolham e construam suas brincadeiras. Reforça um discurso que pro-cura valorizar a autonomia das crianças sem que, na maioria dos casos, se tenhaclareza da concepção que traz, o que acaba por reforçar formas individualizadas deexpressão da criança, pouco problematizando as tensões e contradições que emer-gem das relações, não dimensionando a importância dos lugares dos adultos - porisso, também, das crianças - nesse contexto. As crianças acabam abandonadas às

[BRINCADEIRA] 2

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suas próprias relações como se, a priori, fossem capazes de resolver elas mesmasseus conflitos. As crianças sabem, sim, organizar-se, mas elas expressam as relações

que conhecem; há tensões e relações de poder e muitas vezes vê-se reforçado justa-

mente algo que precisaria ser melhor trabalhado com as crianças na direção da cons-

trução de suas relações e experiências. Como ressalta Benjamin (1984), a relação de

brincadeira evoca uma tarefa histórica: a da "orientação rigorosa", capaz de poten-

cializar questionamentos às experiências e à vida, reconhecendo, no presente, possi-

bilidades (esperança/utopia) de "libertar" o futuro de sua forma desfigurada.

Brincadeiras dirigidas: as brincadeiras também são tomadas sob o ponto

de vista e estatuto de conhecimentos escolares que devem ser ensinados às cri-

anças. Denominadas de brincadeiras dirigidas, acredita-se que exista uma ma-

neira "certa" de como as crianças devem brincar. Vê-se reforçada uma ideia de

que as crianças não sabem muitas brincadeiras ou não sabem brincar da ma-

neira correta, o que inclui os gestos que devem fazer, as regras que devem respei-

tar e o comportamento que devem ter durante a brincadeira. O objetivo princi-

pal ressaltado para essas "atividades" é o de ensinar a brincadeira, mas não

necessariamente o de brincar.

Brincar pelo brincar: buscando superar posturas que hierarquizam e/ousecundarizam o brincar em relação a outras aprendizagens ditas escolares e procuran-do contrapor-se a uma ideia de "uso pedagógico" da brincadeira, lança-se mão de umaideia abstrata e idealizada do brincar e da infância, na qual os conflitos e as tensões não

são considerados nas relações. Sobressai uma concepção do brincar relacionada a umaideia de relaxamento, prazer, distensão e autonomia individual.

Às vezes o brincar vira uma obrigação e deixa de ser brincadeira: abrincadeira apresenta esse paradoxo, principalmente, para.a escola. Se, de um lado é

preciso afirmar que o brincar é sempre um convite, o que, muitas vezes, instaura

uma contradição entre os tempos e espaços institucionais e os tempos e espaços dos

sujeitos, seus desejos e ritmos subjetivos, por outro, essa tensão também explicita

outro princípio e contradição permanente da brincadeira, que é sua dinâmica de

reconstrução e ressignificação permanente; a brincadeira ao mesmo tempo em que

se instaura como uma experiência coletiva de relação e significação, também é expe-

rimentada com sentidos profundamente distintos entre as diferentes pessoas que

brincam juntas, e até mesmo daquilo que foi colocado como foco prioritário. Há

muitas maneiras de participar de uma mesma brincadeira em um mesmo tempo elugar. Por exemplo, algumas crianças dizem que não querem ficar na roda com as ou-

tras crianças, mas quando "saem da brincadeira" ficam olhando as outras crianças,

22 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

cantam a música que está sendo cantada na brincadeira e ficam sintonizadas com oque está sendo feito; há momentos em que elas também precisam ficar sozinhas an-tes que se disponham a estar com o grupo. Outras vezes é o contrário.

É necessário, pois, atentar para a riqueza das relações que emergem em umabrincadeira. Só é possível percebê-las no envolvimento; nem sempre se é capaz de

dar respostas imediatas e nem sempre é preciso assim fazer; o próprio desenrolar dabrincadeira, muitas vezes, apresenta as soluções necessárias. Por isso é necessárioclareza de intenções e dos lugares de adultos e de crianças. Brincadeira é coisa sé-

ria? muitas vezes, parece que a importância da brincadeira, como lembra Wajskop(1995, p. 22), só se evidencia mesmo quando, de alguma forma, está relacionada aoque histórica e comumente é reconhecido como "conteúdos","habilidades" ou "valo-

res" sociais ou escolares, justificando a presença e a possibilidade do brincar na edu-

cação e em outros contextos.

Dizer que o brincar e a brincadeira são coisas sérias reforça uma tentativa dedar um estatuto de importância a partir da referência daquilo que o olhar adultoconsidera importante, como o trabalho e a ciência; ou outros conhecimentos, como amatemática, a leitura e a escrita, ou comportamentos disciplinados e consideradoscomo adequados. O brincar, assim, adquire importância por subsidiar outras apren-

dizagens, mas não por seus temas, linguagem, tensões e suas relações específicas.Nem sempre a brincadeira do adulto é brincadeira para as crianças: às vezes os

adultos criam uma circunstância chamando de brincadeira algo que para as crian-ças não têm nada de brincadeira. As crianças fazem de tudo para se livrar dessa situa-

ção: dispersam-se e fazem bagunça; são ameaçadas, por exemplo, de não deixar fa-zer as brincadeiras seguintes caso não participem da brincadeira proposta. Essa éuma situação extremamente paradoxal, e as crianças chegam a perguntar, no meio

da brincadeira, a que horas elas vão poder brincar.

A televisão também pode ser um tempo de brincadeira, mas precisa perma-

nentemente de mediações. Em diferentes circunstâncias, as crianças são colocadas

em um lugar de extrema passividade, e a televisão parece ser utilizada como um

objeto capaz de fazer, por ele mesmo, as mediações necessárias à sua apropriação. As

crianças são colocadas diante do televisor como se qualquer coisa pudesse preen-cher aquele momento. O uso da televisão não pode estar relacionado a mero preen-

chimento do tempo ou substituição das relações e interações humanas. Alguns pro-

gramas de televisão trazem representações absurdas das crianças, com o rótulo de

programa infantil. Como exemplo, cito um quadro de um programa de uma apre-sentadora que vem atravessando gerações, supostamente educando as crianças, mas,

sobretudo, gerando representações e expectativas de consumo: em um "clipe", a

apresentadora canta uma música que sugere movimentos corporais e conteúdos

[BRINCADEIRA] 23

Page 13: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

matemáticos. Sob o rótulo de educativo aparecem crianças repetindo um refrãoque traz na letra uma contagem numérica. Contudo, quem aparece, prioritaria-mente, protagonizando a cena, é a própria apresentadora. Ao fundo, bem ao fundo,completamente secundárias, aparecem uma criança, um macaco e um cachorro;um tratamento pretensamente infantil, que menoriza a presença das crianças, quecoloca a criança, o macaco e o cachorro em um mesmo plano, como meros coadju-vantes, para não dizer objetos. As crianças se divertem. Essa cena mobiliza umaagitação. As crianças se levantam e ficam pulando e repetindo gestos e música.Isso não é secundário. É a incorporação de um lugar e de uma maneira de estarinseridos na cultura. Sujeitos ou objetos? Produção ou consumo?

Embora a resposta seja tensa e dialética, cabe, pois, lembrar que cada coisa quefazemos ou aprendemos faz parte de uma cultura, de uma tradição e de nosso siste-ma coletivo de significações. Sempre podemos incluir, por mais imperceptível quepareça, algo novo, algo que é nosso, que é fruto da nossa história, das nossas experi-ências, de nossa imaginação. Podemos sempre reconstruir as regras, reinventar pala-vras e jeitos de falar, recriar o mundo com nossas pinturas, esculturas, festas, brinca-deiras, etc. Somos artistas e artesãos desse mundo. As crianças, nesse sentido, lembramao adulto que cabo de vassoura também pode ser um cavalo e uma caneta pode serum foguete ou avião, que pode levar-nos a lugares e mundos jamais conhecidos, co-nhecer pessoas, experimentar novas relações. A brincadeira, como concepção e prin-cípio, nos faz lembrar como são ricas, diversas e múltiplas as maneiras de produçãodos sentidos, de nossa história e de nossa humanidade: se a história foi assim, elapode ser diferente; podemos vivê-la, partilhá-la, experimentá-la de formas diferen-tes, sobretudo imponderáveis.

BRINQUEDO

José Alfredo Oliveira Debortoli

Bibliografia

a. São Paulo: Cortez 1995

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- desemoMment°DO LAZER]

Na busca de uma conceituaçâo do brinquedo, encontramos diferentes maneiras deconcebê-lo. Assinalo, particularmente, um olhar sobre o brinquedo como parte in-dissociável do brincar da criança e outra perspectiva que o tematiza como um pro-duto cultural, objeto reconhecido por adultos e crianças como brinquedo, que, inde-pendentemente de estar sendo utilizado como "instrumento do brincar", não perderia

seu estatuto de brinquedo.

De um lado, o brinquedo é considerado suporte da brincadeira e, nesse sentido,qualquer objeto pode tornar-se fonte da ação lúdica. Por exemplo, em uma institui-ção infantil, enquanto as crianças pequenas esperam pela hora de servir a merenda,o prato em suas mãos vai aos poucos mudando seu sentido imediato: de utensílio decozinha a chapéu, volante de carro, tambor e novamente como lugar para colocar arefeição que ainda não foi servida. De outro, ressalto tanto os brinquedos industriali-zados quanto os artesanais como as bolas, as bonecas, os carrinhos e os objetos, emsua maioria feitos por adultos para crianças e que remetem ao universo infantil.

Procuro entender o brinquedo de outra forma: pode-se falar de uma produçãocultural da criança e de uma produção cultural para a criança. Entretanto, mesmoconsiderando essas duas dimensões, faço o exercício de não abordá-las de forma se-parada. A criança brinca tanto com os brinquedos que constrói quanto com os "brin-quedos" propriamente ditos, e mesmo quando o brinquedo traz uma imagem im-pregnada de sugestões para o brincar, a criança ainda assim o subverte e lhe atribuinovo sentido (como no caso de bonecos de soldados de guerra participando de bati-zado de bonecas, chorando, namorando...). Os significados entrecruzados no brin-quedo não estão descolados do processo de inserção da criança no mundo da culturae das imagens que o adulto constrói sobre a infância, a criança e seu brincar.

Embora a brincadeira não seja uma ação ou expressão específica e restrita àscrianças e ao tempo da infância, pode-se dizer que é uma das formas principais emque elas constróem suas aprendizagens e conhecimentos. É quando tem início a for-mação de seus processos de imaginação ativa, bem como se apropria das funçõessociais e das normas de comportamento social (FRANÇA,1990). Desde o nascimento,as crianças estão inseridas num contexto social e o comportamento delas é construí-do a partir dessa referência. Progressivamente, as crianças são inseridas no tempo eespaço da brincadeira: primeiro com os pais, depois com seus pares.

Durante esse processo, a criança aprende a compreender, a dominar e, depois, aproduzir uma situação específica distinta de outras situações. A criança reconstróina brincadeira alguns elementos da realidade, a fim de que ela os compreenda segun-do uma lógica própria. Nesse sentido, durante o brincar a criança formula hipóteses,

[BRINQUEDO] 25

Page 14: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

para que possa compreender os problemas que lhe são propostos pelas pessoas e pelarealidade com a qual interage. Num espaço à margem da vida comurn, obedecendo aregras criadas pelos sujeitos brincantes diante das situações inesperadas que vão sur-gindo, as crianças brincam com o sentido da realidade mudando-o, transformando-o.Durante a brincadeira, os objetos passam a ter outro significado. Se entendermos que obrinquedo é todo e qualquer objeto que pela ação da criança torna-se suporte da brin-

cadeira, entendemos também que está na mão da criança a decisão de eleger, a partirda ação lúdica, os objetos que a ajudarão no processo de leitura do mundo. Durante abrincadeira o brinquedo estará ajudando a criança a reconstruir e a recriar alguns ele-

mentos da realidade, a fim de que ela os compreenda segundo uma lógica própria.

O brinquedo como objeto industrializado ou artesanal, reconhecido como talpelos adultos e crianças, independentemente de ser utilizado ou não, continua sendobrinquedo destinado à criança. Objetos feitos pelos adultos torna-se, nesse sentido,produção cultural voltada para a criança.

Um gesto muito presente em nossa cultura que pode nos auxiliar na tarefa dereflexão sobre o significado da palavra brinquedo é a prática dos adultos de presen-tear as crianças. O brinquedo adquire, dessa maneira, o significado de presente. Oaniversário, o Natal, o Dia das Crianças, datas comemorativas, por exemplo, ensinam

às crianças a noção de tempo decorrido quando relembramos o dia do seu nascimento(aniversário), colocando-as em lugares de destaque ou mesmo em momentos em que

ela se torna o centro das atenções, o motivo e o sentido da festa. Diante do gesto depresentear a criança, damos testemunho de sua importância em nossa sociedade, bemcomo de sua infância. Dentre os presentes, os brinquedos estão no topo da lista.

Nos momentos de escolha do brinquedo, envolvemo-nos num processo de su-cessivas e pequenas decisões. Quem, às vésperas do Natal, de um aniversário ou dodia das crianças decidiu sair para comprar brinquedos já viveu a angústia (ou eufo-ria) da escolha: milhares de brinquedos, expostos em prateleiras, coloridos, convida-tivos, novinhos, prontos para serem levados para casa e desembrulhados por mãozi-

nhas ansiosas e sedentas de novidade. Por onde começar? Brinquedos tradicionaisou os brinquedos da moda? Bonecos dos heróis dos seriados de TV, armas de brin-quedo, qual boneca escolher entre a enorme variedade de bonecas e bonecos dosmais variados tamanhos, estilos e nomes? Qual seria mais adequado à idade dacriança que vou presentear? Este brinquedo é seguro? Este brinquedo é educativo?Essas poderiam ser algumas das perguntas que faríamos diante do brinquedo, nemsempre fáceis de responder.

Antes da compra, pesquisa: olhos e ouvidos atentos, anotamos os pedidosdas crianças, assistimos aos anúncios de TV, ouvimos opiniões de especialistas,lemos as informações contidas nas caixas que os protegem e também os anunciam,

DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

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procuramos adequar o valor do brinquedo aquilo que acreditamos que ele mereçaou aquilo que podemos pagar. Contudo, não é só isso.

Diante dos brinquedos, emitimos nossas opiniões sobre eles, demonstramosnossa atração por alguns e repulsa por outros, avaliamos seu aspecto lúdico. Muitas

recordações, descobertas,dúvidas e estranhamentos...

O simples ato de comprar brinquedos nos insere num diálogo com a cultura da

criança e com o imaginário construído sobre a infância em que estamos imersos emnossa sociedade: imagens de infância guardadas em nossa memória, representações de

criança (diversas e contraditórias), frutos das práticas culturais estabelecidas na rela-ção adulto-criança, do discurso de teóricos das mais diversas áreas do conhecimento,que buscaram construir um olhar diferenciado com relação a criança e suas brincadei-

ras - (desde Rousseau (1999), passando por Frõebel (1913), Huizinga (1990), Benja-min (1984), Piaget (1978), Vygotsky (1996), Brougére (1995) dentre tantos outros) -,

do papel da cultura de massas e da cultura popular no fomento dessa imagem e, porfim, mas não menos importante, nosso próprio diálogo com a criança que brinca.

Por mais que simplesmente compremos aquilo que as crianças nos pedem nãodeixamos de emitir nossa opinião e, dessa forma, fazemos escolhas. Nossas escolhas

por determinados brinquedos refletem muitas vezes a imagem que nós adultos te-mos da criança (ou da nossa própria infância vivida) e uma preocupação sobre aimagem de mundo e de cultura que queremos valorizar (ou esconder) nos pequenos.As campanhas pelo desarmamento, organizadas pela sociedade civil quando as cri-

anças trocam suas armas de brinquedos por bolas ou bonecas, nos dizem muito so-

bre essa questão. Afinal, o que colocaria na escala de valores a boneca e a bola como

melhores que as armas de brinquedo?

Um aspecto bastante presente no brinquedo de nossos tempos, espantosamen-te perceptível a partir do exemplo acima mencionado, é como a indústria cultural do

brinquedo e do entretenimento está cada vez mais presente nas relações entre acriança e o brinquedo, orientando, assim, novas e muitas vezes problemáticas for-mas de brincar. Tenho dúvidas seja superamos algumas questões apresentadas pelas

concepções críticas da cultura de massas interessadas na análise dos produtos cultu-

rais voltados para o público infantil, muito presentes na década de 1980. Hoje, mes-mo com alguns incómodos na aceitação de suas proposições, ainda assim as consi-dero uma das explicações plausíveis no sentido de compreender a relação estabelecida

entre a indústria do brinquedo, a televisão e o brincar da criança. Na sua concepção,a indústria cultural do brinquedo insere na relação criança-brincar a lógica da com-pra e venda, do lucro, da necessidade de despertar desejos na criança pelo objeto afim de atingir as prerrogativas acima. O brinquedo industrial se contrapõe ao brin-quedo artesanal. Ao brinquedo artesanal, feito pelo artesão, pai, irmão mais velho ou

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pela própria criança, único (porque nenhum ficava igual ao outro e porque traziam amarca autoral do seu criador), em que a criança reconhecia em seu conjunto os ma-teriais com que foi produzido, despertando, com isso, sensações estéticas singulares,do brinquedo tradicional que traduzia os valores culturais, estéticos e espirituais dogrupo cultural ao qual a criança pertencia, contrapomos a visão do brinquedo in-dustrializado: feito de plástico, colorido produzido em série, em grande quantidade,

produto pasteurizado, homogéneo, milhares de brinquedos iguais, traduzindo valo-

res culturais de um mundo globalizado. A parceria com a televisão potencializa ain-da mais o valor atribuído ao brinquedo industrializado. Mal o desenho animado sur-

ge nas telas da T V, encontramos réplicas de seus personagens principais à disposição

nas principais lojas do ramo, desde os shoppings até as bancas de camelos. As propa-

gandas acentuam a possibilidade de a criança ter em casa o boneco do personagem

de seu programa preferido. O brinquedo estaria ganhando maior destaque na brin-

cadeira do que a relação entre as crianças? Os modismos, a enorme quantidade de

brinquedos anunciados pela TV todo ano e a rapidez com que precisam ser renova-

das as relações entre a criança, a TV e os brinquedos, lembram o comportamento de

um esquizofrênico: a criança está presa a um ciclo, no qual é seduzida pelo anúncio

do brinquedo e, uma vez de posse do objeto real, frustra-se com suas possibilidades,

não condizentes com o produto anunciado nem com suas próprias necessidades, dei-xando-o de lado, para logo em seguida reiniciar o ciclo.

Brougère (1995), longe da imagem da criança consumista e aliciada pelos produ-tos televisivos, inverte a lógica da relação criança e TV e vai nos propor que algumas

imagens da televisão possuem elementos que podem ser integrados ao universo lúdicoda criança, às estruturas que constituem a base de sua cultura lúdica. E quais seriamessas estruturas? A luta, o confronto com o perigo, o socorro levado a alguém, a repro-

dução de certas cenas do cotidiano. A criança, na sua relação com a televisão, não seriavulnerável às mensagens televisivas, mas estaria selecionando os conteúdos da TV, rea-

tivando-os e se apropriando deles por meio de suas brincadeiras. A televisão não esta-ria se opondo à brincadeira, pelo contrário, estaria alimentando-a, influenciando-a, es-

truturando-a. Ela estaria oferecendo às crianças referências únicas, uma linguagem

comum. Sendo assim, em situações de brincadeiras coletivas, não existiriam dificulda-des entre as crianças em proporem determinada brincadeira vinda da TV, uma vez quetodas as crianças potencialmente teriam acesso a ela, sendo ponto de partida comum.

No caso específico do brinquedo, entendido como objeto industrial ou manu-faturado, reconhecido como tal pelo consumidor em potencial em razão dos traços

intrínsecos e de seu lugar no sistema social de objetos destinados à criança, impreg-nado de imagens e representações produzidas pela sociedade, teria como papeldespertar imagens que permitiriam à criança dar sentido às ações na brincadeira

DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

(lógica do faz-de-conta), fornecendo representações manipuláveis de imagens comvolume, ao mesmo tempo em que possibilitaria a socialização e a integraçãoda criança ao universo codificado de determinada cultura. A propaganda, osfilmes publicitários de brinquedos caracterizariam o principal momento de encena-ção de suportes de brincadeiras e situações lúdicas na TV.

Brougère supera a suposta dicotomia que apresento no início do texto. O brin-

quedo, de objeto de consumo destinado à criança, passa a ser visto como uma produ-ção cultural dela, pois, traria a marca de uma relação ativa introduzida pela criançacom o objeto e com as imagens da TV. A brincadeira permitiria à criança passar de

uma situação de passividade diante da imagem da televisão para a atividade lúdica.Apesar das representações simbólicas estarem como que impregnadas no brinque-do, elas constituem apenas a base a partir das quais produzem-se deslocamentos,

transformações ou invenções.

Refletir sobre a importância do brinquedo no brincar da criança nos instiga sairda posição cómoda das certezas, dos lugares comuns. Quando salto no vazio as certezasse desfazem, o olhar tão convicto sobre a criança e seu brincar ganha fluidez, desman-cha-se no ar. Às vezes navegar entre as incertezas também desanima. Nesses momentossaio do computador e permaneço quieto, em silêncio. Das imagens que nesse texto res-gatamos sobre a criança e seu brincar uma se destaca emerge, ganha força, e acreditoque seja essa que me marcou profundamente nesses anos de trabalho com crianças, etambém é aquela que faz me caminhar. São as reflexões propostas por Walter Benjaminsobre a criança, o brinquedo e a educação. Para o autor, a criança, na sua relação com osobjetos, está sempre de prontidão para subverter a ordem estabelecida, invertendo aótica dos que a cercam. É na brincadeira e na eleição de seus brinquedos que a criançanos revela sua visão de mundo. A criança apropria-se com interesse e paixão de tudoaquilo que foi abandonado pelos adultos, estando sempre pronta a nos mostrar outrapossibilidade do real, de apreensão das coisas do mundo e da vida. Para ela, os objetosse tornam um reino de enigmas e podem ser decifrados em diversas direções, nas quaiscada objeto, pedra, flor, borboleta é o começo de algo, ao mesmo tempo em que fazparte de uma única coleção. O colecionador se mistura ao caçador, o único capaz deenxergar os espíritos presentes nas coisas (BENJAMIN, 1984).

Rogério Correia da Silva

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[BRINQUEDO] 29

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CIDADANIA

Podemos pensar no termo "cidadania" contrapondo-o ao termo grego "idiotia".Segundo Veríssimo (1999, p. 12), a idiotia refere-se"no seu sentido original grego,a uma pessoa privada. Alguém que tinha seus próprios valores e seus próprios

l [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

caprichos (daí,'idiossincrasia'), independentemente dos valores públicos e das con-venções." Com a evolução da sociedade, houve um crescente contraste entre o pri-vado, o fechado em si e o público e a idiotia passou a ser referida àqueles que nãoparticipavam da vida comunitária, por deficiência ou por escolha. Como não par-ticipavam da vida comunitária, eram ignorantes. Idiotia então é o oposto de cida-

dania. Essa explicação nos traz, no entanto, apenas um primeiro elemento para odebate em torno do termo, qual seja, o de que ele está envolto e pressupõe uma vida

em comunidade.

Benevides (1994, p. 6) expõe que a "ideia moderna de cidadania e de direitos do

cidadão tem, como é sabido, sólidas raízes nas lutas e no imaginário da Revolução Fran-

cesa. Mas dela herdou, também, parte das ambiguidades que carrega até hoje".

No clássico estudo desenvolvido por T. S. Marshall, Cidadania classe social e

status (1967), a cidadania como instituição criada pelo Estado liberal aparece com-

posta por três elementos: civil, político e social. O autor alerta que não se trata deuma teoria a respeito da temática, pois esses elementos foram ditados pela própria

história da sociedade inglesa.

Na realidade inglesa, os direitos civis surgiram no século XVIII, os políticos no

século XIX e os sociais no século XX. O autor recomenda, entretanto, que essa perio-dização histórica dos fatos seja tratada com uma elasticidade razoável e observe-se

que esses direitos estão entrelaçados.

Ao analisarmos a cidadania moderna, é possível perceber que cada um desses

direitos possui uma caracterização própria. Os direitos civis são aqueles necessáriospara o indivíduo ir e vir; ter a liberdade de imprensa, pensamento e fé; o direito à

propriedade privada e de concluir contratos válidos; e o direito à justiça, ou seja, di-

reitos à liberdade individual.

Exercidos individualmente, os direitos civis correspondem ao momento em queas mudanças na base económica da sociedade exigiam a liberdade individual comopré-requisito para a existência não apenas do trabalho livre, mas também dos direi-tos e dos deveres referentes aos contratos privados e à concorrência no mercado. Aefetiva existência desses direitos implicou, segundo Fedozzi (1999, p.31),"a destrui-ção das relações de produção feudais e a passagem de uma sociedade estamental auma sociedade de classes. Mas esse momento é constituído também pelos direitos deliberdade religiosa e de opinião, firmado pelo indivíduo frente ao Estado absoluto[...] Os direitos civis são, pois, direitos contra o Estado."

Os direitos civis foram sempre determinados pelas mudanças estruturais dasociedade e, consequentemente, pelas lutas sociais de blocos hegemónicos em defesade novas liberdades contra velhos poderes.

[CIDADANIA] 31

Page 17: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Nesse sentido a passagem do Estado Absoluto para o Estado de Direito, namodernidade, foi o marco referencial das relações contratualistas, que deveriamlimitar o abuso do poder soberano em relação ao indivíduo. Deu-se, então, a divi-são de poderes t sua regulamentação, bem como a dos direitos dos indivíduos, em

letra morta numa carta maior: a Constituição. Segundo Luciano Fedozzi (1999),

isso se deu na positivação dos direitos levada a termo pela Revolução Americana(1776) e pela Francesa (1789).

O direito político é entendido como a possibilidade de o indivíduo participar

do exercício do poder político, como um membro de um organismo investido de au-

toridade ou como eleitor de seus membros. "O momento dos direitos políticos é o

momento delimitado estruturalmente pelo progressivo processo de racionalização

do Estado e do poder, do qual a cidadania é ao mesmo tempo promotora e resultante"

(FEDOZZI, 1999, p. 36). Nesse âmbito, o Estado de Direito é o marco institucional desse

processo de racionalização da sociedade ocidental que acompanhou o surgimento edesenvolvimento do modo de produção capitalista.

Por fim, o direito social diz respeito a tudo que se relaciona com um mínimo

bem-estar económico e de segurança; é o direito do indivíduo de participar por com-

pleto da herança social, levando a vida de um ser civilizado, de acordo com os pa-drões prevalecentes na sociedade em que está inserido.

Reportando-se aos direitos sociais, Fedozzi (1999 p. 51) escreve que"ao contrá-rio dos direitos de liberdade negativa que nascem contra o superpoder do Estado,

[eles são] organizados pelos serviços públicos e viabilizados historicamente pela in-tervenção ativa do poder do Estado".

No Brasil, a construção e a aquisição dos elementos que compõem a cidadania

aconteceram de forma distinta da realidade inglesa. A contribuição de T. S. Marshall

à leitura da cidadania, na realidade brasileira, fica restrita à caracterização de seustrês direitos. Eles podem servir como balizadores de nossa análise, pois, "ao exami-

nar o desenvolvimento da cidadania no Brasil, devemos prestar atenção a duas ques-

tões: os três tipos de direitos que abarcam [-na] e a sequência em que foram efetiva-

mente conquistados (se é que o foram)", são diferentes do caso inglês, como sublinha

Carvalho (1995, p.11). Em nossa realidade foi dada maior importância a um dos di-

reitos em detrimento dos outros, bem como à ordem em que eles foram conquista-

dos sofreu alterações. Os direitos políticos vieram antes dos direitos civis.

A alteração imposta à concessão e a sequência dos direitos no Brasil, especial-mente dos direitos sociais e políticos, deu-se em momentos em que o Estado apre-sentava-se autoritário. Os direitos aqui não foram adquiridos unanimente medianteuma luta e uma conquista da classe trabalhadora, mas sim concedidos pelo poder

J2 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

estatal. Além disso, a legislação não foi cumprida nem pelas instâncias legislativas,executivas e judiciárias, nem pela população, que sucumbia aos acordos classistas, àvenda de votos ou às benesses advindas de políticos. Carvalho (1995, p. 11) nos alerta

sobre um ponto fundamental em relação à constituição da cidadania quando avança

suas reflexões para além das realizadas por T. S. Marshall, quando afirma: "Indo além

de Marshall, eu diria que a cidadania é mais que uma coleção de direitos, e que ocidadão não é meramente uma penca onde se colam direitos civis, políticos e sociais.

Cidadania é também a sensação de pertencer a uma comunidade, de participar de

valores comuns, de uma história comum, de experiências comuns". Para o autor, sem

esse sentimento de identidade coletiva a existência de nações democráticas moder-

nas não seria possível. Em virtude desse aspecto, "identidade nacional e cidadania,

sem se confundirem, se reforçam mutuamente" (p. 11).

A cidadania brasileira foi fortemente construída sobre parâmetros que provêm

das elites que estiveram no poder. Em relação a essa construção, podemos distinguir

seus avanços e retrocessos em períodos distintos, que solidificaram os limites que se

apresentam na realidade atual ao seu pleno exercício. Hoje em dia, passados quase

dois séculos do fim do regime colonial, a efetividade dos direitos cidadãos continua

inconclusa. Tal fato criou uma grande contradição entre o país legal e o país real.

Após os ares reformistas da Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988,

porém, a questão da cidadania tem estado no centro de muitas discussões académi-

cas e políticas. A própria carta constitucional privilegia um espaço nunca antes exis-

tente e admite uma combinação de formas distintas de democracia: a direta e a repre-

sentativa. A Constituição de 1988 é um extenso e detalhado documento em quepredominou a preocupação com as garantias do direito cidadão. Ela expressa a necessi-

dade de que a população seja participativa de diversas formas, em diferentes níveis e

com as mais variadas finalidades. Contudo, é preciso urgentemente refletir sobre dois

pontos importantes relativos a participação: primeiro, que a ausência dos saberes jo-

gou a grande massa na ignorância fabricada pela negação da educação; segundo, sobre

a que tipo de participação estamos nos referindo.

Na última década do século XX e nestes primeiros anos do século XXI, há ges-

tões democráticas e movimentos sociais e populares organizados dos quais pode-mos extrair parâmetros para uma nova forma de participação que poderá proporcio-

nar a superação do sistema representativo.

Marilena Chauí comenta que o debate em torno da representação tem se

dado, no Brasil, vinculado a uma discussão mais ampla acerca da cidadania. Paraessa autora, esses debates têm se estabelecido em três níveis: o primeiro, vincu-lado à exigência de uma ordem legal democrática que prime pela diminuição do

[CIDADANIA] 33

Page 18: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

do poder executivo em detrimento do legislativo; o segundo, que exige a manu-tenção do Estado de Direito; e, por último, aquele que parece ser o mais abran-gente, que se inscreve "como exigência do estabelecimento de um novo modeloeconómico destinado à redistribuição mais justa da renda nacional, de tal modoque não só diminua a excessiva concentração da riqueza e o Estado desenvolvauma política social que beneficie prioritariamente as classes populares, mas aindaimplica o direito dessas classes de defenderem seus interesses tanto através demovimentos sociais, sindicais e de opinião pública, quanto pela participaçãodireta das decisões concernentes às condições de vida e de trabalho" (CHAUÍ, 1990,p. 297). A autora conclui que, nesse nível, a questão da cidadania é de justiçasocial e económica.

O lazer também apareceu, pela primeira vez, como direito social nessa constitui-ção. O art. 6° coloca o lazer no mesmo patamar de outros direitos que já haviam sidogarantidos pelo Estado, como a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança, aprevidência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desampa-rados (BRASIL, 2002, p. 12). É possível inferir dessa afirmativa que o lazer constitui, apartir de então, um aspecto formador e garantidor de cidadania.

No campo específico do lazer, no Brasil, o estudo sobre a cidadania está forte-mente vinculado à discussão das políticas públicas e políticas privadas, aos direitosdo trabalhador e, mais recentemente, às ações das Organizações Não-Governamen-tais (ONGs). Os estudos desenvolvidos sobre cidadania encaram-na como uma con-quista dos cidadãos historicamente situados, como um espaço de autonomia das co-munidades. Entretanto, outros encaram o lazer como um direito social, logo, sob aégide do Estado, como responsabilidade social das empresas ou como ação das ONGs(muitas vezes, tais ações colocam-se como alternativas ou como substituição daspolíticas de Estado). Além disso, qualquer estudo no campo do lazer, em especial osligados à perspectiva política, os que trazem uma discussão sobre cidadania, implí-cita ou explicitamente, está permeado de uma concepção ideológica. Temáticas sob onome de políticas públicas e privadas de lazer, lazer e empresa, lazer e voluntariado,lazer e terceiro setor, vida cotidiana e lazer, em muitos casos, têm a cidadania comocategoria central ou tocam nessa temática.

Silvia Cristina Franco Amaral

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CINEMA

No dia 22 de março de 1895, Auguste e Louis Lumière, inventores de uma máquinaque aperfeiçoava uma longa trajetória de tentativas de captar e expor imagens emmovimento, exibem publicamente, pela primeira vez, para algumas poucas dezenasde convidados, em Paris, o pequeno filme A Saída das Fábricas Lumière. Naqueleinstante, não imaginavam que o cinema seria uma das manifestações culturais maisimportantes do século que estava para começar.

Sendo uma das mais recentes manifestações artísticas (se compararmos à dan-ça, à música, à pintura, à literatura, por exemplo), até mesmo por ser um produtoclaro do avanço tecnológico que marca o momento tardio da modernidade, o cinemaconvive, desde suas origens, com uma dupla dimensão nern sempre facilmente con-dicionável: é arte e é indústria. Vale lembrar que o cinema nasceu como uma curiosi-dade, exposta em feiras e parques temáticos: fascinava a população a possibilidadede observar imagens em movimentos.

De curiosidade tecnológica à gestação de uma linguagem artística própria, compeculiaridades de expressão dramática, o cinema se desenvolveu no âmbito de umaestrutura industrial específica, até mesmo por necessitar de montantes financeiroselevados para que possa ser viabilizado. É efetivamente uma arte cara: sua produçãoe exibição dependem de muitos profissionais diferentes e de enorme dispêndio deequipamentos e materiais.

[CINEMA] 35

Page 19: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Já nos primeiros anos do século XX, o cinema começou a se espalhar pelomundo, cativando pessoas nos mais diferentes locais, das mais diferentes culturas.Seu poder de mobilização e a influência cresceram rapidamente. Alguns autores de-fendem a ideia de que esse processo está relacionado ao fato de que é um produtobastante adequado a uma nova estética de excitação e estimulação sensorial típicasda vida agitada e moderna, cujo sentido de velocidade é sempre presente. Estaria ocinema diretamente ligado aos momentos iniciais da sociedade de espetáculo, aomundo de símbolos e imagens que estava nascendo.

A linguagem cinematográfica, paulatinamente, tornou-se cada vez mais refi-nada, muitas vezes até mesmo de difícil compreensão. Apesar disso, parece que oacesso ao cinema é aparentemente simples: todos nós aprendemos de alguma formaa assistir filmes, "independentemente" de explicações ou processos formais de edu-cação. É necessário desnaturalizar essa compreensão. Trata-se de uma linguagemextremamente rica e complexa, em que se articulam, de forma múltipla, som, luz,imagens, falas, em ângulos diferentes, velocidades e ritmos diversos, montadas deforma competente de acordo com as intencionalidades dos responsáveis pela execu-ção do filme. Cinema é arte, é técnica, é espetáculo, é cultura, é diversão; é uma lin-guagem com regras e convenções; tem relação com sonhos e desejos; e também temuma forte interface com a ideologia, com a política, com a economia.

Não estamos tratando de um produto ingénuo, mas de um poderoso dispositi-vo de representação, de difusão de valores, compreensões e sensibilidades ora mais,ora menos explícitas. Logo, existem relações de poder ao redor da produção dessamanifestação: um mercado destinado ao consumo e ao fazer consumir. O cinemadeve ser compreendido inserido, como todas outras manifestações artísticas, nas ten-sões geradas pela sociedade de consumo.

Se um filme carrega em si tantos elementos, não podemos negar, mesmo quenão devamos considerar a situação de forma linear, a sua repercussão na vida emsociedade. Por certo, um filme é só um filme, não é em si a realidade, mas, indubita-velmente, carrega olhares e intencionalidades sobre a sociedade, tendo um forte po-tencial de influenciar na formação de mentalidades.

É importante também compreender a inserção do cinema no âmbito de umasociedade contemporânea que valoriza os estímulos de natureza visual. Em um con-texto no qual "uma imagem vale mais do que mil palavras", no qual é intensa a indu-ção pela oferta constante e excessiva de signos e símbolos, o cinema como mecanis-mo de influência social ganha força e deve ser cuidadosamente considerado.

O fato de vivermos em mundo de imagens e símbolos não significa que esteja-mos sendo adequadamente preparados para tal. Na verdade, podemos perceber o

contrário, tanto na formação escolar quanto na não-escolar, uma intervenção exage-radamente centrada na palavra. O racionalismo extremo que permeia os processospedagógicos induz à redução da preocupação com a educação da sensibilidade, umadimensão fundamental da construção do indivíduo e da sociedade, relegando à arte(e logo também ao cinema) lugar secundário.

Assim sendo,é lamentável que somente se veja o cinema (e outras mídias audio-visuais) como recurso auxiliar e complementar, e não como conteúdo específico deeducação. Não se trata somente de educar pelo cinema, mas também de educar parao cinema. Não se trata somente de uma didática pela imagem, mas de uma didáticada imagem.

Se hoje os firmes estão entre as opções de lazer mais procuradas, temos que estaratentos à qualidade de tal acesso, normalmente feito a partir da televisão e do videocas-sete, muitas vezes limitado a um produto restrito, difundido com vigor pelos diversosmeios de comunicação. Se a linguagem cinematográfica desenvolveu-se notavelmentedesde sua criação, somos forçados a aceitar que o acesso à diversidade de olhares aindanão é usual, até mesmo em razão de dificuldades de distribuição. Não podemos negarque a experiência que os indivíduos têm com o cinema constitui um dos elementosimportantes no desenvolvimento de suas capacidades e habilidades para olhar, ver,iden-tificar. Em um mundo permeado de metáforas visuais, não podemos ser negligentesquanto a essa perspectiva de intervenção pedagógica.

Que papel deve ocupar o profissional de lazer nesse contexto? Como educarpelo e fundamental para o cinema? Como contribuir para que nosso público-alvopossa passar de uma visão superficial, dispersa e casual para outra crítica e orienta-da, sem que isso signifique a formação de críticos especializados, a destruição doprazer (central nos momentos de lazer), bem como qualquer forma de "patrulha-mento" de escolhas? Alguns apontamentos são possíveis.

É interessante pensar no papel que a televisão, o videocassete e o DVD po-dem ocupar. Podemos, sem dúvida, enumerar alguns problemas relacionados aohábito de se assistir a filmes nessas mídias: a) as imagens são cortadas, reduzidas,aceleradas, não tendo também a mesma qualidade de exposição das imagens; b) oambiente disperso da residência não permite concentração completa no filme, des-viando a atenção das minúcias e detalhes; c) há baixa qualidade da programaçãode TV e do oferecimento de títulos na maioria das locadoras; d) nada substitui oritual de ir ao cinema, encontrar pessoas, entrar na sala escura e vivenciar coleti-vamente as emoções de um filme.

Não podemos negar, contudo, que trazem também algumas vantagens, poten-cialidades e mesmo benefícios: a) permite ver filmes que não passaram no circuito

36 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [CINEMA] 37

Page 20: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

ou passaram em circuito restrito, democratizando o acesso a diferentes lingua-gens cinematográficas, podendo constituir-se grande parceiro no processo deeducação do olhar; b) permite rever filmes especiais; c) permite estudar, discutir ecompreender melhor as películas.

Parece que o problema central não é o fato de assistir a filmes nas mídias do-

mésticas, mas sim quando elas substituem completamente o hábito de ir às salas de

cinema. Ambas as possibilidades podem conviver com equilíbrio sem problemas, sebem equacionadas.

O problema é que em alguns casos não há alternativa: somente 7% dos municí-

pios brasileiros possuem cinema (isto é, 4.455 não dispõem), enquanto 64% pos-suem videolocadoras e 98% têm acesso à televisão. Poucas cidades (como Rio de

Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte) possuem uma rede ampliada de cinemas e pos-

sibilidades de assistir a diferentes narrativas cinematográficas.

Mesmo nessas cidades há problemas no que se refere à distribuição de cine-

mas pelos bairros: normalmente, poucos são os que possuem salas. Mais ainda,grandeparte está localizada em shopping-centers (inseridas claramente em uma lógica de

consumo) e cobram caro pelos ingressos. Por certo, esses são elementos que dificul-tam o desenvolvimento de hábitos cinematográficos.

Ainda há outro fato a ser considerado: o perfil de filmes exibidos. De maneira bas-tante generalizada, somente para fins de classificação, podemos dividir as películas em

três grupos: a) "circuitão"ou "pipoca", produzida pelas grandes empresas de cinema, com

artistas conhecidos e forma de filmar (narrativa) mais comum; b) "alternativa", produzi-da por empresas menores, com notáveis preocupações artísticas com a linguagem;

c) "híbrida", que dialoga intermediariamente com as possibilidades anteriores.

Observe-se que essa classificação não traz uma valorização embutida. Devemos,

aliás, tomar cuidados com preconceitos e posicionamentos a priori. Não se trata de

colocar de forma linear e maniqueísta, por exemplo, o cinema americano em confronto

com o cinema brasileiro. Nem todo filme brasileiro é bom, bem como nem todo filme

norte-americano é um produto "descartável". Nem todo filme "alternativo" é de boa

qualidade e deve ser visto em qualquer ocasião, bem como seria equivocado dizer que

todo filme "circuitão""não presta". Aliás, daria um longo debate a discussão sobre o queseria um bom filme. E mesmo os produtos descartáveis podem ser consumidos dife-rencialmente se determinada postura crítica existir por parte do público assistente.

Os gostos e as diferentes intencionalidades que conduzem as pessoas a procu-rar o cinema como diversão devem ser respeitados. A proposta de animação culturalnão deve ser construída contra determinada forma de organização artística, mas afavor da diversidade, da construção do exercício da escolha.

38 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

Mas como pensar em possibilidade de escolha se grande parte dos cinemas(das cidades que os possuem) passa prioritariamente filmes "circuitão"? Mais ainda,quando as salas que exibem os perfis "alternativo" e "híbrido" se restringem a menos

bairros ainda, normalmente aqueles onde mora a população socioeconomicamente

privilegiada?

Isto é, sem querer condenar as diferentes formas de organização dos espaços

diversos no âmbito da cidade, nem afirmar que esse é o fator central de afastamento

da população de outras formas de compreensão da narrativa cinematográfica, não

creio que podemos a priori dispensar esse fato como relevante e considerável em

nossas reflexões.

Da forma como as coisas estão organizadas, não adianta esperar que as pes-

soas venham assistir aos filmes "alternativos"; é necessário levar tais filmes às pes-

soas não para criar uma nova "ditadura" de imagens, mas, fundamentalmente, para

pregar a polifonia saudável.

Vale a pena destacar que em momento algum afirmamos que os indivíduos

sejam passivos perante o cinema. No que se refere ao papel ativo dos sujeitos na re-

cepção das mensagens cinematográficas, a discussão sobre os modos de endereça-

mento parece ser um bom referencial. A relevância está em questionar não somenteo que o espectador espera do filme, mas sim o que o filme espera do espectador, ou

melhor, como foi encaminhado o filme para possibilitar e provocar emoções, senti-

mentos, desejos, difusão de valores.

Nessa relação espectador-filme, não se deve considerar o público de forma apá-

tica, homogénea, monolítica e idealizada. Os espectadores interagem com os filmes,

contrastam seus pontos de vista, suas formações culturais diversas, suas subjetivida-

des com o que está sendo exibido; trata-se de um processo de interação.

É fato inegável que os modos de endereçamento possuem um grande poder deindução, mas não se deve negar que os indivíduos os reelaboram, têm a possibilidade

de construir novos sentidos e significados a partir do diálogo, até mesmo porque nunca

se consegue atingir todas as pessoas da mesma forma e abarcar todas as diferenças,que não devem ser negligenciadas pelo conceito confortável e genérico de "público".

A questão, para o animador cultural, passa a ser, então, aprender a lidar e a

utilizar a incapacidade de enquadramento como dimensão fundamental que pode

permitir uma atuação mais efetiva na busca de difusão de novos olhares cinemato-gráficos. De forma resumida, trata-se de induzir novas sensibilidades a partir da apre-

sentação de divergentes modos de endereçamento, pois se cada filme contém uma sériede valores que são ressignificados, se pudermos difundir um conjunto maior de com-preensões, estaríamos contribuindo para processos de reelaboração mais complexos,

[CINEMA] 39

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até mesmo por potencializarmos as possibilidades de prazer a partir de um entendi-mento mais amplo do que está sendo visto.

Assim, o desafio central para o profissional de lazer é pensar como incorporaro cinema em suas propostas de animação cultural de forma a reverter esses proble-mas: a) desenvolver hábitos cinematográficos em seu público-alvo, buscando umequilíbrio entre a utilização de mídias domésticas e o ato de ir às salas de cinema; b)em um processo pedagógico, ir introduzindo outras narrativas cinematográficas, res-significando o ato de assistir a filmes, buscando construir uma consciência críticamais ativa sobre o acesso a essa poderosa ferramenta.

Importante considerar que isso não deve significar o afastamento das caracterís-ticas de uma atividade de lazer. Não se trata de formar críticos ou analistas profissio-nais, mas de contribuir para que nosso público-alvo esteja mais atento às múltiplasdimensões e possibilidades de fruição da linguagem, inclusive a partir do descortinarde seus elementos técnicos e peculiaridades do processo de produção. Ao mesmo tem-po em que desenvolve novos olhares sobre o cinema, pode também desenvolver novasposturas perante a realidade, perante a vida. Também não se trata de difundir somenteuma perspectiva de pensamento, mas multiplicar divergentemente as possibilidadesde percepção, pois, a partir desse fato, com o decorrer do processo de educação da sen-sibilidade, temos a esperança que os indivíduos possam exercitar de forma mais efetivaseu senso crítico, sua alternativa de escolha.

Victor Andrade de Melo

Bibliografia

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III Seminário Lazer em Debate. Belo Horizonte: Celar/UFMG, 2002.

CLOWN

Palavra inglesa (pronuncia-se "cláun") que apareceu no século XVI. Essa terminolo-gia nos leva a colonus e clod, significando um fazendeiro ou rústico, torpe e, de

40 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

qualquer maneira, o clown foi originalmente campesino. Outra origem é na línguacelta, que originalmente designa um fazendeiro, um campônio, visto pelas pessoasda cidade como um indivíduo desajeitado e engraçado, indicando depois aquele que,com artificiosa torpeza, faz o público rir. Em sua aplicação geral, o clown é um per-sonagem cómico que se comporta de maneira estúpida ou excêntrica, em particularalguém que se especializa em comédia física. Clown se traduz por palhaço, mas asduas palavras têm origens diferentes. Palhaço vem do italiano paglia (palha), usadapara revestir colchões: a primitiva roupa de palhaço era feita do mesmo tecido gros-

so e listrado do colchão.

Enquanto o palhaço relaciona-se geralmente a feira e praça, o clown refere-sea circo e a palco. Na língua comum italiana como na linguagem especializada doespetáculo, hoje, não existe nenhuma diferença entre a palavra palhaço e a palavraclown, pois as duas se confluem em essências cómicas. A primeira, no entanto, éusada às vezes como insulto, significando estúpido, ridículo e exibicionista, ou paraindicar o cómico do circo. O clown tem suas raízes fincadas na ingenuidade e napureza, sendo, portanto, puramente humano. O termo clown, que hoje se utiliza mui-tas vezes para denominar todos os tipos cómicos que atuam no picadeiro, parece

provir da deformação da palavra inglesa clod.

Os exímios cavaleiros que formaram a "troupe de Astley", no célebre númerodo recruta da cavalaria, simulavam camponeses simplórios e astutos, provocando,com suas extravagâncias, a hilaridade nas plateias. No circo moderno o clown é opersonagem criado na pista de Astley por um acontecimento cómico: o paisano tentaimitar um militar, equilibrando-se sobre um cavalo. Não consegue, por ser atrapa-lhado, levando a plateia ao riso. O modelo de espetáculo recriado por Astley une opos-tos básicos da teatralidade: o cómico e o dramático; associa o palhaço à acrobacia, aoequilíbrio, às provas equestres e ao adestramento de animais. É a base do circo dehoje. As características do clown moderno circense só podem ser definidas com se-gurança a partir da troupe de Astley, em que o clown é uma simbiose da máscara daCommedia deli'Arte e da tradição da farsesca francesa e anglo-saxônica.

O clown é um ser à parte na sociedade, pois sua lógica difere de convenções

sociais preestabelecidas. A sua visão de mundo é diferenciada, como já falamos ante-riormente, e entende tudo concretamente, ao "pé da letra"; é praticamente outro servivendo na mesma sociedade, mas com outra lógica de raciocínio caracterizado poruma considerável ingenuidade. Ele passa do riso ao choro sem pensar; o que importaé satisfazer suas necessidades internas. Sua satisfação imediata é a de estar semprealegre, feliz, após tentar solucionar tantos obstáculos e problemas. É como uma cri-ança: chora e esbraveja, se não consegue o que quer, e vibra de alegria, ao conquistaruma coisa muito desejada.

[CLOWN] 41

Page 22: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

As crianças se identificam com o jeito sofredor do clown, que se faz de vítimacomo um patinho feio ou um cachorro magro. Antes de fazer rir, essa figura trapa-Ihona e desajeitada surge para provocar comoção, sugerir solidariedade. Deve ter umacara engraçada, mas também desamparada, frágil. Aperta o coração da plateia paradepois alargar o riso no rosto de todos. Mistura de dor e humor, o clown representa,na forma mais eficaz, comovente e cómica, um ser que se encontra num mundo enor-

me e desconhecido e, apesar de ignorá-lo, acredita poder enfrentá-lo. Essa é a luta doclown, que desajeitadamente tenta sobreviver num mundo dos fortes, mas que, ape-

sar de tudo, cria uma nova conduta de solidariedade humana e enfrenta o que quer

que seja a sua maneira, porque o clown conhece a sua própria fragilidade, mas en-

frenta o mundo por meio dela, pois ele tem fé de que possa fazer e acredita poder

mudar o mundo. Temos, na literatura, no cinema e no teatro, tipos ingénuos e desa-

justados que vêm acompanhando nossa vida, dentre eles: Charles Chaplin, o Gordo eo Magro, Buster Keaton, Jerry Lewis, Mazzaropi.

A arte de clown inserida num tempo de lazer em uma instituição de saúdefaz parte do interesse do hospital em propiciar ao paciente um conteúdo artístico,

no qual possa vir a desenvolver, no tratamento, a passividade de recebê-lo, masque passe a ter um olhar criativo para ele. O lazer na instituição, especialmente nohospital, confirma a importância do desenvolvimento pessoal e a responsabilida-

de pela cura dos pacientes, tendo como elementos de base as funções psicocriati-vas e a busca da auto-realização. A arte de clown, como conteúdo do lazer, desen-volve aspectos instituídos na movimentação do elemento e componente lúdico. Isso

não significa que o lúdico e o lazer não se possam manifestar em outros "tempos".

Muito pelo contrário. O lazer é entendido, na sua especificidade, com possibilida-

des de gerar valores que ampliem o universo da manifestação do brinquedo, dojogo, da criatividade, da recreação, para além do próprio lazer-Entendemos, com

isso, que podemos ampliar o lazer para além do próprio lazer, já que os seus con-teúdos constituem inúmeros valores, entrelaçados na constituição e no envolvi-

mento social, comportando análise de vários ângulos. Pretendemos, com isso, ana-

lisar a questão da arte de clown como conteúdo de lazer, permeando todas asrelações desenvolvidas nesse tempo de lazer e suas implicações com a ação dos

sujeitos sociais e suas relações participativa e interativa, gerando valores de am-plitude desse universo.

Acreditamos que o lazer no tratamento hospitalar tem a intenção de recuperar,mas, acima de tudo, é propiciador e representante de possibilidades do desenvolvi-mento do ser humano com objetivos de facilitar a manutenção e a expressão de umestilo de atividades apropriado para indivíduos com limitações no aspecto físico,mental, emocional ou social.

12 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

As reflexões focadas neste estudo com a atuação num processo de tratamentoclínico pressupõem as relações do lazer com a arte do clown no tratamento hospita-lar, no sentido de estabelecer com o paciente as suas perspectivas de vida não nosentido de recuperar - do latim recuperare -, recobrar, retornar ao que já foi, mas decolocar o lazer como a ação participativa de modificar uma condição atual, ou me-lhor, transformar - do latim transformare -, dar nova forma, feição ou caráter, tornardiferente do que era. É por meio de nossos sentimentos transformados que temos a

capacidade de motivar a mudança de atitude. Ao participarem de uma atividade de

lazer, por mais que as pessoas queiram, não conseguem deixar a atividade como entra-ram. Algo foi acrescido ao seu conhecimento e as modificou. O lazer, nesse processo de

cura, tem caráter de propiciar um ânimo, no qual as pessoas procuram melhorar a

qualidade de vida de modo geral, para que, assim, sejam os descobridores de sua pró-pria verdade, gerando a atitude de evoluir a ponto de cuidar de si mesmas, escolhendo

maneiras próprias de superar e transformar traumas e angústias pessoais.

Ao falarmos da arte de clown no hospital, partimos do termo transforma-

ção, e esse elemento está basicamente contido na relação do paciente com o seuprocesso de cura. A arte do clown é um canal privilegiado de substâncias necessá-

rias a um processo contínuo de transformação, trazendo essa característica a umconceito na situação específica de lazer, baseado na prática, lazer participativo eem ação. O lazer no processo de cura, por si só, formado por elementos de autocura, a

partir do momento em que é oferecido e acatado na mesma medida do medica-mento clínico e atua diretamente como ponto de apoio ao tratamento; a atuação do

clown não é terapêutica, mas pode resultar a manifestação desse caráter, desdeque seja uma escolha pessoal.

O profissional que trabalha na área do lazer hospitalar coloca à disposição dapopulação um produto com qualidades específicas àquele contexto. A atuação da área

de lazer-artístico está munida de elementos propiciadores a despertar aspectos rela-cionados à arte de forma abrangente, não esperando do paciente um produto final,

uma forma perfeita ou resultados estéticos, mas a sua atuação e desempenho no pro-cesso artístico, que não tem caráter funcionalista mas ativo e participativo. A atitudedo profissional que lida com atividades inseridas na área de saúde é de profunda

aceitação das qualidades e conteúdos artísticos manifestados pelo paciente. As ma-nifestações expressivas são observadas como uma revelação artística pessoal e sãoorientadas para que adquiram dimensionamento das suas necessidades criativas,chegando a ser uma habilidade artística.

Apoiamo-nos na técnica de clown teatral, a qual propõe, por meio de exercí-cios, jogos e brincadeiras, que o participante, em um processo criativo, possa desve-lar para si a sua própria maneira de se ver diante do seu lado clown perante o

[CLOWN] 43

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mundo. O clown ao qual a criança deu vida é o que ela precisa ter e o que vai ajudá-la a superar a sua angústia gerando vida dentro do seu "eu". A vida é um elementogerador de aspectos saudáveis no tratamento como um componente essencial ao pro-cesso de cura. O objetivo principal de uma atividade de lazer com a técnica de clowné que a criança crie, recrie, construa, destrua, quantas vezes quiser o seu clown. Elefaz parte da sua vontade e de seus desejos. A condição principal é que a postura dapessoa doente leve-a à atitude de seu desenvolvimento pessoal, o qual poderá estardiretamente ligado ao ato pessoal de criar. O lazer de caráter ativo-participativo gerano paciente os mecanismos de criatividade. O paciente pode dançar, atuar, rir, correr,representar personagens e jogar com sua doença. O corpo doente se transforma du-rante a atividade de lazer num corpo vivo, alegre, expressivo, criativo. Nesse aspecto,o corpo está buscando a sua recuperação; assim, o tratamento não esta confinado aoleito ou à clínica convencional. O lazer divide com o atendimento clínico a mesmacondição de estar dando cuidados ao paciente.

Essa especificidade no lazer indica a existência de uma relação não claramenteinstituída, mas presente na vida, de aprendizagem e integração da pessoa no meioambiente social e cultural pelo meio da atuação própria de caráter criador. Criar nes-se sentido significa projetar a sua existência por meio daquilo que somos capazes defazer no seu intuito, na decisão íntima de expressar-se por intermédio da habilidadeexistente e nada mais.

As atividades de lazer que possibilitam o contato e atuação pessoal por meiosartísticos levam o ser humano a entrar em contato e a realizar as habilidades atéagora encobertas não no sentido de criar os produtos artísticos, mas de colocar-se nes-sa atividade de forma espontânea, sincera, apoiada plenamente na confiança naquiloque cada um é, sem buscar apoios nos meios sociais de existir e atuar. É encontrar a simesmo numa atuação que traz à tona aquilo que cada um é, que cada um possui comoo cerne de si mesmo, expor-se naquilo que é e doar a si mesmo numa forma espontâneade existir, na qual confia, a qual se exprime e que se coloca exposto na verdade daquiloque é e não o que tenta ser numa sociedade. Assim, as relações entre o lazer e o clown,nesse sentido, são adotadas como envoltório de proteção e fazem parte desse prolonga-mento do corpo físico, psíquico e social dos seres humanos.

Ana Elvira Wuo

Bibliografia

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trado em Educação Física) - FEF/Unicamp, Campinas, 1999.

COLÓNIA DE FÉRIAS

Espaço organizado para a vivência do lazer das pessoas em seus períodos de férias.Existem, atualmente, dois tipos de colónias de férias. O primeiro consiste em espa-ços, geralmente pertencentes a empresas, sindicatos ou associações, colocados à dis-posição dos funcionários ou associados para a estada em viagens e outras experiên-cias de lazer. Nesse caso, o que se verifica é que, comumente, não há a atuação deanimadores socioculturais e um planejamento específico a ser seguido, mas a dispo-nibilização de equipamentos para vivências de lazer. Mesmo quando existe a presen-ça desse profissional, a programação geralmente é flexível e a participação dos fre-quentadores nas atividades é voluntária.

O segundo tipo de colónia de férias é caracterizado pela utilização de um espa-ço, tal como clubes sociorrecreativos, escolinhas esportivas e escolas (sobretudo deEducação Infantil), para proporcionar vivências de lazer aos participantes. Há umaprogramação fixa a ser seguida, e as atividades são desenvolvidas por uma equipe deanimadores socioculturais.

No primeiro caso, a colónia funciona durante todo o ano, pois seus frequentado-res usufruem suas férias em épocas variadas. Costuma ser procurada por pessoas dasdiversas faixas etárias. O outro tipo ocorre somente no período das férias escolares e évoltado apenas para crianças e adolescentes que frequentam a colónia diariamente,mas não dormem no local (embora a pernoite possa ocorrer esporadicamente). A pro-gramação costuma ser elaborada pelos animadores e seguida pelos participantes, semmuita margem de escolha ou oportunidade de realizar outra atividade fora do grupo.

Vários conteúdos culturais são colocados à disposição dos frequentadores dascolónias de férias, embora o mais comum seja a ocorrência de atividades relaciona-das aos interesses físico-esportivos. Encontramos vivências como jogos e brincadeiras,

44 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [COLÓNIA DE FÉRIAS] 45

Page 24: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

atividades manuais, teatro, atividades com sucata, esportes, música, excursões e gin-canas, dentre outras.

As colónias de férias têm constituído um importante espaço de atuação do pro-fissional do lazer e contam com um grande número de professores de educação físi-

ca, embora encontremos profissionais de outras áreas, tais como pedagogia, turismo,

belas-artes, e também pessoas sem formação académica atuando nesses espaços.

Talvez isso ocorra, dentre outros fatores, pela forte presença dos conteúdos cultu-

rais relacionados aos interesses físico-esportivos, conforme relatado no parágrafoanterior. Essa estrutura multidisciplinar, quando ocorre dentro de uma mesma

colónia, pode ser bastante interessante, pois permite a realização de um trabalhoque integra diversas áreas.

A parca bibliografia existente sobre o assunto não elucida a história das co-lónias de férias. Steinhilber (1995) indica que a primeira colónia foi realizada na

década de 1930, no Forte São João, atual Escola de Educação Física do Exército. En-

tretanto, o autor trata mais de aspectos metodológicos, e no pequeno "histórico"apre-

sentado no texto não é esclarecida a maneira como esses dados foram obtidos. Po-

rém, se tomarmos essa década como referência e analisarmos o surgimento da

recreação em nosso país, podemos supor que as colónias de férias nasceram como

um espaço possível para a concretização de atividades na perspectiva recreacionista.

Na década de 1930, a educação ganhou grande importância na sociedade bra-sileira, sendo proclamada como símbolo de modernização do País. Nesse contexto,

houve grande influência da "Escola Nova", caracterizada pela mudança do centro do

processo educativo, que se deslocou do professor para o aluno, e pela negação de um

controle exterior demasiadamente rígido. Nesse sentido, a educação, para cumprir

sua função de adaptar os indivíduos à sociedade, deveria mudar seu aspecto rígido e

assumir um caráter alegre e dinâmico. Além disso, deveria substituir a disciplina

exterior pela educação da autodisciplina, conseguindo um controle menos visível

sob as crianças. Assim, a recreação tornou-se o espaço ideal para a conquista dessesobjetivos (WERNECK, 2003).

Werneck (2003) ressalta, ainda, que as propostas de recreação sistematizadas,tais como os programas desenvolvidos nos parques infantis nessa época, eram volta-das para as crianças proletárias e assumiam a função de suprir suas necessidades

básicas. As bases desse espaço educativo eram vinculadas a aspectos higienistas e àpreservação social, ou seja, as crianças eram educadas no seu meio de origem, man-tendo-se os diferentes extratos sociais em seus devidos lugares.

Os estudos de Miranda (1942) parecem reforçar a ideia da recreação como as-sistencialismo, ao defendê-la como solução para os problemas sociais decorrentes, em

46 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

grande parte, "das insatisfatórias e precárias condições materiais, higiénicas, cul-turais, morais, da casa e do lar da criança desvalida" (p. 322). Segundo o autor, foramcriadas pelos poderes públicos e associações privadas dois tipos de instituição com oobjetivo de sanar os problemas sociais: as primeiras, de caráter corretivo e altamente

dispendiosas, como hospitais, sanatórios, creches, abrigos e reformatórios; outras, de

natureza preventiva e não muito dispendiosas, como escolas ao ar livre, centros de

saúde, colónias de férias e f arques infantis.

Posteriormente, em 1952, Arnaldo Sussekind, Inezil Penna Marinho e Oswaldo

Góes fazem referência à existência de colónias de férias no Brasil, embora em peque-

no número, em seu Manual de Recreação (Orientação dos Lazeres do Traba-

lhador). Os autores citam que as poucas colónias em atividade, organizadas pelos

Estados, eram voltadas exclusivamente para crianças e atentam para a necessidade

de estendê-las aos trabalhadores (SUSSEKIND; MARINHO; GÓES, 1952). Essa obra teve como

objetivo estimular a adequada utilização do tempo livre dos operários em uma época

em que havia uma grande preocupação com a "ocupação sadia" desse tempo, visando

conservar a força produtiva do trabalhador e fazê-lo conformar-se ao sistema vigente.

As férias, nesse contexto, foram instituídas para preservar a saúde do trabalhador,

proporcionando-lhe o descanso necessário à recuperação do organismo.

Nesse âmbito, podemos supor que as colónias de férias surgiram como uma

possibilidade educativa, dentre outras existentes, visando dar continuidade ao traba-

lho da escola por meio da recreação. Assumiram a função de manutenção da ordem

social, primeiramente, mediante trabalho com as crianças e, em seguida, estenden-do-a aos operários.

Atualmente, as colónias de férias vêm sendo realizadas por instituições parti-

culares, pois as iniciativas públicas parecem ser cada vez mais raras no País. Em um

mapeamento realizado na cidade de Belo Horizonte, por exemplo, não encontrei ne-

nhuma colónia realizada por iniciativa pública (ASSUNÇÃO, 2003).

As escolas de Educação Infantil têm sido um dos principais espaços de realiza-ção de colónias, com o objetivo de estender o atendimento às crianças ao período de

férias, quando muitos pais e mães continuam trabalhando. Essas instituições foram

criadas a partir da necessidade de tornar público o cuidado com a criança pequena,

dada a inserção da mulher, que possuía a função social de cuidar da casa e dos filhos,

no mercado de trabalho. Os clubes sociorrecreativos também vêm sendo importan-

tes realizadores de colónias de férias no contexto atual, juntamente com as institui-ções patronais de direito privado.

Enfim, as colónias de férias são importantes experiências na atualidade e, comotais, podem constituir fecundas oportunidades para se vivenciar o lazer. São, ainda,

[COLÓNIA DE FÉRIAS] 47

Page 25: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

locais de produção, ampliação e ressignificação cultural, mediante vivência lúdica dosdiferentes conteúdos construídos pelo homem através da história.

Crístiane Queiroz de Souza Assunção

Bibliografia

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cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocu-pacional da UFMG, 2004. (monografia de conclusão de curso).

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WERNECK, Christianne Luce Gomes. Recreação e lazer: apontamentos históricos no contexto da edu-cação física. In: WERNECK,Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recrea-ção e educação física. Belo Horizonte: Autêntica, 2003,p. 15-56.

CONSUMO

Ato ou efeito de consumir. Palavra genérica para compra e venda de produtos ouserviços.

Segundo uma visão economicista, o consumo seria a utilização dos bens mate-

riais para a satisfação das necessidades demandadas pelos homens, já que a própria

Economia é por definição a alocação dos recursos limitados do mundo aos desejos

ilimitados dos seres humanos. Contudo, essa visão não explica, na contemporanei-dade, o processo consumista em toda a sua extensão. O fato de adquirir um produto

hoje não satisfaz apenas "necessidades económicas", mas também as subjetivas, dentre

elas o lazer. No entanto, não podemos nos esquecer de que os diversos sistemas de

trocas vividos pelas civilizações ao longo de suas histórias também se caracterizam

como consumo, já que ele é uma prática idealista na sua essência. O consumo é um

modo ativo de relação no qual se funda boa parte do sistema cultural contemporâ-neo. O extremo dessa alternativa de relação cultural é a venda.

Os objetos não são mais comprados somente pelo seu valor de uso ou pela sua

utilidade, mas também pela capacidade de preencher necessidades do ego, potenciali-zadas pelos meios de comunicação de massa. Em um mundo no qual o poder decompra tem norteado as ambições de grande parte da população, a mídia pauta

48 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

suas mensagens no consumo de produtos, serviços e, principalmente, de imagens.Com os produtos, os indivíduos formam sua subjetividade mais por meio dos meiosde comunicação, como Internet, TV e cinema, do que pelas interações sociais em

instituições tradicionais, como a escola e a família. A função de convivência, ou de

simples convivialidade, está se deslocando dos antigos espaços públicos, como as

praças e os bulevares, em direção aos shopping centers, aos condomínios fechados e

aos grandes parques temáticos, lugares que espelham a espetacularização das ima-

gens midiáticas e o desejo pelo seu consumo.

Consumir um objeto é adquirir os atributos conferidos a ele pela propagan-

da, fazendo com que o consumo contemporâneo seja mais qualitativo do que quan-

titativo. Assim, o mercado não pode manter o mesmo produto por muito tempo. Os

sujeitos exigem modificações constantes em um círculo vicioso no qual as suas

necessidades de satisfação mudam permanentemente, assim como aquilo que eles

consomem renova-se incessantemente. A emoção e a expectativa pelo consumo

impulsionam a procura persistente pela novidade, por novas sensações que, ao se-

rem frustradas pelo processo de desgaste ou insatisfação, precisam ser estimula-

das novamente com um novo produto ou serviço ou com uma adaptação da ima-

gem dele. Por esse motivo, a criatividade na propaganda e as inúmeras formas devender foram uma grande arma para o consumo do século XX e no XXI. Com as

imagens variadas e a potencialização de diferentes emoções latentes dos indivídu-

os, é possível sempre criar expectativas e anseios de satisfação para a continuidade

do processo de consumo.

Consumir hoje significa, antes de tudo, uma busca por uma identidade e por

um referencial encontrados nos objetos e nos serviços, configurando uma procura

incessante de satisfação das necessidades emocionais dos indivíduos. Esse raciocí-

nio aplica-se ao lazer. Após o nascimento da indústria e da implantação da jornada

laborai e uma clara divisão entre capital e trabalho, o lazer era tido como um descan-

so, um momento em que os trabalhadores poderiam relaxar e passar um tempo com

a família. É assim que Halbwachs (1913) interpreta o tempo que o operário consagra

ao espetáculo da rua, aos bares e, sobretudo, às refeições com a família. Hoje, descan-

sar não mais condiz com esse conceito de lazer; o tempo todo os meios de comunica-

ção de massa estimulam os cidadãos a trocar o antigo repouso por um momento de

consumo supostamente mais emocionante e prazeroso.

O consumo de lazer oferece um amplo leque de possibilidades em parques te-

máticos, ilhas paradisíacas, esportes radicais e festas intermináveis, sem descanso.Podemos perceber essa tendência por meio de algumas redes de hotéis ao longo do

globo, cuja atual proposta para o cliente são acomodações mais simples e o foco no

[CONSUMO] 49

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entretenimento do cliente, fazendo com que ele fique o menos tempo possível dentrodo quarto, preenchendo seu dia com inúmeras atividades: esportes, festas e jogos. Asatisfação via consumo de bens de lazer se dá pelas emoções proporcionadas pelomundo dos objetos e das fantasias.

Nestor Garcia Canclini (1995) chama a atenção para o fato de o consumo ter

ultrapassado as fronteiras clássicas da Economia, atingindo outras dimensões da vida

social. Considera o consumo como uma parte do processo comunicacional, como

alguma coisa que os indivíduos desejam transmitir mediante a aquisição de bens e

serviços. Ou seja, o consumo é cultural e expressa a apreensão coletiva que as pes-

soas possuem sobre o ambiente no qual vivem. É, antes de tudo, uma aquisição sim-

bólica que visa comunicar ao grupo social alguma mensagem. A cidadania já não se

constitui somente em relação a movimentos políticos e sindicais, mas, especialmen-te, em processos de comunicação de massa e de consumo.

A Internet apresenta-se como um importante componente da comunicaçãosocial na contemporaneidade, configurando um novo imaginário de relações de

consumo e lazer. Nela, a diversão está diretamente associada ao consumo, seja por

meio de banners, pop-ups e spams ou de sites específicos de vendas. A Internetpode ser um paradoxo, pois, apesar de virtual, materializa-se em variados produ-

tos e serviços, fortalecendo a globalização e pluralizando ainda mais o cotidianodos cidadãos.

Em uma sociedade fragmentada como a contemporânea, a pluralidade de pro-

dutos implica um processo de entrelaçamentos entre diferentes estilos de vida e bensque os refletem. O processo de aquisição de produtos e serviços hoje transita pelocampo do simbólico, dos sonhos despertados pelas expectativas das emoções que oconsumo pode vir a proporcionar: conhecimento, prazer, aceitação ou desejo.

Janete da Silva Oliveira

Ricardo Ferreira Freitas

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CONTEÚDOS CULTURAIS

O conceito de cultura carrega uma dupla dimensão que deve ser compreendida deforma complexa, não linear. Podemos falar de um conjunto de normas, valores, hábi-tos que norteiam a vida humana em sociedade, nas suas mais diferentes especifici-dades, mas não devemos esquecer que elas se articulam com formas de organização,representações, sensibilidades. Assim, há uma relação entre aspectos éticos e estéti-

cos nas diversas formações culturais.

Tendo em vista tal discussão, deveríamos considerar como "conteúdos cultu-rais" qualquer dos elementos componentes desses campos: poderíamos estar nos re-ferindo a valores, a sensibilidades e/ou a articulação entre ambos.

Contudo, correntemente no âmbito da discussão sobre o lazer no Brasil, tende-mos a denominar como "conteúdos culturais" um conjunto de estratégias possíveisde ser implementadas em programas de lazer, tendo em vista o alcance de determi-nados objetivos estabelecidos pelo animador cultural.de forma mais ou menos cons-ciente e crítica, associados ou não com seu público-alvo.

A utilização da expressão "conteúdos culturais" para designar as manifesta-ções culturais é uma clara influência do pensamento do sociólogo francês Joffre Du-mazedier no País, notadamente de sua classificação das atividades de lazer. É interes-sante perceber como sua tipologia permanece bastante utilizada até os dias de hoje,

mesmo que parte significativa de seu pensamento tenha sido criticada no decorrerda década de 1980, muitas vezes de forma injusta e imprópria, diga-se de passagem.Provavelmente, sua proposta de classificação permanece reconhecida por ainda darrespostas convincentes às necessidades de concepção e programação de interven-

ções no âmbito do lazer.

Dumazedier procurou classificar as atividades de lazer segundo o interesse cen-tral desencadeador de sua busca, o elemento principal que motivaria os indivíduos aprocurá-las. Ao percorrer as diferentes motivações humanas, trabalhando com di-versas linguagens, estaríamos ampliando o alcance de nossa intervenção. Por certo,contemplar as possibilidades de interesse não constitui uma dimensão suficientePara garantir um trabalho de qualidade; ela deve, todavia, ser considerada como

urna preocupação importante para o profissional de lazer.

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Obviamente, devemos ter em conta os limites dessa classificação, já que o pro-cesso de escolha dos indivíduos nem sempre é absolutamente explícito, tampoucomodulado por um interesse único. Quando alguém resolve ir ao cinema, não o fazpensando: "agora vou mobilizar meu interesse artístico". Tampouco o faz desconsi-derando que esse ato está ligado também ao intelectual, ao social. A ação humana é

complexa demais para caber em limites rígidos de categorias, o que não significa que

a classificação seja ineficaz: somente devemos utilizá-la tendo claros os seus limites,a considerando como um guia para nossas intervenções.

Segundo Dumazedier, cinco são os interesses centrais. O primeiro deles é o de"interesses físicos". Nesse grupo podemos situar os esporte em geral, a ginástica, a

dança, a prática de caminhada, dentre outros. Essas atividades podem ser situadas

entre as mais procuradas e acessadas nos momentos de lazer, notadamente em razãoda influência dos meios de comunicação.

O elemento central de motivação nesse grupo é o prazer de movimentar ou assis-tir a movimentação corpórea, compreendida nas suas mais diversas possibilidades lú-

dicas: de atividades leves a extenuantes; realizadas em ambientes rústicos ou em espa-

ços construídos; praticadas em condições de absoluta segurança ou ocasionando riscos

controlados; vivenciadas individualmente ou em grupos. Ao redor de cada um dessescasos gestam-se, até mesmo, estilos de vida específicos.

Podemos apontar como desafios para o profissional de lazer com seu público-alvo, a partir da perspectiva do duplo aspecto educativo: contribuir para ampliar o grau

de acesso à vivência de atividades físicas (muitas vezes restrita a uma só prática); o

estímulo a sua prática e não só a sua assistência; o desenvolvimento de criticidade pe-rante os espetáculos ligados à cultura corporal de movimento. Maiores informaçõespodem ser encontradas no verbete "Esporte" deste dicionário.

Os "interesses artísticos" constituem outro dos grupos definidos por Duma-zedier. A motivação central que conduz os indivíduos a essas manifestações é a

experiência estética ocasionada, embora, é importante ressalvar, isso não seja exclu-

sivo desse conjunto de interesses. Nesse grupo encontramos a arte em suas mais di-

ferentes formas de apresentação: cinema, teatro, dança, música, artes plásticas, lite-

ratura; encontradas em ambientes especificamente organizados para armazenamento

e/ou exposição (museus, centros culturais, casas de espetáculos), mas também pos-síveis de ser produzidas pelos indivíduos.

No que se refere a esse grupo, tem o profissional de lazer um grande desafio,uma vez em que há um grande distanciamento entre a arte e grande parte da popula-ção. Os embates são múltiplos: há que se fazer a arte produzida chegar às pessoas emsua mais diferentes possibilidades e não somente naquilo que difunde a cultura de

52 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

massas; há que se explicitar que todos os indivíduos podem produzir suas manifes-tações artísticas, independentemente de seu grau de habilidade, que a arte não é pri-vilégio de virtuoses; há que se construir caminhos de veiculação das manifestaçõesculturais construídas à margem dos sistemas usuais de distribuição; há que se esti-mular nos indivíduos a compreensão de que também produzem quando dialogam

criticamente com as diferentes manifestações. Maiores informações podem ser obti-

das no verbete "Arte" deste dicionário.

O terceiro grupo é o dos "interesses manuais", cuja motivação se encontra fun-

damentalmente na manipulação de objetos e produtos. Nesse grupo podemos en-

contrar a jardinagem, a carpintaria, a marcenaria, a costura, a culinária, os hobbies

em geral. Muitas dessas atividades, por terem ligação direta com preocupações de

natureza estética, acabam se confundindo com as artísticas.

Poder-se-ia argumentar que o grau de diferenciação está na originalidade de

produção de alguns objetos (o que os situariam como artísticos) em detrimento a

sua confecção em série (o que os faria ser considerados como artesanato). Ainda

assim, até mesmo em razão das ressignificações dos conceitos de arte e de sua pecu-liaridade no que se refere a uma intervenção no âmbito do lazer, tal limite não seria

convincente.

O mais importante é que possamos contemplar esse conjunto de atividades em

nossos programas, tomando o devido cuidado para não confundi-lo como forma depreparação para o trabalho, já que muitas dessas atividades acabam se confundindo

com "bicos".

Mesmo que não devamos negar que em qualquer outro grupo há uma mobili-

zação ativa do ato de pensar, a quarta categoria é a de atividades de "interesses inte-

lectuais", já que a ênfase central nesse caso está mais diretamente ligada ao exercício

do ato de raciocinar. Nesse grupo de atividades estão enquadrados, por exemplo, jo-gos como xadrez, dama, gamão.bridge. Também podemos incluir palestras e cursos,

desde que não estejam sendo procurados pelas necessidades do trabalho. Isto é, es-

tando ligados a outros interesses da vida que não aqueles diretamente desencadea-

dos pelo mundo profissional.

Esse grupo de interesse, além de uma possibilidade de intervenção direta, tem

grande utilidade na preparação para a intervenção com outros interesses. Pode dia-

logar com praticamente todos os outros grupos, retroalimentando e potencializando

as vivências sensórias.

Por fim, o último grupo categorizado por Dumazedier é o dos "interesses so-ciais", atividades relacionadas ao fator motivador de encontros entre indivíduos, di-mensão de alguma forma também presente em todos os outros grupos. Nesse caso,

[CONTEÚDOS CULTURAIS] 53

Page 28: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

podemos situar as festas, os espetáculos, a frequência a bares e restaurantes, a parti-cipação em espaços de convivência.

No Brasil, seguindo uma sugestão do sociólogo Luís Octávio de Lima Camargo,ex-aluno de Dumazedier, muitos costumam considerar outra possibilidade: os "inte-resses turísticos". Independentemente se devem ser tidos como um novo grupo ou serenquadrados nos "interesses sociais", vale a pena ao profissional de lazer estar atento atal possibilidade de intervenção não somente na perspectiva de conhecimento de ou-tras localidades, como mesmo de reconhecimento do próprio espaço onde vive o indi-

víduo, já que um dos grandes problemas identificados na contemporaneidade é o esva-

ziamento dos espaços públicos como locusde vivência social e o desconhecimento daspotencialidades locais, um verdadeiro processo de distanciamento do cidadão de sua

cidade, que acaba por potencializar uma série de mazelas sociais.

Victor Andrade de Melo

BibliografiaDUMAZEDIER, Joffre. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: Sesc, 1980.

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VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

CULTURA

A palavra "cultura" está presente em nosso cotidiano em vários momentos e é interpre-tada com significados diversos. No senso comum, uma primeira tradução do conceitodiz respeito às manifestações que envolvem as artes de modo geral: música, poesia,literatura, dança, teatro, circo, festas, dentre tantas outras. Outro sentido atribuído aotermo relaciona-se com o fato de ouvimos dizer que, enquanto "fulano de tal" é umapessoa muito culta, "sicrano" não tem cultura. Tal visão equivale à capacidade de com-preender dados: organizá-los, analisá-los e conferir-lhes novos significados. Assim, acultura é quase sempre um adjetivo atribuído às pessoas que possuem volume deleituras, controle de informações, diplomas e títulos universitários. Nesse sentido,a palavra é usada como sinónimo, ainda que restrito, de educação, de inteligência,

sendo utilizada para classificar as pessoas e servindo como arma discriminatória en-

tre os grupos sociais contra sexo, idade, classe social, etnia.

Por vezes, a cultura é entendida como o modo de vida, hábitos e costumes dedeterminados grupos. São línguas, artes, comportamentos, tão diferentes e diversos,que chegam, em alguns momentos, a nos causar profunda estranheza. Ficamos nos

perguntando: Como é possível uma pessoa ou mesmo um grupo de pessoas viverdesse ou daquele modo? É comum considerarmos o nosso modo de viver melhor emais interessante do que o de outros povos e, do mesmo modo, valorizarmos a cultu-ra de determinados lugares em detrimento de outras e, até, da nossa própria. Afirma-mos, por exemplo, que os índios de hoje estão usando calça jeans e relógio, por isso,

perderam sua cultura, não são mais índios.

Dá para notar que não é nada simples definir o conceito de cultura. Uma rápi-

da consulta aos dicionários nos coloca diante de inúmeras compreensões diferencia-

das, também bastante utilizadas pelo senso comum. Vejamos mais algumas: 1) a açãoou maneira de cultivar as plantas; 2) o desenvolvimento de certas espécies microbia-nas; 3) o terreno cultivado: a extensão das culturas; 3) a criação de certos animais: acultura das abelhas; 4) o conjunto de conhecimentos adquiridos; 5) o conjunto dasestruturas sociais, religiosas, etc., das manifestações intelectuais, artísticas, etc., quecaracteriza uma sociedade: a cultura dos inças; 6) a aplicação do espírito a algumacoisa: a cultura das ciências; 7) o desenvolvimento das faculdades naturais: a culturado espírito; 8) o apuro, a elegância: a cultura do estilo; 9) a cultura de massas: oconjunto dos fatos ideológicos comuns a um grupo de pessoas consideradas fora dasdistinções de estrutura social e difundidos em seu seio por meio de técnicas indus-triais; 10) a cultura física: o desenvolvimento racional do corpo por exercícios apro-

priados. (HOUAISS; KOOGAN, 1992).

Uma consulta da etimologia da palavra cultura nos ajuda a compreender as

concepções até aqui apresentadas. Cultura vem do latim cultura, que significa la-voura, cultivo dos campos, instrução, conhecimentos adquiridos, derivado do latim

colçre, "cultivar, cuidar de, tratar", representado em grego por dois vocábulos distintos,geôrgía, "lavoura, cultivo dos campos" e máthema, mathçmata,"conhecimentos ad-quiridos". Opõe-se, desde a época clássica, à palavra latina natura, "natureza, ordemestabelecida pela natureza, curso natural das coisas". A diferença fundamental entrecultura e natura, é que a cultura, "lavoura, conhecimentos adquiridos" só se realizacom a participação direta do homem, agindo sobre a natura, enquanto esta existe in-dependentemente da ação humana. (ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, 1986).

É possível afirmar, portanto, que desde suas origens a palavra cultura está liga-da à noção de cultivo, cuidado: com a terra (daí agricultura); com as crianças (pueri-cultura); com os animais (apicultura, psicultura) e com os deuses (culto). Essas

>4 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [CULTURA] 55

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noções originais trazem a ideia de uma ação que conduz à plena realização das po-tencialidades de alguma coisa ou de alguém. É fazer brotar, frutificar, florescer e cobrirde benefícios (CHAUÍ, 1989). Se seguirmos essa linha de raciocínio poderíamos dizer,ainda nos dias de hoje, que o objeto de nosso cultivo é a própria vida. Desse modo,cultivamos a vida biológica, afetiva e social: o trabalho e o lazer, a guerra e a paz.

Entretanto, ao mesmo tempo em que a compreensão de cultura como cultivo,culto, foi perdendo terreno na história do ocidente, ganha destaque a oposição entre

natureza e cultura. A partir dessa oposição, a cultura passa a ser entendida como

produção e criação da linguagem, da religião, dos instrumentos de trabalho, das for-

mas de lazer, da música, da dança, dos sistemas de relações sociais, particularmente ossistemas de relações de parentesco e as relações de poder (CHAUÍ, 1989). Para que a vidaexista e persevere, ela exige. É das respostas que damos às exigências da vida que nasce

a cultura. Cultura é o fazer, como fazer, para que e para quem se faz. A cultura constitui-

se em todas as atividades que satisfazem nossas necessidades, mesmo supérfluas. So-mos todos produtos e produtores de cultura. A arte, a educação, o trabalho, o lazer, den-tre tantas outras atividades, fazem parte da cultura. A cultura é o ser humano, é o quehá de mais humano no ser, é aquilo que nos distingue dos outros animais.

A percepção desses fazeres e de suas diferenças foi possibilitada pelo desenvol-vimento científico e tecnológico, marco da passagem para o mundo moderno. Por

meio do advento das grandes navegações, iniciado no século XVI, esse desenvolvi-mento permitiu à Europa colonizar os povos das Américas, Ásia e África. Do encon-tro da sociedade do "eu" com a sociedade do "outro" e o esforço de compreender as

diferenças culturais, surgiram às bases para a constituição do conceito de cultura,que passa a ser o conceito-chave da antropologia, ciência que surge no século XIX,

mas que só se desenvolveu como campo epistemológico no início do século XX. Demodo sucinto, veremos como esse conceito e as várias concepções que se encontrampresentes em nossa sociedade foram se constituindo. A cultura é o objeto de estudosda ciência antropológica (ciência da alteridade, da relação do "eu" com o "outro") enão pode ser considerada seu sinónimo.

Os primeiros objetos dos estudos antropológicos foram as sociedades "primiti-vas", populações que não pertenciam à civilização ocidental. O filme Guerra do fogo

ilustra como, desde os primórdios da humanidade, os homens possuem maneirasdiferenciadas de se estar no mundo, provocando um choque cultural entre eles. Orelato bíblico sobre a Torre de Babel demonstra como a diferença causou espanto esurpresa entre os homens. Discutir o conceito de cultura é também enveredar pelaconstrução histórica da antropologia como ciência, tendo como pano de fundo a clás-sica oposição apresentada entre natureza e cultura em sua etimologia, sinónimo decivilização (ideia de vida civil, isto é, vida política e regime político).

;6 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

Durante o século XVIII, a cultura é o padrão ou o critério que mede o grau de civi-lização de uma sociedade, sendo possível avaliar o progresso, a evolução de uma socieda-de. É considerada como um conjunto de práticas que envolve as artes, ciências, técnicas,ofícios e filosofia. Só a partir de meados do século XIX - é mais precisamente em 1871- que Edward Tylor, baseado nessa concepção iluminista de cultura, tornou-se o pri-meiro estudioso a sistematizar seu conceito afirmando que "cultura ou civilização, noseu sentido etnográfico, é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte,

moral, leis e costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo ho-

mem como membro de uma sociedade" (LARAIA, 2001, p. 25).

Esse conceito evolucionista de cultura foi alvo de várias críticas, instaurando con-cepções diferenciadas que buscavam atingir o seu grande desafio: superar o etnocen-trismo inerente a essa perspectiva. Esta visão etnocêntrica, presente em todas as socie-dades, considera que o "nosso" mundo é o centro de tudo e de todos, como se "nossa"

cultura fosse a única possível e aceitável. Em decorrência dessa visão, o modelo impos-to e aceito foi o capitalista, europeu, branco e cristão, gerando muitos preconceitos, in-

tolerâncias, violências e racismos que ainda se fazem presentes em todo mundo.

A problematização dessa concepção se deu a partir da introdução de novas

metodologias para as pesquisas antropológicas, principalmente as iniciadas pelo an-tropólogo alemão, radicado nos EUA, Franz Boas. Sua pesquisa etnográfica, que re-quer a presença do pesquisador no trabalho de campo com as populações estudadas,contribuiu para que cada sociedade fosse compreendida de acordo com um relativis-mo cultural, a partir de novas ideias de cultura e história. Boas pontua que as dife-renças culturais podem ser comparadas por meio de investigações históricas, isto é,

cada cultura segue os seus próprios caminhos em razão dos diferentes eventos queenfrenta. Ressalta a importância do acesso à língua da sociedade estudada para acompreensão das culturas nas suas particularidades. Cada sociedade passa a ser con-siderada em si e para si mesma, adquirindo o estatuto de uma totalidade autónoma.

Desde então, não se pode mais falar em cultura no singular, e sim em culturas.

Se pensarmos num país como o Brasil, que desde suas origens históricas se consti-tuiu a partir da mistura de várias etnias que nos deixaram um legado cultural incalcu-lável, veremos que Boas tinha razão. O Brasil é, com certeza, uma nação pluricultural,constituída por diferenças, por isso mesmo as inúmeras manifestações de lazer pre-sente neste universo de cultura(s) precisam ser consideradas como uma totalidade.

Neste instigante debate sobre o conceito de cultura, Mauss e Malinowski, nasprimeiras décadas do século passado, introduziram uma concepção funcionalista aoafirmarem que o indivíduo tem certas necessidades e cada sociedade tem como fun-ção satisfazê-las - por isso, a própria sociedade cria os recursos. No campo do lazer,vários exemplos dessa perspectiva funcionalista podem ser citados. O futebol é um

[CULTURA] 57

Page 30: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

deles. Poderíamos, então, perguntar: Qual a função social do futebol? É possível imagi-nar um país como o nosso sem o futebol? Não é por acaso que, a cada ano, assistimoscom a mesma garra e euforia aos intermináveis campeonatos, sejam eles oficiais ounão. O que dizer do carnaval e outras festas?

Até a década de 1960, os estudos antropológicos centraram-se nas pesquisasde povos e sociedades "ditas" primitivas. Essas sociedades, porém, sofreram influ-ências de outros contextos e tenderam ao desaparecimento. Assim, após um período decrise com seu próprio objeto de estudos, a antropologia passa a considerar as socieda-des "ditas" complexas como possibilidades para compreender o homem em seus con-textos culturais, problematizando o conceito de cultura e inaugurando outras vertentespara a ciência, como foi o caso da antropologia urbana e seus desdobramentos, porexemplo, a antropologia do corpo, da saúde, da festa, da religião, dentre outras.

Nesse cenário merecem destaque o estruturalismo de Lévi-Strauss e a antro-pologia hermenêutica de Geertz. Ao contrário da antropologia cultural - que consi-dera cada cultura particular -, Lévi-Strauss inaugura outra vertente, o estruturalis-mo, na qual as culturas são apreendidas em um nível que não é mais o dado, e simconstruído: o do sistema. Para esse autor, importa estudar a lógica da cultura enten-dida como um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mentehumana (LARAIA, 2001, p. 61). Seu trabalho tem procurado descobrir na estrutura-ção dos domínios culturais - mito, arte, parentesco e linguagem - os princípios damente que geram essas elaborações culturais.

Geertz, por sua vez, vem desenvolvendo argumentos para se compreender umaantropologia hermenêutica, ou antropologia interpretativa. Em A interpretação dasculturas (1989), ele afirma que a cultura é um conjunto de mecanismos de controle- planos, receitas, regras e instruções - para governar o comportamento. Sem essesistema organizado de símbolos significantes, o comportamento do homem seria in-controlável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e suaexperiência não teria qualquer forma.

A cultura, nessa perspectiva, é uma condição para a existência humana e podeser vista como um texto possível de ser lido, interpretado. Compreendida como umcódigo, como um sistema de comunicação, seu caráter dinâmico é percebido pelasinterpretações, significados, símbolos diante uma realidade permanentemente emmudanças ao mesmo tempo em que extremamente rica em sua diversidade.

Geertz (1989) nos auxilia a compreender a cultura como um conjunto demecanismos simbólicos para controle do comportamento que fornece o vínculoentre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que elesrealmente se tornam, um por um. Tornar-se humano é tornar-se individual, enós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de

58 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, ob-jetivo e direção à nossa vida. Os homens são, portanto, seres incompletos e inacaba-dos que se completam por meio da cultura. No Brasil, por exemplo, podemos identi-ficar a cultura do caipira, do urbano, do imigrante e tantas outras, e em cada culturaem particular, certamente, encontraremos vários tipos de homens, pois eles também

são diferentes.Também essa concepção de cultura vem sendo criticada e discutida por sociólo-

gos como Maffesoli (1987) e Featherstone (1995) e antropólogos como Canevacci (1993)e Canclini (1997), dentre outros. A partir de análises teóricas diferenciadas, afirmamque a cultura nestes novos tempos não pode conviver com a ideia do todo formado porpartes, mas sim numa perspectiva de rede, este conjunto inorganizado e, no entanto,sólido, invisível, que serve de ossatura a qualquer outro conjunto, seja ele qual for.

Para esses autores, vivemos, na atualidade, o tempo dos fluxos de informações,conhecimentos e imagens, constituídos de forma interdependentes. Essas caracterís-ticas introduzem novas estruturações sociais no que tange às relações entre os indi-víduos e as novas formas de agrupamentos e, ainda, da relação que eles estabelecemcom as novas territorialidades (ou desterritorialidades), provocando diferentes ma-neiras de se situar nos tempos e espaços culturais.

Com efeito, a globalização, o acesso à informatização e o desenvolvimento tec-nológico são os principais responsáveis por esse novo desenho social. As TVs a caboe a Internet rompem as fronteiras, possibilitando novas interações e construções dosujeitos com o tempo e o espaço. A cultura não é mais o controle, mas, em certo sen-tido, é a desordem, traz a pluralidade, a diversidade, a estilização da vida. Não é maiso pensar com a razão, e sim o agir com a emoção. A cultura torna-se, portanto, aquiloque é experienciado no cotidiano, numa profusão de estilos de vida e paisagens.

Vânia de Fátima Noronha Alves

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anne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recreação e educação física. Belo Hori-

zonte: Autêntica, 2003a, p. 83-114.

CANCLINI, Nestor G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São

Paulo: EDUSP, 1997.

CANEVACCI,Massimo. A cidadepolifonica. Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São

Paulo: Studio Nobel, 1993.

[CULTURA] 59

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CHAUf, Marilena. Cultuar ou cultivar. Revista Teoria e Debate., n. 8,1989, p. 50-56.

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FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. Trad. de J. A . Simões. São Paulo:Studio Nobel, 1995.

GEERTZ.Clifford.A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

KOOGAN/HOUAISS. Enciclopédia e dicionário. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1992.

LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. 14. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

MAFESSOLI.Michel. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa.Rio de Janeiro: Fiorense Universitária, 1987.

DANÇA

Muitos são os historiadores que reconhecem o nascimento da dança já entre associedades primitivas. Contudo, preferimos considerar que sua estruturação, como

um campo específico e sistematizado de conhecimento e espetáculo, vai se dar noséculo XVII, com o desenvolvimento do bale clássico.

A dança, nos seus primórdios, era uma manifestação coletiva, construída noâmbito das tradições da cultura popular. Quando passa a ocupar, na forma de bale,os salões das cortes, principalmente francesa e italiana, vemos um processo paulati-no de separação dessa prática do conjunto geral da população. A dança, que outroraera popular e que não estava dissociada da vida do povo, nesta nova conformaçãopassa a ser concebida como divertimento da aristocracia cortesã, assim como umdos elementos para afirmar o prestígio e o poder desse grupo dominante.

Obviamente que isso não significou que a população deixou de dançar. Houve,e até hoje há, uma constante inter-relação, que deve ser compreendida à luz de umprocesso de circularidade cultural. Devemos lembrar, inclusive, que é justamente a

partir dos passos, movimentos e gestos das danças populares que o bale iniciou seudesenvolvimento, entabulando um processo de refinamento aristocrático e de altacomplexificação técnica. Contudo, não podemos negar que se criaram mecanismos

de diferenciação, de valorização, destinando às danças das elites a preponderânciana consideração de "melhor", mais "bonita" ou "mais adequada" forma de dançar.

No final do século XVII, quando o bale saiu dos salões da corte e passou a serapresentado em palcos italianos, esse quadro pouco se modificou: grande parte dapopulação permaneceu ainda afastada da dança teatral.

É nessa época que melhor se estruturou o método académico de dança, valo-rizando-se a clareza e a harmonia das formas, a perfeição técnica, a geometrização

60 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

do movimento. Não podemos nos esquecer de que o bale clássico desenvolveu-serespaldado pelo pensamento lógico matemático que predominava na época de suacodificação. Nesse contexto, o estudo do movimento muitas vezes tendeu a ficar

desconectado da emoção.

Notamos que, com a criação do bale clássico, a dança passou a ser oferecida,prioritariamente, como forma de espetáculo, de consumo passivo, tendencialmenterestrita a grupos sociais pertencentes à elite económica. Como outras manifestaçõesartísticas, a dança teatral também se estruturou como elemento de status e distinçãopara poucos que podiam praticar e/ou consumir espetáculos, ainda mais que seus

códigos se afastassem de uma construção coletiva.

Os rígidos cânones do bale clássico foram modificados somente no início doséculo XX, com o movimento da Dança Moderna, apesar de terem sido questionadosjá no século XVIII pelo francês Jean-Georges Noverre, que propôs reformas na ence-nação e na formação dos bailarinos, objetivando resgatar a expressividade do movi-mento e a essência do ato de dançar. Ocorreram, assim, mudanças sensíveis em rela-

ção ao modo de pensar e praticar a dança.

Construíram-se outros sentidos e significados: buscou-se não só uma nova for-ma de dançar, bem como novas intencionalidades para o ato de dançar, em movi-mentos que supostamente pretendiam tornar essa arte mais próxima do público, me-nos artificial, menos escolástica, questionando-se o rígido espaço ocupado pela

técnica do bale clássico e preconizando a emoção e a relação da arte com a vida comofatores fundamentais a serem recuperados.

Quando na modernidade se questionou o rigor técnico da arte académica,não havia ainda uma metodologia que valorizasse a investigação de elementos es-truturadores da linguagem. É importante lembrar que qualquer arte exige um do-mínio técnico que viabilize o modo específico e qualitativo do seu fazer e que avalorização da emoção e das subjetividades não pode significar o abandono dessadimensão fundamental, sem a qual corremos o risco de uma construção sem pa-râmetros, pautada exclusivamente nas articulações políticas do campo, sem crité-

rios claros de julgamento.

Rudolf Laban, no começo do século XX, foi o grande artista e pesquisadorque criou bases metodológicas do ensino da dança moderna. Ele pensou e desen-volveu uma proposta de dança educativa como um elo entre o conhecimento inte-lectual e a criatividade, permitindo que o aluno percebesse com maior clareza assensações contidas na expressão dramática do indivíduo, quer na dança teatral ouna comunitária. Para Laban, a partir da compreensão das qualidades de movimento,implícitas em qualquer ação humana, o aluno podia ser educado por meio do mo-vimento, da linguagem da dança.

[DANÇA] 61

Page 32: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Na contemporaneidade, há um processo de rupturas e permanências no que serefere à dança moderna e ao bale clássico. Trouxe-se para a dança, assim como paraoutras manifestações artísticas, o desafio do desenvolvimento de novas experimen-tações para a linguagem, a busca de desconstrução de determinados parâmetros e atentativa de estabelecimento de diálogos entre as linguagens, já embrionariamenteobservados nos movimentos das vanguardas artísticas europeias no início do séculoXX (por exemplo, no futurismo e no surrealismo).

Hoje a dança tem se caracterizado por uma diversidade maior de tipos corpo-rais e pela flexibilidade dos critérios quanto ao nível de domínio técnico, o que indicauma pequena abertura no sentido de maior absorção de pessoas no campo. Mas issonão deve se contrapor a ideia de que intérpretes não tenham que ser constantementepreparados para a pesquisa, o domínio e a expressão da linguagem corporal.

No Brasil, apesar de já existirem iniciativas ligadas à prática desde o séculoXIX, inclusive no que se refere ao lecionar e ao formar bailarinos, o primeiro grandeimpacto da arte da dança ocorreu com as apresentações da companhia russa de Dia-ghilev, na década de 1920. A elite do Rio de Janeiro emocionou-se ao assistir à inter-pretação de Nijinsky.

A primeira escola de dança, fundada em 1927, do Teatro Municipal do Rio deJaneiro se deve à permanência no Brasil da solista Maria Oleneva, da companhia deAna Pavlova. Apesar de o teatro existir desde 1909, a dança só foi se estabelecer deforma organizada a partir dessa ocasião. O corpo de baile foi oficializado em 1936,mas é apenas a partir da década de 1950 que a companhia experimenta um novoestilo de dança. É por intermédio de Nina Verchinina, bailarina do Ballet Russe deMonte Cario, que a dança moderna chegou ao Municipal.

Verchinina foi uma das principais responsáveis pela difusão da dança moder-na nas academias do Rio de Janeiro. Assim, começaram a se formar, no Brasil, escolase companhias de dança, notadamente no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Hori-zonte, em Curitiba e em Salvador.

No ensino de 3° grau, a partir de 1939, a dança se instituiu como parte inte-grante dos currículos de Licenciatura em Educação Física, sendo Helenita Sá Earp apioneira na Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ésomente na década de 1970 que surge a primeira iniciativa específica no nível supe-rior: a Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia.

Como pensar as peculiaridades dessa arte como forma de lazer e como estraté-gia de intervenção pedagógica? O conhecimento em dança articula-se com o conhe-cimento por meio da dança, problematizando e abrindo o leque de possibilidades derelações entre arte, ensino, aluno e sociedade. Devemos, sobretudo, ter em mente que,"ao contrário do que nos dita o senso comum, as aulas de dança podem ser verdadeiras

62 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

prisões dos sentidos, das ideias, dos prazeres, da percepção e das relações que pode-mos traçar com o mundo" (MARQUES, 2003, p. 26).

Em certo sentido, grande parte da população continua a dançar no seu cotidia-no e podemos, sem medo de errar, afirmar que é uma das linguagens que maiorpotencial tem de desenvolvimento, tendo em vista o espaço que sempre ocupou nahistória social e mesmo sua possibilidade operacional de implementação. Para dan-çar, precisamos somente de música, em certo sentido, pois nem a música é completa-mente imprescindível.

Não podemos nos esquecer, contudo, de que há estímulos constantes da indús-tria cultural para o dançar. Basta lembrarmos das muitas "coreografias" que acom-panham os produtos musicais por ela difundidos (coreografias de axé, de/wnfc e dosgrupos de pagode). Podemos até questionar a qualidade desses construtos (seu vo-cabulário corporal restrito e pobre, a ausência de liberdade de criação e expressãodos corpos, já que o público fica submetido à reprodução de certos modelos), masnão podemos negar a sua penetrabilidade.

Por outro lado, os espetáculos de dança não fazem parte das opções usuais delazer de grande parte da população. Na verdade, aliás, quando falamos em espetáculode dança, vem logo no imaginário da grande maioria a estilística do bale clássico.Evidentemente, este é um estilo que produz encantamento em razão dos movimen-tos virtuosos apresentados pelos bailarinos, seus temas fantasiosos, seus belíssimosfigurinos e cenários. Sem esquecer, principalmente, que a tradição de sua existência,que atravessa mais de quatro séculos, perpetua-se no imaginário coletivo.

Os espetáculos de dança contemporânea, que vêm ocupando espaço no cenárioda dança em todo o País e no exterior, tendo em vista seu poder de afetação e mudançade consciência, ainda se encontram distanciados do lazer das camadas populares. Ob-viamente que não podemos também deixar de considerar isso à luz do contemporâneoprocesso de tensão no âmbito da cultura e da ação da indústria cultural.

Já protestava Artaud, no começo do século XX, contra a ideia de isolamentoentre vida e arte/cultura, como se a arte/cultura não fosse um meio refinado de com-preender e exercer a vida. Para o grande pensador da arte da encenação, o mais ur-gente não seria defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser hu-mano de ter fome, mas extrair daquilo que se chama arte/cultura ideias, cuja forçaviva é idêntica à da fome.

Compreender a dança como opção de lazer parte desse pressuposto. Um pro-cesso de educação para e pela dança deve permitir e incentivar um diálogo críticomediante referenciais técnicos construídos, permitindo o desenvolvimento de cons-ciências acerca das mais diversas possibilidades de expressão através do corpo.

[DANÇA] 63

Page 33: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Se desejarmos contribuir para a formação de produtores de cultura, e não só repro-dutores, tal processo não pode prescindir de compreensão acerca dos diversos senti-dos e significados que o ato de dançar obteve no decorrer da história.

Maria Inês Galvão Souza

Victor Andrade de Melo

BibliografiaARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

LABAN, Rudolf. Dança educativa moderna. São Paulo: ícone, 1990

MARQUES, Isabel A. Ensino de dança hoje. São Paulo: Cortez, 1999.

PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

SOUZA, Maria Inês Galvão; PEREIRA, Patrícia Gomes; MELO, Victor Andrade de. Dança e animaçãocultural: improvisações. Pensar a prática. Goiânia, 2003. no prelo.

DIVERSÃO

A diversão não é um tema corrente nas pesquisas no campo do lazer. Pouquíssimos

estudos priorizam o assunto. Isso, portanto, não indica que as investigações não fa-

çam menção ao termo. Verifica-se, na maioria das vezes, a ocorrência de uma abor-

dagem indireta em estudos sobre consumo, trabalho, lazer, etc.

O comum é o termo aparecer como sinónimo de palavras como lazer, entrete-

nimento e tempo livre. Em muitos trabalhos, confunde-se diversão com lazer, di-

vertimento com tempo livre, entretenimento com tempo de não trabalho, ócio com

ociosidade, etc, permutando-se em combinações diversas. Situação prejudicial para

o aprimoramento do debate na área, pois transparece a falta de construção e estabe-

lecimento de conceitos, bem como da explicitação de autores da compreensão de ele-

mentos essenciais em suas argumentações e reflexões.

Tudo isso demanda, portanto, certa confusão de conceitos que podem (ou não?)

se aproximar, opor e/ou complementar, conforme o tempo histórico e social em que

significados lhes são atribuídos nas práticas culturais. Nesse emaranhado, o termo

aparece com alguns significados que prevalecem, embora alguns autores não expli-

citem preocupação como o seu devido uso ou sua devida apropriação.

Ao escreverem sobre o lazer, movidos por interesses diversos, pesquisadores

frequentemente fazem referência às funções sociais desse fenómeno, tendo como base

Dumazedier (1976), que as anuncia como descanso, diversão e desenvolvimento,concepção adotada e aprimorada no conceito de lazer defendido por Marcellino, umadas principais referências no campo do lazer, no Brasil. Consequentemente, a men-ção à diversão como uma das funções ou objetivos do lazer é usual. Associada a essa

prática, critica-se a visão reducionista do lazer, em que não só as funções de diverti-

mento e descanso devem ser priorizadas, como também o desenvolvimento. A diver-

são aparece, assim, como elemento importante, entretanto o lazer não pode se redu-

zir a ela, embora isso aconteça.

Em outros estudos, o termo toma a dimensão da compensação. A diversão é

valorizada porque demanda recuperação de energias gastas no trabalho; é útil por-

que alivia tensões. Uma abordagem utilitarista.

Encontramos também a palavra como benefício proveniente da experiência do

lazer. Junto com alegria, prazer e liberdade, a diversão é vislumbrada como resultado/

recompensa. Alcança evidência, pois acredita-se que ela rompe com o tédio e a rotina,

provocando evasão, fuga e desvio. Uma visão simplista e compensatória, considerando

que as regras que regem a vida, em suas diferentes dimensões, são as mesmas.

Há pesquisas, no entanto, em que o entendimento do termo é discutido, pro-

blematizado e desenvolvido. Essas pesquisas apresentam, principalmente, duas ca-

racterísticas: versam sobre a história da recreação, lazer ou tema afim; ou tratam do

lazer rural. Situo uma e outra.

As pesquisas que elegem o lazer e a história como objetos, que almejam proble-

matizar e engendrar conceitos de recreação, lazer, ócio, etc., percorrem caminhos cujo

retorno às sociedades pré-industriais é quase certo. Nessas sociedades, o lazer apreen-

de o significado de diversão, que tem como principal traço a não-dissociação de outras

esferas da vida, como o trabalho. A compreensão do termo torna-se, então, essencial

para entendimento do lazer, recreação, etc. Entretanto, a fundamentação teórica de dis-

tintas pesquisas tem como referência análises realizadas, principalmente, em outros

países, o que reclama inquirições sobre a nossa realidade cultural. Quero destacar que

são poucas as pesquisas que versam sobre história e lazer no Brasil. Raras as que abar-

cam a primeira metade do século XX, período em que esse fenómeno ainda era inci-

piente. Notáveis as que abordam períodos anteriores a este - indicando necessidade de

pesquisas. Pimentel (1988), por exemplo, tendo como tema o rodeio, estuda os diverti-

mentos do Brasil agrário na época colonial e a persistência dos traços coloniais em

manifestações do lazer do século XX. Para ele, o rodeio foi, no início do século XIX, uma

prática rústica de diversão e a ruralidade produziu entretenimentos que ainda persis-

tem nos diais atuais, como o rodeio, hoje um evento de massa.

Os pesquisadores que estudam o lazer, entre o urbano ou o rural, normalmente

preferem o primeiro. Isso ocorre porque o conceito moderno de lazer, fenómeno social

64 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [DIVERSÃO] 65

Page 34: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

institucionalizado, concilia-se diretamente à revolução industrial e ao processo de ur-banização, não significando proveniência exclusiva deles. Conseqíientemente, as inves-tigações que têm o lazer urbano como objeto buscam conhecimentos sobre o mundopredominantemente urbano e industrializado, em que o tempo fragmentado rege. Es-tudam-se, pois, espaços e tribos urbanas, equipamentos de lazer, como parques, praçase clubes. O campo/campestre geralmente aparece em poucas situações - quando o con-teúdo é esporte radical ou o equipamento é um hotel fazenda, por exemplo.

Ao abordar o lazer rural - ocorrências, permanências e transformações -, osautores discorrem sobre a diversão de forma mais cuidadosa e criteriosa. Nas socie-dades rurais, trabalho, não-trabalho, diversão, religião, etc., estão relacionados, nãoocorrendo uma divisão rígida, portanto. A divisão social do tempo e espaço - histo-ricamente em transformação - é diferente da predominante na atualidade, em que oritmo é acelerado, busca-se a exatidão e o tempo/espaço estabelecidos para práticasdiversas, como lazer, trabalho, alimentação e cuidados corporais -, embora muitasvezes burlados, conciliados, transgredidos, entremeados e/ou violados.

Como cita Corbin (2001, p. 6), no início do século XIX, "o tempo do camponês,o do artesão, tal como o do operário eram porosos, impregnados de imprevistos, aber-tos à espontaneidade, sujeitos à interrupção fortuita ou recreativa. Este tempo de re-lativa lentidão, flexível, maleável, ocupado por atividades muitas vezes mal determi-nadas foi sendo pouco a pouco substituído pelo tempo calculado, previsto, ordenado,precipitado da eficácia e da produtividade; tempo linear, estritamente medido quepode ser perdido, desperdiçado, recuperado, ganho".

Alguns elementos conformam, portanto, a diversão nas sociedades rurais, comocoletividade, dispensabilidade de artefatos, continuidade temporal e espacial entreas esferas da vida humana e ritmo não determinado pelo mercado. Tomo como exem-plo as festas, uma forma de diversão. Ao escrever sobre as camponesas, Canclini (1983)as caracteriza como acontecimentos coletivos enraizados na vida produtiva, celebra-ções fixadas de acordo com o ritmo do ciclo agrícola ou o calendário religioso. Já asfestas na cidade adquirem outras características: sofrem influências das relações ex-trafamiliares, da comunicação de caráter massivo e da indústria do lazer, ou seja, aparticipação é mais individual, as datas mais arbitrárias e o motivo religioso, quan-do existe, é colocado em segundo plano pela lógica mercantil.

Em seu estudo sobre trabalho e diversão de mulheres colonas que vivem nomeio rural, um dos raros em que a diversão é matéria primordial, Marin (1996) tam-bém cita a relevância das celebrações festivas entre as formas de diversões por elaencontradas. Consequentemente as discute num capítulo específico.

"A vida dessas colonas está pontilhada por uma educação privilegiando otrabalho em detrimento do jogo, do divertimento, do descanso. [...] A diversão era

56 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

entendida como desvirtuadora dos valores cristãos, provocadora de desordem e per-dição" (MARIN, p. 79). A orientação era preencher o tempo com trabalho ou oração,pois as diversões eram condenadas; porém, persistiram.

A etimologia da palavra diversão, datada no século XVII, "vem do latim tardiodiversio, anis 'digressão, diversão', do verbo latim divertere 'afastar-se, apartar-se, serdiferente, divergir'." (HOUAISS, 2001). Reporta-se ao desvio de algo útil para algo inútil,ao afastamento de um trabalho precioso, de qualquer séria ocupação, para se entre-gar a outra ocupação menos necessária. Divertir, fazer uma diversão, "é tirar, ou di-minuir a aplicação a algum estudo, negócio. Desviar de alguma ocupação, empresa,etc." (BLUTEAU, 1712).

Ressalto a citação supracitada sobre a educação das colonas para estabeleceroutro significado atribuído à diversão, que diz sobre a sua negatividade, associando-a à ociosidade, ao vício, ao tempo para obrar coisas inúteis. Essa valorização, cons-truída sob forte influência do eclesiástico, estabelece uma moral social, ditando bonscostumes e boas condutas.

A diversão é, então, moralizada, criam-se novos valores associados ao vício, àdoença, à inutilidade e ao desonesto. No entanto, existe a diversão lícita - permitida,conforme a lei e aos princípios do direito - e a ilícita - proibida, condenada pela lei e/oupela moral - que convivem, harmoniosamente ou não, nos diferentes tempos e locais. Oentendimento da construção social desses valores denuncia permanências e desconti-nuidades que precisam ser investigados em nosso contexto cultural.

A negação da diversão em benefício da racionalidade teve entre suas consequênciasa institucionalização do lazer - ação que reclamou intervenções e estratégias múltiplas. Olazer moderno/institucionalizado congrega referências como padronização, organização,uso de equipamentos, precisão e ocupação; configura-se pela ocupação do tempo comexperiências lícitas, saudáveis, segundo o modelo determinado. Para compreender esseprocesso ou a constituição e transformação dos significados atribuídos ao termo diver-são, um caminho interessante é olhar para o próprio discurso da Igreja.

Obras de teólogos e moralistas, como compêndios, prontuários e dicionáriosde casos de consciência, que circularam em diversas instituições educativas da Améri-ca Portuguesa, trazem normas religiosas que deveriam reger, governar, dirigir e regulartodas as ações do homem cristão, como a sexualidade, o trabalho e a diversão.

A teologia moral ensina "com clareza tudo o que devemos fazer, e de que deve-mos fugir, para conseguirmos a salvação", fazendo conhecer boas e más ações, bonse maus costumes. Larraga (1813, p. 260-63) enumera diversas ações para as quaisdeveriam os confessores orientar, como: "Não dar, nem receber banquetes, não iraos espetáculos públicos, nem consentir em sua casa algum divertimento, ainda

[DIVERSÃO] 67

Page 35: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Os termos equipamento social e equipamento público também são bastan-te utilizados, especialmente na área do urbanismo e em documentos administrativosde órgãos públicos e prefeituras, tais como os planos diretores, para designar equipa-mentos urbanos em geral, constituídos para atender à população e suas diferentesnecessidades (lazer, educação, saúde, transporte, etc.).

Na publicação Cadernos de Lazer l (1977) organizada pelo SESC de SãoPaulo, encontramos uma espécie de apêndice que se intitula "Bibliografia Básicade Lazer (Europa e Estados Unidos)". Nessa compilação encontramos uma peque-na lista de publicações ligadas ao tema" Habitat e Equipamento", todas da décadade 1960 e 1970, sendo que a maioria delas refere-se a publicações francesas e umadelas é norte-americana. Entre os títulos franceses encontramos a palavra équi-pementou équipement culturel

A partir das reflexões de diversos autores e da produção teórica que começa a serveiculada no Brasil, a temática dos equipamentos ganha destaque, especialmente, naobra dos sociólogos Renato Requixa e Luiz Octávio de Lima Camargo, que dividem osequipamentos de lazer em dois grupos principais: os específicos e os não-específicos.

Os equipamentos específicos seriam aqueles construídos com a finalidade deabrigar atividades e programas de lazer. Em relação aos equipamentos específicos, ébastante aceita entre pesquisadores e profissionais brasileiros, para fins de estudo eplanejamento, a classificação proposta por Requixa (1980) e por Camargo (1979),que consideram três critérios básicos para nomear os diferentes equipamentos espe-cíficos de lazer. Os critérios que dão base a essa classificação são: dimensão física doequipamento, população atendida no equipamento e interesses culturais privilegia-dos no equipamento. Os autores consideraram a classificação dos interesses cultu-rais apresentada por Joffre Dumazedier (1980).

Com base nisso, Requixa (1980) apresenta três modelos de equipamento: omicroequipamento especializado, o equipamento médio de polivalência dirigida e omacroequipamento polivalente. Sobre esses modelos de análise podem ser operadasvariações entre os critérios, resultando em outros modelos de equipamento, de acor-do com as especificidades concretas e objetivas de cada local.

Vejamos cada um dos modelos em separado. O microequipamento especializadoseria um equipamento de pequenas dimensões, capaz de atender uma populaçãorestrita, sendo voltado para interesses bastante específicos do lazer. Os microequipa-mentos, em geral, distribuem-se por toda a cidade e são destinados às atividades delazer diárias das pessoas. O equipamento médio de polivalência dirigida seria umequipamento de dimensões maiores, capaz de atender a uma população maior, vol-tando-se para interesses mais variados. É um tipo de equipamento menos comumem relação ao microespecializado, frequentado durante a semana e também nos fins

70 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

de semana. Por sua vez, o macroequipamento polivalente caracteriza-se como umequipamento de grandes dimensões, adequado para receber um grande número depessoas, com amplas áreas verdes, que oferece a possibilidade de vivência dos diver-sos interesses do lazer. Esse tipo de equipamento tem seu pico de uso nos fins desemana e deve estar situado em pontos estratégicos da cidade, de fácil acesso à popu-lação, uma vez que eles não existem em grande número.

Como tratado anteriormente, trata-se de três modelos ou instrumentos de aná-lise. À medida que observamos um equipamento na realidade concreta, podem ocor-rer variações nas suas características, de modo que encontremos, por exemplo, ummicroequipamento de polivalência dirigida.

Um quarto tipo de equipamento apresentado pelos autores é o chamado equi-pamento de turismo social, cuja finalidade seria o atendimento de turistas sem re-cursos. Nessa categoria se encaixam os campings, as colónias de férias e similares.Historicamente, a existência desse tipo de equipamento talvez não seja tão comumno Brasil quanto nos países da Europa, porém de algum tempo para cá, com a cons-tituição do turismo como campo de estudos e pesquisas, e, conseqiientemente, coma demanda de políticas para a área, alguns exemplos de equipamento de turismosocial começam a surgir no cenário do turismo no Brasil.

O outro grupo de equipamentos de lazer a que se referem os dois sociólogos éconstituído pelos equipamentos não-específicos, que seriam aqueles que original-mente não foram construídos com essa finalidade, porém acabam se configurandocomo tais, em razão de determinadas circunstâncias. Requixa, Camargo e tambémMarcellino (1983) indicam a casa, o bar, a rua e a escola como exemplos de equipa-mentos não-específicos. Considerando que, na sua origem, esses espaços eram res-pectivamente destinados à moradia, ao comércio, à circulação e à educação formal,pode-se dizer que o processo de urbanização e a constituição de uma sociedade ur-bana contribuíram para que esses espaços passassem a figurar como locais propíciospara que o lazer acontecesse.

Com relação a casa, ao lar, é possível observar situações bastante contrastantes:a casa, de fato, acaba sendo, em muitos casos, o local onde as pessoas mais vivenciamo lazer, ainda que as razões para isso estejam ligadas à dificuldade de acesso aosequipamentos específicos e ainda que o lazer dessas pessoas se resuma à televisão,por exemplo. Numa situação extremamente oposta, a casa é deliberadamente provi-da de uma rede própria de equipamentos de lazer para que os habitantes não preci-sem sair dela em busca de satisfação. É o caso dos condomínios fechados de altopadrão, que têm se proliferado de algumas décadas para cá, em que as casas contamcom uma infra-estrutura em termos de equipamentos que favorece a permanênciadas pessoas no ambiente do lar.

[EQUIPAMENTO DE LAZER] 71

Page 36: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

O bar, para além da sua função de comércio e abastecimento, passa a ser umlocal de encontro, de convívio e também de veiculação de produções culturais, umavez que há um setor económico organizado em torno da produção e do consumo decultura. Nessa mesma lógica e considerando a atual valorização exacerbada do con-sumo de modo geral, os shopping centers também começam a figurar como equipa-mentos de lazer, abrigando, inclusive, salas de cinema, teatros e outros tantos equipa-mentos menores dentro deles.

Por fim, a rua, originalmente concebida como espaço de passagem e circula-ção, e a escola, como lugar da educação formal, são, eventualmente, usadas como

equipamentos de lazer nos fins de semana ou nos períodos de férias. Vale lembrarque nem sempre isso se dá em razão de um planejamento, senão em virtude da difi-culdade de acesso das pessoas aos equipamentos específicos. A caracterização darua como equipamento de lazer, por exemplo, não deixa de ser uma questão contro-versa para o Poder Público, uma vez que nas grandes cidades existem cada vez me-nos espaços públicos vazios, há problemas de segurança e de transporte, e a rua,muitas vezes, é o lugar que "sobra", a única opção de equipamento.

Os equipamentos de lazer fazem parte do desenho da cidade moderna, isto é,são formas urbanas concretas sobre as quais operam forças de ordem económica epolítica. Dessa maneira, ao mapear uma cidade e os equipamentos de lazer que nela

existem, contrastes urbanos diversos se fazem claros aos nossos olhos: áreas nas quaisos equipamentos são abundantes, variados e bem conservados e áreas nas quais elessão raros e malconservados, áreas de fácil acesso e áreas de difícil acesso, equipa-mentos superlotados e equipamentos subutilizados. Enfim, há vários contrastes pos-síveis de ser percebidos e que revelam que: 1) a lógica do capital se estende tambémsobre a distribuição dos equipamentos urbanos em geral, inclusive os de lazer, ouseja, a especulação imobiliária é, ao mesmo tempo, resultado e contribuinte dos dese-quilíbrios espaciais gerados em vários setores; 2) a rede urbana de equipamentos delazer opera estreitamente ligada à dinâmica das outras redes de equipamentos, de trans-porte, de habitação, etc., o que deve ser levado em conta pela Administração Pública aodesenvolver o planejamento urbano.

A temática dos equipamentos de lazer continua sendo objeto de estudos e pes-quisas na área do lazer, exigindo, inclusive, contribuições de diferentes campos doconhecimento, tais como a geografia, a arquitetura, o urbanismo, a sociologia, a edu-cação e o turismo. Nos eventos académicos da área, tem sido comum a constituiçãode mesas temáticas em torno do eixo lazer e espaço, onde se inserem os equipamen-tos como um dos subtemas.

Ana De Pellegrin

72 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

BibliografiaBIBLIOGRAFIA básica de lazer (Europa e Estados Unidos). Cadernos de Lazer l, São Paulo: Brasili-

ense/SESC, 1977, p. 60-64.

CAMARGO, Luiz Octávio de Lima. Recreação pública. Cadernos de Lazer 4. São Paulo: SESC, 1979,p. 29-36.

CAMARGO, Luiz Octávio de Lima. O que é lazer. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DE PELLEGRIN.Ana. Os contrastes do ambiente urbano: espaço vazio e espaço de lazer. Disserta-

ção (Mestrado). Campinas: Unicamp, 1999.

DUMAZEDIER, Joffre. Valores e conteúdos culturais do lazer. São Paulo: SESC, 1980.

MARCELLINO, Nelson Carvalho. Lazer e humanização. Campinas: Papirus, 1983.

REQUIXA, Renato. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de /azer.São Paulo: SESC, 1980.

ESP AÇO DE LAZER

Termo genérico que diz respeito aos lugares em que se desenvolvem ações, ati-vidades, projetos e programas de lazer de modo geral. Em contexto restrito, é possívelencontrar a expressão espaço de lazer sendo usada para designar um lugar específi-co ou para caracterizar determinado equipamento. Do ponto de vista mais amplo,espaço de lazer refere-se a um dos aspectos de uma política de lazer. Diz respeito acomo se organizam os diferentes equipamentos em uma cidade, como são distri-buídos, que tipo de possibilidades oferecem. Refere-se, também, aos espaços po-tenciais (vazios urbanos e áreas verdes, por exemplo), aqueles que podem vir atransformar-se concretamente em equipamento de lazer. Em suma, a expressãoespaço de lazer diz respeito a toda a rede de equipamentos de lazer, vazios urbanos

e áreas verdes de uma cidade.

A exemplo do que ocorre com a temática dos equipamentos de lazer, o temaespaço de lazer também começa a ser tratado pelos estudiosos e pesquisadores daárea em estreita vinculação com as políticas de lazer e com o planejamento do lazere, claro, com os próprios equipamentos de lazer. Seja em políticas ou em planejamen-to, os aspectos espaço, tempo, atividade, animação, equipamento têm sido aborda-dos como pontos fundamentais. Dessa forma, alguns dos autores que se dedicam àtemática do espaço de lazer são os mesmos que se dedicam às políticas e ao planeja-mento; as questões relativas ao espaço aparecem em maior ou menor densidade deacordo com a formação, com a especificidade e com os interesses de cada autor. Dentreos autores que em algum momento abordaram as questões relativas ao espaço de lazerde forma direta ou indireta, destacamos Joffre Dumazedier, Renato Requixa, MarleneYurgel, Thema Patlajan, Ethel Bauzer Medeiros, António Carlos Bramante, Nelson Car-

alho Marcellino, Heloísa Turini Bruhns.

[ESPAÇO DE LAZER] 73

Page 37: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Vale observar que para se falar de espaço de lazer é necessária uma base teóri-ca cujas referências vêm de vários campos do conhecimento, como a geografia, aarquitetura, a sociologia, que são áreas que lidam com o tema do espaço de modomais geral, de um panorama mais amplo.

Vários arquitetos e urbanistas chegaram a incluir o espaço de lazer como umponto específico do planejamento urbano, ainda que baseados numa visão funcio-nalista, como é o caso da abordagem de Lê Corbusier, na famosa Carta de Atenas(1993). Talvez o mais importante tenha sido o fato de o tema do espaço de lazer terpassado a merecer cada vez mais destaque no âmbito das políticas públicas urbanas.O espaço de lazer possui importância mesmo por se caracterizar como espaço deencontro, de convívio, do encontro com o "novo" e com o diferente, lugar de práticasculturais, de criação, de transformação e de vivências diversas, no que diz respeito avalores, conhecimentos e experiências.

A organização espacial de uma cidade se faz sob relações de poder e controle,ou, em outras palavras, sob forças económicas e políticas que agem em diferentescorrelações, dependendo do momento, fazendo com que o ambiente urbano adquiradeterminados contornos.

O espaço em que vivemos hoje não pode mais ser chamado simplesmente de"natureza" (como se esse termo lhe conferisse um sentido de neutralidade); o espaçoem que vivemos é social, é político, é económico, uma vez que as relações de poder ede controle que se estabelecem sobre ele acabam determinando não apenas o dese-nho, mas também o uso que se faz dele.

Se o espaço de modo geral tem significado político, essa dimensão tambémestá presente no espaço de lazer. As relações de poder que se estabelecem em tornodele e sobre ele determinam, por um lado, conforme já dissemos, como é o uso que sefaz desse espaço e como ele está organizado. Por outro lado, o uso do espaço e a ma-neira como ele está organizado também vão determinar certas relações na sociedadecircunscrita a ele.

Se concordamos com Milton Santos (1987) quando diz que cada cidadão pos-sui um "lugar socioeconômico", que lhe dá mais ou menos possibilidades de acessoaos bens e serviços da rede urbana, fica fácil perceber que o espaço de lazer estáarticulado com as relações de poder, de controle e de hegemonia. A tensão entre pú-blico e privado interfere, necessariamente, no trato com o espaço urbano e, conse-quentemente, no trato com o espaço de lazer. Nesse sentido, o planejamento urbanosofre efeitos da lógica do mercado e da especulação imobiliária, como denuncia ogeógrafo: as áreas ricas, as áreas fluidas, não admitem planejamento porque o mer-cado tem mais força que o Estado.

74 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

Uma vez que o espaço está intimamente ligado à política, parece oportuno dei-xar claro que o trato com o espaço de lazer na elaboração e na implementação deuma política pública dependerá necessariamente dos valores com os quais se traba-lha, das concepções de homem, de mundo e de sociedade que se tem. Nesse sentido, énecessário compreender as conexões históricas e ideológicas do espaço de lazer como espaço de modo geral e com a sociedade. Para este desafio encontramos contribui-ções valiosas em autores da filosofia, da geografia, da sociologia, da antropologia edo urbanismo.

Muitos autores podem contribuir de maneira especial para a construção deum corpo de conhecimentos e de uma base teórica que nos permitam visualizar es-sas conexões do espaço. Dentre eles, destacamos aqui apenas alguns, a título de su-gestão, para futuras leituras e/ou aprofundamentos. São eles: Henri Lefebvre, MiltonSantos, José Guilherme Cantor Magnani e Jean-Paul Lacaze.

A julgar pelos trabalhos que vêm sendo publicados e apresentados em eventosacadémicos da área do lazer, pode-se dizer que já existe um eixo constituído em tor-no da temática lazer e espaço. Esse eixo temático tem exigido e propiciado debatesentre pesquisadores oriundos de diferentes áreas e com formações diversificadas, oque, do ponto de vista das políticas públicas, é extremamente positivo.

Ana De Pellegrin

BibliografiaLÊ CORBUSIER. A Carta de Atenas. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1993.

LACAZE, Jean-Paul. Os métodos do urbanismo. Campinas: Papirus, 1993.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984.

e Torres, Lílian de Lucca. Na metrópole. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1996.

MOREIRA, Ruy. O que é geografia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

REVISTA CARAMELO, n. 7, Grémio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP, 1994, p. 61 -71.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Hucitec, 1987.

WERNECK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Helder Ferreira. Aprofundamento em lazer nos currí-culos dos cursos de graduação em educação física no Brasil. Coletânea. n. 12. Encontro Nacional deRecreação e Lazer, Balneário Camboriú, Univali, 2000, p. 92-103.

ESPETÁCULO

Ato ou manifestação que chama a atenção. Espetáculo é conceito que se identifica nacontemporaneidade em diversas áreas da vida em sociedade. Além do universo das

[ESPETÁCULO] 75

Page 38: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

artes, a propaganda, a publicidade, o jornalismo, o marketing, as relações públicas, aeducação e a política recorrem ao espetáculo e a seus recursos para se consolidar.Assim, espetáculo pode assumir caráter de entretenimento, lazer, formação, educa-ção, ideologia.

Muito antes do advento dos meios de comunicação de massa e das novas tec-nologias, o espetáculo já ocupava importante espaço na vida social e cultural de de-terminadas sociedades.

A ideia de espetáculo como fenómeno feito por pessoal preparado (atores, dan-çarinos, mímicos), que acontece em um local específico (o teatro), para um público

que vai até lá para assistir a ele (a plateia), surgiu, no Ocidente, da Grécia Antiga,embora em outras culturas, como a chinesa e a egípcia, também se explorasse o es-petáculo milenarmente.

Na Grécia Antiga, a noção de espetáculo reunia o que na Idade Moderna seriaseparado em dança, teatro, mímica, música, ópera, circo. Esse complexo ritual -

musiché - tinha origem religiosa no culto ao deus Dionísio (ou Baco para os roma-

nos, posteriormente) com o intuito de homenagear para obter uma boa colheita ecelebrar para agradecer pela boa safra.

O espetáculo grego assumia a importante tarefa de formar a plateia, veiculandomensagens, valores para públicos de milhares de pessoas. A tragédia grega possuía

finalidade moral e ideológica, recorrendo, para isso, aos mitos da tradição oral. Hou-

ve época em que o Estado grego tomou para si a organização do teatro, instituindoconcursos entre os poetas dramáticos. Desses, eternizaram-se especialmente Sófo-cles, Esquilo e Eurípedes. O espetáculo se popularizou.

Os romanos não geraram trágicos como os gregos, mas espalharam casas deespetáculos por todo seu império - além do território hoje conhecido como Itália,pela Gália, Ibéria, África do Norte, Danúbio. Os romanos também aperfeiçoaram ecriaram máquinas e andaimes para obter recursos especiais para a cena.

Na Idade Média, após a queda de Roma, o teatro "pagão" foi proibido, pois oespetáculo com intenção artística ou estética não foi considerado adequado. No seulugar, no entanto, a Igreja utilizou o drama litúrgico, os "autos", para catequizar. No-

vamente, o espetáculo foi utilizado como recurso para veiculação de determinadasmensagens, geralmente ligadas ao calendário litúrgico.

Com o Renascimento italiano, a inspiração na cultura greco-romana voltou àtona. Os espetáculos não-religiosos foram valorizados nos círculos aristocráticos. Nouniverso da dança, a construção da noção de espetáculo levou séculos para se consoli-dar. No Renascimento - especialmente na Itália e na França -, notabilizaram-se os ba-les das cortes, peças de longa duração dançadas e vistas por nobres vestidos em ricos

figurinos. Na França, o jovem Louis XIV se notabilizou como dançarino e assumiu comoalcunha o título de um dos personagens por ele levado à cena: o "Rói Solei!" (Rei Sol). Jámais velho, o rei se afastou dos palcos e foi seguido pelo resto da corte em um movi-mento que marcou o início da profissionalização da dança francesa: os nobres passa-ram a assistir aos espetáculos, agora não mais dançados por aristocratas.

No século XVIII, o mestre de ballet Jean-Georges Noverre se afastou das dan-ças cortesãs e buscou inspiração no gestual do cotidiano para compor os célebresballets d'action. Sob inspiração dos ares da Revolução Francesa que se preparava,aboliu os trajes pesados, pomposos dos nobres e vestiu os dançarinos com roupas

que facilitavam e valorizavam a movimentação.

Ainda no universo das artes cénicas, a partir do século XVIII, a ópera se tornoudiversão popular, especialmente na Itália, na Alemanha e na França. A história daópera, no entanto, começou também na Grécia Antiga, no teatro. "As peças de Esqui-lo, Sófocles e Eurípedes permanecem como alicerces do teatro no Ocidente. Destarica fonte da primitiva tragédia grega, desenvolveu-se a forma de arte por nós deno-

minada ópera." (Di GAETANI, 1988, p. 21).

O século XIX foi a época áurea - sob inspiração romântica - do ballet clássicoe da ópera. O ballet do século XIX teve como grande criador o francês radicado naRússia Marius Petipa. A ópera teve como mais proeminentes representantes Giu-seppe Verdi e Richard Wagner. Na metade do século XIX e princípio do século XX,desenvolveram-se formas mais simples de ópera cómica em vários países: eram asoperetas. Nesse tipo de teatro musical, o texto ou roteiro é mais importante que amúsica. Nasceram daí géneros como os musicais americanos da Broadway, inspira-ção para os musicais do cinema.

O final do século XIX e o início do XX marcaram a busca por outras formas deexpressão cénica por meio do corpo em movimento. Loie Fuller fez experimentoscom a luz em cena. Suas performances dançadas marcaram a busca de movimentodistinto daquele que o vocabulário do ballet clássico proporcionava. Isadora Dun-can, Bronislawa Nijinska, depois Martha Graham e Mary Wigman, de diferentes for-mas e com distinas intenções, buscaram dançar outras danças, com corpos forma-dos de modo diferente e resultando em espetáculos mais próximos do corpo urbano,industrializado contemporâneo. A americana Isadora Duncan buscou dançar uma"dança livre", livremente inspirada na Grécia Antiga, sem o virtuosismo do métododo ballet, com túnicas soltas no corpo e pés descalços. A alemã Mary Wigman foiexpoente da dança expressionista alemã. No período entre a Primeira e a SegundaGuerras Mundiais, dançou mostrando dor, pessimismo.

A noção de espetáculo e a sua relação com o entretenimento são questões queocupam pensadores da área. No universo do teatro, uma questão sempre esteve

76 [DICIONÁRIO CRfnco DO LAZER] [ESPETÁCULO] 77

Page 39: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

presente: Deve ou não o trabalho cénico formar/educar o público? O teatro deveassumir uma tarefa pedagógica, política, conscientizadora?

O dramaturgo Bertold Brecht foi um dos autores que questionou o fazer teatrale sua tarefa na sociedade. Suas histórias não visavam impressionar, provocar emo-

ções, catarse e sim trazer o espectador à razão. Seu trabalho foi revolucionário aoquestionar, com seu método, a tradição teatral aristotélica que tinha corno objetivo,através do espetáculo, levar o público à catarse, à purgação e ao alívio, por meio daidentificação com os mitos.

No Brasil, também no século XX, um dramaturgo buscou outra tarefa para oteatro que não o entretenimento: Augusto Boal estabeleceu seu teatro do oprimido,buscando fazer o público participar da cena, colocar-se. Com intenção completa-mente diferente, Nelson Rodrigues compôs uma obra que ele mesmo declarou ser"desagradável", sem objetivo de "agradar".

Na contemporaneidade, espetáculo tornou-se sinónimo de representaçãoteatral e de toda a ação que acontece no espaço da cena. Isso implica em grausvariados de profissionalização dos atuantes e dos que trabalham na produção erealização de um espetáculo. No senso comum, o espetáculo tornou-se metáforapara tudo o que chama a atenção, atrai e prende o olhar; cena ridícula ou escanda-losa; o que dá muito na vista; ostentoso, pomposo, espalhafatoso e, paradoxalmen-te, algo considerado ótimo ou excelente. Assim, o conceito pode ser empregado tantoem sentido pejorativo quanto positivo. Na mídia, programas de televisão e cader-nos culturais em jornais se ocupam com uma programação dita "cultural", divul-gando a lista de espetáculos em cartaz. Espetáculo, nesse caso, assume ampla defi-nição, abarcando apresentações musicais, encenações teatrais, execuções decoreografias, performances e tudo o que possa ocorrer sobre um palco. Nesse sen-tido, espetáculo assume claramente contornos de entretenimento.

A experiência do espetáculo como opção de lazer na sociedade contemporâneaestá diretamente ligada ao consumo. Sob a ótica da Indústria Cultural, prevalece o es-

petáculo da comercialização das artes. DVDs com clipes de cantores, minúsculas salasde cinema em shopping centers, lojas de museus e compras de ingressos pela Internetsão alguns exemplos que compõem o atual cenário do consumo do espetáculo. Mesmoo jornalismo, com sua tarefa ligada à informação, vem adotando o formato de espeta-cularização da notícia em diversos meios, especialmente os eletrônicos.

Com isso, o lazer-espetáculo é cada vez mais vivido em territórios fechados.Já os espaços públicos, a rua, a praia, a praça contam hoje mais com espetáculosproduzidos pelas prefeituras e empresas especializadas em grandes eventos do quecom manifestações espontâneas de festividade como o carnaval de rua da primeirametade do século XX. O imaginário rural também faz parte da espetacularização

78 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

pós-moderna, até rodeios já acontecem em espaços híbridos entre a cidade e o cam-po, como pode ser observado nas periferias das grandes centros urbanos ou nas ci-

dades de forte influência rural.

O espetáculo também é uma questão importante nos estudos das ciências so-ciais e das humanidades em geral. Guy Debord, um dos grandes nomes das teoriassociológicas do espetáculo, considera que a sociedade modernizada chegou a umestágio de espetáculo integrado, caracterizada pelo efeito combinado de aspectos pós-

industriais como a renovação tecnológica incessante, a fusão entre economia e Esta-

do e o presente perpétuo.

Para Debord, o movimento de inovação ideológica não é recente, é fruto do

inundo capitalista e está exponencialmente presente no imaginário industrial e pós-

industrial. Na sociedade do espetáculo, a mercadoria contempla a si mesma nummundo que ela própria cria. O espetáculo produzido pelo capitalismo, fundamenta-

do na mercantilização de tudo e no fetichismo generalizado, abre caminho para suateoria crítica da sociedade moderna.

Nesse contexto, o espetáculo é uma relação social mediada por imagens, resul-tado e projeto do capitalismo. A atual ideologia da democracia estaria, portanto, con-dicionada à liberdade ditatorial do mercado, temperada pelo reconhecimento dos

direitos do consumidor/espectador. Debord defende a hipótese de que o espetáculonão se esgota na mídia, mas está diretamente relacionado ao mundo da produção. Nacontemporaneidade, está explícito nas mais diversas situações, desde o merchandi-

sz«£teatralizado dentro de um supermercado até os grandes shows de cantores po-

pulares nas praias. Apesar da visão crítica acerca do espetáculo na contemporanei-dade, Debord busca na vida cotidiana a base da contestação social.

Denise da Costa Oliveira Siqueira

Ricardo Ferreira Freitas

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[ESPETÁCULO] 79

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FEBVRE,Michèle. Danse contemporaine et théâtralité. Paris: Chiron, 1995.

ESPORTE

Existem duas tendências não necessariamente antagónicas quando nos referimos à

definição das origens do esporte. Em uma delas, acredita-se que tal manifestaçãocultural já existia desde a Antiguidade, sendo identificada em jogos que eram prati-cados por povos diversos (chineses, egípcios, gregos, romanos, dentre outros) nodecorrer da História. Na outra, procura-se entendê-lo como um fenómeno damodernidade que, mesmo apresentando similaridades técnicas com antigas prá-ticas corporais, possui sentidos e significados bastante diferenciados daqueles jo-

gos "pré-esportivos".

A despeito das diferenças de concepção, não tíá como negar que desde o finaldo século XVIII essa manifestação cultural apresenta características marcantes eobserváveis até os dias de hoje: a) se organiza em forma de clubes.federações, confe-derações e outras entidades locais, nacionais e internacionais; b) possui um calendá-

rio próprio, já não mais sendo praticada estritamente de acordo com outros tempossociais; c) envolve um corpo técnico especializado cada vez maior (treinadores, pre-paradores físicos, dirigentes, gestores,psicólogos, médicos, dentre muitos outros); d)gera um enorme mercado ao seu redor, que extrapola até mesmo o que a princípiopoderia ser considerado específico da prática esportiva.

É importante entender o processo de organização do "esporte moderno" paraque se possa compreender sua importância no século XX, notadamente como umdos principais produtos da indústria cultural, um dos mais procurados e acessadosnos momentos de lazer. Não é equivocado afirmar que o esporte foi uma das maisinfluentes manifestações culturais do século passado.

No século XVIII, originou-se dos jogos populares apreendidos pelas publicschools inglesas (escolas responsáveis por formar os filhos dos membros da bur-guesia). Tais jogos tiveram seus sentidos completamente modificados, passando aser concebidos como estratégia "educacional", de controle corporal e de prepara-ção de lideranças.

Ao mesmo tempo, entabularam-se iniciativas de controle das diversões das ca-madas populares, cuja perspectiva era o forjar de uma nova cultura (articulação deconjunto de valores e de sensibilidades) necessária à implantação do modelo fabril

80 [DICIONÁRIO CRÍTICO no LAZER]

de produção. Para tal, consolidava-se uma aliança entre Estado, poder jurídico e reli-gião, que passam a condenar e perseguir as práticas populares, dentre as quais osantigos jogos (obviamente não sem resistência daquelas camadas).

O esporte recém-sistematizado passa, então, a ser oferecido como uma diver-são "apropriada" à população, como forma de substituição dos antigos jogos popula-res condenados. A mesma população que vira a sua possibilidade de jogar subtraídae perseguida passa a ter o "direito" de acesso ao espetáculo esportivo, fundamental-mente concebido como consumo passivo, tanto no sentido da prática em si (não sepodia jogar, somente assistir), quanto no sentido de interferir no desenvolvimento

do campo que se gestava (não se tinha a possibilidade de participar da direção deiniciativas e entidades representativas).

No século XIX, o esporte rapidamente se difundiu por vários países, dialogandocom as culturas locais. Observam-se ressignificações nos seus sentidos, em razão dastensões comuns que se estabelecem no âmbito dos encontros culturais, mas pode-se ob-servar a manutenção de muitas de suas características originais. Esteve inserido nos pri-mórdios do desenvolvimento da cultura de massas e da sociedade dos espetáculos, ade-quando-se às peculiaridades culturais da sociedade ocidental das transições do séculoXIX-XX, período denominado de Belle Époque em diversas localidades.

Nesse momento, o esporte já era concebido como um estilo de vida pelas elites,um sinal de status e distinção. O acesso aos clubes era permitido somente para pou-cos. Ressalte-se que até esse momento ainda não estava definitivamente estabelecidauma relação entre o esporte e o exercício físico. Aliás, durante muito tempo, algunsaté mesmo compreendiam a intensa movimentação física como prejudicial à saúde.Na Europa, há similaridades entre o crescimento das preocupações com a "saúdecorporal" e o desenvolvimento do "esporte moderno" (basta lembrar a criação dosmétodos ginásticos, já observáveis nos primeiros anos do século XIX), mas em ou-tros países tal processo se deu em momentos posteriores (como no caso do Brasil).

Não por acaso, em muitos países, inclusive no nosso, o turfe esteve entre osprimeiros esportes a se organizarem. O turfe era bastante adequado ao novo modelode sociabilidade que estava em desenvolvimento. Os hipódromos, instalações para aprática das corridas de cavalos, permitem que as pessoas assistam às apresentaçõese sejam vistas, podendo ser divididas as arquibancadas de acordo com o poderioeconómico. Era também adequado por estar mais próximo de uma realidade aindamais rural do que urbana. No mais, quem faz a atividade física é um animal, condu-zido por um homem normalmente oriundo das camadas populares (o jóquei).

O acirrar da relação entre o esporte e a atividade física se dá com o aumentodas preocupações com a saneabilidade das cidades e com a saúde da população,que se desenvolveram em muitos países dados os desdobramentos do avanço da

[ESPORTE] 81

Page 41: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

industrialização e da rápida urbanização. Era necessário estabelecer novos parâ-metros de convivência que permitissem às nações rumar em "direção ao progres-so". Nesse sentido, cada vez mais se fazem necessárias estratégias de controle cor-poral e de preparação de um "corpo saudável" para a condução da nova perspectivasocioeconômica.

O esporte passa também a ser concebido como estratégia de formação corpo-ral; uma boa ferramenta para a preparação de corpos musculosos (que passaram aser considerados como padrões de "saúde"), bem como para a difusão desse modelo.Um novo modus vivendis estava sendo construído e o esporte nele se inseria. No Bra-sil, o remo é exemplar dessa mudança. Já não é mais um animal que corre, como noturfe, mas sim um homem que conduz o barco com seus próprios braços. Nas corri-das de cavalos, o jóquei deve ser fraco e pequeno, enquanto no remo os atletas eramfortes e "saudáveis", constantemente retratados em posições que valorizassem seufísico. O remo era o esporte do mar, da modernidade, do indivíduo audaz que enfren-ta as ondas bravias.

A partir do remo, no Brasil, os esportes em geral (na época o ciclismo, o atletismoe natação) vão paulatinamente perdendo a característica de jogo de azar (uma influên-cia do turfe) e ganhando cada vez mais um caráter de escola de virtudes e caráter.

É importante perceber que, desde o início da organização do "campo esportivo"(pois estamos falando não de uma prática que se encerra em si; além de possuircerta autonomia, o objeto tem influências para além de suas especificidades), esta-vam concebidas e implementadas estratégias de negócios. As elites, responsáveispela condução do campo, obtinham lucros com as vendas de ingressos, com as apos-tas e loterias, com a venda de "objetos esportivos". Ganhava-se dinheiro das maisdiversas formas. A imprensa também lucrava, ao vender espaços para a propagandados clubes e ao aumentar sua vendagem em dias próximos às competições.

Com a vinculação do esporte à"saúde" (uma relação equivocadamente linear quepermanece até os dias de hoje), muitos outros produtos passam a ser vendidos: tónicos,fortificantes, extratos. Cada vez mais o fenómeno é identificado como uma "forma deviver", adotada pelos "modernos". No vestuário, por exemplo, vemos surgir e se popu-larizar o paletó saco, o ténis, o short, todos produtos decorrentes da prática esportiva. Oesporte lança modas e influencia a vida das pessoas por todo o mundo.

O mercado ao redor do campo não só faz uso das imagens esportivas para ven-der suas mercadorias, como também, nesse processo, ajuda a reforçar sentidos e sig-nificados originariamente construídos. Hoje o esporte é apontado pelos economistascomo um dos maiores produtos de negócios e presencia-se a rápida profissionaliza-ção de sua administração. Percebe-se o auge de um longo processo.

82 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

Por certo, por tais características, o esporte também foi e continua sendo utili-zado diversas vezes por regimes políticos e administrações governamentais comoforma de investimento para encaminhar suas propostas de intervenção social e fun-damentalmente como forma de propaganda de uma suposta eficácia administrativa.Isso é notável em ações de governos ditatoriais, sendo perceptível nas Copas do Mun-do de Futebol e nos Jogos Olímpicos, festivais mundiais que compõem uma das face-tas mais conhecidas do fenómeno esportivo.

Não se deve negligenciar o fato de que o esporte é um dos mais potentes ele-mentos de desenvolvimento de identidade nacional. Basta lembrar que há mais paí-ses filiados à FIFA do que à ONU. Além disso, vale a pena atentar para o relaciona-mento constante do fenómeno esportivo com outras linguagens. O objeto é tematizadoem filmes, em escritos literários de diferentes naturezas, em letras de músicas, emobras de artistas plásticos, em peças de teatro.

É importante perceber que, dado o seu valor económico e a sua adequação aosnovos valores culturais em voga (dimensões que devem ser compreendidas de formaarticulada), o esporte é uma das práticas culturais mais difundidas no século XX. Asmaiores audiências televisivas mundiais estão exatamente constituídas ao redor dasCopas do Mundo de Futebol e dos Jogos Olímpicos. Sem sombra de dúvida, pode-seafirmar que é a manifestação que maior número de pessoas consegue mobilizarão seuredor, tendo grande interferência nos comportamentos, hábitos e costumes.

O esporte é uma das principais formas de lazer de grande parte da população, tendoo potencial de alcançar os mais diversos públicos: interessados em "aventuras", seja nanatureza (montanhismo) ou em espaços construídos (skate); envolvidos em atividadescom o caráter de espiritualização e/ou fuga do cotidiano (desde caminhadas até ativida-des físicas suaves como ioga, tai chi chuari); há os que gostam de esforços mais intensos(musculação, longas corridas); há os que preferem as lutas (caratê.judô) e aqueles quese envolvem com jogos coletivos, dentre os quais se destaca o futebol. De alguma formahá um interesse generalizado em algo ligado à prática esportiva, mesmo que seja pontu-al, por parte de mulheres e homens, crianças, adultos, idosos, ricos e pobres.

Quando entendemos o esporte como forma de lazer, alguns problepias sãonotáveis. Um deles, claro em nosso país, é a monocultura do futebol. Em muitasocasiões, os indivíduos são mesmo refratários a outras práticas. Obviamente isso searticula com o espaço privilegiado que ocupa nos meios de comunicação (jornais,televisão e rádio). O tempo de exibição do futebol supera em muito o de outros es-portes, sendo um desafio para o animador cultural ampliar as possibilidades de vi-vências esportivas de seu público-alvo.

Além disso, percebe-se um consumo pouco crítico do fenómeno esportivo.Alguns autores apontam que há uma mediação perigosa de supostos "especialistas"

[ESPORTE] 83

Page 42: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

(comentaristas, jornalistas), que acabam por obliterar uma percepção mais comple-ta e complexa, por parte do público, de todas as dimensões que estão envolvidas aoredor de uma manifestação somente supostamente ingénua. Há que se retirar o es-porte da compreensão de um entretenimento meramente ligado a um consumo des-percebido, concebendo-o como diversão eivada de representações que devem ser bemidentificadas pelo público.

Por certo tais dimensões acabam se articulando com o fato de o esporte sermais consumido pelas mídias do que praticado. Como profissionais de lazer, deverí-amos estar atentos à necessidade de estimular nosso público-alvo não só a assistir aoespetáculo esportivo, como também a vivenciar corporalmente suas possibilidadesmúltiplas de benefício e prazer.

Para tal, devemos estar atentos à própria distribuição de bens e equipamentosde esperte pelas cidades, normalmente restritas ao oferecimento de quadras. Há quese ampliar tais possibilidades, questionando as restrições e as compreensões de queexistiriam práticas adequadas a determinadas classes sociais. Cabe estarmos atentosà necessidade de contribuir para ampliar as vivências esportivas da população.

Por fim, vale estarmos atentos para que não venhamos a reproduzir nos mo-mentos de lazer a mesma lógica do "esporte de alto nível", em que a vitória a qual-quer custo adquire papel central, mesmo que nos discursos se afirme o oposto. Háque se trabalhar no sentido de descobrir e desenvolver entre nosso público-alvo acompreensão de que nos momentos de lazer a prática esportiva deve adquirir carac-terísticas próprias, não sendo simulacro de outros níveis.

Enfim, o esporte não se trata, como nunca se tratou, de uma ingénua diversão.É uma manifestação cultural poderosa, influente, que envolve emocionalmente umgrande número de pessoas e que hoje se apresenta como uma eficaz forma de negócios,capaz de mexer com sonhos e difundir ideias, comportamentos, atitudes.

Victor Andrade de Melo

_. Questões de sociologia. Rio de

Bibliografia

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Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 136-163.

ELIAS, Norbert. A busca da excitação: desporto e lazer no processo civilizacionaL Lisboa: Difel, 1992.

MELO, Victor Andrade de. Cidade Sportiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará,2001.

MELO, Victor Andrade. Esporte. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (Org.). Dicionário do século

XX: guerra e revoluções: eventos, ideias e instituições. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

84 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

EVENTOS

"São fatos e/ou acontecimentos estrategicamente, tendo na sua base de interesse opúblico a que se destina e os objetivos e resultados almejados" (CANTOU, 2002).

Nos tempos mais antigos, quando não havia televisão e outros meios de comu-nicação de massa, as pessoas buscavam as festas, quase sempre ligadas a motivosreligiosos, desde as comemorações litúrgicas, procissões, quermesses, até aquelas quepareciam - e na verdade eram - pagãs, mas que cumpriam uma função religiosa,como o carnaval. Em outras palavras, sair de casa sempre significou a busca de umlazer festivo, sendo as "festas" marcadas por características básicas: comemoraçãode uma data, excesso de bebidas, de sexo e, ainda, de certa forma, um certo caos.

No início da era industrial, o homem era educado para o trabalho, uma vez queo paradigma estabelecido visava à ocupação do tempo com tarefas que possihjlitas-sem de imediato o retorno financeiro. Considerada essa educação, as pessoas muitasvezes se reprimiam a participar de atividades puramente lúdicas, gerando um pre-conceito em relação a lazer e eventos.

Importante salientar que o homem, nessa fase, deixou por um tempo o seu ladofantasioso e festivo, acreditando que tais atos seriam para os loucos ou os desocupa-dos. O homem industrial, operário, empresário não tinha tempo para tais aventuras.Estava mais encantado com as máquinas que produzia em grande escala antes nãoimaginada, deslumbrado com as possibilidades de riqueza deixando que o seu espí-rito de celebrar, fantasiar, inerente a ele, fosse adormecendo. Adormecido, porém nãoexpulso de dentro do seu ser.

Posteriormente, com a fase pós-industrial, as festas começaram a perder a sualigação restrita com a religião e a tradição, guardando a feição de lazer. Passaram a sermais bem organizados, as atividades mais programadas e planejadas, e os excessos e ocaos mais controlados. Converteram-se em eventos, as quais, mesmo comemorandodatas religiosas, perderam parte e, às vezes, todo o sentido religioso.

Ou seja, a festa passa também a atender objetivos comerciais, promocionais,institucionais e outros, constituindo-se um instrumento de valor para organizações,empresas e pessoas como forma de atingir os mais diferentes fins.

Nessa reflexão histórica, percebemos que os eventos trafegam ludicamente porépocas diversas da cultura humana, refletindo sempre um momento social, trazendocom eles uma nova maneira de apreensão do tempo e a possibilidade de aquisição denovas linguagens.

O evento vem ampliar as possibilidades do entretenimento, das atividades lú-dicas que, por diversos e aliados métodos, tendem para a integração social. Serve de

[EVENTOS] 85

Page 43: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

elo entre o indivíduo e a realidade interior e entre a relação do indivíduo com a reali-dade externa ou compartilhada. Nesse aspecto, percebemos também que os eventosorganizados sempre foram verdadeiros panos de fundo para o mundo da magia, dafantasia, do novo, do surpreendente.

Como representações sociais, os eventos são imagens que condensam um con-

junto de significados; são sistemas de referência que permitem interpretar o que nos

acontece e servem para classificar circunstâncias, interpretar a realidade cotidiana,

o conhecimento social. Os eventos compostos pela bagagem cultural se expressam

por códigos, valores e ideologias que fazem uma interface entre o homem e a socie-

dade. Representam o resgate do homem festivo, fantasioso, que redescobriu o pra-

zer da celebração e da participação coletiva, substituindo todas as ferramentas,

indumentárias do seu dia-a-dia de trabalho pelo prazer, para utilizar esse momento da

fantasia e apresentar o que realmente gostaria de ser. O fato relevante é que as pessoas,

ao "se produzirem" para ir a um evento, possibilita a si mesmas o direito à cartase, àliberação e a vivenciar outros papéis.

Os eventos são inicialmente imaginados e, mais do que a descoberta, retratam

um sonho, um determinado deslumbre. Para além que dos motivos evocados pelos

participantes para justificar seus deslocamentos, fica claro o equivalente simbólicode um rito de passagem. Somente depois é que o evento é vivido. E em último lugar,

no retorno, ele é recontado, comentado, ilustrado por fotos, filmes ou souvenirs, ebrindes ganhos no encontro.

Essas representações sociais vividas por meio dos eventos, por se expressarem

através de sistemas cognitivos, têm uma lógica e uma linguagem particular e podem,

na realidade, ser estudadas e vistas sob essa ótica, apoiadas pelos vários comportamen-

tos e pelas relações sociais, que se estabelecem em configurações originais.

Nessas representações sociais programadas, vemos em jogo a ordenação, ahierarquização da própria estrutura social em que grupos modelam representações

deles próprios e dos outros, favorecendo a compreensão e o funcionamento atual

daquela sociedade. Nessa revisão histórica e teórica, o que se confirma é o poder

social dos eventos, pela identidade cultural, e, ao mesmo tempo, como interlocutores

do processo de mudança, pela possibilidade de articulações e manipulação dos valo-res socioculturais vigentes.

Pelo exposto, a participação em um evento exprime uma dimensão mais pes-

soal de ruptura em relação à vida habitual, sugerindo a ideia de uma passagem de

um estado mental ou social dado, a um outro, mais valorizado, e vivido como outro.Nesses ritos de passagem se incluem: a expectativa do encontro, a chegada e agrega-

ção ao grupo e aos efeitos residuais provocados no indivíduo, após sua participação.

86 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

Dessa maneira, considerando a vasta abrangência da relação eventos-lazer, as

festas assumem relevante papel, uma vez que representam uma ação coletiva muito

peculiar que compreende situações determinadas e refletem uma ordem social

momentânea:

- implica uma determinada estrutura social;

- envolve uma clientela específica;

- aparece como uma interrupção do tempo social;

- articula-se em torno de um objeto focal;

- trata-se de uma produção social que pode gerar vários produtos.

Além de ser visualizado como um produto de consumo, um evento deve ser

considerado estratégico pelo seu poder de comunicação e marketing, demandando

pesquisa, planejamento, organização, coordenação, controle, implantação e avalia-

ção que venha convalidar seus objetivos e a plena satisfação do seu público-alvo.

Os eventos pressupõem a presença do profissional ou de profissionais que irão

programar as atividades inclusive do lazer. O evento assim entendido passa a ser um

produto que deverá ser produzido adequadamente, levando em consideração es-

pecialmente seus objetivos e públicos.

Numa linguagem mais atual, considera-se um evento um conjunto de ativida-

des destinadas à otimização de ações profissionais em busca de resultados qualifica-

dos e quantificados com o público-alvo; seu organizador e profissional deve possuir,

além do conhecimento e habilidades essenciais de administração e gerência, a criati-

vidade para olhar velhos problemas sob novos ângulos e visão estratégica para bem

utilizar os instrumentos e ferramentas disponíveis para sua realização.

Assim, decorrente de um produto adequadamente concebido diante de um pro-

blema preestabelecido, aspectos organizacionais passam a desempenhar papel rele-

vante perante os aspectos de produção, instalação, realização e desmontagem.

Nessa questão, os profissionais de eventos, principalmente os de eventos di-

rigidos ao lazer, exercem um papel relevante na conduta dessa nova sociedade ain-

da em busca do lazer. Eventos culturais, educacionais, esportivos, lúdicos, recreati-

vos e de animação se tornam cada vez mais necessários para o desenvolvimento de

uma comunidade.

Durante a organização dos eventos, processam-se contratações, estabelecem-se

parcerias e, se necessário, terceirizações, especialmente quando se entende a necessida-

de de execução de atividades específicas no contexto do evento, que, por sua natureza,

requerem um tipo especial de habilidade, profissionalismo e conhecimento.

[EVENTOS] 87

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No planejamento das atividades de uma organização, as metas e os objetivosfundamentais para sua consecução são estabelecidos. O processo de controle medeo progresso rumo a essas metas e permite que os administradores descubram des-vios do plano a tempo de tomar medidas corretivas antes de ser tarde demais. Cadaevento tem uma particularidade própria e cabe ajustá-lo aos meios disponíveis àsua implantação.

Assim, os eventos vêm contribuir para uma maior participação do público epara a criação de um cenário de diversão cada vez mais criativo, em que os apelos e oenvolvimento do indivíduo na atividade sejam cada vez mais expressivos. Passam aser, então, considerados elementos de comunicação dirigida, aproximativa e interati-va em razão das estratégias por ele utilizadas.

Em resumo, o evento, sob o ponto de vista do lazer, poderá ser consideradocomo atividade promocional da imagem de uma localidade ou empresa e como ins-trumento e meio de comunicação aluando como estratégia de promoção e marke-ting de pessoas físicas e jurídicas. Os eventos permitem ampliar o consumo, a estabi-lidade dos níveis de emprego, diminuindo a sazonalidade e promovendo produtos eserviços locais, afetando e agilizando principalmente toda a cadeia produtiva local.

Antonia Mansa Canton

Referência

CANTON, Antonia Marisa. Eventos: Ferramenta de sustentação para as organizações do terceiro

setor. São Paulo: Roca, 2002.

FESTA

A festa tem sido estudada a partir de múltiplos interesses. Busca-se, a partir desseobjeto, compreender identidades nacionais, usos e costumes, hierarquias sociais,relações mercadológicas, práticas de encontro, formas de sociabilidade, culturasde grupos, modos de consumo, redes de relações sociais e económicas, dentre ou-tros aspectos.

Diversas áreas ou campos de conhecimento privilegiam este tema, como a an-tropologia, sociologia, lazer, educação e história. Entretanto, muitas vezes, o diálogoentre festa e lazer é realizado de forma indireta, não sendo o objetivo central. Revela-se, pois, um assunto secundário estudado não pela intencionalidade do pesqui-sador, mas dada a força com que o conteúdo lazer se manifesta na dinâmica festiva.Há exceções.

88 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

A abordagem deste assunto em estudos produzidos no campo do lazer.no Bra-sil, ainda é muito recente. Até o momento, são poucas as pesquisas que o privilegiambem como os pesquisadores. Entretanto, detectamos, nos últimos anos, um aumentonas pesquisas e publicações. A partir de um olhar sobre anais de encontros académi-cos bem como sobre trabalhos finais de programas de pós-graduação, o tema surgetimidamente como algo que fascina e encanta, dadas suas possibilidades. A festa évisualizada como manifestação cultural e espaço para a vivência do lazer. Por meiodela, ressalta Canclini (1983), é possível compreender o que há de transgressão, dereinvenção do cotidiano, o que transcende o controle social e se abre para o floresci-mento do desejo. A preponderância da resignação ou da emergência dos desejos de-pende das relações entre as forças repressivas e expressivas de cada sociedade.

Nos estudos do lazer, dada a característica transdisciplinar do campo, pesqui-sadores com formações diversas, como educadores - em destaque os com formaçãoespecífica em Educação Física -, sociólogos, economistas, etc, têm construído umreferencial teórico importante na tentativa de compreender a experiência humanapor meio da dinâmica festiva. Os enfoques dos estudos são distintos, as escolhas dasmanifestações, bem como as localidades e temporalidades também, o que denotasingularidades e pluralidades em interpretações que têm como referência o contextoem que práticas são construídas, vivenciadas e transformadas. Entre as festas estu-dadas destaco o carnaval (de época ou fora de época) pesquisado em cidades dointerior do País e em grandes centros urbanos, Ocktoberfest, Festa do Divino Espíri-to Santo, rodeio, marcha da Nico Lopes, festa nacional do milho e festa de Nossa Se-nhora de Achiropita. Importantes obras estão sendo elaboradas a partir de análisesque privilegiam a festa - religiosa, profana, espetáculo, protesto, pedagógica, cívica,etc. - como campo de intervenção, conhecimento e pesquisa.

Roger Callois, Jacques Heers, Jean Duvignaud, Mikhail Bakhtin e Maria IsauraPereira de Queiroz constam entre as principais referências utilizadas nas investigaçõessobre a festa. Mas é sob forte influência de autores próximos à antropologia, como Car-los Rodrigues Brandão, Eunice Ribeiro Durham, Roberto Da Matta, Nestor Garcia Can-clini e José Guilherme Cantor Magnani, que trabalhos têm sido construídos, principal-mente no que diz respeito ao referencial metodológico - a abordagem cultural.

Os estudos têm privilegiado a investigação da festa por meio da análise da cultura.A festa é, então, visualizada como processo, como acontecimento cultural inacabado, emque há conformações, resistências e trocas. A relação entre cultura popular e de elite, tãopresente em diversos estudos, ganha uma dimensão que não se restringe a conceitos de-terminados, mas a interpretações dadas no contexto cultural.

A partir da articulação de três elementos centrais - lazer, festa e cultura - sãodesenvolvidas questões que permeiam a dinâmica cultural da sociedade, com base

[FESTA] 89

Page 45: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

nas relações sociais nas quais se inserem. A abordagem folclorista, tão questionada earraigada à tradição e à estagnação, perde lugar. A festa estudada em seu processohistórico, em sua realidade cultural, ressalta novos contornos para o entendimentodos conteúdos culturais do lazer.

O livro Festa no Pedaço, escrito por Magnani (1984), torna-se clássico no es-tudo do tema. Esse estudo, mais do que a festa, abrange formas de entretenimentocom que a população da periferia de São Paulo preenche o tempo e espaço de lazer. Oautor coloca em destaque, por meio da pesquisa etnográfica, um assunto relegadopelos estudiosos - o lazer. A partir da vivência do futebol de várzea, excursão defarofeiros, bailes populares - forró, roda de samba,yz/«£ sou/-, circo, festa de ani-versário e de casamento, concurso de violeiros, ele busca entender valores, modos depensar e agir. Nesse estudo, revela ações que combinam rural e urbano, tradicional emoderno, folguedos e indústria cultural, mostrando-nos que "mais relevante que la-mentar a perda de urna suposta autenticidade [...] é tentar analisar as crenças, costu-mes, festas, valores e formas de entretenimento na forma em que se apresentam hoje,pois a cultura, mais que uma soma de produtos, é o processo de sua constante recri-ação, num espaço socialmente determinado" (p. 18-19).

Bruhns (1995), no Departamento de Estudos do Lazer da Unicamp, tambémdesenvolve uma pesquisa importante - Futebol, Carnaval e Capoeira: as transi-ções entre os grupos sociais - posteriormente publicada com o título Futebol, car-naval e capoeira (1998). Essa pesquisa motivou outros pesquisadores a se aventu-rarem em um assunto hierarquicamente não muito bem situado entre os conteúdosdo lazer, porque este se aproxima mais de valores contrários a ordem social vigente,como vagabundagem, libertinagem, excesso, vadiagem, gratuidade e transgressão doque de valores relacionados a ela, como produtividade e rendimento.

Nesse trabalho, utilizando a abordagem cultural, a autora destaca a pluralida-de das três manifestações estudadas, identificadoras do jeito de ser brasileiro, e quese inserem no universo lúdico brasileiro. Aqui, os sujeitos - que elaboram, produ-zem, representam - são identificados por ações e não a partir da estrutura. Entreinteressantes argumentações desenvolvidas pela autora, destaco: a diversidade cultu-ral, ao trabalhar com a pluralidade da festa; as relações entre as manifestações estuda-das e a indústria cultural, discutindo a cultura de massa e a cultura popular e destacan-do as imbricações entre as mesmas; e as relações entre as categorias casa e rua.

Ela também discute a não-oposição entre festa e cotidiano, enfatizando "os ele-mentos controladores e disciplinadores envolvidos no tempo 'livre' e no tempo detrabalho", ambos "centrados no tempo cronometrado da vida". Divergindo da supos-ta inversão dos papéis sociais na festa, a autora afirma que "o símbolo coletivo do

90 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

espetáculo disfarça as desigualdades sociais, porém logo as denuncia através de ummapeamento traçado no espaço social".

Outros autores indicam, em seus estudos, questões também relevantes, como atransformação da festa rural em nacional, do jogo em competição, da festa em espe-táculo. Problematiza-se a participação de criadores, organizadores e executores dafesta, e as ações de atores e expectadores. O cenário também se destaca, bem comorelações entre lazer, trabalho e saúde. O sagrado e profano, a tradição e a inovação, otradicional e o moderno, as motivações e os interesses, a produção e o consumo, opúblico e o privado, o autêntico e o dissimulado - todos problematizados buscandonão a dicotomia entre os pólos, mas a complexidade das relações. Pesquisa-se a festaalmejando compreender os significados atribuídos às ações de produtores e consu-midores, de participantes e espectadores - agentes sociais.

Considerando a festa tempo/local de sociabilidade e de manifestação de lazer,tem-se indagado sobre os aspectos culturais com base em códigos de conduta e com-portamentos. A festa, tempo e espaço de vivência lúdica, é analisada como possibili-dade de vivência (ou não) do lazer criativo e crítico.

Por meio de abordagens históricas, são destacadas transformações no proces-so de institucionalização, urbanização e espetacularização da festa, em que interes-ses políticos, culturais e sociais de diferentes instâncias do poder são mobilizadospara a sua (re)invenção, (re)edição e/ou (re)elaboração.

Abordar o corpo e sua gestualidade é uma ação recorrente nas pesquisas so-bre a festa porque os principais centros de estudos no âmbito do lazer encontram-se atrelados a escolas de educação física. Busca-se, assim, compreender corpos quedançam, consomem músicas e gestos padronizados, disputam provas no esporterodeio, trabalham nas barracas e vivenciam festas/turísticas. As manifestaçõescorporais expressas por meio da dança, da marcha, do esporte, do jogo tornam-semediadoras na busca de significados de corpos que se divertem, trabalham, dan-çam, consomem e celebram.

A festa, prática cultural, é, da mesma forma, visualizada como um tempo-es-paço de educação, de disciplina, em que são pedagogizadas práticas da vida cotidia-na, mas também de reivindicação e de subversão. É discutida como mercadoria, prin-cipalmente quando atrelada ao turismo. Festa e turismo, práticas lúdicas, sãomercadorias de grande atrativo à indústria do entretenimento e, frequentemente, sãoabordados corno produtos económicos. Ao pesquisar a palavra festa na Internet, ve-rificamos que os itens encontrados estão localizados, essencialmente, em páginas deempresas de turismo.de prefeituras municipais ou órgãos afins que têm como obje-tivo divulgar e vender o lugar e suas manifestações culturais. O objetivo é conquistar

[FESTA] 91

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consumidores. Essas festas populares aparecem aliadas a outros atrativos, como re-servas naturais, museus, cultura local, hotéis, restaurantes e arquitetura. Porém, en-tre as festas encontradas, há festas e festas... Pois há diferentes consumidores bemcomo opções e tipos de festa no mercado.

Aqui, é interessante destacar um ramo do mercado que desponta com base,principalmente, em grandes festas nacionais: o infantil. Na festa de adultos, são pro-

porcionados, simultaneamente, locais similares aos da festa principal, mas com ca-

racterísticas que atendem esse público específico, em dimensões e atrativos. Situa-

ção importante que demanda estudos, pois estão sendo gerados/educados novosconsumidores.

Percebe-se, desse modo, um lazer cada vez mais associado a bens e serviços

disponibilizados pela indústria do entretenimento, em que consumir produtos, sím-

bolos e imagens torna-se a atividade principal. Entretanto, é importante ressaltarque as pesquisas revelam que a vivência da festa não se restringe a essa faceta. Não sepode generalizar.

Mesmo em grandes festas como o Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém,Oktoberfest em Blumenau, festa do peão em Barretos, carnaval no Rio de Janeiro e

festa do Divino Espírito Santo em Pirenopólis, em que se tem como característicatudo em grande dimensão, como o número de pessoas, a associação com o turismo,a programação, os patrocínios, os números económicos, a infra-estrutura e as atra-ções, temos que buscar as singularidades, pois, além da reprodutibilidade, a diversi-dade cultural permeia a experiência festiva.

Destaca-se que a festa também é abordada, indiretamente, em estudos que pri-

vilegiam outras temáticas relacionadas ao lazer, como políticas públicas. A festa -comemoração, evento, data, encerramento -, como a oficina, a rua de lazer e o tor-

neio, é uma forma de intervenção em políticas de lazer voltadas para a cultura.

Como aponta Beirão (2001), o lazer é parte do processo de educação e da for-

mação da cidadania e as ações de políticas públicas mesmo que sinceramente dese-josas de apoiar atividades culturais ou esportivas, podem acabar disciplinando-as,

manietando-as, tornando-as assépticas e mesmo desvirtuando-as. Para esse autor,

um caminho carreto é abordar cada caso de forma transdisciplinar, considerando oscontextos cultural, social, económico, etc.

Os pesquisadores do lazer começam a descobrir perspectivas de estudos ao arti-cular festa e lazer. As abordagens ainda são incipientes, embora relevantes. Configura-se, portanto, um tema que demanda importantes estudos e intervenções.

Maria Cristina Rosa

BibliografiaBEIRÃO, P. S. L. A questão da transdisciplinaridade no cenário mundial e as implicações para o lazer e

a educação. In: Encontro Nacional de Recreação e Lazer, 13,2001, Natal, Anais... Natal: CEFET, 2001.

BRUHNS, H. T. Futebol, carnaval e capoeira: as transições entre os grupos sociais. Campinas:

Departamento de Estudos do Lazer da Faculdade de Educação Física, UNICAMP, 1995. (Relatório final

de pesquisa CNPQ).

BRUHNS, H. T. Futebol, carnaval e capoeira. Campinas: Papirus, 1998.

CANCLINI, N. G. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliensex1983.

COLETÂNEAS de seminários "O lazer em debate", UFMG, Belo Horizonte, MG.

COLETÂNEAS de congressos brasileiros de história do esporte, lazer e educação física.

COLETÂNEAS de encontros nacionais de recreação e lazer.

M AGNANI, J. G. C. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Brasiliense, 1984.

ROSA.M. C (Org.); PIMENTEL, G. G. de A.; QUEIRÓS, I. L. V. B. G. de. Festa, lazer e cultura. Campinas:

Papirus, 2002.

FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Ao refletir sobre a formação de profissionais para atuar no âmbito do lazer, inicial-

mente é necessário reforçar que o lazer se configura como um campo multidiscipli-nar que possibilita a concretização de propostas interdisciplinares, por meio da par-ticipação de profissionais com diferentes formações (Arte-Educação, Educação Física,Pedagogia, Psicologia, Sociologia, Terapia Ocupacional, Turismo e Hotelaria, dentreoutros). Lamentavelmente, ainda se pensa que, para atuar na área, não é necessárioter formação específica e aprofundada sobre o tema. Por isso, é preciso repensar ospressupostos que encaminham a formação de profissionais e como ela está sendo

processada em nosso contexto.

Segundo Werneck (2000), formar significa fecundar um conjunto de ideias e

reflexões, criar possibilidades que nos retirem de posições acomodadas, mobili-zando e transformando o outro de alguma maneira. É uma maneira de nos colo-carmos avessos às incertezas cristalizadas, com curiosidade e desejo de saber paraconstruirmos juntos o conhecimento. Nesse sentido, o desafio é agregar esforçospara formar profissionais capazes de construir coletivamente ações teórico-práti-cas significativas sobre o lazer, a fim de não mascarar ou atenuar os problemas

sociais dos sujeitos envolvidos.

A formação profissional no âmbito do lazer vem se concretizando, principal-mente, a partir de duas perspectivas. A primeira se preocupa em formar um profis-sional mais técnico e tem como orientação primordial o domínio de conteúdos

92 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [FORMAÇÃO PROFISSIONAL] 93

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específicos e metodologias. Nesse caso a formação privilegia a familiarização com as

práticas e atividades que se apresentam no dia-a-dia do animador cultural. A práticatorna-se o eixo da formação e sua realização tende a minimizar o papel da teoria na

ação profissional. Dessa forma, reafirma-se a dicotomia entre teoria e prática, enfati-

zando-se a segunda e atribuindo menor importância às reflexões de cunho filosófi-

co, político, cultural e sociológico, fundamentais no processo de atuação profissionalnesse âmbito.

É importante frisar que um sólido referencial teórico possibilita a compreen-

são da prática a partir de novos olhares, permitindo a consolidação da práxis. Um

animador cultural que atua em clubes, por exemplo, e conhece questões sobre as

diferentes faixas etárias (criança, adolescente, adulto e idosos) e grupos sociais (por-

tadores de necessidades especiais, negros, índios, homossexuais, etc) terá a sua práti-

ca a partir de outra perspectiva. Dessa forma, a relação teoria-prática adquire funçãomuito diferente de um simples fazer mecânico e técnico.

A segunda perspectiva propõe uma formação centrada no conhecimento, na

cultura e na crítica, concretizando-se por meio da construção de saberes e compe-

tências alicerçados no comprometimento com os valores disseminados numa socie-

dade democrática, bem como na compreensão do papel social do profissional na edu-

cação para e pelo lazer. A formação deve possibilitar o domínio de conteúdos que

devem ser socializados a partir do entendimento de seus significados em diferentes

contextos e articulações interdisciplinares. Deve, ainda, promover o conhecimento

de processos de investigação que auxilie no aperfeiçoamento da ação do animador

cultural e no gerenciamento do próprio desenvolvimento de ações educativas lúdi-cas, críticas e criativas.

A formação de profissionais no campo do lazer deve, portanto, ser pautada na

competência técnica, científica, política, filosófica e pedagógica e no conhecimento

crítico da realidade. É preciso romper com a visão essencialmente tecnicista, comum

em nosso meio, tendo em vista uma práxis consciente. A ação deve ser comprometi-

da com mudanças que considerem as lutas contra as injustiças sociais, na intenção

de concretizar uma sociedade mais igualitária, que respeite as diferenças culturais e

que crie possibilidades de participação e de democratização social (MARCELLINO, 1995).

Por isso, é necessário pensar a construção de saberes e competências que de-

vem estar relacionados ao comprometimento com os valores alicerçados numa so-

ciedade democrática, à compreensão do papel social do profissional na educação

para e pelo lazer. Além disso, a formação deve proporcionar o domínio de conteúdos

a ser socializados, a partir do entendimento de seus significados em diferentes con-

textos e articulações interdisciplinares, e, por fim, ao conhecimento de processos de

94 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

investigação, que auxiliem no aperfeiçoamento da ação profissional no campo dolazer e no gerenciamento do próprio desenvolvimento de ações educativas lúdicas.

Com isso, uma sólida formação profissional voltada para o lazer não pode vi-sar ao simples processo de transmissão de saberes, mas de constituição e posiciona-

mento de nossa própria inserção como sujeitos, e de nosso lugar nas várias divisões

socioculturais apresentadas em nossa realidade (WERNECK, 2000).

Na atualidade, existe uma tendência à comercialização das propostas de for-

mação profissional na área que, de maneira geral, restringe a compreensão sobre o

lazer, que é focalizado como um filão no mercado que abre amplas possibilidades de

ganhos e é associado ao consumo exacerbado e alienado de bens materiais e de ser-

viços "recreativos", que pode auxiliar a fuga e a distração dos problemas apresenta-

dos em nosso cotidiano. Nesse caso, a expansão desenfreada de cursos que apresen-tam essa tendência é preocupante e deve ser analisada cuidadosamente pelos

interessados em ampliar seus conhecimentos sobre o lazer.

Analisando as propostas de alguns cursos de reciclagem, aperfeiçoamento, atuali-

zação.bem como de disciplinas ministradas em diferentes cursos de graduação pode-

se observar uma ênfase na reprodução de atividades diversas, mediante o ensino de

uma variedade de jogos e brincadeiras. Essas propostas disponibilizam "receitas" de

atividades, não superando a tradição prática e com dificuldades de fomentar a siste-

matização de conhecimentos efetivamente teórico-práticos. No entanto, já existeminiciativas de algumas universidades, grupos de pesquisa e órgãos públicos que pro-

curam enfocar o lazer de maneira abrangente e contextualizada.

Apesar do crescimento na discussão sobre o lazer em diversos cursos de gra-

duação - como Administração, Artes, Educação Física, Fisioterapia, Hotelaria, Peda-

gogia, Terapia Ocupacional e Turismo -, a análise de muitos desses currículos de-

monstra que a discussão dos conhecimentos sobre o lazer tem pequeno espaço nas

propostas. Isso caracteriza uma incompatibilidade entre a forma como esses temas

são tratados nos currículos e as diferentes oportunidades de estudo e atuação que o

campo vem abrindo para profissionais formados (ISAYAMA, 2003).

Um aspecto importante a ser ressaltado é que no Brasil, desde 1998, vêm sendo

ofertados cursos de graduação específicos sobre o lazer. Alguns desafios permearam

a implantação e o desenvolvimento desses cursos, tais como a necessidade de buscar

referências locais que norteiem a construção curricular, a falta de recursos humanos

especializados e qualificados e, ainda, a inadequação das estratégias de implantação

e difusão geralmente adotadas pelas instituições.

Na atualidade, a pós-graduação lato e stricto sensu vem se apresentando comuma interessante possibilidade de formação de profissionais para atuar no âmbito

[FORMAÇÃO PROFISSIONAL] 95

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do lazer, tendo em vista a formação docente para atuar em diferentes níveis e de pes-quisadores interessados em aprofundar conhecimentos sobre a temática. No entantoainda é pequeno o número de cursos oferecidos regularmente, se comparado ao núme-ro de profissionais interessados em aprofundar conhecimentos nesse campo.

Além disso, outra possibilidade de formação é vislumbrada em um número

expressivo de grupos de estudo/pesquisa que estão sendo criados em diferentes fa-culdades, escolas, departamentos e cursos, conforme pode ser visualizado no traba-

lho de Melo e Alves Júnior (2003). Esses autores apresentam outras possibilidadestais como: a realização de eventos técnico-científicos específicos; a criação de listasde discussão na Internet; a publicação de artigos científicos em revistas das maisdiferentes áreas, com destaque para a Revista Licere (atualmente único periódicoespecífico sobre o lazer no País).

Há muito que realizar no âmbito da formação de profissionais para atuarem

no campo do lazer. No entanto, é preciso fornecer elementos para a consolidação deum profissional crítico, criativo, questionador, reflexivo, articulador, pesquisador, in-terdisciplinar, que saiba praticar efetivamente as "teorias" que propõe a grupos comos quais vai atuar. Para isso, é necessário incentivar a formação em uma perspectiva

continuada, sendo constantemente alimentada pela participação em cursos de dife-rentes naturezas (técnicos, de atualização, de aperfeiçoamento, de especialização, demestrado, de doutorado), em eventos técnicos-científicos, em listas de discussões,dentre outras ações de devem fazer parte do cotidiano dos profissionais que dese-jam atuar com o lazer. Saliento, ainda, que é necessário um esforço sistemático

para responsabilizar as instituições pela formação continuada de seus profissio-nais, investindo na produção de conhecimento sobre essa formação e nas mudan-ças que isso pode gerar nos processos de atuação profissional, objetivando a efetí-va participação cultural.

Hélder Ferreira Isayama

Bibliografia

ISAYAMA, Hélder F. Recreação e lazer como integrantes dos currículos dos cursos de graduação

em educação física. Campinas: Faculdade de Educação Física da Unicamp, 2002. Tese (Doutorado etnEducação Física).

MARCELLINO, Nelson C. O lazer na atualidade brasileira: perspectivas na formação/atuação profissio-nal. Licere. Belo Horizonte, v. 3. n. l, p. 125-133, set. 2000.

MELO, Victor A.; ALVES JÚNIOR, Edmundo D. Introdução ao lazer. São Paulo: Manole, 2003.

WERNECK, Christianne L. G. Lazer, trabalho e educação: relações históricas e questões conterfl'porâneas. Belo Horizonte: Editora da UFMG/CELAR, 2000.

96 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

GÉNERO

A palavra "género", desde a década de 1980, tem sido recorrente em um bom númerode pesquisas, ensaios, resenhas, textos produzidos por vários autores/as vinculadosàs áreas de lazer, educação física e esportes. Ainda que esse termo possa ser observa-do a partir de diferentes olhares (marxista, estruturalista, psicanalítico, feministaradical, pós-estruturalista, dentre outros) é consensual afirmar que se refere, funda-mentalmente, à construção social do sexo. Ou seja, como uma categoria analítica,"género" evidencia que masculino e feminino são construções sociais e históricas.

Surgido na década de 1970, no contexto anglo-saxão, a partir de algumas ver-tentes da denominada segunda onda feminismo, essa expressão permite uma ampli-ação de referências e análises teóricas ao contemplar amplas possibilidades de expli-car as diferenças e desigualdades entre homens e mulheres. Noutras palavras, o termo"género" permite alavancar uma produção académica larga e importante cuja cen-tralidade está na afirmação primeira de que não é apenas o sexo (biológico) queestabelece diferenças entre homens e mulheres, mas, também, aspectos sociais, his-tóricos e culturais. Desestabiliza, portanto, a noção da existência de um determinis-mo biológico cuja noção primeira afirma que homens e mulheres constroem-se mas-culinos e femininos pelas diferenças corporais e que essas diferenças justificamdeterminadas desigualdades, atribuem funções sociais, determinam papéis a ser de-

sempenhados por um ou outro sexo.

O termo "género" ou como se referem algumas pesquisadoras "sexo social",quando visto por essa ótica, desnaturaliza o comumente considerado "natural". Porisso é polémico, incomoda, faz pensar e invoca mudanças epistemológicas.

Há que referenciar que o próprio conceito de "género" não é unívoco nem nun-ca foi. Num primeiro momento, esteve relacionado aos estudos das mulheres, maisespecificamente àqueles estudos que advinham de uma militância feminista das dé-cadas de 1960 e 1970, quando se fazia premente denunciar a situação de dominaçãoda mulher em relação ao homem, sua quase inexistência na escrita da história e naescrita académica, etc. Não que não houvesse, antes disso, a participação das mulhe-res em diferentes espaços sociais; mas porque elas pouco figuravam na produçãoacadémica, a não ser como minorias.

Pensar o campo "estudos de género" pressupõe pensar, também, que sua emer-gência se dá num momento de efervescência política e cultural em diferentes contex-tos culturais. Tempo de resistência, de lutas sociais amplas pelo reconhecimento dasdiferenças e por uma sociedade mais igualitária. Tempo também da contestação daneutralidade da ciência, da emergência de novos olhares e novos objetos de pesquisanão porque fossem inexistentes, mas porque eram desconsiderados como possíveis e

merecedores de um trato "científico".

[GÉNERO] 97

Page 49: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Ao afirmar, portanto, que o termo "género" não é unívoco, cabe mencionarque sua apropriação no contexto brasileiro se dá em face da influência de dois cam-pos intelectuais: o americano dos women's studies e gender studies e o francêsdas "pesquisas sobre as mulheres", "estudos feministas" ou "estudos sobre as rela-ções sociais de sexo". Referência essa que possibilita compreender a multiplicida-de de olhares sobre o campo dos "estudos de género" ou, como dizem as francesas,dos "estudos das relações sociais de sexo".

Enfim, muitos são os temas, as abordagens e as discussões possíveis de ser con-sideradas quando a referência é "estudos de género", expressão em plena expansão eaprofundamento teórico na pesquisa académica brasileira, inclusive no campo da

educação física, do lazer e do esporte que, desde a década de 1980 vem direcionando,também, seu olhar para essa temática. Especificamente nesse campo teórico é possí-vel evidenciar, fundamentalmente na década de 1990, uma maior produção acerca

de estudos de género cuja circulação na área se apresenta a partir de diferentes enfo-ques teóricos, demarcando, ainda, diferentes posições epistemológicas e políticas.

Uma dessas ênfases situa-se na identificação da palavra "género" com palavra"sexo". Ou seja, é possível evidenciar, na produção da área, pesquisas em que a utili-zação do termo "género" é referenciada para definir o sexo dos sujeitos investigados.Várias dessas pesquisas se sustentam em um arcabouço teórico-metodológico ad-vindo das ciências biológicas como a fisiologia, a biomecânica, a aprendizagem mo-tora, o treinamento esportivo, entre outras, privilegiando análises que comparam,por exemplo, as capacidades físicas e fisiológicas do homem e da mulher, o rendi-mento esportivo, o comportamento motor, etc.

Ainda que essa ênfase seja observada nas décadas de 1970 e 1980, vale ressal-tar que, na atualidade, ainda se faz presente, e essa definição atribuída ao termo "géne-ro", mais do que simplista, é absolutamente equivocada, pois, ao contrário do que his-toricamente os estudos de género vêm evidenciando, nesses trabalhos se privilegia odeterminismo biológico, no qual masculino e feminino não são observados comosocialmente construídos, mas significando simplesmente sexo masculino e feminino.

Outra ênfase bastante presente na produção teórica da educação física, esportee lazer está vinculada às pesquisas que abordam a temática de género a partir doestudo de estereótipos e papéis sexuais. Essa abordagem pode ser facilmente encon-trada em várias pesquisas, sendo, inclusive, recorrente na produção teórica dessaárea de conhecimento. Sua circulação na área conferiu visibilidade ao termo "géne-ro", demarcando, de certa forma, que entre meninos e meninas há um universo dediferenças e que essas diferenças são produzidas na cultura.

Para além dessas há, na produção teórica da área, uma outra ênfase a ser desta-cada e pode ser localizada na identificação de estudos sobre mulheres como sendo

98 [DicioNAiuo CRITICO DO LAZER]

estudos de género. Esta identificação, presente também em outras áreas do conheci-mento, se dá, em grande parte, pela própria origem dos estudos de género que come-çaram a ser desenvolvidos tendo nos estudos das mulheres seu apoio teórico-meto-dológico. No entanto, na produção teórica da educação física brasileira, essa pareceser ainda uma representação recorrente. É certo que essa delimitação sofre interlo-

cuções, afinal alguns estudos sobre mulheres têm um caráter relacional e se configu-ram, também, como estudos de género. No entanto essa não é a única abordagem por

meio da qual se percebe essa identificação. Vários textos e pesquisa que abordam

temas como padrão motor, estereótipos de atletas, composição corporal, treinamen-

to físico, menarca, dentre outros, quando relacionados a mulheres, são, não raras ve-

zes, identificados como estudos de género ou, ainda, identificam-se nesse campo te-órico o que demonstra, de certa forma, uma estreita proximidade com o que se tem

produzido nacional e internacionalmente sobre " estudos de género".

Mais recentemente, novas abordagens têm sido contempladas na produção da

área, tendo no pós-estruturalismo sua vertente teórica. Ao considerar "género" não

só como uma categoria analítica, mas como constituinte da identidade dos sujeitos,

essas pesquisas têm alavancado uma produção teórica que transcende, por exemplo,a discussão acerca dos estereótipos e papéis sexuais. Essa compreensão parte do en-

tendimento de que a referência a esses termos remete à afirmação da existência depapéis preconcebidos, nos quais se encaixam sujeitos masculinos e femininos. Para a

abordagem pós-estruturalista, masculinidade e feminilidade se definem reciproca-mente, visto não existir nenhuma essência a priori determinada para uma e outra

identidade. Essas identidades, ao contrário, são produzidas na cultura, não havendo

uma fixidez na sua produção. Rejeita, portanto, a ideia da existência de uma essência

que está colocada para um e outro sexo, visto que não se está a considerar a constru-ção cultural dos géneros, mas a enfatizar um caráter já fixado da condição humana.

Para os estudos decorrentes do pós-estruturalismo, os sujeitos não são apenashomens ou mulheres, mas homens e mulheres de várias raças, classes, religiões, ida-

des, etc., portanto, há diferentes mulheres e diferentes homens. Essa compreensão fazcom que a expressão "estereótipos masculinos e/ou femininos" seja negligenciadaem detrimento da utilização, por exemplo, de temas como masculinidades e femini-

lidades. Essa abordagem possibilita, enfim, falar da existência de uma identidade degénero, o que significa afirmar que "género" se incorpora na identidade do sujeito, fazparte da pessoa e a constitui.

Com relação ao corpo, essa perspectiva teórica se afasta, em grande medida,daquelas que o definem a partir de sua materialidade biológica; afasta-se tambémdas análises que identificam no corpo o local a partir do qual se avaliam as diferen-ças entre mulheres e homens. Aqui, o corpo passa a ser observado como um

[GÉNERO] 99

Page 50: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

constructo cultural que ao mesmo tempo em que produz relações de poder é nelasproduzido. Cabe registrar, ainda, que essa abordagem não nega o aspecto biológicodo corpo, no entanto não lhe confere centralizada na atribuição, por exemplo, de dife-rentes lugares sociais ou hierarquias a ser exercidas e exercitadas por um ou outrosexo. O aspecto biológico do corpo aparece como um dos elementos partícipes na

conformação de "género", afinal, são os corpos que estão em constante construção eque assumem identidades masculinas e femininas. A ênfase desses estudos é que acategoria "género" possibilita a análise dos processos por meio dos quais se dá essa

construção de corpos masculinos e femininos, evidenciando, sobretudo, que mulhe-

res e homens se constróem ao longo da vida mediante inúmeras práticas sociais.

SUvana Vilodre Goellner

Bibliografia

LOURQGuaciraL Género, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis:Vozes, 1997.

LOURO, Guacira; NECKEL, Jane; GOELLNER, Silvana V. Corpo, género e sexualidade: um debatecontemporâneo em educação. Petrópolis:Vozes, 2003.

LUZ JÚNIOR, Agripino. Educação física e género: olhares em cena. São Luís: Imprensa UniversitáriaUFMA/CORSUP.2003.

GOELLNER, Silvana V. Género, educação física e esportes. In: VOTRE, Sebastião (Org.). Imaginário ó-representações sociais em educação física, esporte e /ozer.Rio de Janeiro: Editora Gama Filho,2001.

SCOTT, Joan. Género: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre,v.20,n.2,jul./dez. 1995.

SOUSA, Eustáquia S.; ALTMANN, Helena. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações naeducação física escolar. Cadernos CEDES. Campinas, n. 48,p. 52-68.

GESTÃO

Existem termos que não sabemos definir ou conceituar ou, até mesmo, explicar demaneira mais sistematizada o que são. Entretanto, quando ocorre um problema, logo

nos lembramos da sua necessidade. Assim, quando somos mal-atendidos, enfrenta-mos filas, recebemos o produto errado ou mal produzido, ou até mesmo quando so-licitamos um prato descrito no cardápio e o garçom nos informa "tem, mas acabou",logo identificamos ali uma falta de administração ou gestão.

Muitos acreditam, inclusive, que o futebol brasileiro poderia ser ainda maiscompetitivo e rentável para todos se houvesse uma "boa administração fora de cam-po"- em outras palavras, se tivesse gestão.

100 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

A administração e a gestão são conceitos semelhantes que podem ser defini-dos como um conjunto de princípios, normas e funções que tem por fim ordenar osfatores de produção/operação e controlar a sua produtividade e eficiência, para se

obter determinado resultado.

Embora os princípios de gestão tenham surgido no meio empresarial, mais

recentemente, tais princípios estão sendo aplicados de maneira mais flexível em di-versos outros segmentos, podendo, inclusive, fazer parte de nossa vida particular.

Assim, a utilização dos princípios de gestão tem sido a diferença entre o sucesso e os

fracassos de diversas organizações sejam elas do meio privado ou público.

Portanto, para sermos bem-sucedidos em nossos projetos e profissionalmente,

precisamos ir além da paixão, precisamos de método de trabalho e principalmente

de gestão. Sem paixão não há sonho, mas sem gestão o sonho pode se tornar um

pesadelo.

A gestão de determinada organização, serviço ou projeto depende, sobrema-

neira, do seu planejamento, que deve trazer, entre outras coisas, uma definição clara

dos objetivos propostos. Isso contribui muito para o acompanhamento e a avaliação

da iniciativa, uma vez que oferece parâmetros para uma apreciação a respeito de seu

desempenho e seus resultados.

O planejamento é importante porque contribui fortemente para o sucesso e

nos dá algum controle sobre o futuro. O planejamento não é estático, ou seja, nãopode ser encarado como uma camisa-de-força. Assim, o planejamento é construído

com base em uma análise de cenário. Caso esse cenário modifique o planejamento,

deve ser alterado e adaptado a essa nova perspectiva.

Quem não planeja corre o risco muito maior de não saber o que fazer ou tomar

decisões inapropriadas diante de um novo contexto. É aquela história: Quem não

sabe aonde vai qualquer vento serve, inclusive para o lugar errado. Entretanto,

quem planeja sabe qual o impacto da mudança na sua organização e no seu trabalho

e refaz o seu planejamento para atingir os resultados!

As técnicas de gestão são imprescindíveis para o sucesso de qualquer projetoou organização. Mas deve-se lembrar sempre que ela não é uma ciência exata, em que

2 + 2 = 4. A característica básica dos problemas de gestão - e que os diferencia dos delógica - é a existência do ser humano com ações e reações nem sempre previsíveis.

Gestão significa, sobretudo, coordenar ações coletivas por meio de instrumen-tos racionais,promover os desejos e as realizações individuais e coletivas com o obje-

tivo básico de cumprir as metas estabelecidas (SANTOS, 1992).

Para isso há vários tipos de gestão. Quando prisioneira de muitas formalidadese pouco compromisso com resultados, fala-se que é um estilo de gestão burocrático;

[GESTÃO] 101

Page 51: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

"tf

quando mobiliza de maneira articulada todas as suas partes, fala-se de uma gestãointegrada (PEREIRA, 1955)

ongo o ternpo,muitas formas de gestão foram desenvolvidas. Elas se diversi-

™e as instituições se complexificam. Vão da forma altamente centra-4 as que incluem a flexibilidade na tomada de decisão, no aprimora-

as ec|uipes e na valorização das capacidades humanas (SENGE, 1998).r PU lico, por exemplo, a crise da estrutura burocrática de gestão públi-

ca chegou ao seu ápice na década de 19go e desencadeou a reforma da estrutura do

Estado Moderno, em especjai ao que se referia ao model0 de gestão. Na mesma déca-

da, o modelo neoliberal sobressaiu, formando a estrutura do Estado Mínimo. Parale-

lamente, foi tomando corpo Um segundo modelo de gestão pública apelidado, no

Brasil, de Estado Gerencial, que os ingleses denominam Terceira Via (GIDDENS, 1999).

Todos estes novos modelos partiam de uma premissa fundamental: o Estado deveria

P PIOS de gestão empresarial e a adoção de valores gerenciais, de mer-cado, para definir a performance pública. Na última década do século XX, uma pro-

funda crítica a esses modelos (tanto ao neoliberal quanto ao gerencial) foi se esbo-

çando. Boaventura Santos, professor da Universidade de Coimbra acredita ser

incompatível a reforma do Estado proposta à luz do princípio do mercado, local da

competição e da destruição do outro. Boaventura sugere o fortalecimento do poderda sociedade civil, loCUs d0 diálogo entre interesses, da negociação coletiva e dosvalores morais (SOUZA, I99g\

p q e um gmp0 de pessoas ou de entidades se dispõe a trabalhar juntas,e erniinado objetivo, elas precisam se organizar: dividir responsa-

bihdades e funções, estabelecer regras de comunicação e decisão. O modo mais tra-dicional de nos organizarrnos é em pjrâmide. Organizar em pirâmide significa

que definimos resPonsabilidades e poder de decisão afunilando-os. Os níveis de res-

ponsabilidade se superpõem e se estabelece uma hierarquia de poder entre esses ní-veis. As pirâmides, ao concentrarem sempre mais poder à medida que se sobe nos

1S> criam duas dinâmicas perversas: a da dominação e a da compe-tição. A dominação, para manter o poder; a competição, para chegar ao poder.

V Organizaçã0 alternativa à organização em pirâmide, por meio daqual esses problemas podem ser evitadoS) é a organização em rede (CASTELLS, 1999).

A noção de gestão em rede tem se tornado figura obrigatória em todo discursosobre política social, seja nos setores públicos, seja nos setores privados. Rompendo

com o desenho hierarquizado e rígido da burocracia, o trabalho em rede se baseiaem uma visão sistémica do mundo Trabalhar em rede é perceber que todo ator- individual ou coletivo _ está inserido numa rede de sistemas para atuar de

102 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

modo a mobilizar em favor dos objetivos desejados. Ao contrário da pirâmide, a organi-zação em rede se espalha horizontalmente. Não há hierarquia de importância entre os quea compõem. Há diferentes tipos de poder, diferentes tipos de responsabilidade e funçõesdiversas. Mas todos os seus membros estão no mesmo nível, em termos de poder.

Rede, portanto, é um espaço de convergência de vários atores sociais, todos

incompletos, que precisam tecer uma articulação de esforços diante de objetivos de-finidos, ou seja, potencializar recursos com e para um público comum. Rede, tomadacomo espaço aberto de complementaridade e cooperação com regulação, só podeser, assim, respeitada se contemplar a intermediação da participação e do controledo público atendido. A ideia de rede consagra o princípio da descentralização de de-cisão, entendida como o processo de transferência de poder de níveis centrais paraperiféricos, de modo a reestruturar o aparato central de decisão não para reduzi-lo,mas para torná-lo mais ágil e eficaz, democratizando a gestão por meio da criação de

novas instâncias de poder.

Nas organizações cada pessoa tem sua própria agenda. O gerente de marketingde um clube acha que a salvação da organização exige mais propaganda; o gerente devendas quer preços mais baixos dos serviços para o sócio; o gerente de P&D demandamais recursos para a melhoria dos serviços existentes e para o desenvolvimento denovos produtos. O problema é que se todos os gerentes fizerem bem a sua parte, assimmesmo o clube se dará mal. Os setores têm programas setoriais, mas pouco se preocu-pam com a organização em si. O grande benefício do conceito de gestão integrada (ouintersetorial) consiste em deslocar o foco, transferindo-o dos departamentos para osobjetivos. Cada objetivo essencial, por exemplo - conquistar e reter clientes -, exige otrabalho integrado de vários setores. Cada vez mais, as organizações são desenvolvidascomo projetos de equipe interdisciplinares em vez de projetos setoriais.

A gestão integrada pode se dar dentro da mesma organização, entre duas ou

mais organizações parceiras, além da participação direta dos usuários.

Nesses modelos de gestão integrada, segundo Ricci (2001), não se governa pordepartamento ou por serviço, mas por projetos elaborados em conjunto com o usuárioque demanda as ações. Criam, assim, nova demanda em relação a qualificação dos pro-fissionais que, de especialistas, passam a ser considerados polivalentes, articuladoresde várias áreas na construção de projetos integrados de atendimento de demandas.

Uma gestão de lazer em rede precisa superar os modos de gestão burocrático

que indicamos acima por modelos mais interativos e participativos. Alguns indica-dores apontam para um estilo participativo de administrar (ZINGONI, 2003), desta-

cando algumas características como:

A) Uma Organização do lazer que busca um estilo participativo de adminis-trar deve superar o centralismo das decisões. É preciso que os profissionais do lazer

[GESTÃO] 103

Page 52: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

passem a se reconhecer e a se fazer reconhecidos como gestores, e não apenas exe-cutores de ações predeterminadas, pois em suas mãos se encontra a responsabili-dade pelo diagnóstico, programação, supervisão e continuidade das ações de lazerda instituição.

B) Portanto, estas decisões devem ser compartilhadas com todos os envolvi-

dos na ação, por meio, por exemplo, de incentivo a estruturas colegiadas nos váriosníveis de decisão. O objetivo, neste caso, é articular formas de gestão direta - os pró-

prios gerentes decidem sobre as ações -, com formas representativas - eleição derepresentantes -, que fazem a mediação entre a organização e o usuário.

Patrícia Zingoni

Bibliografia

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

GIDDENS.Anthony. A terceira vw.Rio de Janeiro: Record, 1999.

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NECK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Pereira (orgs.). Lazer, recreação e educação físi-ca. Belo Horizonte: Autêntica,2003,p.217-242.

GLOBALIZAÇÃO

Esse termo pode ser empregado para falar da imposição de um modelo produtivo,em diversos domínios do social, que tem como ponto de elaboração e difusão umdeterminado centro, espalhando-se e repetindo-se em vários lugares do planeta emações quase sempre simultâneas.

A globalização pode ocorrer em diferentes setores da sociedade - na política,na economia ou na cultura -, com a pretensão de uma integração do mundo e dopensamento mediante intensificação do fluxo de trocas. A ideia da globalização podeser entendida como consequência da imposição das decisões geradas em centros eco-nómicos ou em empresas transnacionais e seus desdobramentos nos ambientes dasgrandes cidades periféricas.

104 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

Nas metrópoles, o processo de desterritorialização e reterritorialização da cul-tura é tão forte que muitos espaços urbanos abafam seus significados ou conteúdosparticulares. O conceito de Nação como produtora da ideia de identidade é redimen-sionado diante da fragmentação gerada nos processos acelerados de informações(ORTiz, 2000). Mesmo quando não nos deslocamos, o mundo penetra no nosso coti-diano enfaticamente através das diversas telas, sejam as dos computadores sejam as

das emissoras de televisão a cabo. Dada a circulação de informações nas redes de

computadores t também da movimentação das pessoas no mundo, a interconexão

acontece de maneira mais acelerada a cada dia. Acontecimentos gerados em qual-

quer ponto do mundo são acompanhados em tempo real.

O processo de modernização, simultâneo à mundialização do capitalismo, pros-

segue na generalização do pensamento pragmático ou tecnocrático. Modernizar nesse

contexto significa secularizar, individualizar, urbanizar, industrializar, mercantilizar,

racionalizar de maneira totalitária em todo o mundo. A modernização espalhada de

modo homogeneizante passou a ser o emblema do desenvolvimento, crescimento,

evolução e progresso. Os países não produtores de novas tecnologias se tornam peri-

féricos numa geografia de poder centralizada apenas naqueles altamente desenvol-vidos tecnicamente. A produção, a reprodução e a universalização cultural são facili-

tadas pelas novas tecnologias (IANNI, 1995).

Atualmente, tanto os objetos quanto as ações derivam da técnica. As técnicas

estão em toda parte: na produção, na circulação, no território, na política, na cultura.

Elas também estão permanentemente no corpo e no espírito do homem. Nesse pano-

rama é difundida a ideia de que a velocidade constitui um fato irreversível na produ-ção da história. Assim, a velocidade é um dado de redimensionamento da questão

política. A técnica de informação é o elo entre as demais técnicas, unindo-as e crian-do um novo sistema técnico com força globalitária (SANTOS, 2002).

A celeridade das mudanças tecnológicas abole a percepção de tempo e obscu-

rece as referências do espaço; esse efeito levou os técnicos a consolidar o conceito deglobalização. A era da globalização se inicia no pós-guerra e se fortalece na década

de 1970, quando os Estados Unidos abandonam o padrão-ouro como base de susten-

tação cambial. É nesse momento que surge a liberação dos controles cambiais e osfluxos de capital se voltam para novas oportunidades de investimento no mercadomundial, superando as fronteiras nacionais. Assim, os beneficiados foram os capitais

financeiros, empresas transnacionais, bancos e companhias petrolíferas. As grandescorporações com poder de barganha com os Estados multiplicam as filiais das em-presas. Na construção desse espaço, as novas tecnologias microeletrônicas facilitama circulação de moedas e títulos no mercado globalizado. A revolução nas comunica-ções, presente com as redes de computadores, transmissões por satélite, cabos de

[GLOBALIZAÇÃO] 105

Page 53: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

fibras éticas e transferência de dados em alta velocidade, permite maior atividadeespeculativa. O fluxo de informações se torna permanente, vinte e quatro horas pordia, sem fronteiras territoriais (SEVCENKO, 2001). A velocidade presente nas redes decomunicação envolve o planeta.

Com a mundialização da cultura, o consumo de signos e o aspecto simbólico dosbens e produtos tornam-se importantes fontes de satisfação. Grupos se dedicam à este-tização da vida produzindo a circulação veloz de novos estilos pelo mundo. A mídia é

fator fundamental nesse processo. Os noticiários, os megaeventos e a publicidade são

algumas das poderosas armas midiáticas na guerra do consumo globalizado.

A partir da Segunda Grande Guerra, difundiu-se uma ampla variedade de

noções de cultura e uma capacidade reduzida para impor uma hierarquia de valo-

res. O ato de comprar se transforma em experiência de prazer e lazer, exponen-

cializando a antiga relação entre comércio e cultura, tão presente nos diversos mo-mentos da história da humanidade (FEATHERSTONE, 1998). Com isso, a vida das

cidades passa a contar com novos valores éticos, estimulados pela comunicação

social e pela reformatação dos espaços urbanos. O consumo generalizado e popu-

lista se fortifica ao longo do século XX, deslocando-se das feiras e dos mercados derua em direção às grandes galerias e às lojas de departamentos; já na década de

1980, o cidadão globalizado experimenta a ditadura do consumo associado ao la-zer com os shopping centers.

A globalização não é mera ideologia. Trata-se de um processo real, multiface-tado e paradoxal. Nas grandes cidades brasileiras, a globalização é facilmente perce-

bida na mídia e no consumo. Os meios de comunicação de massa e dirigida exerci-tam implacavelmente a propaganda de serviços e produtos que levarão a felicidade e

o conforto aos cidadãos, não importa onde eles estejam, já que os ingredientes da

satisfação são os mesmos em qualquer continente: segurança, lazer e moda. Por essemotivo, multiplicam-se os shopping centers, os condomínios fechados e os edifícios

inteligentes. A globalização leva à valorização da individualização do cotidiano, dada

a possibilidade de se estar conectado a qualquer parte do mundo. O traiçoeiro senti-

mento de autonomia proveniente das novas tecnologias faz com que o indivíduo per-tença a tribos efémeras que afastam momentaneamente a solidão, mas fragilizam o

pathos de pertencimento a grupos sociais sólidos como a Igreja e o Estado. Cresce,assim, o número de redes de diversas ordens em todo o planeta, provocando o fenó-meno chamado por Maffesoli (2002) de "tribalização do mundo". Os movimentos dereivindicações étnicas, o ressurgimento dos fanatismos religiosos e a proclamaçãoradical das especificidades culturais são alguns dos exemplos das novas comunida-des que surgem na pós-modernidade, concorrendo com outras mais efémeras, comoaquelas formadas em chats da Internet.

106 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

Apesar do pessimismo da maioria dos cientistas sociais e políticos contempo-râneos, verifica-se, em outras poucas vertentes de pensamento, em oposição às idei-as desenvolvidas até aqui, uma visão mais otimista da globalização que declara o fimda universalidade moderna. Com essa postura, diante da circulação rápida de infor-mações sobre o mundo, parte das pessoas volta-se ao pensamento sobre o local: sur-gem posições "desglobalizantes" que afirmam a existência de conhecimentos menos

pretensiosos e mais sensíveis às diferenças locais. Esse pensamento privilegia a cul-

tura localista e o vernáculo, derrubando as hierarquias simbólicas dos círculos de

legitimadores intelectuais e críticos.

João Luís de Araújo Maia

Ricardo Ferreira Freitas

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

FEATHERSTONE, Mike (org). Cultura global: nacionalismo, globalização e. modernidade. Petró-

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MAFFESOLI, Michel. La transfiguration du politique: Ia tribalisation du monde postmoderne.

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SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio

de Janeiro: Record, 2001.

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Universidade de São Paulo, 2002.

SEVCENKO, Nicolau.A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. São Paulo: Compa-

nhia das Letras, 2001. (Coleção Virando Séculos, 7)

HOTÉIS DE LAZER

São meios de hospedagem que estão voltados para atender turistas, tanto individuaisquanto em grupo. Podem estar localizados em áreas urbanas ou rurais, em monta-nhas, grandes centros turísticos, florestas, praias ou em outras zonas de interesseturístico ou ecológico (CAMPOS; GONÇALVES, 1998). Possuem áreas de lazer voltadas aosesportes, atividades físicas, sociais, dentre outras. A maioria desses hotéis possui umaequipe de profissionais com diversificadas formações para desenvolver progra-mações de lazer aos hóspedes, sejam estes crianças, adultos, terceira idade, dentre

[HOTÉIS DE LAZER] 107

Page 54: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

outros. Normalmente, estes hotéis possuem um profissional contratado, que é o co-ordenador de lazer do hotel, e os animadores terceirizados oufree-lancers. A progra-mação de lazer desses hotéis é, muitas vezes, o grande diferencial.

O Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR), órgão do governo federal, clas-

sifica os meios de hospedagem segundo uma categoria de uma a cinco estrelas: Super

Luxo e Luxo ou cinco estrelas, Superior ou quatro estrelas, Turístico ou três estrelas,Económico ou duas estrelas e Simples ou uma estrela (EMBRATUR, 2002). Esta classi-

ficação diz respeito aos espaços, equipamentos, condições de conforto, comodidade, ser-

viços e atendimento que o hotel oferece. Normalmente os hotéis de lazer são classifica-dos entre três e cinco estrelas.

Os hotéis de lazer mais representativos podem ser subdivididos em hotéis-fa-

zendas, de estâncias hidrominerais, ecológicos e resorts.

Os hotéis-fazendas se localizam afastados dos centros urbanos, com caracterís-

ticas tipicamente rurais. Possuem amplas áreas verdes, podendo ter, também, lagos ou

lagoas com barcos,"pedalinhos" e outros equipamentos para a prática de esportes náu-

ticos. Podem oferecer, ainda, pomares com árvores frutíferas, hortas e culturas de flores

e plantas regionais, animais de fazenda como galinhas, porcos, dentre outros. Também

oferecem passeios de charretes e equitação. Normalmente, a área de alimentos e bebi-

das é ampla e oferece pratos típicos da região (CAMPOS; GONÇALVES, 1998). A maioria des-

ses hotéis é administrada pelos próprios familiares que são os proprietários.

Nos hotéis de estância hidromineralas fontes e as piscinas de água mineral são

o maior atrativo. Atraem turistas que querem descansar, bem como utilizar essas fontes

no auxílio do tratamento de determinadas doenças. Segundo Martinelli (2001), esseshotéis são mais frequentados por pessoas da terceira idade, pois podem encontrar ne-

les conforto, diversão e possibilidades de tratamento de alguns problemas de saúde.

Os hotéis ecológicos também denominados hotéis de selva ou, ainda, lodges,

estão situados em locais de acesso mais difícil. Atrai turistas que têm a preocupação

de preservação ambiental ou mesmo curiosos ou estudiosos da natureza, segundo

Campos; Gonçalves (1998). Muitos desses hotéis, no Brasil, situam-se na região nor-te, em torno da floresta amazônica. Um exemplo é o Aríaú Amazon Towers, com

construções circulares de vários andares sobre palafitas nas águas do rio Ariaú.

Nos resorts a estrutura de lazer é superior aos outros tipos de hotéis de lazer.

Possui amplas e diversificadas instalações de lazer para atender os hóspedes de dife-rentes faixas etárias o ano todo. As atividades de lazer oferecidas também são bas-

tantes variadas. Normalmente, possuem arquiteturas horizontais e se localizam em

locais com amplas áreas verdes e muitas belezas naturais. Por esse motivo, e por se-rem auto-suficientes - os hóspedes não precisam procurar outros serviços fora do

108 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

hotel -, a maior parte deles constituem-se em destinaçoes turísticas que por si sójustificam uma viagem (ANDRADE et ai, 2001). A EMBRATUR exige que os resortsestejam localizados em áreas de conservação ambiental. Assim, a instalação de um

resort exige que seja seguida a legislação de proteção ao meio ambiente.

Esse tipo de hotel também pode oferecer espaços e equipamentos para con-

gressos e reuniões, mas o lazer é ainda o seu principal atrativo. É o tipo de hotel de

lazer mais recente e que mais tem crescido nos últimos anos no Brasil. Uma tendên-

cia dos atuais resorts é o tratamento do lixo e da água, bem como o aproveitamento

da energia solar.

Segundo Andrade et ai. (2001), existem também os grandes complexos hotelei-

ros do tipo multiresort, cujo exemplo no Brasil é Costa de Sauípe, na Bahia, que pos-sui cinco hotéis e seis pousadas e está instalado numa área de 1.750 hectares, com

l .650 apartamentos, oferecendo, inclusive, um campo de golfe. Esse Estado têm se des-

tacado nos projetos de resorts já instalados e outros que ainda serão inaugurados.

A Associação Brasileira de Indústrias Hoteleiras (ABIH) coloca as característi-

cas dos resorts para o próximo milénio: "locais exóticos e desconhecidos, locais comapelo ecológico, agregação de cultura e conhecimento (artesanato, pintura, técnicas

de relaxamento, etc.) e decoração ao estilo da região ou temáticos" (ABIH, 2003).

Outros tipos de hotéis, os spas e os hotéis de praia, também têm investido no

lazer. Os spas, um tipo de hotel voltado para o cuidado com a saúde e o condiciona-mento físico, têm atraído, também, hóspedes que queiram somente descansar. É co-mum encontrar nesse tipo de hotel, além dos médicos, fisioterapeutas, esteticistas e

professores de educação física, profissionais do lazer para oferecer outras atividades

sociais e recreativas como aqueles formados em hotelaria e turismo. Segundo Marti-

nelli (2001) os spas oferecem serviços personalizados para que o hóspede possam

alcançar o relaxamento "corpo-mente".

Os hotéis localizados no litoral, os hotéis de praia, também têm espaços espe-

cíficos e equipes com profissionais para desenvolver as programações. Nesse tipo de

hotel a praia é utilizada como mais um tipo de espaço para o desenvolvimento das

atividades de lazer.

Hoje deve-se destacar, ainda, os navios, que também funcionam como um meiode hospedagem. Segundo Andrade et ai. (2001), o papel hoteleiro que os transatlânti-

cos apresentam tornam-se cada vez mais importante. Apesar de apresentar tamanhoreduzido dos apartamentos ou camarotes e de não possuir janelas, pode haver luxo e

conforto, apresentados no projeto do interior e no mobiliário (ANDRADE et ai, 2001).

Os navios de cruzeiros representam um tipo específico de resorts: os "re-sorts-flutuantes" (MILL, 2003). Os cruzeiros oferecem a bordo uma programação

[HOTÉIS DE LAZER] 109

Page 55: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

de lazer bastante diversificada (shows, atividades físicas e esportivas, festas, etc.),além das paradas em cidades turísticas que possibilitam a vivência de outras ativi-dades de lazer. Dadas essas características e também devido à sua auto-suficiência,os cruzeiros têm sido os maiores concorrentes dos resorts. Segundo Mill (2003), ati-

vidades exóticas têm sido oferecidas por cruzeiros para atrair cada vez mais os hós-

pedes. Nos Estados Unidos, já é possível nos cruzeiros patinar, jogar golfe, nadar com

tubarões (dentro de gaiolas de aço), etc. No Brasil, a busca por esse tipo de resort

flutuante é crescente.

Atualmente, os hotéis do lazer, para não terem prejuízos com a sazonalidade, têm

modificado suas instalações para que, durante a semana, possam atender aos mais di-

versificados tipos de eventos empresariais, científicos, religiosos, dentre outros. Nestes

eventos, os principais clientes são os laboratórios farmacêuticos, montadoras de auto-

móveis e equipes médicas que utilizam os hotéis para fazer treinamento de equipes.

Nos finais de semana, feriados e férias escolares, os hotéis de lazer continuam

atendendo os turistas. Este binómio lazer-eventos tem sido tão comum que Campos

(2003, p. 37) aponta que "dizer que um hotel é de lazer e convenções é quase desne-

cessário, para não dizer redundante". Isso tem ocorrido, segundo o autor, com muita

ênfase, desde o final do século XX e início do século XXI.

Quanto à implantação das atividades monitoradas de lazer nos hotéis não se

têm registros dos hotéis brasileiros que foram os pioneiros em oferecer esse serviço,

comentam Ribeiro et ai. (2002). Provavelmente, a colónia de férias Ruy Fonseca do

SESC, em Bertioga, litoral paulista, inaugurada em 1948, pode ter sido uma das pio-

neiras, pois já possuía os profissionais do lazer (os animadores) para desenvolver as

programações. Nessa época, quando o conceito de resort não existia ainda, o SESC

disponibilizava um centro de mais de dois mil metros quadrados, com equipamento

de hospedagem e lazer sofisticados destinados aos trabalhadores do comércio, inclu-

indo programa de lazer segmentado (TRIGO, 2002).

Para Campos (2003), as atividades de lazer monitoradas nos hotéis começa-

ram a ser oferecidas, a partir da década de 1960, primeiro aos filhos, para que os pais

pudessem melhor usufruir seus horários de descanso. Posteriormente, foram esten-

didas aos adolescentes e, depois, aos adultos também, evidencia o autor. Segundo

Castelli (1991), esses hotéis foram influenciados pelas programações dos navios tran-

satlânticos e resolveram aproveitar a ideia e aplicá-la em terra firme.

Campos (2003) mostra que, no início do oferecimento das atividades delazer, os hotéis exageravam em suas propostas e seus animadores acabavam sendoinconvenientes, perturbando e constrangendo os hóspedes que buscavam o relaxa-mento e não a diversão. Esse autor complementa que, a partir da década de 1980, o

110 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

conceito que passou a vigorar nos hotéis de lazer é de que os hóspedes deveriam ser"levemente estimulados" e não "obrigados" a participar das atividades.

A colocação desse autor é questionável, pois, mesmo com todo o desenvolvi-

mento dos cursos de hotelaria, lazer e turismo no Brasil, nos últimos anos, ainda aspessoas constantemente reclamam da atuação dos animadores em hotéis de lazer.

Segundo Camargo e Ansarah (1991, p. 36), o objetivo da programação num

hotel é "permitir que as pessoas desfrutem da melhor forma possível de sua via-

gem e ou estada num hotel". Esses autores alertam, contudo, que é necessário

que o hóspede seja respeitado na sua privacidade. Muitos hóspedes buscam o

descanso, atividades calmas ou individuais (como uma leitura, por exemplo) e,

neste caso, deve-se evitar fazê-los participar a qualquer custo de atividades que

eles não apreciam.

Em 1973, foi inaugurado o primeiro resort brasileiro, o Club Mediterranée,

na Ilha de Itaparica na Bahia, e, com ele, o conceito de lazer programado por meio

de seus animadores denominados de "gentis organizadores", conhecidos como

"GOs". Esse e os outros resorts dessa rede constituem um desses hotéis já citados,em que os GOs abordam os hóspedes de forma muitas vezes insistente e, por isso,

têm sido muito criticados atualmente.

Segundo Trigo (2002) a década de 1980 foi de muitas dificuldades para a

hotelaria nacional dado os altos índices inflacionários e crises económicas. Mes-mo assim, segundo o autor houve uma lenta expansão das redes hoteleiras nacio-

nais e internacionais.

Na década de 1990, com a estabilização da economia, os investimentos recome-

çaram e o mercado hoteleiro voltou a crescer, aponta Trigo (2002). O autor completaque, desde 1994, a hotelaria nacional vem sofrendo grandes transformações. Novas re-

des internacionais entram no mercado brasileiro. Grandes hotéis de luxo e económicos

têm sido construídos. Os hotéis de lazer se espalham: resorts de luxo são implantados

no litoral brasileiro, hotéis-fazendas são construídos no interior dos Estados, empre-

endimentos antigos passam por reforma ou utilizam novas estratégias de posiciona-

mento, demonstrando a expansão por que está passando a hotelaria nacional.

Todas essas mudanças também fazem com que se profissionalize a área e cres-ça o número de cursos em hotelaria no País. Porém, não é somente o conhecimento

técnico da área de hotelaria e do turismo que deveria possuir o profissional que iráatuar num hotel de lazer. O conhecimento da "teoria do lazer" é fundamental. Mas,

infelizmente, a visão dos gerentes dos hotéis de lazer ainda está longe de ser a ideal. Amaioria deles ainda não tem a consciência de que existe essa teoria do lazer que dêsuporte à atuação deles, bem como à dos coordenadores e animadores desses hotéis.

[HOTÉIS DE LAZER] 111

Page 56: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Estes últimos, como já citado anteriormente, devem estimular os hóspedes a partici-par das atividades de lazer sem constrangê-los.

Assim, os hotéis de lazer têm sido um importante segmento de mão-de-obra,mas espera-se que, futuramente, haja uma fundamentação teórica na área do lazertambém para os que exercem cargos de gestão nesses locais. Espera-se, ainda, que os

coordenadores e animadores também se conscientizem de que essa fundamentaçãoé imprescindível. Dessa forma, a atuação dele seria mais crítica e os hóspedes pode-

riam, então, alcançar o relaxamento e o prazer buscados nos hotéis de lazer.

Olívia C. F. Ribeiro

Bibliografia

ANDRADE, N. et ai. Hotel: planejamento e projeto. 3. ed. São Paulo, Editora SENAC, 2001.

CAMARGO, L. 0. L.; ANSARAH, M.G.R. Animação Turística: um fenómeno da moas?.Revista Turis-mo em análise.SHo Paulo,v.2,n.2 nov., 1991.

CAMPOS, J. R. V. (Org.). Estudo de viabilidade para projeto hoteleiro. Campinas: Papirus, 2003.

CAMPOS, L. C. A. M.; GONÇALVES. Introdução a turismo e hotelaria. Rio de Janeiro: Editora SENACNacional, 1998.

CASTELLI, G. Produto animação. Revista Hotelnews, jul. 1991, n. 237.

MARTINELLI, J.C. Fundamentos multidisciplinares do turismo: hotelaria. In: Turismo: como apren-

der, como ensinar. São Paulo, Editora SENAC, 2000.

MILL.R.C. Resorts: administração e operação. Porto Alegre: Bookman, 2003.

TRIGO, L.G.G. Viagem na memória: guia histórico das viagens e do turismo no Brasil. São Paulo,Ed. SENAC, 2. ed., 2002.

RIBEIRO, O.C.F, et ai. Os hotéis de lazer do estado de São Paulo: um diagnóstico. Santa Cruz do Sul,UNISC/RS, Anais do XIV ENAREL, em CD-Room, 2002.

www.embratur.gov.br, acesso em 12/out./2003.

www.abih.com.br, acesso em 20/out./2003.

INDÚSTRIA CULTURAL

Formulação cunhada pelos alemães Theodor Wiesengrund Adorno e MaxHorkheimer em Dialética do Esclarecimento, texto escrito na vigência do na-zismo (1941- 44) e publicado em 1947. Conjunto de bens culturais, difundidospelos meios de comunicação de massa, impondo formas universalizantes de com-portamento e consumo.

112 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

No esforço de pensar filosoficamente a realidade vigente, marcada por trans-formações nas dimensões política e económica, o conceito de "indústria cultural",tal qual alcunhado por Adorno e Horkheimer, designa o sistema totalitário e massifi-cador que rege a cultura na época de sua produção em série. Os meios de comunica-ção de massa e os objetos de consumo apresentam-se como campo privilegiado para

a reflexão sobre a relação entre política, tecnologia e sociedade. Nele, ganham desta-

que a mercantilização da cultura e sua alienação.

De fato, os meios de comunicação de massa e a cultura de massa são fenóme-

nos decorrentes da industrialização da sociedade. A economia de mercado, conse-

quência da Revolução Industrial ocorrida no século XVIII, possibilitou o desenho da

sociedade de consumo que veio a se consolidar a partir da segunda metade do século

XIX. A discussão em torno do que se convencionou chamar de "cultura de massa"

atingiu seu apogeu após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e uma coletânea

reunindo 49 artigos de diversos autores, organizada por Bernard Rosenberg e David

Manning White, intitulada Cultura de Massa: as artes populares nos Estados

Unidos, apresentou o debate em torno do assunto e tornou-se referência nos estudos

relacionados ao tema. Essa obra inspirou, inclusive, o ensaísta e teórico da comuni-cação Umberto Eco a escrever o livro Apocalípticos e Integrados, um clássico nos

estudos da comunicação. Adorno e Horkheimer e seu conceito de "indústria cultural"estão, na classificação de Eco, sob a rubrica "apocalíptica", significando, de forma

resumida, a perspectiva que via os meios de comunicação de massa como detratores

da cultura, seja popular ou erudita. Já os "integrados", também de forma resumida,

viam esses meios como uma forma única de colocar ao alcance do homem comum

uma riqueza cultural que até então ele não possuía.

Adorno e Horkheimer eram membros da conhecida Escola de Frankfurt (refe-

rência aos pesquisadores e estudiosos do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt,

fundado em 1923) e alcunharam a expressão de "indústria cultural" por considerar

que "cultura de massa", por maior que fosse a crítica que se fazia a ela, possuía cono-

tação democrática, como se fosse uma cultura feita pelas massas. Com o objetivo depolitizar ainda mais a discussão e dar um caráter mais crítico à expressão, o conceitofoi criado e trabalhado exaustivamente no capítulo "A Indústria Cultural: o esclareci-

mento como mistificação das massas"do livro Dialética do Esdareámento,de 1947.Críticos do primado da razão como forma de dominação e do progresso como umfim em si mesmo, os autores denunciam que a difusão em massa das mercadoriasnão visa mais suprir necessidades, mas auto-suprir o mercado mundial. Eis a grandeforça da "indústria cultural": proporcionar ao homem a necessidade de consumirincessantemente. Insatisfeito, o consumidor garante o crescimento e a dinâmica domercado. O desejo de posse constantemente renovado pelo progresso tecnológico e

[INDÚSTRIA CULTURAL] 113

Page 57: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

científico funciona como motor dessa dominação. Assim, as crises de superprodução

preconizadas por Karl Marx como intrínsecas ao capitalismo e que, inevitavelmente,resultariam na sua derrocada, eram "superadas" pelas mensagens persuasivas da pu-

blicidade e dos meios de comunicação. Na era da "indústria cultural", novas formas

de dominação estariam em jogo, mais sutis e ardilosas, perpetuando o sistema e ne-

gando a noção de derrota inexorável como o resultado da síntese da contradição docapitalismo analisado à luz do marxismo.

A tecnologia, comprometida exclusivamente com o mercado, reduziria a infor-

mação e a comunicação às suas dimensões ideológicas e à circulação de mercadoria.

Para Adorno e Horkheimer, a mídia centraliza o económico, produz e dissimula a

relação puramente mercadológica, impondo o mercado como única forma possível

de integração social. A racionalidade técnica seria, hoje, a racionalidade da própria

dominação. O declínio da razão crítica se cumpre com a própria racionalidade ins-trumental em vigência.

Nesta "indústria cultural", o homem não passa de mero instrumento de traba-

lho e de consumo, ou seja, objeto. Com efeito, as massas a quem ela se dirige, nas

vozes do rádio e nas imagens do cinema e da televisão, não são anteriores a esta

indústria - elas são o seu efeito, a sua ideologia. A "indústria cultural" produz, a um

só tempo, o produto e o seu consumidor. Trata-se, portanto, de um sistema que faz

coincidir a produção de coisas com a produção de necessidades, um instrumento de

domínio e integração social que configura, segundo Adorno e Horkheimer, uma novaforma de despolitização da sociedade.

É nesse sentido que os meios de comunicação de massa representam a degra-

dação da cultura, que, seguindo a lógica da indústria e da mercadoria, levam à derro-

cada os sujeitos autónomos, independentes. O exercício livre e crítico da razão en-

contra-se atrofiado por essa indústria que não é senão a outra face do trabalho

mecanizado. A "indústria cultural" se insere no amplo quadro de administração do

tempo livre. Em outros termos, a organização do lazer, em razão da valorização do

capital, promove uma racionalização de procedimentos que expande a reificação da

esfera da produção e do mundo do consumo para o âmbito da vida imediata. Daí a

advertência de que a liberdade produzida no capitalismo não é senão esquecimento

que imobiliza a consciência e a sensibilidade em um presente perpétuo, cristalizado

na cultura do supérfluo descartável. Na substituição veloz das mercadorias, o novo

deteriora-se antes de envelhecer, garantindo, assim, o predomínio da astúcia do capi-

tal e de sua valorização continuada mediante inovação permanente.

Interessante notar que Karl Marx e Friedrich Engels já haviam escrito algo se-

melhante no Manifesto do Partido Comunista, em 1848. O crítico social norte-

114 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

americano Marshall Berman faz uma análise interessante sobre este texto em Tudoque é sólido desmancha no ar, título extraído de uma frase do Manifesto. ParaBerman, Marx e Engels anunciavam ali o drama da modernidade que viria no século

seguinte. Não podemos esquecer que Adorno e Horkheimer eram marxistas e suas

análises são permeadas por essa teoria.

Para eles, os meios de comunicação de massa penetram no cotidiano dos indi-

víduos como uma ordem. "A recomendação transforma-se em comando" (ADORNO;

HORKHEIMER, p. 149), de forma que sujeitos potencialmente livres, diante de meios que

não exigem nenhum esforço de pensamento, tornam-se uma massa passiva e indife-

renciada, conforme a uma realidade que lhe retira o poder de agir e pensar de modo

autónomo e livre. Os autores argumentam que o modelo de transmissão e distribui-

ção de mensagens, próprio dos meios de comunicação de massa, dada a promessa de

gratificação sem esforço, faz com que os homens desejem aquilo mesmo que os do-

mina. Com efeito, ao proibirem a atividade intelectual e crítica do espectador, os meios

de comunicação de massa representam "a vitória da razão tecnológica sobre a verda-

de" (p. 129). E, assim, os valores humanos são substituídos em favor do interesse eco-

nómico. Um exemplo recorrente para Adorno é o cinema. O que antes era um meca-

nismo de lazer, ou seja, uma arte, torna-se um meio eficaz de manipulação. Portanto,

pode-se dizer que a"indústria cultural" traz consigo todos os elementos característi-

cos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja, o de

portadora da ideologia dominante, que outorga sentido a todo o sistema. Com seus

produtos, a"indústria cultural"pratica o reforço das normas sociais, repetidas à exaus-

tão sem questionamento.

Adorno e Horkheimer estão imbuídos de uma concepção da técnica que so-

mente nela vê o processo de automatizar. Entendendo a história como fortalecimen-

to progressivo da razão técnica, que se perfaz com a perda do momento da revolução,

só resta esperar por outro surto revolucionário. Enquanto ele não vem, a tarefa é re-

fletir sobre a arte e a cultura e mostrar como elas lidam com formas de dominação.

A estética é o território privilegiado da análise adorniana. De acordo com o

filósofo, a antítese mais viável para a sociedade é a arte; somente ela liberta o homem

das amarras dos sistemas e o coloca como um ser autónomo, um ser humano. Se

para a "indústria cultural" o homem é mero objeto de trabalho e consumo, na arte é

um ser livre para pensar, sentir e agir. Adorno entende que a "indústria cultural" não

pode ser pensada de maneira absoluta: ela possui uma origem histórica e, portanto,

pode desaparecer. No entanto, os trabalhos sobre a "indústria cultural" são permea-

dos por um forte pessimismo em relação à emancipação do homem, e aí nem mesmo a

arte surge como antítese da ordem vigente, mas sim como uma afirmação do status

quo. Utilizando o conceito de "cultura afirmativa" justamente para designar a perda

[INDÚSTRIA CULTURAL] 115

Page 58: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

dessa capacidade de antítese, os membros da Escola de Frankfurt, incluindo aí, alémde Theodor Adorno e Max Horkheimer, também Herbert Marcuse, foram criticadospor não conseguirem elaborar um esboço de saída viável para o impasse que verifi-cavam. Como o marxismo trabalha com a noção de dialética e, na base dos trabalhosFrankfurtianos sobre arte e cultura, a antítese que negava a ordem vigente estavajustamente centrada na arte, o que acontece quando a "indústria cultural" absorve ocampo artístico e passa a afirmar os valores da sociedade de consumo?

É também recorrente a crítica que remonta à partição entre cultura popular ecultura erudita. Questiona a manutenção a qualquer preço da cultura erudita, porconsiderar que se vai criando um culto quase mítico da cultura, como se ela estivesseseparada da vida das pessoas.

Adorno e Horkheimer, com Walter Benjamin, Erich Fromm, Herbert Marcusee, mais tarde, Júrgen Habermas, formam os expoentes da Escola de Frankfurt, queempreendeu uma vasta releitura do marxismo e da psicanálise, problematizando omodo como se pensa a relação entre capitalismo, sociedade e cultura. Não podemosesquecer que a época em que viveram foi marcada por acontecimentos como a Se-gunda Guerra Mundial, o nazismo, a Guerra Fria e o surgimento e o desenvolvimentodos modernos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, o quelevou pensadores e intelectuais a elaborar teses apocalípticas sobre a relação entregovernantes e governados.

Ricardo Ferreira Freitas

Ronaldo Helal

Fernanda Pizzi

Bibliografia

ADORNO, Theodor. W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarerímento.foo de Janeiro: Zahar, 1985.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979.

ROSENBERG, Bernard.; MANNING WHITE, David. Cultura de massa: as artes populares nos Esta-

dos Unidos.São Paulo: Cultrix, 1973.

INTERNET

A área do lazer tem se apropriado do uso da rede Internet, por suas característicasmarcantes de agilidade de tempo e espaço, assim como pela possibilidade de con-densação de um número sem limite de informações.

116 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

A Internet tem representado um elemento emergente, tanto na difusão das ques-tões voltadas à prática, no âmbito das atuais opções de lazer, quanto no contexto acadé-mico, como um instrumento para o desenvolvimento de pesquisas científicas.

No que se refere a estas novas opções de atividades de lazer, isto é, o lazer virtual,

inúmeras possibilidades, são associadas aos interesses pela busca da conexão em rede,

salientando-se a possibilidade de aquisição de conhecimentos e informações de modomais ágil, de interação social e diversão, com a utilização de salas de "bate-papo", jogos

virtuais e troca de correspondência, evidenciando espaço para todos os interesses cul-

turais do lazer (DUMAZEDIER, 1980; CAMARGO, 1986, SCHWARTZ; SILVA, 2000).

A Internet tem sido apontada como elemento importante para ampliação,

disseminação e mudanças de valores concernentes aos conteúdos educacionais

do lazer, despontando, inclusive, como nova perspectiva de atuação do profis-

sional do lazer.

Uma das principais características desse meio virtual consiste na busca, na

representação, na criação, na distribuição e no gerenciamento de informações em tempo

reduzido, atingindo grandes distâncias, podendo congregar um imenso número de usu-ários simultaneamente. Esses fatores afetam substancialmente a estrutura de disse-

minação de uma informação, tendo em vista seu caráter descentralizador.

Esses aspectos favorecem uma nova visão relacionada à possibilidade de utili-

zação dessa rede com a finalidade de disseminação da educação para o lazer. As in-

formações veiculadas por meio da utilização da Internet contêm textos, figuras, ima-gens e sons que são passados por meio de supervias eletrônicas, com diferentesobjetivos, sendo apropriados no campo do lazer das mais diversas formas, emergin-

do, daí, esse novo conteúdo cultural do lazer, qual seja, o conteúdo virtual.

As características relativas à educação pelo e para o lazer vêm sofrendo inú-

meras interferências, necessitando-se, no momento atual, atualizar e ampliar o con-ceito e os valores relacionados ao lazer, os quais, de forma recorrente na sociedade,

assumem características apenas terapêuticas, utilitaristas ou compensatórias, sendo

minimizados em sua dimensão, conforme alertou Marcellino (1987). Nesse sentido éque se pode identificar, atualmente, o uso da Internet como possibilidade tanto de

prática opcional nos momentos de trabalho, como também de lazer, evidenciando aimportância de seu papel, inclusive na educação para o lazer.

Alguns estudos estão emergindo nas diferentes áreas de conhecimento, focali-zando as diferentes possibilidades de relação do uso da Internet e, no âmbito dosestudos do lazer, pode-se apontar as reflexões de Werneck (1999), salientando oimaginário construído na Internet como uma possibilidade de contribuição para

experiências críticas e criativas no lazer.

[INTERNET] 117

Page 59: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Schwartz et ai. (1998) evidenciaram o uso da Internet como espaço atual delazer, tendo em vista as características da sociedade contemporânea, que focaliza aprocura de diversão e de interação social como os principais objetivos que motivamo acesso de usuários.

A possibilidade de ampliação do espaço educacional sobre os valores do lazerpara além dos muros escolares, especialmente com a utilização da rede Internet, tam-

bém foi tema de outro estudo de Schwartz et ai. (2000), tendo em vista a perspectiva

de desenvolvimento nos níveis pessoal e social, enfatizando-se, inclusive, o espiritode cidadania e de aquisição de direitos.

Uma das tarefas centrais desse veículo de comunicação, em relação à educaçãopara o lazer, é a oportunidade oferecida aos mais variados tipos de pessoas de seinteirarem sobre as diversas formas de usufruir um estilo de vida com maior nível

qualitativo e mais saudável, no qual as experiências podem ser escolhidas conformeo interesse particular e com vínculo imediato ao enredo psicológico de cada indiví-duo, para que se tornem, de alguma forma marcantes e significativas, tendo em vistaa possibilidade de especificidade dos focos nos custos e benefícios das novas pers-pectivas de opções.

No âmbito das pesquisas académicas relacionadas ao lazer, a Internet tem fa-vorecido uma perspectiva de ampliação do universo instrumental, uma vez que essa

tem se tornado uma ferramenta importante para a seleção de amostras específicas,ou como meio de aplicação de questionários e entrevistas, cujo alcance é ampliadosem fronteiras.

Silva e Schwartz (2000) utilizaram a rede para selecionar e entrevistar indiví-duos que se autodenominavam homossexuais, que pudessem auxiliar a compreen-der as possíveis tendências discriminatórias relacionadas à participação social dealgumas minorias, no caso os homossexuais, no contexto do lazer.

Viviani e Schwartz (2002) procuraram identificar, na visão de jogadores de jo-gos virtuais, as principais diferenças de atitudes diante dos estímulos competitivos

no mundo virtual, evidenciando reflexões sobre adversários e parceiros virtuais e aconcepção de jogo envolvida nessas modalidades.

Em outros estudos de Silva e Schwartz (2002), a rede foi utilizada para selecio-nar indivíduos participantes de atividades de aventura na natureza, no sentido decompreender melhor a relação homem-natureza.

Não se pode fazer do progresso humano e dos avanços tecnológicos apenasvilões historicamente concebidos e situados, mas pode-se fazer uso deles, com a fi-nalidade de buscar soluções mais humanizadoras, evidenciando a informação e aorientação precisas como caminhos para um bom uso da tecnologia.

118 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

Tendo em vista essa gama de elementos que permeiam a utilização das novastecnologias no âmbito do lazer, torna-se importante a reavaliação de valores concer-nentes à utilização da rede Internet como coadjuvante no processo de educação parao lazer, assim como um importante e emergente meio metodológico de desenvolvi-

mento de pesquisas académicas.

Gisele Maria Schwartz

Bibliografia

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DUMAZEDIER, J. Valores e conteúdos culturais ao lazer. São Paulo: SESC, 1980.

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WERNECK, C. L. G. Brincando na Internet: uma análise sobre o imaginário presente nos bate-papos

virtuais. Revista Licere. Belo Horizonte, v. 2, n. l, p. 74-90,1999.

LAZER - CONCEPÇÕES

Considerando que a análise das diversas concepções de lazer recorrentes nesse cam-po de estudos é uma tarefa complexa, não se pretende, nesse texto, esgotar o assun-to, mas sim contribuir para as reflexões sobre o pensamento de alguns autores queaprofundaram conhecimentos sobre o lazer, emitindo conceitos sobre este objeto

de estudos.

[LAZER - CONCEPÇÕES] 119

Page 60: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

No Brasil, é recorrente a ideia de que o livro Lazer Operário, publicado em1959 por Acácio Ferreira, trata-se de uma obra pioneira sobre o tema em nosso país.Entretanto, muitos estudos brasileiros sobre o assunto remontam à primeira metadedo século XX, e neles já é possível identificar concepções de lazer em voga naqueleperíodo histórico.

Examinando textos da época é possível constatar que o lazer, em geral, era com-preendido como uma fração de tempo situada no âmbito do chamado "tempo li-vre". Portanto, o lazer era entendido como um fenómeno decorrente das conquistastrabalhistas, materializado na forma da limitação da jornada de trabalho, das fériase fins de semana remunerados, que constituem ainda hoje os períodos de tempo ins-titucionalizados para os descansos, passatempos e diversões.

Nesse contexto, difundiu-se a ideia de que as horas de lazer deveriam ser pre-enchidas com atividades recreativas consideradas "saudáveis" pelos segmentos he-gemónicos. Este encaminhamento contribuiu com a ampliação do acesso das cama-das populares a diversos conteúdos culturais que antes constituíam privilégio daburguesia. No entanto, foi revestido de caráter coercitivo, pois as atividades ofereci-das à população operária eram apenas aquelas consideradas "lícitas".

A visão acima foi reforçada por Arnaldo Sussekind, que explicitou um con-ceito formal de lazer: "o período entre duas jornadas consecutivas de trabalho e osrepousos obrigatórios, isto é, o descanso semanal e as férias anuais" (SUSSEKIND eta/., 1952, p. 16-17).

A concepção que entende o lazer como um período de tempo - que deveria ser"racionalmente"organizado e"adequadamente"preenchido - também pode ser iden-tificada na obra de Acácio Ferreira (1959). Fundamentado em Gerald Fitzgerald, oautor explicita os conceitos que são a essência de sua pesquisa: "Lazer é tempo, erecreação é expansão dos interesses humanos em tempo de lazer" (p.31).

No entanto, a compreensão que restringe o lazer ao tempo subtraído da jorna-da de trabalho foi alvo de reflexões, especialmente na segunda metade do século XX.No Brasil, esse repensar sobre o lazer vem ocorrendo desde a década de 1970, perío-do em que foi notável a repercussão da produção teórica do sociólogo francês JoffreDumazedier. Um exame dos trabalhos produzidos em diversas áreas do conhecimentoindica que o pensamento desse autor representa uma grande referência para os estu-dos sobre o tema, inclusive nos dias de hoje.

Joffre Dumazedier (1979) formulou proposições teóricas pautadas nos resulta-dos das pesquisas empíricas por ele desenvolvidas na França, nas décadas de 1950 e1960, nas quais destaca um sistema de caracteres específicos e constituintes do lazer:

120 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

• Caráter liberatório: o lazer é liberação de obrigações institucionais (profissi-

onais, familiares, socioespirituais e sociopolíticas) e resulta de uma livre escolha.

• Caráter desinteressado: o lazer não está, fundamentalmente, submetido afim algum, seja lucrativo, profissional, utilitário, ideológico, material, social, político,socioespiritual.

• Caráter hedonístico: o lazer é marcado pela busca de um estado de satis-fação, tomado como um fim em si: "isso me interessa". Essa busca pelo prazer, feli-cidade, alegria ou fruição é de natureza hedonística e representa a condição pri-meira do lazer.

• Caráter pessoal: as funções do lazer (descanso, divertimento e desenvolvi-mento da personalidade) respondem às necessidades do indivíduo, em face das obri-gações primárias impostas pela sociedade.

Em suas análises conceituais do lazer, Dumazedier (1973,p.34) o compreendecomo"[...] um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livrevontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou aindapara desenvolver sua formação desinteressada, sua participação social voluntária,ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigaçõesprofissionais, familiares e sociais."

Por situar o lazer como um "conjunto de ocupações", restringindo o fenómenoà prática de determinadas atividades, esse conceito é alvo de críticas por parte dealguns autores. Além disso, Dumazedier define o lazer em oposição ao conjunto dasnecessidades e obrigações da vida cotidiana, especialmente do trabalho profissional,interpretação passível de questionamentos.

Trabalho e lazer, apesar de possuírem características distintas, integram a mes-ma dinâmica social e estabelecem relações dialéticas. É preciso levar em conta o di-namismo desses fenómenos, atentando para as inter-relações e contradições que elesapresentam. Em virtude desse aspecto, trabalho e lazer não constituem pólos opos-tos, representando faces distintas de uma mesma moeda.

Ê importante enfatizar que, na vida cotidiana, nem sempre existem fronteirasabsolutas entre o trabalho e o lazer, tampouco entre o lazer e as obrigações profissio-nais, familiares, sociais, políticas, religiosas. Afinal, não vivemos em uma sociedadecomposta por dimensões neutras, estanques e desconectadas umas das outras, comoo conceito de lazer proposto por Dumazedier nos faz pensar.

Fundamentando-se no pensamento de Dumazedier, Renato Requixa e LuizOctávio Camargo também esboçaram concepções de lazer que coincidem com os pos-tulados do sociólogo francês. Requixa (1980, p. 35) define o lazer como "ocupação não

[LAZER - CONCEPÇÕES] 121

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obrigatória, de livre escolha do indivíduo que a vive, e cujos valores propiciam condi-ções de recuperação psicossomática e de desenvolvimento pessoal e social."

Para Camargo (1986, p. 97), o lazer representa "um conjunto de atividades gra-tuitas, prazerosas, voluntárias e liberatórias, centradas em interesses culturais, físi-cos, manuais, intelectuais, artísticos e associativos realizados num tempo livre rou-bado ou conquistado historicamente sobre a jornada de trabalho profissional edoméstico e que interfere no desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos". Suasobras mais recentes não apresentam um conceito formal de lazer, mas é possível iden-tificar em seus textos a influência do arcabouço teórico formulado por Dumazedier,que é considerado um mestre por Camargo.

Nos últimos anos, os trabalhos de Nelson Marcellino vêm sendo consideravel-mente citados nos estudos sobre o lazer em nosso país. Analisando seu primeiro li-vro sobre o assunto (Lazer e Humanização), observa-se que sua produção intelec-tual também endossou as ideias de Dumazedier. Em outras publicações de sua autoria,verificamos a presença de Dumazedier, embora as análises do sociólogo brasileiro

sejam redimensionadas em alguns pontos. Fundamentado em António Gramsci,Marcellino se vale das perspectivas marxistas para subsidiar suas considerações.

Do ponto de vista conceituai, o autor entende o lazer "como a cultura - compreendi-da em seu sentido mais amplo - vivenciada (praticada ou fruída) no'tempo disponível'."O importante, como traço definidor, é o caráter 'desinteressado' dessa vivência. Não sebusca, pelo menos fundamentalmente, outra recompensa além da satisfação provo-cada pela situação. "A'disponibilidade de tempo'significa possibilidade de opção pelaatividade prática ou contemplativa" (MARCELLINO, 1987, p. 31. Grifos do autor).

Essa concepção amplia o conceito de lazer enunciado, anteriormente, pelo pró-prio autor (MARCELLINO, 1983), no qual lazer e ócio eram colocados em campos opos-tos. Ao redimensionar o lazer como cultura, essa compreensão supera o seu entendi-mento como mero "conjunto de ocupações". Porém, as heranças de Dumazedierpodem ser identificadas na concepção de Marcellino, sobretudo no que se refere àpresença do caráter "desinteressado", do "hedonístico" (busca de satisfação) e, emcerta medida, do "liberatório", como será retomado adiante.

Apesar de promover um avanço na compreensão de lazer, alguns pontos doconceito de Marcellino também vêm sendo foco de questionamentos. Vânia NoronhaAlves (2003, p. 98) pondera: apesar da apropriação, por muitos, dessa concepção delazer, algumas questões precisam ser repensadas. "O que nós, profissionais e estudio-sos do lazer.estamos entendendo por cultura [...]? E o que quer dizer a expressãoemseu sentido mais amplo'? Existe um sentido restrito para a cultura?"

A autora conclui suas reflexões afirmando a necessidade de superar o enten-dimento restrito de lazer como cultura. Associar o lazer com a cultura ressalta a

importância de aprofundarmos conhecimentos sobre esta última. O lazer é uma dasimportantes dimensões da cultura, assim como o trabalho, a educação, a família,

dentre outras.

No que diz respeito ao tempo no qual o lazer ocorre, Marcellino (1987, p. 29)

afirma: "Talvez, fosse mais correto falar em tempo disponível, ao invés de tempo li-vre". Esta afirmação é baseada no pressuposto de que, no seu ponto de vista, "tempo

algum pode ser considerado livre de coações ou normas de conduta social".

O tempo disponível para o lazer implica liberação de determinadas obrigações,

pensamento que se aproxima do "caráter liberatório" proposto por Dumazedier (1979),

autor que também critica os determinismos e coações presentes no suposto tempo

"livre". Para denunciar e refletir sobre esse paradoxo, o autor francês amparou-se

nos pensadores da Escola de Frankfurt, que chamaram a atenção para o fato de que a

produção do tempo livre representou mais uma peça que movimenta a engrenagem

do sistema de produção-consumo capitalista.

É importante ter clareza de que, aparentemente, o chamado tempo livre se opõe

ao tempo de trabalho, mas, na realidade, é sua própria extensão.

António Carlos Bramante, ao apresentar um conceito de lazer, indica sua prefe-

rência pela expressão "tempo conquistado" para assinalar o tempo no qual o lazer é

vivenciado. Segundo sua interpretação, o tempo é um "conceito objetivamente ine-

lástico" que vem sendo encarado como uma mercadoria de luxo, em que a máxima"tempo é dinheiro" chega a refletir o seu significado. "Portanto,'conquistar' um tem-

po da não-obrigação vem se impondo como um desafio para todos que desejam exer-citar a face humana da vida plena" (1998, p. 11). Conforme seu entendimento,"o lazer

se traduz por uma dimensão privilegiada da expressão humana dentro de um tempo

conquistado, materializada através de uma experiência pessoal criativa, de prazer eque não se repete no tempo/espaço, cujo eixo principal é a ludicidade. [...]" (p. 9).

A ludicidade, compreendida como eixo principal da experiência de lazer é, se-

gundo Bramante, uma das poucas unanimidades entre os estudiosos que teorizam

sobre o tema. Esta é, pois, uma referência marcante da discussão conceituai do lazer

no contexto brasileiro, pois, em outros países, nem sempre verificamos o mesmo en-

caminhamento. No Brasil, mesmo com as particularidades que distinguem cada pes-

quisador, a presença do lúdico pode ser constatada em várias abordagens. Leila Pinto

(2003, p. 254), por exemplo, considera o lazer como "espaço privilegiado para a vi-vência lúdica, na qual o prazer é conquista da experiência da liberdade."

Trilhando caminhos marxistas, Fernando Mascarenhas (2001, p. 92) também

formulou um conceito de lazer. Conforme suas palavras, "o lazer se constitui comoum fenómeno tipicamente moderno, resultante das tensões entre capital e trabalho,

122 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER] [LAZER - CONCEPÇÕES] 123

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que se materializa como um tempo e espaço de vivências lúdicas, lugar de organiza-ção da cultura, perpassado por relações de hegemonia".

Neste âmbito, é pertinente fazer uma reflexão: Sendo resultante da tensão capi-tal/trabalho, o lazer não existiu (tampouco existe) nas sociedades que resistem ao

capitalismo? Na opinião de Dumazedier (1979), o lazer é um fenómeno verificadonas sociedades industriais, sejam elas capitalistas ou socialistas.

Mascarenhas, fundamentando-se no pensamento gramsciano, salienta um as-

pecto interessante. O autor esclarece que o lazer deve constituir um espaço de organi-

zação da cultura, ampliando as oportunidades para que se questionem os valores da

ordem social vigente, de maneira que as pessoas não apenas vivenciem, mas tam-bém produzam cultura.

Pelo exposto, a cultura institui uma expressiva possibilidade para se conceber olazer em nossa realidade histórico-social. Apesar de neste texto não se pretender aprofun-

dar conhecimentos sobre o conceito de cultura, pauta-se no pressuposto de que a culturaconstitui um campo de produção humana em várias perspectivas, e o lazer representa

uma de suas dimensões: inclui a fruição de diversas manifestações culturais.

O lazer compreende, dessa maneira, a vivência de inúmeras práticas culturais,como o jogo, a brincadeira, a festa, o passeio, a viagem, o esporte e também as formas de

arte (pintura, escultura, literatura, dança, teatro, música, cinema), dentre várias outraspossibilidades. Inclui, ainda, o ócio, uma vez que esta e outras manifestações culturaispodem constituir, em nosso meio social, notáveis experiências de lazer (GOMES, 2003).

Assim, o lazer é uma dimensão da cultura construída socialmente, em nossocontexto, a partir de quatro elementos inter-relacionados:

• Tempo, que corresponde ao usufruto do momento presente e não se limitaaos períodos institucionalizados para o lazer (final de semana, férias, etc.).

• Espaço-lugar, que vai além do espaço físico por ser um "local" do qual ossujeitos se apropriam no sentido de transformá-lo em ponto de encontro (consigo,com o outro e com o mundo) e de convívio social para o lazer.

• Manifestações culturais, conteúdos vivenciados como fruição da cultura,

seja como possibilidade de diversão, de descanso ou de desenvolvimento.

• Ações (ou atitude), que são fundadas no lúdico - entendido como expressãohumana de significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro ecom a realidade.

Tomando esses quatro elementos como referência, observa-se que o lazer seinscreve no seio das relações estabelecidas com as diversas dimensões da nossavida cultural (o trabalho, a economia, a política e a educação, entre outras), sendo

124 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

institucionalizado na atualidade como um campo dotado de características pró-prias. Mas o lazer não é um fenómeno isolado, pois está em franco diálogo com ocontexto. Por um lado, o lazer pode contribuir para o mascaramento das contradi-ções sociais, mas, por outro, pode representar uma possibilidade de questionamentoe resistência à ordem social injusta e excludente que predomina em nosso meio.

Em síntese, entendo o lazer como uma dimensão da cultura constituídapor meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaçoconquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticascom as necessidades, os deveres e as obrigações, especialmente com o traba-

lho produtivo.

Como nem todas as concepções de lazer em voga nesse campo de estudos fo-

ram aqui apresentadas e discutidas, é importante recomendar a leitura de obras pu-

blicadas por outros autores que vêm trazendo expressivas contribuições para o avan-çar de conhecimentos sobre o tema. Alguns desses estudiosos são, inclusive, co-autores

deste Dicionário. A leitura das obras sugeridas nas referências bibliográficas aquilistadas poderá, assim, instigar reflexões e ampliar os horizontes da discussão con-

ceituai sobre o lazer.

Christianne Luce Gomes

Bibliografia

ALVES, Vânia F. N. Uma leitura antropológica sobre a educação física e o lazer. In: WERNECK, Christi-anne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recreação e educação física. Belo Hori-zonte: Autêntica, 2003, p. 83-114.

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DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 1973.

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[LAZER - CONCEPÇÕES] 125

Page 63: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

PINTO, Leila Mirtes S. M. Inovação e avaliação: desafios para as políticas públicas de esporte e lazer. In:WERNECK, Christianne Luce Gomes; ISAYAMA, Hélder Ferreira (Org.). Lazer, recreação e educaçãofísica. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 243-264.

REQUIXA, Renato. Sugestão de diretrizes para uma política nacional de lazer. São Paulo: Sesc, 1980.

SUSSEKIND, Arnaldo, MARINHO, Inezil P, GÓES, Oswaldo. Manual de recreação (Orientação dos

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WERNECK, Christianne Luce Gomes. Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões

contemporâneas. Belo Horizonte: Editora UFMG/CELAR, 2000.

LAZER-EDUCAÇÃO

Pensar a relação existente entre lazer e educação requer uma tomada de posição em

face da gama de possibilidades, aspectos, desafios e dificuldades que tal questão envol-

ve. Por isso, optou-se aqui por um enfoque sob as principais correntes ou tendências de

explicação ou intervenção no campo do lazer e educação que se configuraram ao longo

da história e que podem ser verificadas, de alguma forma, nos dias de hoje.

De modo geral, é possível identificar três ou quatro perspectivas em que a rela-

ção entre lazer e educação é tratada e estabelecida. Uma primeira tendência, predo-

minante até meados de 1960 e que interveio diretamente na constituição do pró-

prio campo do lazer, é aquela que reclama a aplicação de recursos e estratégias

pedagógicas para a ocupação saudável e produtiva do tempo livre, contribuindo

para a autodisciplina e a correta "organização dos lazeres" por meio da recreação.

Primeiramente atrelada à escola, a recreação aparece já na segunda metade do

século XIX, quando as ideias a respeito da formação de um novo cidadão, que res-

pondesse com disposição e êxito às exigências da nova sociedade que se construía,

penetram o ambiente escolar atribuindo à educação o papel de forjar o perfil social

de homem e de mulher desejado. Nesse intuito e conforme as orientações pedagó-

gicas que vigoravam na época, à recreação coube a função de disciplinar as mentes

e cultivar os corpos das crianças de acordo com a educação moral, higiénica e físi-

ca. Costa (1999) já demonstrou que a recreação dentro de escola procurou corrigir

e encetar determinados hábitos que se tornaram, claramente, sinónimos de disci-

plina e domesticação. Ela era considerada formativa à medida que estimulasse o

corpo e o espírito para a escolha de brincadeiras, exercícios e distrações que recu-

perassem as energias gastas em outras tarefas ou trabalhos escolares. Nesse proje-

to de formação, em que nada podia ser deixado ao acaso, uma vez que o tempo e o

espaço escolares assumem princípios utilitários e disciplinares, as chamadas "horas

livres" são, paulatinamente, preenchidas pelas atividades recreativas que, além de re-

126 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

compensadoras, são também produtoras de vigor físico, remédio necessário para com-

bater a preguiça e o ócio.

Se na escola a recreação cumpriu funções importantes na formação das novaselites, cooperando para que "as crianças aprendessem a retirar do comportamento

social burguês benefícios e prazeres físicos" (COSTA, 1999, p. 186), fora da escola, ouseja, nos chamados Centros de Recreio (equipamentos públicos de lazer destinados

às famílias pobres e operárias, propagados pelas principais metrópoles brasileirasdurante as quatro primeiras décadas do século XX), a recreação assume a feição de

uma formação essencial aos setores populares, sobretudo aos operários, como um

reforço à insuficiente educação praticada no ambiente doméstico. Para Miranda(1962), um dos representantes dessa proposta, além da educação física, moral e inte-

lectual, são objetivos pedagógicos da recreação a educação maternal e a instrução

doméstica, no caso das moças operárias, e a formação para o trabalho, no caso dosrapazes. Sendo assim, as atividades mais indicadas no programa de recreação para a

moça operária podem classificar-se em físicas, manuais, dramáticas, musicais e so-

ciais, e, "entre as atividades manuais, seriam adotadas, em primeiro lugar, todas asque têm aplicação doméstica imediata, como bordados, tricô, costura, decoração do

lar..."(p. 232). Já as atividades sociais "seriam constituídas de tudo aquilo que pudes-se simultaneamente proporcionar o ensino das boas maneiras e socializar no maisalto grau a adolescência operária [...] preparando o espírito das jovens para a consci-

ência de um sadio e puro nacionalismo" (p. 233). Enfim, "trata-se de plasmar mãesoperárias aptas para formar gerações mais capazes e mais robustas que as atuais"

(p. 232). Quanto à educação dos moços,Miranda (1984) deixa claro que os Clubes deMenores Operários "não visam tão-somente, como julgam muitos, à educação física

da juventude trabalhadora de São Paulo. A sua finalidade é mais precípua, mais am-pla, mais universal. Eles visam criar uma personalidade vigorosa no adolescente ope-

rário, uma personalidade cuja expressão seja originada da prática dos jogos dos es-portes e do cultivo de certas formas de arte. É seu objetivo, ainda, o aumento da

capacidade e melhoria do trabalhador profissional, a educação higiénica, o aperfei-

çoamento da vida mental do adolescente, a formação de hábitos morais e a elevaçãoda consciência cívica dos moços" (p. 36-37).

Como se observa, a proposta educativa desenvolvida pela recreação na primei-

ra metade do século XX revela que o lazer surge como uma alternativa no cotidíanoda grande cidade - que já vivia todos os problemas relacionados ao impulsivo pro-

cesso de urbanização e industrialização -, colaborando para a criação de novos com-portamentos e a formação da subjetividade de que a sociedade burguesa precisava.Os centros de recreio, por exemplo, tornaram-se campos dissipadores das ideiasliberais dominantes, por onde se desenvolvia uma estratégia para a adesão dos

[LAZER - EDUCAÇÃO] 127

Page 64: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

setores populares. Travestidos de "serviço social", ou seja, prestando às famílias po-bres a assistência mínima necessária, promoviam valores e saberes a respeito da or-dem, da disciplina, da aquisição de hábitos saudáveis, da ocupação útil e adequadado tempo livre, e forjavam corpos vigorosos, porém dóceis, e comportamentos sub-

missos nas suas relações sociais de classe e na sua condição de força de trabalho no

mercado capitalista. Deste modo, o que se observa é que a recreação, como o conteú-

do do lazer e instrumento de educação, contribuiu para divulgar um novo modelo de

organização do tempo livre e de como ele deveria ser aproveitado, bem como de uma

nova concepção de trabalho, consoante com aquela requerida pelas relações capita-

listas de produção. Cooperou também para a redefinição dos papéis sociais desem-penhados pelo homem, pela mulher e pela classe trabalhadora, não só reforçando a

desigualdade e as relações de poder e dominação já existentes, mas produzindo no-

vos mecanismos de controle e subserviência a elas articulados. Dessa análise, é pos-sível dizer que, em tal perspectiva, há uma visão instrumental e de controle socialsobre a relação entre lazer e educação, vista até os dias de hoje.

A segunda perspectiva de análise da relação entre lazer e educação, essa bemmais complexa, pois são variados os tempos históricos em que foram produzidas e

diferentes as propostas que podem ser consideradas, refere-se ao entendimento deque o lazer é um espaço de educação constante, uma vez que permite aos indivíduos

o descanso e a recuperação das suas forças físicas e mentais para o retorno ao traba-lho, alivia as tensões, mantém-nos ocupados em atividades que lhes dão prazer e,

ainda, promove seu desenvolvimento pessoal e social, condição indispensável para

que o homem se mantenha em equilíbrio e, assim, possa dispor de toda sua energia e

inteligência para a resolução dos problemas e a criação de respostas ajustadas àsmudanças rápidas e emergentes da vida moderna, dando sua contribuição para obem-estar geral da nação.

Gaelzer (1979) é uma personalidade importante dessa segunda corrente. Comênfase na dimensão subjetiva da experiência do lazer e fazendo uma distinção entre

recreação (atividade) e lazer (bem-estar consequente), define este último como "a

harmonia individual entre a atitude, o desenvolvimento integral e a disponibilidade

de si mesmo. É um estado mental ativo associado a uma situação de liberdade, dehabilidade e de prazer" (p. 54). A atitude de cada um torna-se o elemento básico in-

dispensável, não mais a atividade (recreação), e, como "o homem da sociedade atualrecebe constantemente uma carga poderosa de mensagens através dos meios de co-municação, [então] faz-se necessário estar preparado e revestido de uma atitude crí-tica construtiva e sadia para apreciar, selecionar, rejeitar ou aceitar as solicitações eos estímulos externos de maneira cuidadosa antes de serem apreendidos, antes deincorpora-los à personalidade" (p. 53). Segundo a classificação elaborada por Munné

128 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

(1980), tal compreensão pode ser considerada como uma concepção burguesa esubjetivista do lazer, visto que esse é a vivência de um estado subjetivo de liberdadee de expressão da personalidade. E a preparação subjetiva para responder de formaativa e bem-sucedida aos riscos da vida; é, justamente, o que sustenta a relação entre

lazer e educação.

O inglês Parker (1978) é outro que pode ser inserido nessa segunda corrente.

Com alguma influência no Brasil, defende que a experiência do lazer é atravessada

por valores, significados individuais e sentidos sociais, e que a educação se dá de três

maneiras: a educação para o lazer, a educação como lazer e a educação permanente.

Para ele, são objetivos tanto do lazer como da educação desenvolver a personalidade

e o enriquecimento pessoal, promovendo a formação de hábitos, atitudes e estilos de

vida mais "flexíveis e adaptados" e uma postura ativa diante da vida, do lazer e dotrabalho. Critica as experiências de lazer organizadas e reivindica que as atividades

desenvolvidas nesse tempo de liberdade individual tenham um sentido em si mes-

mas. Por outro lado, acredita que o lazer cumpre uma função na vida individual e

social, visto que ele é o "equilíbrio desejável entre a liberdade do indivíduo e o bemda sociedade" (p. 183). Conforme Munné (1980), Parker é um dos autores que se apro-

ximam de uma visão burguesa de lazer e, embora ele seja considerado um teórico,

possui características marcadamente liberais e individualistas, tendo em vista queconsidera o lazer como um assunto privado, por meio do qual se exprime a liberdade

individual, única propriedade humana inquestionável.

Mas são as ideias do francês Dumazedier (1976) que mais penetram os estu-

dos sobre o lazer no Brasil, representando bem essa segunda corrente. Embora não

se refira diretamente à relação entre lazer e educação, vê o lazer como um elemento

central na cultura vivida por milhões de trabalhadores e como mediador importantena democratização da cultura com as massas. Influenciado pelos movimentos de

educação popular na França, defende a elevação das massas mediante a "tomada de

decisões" quanto aos valores transmitidos pelos meios de comunicação e difusão

cultural, assim como a manifestação de atitudes ativas diante das práticas rotineirase imagens estereotipadas, o que "exige sempre um progresso pessoal livre pela busca,

na utilização do tempo livre, de um equilíbrio, na medida do possível pessoal, entre orepouso, a distração e o desenvolvimento contínuo e harmonioso da personalidade"

(p. 258). Dessa forma, indica que o lazer é ação cultural e, como tal, mecanismo deeducação: "A ação cultural poderá ser vista com vistas à ação económica e social, comoo modo pelo qual agentes públicos e particulares intervêm sobre interesses, informa-ções, conhecimentos, normas e valores da população de um grupo ou da sociedadeglobal, em função de seus critérios de desenvolvimento cultural" (p. 280). Recorrendoàs análises de Munné (1980) mais uma vez, é possível dizer que Dumazedier também

[LAZER - EDUCAÇÃO] 129

Page 65: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

se encontra entre os autores da concepção burguesa de lazer, mais especialmente entreos empíricos, embora tenha algumas aproximações com o humanismo marxista. Dequalquer forma, não consegue alçar suas críticas a uma reflexão mais radical e profun-da dos determinantes histórico sociais que condicionam a apropriação do lazer pelas

massas e convertem a cultura popular em indústria de consumo, o que acaba reforçan-do, nesse autor, uma postura ingénua e conservadora, em que o lazer e a educação cum-

prem funções para a manutenção e o funcionamento da ordem estabelecida.

Assimilando profundamente essas referências, o sociólogo brasileiro Requixa

(1980) é outro que exprime seus conceitos acerca da relação entre lazer e educação.Logo de início, ao esboçar suas inquietação quanto ao tema, afirma que o lazer podebeneficiar os indivíduos se vislumbradas suas possibilidades de educação. Trata-se,

então, de aproveitar as ocupações do lazer para o incremento de valores que propiciem

a recuperação, o reequilíbrio ou readaptação, bem como o desenvolvimento pessoal

e social. Nessa direção, o lazer teria um sentido para além dele, e, na sua relação com

a educação, acaba cumprindo finalidades bastante abrangentes, como o sucesso in-

dividual e o bem-estar social, o estímulo à participação ativa no atendimento às ne-cessidades e aspirações de todas as ordens e a disposição para colaborar com a co-

munidade. Dessa forma, o lazer é um elemento de motivação capaz de instigar osindivíduos à procura de mais conhecimentos ou qualificação, sendo sua responsabi-lidade o incremento da própria força de trabalho e da sua capacidade de se realizarno trabalho, no lazer e na vida.

Pensando o conjunto dessas referências e autores, parece haver uma crença noenriquecimento da personalidade humana por meio do lazer, como possibilidade de

liberação das padronizações e automatismos e de adaptação a quaisquer circunstân-cias adversas. Assim, o lazer tem, nessa concepção, um conteúdo psicológico (a com-pensação e estabilização individual), e um conteúdo social (a readaptação e manu-tenção da ordem). Além disso, por meio do lazer, espera-se uma progressivatransferência das responsabilidades referentes à educação, ao sucesso profissional,

ao descanso e à autopromoção, sempre de forma equilibrada e em consonância coma ordem estabelecida, aos indivíduos e coletividades, o que indica, portanto, que estacorrente apóia-se numa visão burguesa e funcionalista da relação entre lazer e edu-

cação, colaborando para o funcionamento harmonioso da sociedade, do poder cons-tituído e das relações de hegemonia.

A estratégia da ação comunitária desenvolvida por Requixa (1973), outra pro-posta importante no debate sobre lazer e educação, caberia bem na visão funciona-lista acima mencionada, não fossem as diferenças empregadas por Marcellino, emmeados da década de 1980, a essa metodologia. Cabe aqui, então, localizar as duascompreensões acerca da ação educativa do lazer neste âmbito e discriminar a quais

130 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

interesses cada uma delas corresponde. Para Requixa (1973), a "essência" da açãocomunitária é a educação social segundo a perspectiva da educação permanente.Originalmente realizada pelo Serviço Social do Comércio (SESC), seu objetivo é, pormeio de atividades de lazer, capacitar o ser humano para "estabelecer, com seu meioambiente, um relacionamento ideal, a fim de que haja desenvolvimento pessoal e

social a um só tempo, consciência de responsabilidade em face do progresso, discer-nimento de situações e ajustamento às realidades cambiantes do mundo contempo-

râneo" (p. 3). Segundo o mesmo autor, a ação comunitária é "um trabalho sócio edu-cativo que consiste numa intervenção deliberada em determinada comunidade,

através de atividades programadas em conjunto com pessoas e instituições locais,

objetivando despertar e ampliar sua consciência para os problemas da comunidade,

sensibilizá-la para a mobilização e coordenação de lideranças e predispô-las para a

ação que vise o encaminhamento de soluções daqueles problemas, ou a tentativa de

realização de aspirações relacionadas com a comunidade como um todo" (p. 9). Nes-

sa perspectiva, a ação comunitária é um processo educativo que, ao conjugar as for-ças dos agentes interventores e da comunidade em geral, parece interessante na ten-

tativa de superar as relações assistencialistas, instrumentais e paternalistas que

vinham predominando na prática educativa do lazer. Por outro lado, quanto aos seus

interesses, fica claro que a preocupação com o ajustamento da comunidade à ordem

social e seu empenho para torná-la socialmente eficaz são traços que reforçam esta

vertente da ação comunitária dentro da lógica funcionalista.

São esses aspectos, dentre outros, que diferenciam a postura de Marcellino(1990). Em primeiro lugar, sua compreensão do duplo aspecto educativo do lazer

como veículo e objeto de educação. Depois, a consideração das suas potencialidades

para o desenvolvimento pessoal e social e para satisfazer necessidades também indi-viduais e sociais. E, sobretudo, na convicção de que "só tem sentido falar em aspectos

educativos do lazer, se esse for considerado [...] como um dos possíveis canais de

atuação no plano cultural, tendo em vista contribuir para uma nova ordem moral eintelectual, favorecedora de mudanças no plano social" (p. 63-64). Concebido como

um dos campos possíveis de contra-hegemonia, Marcellino reveste o lazer e sua rela-ção com a educação de um conteúdo crítico, apostando no engajamento da socieda-

de em direção a mudanças culturais, capazes de fazer com que a experiência do lazer

se torne mais rica e promotora do ser humano em si e, conseqúentemente, que as

pessoas tenham mais prazer de viver e a experiência do lazer possa se tornar maisrica e promotora do ser humano em si mesmo. Opondo às abordagens funcionalistas

a sua compreensão do lazer-educação, o autor orienta a ação comunitária para osinteresses dos trabalhadores, desenvolvendo toda uma experiência nesse campo comas políticas de esquerda e com os governos democrático-populares. Nesse aspecto,

[LAZER - EDUCAÇÃO] 131

Page 66: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

embora a estratégia da ação comunitária mantenha sua estrutura organizativa origi-nal, ela deixa de ser funcionalista, uma vez que a opção política aliada ao compro-misso com os interesses e finalidades que devem cumprir o lazer em nossa realidadeatual para a construção de uma sociedade livre e democrática posicione o autor deacordo como uma visão crítico-humanista da relação entre lazer e educação.

Por último, cabem algumas considerações a respeito da proposta de Masca-renhas (2003) para uma intervenção socioeducativa no lazer sistematizada con-

temporaneamente. Embasado na proposta de educação popular de Paulo Freire,entende o lazer-educação como "posição política e político-pedagógica de com-

promisso com os grupos ou movimentos sociais mediante sua resistência e lutacotidiana por sobrevivência, por emancipação e pela conquista de um mundo mais

justo e melhor para se viver" (p. 22). Nessa direção, ressalta que a intervenção pe-dagógica do lazer deve ultrapassar os limites da ação cultural, devendo se articu-lar à realidade socioeconômica e, tratando-se de uma proposta que visa à supera-ção das atuais condições materiais de existência, especialmente se enfocarmos arealidade dos grupos populares e movimentos sociais específicos, é fundamentalque o primeiro dado a ser conscientizado seja a situação histórica de classe. Umavez articulados a prática pedagógica e os conteúdos do lazer, espera-se que os su-jeitos envolvidos na ação reconheçam-na como espaço de resistência e organiza-ção social, tanto em relação às próprias possibilidades de ocupação e vivência dolazer como em relação à construção das suas estratégias de reivindicação e exigên-cia por mudanças, não só no que se refere ao acesso e fruição dos bens culturais,mas também quanto à sua participação efetiva na produção da cultura, nas deci-sões políticas e na condução da vida social. O lazer como prática da liberdade sig-nifica, então, a possibilidade de, mediante uma experiência lúdica e educativa, re-fletir sobre a realidade que o cerca e praticar a liberdade como um exercício decidadania e participação social. Dessas definições, é possível vincular o autor auma visão crítico-libertadora da relação entre lazer e educação.

Para concluir, parece necessário dizer que se o lazer é concebido como um tem-po-espaço de organização da cultura, como uma instituição que envolve um conjun-to de práticas cujas normas e características internas lhe conferem um estatuto pró-

prio de funcionamento e que agrega a realização de diferentes atividades lúdicas,diferentes formas de divertimento e descontração, ou, ainda, variadas experiênciasde contato e recriação do universo cultural, ele se configura, por sua vez, num campo

de disputas, de negação e de afirmação de interesses e necessidades, promovendo va-lores, saberes e significados articulados às possibilidades e às condições das diferentesclasses sociais (MARCASSA, 2003). Se perdermos essa dimensão de vista, nossa compre-ensão da relação entre lazer e educação ficará submetida ao enfoque instrumental ou

132 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

funcional diante das exigências constantes de reestruturação do mundo do trabalhoe da produção capitalista. É essa a preocupação que está presente na tentativa deapanhar as tendências ou principais visões de mundo que embalam o debate sobre olazer e educação em nosso campo, visando contribuir com a discussão sobre os mei-os e fins do lazer-educação e de seu lugar na construção de uma nova sociedade.

Luciana Marcassa

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LAZER - OCORRÊNCIA HISTÓRICA

A questão da emergência do lazer em nosso contexto se coloca em terreno de dúvi-das e controvérsias que dividem os estudiosos do assunto. Nesse âmbito, é pertinenteretomar uma crucial indagação: o lazer sempre existiu ou representa um fenómenocaracterístico das modernas sociedades urbano-industriais?

A busca de respostas para essa polémica questão demanda, inicialmente, co-nhecer alguns argumentos elaborados pelas duas abordagens que discutem o assun-to, seguidas das objeções dirigidas à tendência contrária. Embora para muitos estu-diosos seja enfadonho retomar essa velha polémica, ela se revela pertinente e atuapara aqueles que ainda não têm conhecimentos e opiniões definitivas sobre ° e _ •Ao invés de apontar uma resposta categórica, este texto procura estimular résobre a emergência do lazer em nosso contexto.

[LAZER - OCORRÊNCIAHISTÓRICAjtlíP

Page 67: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Em geral, os adeptos da primeira corrente situam a origem do lazer nas fasesantigas da nossa história. Esta é a interpretação enunciada, dentre outros autores,por Sebastian De Grazia (1966). Para o autor, falar das origens do lazer significa re-portar-nos à vida social dos filósofos da antiga Grécia. O grego Skholéera um termoque, no uso comum, denotava um tempo desocupado, um tempo para si mesmo quegerava prazer intrínseco. Para Aristóteles, o "lazer" era um estado filosófico no qualcultivava-se a mente por meio da música e da contemplação. Esse estado seria alcan-çado apenas por aqueles que conseguiam libertar-se da necessidade de estar ocupa-do (e de realizar o trabalho produtivo, que era visto como indigno). O ideal clássicode "lazer" indicava, portanto, distinção social, liberdade, qualidade ética, relação comas artes liberais e busca do conhecimento (DE GRAZIA, 1966).

Antes de prosseguir, é essencial chamar atenção para alguns aspectos impor-tantes. Pelas observações efetuadas por De Grazia, é possível identificar certa confu-são entre ócio e lazer - termos que, na língua portuguesa, nem sempre são entendi-dos como sinónimos. Além disso, a palavra "lazer" não integra a língua espanhola e,no caso, o vocábulo ócio é aquele cujos significados são mais próximos. Isso geracomplexos problemas de tradução que acabam interferindo sobremaneira em nossacompreensão sobre o processo de constituição histórica do lazer. Por esse motivo,quando o termo espanhol ócio (sem acento e entre aspas) for empregado neste texto,será utilizado com sentidos semelhantes à nossa palavra lazer.

Frederic Munné, embora discorde de Sebastian De Grazia em muitos pontos,também é favorável à tendência de que a ocorrência do lazer antecede a Idade Mo-derna. Para este psicólogo social, o ócio é um modo típico de nos comportarmos notempo, que se estrutura em quatro áreas de atividade: l) o tempo psicobiológico (des-tinado a necessidades fisiológicas e psíquicas); 2) o tempo socioeconômico, funda-mentalmente referido ao trabalho; 3) o tempo sociocultural, em que nos dedicamosà vida em sociedade; e 4) o tempo de ócio, destinado a atividades de desfrute pessoale coletivo (MUNNÉ; CODINA, 2002).

O autor assinala que Roma introduziu a noção de otium como possibilidadede "descanso para o corpo" e "diversão para o espírito", condição necessária para re-tomar os negócios: trabalho no comércio, exército, política, serviço público. Esse en-tendimento pode ser encontrado principalmente em Cícero, para quem o otium eraestratificado socialmente: estava associado, no caso das elites intelectuais, com ameditação. Porém, no que se referia às pessoas comuns, significava descanso e diver-timento proporcionados, sobretudo, pelos grandes espetáculos. Tratava-se do "pão ecirco" oferecido pelos imperadores e cônsules ao grande público, estratégia que tinhacomo finalidade despolitizar o povo, reduzido à condição de mero espectador. Comisso, Munné (1980) observa que no contexto romano o sentido que prevalece não é ode desocupação, mas de diversão.

134 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

Considerando a importância dos divertimentos para a compreensão do pro-cesso histórico do lazer, podem ser citados os estudos de Ethel Medeiros (1975, p. l),para quem o lazer "corresponde a uma das necessidades básicas do ser humano",não sendo, portanto, característica da sociedade industrial. A autora deixa transpa-recer sua concepção de lazer como um tempo de folga decorrente da interrupção dotrabalho, no qual poderiam ser realizados divertimentos vários/Conforme seu pen-

samento, esses momentos de folga sempre existiram.

A Idade Média caracterizou-se por uma economia predominantemente agrí-

cola e por uma sociedade fechada entre a nobreza que possuía terra e os camponeses

que viviam em estado servil. Foi um período marcado pelo recuo da noção de Estado,no qual prevaleceu um sistema de pensamento fundamentado na lei religiosa e defini-

do pela Igreja, representada pelo clero (WERNECK, 2000). Nos inúmeros feriados existen-tes no período, os poderes hegemónicos procuravam controlar as festas e os diverti-

mentos, procurando conferir às práticas culturais o caráter de culto e de cerimóniasoficiais sérias. As festas oficiais consagravam a desigualdade, a imutabilidade e a dura-bilidade das hierarquias, das normas e dos tabus religiosos, políticos e morais.

Mesmo com a vigência desses preceitos, a cultura popular na Idade Média e noRenascimento proporcionou outras visões deliberadamente não-oficiais que procu-ravam subverter a ordem social estabelecida por meio de ritos e espetáculos cómi-cos. Essas manifestações culturais ocupavam lugar de destaque na vida medieval econtrastavam com as festividades oficiais. Os carnavais, por exemplo, levavam multi-dões às praças e ruas durante vários dias, questionando a verdade dominante e o

regime vigente, como anuncia Bakhtin (1979).

Munné (1980) observa que, com o renascimento, os estratos superiores da so-ciedade poderiam se entregar ao dolcefar niente, ou seja, entregar-se ao desfrute denada fazer. A vida cultural da classe ociosa se converteu, quase integralmente, em umjogo de sociedade no qual se valorizava o passar do tempo sem realizar nada de pro-dutivo. Isso devia-se a um sentido de indignidade do trabalho e à demonstração dacapacidade pecuniária que permite uma vida de ociosidade, reflexo de prestígio, ri-queza, poder e respeitabilidade social.

Contudo, diante do valor ético e religioso do trabalho ressaltado pelas ideiaspuritanas, na Modernidade, a conduta ociosa passou a representar um grave perigopessoal e social. A nascente burguesia industrial adotou profundamente esse pensa-

mento, valorizando a laboriosidade e combatendo os prazeres e distrações "nocivos"- aparentemente, nocivos às camadas pobres (como alcoolismo, algazarra,prostitui-ção, jogos de azar). Mas, na realidade, muito mais prejudiciais ao processo produtivocapitalista em desenvolvimento, que demandou uma nova disciplina de trabalho -

como enfatizado por Thompson (1991).

[LAZER - OCORRÊNCIA HISTÓRICA] 135

Page 68: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Esse pensamento foi difundido na Europa Moderna, período em que ocorre-ram diversas transformações fundamentais para a compreensão do lazer. Como, em

geral, efetuar discussões sobre o lazer na Modernidade é um ponto (em certa medi-

da) "pacífico" entre os partidários das duas correntes, é importante acrescentar ao

debate algumas informações. Os argumentos que se seguem são o ponto de partida

para conhecer os elementos constitutivos da segunda abordagem, baseada no pres-

suposto de que o surgimento do lazer está atrelado às transformações processadas

pela Revolução Industrial.

A tese de que o lazer sempre existiu é refutada por vários pesquisadores, desta-

cando-se Joffre Dumazedier (1979). Ao analisar as sociedades do período arcaico, o

autor sublinha que trabalho e jogo estão associados às festas por meio das quais o

homem participa do mundo dos ancestrais. Embora sejam diferentes, trabalho e jogo

possuem significações de mesma natureza na vida da comunidade: eles se mesclam,

e a oposição entre ambos é menor ou inexistente. Por esse motivo, o autor considera

que o lazer (entendido como um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode

ser entregar de livre vontade após livrar-se das obrigações profissionais, familiares e

sociais) é um conceito inadaptado ao período arcaico.

Segundo sua interpretação, o lazer tampouco existe nas sociedades pré-indus-

triais, pois o trabalho se inscreve nos ciclos naturais dos dias e das estações do ano.

Seu ritmo é natural, sendo cortado por pausas, cantos, jogos e cerimónias - não há,

pois, um corte nítido entre trabalho e repouso, mas uma sucessão de domingos e

festejos que dependem do culto.

Dumazedier não acredita que a ociosidade dos filósofos da antiga Grécia ou

dos fidalgos do século XVI possa ser chamada de lazer. Esses privilegiados de sorte,

cultos ou não, sustentavam sua ociosidade com o trabalho de escravos, camponeses

ou valetes. Portanto, essa ociosidade não se define em relação ao trabalho, não é nem

um complemento nem uma compensação: é um substituto do trabalho. "O lazer não

é a ociosidade, não suprime o trabalho; o pressupõe" (p. 28).

O sociólogo explica que, obviamente, o tempo fora do trabalho é tão antigo

quanto o próprio trabalho. Entretanto, o lazer possui traços específicos, característi-

cos da civilização nascida da revolução industrial. Duas condições foram imprescin-

díveis para que o lazer se tornasse possível para a maioria dos trabalhadores, coexis-

tindo apenas nas sociedades industriais e pós-industriais:

• Nas sociedades industriais, trabalho e lazer escapam dos ritos coletivos. Mes-

mo que sejam exercidos determinismos sociais sobre as preferências das pessoas, olazer depende da livre escolha de cada um.

136 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

• O trabalho profissional destacou-se das outras atividades ao adquirir um li-mite arbitrário, não mais sujeito à natureza. Como o trabalho possui uma organiza-ção específica, o tempo livre é nitidamente separado dele.

Em síntese, o sociólogo francês defende o pressuposto de que o lazer foi gesta-do nas sociedades industriais avançadas - capitalistas ou socialistas. De acordo ele,o lazer "corresponde a uma liberação periódica no fim do dia, da semana, do ano ouda vida de trabalho" (p. 28). Tal compreensão pode ser datada, pois a chamada Revo-lução Industrial foi deflagrada na Grã-Bretanha no século XVIII, com a invenção damáquina a vapor (1769), o que gerou aproximadamente no decurso do século XIX

uma progressiva redução da jornada de trabalho.

Além de Dumazedier, outros autores consideram o lazer como um fenómeno

característico das modernas sociedades urbano-industriais.

Nelson Marcellino (1983) afirma que a gestação do fenómeno lazer como esfe-ra própria e concreta ocorreu a partir da Revolução Industrial, em decorrência dosavanços tecnológicos que acentuaram a divisão do trabalho. Dessa forma, para o au-tor, o lazer é resultante da nova situação histórica em que o progresso tecnológicopermitiu alcançar maior produtividade com menos tempo de trabalho. O lazer surgecomo resposta às reivindicações sociais pela distribuição do tempo liberado do tra-balho, mesmo que fosse apenas para reposição de energias.

Victor Melo e Edmundo Alves Júnior (2003) também procuram refletir sobreesse aspecto. Para os autores, o lazer não nasceu na Grécia Antiga, não surgiu emRoma e também não apareceu na Idade Média. Foi no quartel final do século XVIII,com a implantação do modelo de produção fabril, que ocorreu uma artificializaçãodos tempos sociais. Segundo os autores, foi no seio desse processo, típico da moder-nidade, que o lazer surgiu. Os sentidos e significados desse fenómeno se estabelece-ram, assim, no âmbito das tensões entre os detentores dos meios de produção e ascamadas populares que vendiam a força de trabalho.

Essa abordagem não está isenta de críticas, e algumas delas já foram sinalizadasanteriormente. Uma das finalidades da obra Lazer: necessidade ou novidade? de au-toria de Medeiros (1975), é justamente oferecer subsídios para refutar a tese oponente.Munné (1980), ponderando sobre os argumentos de Dumazedier, considera forçosa efalaz a conclusão de que o lazer seja um produto da civilização moderna. Pontua, ainda,que o sociólogo francês reduz, por definição, qualquer possível manifestação históricado lazer (ócio) à mera desocupação ou ociosidade, o que não procede.

Assim, a acirrada polémica permanece... o que instiga a retomada de algu-mas reflexões.

Obviamente, é questionável denominar de "lazer" a vida social dos gregosda Antiguidade. Mas, indubitavelmente, conhecer e considerar as peculiaridades

[LAZER - OCORRÊNCIA HISTÓRICA] 137

Page 69: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

daquela e de outras realidades que compõem a nossa história pode fornecer expres-sivas contribuições para apreendermos o processo de constituição do lazer. Afinal, éinegável que a vivência das manifestações e tradições culturais da humanidade po-dem auxiliar a compreensão dos significados comumente atribuídos ao lazer em nosso

contexto. Embora algumas ideias tenham que ser repensadas e revistas, este é um

lado da questão que ressalta o valor dos estudos daqueles que acreditam não ser olazer um fenómeno recente.

Por outro lado, também é notório que a era moderna foi fundamental para que

o lazer se estabelecesse como um fenómeno autónomo, normativo e organizado, con-figurando-se da forma como o conhecemos hoje. Esse período também foi palco

para o estabelecimento de importantes reivindicações operárias, o que ressalta a va-lor desse movimento histórico e social para o lazer (WERNECK, 2003).

Tais considerações reconhecem a importância da obra dos autores que se de-bruçam sobre o lazer adotando a Modernidade como referência para suas análises.

Valorizar os conhecimentos produzidos por partidários de abordagens distintas

não significa "ficar em cima do muro" ou propagar um suposto consenso entre as duascorrentes de pensamento que divergem no que diz respeito à ocorrência histórica do

lazer. Significa tomar esses saberes como ponto de partida para novas reflexões.

Alguns autores são contundentes ao afirmar que o lazer surge no século XVIII,ou no XIX. Será?

Os argumentos elaborados por Dumazedier (1979) - notadamente no que serefere à consideração do lazer como fenómeno característico da civilização nascidada Revolução Industrial - refletem seu empenho em conferir à chamada "Sociologia

do lazer" o estatuto de ciência. Para ser reconhecida como um ramo especializado daSociologia, os pesquisadores do lazer precisavam fazer um recorte do objeto estuda-

do, elaborar hipóteses e verificá-las, utilizar estratégias metodológicas confiáveis, for-mular quadros de referência e apontar categorias de análise, dentre outros procedi-

mentos de cunho positivista. Esses encaminhamentos poderiam distinguir a"Sociologia do lazer" dos outros ramos já estabelecidos: Sociologia do trabalho, So-ciologia da família, Sociologia da religião, etc.

Como as manifestações culturais vivenciadas antes da Revolução Industrial semesclavam com as outras dimensões da cultura, considerar a realidade vivida nessa

época inviabilizaria a legitimação da "Sociologia empírica do lazer". Reconhecer que oarcabouço teórico formulado por Dumazedier tenha sido coerente e importante não

significa que tenhamos que concordar, integralmente, com as ideias por ele defendidas.

É demasiado arriscado definir, com exatidão, o momento histórico em que olazer se configura na sociedade ocidental. A busca pela compreensão do passado é

138 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

sempre uma tarefa restrita, mutilada e hermética. Nessa direção, ressalto um insti-gante exercício: percorrer obras de época em busca de elementos que auxiliem a com-preensão do processo de constituição histórica do lazer. Os dicionários, por exemplo,mesmo sendo pejorativamente considerados "senso comum", reúnem os termos em-pregados no vocabulário de uma determinada língua, bem como os significados aeles atribuídos em cada contexto histórico, pois um determinado entendimento pode

transformar-se e evoluir-se ao longo dos tempos.

Em meados do século XVIII, a famosa Enciclopédia (1751), idealizada pelaburguesia "iluminada" pontuou o francês loisir como um tempo vago deixado pelasnossas obrigações, do qual poderíamos dispor de maneira "agradável, honesta e vir-tuosa", caso nossa educação tivesse sido "adequada". A obra salienta que as ativida-

des livres (loisirs) eram a parte da vida que mais nos honrariam e da qual nos recor-daríamos com o maior consolo ao chegar o momento de abandonar a vida. Dessa

forma, a Enciclopédia salientava que as boas ações que compunham o lazer "apro-priado" eram realizadas por gosto e com sensibilidade seriam determinantes para o

"nosso próprio benefício" (MUNNÉ, 1980).

A publicação da Enciclopédia precede a invenção da máquina a vapor e, naobra, já identificamos a emissão de juízos de valor sobre o lazer. Embora a RevoluçãoIndustrial tenha sido um processo, ela ainda não estava em curso na França nesseperíodo. Apesar de reconhecer o mérito da produção de Dumazedier e de outros auto-res que seguem o seu pensamento, as evidências indicam ser um equívoco afirmar queo lazer é um fenómeno observável apenas nas civilizações industriais avançadas.

Na Coleção de Obras Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o termolazer foi identificado em dois dicionários de língua portuguesa: o primeiro data doséculo XIX; o outro, do século XVIII. Bluteau (1789) deriva o termo lazer do inglêsleisure com os significados de vagar, comodidade. D'Almeida e Lacerda (1859), porsua vez, apresentam dois termos: "lazer" e "lezêr". Ambos são derivados do francêsloisir e apresentam os seus significados "antigos": enquanto o primeiro também éentendido como vagar, comodidade, espaço, o segundo é considerado descanso, fol-ga, vagar - além de remeter o leitor ao verbete lazer. De acordo com os autores portu-gueses, ambos os verbetes se tratam, portanto, de um mesmo objeto.

No século XIX, vagar queria dizer "ficar livre, desocupado", sendo o termo opostoà pressa e tomado como sinónimo de ócio, de tempo desocupado, de "falta de diligen-cia" (D'ALMEIDA; LACERDA, 1859, p. 374). A mesma obra apresenta o significado de fol-gar como alegrar, dar folga, divertir-se com folganças, alegrar-se, regozijar-se, diver-timento, função de prazer e recreio.

Todas as palavras acima, embora denotem sentidos imprecisos, guardam re-lação com o lazer nos contextos em questão. Até agora, nenhuma novidade além do

[LAZER - OCORRÊNCIA HISTÓRICA] 139

Page 70: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

que já foi discutido, principalmente porque o lazer continua sendo referenciado nosséculos XVIII e XIX.

Segundo Machado (1969), a forma arcaica do vocábulo lazer era lezer, palavraque remonta ao século XIII com o significado de preguiça, pouca vontade de traba-lhar. Tal informação sobre o lazer nos reporta ao contexto medieval. Mas como o

autor não apresenta os elementos que o permitiram fazer esta afirmação, ainda deixa

dúvidas com relação à procedência dessa localização histórica.

Entretanto, além de Houaiss e Villar (2001) confirmarem a datação do vocábulo

lezer (século XIII), assinalam 1619 como o ano em que a palavra lazer é registrada em

documentos medievais da língua portuguesa. Os autores esclarecem que estas data-

ções foram obtidas mediante consulta ao fichário completo do índice do Vocabulário

de Português Medieval (IVPM), que integra o acervo do Setor de Filologia da Casa

de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Segundo informações fornecidas pelos pesquisa-dores, esse fichário abriga mais de 170 mil fichas, contendo a transcrição de passagensdocumentais extraídas de mais de uma centena de textos medievais.

De acordo com os autores, o lazer representa: a) o tempo que sobra do horário de

trabalho e/ou do cumprimento de obrigações, aproveitável para o exercício de ativida-

des prazerosas; b) atividade que se pratica neste tempo; c) cessação de uma atividade,

descanso, repouso. Os sinónimos e variantes do lazer são: folga e passatempo.

Obviamente, os significados de lazer apresentados Houaiss e Villar são maisprecisos e elaborados do que os sentidos encontrados nos dicionários dos séculosXVIII e XIX, uma vez que guardam relação com o nosso contexto atual, no qual a

palavra lazer já integra o vocabulário comum em muitas localidades. Todavia, os

autores têm o mérito de acrescentar mais uma valiosa informação ao debate: o

registro da palavra lazer com esta grafia em um documento datado de 1619 - ou

seja, do início do século XVII, que pode ser visto como um período que precede as

civilizações industriais europeias, especialmente as "avançadas". Ademais, se "le-

zer" era a forma arcaica do vocábulo lazer, quer dizer que no século XIII já vinham

sendo anunciados alguns significados que são importantíssimos para o objeto denossas reflexões.

Concluindo, a discussão sobre o assunto não se esgota com essas ponderações

iniciais, que sublinham a necessidade de entender o lazer em sua complexidade his-tórica, social, política, cultural e semântica, explicitando suas condições de realiza-

ção em nosso meio. Fica, assim, o convite para o desenvolvimento de outras reflexõese pesquisas sobre a ocorrência histórica do lazer.

Christianne Luce Gomes

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LÚDICO

Atualmente, o lúdico é uma palavra empregada no vocabulário corrente da línguaportuguesa, mas o mesmo encaminhamento não é verificado em outras línguas quedesconhecem este termo, tampouco os seus significados.

Apesar de ser um vocábulo frequentemente utilizado em nossa língua, a com-preensão dos seus significados muitas vezes constitui um ponto obscuro. Como exa-mina Valter Bracht (2003), o lúdico é um termo amplamente utilizado nos estudossobre o lazer no Brasil. Chama a atenção do autor não apenas a recorrência da

140 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [LÚDICO] 141

Page 71: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

expressão "lúdico" nos estudos sobre o lazer, como também a ausência de preocupa-ções em precisar o significado com que se usa essa palavra.

Diversos estudiosos se debruçam em dicionários, enciclopédias e obras es-pecializadas em busca de definições para o lúdico - procedimento interessante, mas,

conforme lembra Nelson Marcellino (1990), pouco esclarecedor. O autor atestou a

imprecisão que ronda o significado comum das palavras que designam o lúdico, bemcomo o seu caráter abrangente.

Nos dicionários da língua portuguesa são apresentados os significados comu-

mente atribuídos ao lúdico, qualificado como um adjetivo"que tem o caráter de jo-

gos, brinquedos e divertimentos", os quais constituem "a atividade lúdica das crian-ças" (FERREIRA, 1986, p. 1.051).

Essa primeira constatação sobre o lúdico pauta-se no senso comum e estimula

discussões. Em primeiro lugar, porque restringe o lúdico a uma única fase da vida -

a infância. Assim, reforça a crença de que pessoas de outras faixas etárias, preocupa-

das com as coisas "sérias" da vida, não podem se entregar às chamadas "atividades

lúdicas", nas quais predomina um suposto caráter inútil-improdutivo. Em segundo

lugar, porque o vocábulo lúdico refere-se apenas aos jogos, aos brinquedos e aos di-

vertimentos das crianças, quando existe uma infinidade de manifestações culturais

construídas socialmente pela humanidade. As manifestações constituem patrimó-nio cultural e refletem os valores, regras, tradições e costumes de determinado gruposocial em diferentes contextos e épocas.

Considerando a produção académica sobre o tema, a maioria dos autores quediscute o lúdico utiliza como referência a clássica obra Homo ludens, escrita em

1938 pelo filósofo Johan Huizinga. Segundo este autor, o lúdico é um fenómeno mais

antigo que a cultura e se concretiza no jogo.

Nas diversas línguas, existem sentidos variados para a palavra jogo, assim comoo emprego de termos distintos para expressá-la. No entanto, ludus é uma palavra

que cobre todo o terreno do jogo na língua latina. De acordo com o autor, o elemen-

to lúdico da cultura se encontra em decadência desde o século XVIII. A partir des-sa época, o espírito lúdico (marcado pela espontaneidade e despreocupação) foi

perdendo espaço para o espírito profissional. Isso pode ser exemplificado pelo es-porte moderno, cada vez mais distante do fair-play, isto é, "boa-fé expressa em

termos lúdicos". Uma das conclusões a que o autor chegou funda-se na constata-

ção de que "a verdadeira civilização" não pode existir sem um certo elemento lúdi-

co (HUIZINGA, 1993, p. 234).

Concordo com Huizinga quando este ressalta que o lúdico caracteriza-se pelalivre escolha, busca a satisfação, possui uma ordem específica (construída pelos

J M

sujeitos envolvidos) e se realiza em limites temporais e espaciais próprios. Porém, nãoavalizo o pensamento de que o lúdico seja gratuito (ou desinteressado) e exterior à vidareal, propiciando a evasão. Embora ciente de que o lúdico pode favorecer a "evasão darealidade", considero esse fato lamentável porque mascara injustiças sociais e estimula

a passividade. Neste ponto, aproximo-me de Umberto Eco, que sublinhou a importân-

cia de considerar as ideologias dominantes na realidade concreta.

Umberto Eco, analisando as considerações de Huizinga, esclarece que esse au-

tor não contextualizou o jogo social, histórica e culturalmente. Com isso, pontua que

Huizinga descreveu o como, mas sem buscar os porquês. Eco argumenta, ainda, que

o jogo sofre pressões do contexto material na forma de prémios, títulos e status. Se

tomarmos a realidade como referência, veremos que o jogo não é "desinteressado"

como supôs Huizinga. Esse questionamento compromete a característica de gratui-

dade do jogo, mas não o lúdico.

Bracht (2003, p. 160) averiguou que na área dos estudos do lazer é "quase uma

unanimidade atribuir ao lúdico (práticas lúdicas, universo lúdico, vivência lúdica)

características eminentemente positivas, como: interessantes, agradáveis, prazero-

sas, criativas, autónomas, voluntárias e livres". O autor pondera: por que o termo

lúdico "recebe, agora, esta conotação positiva?"

A conotação positiva impera nos trabalhos que consideram o lúdico como um

fenómeno que provoca nos sujeitos um estado de agradável sensação. Nesses termos,

a essência da ludicidade poderia ser traduzida como prazer, júbilo, regozijo e alegria.

Embora essa interpretação seja muito difundida em nosso meio, sobre ela recaem

algumas ressalvas. Isso ocorre justamente porque, frequentemente, são emitidos jul-

gamentos idealizados sobre o lúdico.

Nos dizeres de Silvino Santin (1994, p. 29),"a ludicidade é fantasia, imaginação

e sonhos que se constróem como um labirinto de teias urdidas com materiais simbó-

licos". Na visão do autor, o impulso lúdico que habita o imaginário humano contra-

põe-se à"coisificação" do humano, à racionalidade técnica, à razão científica e à lógi-

ca racional do capitalismo.

Como destaca Bracht (2003, p. 162), é problemática "a ideia de vitimizar o lúdi-

co, identificando a razão como o seu algoz". Ao invés de simplesmente preservar o

lúdico no sentido de uma "pureza original", salientando as características desejáveis

(como o prazer, a liberdade, a criatividade -e a autonomia) que o compõem, o autor

alerta que o desafio consiste em potencializar o lúdico numa determinada direção. So-

bre esse ponto, exemplifica a ação da indústria cultural, quando esta apela para o inte-

resse "natural" da criança pelo jogo. Os meios de comunicação de massa estruturam o

universo das brincadeiras e dos jogos infantis por meio da oferta de determinados

142 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER] [LÚDICO] 143

Page 72: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

objetos, fantasias, da delimitação dos espaços e dos tempos, de maneira que a crian-ça não é protagonista, mas mero objeto de um jogo maior.

É fato que vários estudiosos brasileiros que pesquisam o lazer, mesmo não ten-do uma visão idealizada sobre o lúdico, atribuem-lhe uma conotação positiva. Mui-tos autores conferem, ainda, um caráter subversivo e utópico ao lúdico.

Para Nelson Marcellino (1990), o lúdico é um componente da cultura histori-camente situada e pode significar uma experiência revolucionária, urna vez que per-

mite não só consumir cultura, mas também criá-la e recriá-la, vivenciando valores epapéis externos a ela.

Heloísa Bruhns (1993) afirma que é preciso redimensionar o lúdico para além dadiversão ingénua ou simples entretenimento. Isso se torna possível mediante a desco-berta da dimensão humana em sua interação com o meio e através da busca do signifi-cado do lúdico na produção social, em suas raízes históricas e culturais.

O lúdico é considerado por Leila Pinto (1995, p. 20) como vivência privilegiadado lazer que materializa experiência cultural, movida pelos desejos de quem joga ecoroada pelo prazer. Para a autora, concretizar o lúdico é "renovar relações interpes-soais, experiências corporais, ambientes, temporalidades e energias; é reencontrarconsigo mesmo, com o que gosta e deseja [...]."

Liberdade, gratuidade, criatividade, fantasia e mistério são ressaltados porMaurício Roberto da Silva (2001, p. 18), corno valores ontológicos e éticos do lúdico.No sistema de produção capitalista, o lúdico - que é visto como jogo, brincadeira ecriação contínua - é a sua própria negação, uma vez que se contrapõe à racionalida-de produtiva. Na pesquisa realizada com meninos e meninas que trabalham nos ca-naviais de Pernambuco, o autor pontua o caráter de subversão e de transgressão daordem desenvolvidos por meio de ações lúdicas. Essa transgressão "deve ser compre-endida como um caminho cultural e possibilidade real de construção de níveis maisavançados de fazer política, história e cultura."

O autor reconhece que o lúdico não é apenas uma "entidade divina e metafísi-ca, um reino da fantasia, dotado apenas da força transgressora [...]" (p. 16). Além deconter todos os valores citados, contém também uma relação dialética entre consen-so e conflito, dor e prazer, alienação e emancipação.

Vânia Noronha Alves (2003, p. 70), em sua pesquisa sobre o "corpo lúdico Ma-xakali", entende "o lúdico como um valor presente na essência do ser humano que re-presenta, por meio do seu corpo, tanto as possibilidades quanto a diversidade da espé-cie humana, ao mesmo tempo que lhe proporciona prazer e alegria". A autora considerao lúdico como uma dimensão humana que se expressa na cultura. Homens, mulheres ecrianças interferem no meio e sofrem influências dele, o que permite a construção deuma "teia de relações" em que sujeito e cultura são modificados.

144 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

A ludicidade é apontada por José Alfredo Debortoli (2002) como uma dasdimensões da linguagem humana, possibilidade de expressão do sujeito criadorque se torna capaz de dar significado à sua existência, ressignificar e transformaro mundo. Fundamentado em Solange Jobim e Souza, o autor assinala que a lingua-gem vai além da fala: é expressão, é capacidade de tornar-se narrador. Dessa for-

ma, a ludicidade é uma possibilidade e uma capacidade de se brincar com a rea-

lidade, ressignificando o mundo.

Pelo exposto, são várias as interpretações sobre o lúdico. Mas, entre as aborda-

gens possíveis, parece-me acertada a compreensão do lúdico como uma forma de ex-

pressão humana, ou seja, como linguagem, conforme sinalizou José Alfredo Debortoli.

Nesse sentido, para ampliar a compreensão de lúdico é necessário, futuramen-

te, aprofundar conhecimentos sobre linguagem, buscando fundamentos em autores

que se dedicaram ao assunto - tais como Mikhail Bakhtin, que a compreende como

enunciação e atividade constitutiva.

De pronto, afirmamos que o lúdico, sendo linguagem humana, pode manifes-

tar-se de diversas formas (oral, escrita, gestual, visual, artística, dentre outras) e ocor-

rer em todos os momentos da vida - no trabalho, no lazer, na escola, na família, na

política, na ciência, etc. Todavia, como visto, em nossa sociedade capitalista o lúdico éequivocadamente relegado à infância e tomado como sinónimo de determinadas ma-

nifestações da nossa cultura (como festividades, jogos, brinquedos, danças e músicas,

entre inúmeras outras). Mas as práticas culturais não são lúdicas em si. É a interação

do sujeito com a experiência vivida que possibilita o desabrochar da ludicidade.

Em virtude deste aspecto, o lúdico constitui novas formas de fruir a vida social,

marcadas pela exaltação dos sentidos e das emoções - mesclando "alegria e angús-

tia, relaxamento e tensão, prazer e conflito, regozijo e frustração, satisfação e expec-

tativa, liberdade e concessão, entrega, renúncia e deleite. Pressupõe, dessa maneira, a

valorização estética e a apropriação expressiva do processo vivido, e não apenas do

produto alcançado" (WERNECK, 2003, p. 37). Mesmo quando não se obtém o resultado

almejado (por exemplo, torcer ou integrar um time que não sai vitorioso de uma

partida), prevalece o pensamento de que a vivência valeu a pena, sendo mantido o

desejo de repeti-la e conquistar novos desafios.

Nessa direção, entendo o lúdico como expressão humana de significados da/

na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro e com o contexto. Por

essa razão, o lúdico reflete as tradições, os valores, os costumes e as contradições

presentes em nossa sociedade. Assim, é construído culturalmente e cerceado por vá-rios fatores: normas políticas e sociais, princípios morais, regras educacionais, con-

dições concretas de existência.

[LÚDICO] 145

Page 73: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Como expressão de significados que tem o brincar como referência, o lúdico re-presenta uma oportunidade de (re)organizar a vivência e (re)elaborar valores, os quaisse comprometem com determinado projeto de sociedade. Pode contribuir, por um lado,

com a alienação das pessoas: reforçando estereótipos, instigando discriminações, in-

citando a evasão da realidade, estimulando a passividade, o conformismo e o consu-

mismo; por outro, o lúdico pode colaborar com a emancipação dos sujeitos, por meio

do diálogo, da reflexão crítica, da construção coletiva e da contestação e resistência àordem social injusta e excludente que impera em nossa realidade.

Christianne Luce Gomes

Bibliografia

ALVES, Vânia F.N. O corpo lúdico Maxakali; Segredos de um "programa de índio". Belo Horizon-te: FUMEC-FACE,C/Arte,2003.

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BRUHNS, Heloísa Turini. O corpo parceiro e o corpo adversário. Campinas: Papirus, 1993.

DEBORTOLI, José Alfredo O. Linguagem: marca da presença humana no mundo. In: CARVALHO, Alysson et ai.(Org.). Desenvolvimento e aprendizagem. Belo Horizonte: Editora UFMG/PROEX-UFMG, 2002. p.73-76.

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ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

PEREIRA, Aurélio B. de Holanda. Lúdico. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2.ed. rev/aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

GOMES, Christianne Luce. Significados de recreação e lazer no Brasil: reflexões a partir da análi-

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HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.

MARCELLINO, Nelson C. Pedagogia da animação. Campinas: Papirus, 1990.

PINTO, Leila M.S.M. Lazer: Vivência privilegiada do lúdico. In: BELO HORIZONTE. Prefeitura Munici-pal. Secretaria Municipal de Esportes. O lúdico e as políticas públicas: realidade e perspectivas.Belo Horizonte: PBH/SMRS, 1995, p. 18-26.

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146 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

MARKETING

Historicamente, antes de 1930 as estratégias empresariais eram definidas com base

na produção. As principais características desse modelo eram: uma demanda supe-

rior à oferta, produção artesanal (poucas unidades), toda a produção era consumida

e os preceitos da Revolução Industrial acelerando a produção.

Entre as décadas de 1930 e 1950, ocorreu uma alteração no cenário mercadoló-

gico. Foi um período conhecido como Era de Vendas. Nessa fase, houve: sinais de

excesso de oferta, formação de estoques,produção industrial em série e técnicas agres-

sivas de venda. Essas características não ocorreriam por muito tempo. A precisão

industrial e a necessidade de agilizar os processos de distribuição e consumo eram

demandas latentes para as empresas.

Nesse contexto, surgiu a partir de 1950 a Era do Marketing. O início desse pro-

cesso foi marcado por ações inovadoras, como: constatação dos desejos e necessida-

de do consumidor, maior valorização do consumidor e relações permanentes entre

clientes e empresas. O foco principal dessas estratégias era a conquista e a manuten-

ção dos clientes.

No Brasil, o marketing chegou pouco mais tarde. Entre 1950 e 1960, a orienta-

ção ainda era dirigida para vendas. Em 1954 a teoria do marketing chegou ao ambi-

ente académico, com a disciplina "Mercadologia e Ação no Mercado". A partir de

1960, o marketing consolidou-se também no Brasil, com a entrada das empresas mul-

tinacionais e a instalação do Shopping Iguatemi. Até aproximadamente 1970, houve

um uso intensivo e indiscriminado da teoria do marketing no Brasil (MIGUEL, 2002).

A partir desse período, o marketing ganha cada vez mais espaço nas organiza-

ções. Hoje, muitas são as empresas que possuem um departamento de marketing.

Mas a utilização desse conhecimento não é privilégio desses departamentos. A gran-

de tendência é a utilização do marketing integrado, que visa atingir objetivos como

ganhar mercado, dar lucro, melhorar a imagem, além dos objetivos sociais. Como

todos os departamentos da organização promovem o atendimento a esses objetivos,

não é possível deixá-los por conta exclusiva do de marketing.

Mas, então, o que vem a ser, de fato, o marketing? No senso comum, a primeira

ideia que se tem a respeito é "divulgação". Essa compreensão não está equivocada,

mas incompleta e bastante limitada. Conceitualmente, busco apoio em Philip Kotler,

um dos principais estudiosos e autores deste campo. Kotler define o marketing como

"uma orientação da administração que pretende proporcionar a satisfação do cliente e

o bem estar do consumidor, em um prazo longo, como forma de satisfazer aos objetivos

e responsabilidades da empresa". O autor cita um outro conceito, elaborado por Lãs

Casas, que afirma que o marketing e uma área de conhecimento que engloba as

[LÚDICO] 147

Page 74: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

atividades concernentes às relações de troca, sendo estas orientadas para a satisfa-ção dos desejos e necessidades dos consumidores, visando alcançar determinadosobjetivos de indivíduos e organizações (KOTLER, 1994).

Assim sendo, precisamos esclarecer alguns dos termos utilizados pelos auto-res. Para isso, comecemos pelas necessidades. Necessidades humanas são estados de

carência percebida. Maslow classificou e hierarquizou em modelo de pirâmide as

necessidades humanas: fisiológicas, segurança, afeto, status e estima e, por fim, auto-

realização (CHIAVENATO, 1987). Cada um desses níveis de necessidade pode ser satis-

feito de maneiras diferentes. Então, surgem os desejos e as preferências, formados

com base na cultura, nas características individuais e nas peculiaridades regionais.A necessidade de alimentação, por exemplo, pode ser atendida por um prato de feijão

com arroz, ou massa, ou peixe cru, ou, ainda, hambúrguer com refrigerante. No casodo lazer, uma necessidade de relaxamento, por exemplo, pode ser satisfeita com a

leitura de um livro ou revista, por estar deitado em uma rede, frequentar uma sauna

ou salão de jogos, realizar um passeio ou viagem, dentre inúmeras outras possibili-dades. Os desejos representam uma forma variada de atender a uma necessidade e

aumentam conforme a sociedade vai evoluindo tecnologicamente e se industriali-zando. Assim, as empresas buscam criar e oferecer produtos e serviços que satisfa-çam esses desejos.

Os recursos para a satisfação das necessidades humanas são limitados, enquantoos desejos do homem são quase ilimitados. Dessa forma, chamamos de demanda assituações quando os desejos humanos podem ser comprados. Existem oito tipos de

demanda conhecidos: negativa, inexistente, latente, declinante, irregular, plena, ex-cessiva ou indesejada.

Os produtos e serviços ofertados pelo mercado são vistos pelos consumidorescomo pacotes de benefícios. A escolha pelo produto final ocorre pelos benefícios sen-tidos pelos consumidores, em face da satisfação, conforme seus desejos e recursosfinanceiros. Por isso, entendemos a razão pela qual os produtos e serviços disponí-

veis no mercado atualmente são tão sofisticados. A demanda da indústria automo-bilística não é somente por meios de transporte, mas por vários outros fatores, comobaixo consumo de combustível, segurança, status, conforto, luxo. As empresas de la-

zer e entretenimento exploram esse nicho de mercado criando sua oferta de servi-ços/produtos, como: música, cinema, teatro, clubes, hotéis, parques, praças, museus,

shows, shoppings, festas, boates, restaurantes, roteiros turísticos, jogos, modalidadesesportivas, academias, dentre outros. Essas e diversas outras opções visam proporcio-nar realização aos clientes mediante o cultivo do sonho e da fantasia, que são satisfei-tos pelo acesso a experiências de lazer. Chamamos de valor a diferença entre os bene-fícios obtidos na compra e uso de um produto/serviço pelo custo de sua produção.

148 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

A mensuração de todas essas características dos produtos e serviços é realiza-

da pela satisfação do cliente, que é a função do desempenho de um produto em rela-ção à expectativa do consumidor. Dessa forma, entendemos por que o mesmo produ-to pode satisfazer alguém e não satisfazer a outras pessoas. Essas ações são finalizadas

no mercado, que consiste no grupo de compradores reais e potenciais de determina-

do produto/serviço.

Conhecer as necessidades, desejos e demandas dos clientes é o foco principal

das empresas que se destacam por sua orientação para o marketing. Mediante pes-

quisas com consumidores, são analisadas suas queixas, dúvidas e também garantias e

qualidade dos serviços e produtos oferecidos. Busca-se descobrir os desejos não reali-

zados dos clientes, que são observados sobre os produtos que usam da empresa e dosconcorrentes, tentando identificar quais são as preferências dos consumidores. É fun-

damental para subsidiar o planejamento da estratégia de marketing compreender de-

talhadamente as necessidades, os desejos e as demandas do cliente.

A ação mercadológica não tem a capacidade de criar as necessidades, pois elas

constituem fatores internos, inerentes ao ser humano. A orientação externa apenas

estimula a preferência ou o desejo por determinado produto ou marca, de acordocom as diferentes formas de satisfação por parte dos clientes/consumidores.

Para satisfazer as necessidades e os desejos do consumidor, o marketing apoia-

se em quatro ferramentas básicas, também conhecidas como os 4 Ps do marketing:produto, preço, ponto de venda (ou praça) e promoção. Para melhor análise e resulta-

do, a pesquisa permeia todos esses elementos.

O produto é algo que pode ser oferecido a um mercado para atenção, aquisi-

ção, uso ou consumo e que pode satisfazer um desejo ou uma necessidade, enquantoo serviço é um produto essencialmente intangível e, embora seja pago, não resulta

em propriedade. Os produtos possuem três níveis: básico, real e ampliado, sendo clas-sificados em produtos de consumo e produtos industriais, cujos atributos são quali-

dade, características e design.

Os produtos têm o seu desenvolvimento prejudicado quando há: escassez de

ideias importantes; fragmentação dos mercados, restrições societárias e governa-

mentais, aumento do custo de desenvolvimento, escassez de capital, tempo mais rá-

pido de desenvolvimento e ciclos de vida dos produtos mais curtos. Esse fator, o ciclo

de vida, tem os seguintes estágios: desenvolvimento, introdução (distribuição do pro-

duto nos pontos de venda), crescimento, maturidade e declínio. O objetivo principal

do produto é de ser igual ou superior à expectativa do consumidor.

O preço é o volume de dinheiro cobrado por algo. o somatório dos valores tro-

cados pelo benefício de posse ou uso de um bem ou serviço. O preço de produtos e

[LÚDICO] 149

Page 75: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

serviços tem nomenclaturas diversas, podendo ser: aluguel, prémio, mensalidade,honorário, consulta, suborno, passagens, ordenado, taxas, tarifas, comissão, juros,salário, pedágio, contribuições, imposto, franquia, gratificação, diárias, remunera-ção, gorjetas, adicionais, despesa e, mais recentemente, observamos a expressão cus-tos operacionais, logísticos e outros. O preço é a única variável do composto de ma-

rketing capaz de produzir receita, sendo o elemento mais flexível, que pode ser alterado

rapidamente. A definição do melhor preço a ser colocado no produto pode ser basea-

da no custo, no consumidor e/ou na concorrência. Descontos por quantidades espe-

ciais e condições de pagamento também são fatores analisados para uma melhor

definição dos preços, que não podem ser altos nem baixos demais, pois, assim, pro-

vocam desprezo por parte dos clientes. Achar o ponto de equilíbrio não é tarefa das

mais fáceis. O preço deve ser competitivo e compatível com o mercado, estratégia

organizacional e poder de compra dos potenciais consumidores.

Para atingir esse objetivo, existem estratégias de adequação de preços, sendo:

(1) descontos e abatimentos: à vista, por volume, funcional ou sazonal; (2) segmen-

tada: segmento de clientes, versão do produto, localização ou período; (3) psicológi-

ca: definição de um preço psicológico em face de um preço referencial; (4) promocio-

nal: preços de ocasião, geralmente financiados a juros baixos, garantias mais longas t

assistência grátis; (5) geográfica: macrorregiões e microrregiões, zonas, pontos-base;

(6) valor: combina qualidade e bom serviço a um preço justo; (7) internacional: cus-

to de capital, legislação, importação/exportação, câmbio.

O ponto de venda, ou praça, é constituído pelo conjunto de organizações

interdependentes, envolvidas no processo de tornar um produto ou serviço disponí-

vel, para o consumidor final ou organizacional. É a ferramenta que tem como objeti-vo levar o produto até o público consumidor. Pode ser uma edificação ou, no contex-

to contemporâneo, virtual. Possui duas funções: distribuição e comercialização, e

logística (processamento de pedidos, armazenagem, gerenciamento de estoques,

transporte). As principais atividades realizadas nos pontos de venda são: informação

dos produtos, comparações, vantagens e desvantagens; a promoção por meio de co-

municações persuasivas; o contato direto com os compradores; adaptação da oferta

disponível à necessidade dos compradores; negociação de preços, quantidade, condi-

ções de pagamento. Existem três sistemas na variável praça no composto de marke-

ting. O primeiro, chamado de sistema convencional de marketing, funciona com fun-

ções específicas a cada agente envolvido: fabricante, atacadista, varejista, consumidor.

No segundo, conhecido como sistema vertical de marketing, o fabricante é tambématacadista e varejista, relacionando-se diretamente com o consumidor. Já o sistema

horizontal de marketing acontece quando duas ou mais empresas de um mesmo ní-

vel juntam-se para seguir uma nova oportunidade de marketing, combinando capi-

tais, capacidade de produção ou recursos de marketing.

150 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

Encerrando as explanações sobre as ferramentas, apresento, por fim, a promo-

ção, que é um conjunto de ações empreendidas pela empresa no sentido de tornar o

produto atrativo ao cliente, buscando conquistar sua preferência, visando à venda.

A promoção é a parte mais fácil de ser visualizada nas ações de marketing.

Churchill & Peter (apud KOTLER, 1994) ressaltam a importância da comunica-

ção de marketing por meio do modelo AIDA (atenção, interesse, desejo e ação). Eles

apresentam o composto da comunicação formado pela propaganda, publicidade, ven-

da pessoal e promoção de vendas. A propaganda é qualquer maneira paga de apre-

sentação impessoal e de promoção de ideias, bens ou serviços por um patrocinador

identificado, tendo como objetivos informar, persuadir e lembrar. A propaganda é

paga, oferecendo uma razão à compra, enquanto a publicidade, ou informe publici-

tário, é gratuita. A promoção de vendas oferece um incentivo à compra. A venda pes-

soal é o conjunto das atividades realizadas pelo vendedor com o propósito de infor-

mar, motivar e persuadir o cliente a adquirir um produto ou serviço da empresa,

podendo incluir ou não a concretização da venda propriamente dita. A venda pessoal

é o elemento responsável por produzir as receitas para a organização.

Cabe também dizer sobre o papel de relações públicas, cuja função é manter o

contato com os veículos de comunicação, difundindo uma boa imagem do produto e

da empresa, realizando o lobby sempre que necessário. Por fim, o merchandising, que

é observado pelas ações desenvolvidas no ponto de venda (loja) relativas à exposição e

apresentação do produto com o objetivo de produzir a compra.

Como se vê, associar o marketing somente a divulgação é uma ideia extrema-

mente limitada. O marketing é uma complexa teoria mercadológica, da qual o campo

do lazer também está se apropriando. Empresas de entretenimento, parques, clubes,

hotéis, academias e vários outros empreendimentos de lazer já desenvolvem ações

significativas de marketing. O objetivo é sobreviver no mercado, cada vez mais com-

petitivo, complexo, multidisciplinar e exigente.

Daniel Braga Hubner

Bibliografia

CHIAVENATO, Idalberto. Teoria geral da administração. 3. ed. São Paulo: McGraw Hill, 1987.

CHURCHILL JR, Gilbert A. Marketing: criando valor para o cliente. São Paulo: Saraiva, 2000.

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MIGUEL, Almir Márcio. Conceitos centrais de marketing. Belo Horizonte: Centro Universitário NewtonPaiva, 2002 (Palestra).

151

Page 76: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

MEIO AMBIENTE

Tentarei desenvolver questões em torno do conceito do vocábulo "meio ambiente",desde já alertando os leitores sobre a impossibilidade e a improcedência da tentativa de

fechamento nas discussões que serão apreendidas, pois elas representam um olhar, en-

tre muitos outros, sobre o fenómeno a ser explorado. Portanto, mais do que estabelecerdefinições, desejo ampliar e contribuir para a construção do conceito.

Em oposição a um sujeito-observador, o qual situa-se fora do tempo histórico,

perseguindo os sentidos verdadeiros, real, permanente e inequívoco, prefiro me apro-

ximar de um sujeito-intérprete me posicionando diante de um mundo-texto, imerso

na polissemia e na aventura de produzir sentidos a partir de um panorama histórico(CARVALH0.2001).

Inicio expondo um dentre os muitos conceitos estabelecidos, não no sentido de

tomar partido do mesmo, mas para utilizá-lo como possibilidade de iniciar um diá-logo sobre a compreensão do mesmo.

De forma geral, poderíamos pensar o meio ambiente como o modo pelo qual

os organismos vivos (e aqui incluo os seres humanos) interagem com o conjunto de

condições naturais, sociais e culturais, através de influências mútuas estabelecidas

entre os mesmos, envolvendo um campo complexo das relações entre a natureza e asociedade.

De modo a contribuir com o debate, busco Reigota (1998, p.21), o qual define

meio ambiente como "um lugar determinado ou percebido onde estão em relações

dinâmicas e em constante interação os aspectos naturais e sociais. Essas relações

acarretam processos de criação cultural e tecnológica e processos históricos e políti-cos de transformação da natureza e da sociedade".

Assim, a compreensão ultrapassa a ideia do meio que circunda espécies e po-

pulações biológicas, situando o ambiente como categoria sociológica (não biológi-

ca), relacionada a uma racionalidade social, onde estariam envolvidos comportamen-

tos, valores e saberes, bem como novos potenciais produtivos (LEFF, 2000).

A racionalidade instrumental utilitarista numa ética baseada em benefícios

imediatos regeu por um tempo considerável (se é que podemos afirmar o seu desa-

parecimento) a economia e o processo de acumulação, buscando atingir o cresci-

mento económico. Nesse processo os recursos naturais sofreram uma deterioração e

devastação comprometendo a vida no planeta, provocando desigualdades sociais e

um entendimento equivocado de conservação ambiental traduzida como nichos iso-lados. Esse quadro provocou uma crise e uma reação contrária, impulsionando uma

nova racionalidade social diferente da racionalidade científica prevalecente.

152 [DICIONÁRIO CRITICO DO LAZER]

Nesse aspecto podemos visualizar a crise ambiental não somente como criseecológica, mas como crise da razão, na qual os problemas ambientais situam-se comoproblemas do conhecimento. Segundo Leff (2000, p. 217),"apreender a complexida-de ambiental não constitui um problema de aprendizagem do meio, e sim de com-

preensão do conhecimento sobre o meio".

Podemos pensar essas questões engatilhadas a partir da década de 1960, nosmovimentos contraculturais constituindo e desembocando em crises deflagradas no

âmbito das instituições (família, ensino, igreja dentre outras), bem como contestan-do instrumentos socioculturais e político-econômicos de organização das socieda-

des, questionando teorias e práticas em torno da luta pelo poder.

Surge uma noção de ambientalismo, conforme Cascino (1998, p. 266), na qual

está embutida não apenas a preservação de maneira isolada e estanque, mas inte-grando uma infinidade de conteúdos, de complexificação do conhecimento, articu-

lando uma visão diferenciada sobre os acontecimentos naturais, socioculturais, polí-tico-econômicos, num entendimento do ser humano como elemento co-responsável,

fundamental, em tudo o que ocorre no âmbito da sobrevivência física do planeta e daprópria qualidade de vida em um sentido amplo, renovado e diferenciado. Nessa di-reção, prossegue o autor,"as novas configurações do expressar a política, o fazer rei-vindicações, o agir sobre os temas de interesses e importância na defesa de territó-

rios existenciais coletivos e individuais, se reveste de inéditas estruturas simbólicas,abrindo campos até então intocados da expressão humana, rompendo com velhasmensagens, envelhecidas cores de expressão dos desejos".

Um novo ambientalismo, em contraposição à concepção de"proteção à nature-za" presente em instituições provindas do século XIX (sociedades de proteção da

natureza, da vida selvagem, dos animais, etc.) procede, como mostra Diegues (1996,p. 39), desse movimento ativista crítico da sociedade tecnológico-industrial (tanto

capitalista quanto socialista), cerceadora das liberdades individuais, homogeneiza-

dora das culturas e, sobretudo, destruidora da natureza.

Movimento ambientalista constituindo-se em alvo de censuras, pois represen-

tava um modelo importado dos países industrializados, nascido com a opulência dariqueza (rejeitando o industrialismo e os valores consumistas), não refletindo aspi-rações e conceitos sobre a relação homem/natureza dos países subdesenvolvidos, poismuito raramente incluíam o problema da pobreza e, principalmente, a má distribui-ção de renda. Os movimentos ambientalistas nos países subdesenvolvidos estão

diretamente relacionados com as condições de produção e de satisfação das necessida-

des básicas da população, portanto implicam qualidade de vida. Entretanto, na décadade 1980, coloca Diegues (1996, p. 38), "ficou mais difícil a defesa do ambientalismo

primeiro-mundista, por causa da grave recessão que gerou altas taxas de desemprego .

[MEIO AMBIENTE] 153

Page 77: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

As contrapropostas ambientalistas direcionaram-se para uma sociedade liber-tária, constituída de pequenas comunidades auto-suficientes, utilizando uma ciên-cia, um trabalho e uma tecnologia não alienante e a afirmação da sociedade civil emcontraposição a um Estado centralizador.

Uma utopia simplista manifestou-se nesse movimento de ruralização e pro-

posta de volta às comunidades rurais, qual seja, o retorno aos modelos de convíviodos pequenos povoados e vilas.

Trazendo temas de grande alcance político em seu bojo (energia nuclear, auto-nomia local, crescimento económico), desencadearam um afastamento em relação

ao poder instituído, concomitantemente colocando-se como força política, conquis-tando espaços (partidos, ministérios, organizações não-governamentais).

Surgiu um âmbito propício para o desenvolvimento de abordagens, temas e

problemas até então considerados irrelevantes para a investigação social. Não mais

se atendo à narrativa das conquistas dos "grandes homens", esses temas expandi-

ram-se para aspectos da vida cotidiana, examinando modos de amar, trabalhar, di-vertir-se, bem como práticas e representações corporais.

Algumas práticas de lazer, tendo como pano de fundo o ambientalismo - en-

quanto movimento crítico-social -, surgem nessa época, muito próximas às peregri-

nações do movimento hippie ou aos seus propósitos de volta ao campo, em que a

busca pela natureza representava uma contestação de valores em relação à produção

e ao consumo. A natureza como território da experiência passa a operar um reencan-

tamento do mundo. Assim, as visitas à natureza traduzidas nas formas de acampa-mento, caminhadas, exploração de cavernas e montanhismo tornam-se cada vez mais

frequentes, desencadeando posteriormente uma série de atividades na natureza como

o rafting, canyoning, bóia-cross, cascading, tirolesa e outros. Essas atividades foram

desenvolvidas mediante aprimoramentos tecnológicos, os quais promoveram tanto

o acesso a lugares antes inacessíveis (por exemplo, o Everest no Himalaia ou as caver-

nas do PETAR no Brasil) quanto a possibilidade da prática com segurança. O ecotu-

rismo, denominação posteriormente atribuída a essas viagens, ganha destaque como

atividade de lazer, incorporando os conflitos e contradições geradas no próprio am-

bientalismo. Sem deixar de considerar a possibilidade de ações limitadas, acentuan-do a comunidade e a localidade, as resistências locais e regionais, os movimentossociais, o respeito pela alteridade, o ecoturismo corre o risco da apelação por umapolítica sectária e estreita, na qual o respeito pelos outros pode se perder numa com-petição por entre os fragmentos.

Por outro lado, as atividades, em que a pretensão do cunho ecológico é mani-festada, restringem-se a fatores físico-bióticos do meio ambiente, relegando a planos

154 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

de menor importância os aspectos socioculturais e político-econômicos caracterís-ticos das populações locais. Portanto, a redefinição dos modelos de desenvolvimentopautada nos "critérios ecológicos" tem acontecido, como discutem Ribeiro e Barros(1997, p. 39), "muito mais no sentido de uma adequação à ideia de 'equilíbrio com o

meio natural' do que em relação à de justiça social, ao reconhecimento das popula-

ções humanas como os verdadeiros sujeitos do meio ambiente".

Ainda nessa discussão, percebe-se uma forte ênfase nas posturas empresariais e

políticas de planificação e gestão, quando a fala enfoca o turismo sustentável, despre-

zando aspectos relativos aos comportamentos sociais como atitudes, expectativas e va-

lores da população, não respondendo à necessidade de preservação dos recursos natu-

rais para garantir sua continuidade e regeneração, costumes e estilos de vida, na busca

do enriquecimento da experiência turística e nos benefícios advindos dela.

O ecoturismo privilegia áreas naturais apelativas do ponto de vista estéti-

co,"segundo valores ocidentais", como florestas, cachoeiras, rios extensos, canyons,

ocorrendo uma discriminação por áreas naturais "menos nobres", como pântanos,

brejos, cerrados, etc., mesmo reconhecendo que esses ambientes são essenciais para

o funcionamento dos ecossistemas (DIEGUES, 1996). Essa proposta responde a con-

cepções de vida, inspiradas no ambientalismo, apoiados em ideologias ambientalis-

tas e/ou místico-religiosas.

O movimento ambientalista desencadeou vários enfoques, muitos deles con-

traditórios, gerando conflitos a partir de posicionamentos opostos. Dois grandes en-

foques podem ser detectados na análise da relação homem/natureza: o"ecocêntrico"

e o "antropocêntrico". O primeiro visualiza o mundo natural na sua totalidade, o

qual possui um valor independente da utilidade que venha a ter para o ser huma-

no. O segundo incorpora a dicotomia homem/natureza, onde o homem tem direi-

tos de posse e controle sobre o mundo natural, sobretudo através da ciência e da

tecnologia. A natureza representa uma reserva de "recursos naturais" disponíveis

para exploração (DIEGUES, 1996).

Torna-se importante, na compreensão do "mundo natural selvagem", verificar

a posição de algumas linhas de pensamento envolvidas nessa questão. Aproveitando

os estudos de Diegues (1996), detenho-me em três delas: a ecologia profunda, a eco-logia social e o ecossocialismo.

A ecologia profunda é uma vertente ecocêntrica, possuindo influência espi-

ritualista (cristã, religiões orientais e outras), pregando quase uma adoração do

mundo natural. Atribui grande importância aos princípios éticos que deveriam seradotados para reger as relações homem/natureza. Recebeu muitas críticas, pois che-gou a propor ao ser humano "pensar como montanha". O homem tem características

[MEIO AMBIENTE] 155

Page 78: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

humanas e racionará segundo elas, por mais solidário que seja em relação à naturezae por mais crítico que se coloque perante o racionalismo antropocêntrico.

Um "ecofascismo" manifesta-se nessa posição, na qual a sociedade humana,em sua organização, deveria adotar como modelo as características do mundo natu-ral (homeostase, diversidade biológica, dentre outras).A justificação da ordem socialpelas leis da natureza serviu ao totalitarismo, exemplificado aqui com o nazismo, oqual se prevaleceu da seleção natural.

A ecologia social justifica, ao lado dos marxistas, a degradação ambiental comoproduto da ação capitalista. Afirma ser a sociedade humana constituída de gruposdiferenciados, como pobres e ricos, brancos e negros, jovens e velhos, e critica o po-der baseado na noção de Estado, propondo uma sociedade democrática, descentrali-

zada, baseada na propriedade comunitária de produção. Aproxima-se dos anarquis-tas e, assim sendo, afasta-se dos marxistas clássicos. Possui uma vertente utópica,

pois prega a busca por uma comunidade orgânica, a qual se constituiria numa novasociedade, na qual a tecnologia estaria sempre a serviço do homem.

O ecossocialismo surge a partir de uma crítica ao marxismo clássico nas suasconsiderações sobre o mundo natural, alegando sobre ele manter uma visão de natu-reza estática, uma vez que a considera apenas via de ação transformadora do ho-mem, por meio do processo de trabalho, resultando na satisfação das necessidades.

Argumenta ser necessário incorporar na contradição básica da sociedade ca-pitalista a contradição existente entre as forças produtivas históricas e as forças pro-dutivas da natureza, pois, na impossibilidade de estas últimas operarem, instaura-seum impasse na própria reprodução da sociedade.

Essa corrente propõe uma revisão do tradicional naturalismo o qual incorpo-rava uma aversão pela sociedade e pela cultura, tratando o homem como puranatureza.Esse naturalismo negava o culturalismo para o qual a sociedade teria todasas qualidades e a natureza, todos os defeitos, esforçando-se para distanciar o homemem relação à natureza.

O "novo naturalismo" estabeleceria a passagem tanto de uma reação contra anatureza para uma posição reconciliatória ativa, como de uma visão ingénua parauma nova afirmação da relação homem/natureza. Baseia-se em três ideias:

• O homem é produtor e produto de seu meio, e os problemas consequentesreferem-se não ao fato, mas à maneira dessa intervenção. A natureza pura, não trans-formada, representa um museu, uma reserva e um artifício de cultura.

• A natureza faz parte da história, não cabendo voltar atrás para restabeleceruma harmonia perdida, mas sim restabelecer uma relação com o estado da naturezaconforme a situação histórica.

156 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

• A relação com a natureza não se opera de forma individual, mas coletiva. Asociedade é produto do mundo natural por um trabalho de invenção constante. Umasérie de distorções surgiu a partir do culturalismo (sociedade contra a natureza), oqual justificava a necessidade de acumulação como refúgio diante a possibilidade deescassez, gerando proibições e interdições (sexuais, alimentares), provocando a divi-são entre os homens, bem como desigualdades sociais.

Esse"novo naturalismo"propõe uma sociedade onde a natureza representa umapossibilidade concomitante de desenvolvimento humano quanto de participação no

desenvolvimento.

Nesse enfoque, o fechamento da natureza em parques, como já comprovado,acelera a destruição dela (degeneração genética), não estabelecendo uma relação har-

moniosa entre a sociedade e o meio ambiente.

A questão ambiental requer novos conhecimentos teóricos e práticos para suacompreensão e resolução, com alterações na própria ciência, num novo olhar sobre asociedade, induzindo transformações teóricas e um desenvolvimento diferenciadode conhecimento nas diversas áreas do conhecimento. Ela gerou novas problemáti-cas sociais e abriu espaços temáticos para a pesquisa interdisciplinar, a qual, mais doque articulação de ciências, colaboração de especialistas de diversas áreas e integra-ção de recortes selecionados da realidade, significa a transformação ambiental do co-nhecimento produzindo um processo de reconstrução social (LEFF, 2000). Está presen-te aqui uma noção de ciência não pautada em fundamentos seguros, aberta para umprocesso de revisão e autocrítica permanente, privilegiando o jogo das percepçõescriativas em detrimento da manipulação dogmática de fórmulas fechadas. Busca maisuma relação de conjunto e menos a busca precisa de fragmentos; mais a preocupaçãopelo sentido das ações, não se prendendo num enrijecimento racionalista.

O saber ambiental não é homogéneo nem unitário, constituindo-se num processode relação com o objeto e o campo temático de cada ciência, o qual vai abrindo espaçospara a articulação interdisciplinar, gerando novas teorias, disciplinas e técnicas.

Heloísa Turini Bruhns

Bibliografia

CARVALHO, Isabel C. Moura. A invenção ecológica.PoHo Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2001.

CASCINO, Fábio. "Pensando a relação entre educação ambiental e ecoturismo". In: VASCONCELOS,

Fábio P. (Org.) Turismo e meio ambiente. Fortaleza, Editora FUNECE, 1998.

DIEGUES, António Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo, Hucitec, 1996.

LEIFF, Enrique.Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2000.

REIGOTA, Marcos. Meio ambiente e representação social São Paulo: Cortez, 1995.

[MEIO AMBIENTE] 157

Page 79: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

RIBEIRO, Gustavo L.; BARROS, Flávia L. A corrida por paisagens autênticas: turismo, meio ambiente e

subjetividade no mundo contemporâneo". In: BRUHNS, Heloísa T.; SERRANO, Célia M.T. (Orgs.) Via-

gens à natureza: turismo, cultura e ambiente. Campinas: Papirus, 1997.

MERCADO DE TRABALHO

Nas economias mais desenvolvidas, as transformações em curso desde a década de1970, que combinam a introdução de novas tecnologias com novas formas de orga-nização da produção, têm apontado para mudanças profundas no mercado de traba-lho. À medida que diminui a participação do emprego industrial, aumenta a impor-tância de atividades denominadas "serviços" no conjunto dos ocupados.

O trabalho em serviços de lazer, embora ainda pese pouco na estrutura ocupa-cional (em comparação com outros ramos de atividade), tem se mostrado relativa-mente dinâmico, em razão da expansão na oferta pública e privada de atividades deentretenimento. De fato, nos países desenvolvidos, cada vez mais pessoas estão tra-balhando em empresas comerciais, em órgãos governamentais ou no terceiro setor(ou ainda de forma autónoma), abrangendo uma enorme gama de atividades e asse-gurando um leque de opções de lazer dos mais diferentes tipos.

Ocupações que se tornaram tradicionais no campo do lazer, como as de músico,de dançarino e de atleta profissional, são hoje mais valorizadas. E ocupações inusita-das, como professor de artes circenses e de instrutor de trekking, ganharam visibilida-de. Mas, a maior parte dos que trabalham nas diversas atividades desse ramo económi-co exerce ocupações pouco notadas: são bilheteiros, faxineiros, vigias, atendentes etc.

Na década de 1990,8% dos empregos criados nos EUA estavam relacionados àcultura e ao desporto, ao passo que 4% dos empregos gerados na França estavamassociados a serviços de entretenimento e cultura. Porém, na maioria das vezes, ospostos de trabalho criados em empreendimentos desse tipo são mais precários doque os empregos que estão desaparecendo no bojo das mudanças em cursos, isto é,apresentam relações de trabalho menos estáveis e têm menores remunerações.

No Brasil, de modo similar ao que vem ocorrendo nos países desenvolvidos, o mer-cado de trabalho em serviços de lazer tem se expandido nos centros urbanos - mas tam-bém no "novo rural". A maioria dos que são empregados nessas atividades possui baixaqualificação profissional. E ressalte-se que, no contexto nacional, tende a imperar a infor-malidade e a baixa produtividade, às vezes com relações de trabalho quase servis.

Dimensionar o número de pessoas economicamente ocupadas em atividadesde lazer não é tarefa simples, porque são variados os campos de atuação do lazer e nãohá uma fonte de informações apropriada para delimitar com exatidão o conjunto

158 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

dessas atividades e caracterizar seus trabalhadores. A Pesquisa Nacional por Amos-tra de Domicílios (PNAD), do IBGE, permite examinar seis ramos de atividade: 1) osserviços de diversão (danceteria, boate, cinema, teatro, circo, escola de samba, gru-po de dança, brinquedos mecânicos, fliperama, parque de diversões, aluguel de lan-cha, salão de bilhar, locadora de vídeos, promoção de espetáculos, músicos, etc.); 2)05 serviços de hospedagem (hotéis, motéis, pousadas, hospedarias, etc.); 3) as or-ganizações esportivas (clube social, federação ou associação desportiva, estádio,piscina pública, quadra esportiva, camping etc.); 4) os serviços de comunicação(empresas de rádio ou televisão); 5) as organizações culturais (museu, biblioteca,centro cultural, aquário, jardim botânico, jardim zoológico, reserva ecológica etc.); e6) os jogos e outros (jogo do bicho, cassino, clube de caça, bordel, meretrício, prosti-tuição, etc.). Por problemas metodológicos, ficam de fora alguns segmentos que po-deriam ser incluídos como "opções de lazer", a saber: restaurantes, choperias, sorve-terias, academias, saunas, agências de viagem, ou mesmo shopping center.

Em 2001, somando-se esses seis ramos de atividade, havia l, l milhão de pessoastrabalhando com lazer no País - 1,9% do total de ocupados não agrícolas. Estima-seque, entre 1992 e 2001, 293 mil novos postos de trabalho foram criados nessas ativida-

des (variação positiva da ordem de 36%).

O segmento que mais cresceu, nesse conjunto, foi o de serviços de diversão,cuja participação alcançou 37% do total dos ocupados em atividades de lazer, em2001.0 segmento de serviços de hospedagem (cujos mercados têm certa sazonalida-de) teve um crescimento relativamente pequeno, passando, assim, para a segundaposição em termos de participação (24%). Em terceiro lugar aparecem as organiza-ções esportivas (17%). Chama atenção, também, o fato de as organizações culturaisocuparem uma parcela muito pequena desses trabalhadores (menos de 3%).

Tabela l - Ocupados em serviços de lazer (Brasil, 2001)

Ramo de atividade

serviços de diversãoserviços de hospedagemorganizações esportivasserviços de comunicaçãoorganizações culturaisjogos e outros

Total

N

408.221267.217186.276114.11431.08590.692

1.097.605

%

37,224,317,010,42,88,3

100,0

Remuneraçãomédia

644,43526,72535,24

1.027,97595,75318,86

608,84

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: 2001.

[MERCADO DE TRABALHO] 159

Page 80: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Em relação aos rendimentos dos ocupados em atividades de lazer, houveuma melhoria razoável entre 199212001: o rendimento médio mensal aumentoude R$ 513 para R$ 609. De qualquer modo, trata-se de um valor relativamente baixoque correspondia a 3,3 salários mínimos em 2001 (o mesmo rendimento médio doconjunto dos ocupados não agrícolas, na época). As remunerações mais elevadas si-tuavam-se nos serviços de comunicação (média de R$ 1.028 ou 5,6 sm); as maisbaixas nas atividades ligadas a jogos e prostituição (R$ 319 ou 1,7 sm). O aumentomais significativo no poder de compra dos rendimentos ficou por conta dos ocupa-dos em organizações esportivas (32%), cuja remuneração média (R$ 535 ou 2,9 sm)ainda assim, continuou abaixo da média geral dos ocupados em lazer.

Certamente, o número de pessoas direta ou indiretamente envolvidas com aoferta de atividades de lazer está subestimado, já que a metodologia adotada nãoinclui, por exemplo, os professores de Educação Física, os trabalhadores em acade-mias e os funcionários municipais que trabalham em secretarias de esporte, lazer,cultura ou turismo. De qualquer modo, a estimativa apresentada serve de referênciainicial para debater o campo de trabalho dos profissionais que procuram ocupar umlugar neste mercado tão heterogéneo.

Para completar esse quadro geral do mercado de trabalho em lazer, é oportunovisualizar os diferenciais de remuneração e jornada de trabalho entre profissionaisde distintos segmentos. Na Tabela 2, foram selecionadas algumas ocupações caracte-rísticas do ramo de lazer e entretenimento no Brasil, mas sem circunscrever o levan-tamento àqueles segmentos anteriormente referidos.

Em primeiro lugar, chama atenção não só a quantidade de técnicos esporti-vos, músicos e artistas, mas também o número considerável de diretores de espe-táculos e de comunicadores. Em segundo lugar, destaca-se a relativamente alta re-muneração média mensal dos atletas profissionais (certamente, os altíssimosrendimentos da elite puxa a média para cima) e a baixa remuneração média dosartistas de circo (que recebem rendimentos não monetários, principalmente ali-mentação e moradia), lembrando que o salário mínimo legal estava fixado emR$ 180 na época. Por último, nota-se que a jornada média dos cinegrafistas ultra-passava 45 horas semanais, ao passo que os árbitros esportivos trabalhavam apenas7 horas por semana, em média.

Vale a pena ressaltar as duas categorias profissionais mais numerosas nesserecorte. Os técnicos esportivos trabalhavam, em média, 31 horas por semana e ga-nhavam, em média, 3,4 sm por mês. Por sua vez, os músicos ganhavam 3,3 smmensais, em média, e trabalhavam apenas 23 horas por semana, em média.Mas, em geral, os primeiros exercem sua profissão durante o dia e os segundos noperíodo noturno.

160 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

Tabela 2 - Remuneração e jornada detrabalho em ocupações selecionadas (Brasil, 2001)

Ocupação

músico

artista de teatro, rádio, tv

artista de circo

diretor de espetáculos

cinegrafista

cenotécnico

operador de estúdio

comunicador

atleta de futebol

atleta de outro esporte

árbitro esportivo

técnico esportivo

N

87.155

45.705

1.162

18.585

10.660

24.263

10.849

24.029

9.903

4.075

3.393

109.369

Remuneraçãomédia

599,06

629,51

194,02

1.301,28

1.014,17

524,79

1.221,92

445,51

1.323,31

1.618,21

254,91

607,28

Jornadasemanal

23,4

26,6

30,6

39,0

45,1

32,8

41,1

29,2

29,5

' 27,1

7,0

30,7

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: 2001.

Em suma, o mercado de trabalho em lazer, no Brasil, não só tem se expandi-do, como é bastante heterogéneo. Há, certamente, diferenças regionais que não foramaqui explicitadas. Mas o importante é que são muito diversificados os campos deatuação profissional, nesse ramo, que se abrem para pessoas das mais diferentes for-mações académicas.

Marcelo Weishaupt Proni

Bibliografia

MARCELLINO, Nelson (Org.) Lazer: formação e atuação profissional. Campinas: Papirus, 1995.

POCHMANN, Mareio. A década dos mitos. São Paulo: Contexto, 2001.

PRONI, Marcelo Weishaupt. O mercado de trabalho em serviços de lazer no Brasil. Anais do XV Enarel.Santo André: Sesc, 2003.

TRIGO, Luiz Gonzaga G. Filosofia da formação profissional nas sociedades pós-industriais: um

olhar para o além do tradicional: o caso do lazer e do turismo. Campinas: Unicamp, 1996. Mimeo.

[MERCADO DE TRABALHO] 161

Page 81: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

MÍDIA

Palavra aportuguesada do inglês media, adotando a sua pronúncia. Origina-se do la-

tim media, forma plural de médium (meio). Aplicada ao campo da comunicação soci-

al, é associada ao fenómeno de massa, sendo, portanto, também uma simplificação daexpressão original em inglês mass media, ou meios de comunicação de massa.

Designa, de forma restrita, um conjunto de meios de comunicação, que inclui

indistintamente, diferentes veículos, recursos e técnicas. Nesse sentido, é subdividi-

da em mídia digital - baseada em tecnologia digital como a Internet e TV digital;

mídia eletrônica - TV, rádio, cinema e outros recursos audiovisuais; mídia im-

pressa - jornais, revistas, mala-direta,/oWer, catálogo, etc.; Mídia mix - multimí-

dia ou uso interativo de diferentes recursos e técnicas de veiculação. Nesse sentido, é

entendida também como suporte ou a tecnologia usada para gravação ou registro de

informações (por exemplo, o CD, a fita cassete ou VHS, o impresso, etc.).

Há quem prefira referir-se à mídia no plural (SANTAELLA apud BETTI, 1998), en-

tendendo que a expressão mídias representaria melhor os diferentes veículos ou fer-

ramentas de veiculação da mensagem, cabendo a cada uma delas determinado papel

ou função comunicacional na sociedade, assertiva que se justificaria pelas diferen-

ças de base tecnológica de cada uma delas e pela perspectiva da inter-relação e com-plementaridade existente no conjunto das mídias.

Baitello Jr. (2003) reconstitui a proposição de Harry Pross para uma classifica-

ção da mídia em primária, secundária e terciária. Mídia primária relaciona-se ao

sujeito, no âmbito da corporalidade humana e suas relações sócio-históricas, a ges-

tualidade, a mímica, a expressividade, a fala, dentre outras. A mídia secundária é

constituída pelos "meios de comunicação que transportam a mensagem ao receptor,

sem que este necessite de um aparato para captar seu significado". São mídias secun-

dárias, portanto, "a imagem, a escrita, o impresso, a gravura, alotografia, também seus

desdobramentos enquanto carta, panfleto, livro, revista, jornal, [...] máscaras, pinturas,

adereços corporais, roupas (sistemas de vestimentas e moda), a utilização do fogo ou

fumaça (incluindo os fogos de artifício e fogos cerimoniais, velas, etc.), os bastões, a

antiga telegrafia ótica, bandeiras, brasões [...], pinturas e quadros, cartaz, bilhete, ca-

lendário." A mídia terciária consiste naqueles "meios de comunicação que não po-

dem funcionar sem aparelhos tanto do lado do emissor quanto do lado do receptor".

São exemplos a "telegrafia, telefonia, cinema, radiofonia, a televisão, indústria fonovi-

deográfica e seus produtos, discos, fitas magnéticas, CDs fitas de vídeo, DVSs, etc."

A partir de uma análise sociológica de vertente crítica, a mídia pode sercompreendida como uma indústria - a indústria midiática - que produz, veicu-la e determina "mercadorias" ou bens culturais banalizados para o consumo,

162 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

funcionando como o principal braço operacional da Indústria Cultural, posto que, apartir do conceito formulado por Adorno e Horkheimer (1985), ao pretender a inte-

gração de todos a padrões gerais de consumo, não apenas adapta seus produtos às

massas, mas o determina. A Indústria Cultural impõe um novo ritmo ao consumi-

dor, molda da mesma maneira o todo e as partes. Ele não tem mais escolhas, porque

não há nada mais a classificar que o esquematismo da produção já não tenha anteci-

padamente classificado. Por intermédio da mídia, a Indústria Cultural, produtora e

disseminadora de cultura, sobretudo da cultura danificada, oferece o produto cultu-

ral integrado à lógica do mercado não como elemento de formação, mas como forta-

lecedor e incentivador da integração à sociedade administrada.

Assim, admitindo que a cultura contemporânea se apresenta como um grande

mosaico de símbolos e significações e socialmente compartilhado, que são produzidos

pela Indústria Cultural e colocadas em circulação pelos meios de massa, e também pela

crescente integração e dependência da sociedade aos sentidos assim veiculados, pode-

mos reconhecer que a mídia vem se tornando a principal promotora de tais significa-

dos sociais, influenciando não apenas na forma, mas, sobretudo, no conteúdo (ou na

sua secundarização) do que reconhecemos e nos apropriamos como bens culturais. É

nessa interseção que se localizam, por exemplo, os estudos midiáticos sobre a função

de agendamento social (agenda-setting) exercida pela mídia, que se refere aos possí-

veis efeitos de longo prazo sobre o cidadão e a sociedade (WOLF, 2001). Ao produzir e

introduzir matérias sobre determinado assunto (normalmente já acompanhado de um

juízo de valor preliminar) em seu discurso (PIRES, 2002), a mídia pauta a sociedade e a

cada um de nós, estabelecendo os temas sobre os quais devemos ter opinião e, no limi-

te, influenciando na formação da nossa opinião pública sobre eles.

Esse aspecto, aliás, faz parte de uma das características mais debatidas no que

se refere à mídia, qual seja, a sua função como, talvez, o mais poderoso interlocutor

na construção do espaço público e da política e, por extensão, da cidadania. A metá-

fora que considera a imprensa como o 4° Poder da República parece nunca ter sido

mais adequada à situação que se percebe hoje na sociedade contemporânea. De fato,

alerta Habermas (1984) que a esfera pública era o âmbito de mediação entre o Esta-

do burguês, o cidadão-sujeito e as forças organizadas da sociedade, sendo considera-

da como o espaço em que as liberdades civis e os direitos constitucionais podiam ser

exercidos em sua plenitude. No último século, porém, de integrante importante desse

contexto, por dar visibilidade e permitir a veiculação da crítica aos atos governamen-

tais, a mídia passa a intervir de forma a individualizar e privatizar os indivíduos,

impedindo a formação de uma opinião pública racional, crítica e dialogicamente

constituída. Para Habermas (1984), o imbricamento da racionalidade técnica-ins-trumental como modo da ação política do Estado, que dispensa o debate normativo

[MÍDIA] 163

Page 82: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

por ser inquestionável, com os interesses privados na publicidade oportunizada pelamídia,"colonizou" ou "refeudalizou"a esfera pública, transformando-a em teatro para

promover a pseudoparticipação de uma população altamente despolitizada e massi-ficada, que é, assim, substituída pela mídia.

Por fim, cabe breve reflexão quanto ao processo de danificação da experiência for-mativa humana na sociedade contemporânea, em vista da progressiva substituição docontato e apreensão direta da realidade pela mediação tecnológica exercida pelos meios

de comunicação de massa, notadamente a televisão, os jogos eletrônicos e a Internet.

Com base no pensamento dos teóricos críticos da Escola de Frankfurt, a expe-riência cultural formativa (Erfahrung) implica o caráter ativo do sujeito em se apro-

priar conscientemente da realidade, num processo dialógico entre o fato em si e aformulação do seu conceito, que demanda um necessário tempo para a sua vivência,

reflexão e subjetivação (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 1998). Nesse processo, são mobilizadosreciprocamente mecanismos de sensibilização e racionalização que possibilitam aincorporação da experiência como conhecimento (ZuiN,1999).

Ocorre que, quando a realidade sobre a qual se poderia estabelecer uma expe-riência formativa nos é apresentada de forma racionalizada e naturalizada, desen-carnada das suas contradições e complexidades, como é típico do que promove odiscurso midiático, ocorre uma adulteração da vida sensorial (COSTA, 2002).

A mediação tecnológica utiliza géneros que simplificam e deterioram as estru-turas subjetivas de percepção, favorecendo o caráter de integração (in)voluntária àcultura tecnicamente mediada. O imenso fluxo de estímulos em forma de mensagem

que é disponibilizado pelos meios eletrônicos e a velocidade com que vão se suce-dendo à frente do indivíduo provocam uma apreensão fragmentada e superficial darealidade, porque destituída dos elementos e do tempo necessário para a reflexão esua incorporação subjetiva como experiência. Assim, por constituir-se um conjuntodifuso de informações, não possibilita que o receptor se aproprie efetivamente darealidade e possa agir sobre ela.

A repetição massificada desse contato prejudicado com o real compromete a au-tonomia da recepção e a qualidade da formação cultural produzida, gerando uma adap-tação ao simplificado de tal modo que qualquer atividade que demande um esforçomaior de preparação, de leitura, de reflexão e de interpretação é sumariamente despre-zada, porque impossível de ser compreendida em toda a sua plenitude/complexidade.

A consolidação desse processo, especificamente em relação aos aspectos for-mativos sensoriais e estéticos que a experiência lúdica pode promover, isto é, a suaprogressiva substituição por tais vivências eletronicamente mediadas, gera umabanalização do lazer que passa a ser concebido como mero entretenimento pela

indústria cultural. De fato, a fruição da cultura em sua plenitude, traço característicoe identificador do lazer (MARCELLINO, 1987), tende a não se efetivar quando substituí-mos a autonomia de realizar atividades com total liberdade de escolha quanto aotipo, ao tempo e à forma de vivência por atitudes passivas, que demandam apenas(re)agir ao ritmo de desenvolvimento de ações que simulam, até mesmo virtualmen-te, situações de movimentos que nos mantêm imobilizados e, pior ainda, submetidosaos controles externos exercidos pelos artefatos técnicos.

Giovani De Lorenzi Pires

Cássia Hack

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ÓCIOUm dos fenómenos culturais mais antigos de que temos registro, durante a longahistória da humanidade, o ócio, assume diversas feições e significados origina-dos de um tempo e lugar e pelas ações e relações humanas neles construídas.

Page 83: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Para compreendê-lo temos de percebê-lo em sua historicidade, apanhá-lo em movi-mento, enxergá-lo como uma expressão dos diferentes modos de vida constituídos e

como manifestação cultural que, permeada por valores e sentidos específicos, acabapor assumir características próprias, definindo-se como uma experiência destacada

das demais atividades humanas. Somente assim, através da história, e recorrendo a

ela, é possível apreender quais as tendências postas hoje para a vivência do ócio nasociedade contemporânea.

Uma das primeiras manifestações do ócio pode ser vista na Grécia Antiga, ondeaparece como um valor nobre, atitude inseparável de um modo de vida contemplati-

vo, ligado ao exercício da filosofia e da política, o que lhe dá lugar na composição do

ideal educativo do período: a Paidéia. Do grego, ócio deriva de scholé, que significa

um estado de paz, de fruição criadora, condição para a sabedoria. Os cidadãos, isto é,

os homens considerados livres, eram aqueles que desfrutavam da vida na polis, já

que dispunham de todo o tempo social para dedicar-se ao incremento das capacida-des humanas em si mesmas. Entretanto, a vivência desse estado de liberdade propor-

cionado pelo ócio, ao passo que possibilitava uma ação intelectual destinada aoaprimoramento do espírito na sua forma pensante e a busca por valores supremos

como o bem, o belo, a verdade, a justiça, a temperança e o bem-viver, supunha a isen-ção do trabalho, atividade considerada penosa, desprezível, menor ante a hierarquia

do universo, portanto, um serviço de escravos. Nesse sentido, embora a democraciaateniense represente a realização de uma grandiosa experiência cívilizadora em que

o cultivo do ócio era uma virtude, por outro lado, a conservação dessa vida contem-plativa significava a dominação, exclusão e domesticação de muitos que ali viviam e

produziam, com o seu trabalho, a existência de todos, pessoas às quais era reservada

a tarefa exclusiva da servidão, com predomínio do trabalho tipicamente corporal.

Como se observa, neste contexto, o ócio é expressão de uma experiência particular e

demonstrativa da classe dos homens livres e representa, portanto, a liberdade possi-

bilitada pelo não-trabalho numa sociedade escravista verticalmente estratificada.

Com a decadência da polis ateniense e a construção do Império Romano, asexperiências relacionadas ao ócio são transformadas, alterando profundamente a suainserção e expressão na sociedade. Se na Grécia Antiga o ócio era a antítese do traba-lho, em Roma, ele se configura num tempo liberado deste para o descanso da alma ea recreação do espírito (MUNNÉ, 1980). Para tanto, o trabalho deixa de ter uma feiçãonegativa como antes e passa a representar dignidade, o que possibilita tanto ao óciocomo ao trabalho constituírem o modo de vida do homem completo. É que a conju-gação e o equilíbrio entre otium (ócio) e nec-otium (não-ócio, ou seja, negócio)e a conversão do ócio à atividade meio e do trabalho à atividade fim, tornam-se con-dições fundamentais para a manutenção de uma sociedade obediente e mercenária,

Tcujos valores e normas envolviam a submissão ao poder do Estado e respeito aosseus representantes.É nesse contexto que,segundo Munné (l980),o ócio assume um

aspecto recreativo, de divertimento de massa, deixando de ser um modo de vida para

relacionar-se com descanso, recreação e meditação, formas de recompensa e prepa-

ração para o próprio trabalho. Torna-se, assim, um tempo reservado à sua própria

ocupação, à medida que são inaugurados também novos modelos de diversão e pas-

satempo, embalados pelas lutas sangrentas travadas nos circos violentos da antiga

Roma. Percebe-se, então, que neste momento, o ócio ganha uma feição instrumental,

uma vez que se buscava afirmar o poder e a misericórdia do Imperador mediante a

promoção de uma diversão violenta e dotada de um caráter controlador, que acaba

gerando a brutalização dos indivíduos. Dessa maneira, o ócio, que até então signifi-

cava liberdade, ainda que exclusiva para determinadas camadas sociais, converte-se

amplamente na própria não-liberdade.

Com a difusão do cristianismo e a queda do Império Romano, ao ócio são arti-culadas ideias ainda mais complexas e diferenciadas. Ao lado do ócio popular, que

continua existindo como possibilidade de descanso e festa, ainda que supervisiona-da pela aristocracia feudal e pelo clero, surge uma classe ociosa, nova significação

atribuída ao ócio, porém aliada a um espírito lúdico classista e a um estilo de vidacavalheiresco (MUNNÉ, 1980). A vivência dessa dimensão social pressupunha, de um

lado, a abstenção do trabalho e, de outro, o cultivo de atividades livremente escolhidas,como a guerra, a política, as justas e batalhas medievais, a religião e a ciência, de forma

que a dedicação às essas atividades passa a indicar elevada posição social, tanto pela

conotação negativa que o trabalho volta a assumir, quanto pela diferenciação de classegarantida por uma vida de ociosidade. Segundo Munné (1980), esse tempo gasto com

um "nada fazer produtivo" passa a representar riqueza e poder uma vez que o exercício

de atividades improdutivas era sinal de que dispunham de todo o tempo para o apri-

moramento e a exibição de suas habilidades e caprichos, o que leva ao entendimento doócio como ociosidade. Observa-se, assim, que a ostentação do próprio tempo livre e dos

seus passatempos converte-se em sentido para o ócio, ou seja, ele conquista um signifi-

cado em si mesmo, colaborando para uma nova redistribuição vertical do tempo soci-al, que passa a acompanhar, como demonstrativo de nobreza pessoal e familiar, a estra-tificação estabelecida pelo sistema socioeconômico.

De outro lado, como observa Werneck (2000), na Idade Média foram difundi-dos também conhecimentos, valores e normas respaldadas na existência de um Deusúnico, soberano, criador e castrador. Tanto é que as doutrinas pedagógicas do perío-do, baseadas numa concepção essencialista de homem, atribuíam à educação papeldisciplinar, na tentativa de que os indivíduos não se deixassem corromper pelos pra-zeres da carne e pelo apego aos bens materiais, uma vez que a visão social de mundo

Page 84: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

predominante na época pregava o reencontro humano com a sua verdadeira origemo reino celeste. Para isso, deveriam eles se dedicar à elevação do seu pensamento aDeus e, conforme a dicotomia corpo/alma ou matéria/espírito que parece nos acom-

panhar desde aquele tempo, tudo que dizia respeito à vida na terra era entendido

como pernicioso e devastador do código moral pregado nas santas Escrituras, já que

esta - a vida na terra - não significava outra coisa senão, justamente, o exílio dos

homens, o castigo e a punição resultante do pecado original. Nesse sentido, as dife-

rentes formas de ocupação do tempo, como o trabalho corporal, as festas, jogos,

espetáculos, danças e comemorações, representavam um perigo à purificação da

alma e um desvio dos homens do caminho que os levaria ao encontro de Deus. Por

isso, à noção de ócio são associadas apenas as práticas relacionadas à contempla-

ção, à oração e à elevação do espírito, porém, controladas e disciplinadas pela Igre-

ja. Assim, retomando Werneck (2000), o ócio ganha um sentido de lícito, permiti-

do, concedido, sendo o termo latino licere aquele que melhor representa amanifestação do ócio nesse contexto.

A Reforma Protestante, o Renascimento e o amadurecimento do pensamento

liberal imprimiram novos contornos à manifestação do ócio. Munné (1980) salientaque, nos inícios do século XVIII, os homens de negócio vêem-se pressionados pelasideias puritanas e pela necessidade de se dedicarem às indústrias em expansão, re-

vestindo a existência do ócio de coloração assistencial, passando a ser vivenciadopelas esposas, pelos filhos e pelos empregados vitalícios como expressão de ativida-

des sociais, domésticas, passatempos moderados com aparência de dever, demons-

trando que esses não eram vagos, e sim que estavam plenamente ocupados com umtempo, embora nada lucrativo, mas dotado de alguma utilidade importante. Werneck(2000) também nota que a doutrina protestante impelia os homens a se entregarem

inteiramente ao trabalho e às "boas obras", evitando o consumo supérfluo, as tenta-

ções degradantes da capacidade produtiva dos homens, bem como a vadiagem e os

prazeres pessoais. É nesse sentido que o ócio é confundido com preguiça, e essa éidentificada como "pecado capital".

Mas é, sem dúvida, de Lafargue (1999) a leitura mais original da ocorrência doócio ao longo do século XVIII e XIX. Tecendo críticas severas ao que ele chama de "dog-ma ou religião do trabalho", que levava centenas de trabalhadores ao esgotamento desuas forças! físicas vitais, rebela-se contra o trabalho sacrossantificado pelos padres,economistas e moralistas representantes da burguesia nascente - isto é, o trabalhoalienado, insalubre, superexplorado - e invoca o "direito à preguiça" como possibilida-de de libertação do proletariado francês da tortura, da prisão e da miséria, visando aodesenvolvimento das suas capacidades humanas em si mesmas, o que lhe permitecompreender que o ócio é uma atividade que "faz a vida bela e digna de ser vivida'

(LAFARGUE, 1999, p. 77). Entretanto, a despeito dos consistentes argumentos desenvolvi-

dos pelo autor quando mostra que, diante dos modernos meios de produção, não havia

necessidade de mais de três horas de trabalhos diários, podendo os trabalhadores, no

restante do tempo, dedicarem-se à preguiça, o que acaba prevalecendo, até pela neces-

sidade de consumo das mercadorias geradas pelas crises subsequentes de superprodu-

ção, é mesmo a restrição da atividade humana criadora à mera produção das suas con-

dições materiais de existência. E, no que se refere ao ócio, fica limitado, cada vez mais, a

raras possibilidades de vivência cultural não circunscritas às normas e valores estima-

dos pela razão instrumental e pela lógica produtiva que se configurava.

É, então, a partir desse entendimento que encontramos a experiência do ócio

confundida, já no Brasil, com a vagabundagem, o vício, a delinquência e a criminali-

dade. Ao longo do século XIX e início do século XIX, observa-se em toda a Europa etambém no Brasil um processo de urbanização, modernização e industrialização

das suas maiores cidades, acompanhado ideológica e culturalmente do aburguesa-mento da sociedade. Esse movimento, que promovia mudanças nas relações de tra-

balho e diversão, bem como alterações profundas nos estilos de vida, hábitos, com-

portamentos, significados culturais, implicou sobre a configuração do ócio umaatividade presente na vida cotidiana. Associado a um modo de vida ultrapassado,

herdado da tradição colonial e preservado como um hábito relativo ao dia-a-dia nas

fazendas, passa a ser questionado e sua presença submetida às novas exigências daprodução e do progresso. Quem melhor demonstra as características assumidas peloócio como vício e libertinagem ainda sob o capitalismo mercantil da Inglaterra pré-

industrial é Thompson (1998). Segundo o autor, enquanto os homens detiveram ocontrole de sua vida produtiva, o padrão de trabalho admitia e alternava momentos

de atividade intensa e de ociosidade. Entretanto, com o avanço da ética protestante eda internalização da disciplina do trabalho, o tempo torna-se uma mercadoria de-masiado preciosa para ser subestimada, de modo que os ritmos irregulares do traba-

lho tiveram como resposta "a severidade das doutrinas mercantilistas quanto à ne-cessidade de manter os baixos salários para prevenir o ócio" (THOMPSON, 1998, p. 289).Além disso, o autor revela a poderosa retórica tecida em torno do ócio e dos malespor ele causados ao trabalho e à formação social dos trabalhadores, trazendo à tonaas intenções de tal discurso: condenar o gasto de tempo com passeios, compras, fes-tas, funerais, horas de sono e estimular o aumento do tempo e do ritmo de trabalho.

No Brasil, é no final do século XIX e início do século XX que, buscando alcan-çar o posto das sociedades mais desenvolvidas do mundo, desenvolveu-se um proje-to de controle social que procurou banir as experiências não correspondentes à ma-nutenção da ordem e da disciplina necessários à lógica do trabalho no capitalismonascente. É quando ao ócio são atribuídos valores como desordem, improdutividade,

Page 85: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

debilidade corporal e perda de tempo. Como um hábito não circunscrito à esfera dautilidade e estranho aos padrões de comportamento culturalmente dominantes, o

ócio torna-se inadequado à sociabilidade da família burguesa e à formação moral

dos novos trabalhadores, os quais passavam a assumir uma tarefa crucial no proces-

so de produção e no desenvolvimento social almejado. Desse modo, o indivíduo

ocioso era identificado com vadio e, como tal, criminoso. Aquele que não tivesse uma

atividade económica regular e que, por isso, ficasse a vagar pelas noites das cidades,

estava sujeito à aquisição de vícios destruidores do caráter, da higiene, dos bons cos-

tumes, da capacidade produtiva e da civilidade. Relacionando-se com o crime e com

a delinquência, o ócio torna-se inconciliável com o ideal de formação humana con-

veniente à racionalidade produtiva que orientava as relações de poder e dominação.

Percebe-se, então, que ele se configura numa prática incompatível com os códigos e

significados valorizados pela ideologia em ascensão, de modo que todo tempo "deso-

cupado" passa a ser entendido como possibilidade de subversão e, portanto, como

uma ameaça à ordem estabelecida. Aos poucos, as diferentes estratégias de combate

ao ócio que foram surgindo o conduziram a experiências clandestinas e improvisa-

das nas poucas horas de tempo livre que restavam aos trabalhadores, ocasionandoquase que a sua completa desaparição.

Esse é justamente o momento em que o ócio é substituído ou, pelo menos, in-

corporado e suprimido por um conjunto de novas atividades lúdicas e recreativas

que passo a chamar, então, de lazer (MARCASSA, 2002). Isso significa que, a partir de

então, a tendência colocada para a manifestação do ócio como uma experiência pre-

sente, viva e significativa entre as esferas da vida cotidiana é de esvaziamento ou

mesmo de extinção. Essa explicação parece ganhar consistência à medida que a raci-

onalidade moderna e a lógica produtiva vão se tornando hegemónicas, atribuindo ao

tempo livre um caráter económico, mercantil, metódico, rígido e contabilizado, cuja

máxima "tempo é dinheiro" acaba por transformar a experiência do ócio numa prá-tica sem qualquer indicativo de valor. No entanto, observando a nossa realidade atu-

al, veremos que, embora espremido entre outras obrigações e atividades, com aspec-to fugaz e cada vez mais esporádico, o ócio continua a se manifestar entre nós. Isso

porque, segundo Heller (2000), as diferentes esferas da vida cotidiana - a organiza-ção do trabalho e da vida privada, o lazer e o descanso, a atividade social sistematiza-

da, o intercâmbio e a purificação - são heterogéneas e hierárquicas, variando com aestrutura social. Ou seja, determinadas esferas da cotidianidade podem ser valoriza-das ou desvalorizadas de acordo com a situação geral da sociedade ou conforme apenetração da ideologia sobre o modo de ser e viver de indivíduos e grupos. Pareceser isso o que acontece com a manifestação do ócio hoje, mas em que medida ele vemse materializando efetivamente em nossa sociedade? •

Sabemos que o tempo livre e todas as atividades nele contidas compõem uma

dimensão da vida humana em que a racionalidade produtiva penetra, se estende e se

perpetua, dificultando, cada vez mais, o efetivo exercício de ser livre. Ao passo que

assume uma nova conotação na vida cotidiana moderna, tendo seu sentido submeti-

do aos interesses do mercado e às forças hegemónicas do capital globalizado, abre

espaços cada vez menores para a expressão dos verdadeiros desejos e necessidades

humanas. Quanto ao ócio, se suas possibilidades de expressão estão contidas em rá-

pidos e esporádicos momentos de não-liberdade, cujos significados e práticas tam-

bém não se coadunam com aqueles incentivados pela sociedade atual, é possível ca-

racteriza-lo, portanto, como uma expressão típica do mundo pré-capitalista, embora

persistente entre nós como uma idéia-força capaz de resgatar experiências anterio-

res e formas de sociabilidade perdidas no tempo, mas que ainda permanecem no

imaginário social. Dessa forma, a explicitação dos valores e dos significados cultu-

rais alusivos à ordem social em vigor, que acabaram por subsumi-lo a uma série de

novas atividades lúdicas - de recreação, de lazer -, aponta para uma tendência na

qual o ócio caminha para o seu completo esvaziamento, ainda que continue vivo na

memória coletiva por muito tempo. As indicações deixadas por Heller (2000), quan-do se refere à emergência e ao declínio dos valores que, ao longo da história, decor-

rem do estágio em que se encontram numa determinada sociedade, permitem com-

preender que, depois de perder o sentido para as relações sociais estabelecidas, o

ócio pode não ter sido inteiramente aniquilado, mas só existe como possibilidade,

esperando ser novamente descoberto.

Mesmo assim, e apesar do destaque que vêm ganhando as apologias feitas ao

ócio na atualidade (DE MASI, 2001), não vislumbro para o futuro uma sociedade ba-seada no ócio e nem acredito no ócio criativo como a grande saída para a libertação

humana em relação ao trabalho penoso e desumanizante. O trabalho, como princí-

pio ontológico, continua sendo o eterno metabolismo social entre o homem, a natu-reza e a produção cultural. Porém, é preciso que o trabalho deixe de ser fonte de

alienação para se transformar em fonte de realização humana, mudança essa quepode abrir ao ócio e ao tempo livre em geral uma gama enorme de possibilidades

para a promoção e o enriquecimento humanos. E se experiências como o ócio já nãocorrespondem à realidade de hoje é porque a cultura é dinâmica mesmo e as necessi-dades humanas já ultrapassaram a própria capacidade de reação que o ócio, diantedos modos de vida constituídos, ainda pode demonstrar. De fato, não é de uma socieda-de baseada no ócio que precisamos, mas de uma forma de organização social em queliberdade e necessidade sejam conjugados não segundo um arranjo funcionalista emque o tempo livre subsiste como manutenção do trabalho e reprodução social, muitomenos acreditando que é possível resgatar a criatividade proporcionada pelo ócio

[Óciol 171

Page 86: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

num trabalho que aliena e brutaliza, mas quando trabalho e tempo livre responde-rem às reais necessidades e interesses de todos.

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PARQUES

São áreas extensas e delimitadas, podendo ter áreas verdes, com finalidade lúdica, educa-cional e cultural. Tendo em vista a principal finalidade, a vivência do lúdico, os parquestêm sido denominados genericamente de "parques de diversões", por possuírem dife-rentes equipamentos denominados "atrações", que variam desde os tradicionais "rodagigante", "carrossel" e "montanha russa", até os equipamentos em que são utilizadasmodernas tecnologias mecânicas, elétricas, eletrônicas e informatizadas.

Não existe um consenso entre os autores nem entre as diversas organizaçõessobre a classificação quanto aos tipos de parques. A Associação Brasileira de Parquesde Diversões (ADIBRA) classifica os parques em fixos, aqueles com sedes perma-nentes, e móveis, parques itinerantes, que não possui uma sede num único local.

Os parques de diversão fixos ainda podem ser classificados em:

• Aquáticos: parques contendo piscinas, escorregadores, toboáguas, bóias, en-tre outras atrações com o tema "água". Exemplos no Brasil; Wet'n Wild em SP eSalvador, Beach Park em Fortaleza.

• Secos: aqueles que não apresentam atrações aquáticas (apesar de hoje já seencontrar alguns parques secos que tenham atrações molhadas e vice-versa, sendo es-tes denominados parques mistos). O Playcenterem São Paulo, capital, é o parque mais

172

antigo do Brasil nesse género. Eles ainda se subdividem em parques locais, regionais

e destinos:• Os locais podem estar localizados em praças, praias e shoppings, ou seja, em

locais de grande circulação de pessoas. Nesses tipos de parques, normalmente, háum tempo de permanência curta dos visitantes entre l e 5 horas aproximadamente.Sua área é limitada e normalmente são fechados. Ex: O parque da Xuxa, em São

Paulo, localizado dentro de um shopping.• Os regionais geralmente são afastados dos centros urbanos e recebem não

só a população local, mas visitantes de regiões adjacentes, principalmente nos finaisde semana e feriados. Possuem um número maior de atrações e, por isso, o tempo depermanência dos visitantes é maior que nos parques locais, podendo chegar até aum dia. São normalmente ao ar livre, a extensão de sua área é média. No Brasil, oHopi Hari e o Wet and Wild, em Vinhedo/SP, são exemplos.

• Os parques denominados destinos ocupam mais do que um dia do visitantee possuem um número maior de atrações do que os regionais. Atraem visitantes delocais com distâncias maiores que 160 quilómetros ou duas horas de distância. Tendoem vista o tempo maior de permanência de seus visitantes, esse tipo de empreendi-mento depende dos meios de hospedagem. Por isso é comum os parque se localizarempróximos a redes hoteleiras ou mesmo como partes de resorts. Os parques de WaltDisney, em Orlando, são exemplos (SALOMÃO,2000; WERNER; BOITEUAX, 2002).

A Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR), órgão do governo federal, apre-sentou - em um de seus estudos - uma classificação de Parques Temáticos, dividin-do-os em específicos, aquáticos e parques de diversões. Nesse estudo, ao caracterizaros parques brasileiros, aponta que "os parques temáticos ou de diversão fixos se utili-zam de temas diferenciados na ambientação física de suas atrações e têm como um deseus objetivos mercadológicos o estímulo 'a atividade turística (1998, p. 160)." Essa de-finição se aplica aos parques de entretenimento com temas e personagens específicos.

Salomão (2000, p. 80) critica a classificação da EMBRATUR, esclarecendoque há uma utilização equivocada do nome "Parque Temático" como rótulo geralpara a definição desse mercado, em substituição ao mais adequado e abrangente,"Parque de Diversões". Completa o autor que, "mesmo sendo colocado o adjetivo'específico' para identificar aqueles que, na verdade, possuem um tema", é umaclassificação errónea.

Ao esclarecer o conceito de parques temáticos, Werner e Boiteuax (2002) subli-nham que estes podem ser subdivididos em parques que possuem "personagem deconhecimento público", como a Disney World (EUA) e o Parque da Mônica (SP eRJ), e aqueles que são baseados em "personagem vivo de forte presença na mídia",como o Parque da Xuxa (SP) e o Beto Carrero (SC e SP).

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Os parques também podem ser analisados dependendo de outros fatores, comoexemplifica Salomão (2000):

- segundo o mixàe atrações (tipos de "brinquedos" oferecidos);

- indoors ou outdoors (fechados ou ao ar livre);

- associados a outros empreendimentos (shoppings, resortsetc.).

Existe ainda um tipo de parque, normalmente fechado, denominado de Fami-

ly Entertainment Center (FEC) ou Centro de Entretenimento Familiar. É um con-ceito recente, que surgiu nas últimas décadas, reunindo em um mesmo espaço várias

atrações para que toda a família pudesse se divertir. Esses tipos de parque normal-

mente são menores do que os outros, são indoors e oferecem equipamentos comojogos eletrônicos, espaço de minigolf, bump-karts, boliches automáticos, brincadei-

ras e jogos para crianças. No Brasil, a Estação Plaza Show, em Curitiba/PR é um

exemplo. Mas a Playland é o maior FEC do Brasil, criado pelo grupo Playcenter elocalizado sempre dentro de shooping centers. Segundo Trigo (2002), existem hojecerca de 50 playlands no Brasil.

O surgimento dos parques é antigo. O primeiro parque foi o Baken, em Copen-hague, Dinamarca, criado em 1697. Mas o Tívoli, surgido também em Copenhague,

em 1843, é considerado o mais antigo e famoso parque do mundo, apontam Chon;

Sparrowe (2003). Mesmo com essa origem europeia, foi nos Estados Unidos que osparques se desenvolveram.

As feiras, grandes exposições (no final do século XIX) e o desenvolvimento dasempresas de transporte (início do século XX), principalmente as de bondes elétricos,fizeram com que os parques de diversões tivessem um crescimento significativo na-quele país.

Mas o marco dos parques foi a inauguração, na Califórnia, da Disneylândia,

em 1955. Walt Disney criou o primeiro parque temático do mundo a partir de per-sonagens de desenhos animados. Ao se inspirar no Tívoli, Walt Disney criou um

parque com uma série de cenários contíguos, onde as pessoas circulariam em teatrosde imersão. O empreendimento foi considerado um sucesso. Seu criador utilizou con-ceitos de sociologia, paisagismo, engenharia, tecnologia de comunicações, dentre ou-tros. Muitos empresários fracassaram ao tentar copiar a Disneylândia e sofreram gran-des perdas monetárias, mostra Salomão (2000).

Em 1971, Walt Disney inaugurou em Orlando, a Disneyworld, um complexoque conta hoje com quatro parques temáticos, três parques aquáticos, resorts tema-tizados e outras diversificadas atividades de lazer. Nesses parques, Walt Disney corri-giu os erros do parque anterior e incluiu, mais uma vez de forma pioneira, o conceitode fibras ópticas e sistemas computadorizados de grande porte. J

Atualmente, a cadeia de parques Walt Disney é a maior e mais lucrativa do mundo.

Outras empresas também são importantes naquele país, como a Premier Parks,

a Busch Entertaiment, a Sea World, dentre outras.

No Brasil, a instalação de parques temáticos, aquáticos e de diversões tem

sido denominada de "indústria do entretenimento" ou "indústria de parques".

Essa indústria é recente aqui e o Estado de São Paulo lidera a oferta de parques. O

Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDS), e os fundos depensão têm sido as mais importantes fontes de financiamento desse setor (BRUNO;

FRANZINO, 1999).

A ADIBRA, fundada em 1989 por um grupo de empresários, tem o objetivo de

criar condições para que a indústria de parques se organize, se profissionalize e cres-

ça no Brasil. Possui sede em São Paulo, capital, conta com 180 membros e com o

apoio da International Association ofAmusement Parks and Aííracftons(IAPPA),a mais importante entidade internacional, com sede nos Estados Unidos. Na época

de sua fundação só existia um grande parque de grande porte no país, o Playcenter.

Com o apoio da ADIBRA e das linhas de crédito criadas pelos órgãos citados, vários

projetos de parques foram viabilizados.

Atualmente, segundo dados da ADIBRA, existem no Brasil 11 parques temáti-

cos, 22 aquáticos, 30 de diversões, 27 móveis e 105 FECs.

Vários pontos positivos e negativos podem ser atribuídos aos parques de di-

versão. Quanto aos positivos, podem ser destacados, segundo Bruno; Franzini (1999):

o desenvolvimento turístico, económico e social da localidade, a geração de empre-gos, o investimento em infra-estrutura básica, trazendo conforto ao turista e benefi-

ciando a população local, e, ainda, opções de lazer para a comunidade.

Um ponto positivo colocado pelas autoras que pode ser questionado é a não

exigência, pelos empresários, de parques da qualificação profissional de seus funcio-nários. Com o crescimento do número de cursos técnicos e de graduação em Turis-

mo no País, bem como o surgimento dos cursos de graduação em lazer, não haveria

motivo para se dispensar mão-de-obra especializada.

Quanto aos aspectos negativos, podem ser citados, segundo as autoras: a ne-cessidade de grande capital, o alto custo dos equipamentos, as variações climáticas ede sazonalidade, a atuação de muitos empresários de parques que desrespeitam asleis de proteção ao meio ambiente e ignoram o EIA/Rima (estudo de impacto ambi-ental). A interferência na cultura, modificando os hábitos e costumes e o cotidianoda população local, também deve ser considerada aspecto negativo da instalação deparques. A utilização de formatos de empreendimentos que foram bem-sucedidos noexterior não significa, necessariamente, que terá sucesso no Brasil. É necessário,

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Os parques também podem ser analisados dependendo de outros fatores, cornoexemplifica Salomão (2000):

- segundo o mixde atrações (tipos de "brinquedos" oferecidos);

- indoors ou outdoors (fechados ou ao ar livre);

- associados a outros empreendimentos (shoppings, resortsetc.).

Existe ainda um tipo de parque, normalmente fechado, denominado de Fami-ly Entertainment Center (FEC) ou Centro de Entretenimento Familiar. É um con-ceito recente, que surgiu nas últimas décadas, reunindo em um mesmo espaço váriasatrações para que toda a família pudesse se divertir. Esses tipos de parque normal-mente são menores do que os outros, são indoors e oferecem equipamentos comojogos eletrônicos, espaço de minigolf, bump-karts, boliches automáticos, brincadei-ras e jogos para crianças. No Brasil, a Estação Plaza Show, em Curitiba/PR é umexemplo. Mas a Playland é o maior FEC do Brasil, criado pelo grupo Playcenter elocalizado sempre dentro de shooping centers. Segundo Trigo (2002), existem hojecerca de 50 playlands no Brasil.

O surgimento dos parques é antigo. O primeiro parque foi o Baken, em Copen-hague, Dinamarca, criado em 1697. Mas o Tívoli, surgido também em Copenhague,em 1843, é considerado o mais antigo e famoso parque do mundo, apontam Chon;Sparrowe (2003). Mesmo com essa origem europeia, foi nos Estados Unidos que osparques se desenvolveram.

As feiras, grandes exposições (no final do século XIX) e o desenvolvimento dasempresas de transporte (início do século XX), principalmente as de bondes elétricos,fizeram com que os parques de diversões tivessem um crescimento significativo na-quele país.

Mas o marco dos parques foi a inauguração, na Califórnia, da Disneylândia,em 1955. Walt Disney criou o primeiro parque temático do mundo a partir de per-sonagens de desenhos animados. Ao se inspirar no Tívoli, Walt Disney criou umparque com uma série de cenários contíguos, onde as pessoas circulariam em teatrosde imersão. O empreendimento foi considerado um sucesso. Seu criador utilizou con-ceitos de sociologia, paisagismo, engenharia, tecnologia de comunicações, dentre ou-tros. Muitos empresários fracassaram ao tentar copiar a Disneylândia e sofreram gran-des perdas monetárias, mostra Salomão (2000).

Em 1971, Walt Disney inaugurou em Orlando, a Disneyworld, um complexoque conta hoje com quatro parques temáticos, três parques aquáticos, resorts tema-tizados e outras diversificadas atividades de lazer. Nesses parques, Walt Disney corri-giu os erros do parque anterior e incluiu, mais uma vez de forma pioneira, o conceitode fibras ópticas e sistemas computadorizados de grande porte.

Atualmente, a cadeia de parques Walt Disney é a maior e mais lucrativa do mundo.

Outras empresas também são importantes naquele país, como a Premier Parks,a Busch Entertaiment, a Sea World, dentre outras.

No Brasil, a instalação de parques temáticos, aquáticos e de diversões temsido denominada de "indústria do entretenimento" ou "indústria de parques".Essa indústria é recente aqui e o Estado de São Paulo lidera a oferta de parques. OBanco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDS ), e os fundos depensão têm sido as mais importantes fontes de financiamento desse setor (BRUNO;FRANZINO, 1999).

A ADIBRA, fundada em 1989 por um grupo de empresários, tem o objetivo decriar condições para que a indústria de parques se organize, se profissionalize e cres-ça no Brasil. Possui sede em São Paulo, capital, conta com 180 membros e com oapoio da International Assodation ofAmusement Parks andAttractionsilAPPA),a mais importante entidade internacional, com sede nos Estados Unidos. Na épocade sua fundação só existia um grande parque de grande porte no país, o Playcenter.Com o apoio da ADIBRA e das linhas de crédito criadas pelos órgãos citados, váriosprojetos de parques foram viabilizados.

Atualmente, segundo dados da ADIBRA, existem no Brasil 11 parques temáti-cos, 22 aquáticos, 30 de diversões, 27 móveis e 105 FECs.

Vários pontos positivos e negativos podem ser atribuídos aos parques de di-versão. Quanto aos positivos, podem ser destacados, segundo Bruno; Franzini (1999):o desenvolvimento turístico, económico e social da localidade, a geração de empre-gos, o investimento em infra-estrutura básica, trazendo conforto ao turista e benefi-ciando a população local, e, ainda, opções de lazer para a comunidade.

Um ponto positivo colocado pelas autoras que pode ser questionado é a nãoexigência, pelos empresários, de parques da qualificação profissional de seus funcio-nários. Com o crescimento do número de cursos técnicos e de graduação em Turis-mo no País, bem como o surgimento dos cursos de graduação em lazer, não haveriamotivo para se dispensar mão-de-obra especializada.

Quanto aos aspectos negativos, podem ser citados, segundo as autoras: a ne-cessidade de grande capital, o alto custo dos equipamentos, as variações climáticas ede sazonalidade, a atuação de muitos empresários de parques que desrespeitam asleis de proteção ao meio ambiente e ignoram o EIA/Rima (estudo de impacto ambi-ental). A interferência na cultura, modificando os hábitos e costumes e o cotidianoda população local, também deve ser considerada aspecto negativo da instalação deparques. A utilização de formatos de empreendimentos que foram bem-sucedidos noexterior não significa, necessariamente, que terá sucesso no Brasil. É necessário,

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assim, adaptar tais empreendimentos à nossa realidade, à cultura local, como foi 0caso do Wet and Wildem Salvador, observam as autoras.

É importante destacar, ainda, outros aspectos negativos, como a grande formaçãode lixo, de sucatas em que se transformam os equipamentos quando esses empreendi-mentos não dão certo e vão à falência, trazendo outras agressões ao meio ambiente.

Mesmo sendo empreendimentos privados, outro ponto a ser questionado é a formade cobrança de ingressos e a obtenção do lucro pelos empresários desse setor. Muitosparques brasileiros, além do ingresso de entrada, têm cobrado pela utilização de seus equi-pamentos, principalmente quando a pessoa é estudante e, por lei, tem direito a 50% dedesconto na entrada. Diversos parques aquáticos, também, somente liberam o uso de bói-as e colchões infláveis após o pagamento de taxas extras. Nesses, ainda, se cobra pelo usode armários no vestiário. Outras reclamações dos visitantes dizem respeito ao preço doestacionamento e alimentação no local. Os preços tendem a ser elevados, principalmentenos parques regionais, afastados dos centros urbanos, em que os visitantes não têm ou-tras opções próximas e dependem desses serviços ao visitar o parque.

Salomão (2000, p. 67) aponta, ainda, alguns pontos criticados por alguns teóri-cos que vêem os parques corno "momentos de extrema fragilidade e vulnerabilidadeintelectual dos visitantes que, ao rebaixarem seu senso crítico, acabam por absorverinformações das mais variadas fontes sem o devido questionamento". Isso criaria,segundo alguns teóricos, uma visão distorcida da realidade desde a infância precoce,evidencia o autor. Os parques da Disney são os mais criticados, por constituírem umapoderosa força do imperialismo cultural norte-americano que distorcem a realidadetanto histórico-temporal quanto geográfica dos Estados Unidos. Salomão (2000, p.67) considera os parques da Disney como "uma doença social, maquiavelicamentecriada com fins de domínio comercial e cultural". Mesmo nos Estados Unidos,muitos acreditam que os parques podem provocar a distorção da realidade histó-rica através de suas atrações, que mostram "os fatos como deveriam ter sido" e nãocomo "realmente foram". Isso ocorreu no Estado de Virgínia, quando a populaçãolocal repeliu a ideia da criação de um parque Disney que contaria a história daguerra civil americana. A sociedade local não aprovou o projeto do parque, poisficou temerosa que houvesse distorção dos fatos importantes dessa parte da histó-ria (SALOMÃO, 2000).

Esse debate relembra, segundo Salomão (2000), o grande debate que ocorreusobre os males da televisão. Talvez a presença de um profissional do lazer com for-mação universitária consciente desses aspectos e de muitos outros pudesse desen-volver o senso crítico e criativo dos visitantes, sem deixar de lado o prazer de usu-fruir essa organização de lazer.

Olívia C. F. Ribeiro

Bibliografia

BRUNO, P. L.; FRANZINI, R. X. G. Os parques temáticos e a indústria do entretenimento. In: ANSARAH,

M.G.R. (Org.) Turismo: segmentação de mercado. São Paulo: Futura, 1999.

BOITEUX, B.; WERNER, M. Promoção, entretenimento e planejamento turístico. Série Turismo,

São Paulo: Aleph, 2002.

CHON, K.; SPARROWE, R. Hospitalidade: conceitos e aplicações. São Paulo: Thomson Learning, 2003.

EMBRATUR. Estudo Econômico-financeiro dos meios de hospedagem e parques temáticos no

Brasil. FADE-UFPE, Brasília: 1998.

SALOMÃO, M. Parque de diversões no Brasil: entretenimento, consumo e negócios. Rio de Janeiro,

Mauad (Coleção Cultura e Consumo), 2000.

TRIGO, L.G. Viagem na Memória: guia histórico das viagens e do turismo no Brasil. São Paulo,

2. ed., Editora do SENAC, 2002.

www.adibra.com.br, acesso em 15/10/2003.

PLANEJAMENTO

De maneira geral, o ato de planejar faz parte da rotina diária. Planejamos as ações a

ser desenvolvidas ao longo do dia, da semana, do mês. Estamos, a cada momento,

planejando como realizar a próxima tarefa ou atividade, seja no ambiente residenci-

al, profissional, político, afetivo e, até mesmo, nos momentos de lazer.

Inicialmente, o termo planejamento indica a ideia de se fazer algo para que se

possa implantar e colher os resultados no futuro. Para tanto, precisamos compreen-der a necessidade de intervenção em uma dada realidade, seja para ampliar, modifi-

car ou melhorar os resultados previstos.

Considerando a produção de conhecimentos sobre o assunto, encontramos di-versas aplicações para o termo planejamento. Esse tema vem sendo estudado por

inúmeras áreas, tais como administração, economia, geografia e turismo, dentre ou-

tras, cada uma analisando e entendendo o planejamento conforme lhe convém.

Ruschmann (1996, p.66) afirma que o "planejamento, de forma geral, consisteem um conjunto de atividades que envolvem a intenção de estabelecer condiçõesfavoráveis para alcançar objetivos propostos."

Assim, o planejamento implica, fundamentalmente, a ideia inicial e continu-ada de um projeto, sobre como ele ocorrerá, e sobre quais os impactos gerados apartir das iniciativas propostas, em termos de resultados concretos. O planejamentoé também fruto de uma ideia com base no cenário atual e no ideal que se pretendealcançar.

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Sua elaboração é complexa. Para planejar, é necessário ter um diagnóstico pre-ciso sobre as condições holísticas do ambiente. Sua orientação é influenciada pordiversas variáveis, como tempo, espaço geográfico, recursos, gestão.

Autores da geografia apresentam o conceito de planejamento da paisagem (lan-dscape planning), que surgiu em 1949 na conferência da União Internacional para aConservação da Natureza e dos Recursos Naturais-IUCN (TURNER, 1983; apud PIRES,1993). Nesse aspecto da paisagem, os especialistas distinguiram escalas de abordagem,utilizando os termos planejamento visual (amenity planning), planejamento local eplanejamento de sítio para propriedades pequenas; e planejamento físico e planeja-mento paisagístico para regiões com forte conotação conservacionista. (PIRES, 1993).

O planejamento sustentável ganhou maior relevância nas discussões acerca dopatrimónio natural e em menor escala, inicialmente, do património histórico-cultu-ral. A preocupação com a preservação e conservação patrimonial fez com que algu-mas iniciativas fossem repensadas, no intuito de poder realizar uma exploração me-lhor, mais consciente e duradoura desses recursos, tanto por parte do turismo comopela iniciativa privada, pelo setor público e por demais envolvidos. O planejamento

pode contribuir sobremaneira para evitar danos ambientais, buscando o equilíbrioentre os recursos envolvidos, como o meio ambiente natural, o meio ambiente modi-ficado e os valores socioculturais da comunidade, garantindo a preservação do pa-trimónio em questão para as gerações seguintes.

Há ainda outras aplicações para o termo planejamento nas diversas ciências. Nocampo da administração, o planejamento pode ser realizado em três níveis: estratégico,tático e operacional. Cada um desses níveis tem uma amplitude diferenciada.

O planejamento estratégico tem origem no contexto militar. Mas, antes disso,houve o conceito de planejamento de longo prazo, em que Fayol já descrevia a impor-tância da variável tempo no processo de planejamento. Entretanto, o tempo não é oúnico elemento que interfere no planejamento, pois outras variáveis também são con-sideradas em sua composição. Assim, a expressão "planejamento estratégico" expres-sa melhor a necessidade de elaborar estratégias para o melhor aproveitamento dosrecursos existentes, em virtude do resultado que se espera alcançar. No contexto mi-litar, estratégia é um termo entendido como a aplicação de forças em larga escalacontra o inimigo (PETROCCHI, 1998).

Petrocchi (1998), considerando o conceito empresarial, define estratégia comoum conjunto harmonioso e integrado de objetivos que são de importância funda-mental para a sobrevivência satisfatória, e em longo prazo, de uma organização.

Em suma, o planejamento estratégico é elaborado no mais alto nível hierárqui-co organizacional, compreendendo, geralmente, as mais importantes decisões, defi-nindo objetivos gerais e trabalhando com longos prazos.

í [DICIONÁRIO CRITICO pó LAZER!

Já o planejamento tático compreende os mecanismos que serão necessáriospara que sejam atingidos os objetivos propostos no planejamento estratégico. As ati-vidades são organizadas para a execução em médios prazos. Na hierarquia organiza-

cional, os planejamentos táticos ocorrem nos níveis de gerência ou coordenação, con-forme o organograma institucional. Em geral, na administração, é mais comum

encontrarmos profissionais com habilidades táticas do que estratégicas. O domínio

do cenário mais amplo é restrito a poucos decisores.

O planejamento operacional acontece no nível hierárquico organizacional

de supervisão. É onde está, geralmente, o maior número de funcionários-colabora-

dores da organização, seja no ramo de produção ou prestação de serviços. É o dia-a-dia da empresa. Ocorre em prazos curtos, bastante reduzidos. É como planejar a or-

dem de importância das atividades e realizá-las conforme sua urgência e necessidade.A organização, o ordenamento e a execução das tarefas diárias acontecem a partir de

um planejamento operacional.

No campo da administração, muitas são as empresas que elaboram seus pla-nejamentos com base na chamada "qualidade total", um mecanismo de sobrevivên-cia das organizações. Os processos administrativos ocorrem, em muitos casos, com

base nessa teoria. Cabe lembrar cinco dimensões constituintes da qualidade:

- qualidade: é a qualidade intrínseca do produto/serviço;

- custo: é a preocupação com o custo para executar o produto/serviço e com o

preço de venda;

- atendimento ou entrega: é a dimensão da qualidade total referente à entrega

no prazo certo, no lugar certo e na quantidade certa (logística);

- moral: preocupação com a ambiência do ser humano, como ambiente de tra-

balho dos funcionários;

- segurança: integridade física das pessoas, internas ou externas à organização,tanto na execução do trabalho como na utilização dos produtos/serviços da organização.

É comum na contemporaneidade ouvirmos falar sobre "qualidade total". Asorganizações buscam continuamente aprimorar, aperfeiçoar e adaptar seus produ-tos e serviços às necessidades dos clientes, demandas e exigências do mercado e dalegislação. No contexto da "qualidade total", existe uma forma de sistematizar essaproblemática. Trata-se do ciclo PDCA, cujas iniciais representam: Plan, Do, Check,Action. Também conhecido como ciclo de Shewhart ou ciclo de Deming, dado a expressi-va atuação do estatístico W. Edwards Deming no campo da administração. Deming afir-mava que 85% dos problemas organizacionais são de responsabilidade da administração,enquanto somente 15% são dos funcionários, já demonstrando a necessidade e impor-tância do planejamento para o sucesso e a sobrevivência das organizações.

Page 91: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

O ciclo de Deming funciona com quatro fases e oito etapas, podendo ser visua-lizado conforme o quadro a seguir:

POLÍTICAS PÚBLICAS

FASE

(P) PLAN- PLANEJAR

(D) DO -FAZER

(C) CHECK VERIFICAR

(A)ACTION-ATUAR

ETAPAS

1

2

3

4

5

6

?

7

8

DESCRIÇÃO

Identificar o problema

Observação

Análise

Plano de Ação

Ação

Verificação

0 bloqueio foi feito?

Padronização

Conclusão

OBJETIVO

Definir c reconhecer suaimportância

Pesquisar características deforma ampla

Descobrir as causasfundamentais

Estudar plano para bloquear ascausas

Bloquear as causas fundamentais

Checar se bloqueio foi efetivado

Sim, prosseguir, Não, voltar àetapa 2.

Para evitar a repetição doproblema

Refletir sobre o processo.Considerar anomalias pendentese planejar trabalho futuro.

(In: Petrocchi, 1998)

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: 2001.

Em japonês, kaisen - melhoria contínua - é o objetivo maior da qualidadetotal, que ocorre com o ciclo PDCA.

Quando falamos de planejamento, não podemos desconsiderar, portanto, a im-portância de prever os impactos causados com a utilização, apropriação e explora-ção dos recursos existentes, quer na esfera administrativa, laborai, geográfica, ambi-ental, turística, financeira, quer em todas possibilidades existentes. O planejamentodeve buscar a sustentabilidade dos recursos, sejam ambientais, humanos, financei-ros ou outros, evitando sua extinção e garantindo a permanência e a perpetuação daatividade na esfera que lhe for compatível.

Daniel Braga Hubner

Fontes bibliográficas

PETROCCHI, Mário. Turismo: planejamento e gestão. Futura, São Paulo: 1998.

PIRES, Paulo dos Santos. Procedimentos para análise da paisagem na avaliação de impactosambientais. In: Maia,2.ed.,PIAB, 1993.

RUSCHMANN.DorisVandeMeene. Turismo e planejamento sustentável Campinas: Papirus, 1996.

A expressão "políticas públicas" somente pode ser entendida ao fazermos uma in-cursão pelo significado dado ao termo "política". A política, nos diversos enfoquesque pode ter, seja como ciência ou arte, teoria ou prática, no senso comum ou nalinguagem dos especialistas, refere-se ao exercício de alguma forma de poder, comsuas múltiplas consequências. Contudo, relacionar a palavra política apenas aoexercício do poder não designa a totalidade de sua abrangência. É necessário refle-tir sobre o que é exercer poder. Em poucas palavras, poderíamos afirmar que é umprocesso pelo qual um grupo de pessoas, cujas opiniões ou interesses são a princí-pio divergentes, toma decisões coletivas que se tornam regras obrigatórias para ogrupo e se executam de comum acordo.

Essa definição traz elementos que requererem uma análise à parte para apre-endermos a ideia. Em primeiro lugar, pressupõe que a definição dos objetivos de umgrupo, ou de uma sociedade, apresenta uma diversidade de opiniões. Dessa forma, serápela mediação dos conflitos, das divergências, quando não há consenso, que a políticaaparecerá. Em segundo lugar, a política se relaciona com a maneira que as decisõescoletivas são tomadas, que pode ser pela persuasão, pela negociação, pela imposição oupelo estabelecimento de um mecanismo que leve à tomada da decisão final. A persua-são é a possibilidade de convencer todos sobre os méritos das propostas; a negociaçãoimplica um acordo entre opiniões díspares, na qual uma das partes cede às demandasde seus adversários. Qualquer dessas alternativas de tomada de decisão coletiva é pou-co edificante, pois subentende a decepção ou o sacrifício de princípios para obtençãode vantagens políticas. A imposição implica um regime de exceção, quando as vontadessão exercidas pela coerção, pelo uso da força. Por fim, há o estabelecimento de um me-canismo de tomada da decisão final que pode ser exercido pelo voto democrático, porassembleias populares ou, ainda, pela participação ativa da população em todas as ins-tâncias deliberativas, de um grupo ou de uma sociedade. Em terceiro lugar, uma vezadotada uma decisão, esta será considerada legítima pelo grupo em questão e ado-tada como policy, programa de ação, distinguindo-se do termo politics, que emgeral é usado no sentido de política como dominação. Em quarto lugar, embora apolítica seja inconcebível sem autoridade, pois na prática existe a necessidade deimpor as regras estabelecidas pelo grupo àqueles elementos que não as aceitam,fazendo-os as cumprir, essa faceta da política é detestável para as ideologias anar-quistas e para algumas tendências do marxismo que pregam o fim da política ou ode uma sociedade sem Estado.

Dadas essas quatro características do exercício do poder ou da definição dapolítica, poderemos concluir que no mundo moderno o cenário principal desseexercício seja o Estado, já que ele é a autoridade mais compreensiva que podemos

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encontrar e, certamente, a instituição com maior capacidade de influenciar pela per-suasão ou pela negociação, ou de estabelecer mecanismos de tomada de decisão fi-nal. Assim, muitos analistas relacionam a definição de política à ação do Estado.

Segundo Ribeiro (l998, p. 25),"em toda a sociedade há mecanismos estabe-lecidos, através dos quais as decisões públicas são formuladas e efetivadas. Na lin-

guagem comum, diríamos que toda sociedade tem alguma espécie de governo [...]".Claro que há diferentes tipos de governo e, consequentemente, de Estado no mun-

do moderno. Podemos concluir, então, que o Estado moderno (sujeito ativo) nasceda institucionalização do poder exercido sobre os cidadãos (sujeitos passivos). Alémdisso, o Estado moderno se estabeleceu como forma de romper e superar o Estado

absoluto (no qual quem mandava era o rei - soberano - que era obedecido pelosseus súditos).

O Estado moderno se estabelece numa sociedade dividida em classes. Nessa so-ciedade, a classe que possuir maior poder financeiro, ideológico ou político proporá asnormas sociais. Mediante essa afirmação é possível pensar que há outras formas deexercer o poder, além do político. Bobbio (1992,p.955) diz que "parece mais apropriadoo critério de classificação das várias formas de poder que se baseia nos meios que serveo sujeito ativo para determinar o comportamento do sujeito passivo".

Com base nesse critério, Bobbio (1992) afirma que há três grandes classes deum conceito amplo de poder: o poder económico, o poder ideológico e o poder polí-tico. O poder económico é exercido por quem detém os meios de produção, podendoatravés da posse desses bens determinar o comportamento de quem se encontra em

condições menos favoráveis. O poder ideológico baseia-se na influência de ideias,carregadas de valores, formuladas e difundidas por meio de certos processos. E opoder político, que, no caso do Estado moderno, é exercido por aquela classe queconseguir deter os "aparelhos de estado", para usar uma expressão de Gramsci (1980).Numa sociedade de desiguais, como a sociedade moderna, essas três formas de po-der são usadas para mante-la.

Entendendo que o Estado moderno é composto de diferentes instituições quelhe dão forma, devemos pensar o que o Estado faz. Genericamente, podemos afirmarque o Estado faz três tipos de coisas: elabora as leis, administra os negócios públicos,e aplica a lei a casos particulares. Temos, de forma simplificada, o funcionamentodos três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. O Estado moderno, desde suaconcepção, tem servido a interesses de determinada classe social. Na sua criação,esteve fortemente ligado ao liberalismo político, ou seja, podia intervir na sociedadea fim de garantir limitações, por exemplo, da autoridade dos patrões sobre os empre-gados, em relação às práticas de manipulação predatória do mercado. A este tipo deação do Estado moderno denominou-se "políticas públicas".

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Assim, podemos conceituar política pública como toda atividade política quetem como objeto específico assegurar, mediante a intervenção do Estado, o funciona-

mento harmonioso da sociedade, suplantando conflitos e garantindo a manutenção dosistema vigente. A princípio, entendeu-se que esta ação se dava prioritariamente direci-onada as classes menos favorecidas da sociedade, contudo, a partir da forma interven-cionista assumida pelo Estado, foi possível interpretá-las como políticas pensadas para

atingir todas as camadas sociais. Obviamente, há modelos de Estado que tendem aoliberalismo e outros que tendem a um Estado mais coletivista e socializante.

No Brasil, por se tratar de um país sob os moldes federativos, no qual há auto-

nomia política e ideológica entre as unidades da federação, as políticas públicas, àsvezes, assumiram determinada direção ideológica na esfera nacional e outra nas es-feras estadual e municipal. Observando a história dessas políticas em território na-cional, veremos que já existiu, e talvez esteja presente hoje, Estado sob os moldes

liberal, neoliberal, social democrata e sob um modelo híbrido, que congrega formas

distintas de democracia (representativa e participativa).

O entendimento do campo do lazer na qualidade de uma política pública, neces-

sariamente, implica o enfrentamento das tensões causadas pela adoção de diferentesmodelos ideológicos de Estado que nem sempre ficaram transparentes. Outro ponto defundamental importância para quem vai se debruçar sobre os estudos de políticas pú-blicas de lazer no Brasil é tomar conhecimento de que, muitas vezes, há um delinea-mento teórico que sustenta a ação que não é condizente com a prática em questão.

As políticas públicas de lazer no Brasil podem ser consideradas como campode estudo (reflexão) ou como atividade exercida por autoridades ou agente social epelo Estado (intervenção). O lazer como política de intervenção, na realidade brasi-

leira, surgiu a partir do início do século XX, conforme afirmam Amaral (2001) eMarcassa (2002), quando se referem, respectivamente, à criação dos Jardins de Re-

creio em Porto Alegre e dos Centros de Recreio em São Paulo.

Getúlio Vargas, na década de 1930, adotou a corrente mais ortodoxa do positi-

vismo, criando o Estado Novo. O objetivo da sua política moderna era incorporar oproletariado à sociedade, por meio de medidas de proteção ao trabalhador e sua famí-lia. Tal orientação teve rapidamente suas ações práticas no campo trabalhista da previ-dência social e sindical, bem como alicerçou políticas de lazer. A orientação das políti-cas públicas de lazer, daquele período em diante, alicerçou-se no liberalismo.

Na década de 1970, durante o regime militar, além de o lazer ganhar espaço,como política de intervenção, ganha força também como disciplina académica. Po-rém, foi após a abertura política da década de 1980 que o lazer aparece como práticae como campo de estudo com conotações emancipatórias. Neste período, pela pri-meira vez, a Constituição brasileira (1988) considera em sua letra de lei o lazer como

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uma política pública. Diz a carta no Capítulo II, Dos Direitos Sociais, no art. 6°, que

"são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança,a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desam-parados, na forma desta Constituição" (BRASIL, 2002, p. 12, grifo nosso). No Título

VIII, Capítulo III, da Educação, da Cultura e do Desporto, na Seção III, do Desporto, olazer é tratado no art. 217, § 3°, da seguinte forma: "É dever do Estado fomentarpráticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um observado: [...]O poder público incentivará o lazer, como forma de promoção social" (BRA-SIL, 2002, p. 132, grifo nosso).

A partir dessa atenção ao lazer, muitos governos (de diferentes esferas) dedica-ram atenção especial à temática. A Frente Popular tem valorizado, principalmenteem seus discursos, o lazer como uma política pública de enorme relevância social,contudo, como o modelo de Estado adotado é híbrido, ou seja, congrega duas formasde democracia: representativa e participativa. Há uma acentuada valoração da parti-cipação da população no processo de concepção, operacionalização e acompanha-mento das políticas públicas e, assim, o que ocorre é que as demandas por políticaspúblicas de lazer, em geral, estão sempre em último lugar, quando aparecem.

Além disso, com a abertura política, houve uma onda de denúncias contra omodelo de Estado Providência. Os "novos" políticos culparam os direcíonamentosdados as ações do Estado, durante os períodos anteriores, pela sua falência e apre-sentaram como alternativa a adoção do modelo neoliberal. No campo analítico daspolíticas públicas, autores como Afonso (2000) e Azevedo (2001) afirmam que o Es-tado demonstrou uma falsa expansão das políticas públicas sociais no momento queaparentam andar juntos neoliberalismo e Estado mínimo, contudo esses mesmosautores dizem que nunca o Estado foi tão forte e interventor. Em consequência, comoem todos os setores das políticas públicas tal expansão não se traduziu num aumen-to de investimento, mas sim no aumento do poder do Estado como regulador daspráticas ditas descentralizadoras. O resultado é que há pouco investimento estatal emuito controle sobre os negócios da iniciativa privada. No campo do lazer, o Estadose desresponsabiliza sobre as políticas públicas diretas, contudo, ele estabelece leisde incentivo fiscal, investimentos diretos em empreendimentos privados.Cresce o la-zer como mercadoria de consumo e como entretenimento.

Observando o terreno dos estudos sobre políticas públicas de lazer no Brasil,podemos notar o crescimento dessas produções na década de 1990 e início do séculoXXI. Muitas pesquisas foram realizadas, em especial, sobre a atuação de administra-ções municipais, na sua maioria sobre o modelo de Estado pautado na democraciaparticipativa (o que denominei modelo híbrido, anteriormente). No geral, esses estu-dos se detêm em uma análise do caráter ideológico das políticas. É um campo que

ainda carece do desenvolvimento de estudos comparativos sobre os diferentes modelosde gestão, dos investimentos públicos e sua aplicação, dos impactos sociais dessas polí-ticas, da coerência entre discurso e ação, da dimensão da representação individual do

lazer e o impacto que pode ter sobre a construção coletiva dessas políticas.

Por fim, cabe salientar que muitos textos divulgados, que se denominam estu-

dos de políticas públicas de lazer, não desmerecendo seu valor, são relatos de ex-periências de gestão, os quais não podemos caracterizar como análise científica.

Silvia Cristina Franco Amaral

Bibliografia

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POLÍTICA DE LAZER

A combinação dos dois vocábulos, "política" e "lazer", conceitualmente, resulta im-possível já que o primeiro representa um conjunto de princípios e pressupostos os

Page 94: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

quais, inexoravelmente, levam ao controle, enquanto o segundo tem na liberdadeuma de suas premissas essenciais.

Numa perspectiva filosófica, o termo política, quando identificado o seu sig-nificado isoladamente, pode representar desde a doutrina de direito e da moral, pas-sando pela teoria do Estado, pela arte ou pela ciência do governo ou, ainda, pelo estu-do dos comportamentos intersubjetivos (ABBAGNANO, 1998).

Do ponto de vista político, o significado clássico e moderno de política é deri-vado do adjetivo originado de polis (politikós), pertinente à cidade, por extensão aourbano, civil, público, sociável e social (BOBEIO et ai, 1999).

Quando analisado pela vertente da administração, campo do conhecimento noqual habitualmente mais se aplica ao tratar do lazer, política pode ser entendida comoum processo de fundamental importância na tomada de decisão, seja no planeja-mento, na organização, na direção, seja controle das ações voltadas para determina-do objetivo a atingir.

No campo do lazer, as políticas são geradas para estabelecer padrões de deci-são, aplicando-os aos tipos de situações semelhantes ou mesmo orientando outrassituações consideradas singulares.

Uma política de lazer não nasce num "vácuo". Ela é fruto da compreensão eassunção de determinada filosofia a qual interpreta a sociedade e as relações quenela se estabelecem. A partir desse marco filosófico que determinados princípios sãoestabelecidos, visando gerar diretrizes orientadoras, as quais são expressas por meio

de regulamentos com a finalidade de se atingir determinados objetivos e metas pre-estabelecidas.

Portanto, políticas podem ser consideradas como guias para a ação e não aação em si, assim como geram caminhos para atingir determinados objetivos, nãosendo objetivos em si. Logo, as políticas são maneiras de agir, baseadas em princí-pios para a tomada de decisões que resultam em ações que conduzirão com maiorêxito aos objetivos em vista (Jucius, SCHLENDER, 1972).

Quando aplicadas no campo do lazer, dada a tensão contraditória desses ter-mos já no início mencionada, compreende-se na atualidade que a aplicação dos me-canismos propostos no quadro de formulação e implementação de políticas deve tera finalidade educativa na perspectiva humanista e emancipatória, particularmentenuma sociedade desigual como a nossa, em que ainda se sobrevaloriza o trabalho, asobrigações, a produtividade e o consumo, independentemente do locus em que essaexperiência lúdica é vivenciada.

Se a natureza dos elementos constituintes de uma política pode ser gene-ralizada a qualquer ambiente em que o lazer ocorra, certamente a característica

86 [DICIONÁRIO .CHÍTICO nr> r .av-FHl

administrativa do local onde essa experiência de desenvolve determinará as altera-

ções necessárias, tanto na sua concepção como na sua implementação.

Considerando-se os limites de qualquer taxonomia ao tratar do lazer, para fins

meramente didáticos, o setor público deverá ter uma política bastante distinta da

iniciativa privada. Por sua vez, o chamado "terceiro setor" - no lazer representado

pelos clubes social-recreativos ou mesmo pelo sistema "S" - SESC, SESI, SEST, etc. -,

embora de natureza privada, em maior ou menos escala, uma política de lazer pode-

rá sofrer mudanças, sempre de acordo com a filosofia de trabalho e os objetivos e

metas adotados. Assim também o Estado.de acordo com a sua orientação ideológica,

formulará princípios e diretrizes de ação que resultarão em modos distintos como a

experiência de lazer será vivenciada tanto nas cidades como no ambiente rural.

Principalmente a partir da década de 1980, tem se constatado uma preocupa-

ção crescente na formulação de políticas de lazer no Brasil, especialmente no setor

público. Apesar de ainda incipiente, na maioria das vezes essas políticas de lazer são

formuladas e não implementadas, representado muito mais uma"carta de intenções".

Quando são formulados, habitualmente não resistem aos mínimos critérios de pere-

nidade, particularmente quando da transição de governo - no caso do setor público

(mesmo quando um mesmo partido político se mantém no poder!) - ou de mudan-

ça de uma gestão para outra, caso de clubes social-recreativos.

Com raras exceções, na iniciativa privada, se existe uma política de lazer, não édivulgada, dada a própria natureza do "segredo de negócio". Os casos conhecidos

também sofrem dos males antes mencionados, de se "reinventar a roda" a cada mo-

mento, rechaçando-se as experiências anteriores sem o mínimo critério de avaliação

e controle das ações anteriores. A política de lazer na iniciativa privada, independen-

temente do porte ou natureza do empreendimento, mantém tão-somente algumas

diretrizes gerais, as quais, muitas vezes, longe de ser aplicadas, habitualmente nãosão adequadamente comunicadas aos níveis hierárquicos mais baixos, fragilizando-se, dessa forma, a relação "empresa/cliente". Dada a crescente aproximação dos pro-

cedimentos administrativos em todas as áreas de prestação de serviços, indepen-dentemente da origem pública/privada, ainda é muito comum no Brasil encontrar

prefeituras, clubes, no sistema "S" e nos "negócios do ócio" (iniciativa privada) semsaber claramente aonde se deseja chegar em termos de objetivos a curto, médio e

longo prazos, demonstrando um ativismo aprofundado, fazendo-se muito, planejan-do-se pouco e avaliando-se quase nada!

A complexidade do construto lazer, sua abrangência e diversidade contribuempara o não estreitamento da distância entre a formulação e a implementação de políti-cas nesse campo da vivência humana. É, porém, a partir desse paradoxo (convivência

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entre o controles a liberdade) que urge aproximação do conhecimento da área,na maioria das vezes gerado nas universidades com as intervenções propiciadaspelas inúmeras agências fomentadoras do lazer.

António Carlos Bramante

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PROJETO

Origina-se da palavra inglesa project, que significa projeto, plano, intento, empreen-

dimento. No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, projeto é entendido como"ideia que se forma para realizar algo no futuro".

É um esforço temporário e único empreendido para alcançar determinado ob-jetivo. É um produto ou serviço único, não repetitivo e que envolve uma previsão, aomesmo tempo, a um certo grau de incerteza na sua realização (PMBOX, 2000).

Temporário significa que tem um início e um fim, ou seja, com duração prefi-xada, delimitada. Único, porque, mesmo tendo elementos repetitivos, não muda suacondição exclusiva por qualquer razão.

Segundo o PMBOX (2000), um projeto termina quando seus objetivos propos-tos são alcançados, diferentemente das operações continuadas (não projetos) que

são trabalhadas contínua e repetitivamente, sem previsão definida de término. É umtrabalho normalmente realizado por pessoas que vão consumir horas, estão limita-das por prazo, custos e escopos e precisam ser planejadas, programadas e controla-das sob a égide da eficiência.

Nas últimas quatro décadas, houve amplo desenvolvimento de metodologiasque subsidiam o planejamento, a gestão e a avaliação de projetos de investimentoempresarial, que alcançou, inclusive, complexos modelos matemáticos. O PMBOX éuma dessas metodologias de gerenciamento de projetos considerada como a fórmu-la para o sucesso dos projetos mercadológicos.

Já no campo dos projetos sociais, os reflexos do conhecimento sistematizadonessa área ainda são ténues. Isso acarreta a proposição de ações empreendidas, namaior parte das vezes e apesar das melhores intenções, sem uma análise criteriosadas condições para a consecução mais eficaz dos objetivos almejados e sem preocu-pação com a utilização mais eficiente dos recursos destinados ao projeto. Além disso,

por transposição das técnicas aplicadas aos projetos de investimento, existe um viéseconomicista em muitas das metodologias utilizadas para a condução dos projetos

na área social.Algumas agências de cooperação e alguns autores procuraram desenvolver e

divulgar a metodologia de planejamento e gerência de projetos que fossem instru-mentos úteis e facilmente aplicáveis a projetos sociais. Merecem destaque dois exem-plos que, em certo sentido, se aproximam. De um lado, a GTZ, agência de cooperaçãointernacional do governo alemão, desenvolveu o método ZOPP (das iniciais de Zie-lorienterte Projektplanung, em alemão, que significa "planificação de projetos ori-entada para objetivos"); quase ao mesmo tempo a USAID desenvolveu um instru-mento semelhante por nome Logical Framework (Estrutura Lógica). Ambosoferecem conceitos e uma abordagem prática úteis para a formulação de projetossociais, contendo elementos e instrumental que também contribuem para a gerênciada implementação e da avaliação. Tanto o ZOPP como o Logical Framework se auto-dassificam como instrumentos de gerência de projetos (DEUTSCHE, GESELLSCHAFT, 1993).

O Marco Lógico é um instrumento muito útil para a elaboração, análise e ge-renciamento de projetos. É um método se construção coletiva dos principais parâ-metros de um projeto - objetivos gerais, objetivo do projeto, resultados imediatos,atividades, indicadores e premissas. O Marco Lógico baseia-se no método científicode pesquisa social, estruturando os projetos sobre uma cadeia de hipóteses sobrerelações de causa e efeito envolvidas no enfrentamento da problemática em questão.

Cresce a cada dia o número de organizações de lazer (nas áreas de cultura,

turismo, esporte etc.) que realizam sua ação e obtêm recurso por meio de projetos.Cresce também o número de instituições que financiam projetos de lazer com finssociais, oferecem capacitação e prestam assessoria na área. Por outro lado, o próprionível de exigência geral quanto à qualidade da ação é, hoje, maior do que nunca. Énotável também o interesse recente da opinião pública e da mídia sobre projetos so-cioculturais. Por isso tudo, torna-se fundamental, para as atividades de lazer, inter-

venção organizada com melhores possibilidades de atingir seus objetivos.

Numa época em que os recursos destinados à área social são escassos e asdemandas são, em contrapartida, elevadas, a exigência de uma gestão eficaz, eficiente eefetiva dos projetos e programas sociais torna-se categórica. Para isso, no entanto,é necessário o desenvolvimento de uma cultura voltada para a elaboração e o

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monitoramento.que compreenda tais processos não apenas como instrumentos de de-finição de metas e acompanhamento de cronograma e fluxo de caixa, com vista à cap-tação de recursos e posterior prestação de contas aos financiadores, mas sim comoexcelentes ferramentas de aperfeiçoamento no processo de tomada de decisão da ges-

tão dos projetos. Nesse sentido, a atenção das agências financiadoras tem se voltado

para a efetividade das ações, e não apenas para a eficiência e a eficácia no cumprimentodas metas. Importa saber se, além de uma utilização eficiente dos recursos, as ações con-

tribuíram para uma mudança positiva na situação-problema enfocada pelo projeto.

Todo projeto tem como resultado a prestação de serviços específicos ou a pro-dução de determinados bens. Portanto, quando se pensa em projeto, pensa-se tam-

bém em planejamento. Mas em que um projeto se diferencia de outros tipos de pla-nejamento, como o planejamento estratégico de uma organização?

Um projeto deve ser visto como o instrumento pelo qual a organização im-plementa sua gestão estratégica. Portanto, as mudanças e os aprimoramentos pos-síveis e idealizados se concretizam na concepção e na execução dos projetos. Emúltima instância, o conjunto de projetos é a "cara" da organização e de seus colabo-radores, ou seja, o projeto traz a identidade para todos que dele participa (ANSOFF;MCDONNELL, 1993).

Projetos, portanto, não existem isoladamente. Eles só fazem sentido à medidaque fazem parte de programas e/ou políticas mais amplas. Isto é, tanto no setor públicocomo no setor não governamental, podemos identificar três níveis de formulação das

ações: a) o nível dos grandes objetivos estratégicos de ação (a política), b) um nívelintermediário em que as políticas são traduzidas em linhas mestras de ações temáticase/ou setoriais (programas); e c) o nível das ações concretas, delimitadas no tempo, noespaço e pelos recursos existentes que possam realizar os programas e as políticas, ouseja, os projetos. A grande vantagem dos projetos é o fato de eles colocarem em práticasas políticas e programas na forma de unidades de intervenção concreta.

Por fim, citaremos algumas definições de projeto encontradas na literatura eem alguns órgãos de cooperação técnica. São apenas uma parte de um universo bemmais amplo, mas que, de uma maneira geral, seguem o conceito da ONU, de 1984:

- "Um projeto é um empreendimento planejado que consiste num conjunto deatividades inter-relacionadas e coordenadas para alcançar objetivos específicos den-tro dos limites de um orçamento e de um período de tempo dados" (ONU, apudCOHEN; FRANCO, 1999, p. 85).

Outras definições:

- "Projeto é uma intervenção durante um prazo determinado que pressupõeum conjunto de atividades planejadas e interrelacionadas para atingir objetivos

determinados previamente (PNUD). Monitores y evaluación orientados a Ia obtención deresultados." (Manual para los administradores de programa. Nueva York, 1997, p. 99).

- "Projeto é um conjunto ordenado de recursos e ações para obter um propósito

definido. Esse propósito será atingido em um tempo e com um custo determinado." (OIT.Guia básicapam lapreparaáón de perfiles de proyectos. (Buenos Aires, 1991,p. 6).

- "Um projeto é uma tarefa inovadora que possui um objetivo definido, deve sercumprida em um determinado período, em uma região concreta e para um grupo debeneficiários e procura resolver problemas específicos ou melhorar uma situação . Aprincipal tarefa é capacitar as pessoas e as instituições para trabalhar com indepen-dência e resolver autonomamente os problemas surgidos ao terminar a fase da ajuda

externa. (GTZ: ZOOP resumido. Eschborn, s.f., p. 2).

- "Um projeto é um conjunto autónomo de investimentos, atividades, políticas

e decisões institucionais ou de outra natureza, desenhado para atingir um objetivoespecífico de desenvolvimento em um período determinado, em uma região concre-ta e para um grupo predefinido de beneficiários, que continua produzindo bens e/oucumprindo serviços após finalizada a ajuda externa, e cujos efeitos permanecem apósterminada sua execução."(MAE-SECIPI. Metodologia de Ia evaluación de Ia Co-

operadón Espanola. Madrid, 1998, p. 97).

Patrícia Zingoni

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QUALIDADE DE VIDA

Expressão amplamente utilizada a partir da década de 1980, quando se intensifica-ram as pesquisas relacionadas à questão da pobreza, da exclusão ao consumo e da

.141

Page 97: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

desigualdade social em todo o planeta. As demandas que suscitam tal intensificação

provêm, em parte, de iniciativas governamentais, em face da necessidade de funda-

mentar e estabelecer prioridades para a implantação de programas de políticas pú-

blicas, mas há que se considerar a importante participação das organizações do ter-

ceiro setor (ONGs), que, além de também usar e demandar pesquisas dessa natureza,

têm importante papel na divulgação do tema, fazendo-o chegar com mais frequência

às mídias e, a partir daí, ele é redimensionado em variados sentidos (polissemia).

Na década de 1990 essa polissemia já permite vários usos para o termo: fala-se

em qualidade de vida quando se debate o problema da cidadania, de como ela é afe-

tada pela pobreza e pela miséria, nesse caso em sintonia com o mote das pesquisas e

programas humanitários. Fala-se de qualidade de vida quando se discute os serviços e

os equipamentos que uma cidade ou província disponibiliza aos seus habitantes. Rela-

ciona-se o tema a vida saudável, qualidade de alimentação e nutrição, acesso de deter-

minado grupo ou sociedade a certos bens de consumo ou, mesmo, a espaços e produtosdestinados ao lazer, ao turismo ou ao consumo de bens culturais.

Frequentemente o uso da expressão qualidade de vida é associado a grupos

dotados de aptidões especiais, tangenciando o tema da inclusão social. Nesse caso, o

debate se concentra na criação de programas relacionados ora a equipamentos que

tornem possível a utilização do espaço urbano por pessoas portadoras de deficiências,

ora à expansão do mercado de trabalho e à questão da responsabilidade social e ética

empresarial, ora, ainda, à busca de constituir legislação em favor da inclusão social.

No campo da pesquisa em ciências sociais, o tema da qualidade de vida traz

consigo uma inesgotável discussão sobre os mais adequados indicadores e variáveis

a ser investigados, mas pode-se falar de um consenso quanto à necessidade de esta-belecer índices capazes de nortear os estudos e também quanto à importância de

combinar métodos quantitativos com métodos qualitativos de análise, dada a com-

plexidade do tema. Ademais, é importante destacar que o tema da qualidade de vida

envolve a lida com inevitáveis imprecisões relativas aos prazeres, aos aspectos sim-bólicos que se acoplam ao consumo e aos hábitos, à flexibilidade dos usos dos espa-

ços e objetos disponíveis e à adaptabilidade do ser humano às situações que se lhe

acometem, seja na condição individual, seja na coletiva.

Historicamente, antes mesmo de o tema ganhar sua atual denominação, a abor-dagem académica do problema da qualidade de vida remonta aos estudos e ensaiosdo Padre Lebret, na década de 1960. Desde então, a ideia de trabalhar em linhas quan-titativas e qualitativas já se fazia presente: o autor falava em pesquisar o nível devida, usando métodos quantitativos e os estilos de vida, bem como referênciasqualitativas. Esses estudos ligam-se historicamente aos trabalhos das pastorais e

da militância católica, em ações humanitárias localizadas, principalmente, em pon-

tos nevrálgicos de concentração da pobreza no mundo.

Em 1990, a ONU criou, por meio de uma comissão destinada a mapear a questãoda desigualdade social no mundo, o índice de Desenvolvimento Humano (IDH), esta-

belecendo variáveis fixas, que vêm sendo validadas até hoje. Esse índice trata com as se-

guintes variáveis: educação, longevidade e renda. Em cada uma dessas variáveis inci-

dem alguns indicadores, que costumam variar em razão de aspectos culturais e regionais.

A complexidade, a relatividade e a amplitude dos fatores que se podem relacionar

à pesquisa no campo da qualidade de vida tornam recomendável que se trabalhem

sempre com equipes interdisciplinares, seja para o planejamento, seja para o trabalhode campo e, fundamentalmente, para a análise dos dados e informações obtidos.

No Brasil, foi no rastro do processo de democratização da sociedade desenca-deado a partir do final da década de 1970 que o debate sobre a qualidade de vida seintensificou. A regionalização e a municipalização dos atributos políticos e administra-

tivos também contribuiu para que algumas administrações municipais começassem asubsidiar seus planos da ação com metas relacionadas à ampliação da qualidade devida. Das referências genéricas do IDH/ONU, pensado originalmente para pesquisas degrande porte, relacionado a países e macro-regiões, deriva o índice de Desenvolvimen-to Humano Estadual (IDH-E), desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Económicas e

Sociais (IPEA), em nível nacional, e o índice de Desenvolvimento Humano Municipal(IDH-M), desenvolvido em São Paulo (Polis) e em Minas Gerais (Fundação João Pi-nheiro - FJP/MG), que amplia e particulariza certos indicadores, tendo como referên-cia a escassez ou abundância de dados previamente disponíveis, as necessidades de

alcance das pesquisas ou de seus objetivos. Esses índices foram elaborados, sobretudo,a partir de dados secundários disponibilizados pela Fundação Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (FIBGE), no intuito de possibilitar leituras mais minuciosas dascondições de vida das populações em diferentes territorialidades urbanas. Destacam-se assim, para efeitos informativos, os trabalhos desenvolvidos em Curitiba, São Paulo eem Belo Horizonte, por adotarem conceitos e metodologias diferenciadas.

Curitiba foi a primeira cidade brasileira a desenvolver essa experiência. Seu tra-balho intitulado Medição do Nível de Vida da População de Curitiba data de1985, elaborado com dados de 1980. Foi implementado mediante convénio da Secretariade Estado de Planejamento (SEPL), do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano deCuritiba (1PPUC) e do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Económico e Social(IPARDES). O método utilizado foi o Genebrino ou das Distâncias, elaborado pela ONUe adaptado à realidade brasileira. A partir dessa metodologia desenvolveu-se o índiceSintético do Nível de Vida e os índices parciais das diferentes necessidades da popu-lação (alimentação, habitação, saúde, educação, transporte coletivo, entre outras).

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Em São Paulo o Núcleo de Seguridade e Assistência Social da Pontifícia Uni-versidade Católica (PUC) de São Paulo, com a participação de consultores e agentespopulacionais, sob orientação da Diocese de São Paulo, desenvolveu o Mapa, de Ex-clusão/Inclusão Social da cidade, em 1996. Para a configuração do Mapa foram ela-

borados índices de Exclusão Social Interdistrital (IEXI) e índices de Discrepância

Interdistrital (IDI), conforme a distribuição diferenciada de autonomia, qualidade

de vida, desenvolvimento humano e equidade da população dos 96 distritos em quea cidade de São Paulo está dividida desde 1990.

Finalmente, em Belo Horizonte, foram desenvolvidos dois trabalhos a partir

de parceria da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte com a Pontifícia UniversidadeCatólica de Minas Gerais (PUC Minas). O primeiro, denominado índice de Quali-

dade de Vida Urbano de Belo Horizonte (IQVU-BH), procurou dimensionar equalificar os serviços urbanos, públicos e/ privados, disponibilizados às 81 unidades

de planejamento, conceituadas como os diferentes espaços em que se dividiu a capi-

tal mineira, para fins de planejamento. Foram selecionadas 10 variáveis (abasteci-

mento, assistência social, cultura, educação, esportes, habitação, infra-estrutura,

meio ambiente, saúde, serviços urbanos e segurança) e 72 indicadores, totalizando

5.382 informações, que compõem o Banco de Dados do índice. Esse instrumento

está sendo utilizado para monitorar as políticas públicas da PBH, tais como o orça-mento participativo ou a bolsa escola. Possibilita comparar as necessidades e carên-

cias desses diversos espaços mencionados, dimensionando os recursos a serem inves-

tidos em cada local. Em decorrência de seu caráter de instrumento destinado amonitoramento de políticas públicas, será calculado periodicamente. Até o momentofoi calculado duas vezes: em 1994, com dados de 1992 e em 1999 com dados de 1996.

O segundo trabalho desenvolvido na capital mineira foi o Mapa de Exclusão/Inclusão Social de Belo Horizonte, para as mesmas UPs já mencionadas. Esse mapa

:onsta de três instrumentos: o primeiro, índice de Vulnerabilidade Social (IVS) que,J partir de cinco dimensões de cidadania (ambiental, cultural, económica, jurídica e

iegurança de sobrevivência), analisa o processo de exclusão/inclusão social da cida-le. Cada uma dessas dimensões foi subdividida em variáveis e estas em 11 indicado-'es qualitativos e quantitativos, que dimensionam a situação social da Urbe Belo-lorizontina. O segundo instrumento, denominado índice de Assistência Social (IAS)irocura mensurar as políticas sociais destinadas a mitigar as situações de maiorxclusão social. É calculado a partir de oito indicadores georreferenciados que repre-entam os atendimentos dos serviços de política pública da cidade. Já o terceiro ins-rumento, denominado Representações Especiais, caracteriza-se como símbolo mar-ante dos processos de exclusão (trabalho infantil, analfabetismo da população,loradores de rua e população moradora em domicílios improvisados) e inclusão

) nn T.Ay.F.pl

social (população com mestrado e doutorado). Esses trabalhos desenvolvidos emBelo Horizonte têm como diferencial o cálculo de indicadores específicos, tais comoos relativos à garantia de segurança alimentar, de acesso à assistência jurídica, deacesso à previdência social e outros. Essas informações estão mapeadas para toda a

cidade, representando um verdadeiro Atlas Social da Cidade.

Os índices relativos à qualidade de vida têm sido muito úteis aos estudos dolazer e se aproximam cada vez mais desse campo, à medida que se torna cada vezmais importante considerar indicadores referentes ao tempo-livre, ou à medida que

o lazer vai sendo associado à plenitude da prática da cidadania.

Euclides Guimarães

Vera Lúcia Alves Batista Martins

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RECREAÇÃO

Embora não seja a pretensão deste texto enfocar o debate sobre a recreação sob oprisma exclusivo da Educação Física, quando se busca apanhar seu desenvolvimento

histórico, a relação intrínseca que estabelece com essa área se revela notoriamente.Desse modo, é possível afirmar que a recreação é prima próxima da Educação Física.

Alguns autores chegam a dizer que, no Brasil, o desenvolvimento de práticas recrea-tivas foi responsável pela criação dos cursos de formação profissional em Educação

Física no País (WERNECK, 2000; MELO, 2003). Talvez por isso seja ela uma das ativida-des mais reconhecidas no campo, embora também uma das mais polémicas, confu-

sas e ardilosas. Assim, para compreendê-la, torna-se fundamental"fazer um passeiopela História, buscando percebê-la nos diversos aspectos em que pode ser focaliza-

da, bem como dos significados que a ela foram atribuídos, configurando seu conteú-do e sua forma, sua realização, seu sentido e seu lugar na sociedade.

No Brasil, é possível dizer que a recreação está intimamente relacionada à pró-pria história da educação, da escola e, especialmente, do ensino público primário.Sua ocorrência, porém, pode ser observada ao longo de todo o século XIX, contextoem que aparece como componente de um modelo educativo que ficou conhecido:omo médico-higienista. Tal modelo disseminou ideias e programas a respeito dasaúde, da aquisição de hábitos higiénicos, da atenção sobre a infância e do bem-:star físico e moral, desenvolvendo um projeto de controle corporal da populaçãoJrasileira que visava modificar os comportamentos e os modos de vida herdadosIa tradição colonial. Essa ação educativa/corretiva invade o cotidiano doméstico, a:scola, as relações sociais, familiares e culturais, realizando uma profunda reformulação

das consciências e dos saberes sobre o corpo e seus cuidados, sobre as práticas cor-

porais e sua importância para a sociedade da época. Com o objetivo de educar asnovas gerações sobre os melhores hábitos para o alcance da saúde do corpo, a me-

dicina social penetra o ambiente escolar e promove a sua higienização, alterando

as feições e atribuições da escola tradicional existente até então. Isso lhe confere

nova responsabilidade diante do desejado progresso social, ideal que passa a fun-

damentar a direção pedagógica das atividades ali realizadas, agora transformadas

em instrumentos para o alcance do vigor físico, o aumento da capacidade de tra-

balho, o aprimoramento da raça, a higiene das mentalidades e a superação do ar-

caico, da indolência e da decadência moral.

Nesse projeto de formação e intervindo sobre a saúde biológica e social da

população, a recreação já aparece como importante instrumento pedagógico, cujaorientação era disciplinar o corpo no sentido de que, no tempo livre, não se flexibili-

zasse com a preguiça. Ela se configura como estratégia de controle dos tempos, espa-

ços e práticas realizadas na escola, sobretudo nos momentos vagos entre as ativida-

des obrigatórias. Segundo Costa (1999, p. 183) "a finalidade explícita deste controledo tempo era de não deixar margem à ociosidade. O ócio induzia à vagabundagem, à

capoeiragem e aos vícios prejudiciais ao desenvolvimento físico e moral". Observa-se, então, que a recreação era uma forma de "educação física", cujo intento era de-

marcar o corpo higienizado e o corpo relapso do indivíduo colonial, demarcação essa

que deveria constituir a subjetividade burguesa em formação.

Na verdade, buscava-se disciplinar o tempo de modo que todas as atividades es-

colares seguissem um ritmo lógico de funcionamento, desde a duração e a frequênciado regime alimentar, as horas de sono, as atividades intelectuais e até mesmo o recreio.

Além disso, cada uma dessas atividades era rigorosamente organizada, pois não se ad-mitia desperdícios ou perda de tempo. Na perspectiva do máximo proveito e conveni-ência, à recreação cabia "estimular o corpo e o espírito mediante a escolha seleta dasbrincadeiras, exercícios e distrações" (COSTA, 1999, p. 183). Por meio de atividades lúdi-cas, jogos e exercícios ginásticos, os limites entre trabalho e tempo livre, obrigação ediversão eram tecidos e revestidos pelas noções de utilidade e recompensa, que come-çam a ser forjadas pela prática da recreação e acionadas já nas primeiras lições da edu-cação infantil. É o que afirma, mais uma vez, Costa (1999, p. 184): "a recreação deveriaservir à recuperação das energias gastas no trabalho. [...] O ócio se inseria no circuitoda obrigação. Também ele tinha que ser disciplinado, e dele só deveriam usufruir osque se submetessem ao trabalho". Desse modo, a dimensão utilitária de tempo e aorganização adequada das atividades recreativas, quando são assimiladas pela esco-la e pelo pensamento educacional, indicam que a recreação responde a interessespolítico-ideológicos importantes, uma vez que produz uma distinção racional das

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obrigações profissionais, sociais, familiares, escolares e os diversos tipos de diversão,sendo estes últimos entendidos como instrumentos de compensação diante das novasexigências do mundo do trabalho e da sociedade liberal e capitalista que se configurava(MARCASSA.2002).

Assim, sob os preceitos da ordem, da disciplina e do comportamento saudá-vel incorporados à escola, a recreação manifesta-se como coadjuvante do processoeducativo para o alcance da melhor forma de recuperação das forças para o retor-no ao trabalho, incluso aí o trabalho escolar, a diminuição da delinquência e a ocu-pação adequada do tempo livre, fazendo-se protagonista da construção da harmo-nia e do progresso. E tamanho era o "dever civilizador" das atividades escolaresque ele acaba justificando não só a efervescência de movimentos políticos e sociaispela instrução da população brasileira, como também reforçando, cada vez mais, aprática da recreação como estratégia de controle do tempo livre, tanto dentro, comofora da escola.

Desse modo, se num primeiro momento da história da educação no Brasil arecreação foi um importante recurso disciplinar destinado à educação infantil, pos-teriormente, pode ser vista também como uma atividade responsável pela formaçãomoral e cívica de jovens e adultos. Essa mudança foi provocada pela emergência decertas tendências político-pedagógicas que ganharam o cenário educacional brasi-leiro durante as três primeiras décadas do século XX. Representando a vitória dootimismo pedagógico sobre o entusiasmo pela educação, a chamada Escola Novaintroduziu as ideias de uma escola renovada e estimulou a discussão sobre a quali-dade do ensino, reivindicando a especialização e a modernização das questões peda-gógicas. Porém, com base numa "neutralidade científica", submeteu a luta políticapela instrução ao âmbito técnico-instrumental e à qualificação didático-metodoló-gica da educação escolar. Aprofundando o debate sobre Tradição versus Modernida-de e inserindo a lógica da ciência nas questões educacionais, o pensamento escola-novista encarrega-se de combater os problemas atinentes às dificuldades da vidamediata como resposta às causas urgentes da estabilização e do progresso; seu obje-:ivo era colaborar na formação dos melhores hábitos mentais e morais comprometi-los com as demandas da sociedade em mudança. A "escola progressiva", nos termoslê Teixeira (1933, p. 1), é a escola em que as atividades se processam com o máximolê oportunidades para isso; seu fim é o homem educado: "aquele que sabe ir e virom segurança, pensar com clareza, querer com firmeza e executar com tenacidade,' homem que perdeu tudo que era desordenado, informe, impreciso, secundário emua personalidade, para tê-la definida, nítida, disciplinada e lúcida".

Sob a influência do pragmatismo norte-americano de John Dewey, a Es-ola Nova proclama a reformulação dos métodos de aprendizagem, renovando

a importância sobre o jogo e a ginástica como componentes fundamentais da for-mação da personalidade, da civilidade, da disciplina e da liberdade, uma vez que a

disposição corporal era um antídoto eficiente contra a fadiga e a degradação física e

moral. À pedagogia cabia gerar uma nova forma de sociabilidade que permeasse toda

a dimensão cultural. Sendo assim, tanto para jovens como para adultos, os exercícios

corporais e a recreação organizada desempenhavam papel moralizador e cívico, vis-

to que mediavam a aquisição do gosto por atividades moderadas, arrefecendo as ener-

gias corpóreas e os anseios juvenis por conta da curiosidade provocada pela prática

da "Educação Physica", capaz de propiciar o hábito da higiene, do equilíbrio psicos-

social, do bom comportamento e do controle de si mesmo. Mas enquanto Azevedo(1920), um dos maiores representantes do movimento escolanovista, prossegue na

defesa da Ginástica Sueca como a forma ideal para o emprego do tempo livre e ocu-pação útil do corpo e da mente, Teixeira aposta nas finalidades da recreação, alegan-

do que a vivência de jogos e brincadeiras responde melhor às aspirações e interesses

das crianças. Como efeitos esperados, os jogos de recreio deveriam moldar a perso-

nalidade e o caráter infantil, bem como educá-las para que soubessem regular adequa-damente o curso de sua vida. Entretanto, conforme observa Werneck (2003, p. 25), por

meio das atividades recreativas, "o controle é dissimulado em um suposto clima de

'espontaneidade' e 'liberdade' proporcionado pela vivência do jogo que, como uma'receita', colabora com o processo de reprodução cultural" (p.25). Nesse sentido, as

condutas de ensino, as experiências científicas e a recreação mostram-se organiza-

doras, disciplinadoras e benéficas à manutenção da vida cooperativa da classe e da"comunidade", indicando que o programa de atividades lúdicas escolares, neste mo-

mento, seguia uma perspectiva funcional que visava à modificação dos hábitos coti-

dianos dentro e fora da escola. Resumindo-se num conjunto de jogos de regras eenvolvendo diversas outras atividades corporais, a recreação afirmava seu caráter

instrumental, inculcando ideias, valores e saberes que engendravam a formação de

sujeitos adaptados às situações geradas pelas novas relações de trabalho, contribuin-

do para a consolidação da ordem burguesa e capitalista.

Observa-se, então, que a recreação na perspectiva escolanovista era um impor-

tante recurso para a aquisição de hábitos e conhecimentos que visavam orientar crian-ças, jovens e adultos no modo com "empregar utilmente o tempo de lazer e diversão"(TEIXEIRA, 1933, p. 65), canalizando suas energias, promovendo a disciplina e o con-trole, desenvolvendo o gosto pelas atividades corporais e pelo comportamento sau-dável, o que reforça, mais uma vez, as ideias de pragmatismo e instrumentalizaçãohistoricamente vinculadas à prática da recreação no Brasil. E é com essa mesma co-notação que a recreação foi estendida aos primeiros equipamentos públicos delazer, por meio dos recém-criados centros de recreio que se desenvolvem a partir da

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anos de 1920 em todo o País, paralelamente às políticas de urbanização e moderni-zação das grandes cidades. A primeira iniciativa foi realizada em 1926, na cidade dePorto Alegre, e liderada por Frederico Gaelzer, para quem o Serviço de Recreação

Pública tinha como objetivo ocupar adequadamente as "horas de lazer" dos jovens,

evitando que eles se sujeitassem à delinquência e à ociosidade (GAELZER, 1979). De-pois, pode-se observar iniciativa semelhante na capital paulista, com a criação, em

1935, do Serviço Municipal de Jogos e Recreio, coordenado por Miranda (1984), para

quem os centros de recreio, além de equacionar o problema higiénico, recreativo e

educacional, eram necessários à ordem social e municipal, uma vez que a recreação

era capaz de promover a saúde física e mental do cidadão exausto nas metrópoles

devido aos múltiplos contratempos provocados pela vida moderna. É durante a ges-

tão de Miranda que são implantados os Parques de Jogos, com seus programas de

Parques Infantis e Clubes de Menores Operários. No que se refere a este último, des-

taca-se a preocupação com a formação da força jovem de trabalho no sentido da sua

preparação e integração ao mercado de trabalho cada vez mais industrializado e com-

petitivo. É com esse propósito, então, que em 1943 foi criado o Serviço de Recreação

Operária do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Segundo Werneck (2003),

nesse contexto, o aproveitamento adequado das "horas de lazer" do trabalhador tor-

nava-se uma condição sem a qual os repousos assegurados por lei ao operário nãopoderiam atingir seus objetivos. Nesse sentido, embora a não ocupação ou a utiliza-

ção "inadequada" do tempo livre continuasse se configurando como um problema

social ameaçador à lógica capitalista, nesse momento ela ganha significados bem

mais profundos do que aqueles pregados pelos médico-higienistas e pelos escolano-vistas. Não mais como mero recurso disciplinar gerador de corpos e mentes saudá-

veis, obedientes e controlados, nem como uma atividade útil para a organização e

emprego apropriado do tempo livre; agora, o sentido que recai sobre a recreação vem

ao encontro da pretensão maior da sociedade do capital, qual seja, o controle absolu-to de todas as dimensões da vida humana, dentro e fora do trabalho. Nessa perspec-tiva, a recreação responde, como um conjunto de atividades operacionais, como con-teúdo a ser desenvolvido no tempo/espaço de lazer, à necessidade de reposição,

manutenção e preparação da força de trabalho, ou melhor, como fenómeno submeti-do à lógica da política e da economia do trabalho.

Para Sussekind, Marinho e Góes (1952, p. 17),"a organização dos lazeres é umdesejo elementar e uma necessidade essencial da vida do homem que trabalha: con-tribui para o desenvolvimento físico, intelectual e social do trabalhador; tem impor-tância capital no bem estar, na saúde e na educação do trabalhador. A melhoria donível educacional do trabalhador, sua maior integração social, seu equilíbrio bioló-gico, são, portanto, os três grandes objetivos da recreação". Como se vê, a recreação

entendida como instrumento de organização dos lazeres reforça saberes e práticasque vão além do espírito lúdico, da espontaneidade, da manifestação dos interessesda criança ou da "bem-intencionada" educação física e moral. Ela denota interesses

de classe, reproduz valores hegemónicos, forja subjetividades, inculca princípios, de-

sejos e necessidades que mantêm correspondência com os ideais da sociedade capi-

talista. E não por acaso, é com essa mesma configuração que a recreação é integradaaos cursos de formação em Educação Física, compondo seu universo académico e

seu campo profissional. Exemplo disso era a existência, até bem pouco tempo atrás,

de uma disciplina responsável pelas questões relacionadas à Educação Física, Re-

creação e Jogos. Acreditava-se, por todas essas relações historicamente construídas,

que a recreação era propriedade da Educação Física, um conteúdo ou atividade a ser

desenvolvido sob a responsabilidade dela. Marinho (1981, p. 34), catedrático intelec-

tual da área, destinou obras inteiras ao estudo das relações entre educação física e

recreação, concebendo esta última como "a atividade física ou mental a que o indiví-duo é naturalmente impelido para satisfazer a necessidades físicas, psíquicas ou so-

ciais, de cuja realização lhe advém prazer", o que significa que sua conotação como

atividade vem prevalecendo no campo.

Depois dele, outros estudiosos também deixaram referências importantes so-

bre a recreação para a área da Educação Física. É o caso de Teixeira e Figueiredo, que,na década de 1970, dedicam-se à sistematização das questões concernentes à recre-

ação, contribuindo para a proliferação dos "manuais" ainda muito utilizados nessecampo. Localizados desde uma perspectiva compensatória e utilitarista do lazer

(MARCELLINO, 1987), afirmam ser função da recreação, além do emprego adequado dotempo livre, a recuperação da força de trabalho, o que, por sua vez, resulta em bene-

fícios para a própria indústria, pois que "o operário descansado, restaurado, saudá-vel, contente e alegre, sentir-se-á feliz e assim, produzirá muito mais e certamente

mais barato" (TEIXEIRA E FIGUEIREDO, 1970, p. 58).

É desse período a obra prima de Medeiros (1975, p. 131), na qual introduz as-

pectos psicológicos à vivência da recreação. Segundo a autora, o que caracteriza asatividades de recreação é a atitude ou disposição mental do executante, "marcadas

sempre pela livre escolha da pessoa que com elas preenche as suas horas vagas, vi-sando unicamente à alegria intrínseca a tais ocupações". Gaelzer (1979, p. 59) tam-bém destina parte de seus estudos ao tema da recreação, concebendo-a como "umaexperiência na qual o indivíduo participa por escolha, devido ao prazer e à satisfa-ção pessoal que obtém diretamente dela. Atividade recreativa é atividade que nãoseja conscientemente executada com o propósito de obter recompensa além damesma, proporcionando ao homem um escape para as suas forças físicas, criado-ras, e na qual ele participa por desejo íntimo e não por compulsão externa". Estas

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duas autoras relacionam as dimensões da atitude e da subjetividade à prática darecreação de forma inovadora para o período.

Daí em diante, outros autores surgiram, e a recreação foi ganhando novos sen-tidos e conotações, embora as modificações operadas na dinâmica social já exigis-sem um repensar do lugar ocupado por ela até então. É a partir da década de 1970também que, com a emergência dos estudos provenientes da sociologia do lazer, arecreação perde importância diante do destaque dado a esse fenómeno. E, enquantoao lazer foram associadas características e funções internamente articuladas às esfe-ras da cultura, do trabalho e da vida cotidiana, a concepção de recreação que perma-neceu, como bem chama a atenção Werneck (2003), reforçou a ênfase sobre o seucaráter técnico e operacional prevalecente até os dias de hoje. Assim, ao contrário deapontar uma saída definitiva para a prática da recreação, o mais importante é pro-blematizar e ampliar a nossa compreensão sobre ela.

Nesse sentido, cabem algumas interrogações: Até que ponto é possível recupe-rar o sentido lúdico e criativo contido nas origens etimológicas do termo recreação?Seria possível superar o enfoque técnico-instrumental que incide sobre a atividaderecreativa em si, mesmo sabendo que toda atividade (e a recreação não foge à regra)promove e denota valores, concepções e interesses político-sociais? E ainda que com-prometida com uma orientação política-ideológica crítica, em que medida é possívelconstruir novas referências ou metodologias que levem em conta a experiência e aapropriação de práticas culturais de modo articulado aos saberes teórico-práticosque as fundamentam?

Observando os diferentes contextos socioculturais, tudo indica que a culturalúdica integrante da construção de saberes, das formas de sociabilidade, das mani-festações festivas advém não da recreação, mas dos jogos e brincadeiras que, em qual-quer tempo e lugar, são expressões de desejos e necessidades humanas. Por isso, tal-vez seja necessário compreendermos que na atualidade a recreação se converteu e seconsolidou como um saber-instrumento que foi apropriado pela escola, pelo lazer,pela família, pela igreja, pelo esporte, enfim, pelas diferentes instituições sociais quefazem dela uma manifestação com conteúdos, características e qualidades ajustáveisaos diferentes contextos e situações sociais. Cabe a nós refletirmos se é assim que arecreação deve permanecer entre nós, ou quais as possibilidades que temos de cons-truir novas e ricas experiências pedagógicas envolvendo a recreação.

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RUA DE LAZER

Evento de curta duração que, geralmente, varia de quatro a oito horas e constitui umespaço adaptado para a vivência de atividades relacionadas aos diferentes conteúdosdeste fenómeno histórico chamado lazer.

Apesar da escassa bibliografia existente sobre o tema, sabe-se que esse tipo deevento se faz presente na sociedade brasileira há pelo menos quatro décadas, desde aimplementação da Campanha Ruas de Recreio, instituída pela Portaria ministeri-al n° 3, de 6 de janeiro de 1958. Criada com o objetivo de promover atividades recre-ativas orientadas em ruas e praças dos centros urbanos, tal campanha passou a serlargamente adotada em todo o País. A proposta tinha o intuito de divertir e relaxar osparticipantes e privilegiava, para isso, as atividades físico-esportivas, visto que o con-texto histórico da época apontava para uma forte associação entre aquele conteúdo,

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a recuperação da força de trabalho do operariado e a manutenção da saúde, conside-rada primordial para o desenvolvimento industrial de uma nação. As atividades, con-troladas por monitores quanto ao uso do tempo, do local e dos equipamentos utiliza-dos, eram planejadas previamente, com base em um modelo único adotado para todasas Ruas de Recreio realizadas pelo órgão promotor, ou seja, não havia na época a

preocupação de considerar as particularidades regionais, tampouco de inserir as co-munidades no processo organizacional do evento - os participantes se restringiam àvivência das atividades oferecidas.

Mais de quarenta anos depois, mesmo tendo passado por algumas modifica-ções, o modelo ainda é adotado com o objetivo de desenvolver eventos organizadospor órgãos públicos, empresas privadas, instituições de terceiro setor e empresas con-sideradas organizações mistas, como o Serviço Social do Comércio (SESC).

Considerando as diferentes áreas de interesse que integram o lazer, podemosperceber o amplo leque de possibilidades que se abre quando da programação de

atividades para uma Rua de Lazer. É importante que o respeito a essa diversidade seefetive mediante a inclusão de práticas variadas, de modo a estimular os participan-

tes a experimentar diferentes alternativas e a optar por aquelas que mais lhes agra-

dam, buscando, assim, um atendimento integral de qualidade. Todavia, a diversifica-ção de conteúdos tem implicações diretas na operacionalização do evento,determinando, por exemplo, a quantidade de pessoal, a sua distribuição nas diferen-tes atividades, o espaço mínimo necessário e o tipo de material que será utilizado.

Para fins de organização, uma Rua de Lazer geralmente é subdividida em seto-res, que podem ser entendidos como espaços específicos onde se concentra determi-nada atividade. Os critérios que guiam essa divisão passam tanto pela predominân-cia de interesses e aspirações que direcionam a escolha dos participantes por uma ououtra prática, quanto pelas necessidades relativas à infra-estrutura do evento. Al-guns exemplos de setores são: brinquedos infláveis, atividades esportivas, cama elás-tica, atividades artísticas, jogos de mesa e salão, jogos populares, apresentações, água,lanche e som. No caso das chamadas "ações integradas", o número de setores é natu-ralmente maior e a organização mais complexa. Muito comuns atualmente, elas reú-nem, além das atividades de lazer, outros serviços de diferentes naturezas, como cor-tes de cabelo, stands de confecção de documentos de identidade ou carteiras detrabalho, distribuição de mudas de plantas, medição de pressão, etc., contando com aparticipação de colaboradores diversos.

Uma importante característica das Ruas de Lazer é a adaptação temporária deespaços. É verdade que o crescimento dos centros urbanos veio acompanhado de umprocesso de especulação mobiliária e da consequente transformação de espaços pú-blicos, que antes eram destinados especificamente à vivência do lazer como praças,

campos e áreas verdes, em espaços privados de fins comerciais e residenciais, ou seja,grande parte dos locais destinados à vivência do lazer é reservada, hoje, para o privi-légio de poucos. É também inegável e latente a necessidade da formulação de políti-

cas que caminhem no sentido da ampliação, qualificação e democratização dos es-paços existentes. Todavia, sabe-se também que "não é a aparelhagem que determina

a cultura e o lazer, e também não é ela que detém a capacidade de tornar a vida mais

humana" (WERNECK, STOPPA e ISAYAMA, 2001).

A insuficiência de equipamentos de lazer não é necessariamente um indicadorda impossibilidade de vivência de seus conteúdos culturais. Uma Rua de Lazer éum claro exemplo de como uma via pública destinada originalmente ao tráfego deveículos e de pedestres pode ser utilizada como uma quadra de peteca, um ateliê, um

palco ou tantos outros espaços que nossa criatividade permita construir. Da mesmaforma, é perfeitamente possível adaptar outros locais existentes nas comunidades paraque eles possam também constituir pontos de encontro e convívio humano, que facili-tem o desenvolvimento pessoal e social dos cidadãos por meio das práticas de lazer.

Outro aspecto importante a ser observado é o grau de envolvimento das comu-nidades solicitantes no processo de organização do evento. Com base nesse critério,Oliveira (2003) aborda dois modelos bastante distintos: a"Rua de Lazer Tradicional"

e a "Rua de Lazer Solidária".

A Rua de Lazer Tradicional é semelhante ao modelo inicial da Campanha Ruas

de Recreio no que diz respeito à restrição de participação das comunidades atendidas,que se limitam a vivenciar as atividades oferecidas sem, no entanto, se envolverem noprocesso de elaboração, que é de exclusiva responsabilidade dos órgãos executores. Essemodelo, apesar de rígido e pouco democrático, é ainda amplamente utilizado.

Elaborado como uma alternativa à forma tradicional, o segundo modelo - Ruade Lazer Solidária - situa-se em um contexto político muito diferente daquele em quesurgem os primeiros eventos nesses moldes. Esta proposta foi elaborada na PrefeituraMunicipal de Belo Horizonte, em meio a uma administração democrática de governo,preocupada com a valorização da participação popular nos processos decisórios. Omodelo vem sendo adotado no município desde 1998 e tem como diretriz central a

busca de um maior envolvimento das comunidades no processo de organização dasRuas de Lazer por elas solicitadas. Tal mudança de perspectiva está intimamente asso-ciada à necessidade de se reconhecer o usuário de programas sociais como cidadão e àassociação da cidadania à efetiva participação dos sujeitos nos processos de elabora-ção, implementação e condução das políticas. Assim, as Ruas de Lazer Solidárias cons-tituem modelos mais flexíveis de organização, nos quais as comunidades são convida-das a se tornarem parceiras do Poder Público, compartilhando as responsabilidadespelo sucesso do evento mediante a distribuição e do desempenho de papéis. O principal

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objetivo desse processo é promover a educação dos indivíduos para maior autonomia

em relação às práticas de lazer, estimulando a sua participação em vivências mais crí-

ticas, criativas e conscientes, mediante a formação de lideranças mobilizadoras.

Observando uma Rua de Lazer, podemos, a princípio, ter uma avaliação com-pletamente positiva desse evento, visto que realmente é possível enxergar de forma

nítida no rosto dos participantes a alegria e a satisfação por estarem envolvidos nas

atividades oferecidas, e isso, sem dúvida alguma, é um mérito inquestionável dessasações. No entanto, é preciso analisá-las com maior cautela.

Sabe-se que o lazer é um direito social, instituído pela Constituição brasileiradesde 1988 (art. 217, parágrafo III). A partir desse fato, podemos entender a necessida-

de da formulação de políticas sociais que caminhem no sentido da afirmação desse

direito, pois a sua vivência por parte dos indivíduos é fator condicionante da existência

da cidadania, entendida aqui não como mera questão geográfica, mas como a concreti-

zação dos direitos constitucionais - o que envolve, dentre outros aspectos, o acesso aos

bens produzidos por uma nação e a possibilidade da livre participação nos processosde formulação das políticas que configuram diariamente o País.

Dada a importância das políticas públicas sociais, acrescenta-se que elas de-vem ter como objetivos assegurar o bem-estar social por meio da melhoria da quali-

dade de vida da população e conquistar crescentes níveis de integração, especial-mente dos grupos socialmente excluídos.

Logo, se observado o caráter efémero e esporádico das Ruas de Lazer, percebe-remos que, mesmo na perspectiva solidária, elas têm ação muito limitada no que dizrespeito ao alcance desses objetivos. É preciso que se criem estratégias de interven-

ção que tenham reflexos sociais significativos e permanentes na vida das pessoas.

Apesar de reconhecermos as Ruas de Lazer como espaços de vivência lúdica, deve-

mos ter em mente que um único dia de alegria não é satisfatório, pois, quando asatividades são encerradas e os materiais recolhidos, a vida das comunidades volta ao

que era antes e os problemas que as afetam não tiveram suas proporções diminuídas.Portanto, esses eventos atuam hoje mais no sentido do assistencialismo e menos naperspectiva da afirmação do lazer como direito social.

Não devemos ser radicais a ponto de afirmar que é necessário abolir as Ruas deLazer do cenário nacional. Conforme dito anteriormente, elas constituem espaços deconvivência, de reprodução e transformação das manifestações culturais, tendo, por-tanto, o seu valor. Apenas é preciso conferir-lhes novos significados.

As políticas públicas de lazer devem se preocupar com a oferta de programas con-tínuos, que facilitem a vivência dos diferentes conteúdos desse fenómeno histórico nãoapenas durante um dia, mas ao longo de todo o ano, buscando a participação cidadã naformulação e no controle desses programas e, acima de tudo, conscientizando a popula-

06 [DICIONÁRIO r empo DO LAZER]

cão a respeito de seus direitos, de modo a contribuir efetivamente para o alcance de uma

sociedade mais justa. Nessa perspectiva, o lazer deixa de ser simples instrumento destina-

do ao descanso e ao divertimento e torna-se palco de atuação política, do qual emergem

valores questionadores da sociedade e caminha-se no sentido de uma nova ordem. Assim,

as políticas de lazer não devem se restringir a políticas de atividades, mas contemplar

também questões referentes aos espaços e equipamentos, à ordenação do tempo na soci-

edade pós-industrial, dentre outros condicionantes dessas práticas.

Em meio a políticas de lazer realmente comprometidas com a efetivação de

direitos, é possível trabalhar as Ruas de Lazer em outra perspectiva, associando-as,

por exemplo, a programas de lazer contínuos. Dessa forma, elas não serão meros even-

tos descontextualizados - estarão situadas em ações preocupadas em promover o

bem-estar social.

Virna Carolina Carvalho Munhoz

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cado.Campinas: Papirus,2001.112 p.

SERVIÇOS DE LAZER

No mundo contemporâneo, tem aumentado a importância económica das atividades

denominadas genericamente como "serviços", que se caracterizam por oferecer pro-

dutos intangíveis, intransferíveis, não-estocáveis e por apresentarem contato diretoentre produtor e consumidor.

As inúmeras atividades que se encaixam nessa definição podem ser agrupa-das em quatro categorias: serviços produtivos (bancos, seguradoras, imobiliárias,

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escritórios de arquitetura, engenharia, advocacia, contabilidade, publicidade etc.);serviços distributivos (empresas de transporte e comunicações); serviços sociais (es-

tabelecimentos de atenção à saúde, de educação, administração pública, estabelecimen-tos religiosos etc.); e serviços pessoais (oficinas de reparação, salões de beleza, res-

taurantes, hotéis, agências de turismo, empresas de diversões, serviços domésticosetc).

Obviamente, os serviços de lazer - que abrangem incontáveis estabelecimen-tos, como boate, cinema, parque de diversões, locadora de filmes, academia, boliche,camping, pesque-pague, bingo, entre tantas opções - pertencem ao grupo dos servi-ços pessoais. Mas deve-se considerar que uma parcela da oferta de opções de lazer éorganizada por políticas públicas ou tem caráter semipúblico - rua de lazer, passeiociclístico, jardim zoológico, programação no rádio e na televisão, jogo de futebol,festa junina, entre outras -, podendo, assim, ser incluída em serviços sociais.

Por outro lado, é preciso esclarecer, ainda, que o "setor turismo" deve ser estudadoseparadamente. Conforme definição da Organização Mundial de Turismo (que também é

adotada pela Embratur), o conjunto das atividades económicas que constituem esse setorincorpora segmentos de diferentes naturezas: estabelecimentos de hospedagem, empre-sas de transporte, um leque de opções de diversão e uma variedade relacionada a serviçosde alimentação, ao comércio de mercadorias e a outras atividades conexas.

Embora seja precipitado falar no aparecimento de uma "sociedade do tempolivre", é inegável que vem crescendo o número de atividades económicas relaciona-das, de algum modo, ao lazer das pessoas. Nos países de alta renda per capito, à medi-da que se expandiu a indústria cultural, cresceram e se diversificaram os mercados debens e serviços destinados ao entretenimento individual ou familiar. O lazer passou,então, a ser considerado uma área de negócios altamente lucrativa, abrindo novos cam-pos de investimento e novas oportunidades de trabalho. Nessa ótica, predominam osserviços mercantilizados e individualizados, ou seja, aqueles que as pessoas compramindividualmente nos variados mercados existentes, ainda que o consumo da prática oudo espetáculo seja feito na companhia de um grande número de pessoas.

Ao mesmo tempo, ganharam expressão as políticas públicas de lazer, que ofere-cem serviços gratuitos à população e impedem o avanço absoluto da lógica do mer-

cado sobre essa dimensão da vida social. Exemplos nesse sentido são os centros es-portivos comunitários, a organização de festividades abertas à coletividade, amanutenção de praças e parques públicos.

Há, ainda, as atividades desenvolvidas pelo "terceiro setor", isto é, por entida-des que se localizam numa zona intermediária entre o público e o privado. Aí seencontra uma oferta de entretenimento promovida por organizações sem fins lucra-tivos - como clubes sociais, sindicatos, instituições religiosas, dentre outras.

! [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

Portanto, a expansão da oferta de opções de lazer, que se destina a atender um con-junto muito diversificado de consumidores de práticas e espetáculos, responde a iniciati-vas que se orientam por distintas finalidades e diferentes lógicas de organização.

Na sociedade "pós-industrial" ou "informacional", caracterizada pela circu-

lação de informações e pela produção e gestão do conhecimento, observa-se que anecessidade das empresas de se inserirem numa economia que opera em rede, de umlado, e as mudanças tecnológicas e na organização do trabalho, de outro, estabele-

cem novos parâmetros para examinar as atividades económicas.

Na era da globalização, os negócios do entretenimento têm sido revoluciona-

dos tanto pela introdução de inovações tecnológicas, como pela atuação de grandescorporações - como o Grupo Disney, proprietário de parques temáticos, hotéis, emis-sora de televisão, empresa cinematográfica, equipes esportivas profissionais, dentreoutros empreendimentos, nos Estados Unidos -, que passam a ditar os rumos e a

dinâmica da chamada "indústria do entretenimento".

Embora a expressão "indústria do entretenimento" seja mais adequada para

definir a produção de discos, filmes, livros, videogames, etc., tem sido aplicada àprodução de espetáculos em geral, inclusive os de teatro, dança e os esportivos. E,adotando um sentido bem maleável do termo, pode-se incluir sob essa designaçãouma série de outros negócios, como os cassinos (que fazem parte da "indústria do

turismo") e a própria Internet.

Empreendimentos tradicionais do campo do lazer, como as casas noturnas, assalas de cinema, as agências de viagem e os parques de diversões, dentre outros, pas-saram por um processo intensivo de modernização, resultado de novas tecnologias,de novas formas de comercialização e de novos relacionamentos com os clientes. Aomesmo tempo, surgiram ou se consolidaram empreendimentos em áreas inovado-ras, como as casas de jogos eletrônicos interativos, as academias de fitness, o aluguelde campos de futebol com grama sintética e o turismo de aventura. As empresaslíderes em cada um desses segmentos procuram se inserir de alguma forma na res-trita esfera da economia globalizada. De qualquer modo, há ainda bastante espaçopara empresas ou entidades que continuam utilizando procedimentos e tecnologias

convencionais e atuam circunscritas num espaço regional.

Não por acaso, economistas e gestores de políticas públicas têm afirmado, aodiscutir alternativas de desenvolvimento numa economia voltada cada vez mais parao crescimento dos serviços, que o lazer e o turismo devem ser vistos como atividadesimportantes para dinamizar o desenvolvimento local e para a geração de emprego e

renda em âmbito regional.

No Brasil, assim como ocorre nos países desenvolvidos, o crescimento dosserviços de lazer tem se concentrado nas regiões metropolitanas e em alguns

[SERVIÇOS DE LAZER] 209

Page 106: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

pólos turísticos. Nas grandes cidades localizam-se os maiores equipamentos públi-cos de lazer, as principais instalações do Serviço Social do Comércio (Sesc) e de ou-tras instituições do terceiro setor, os clubes esportivos com melhor infra-estrutura,as principais casas de espetáculo, a rede hoteleira mais moderna, os shopping cen-ters. Seria inviável listar todos os equipamentos existentes.

Nas cidades de menor porte, os serviços de lazer só ganham uma estruturaempresarial mais sofisticada e expressiva quando há desenvolvimento turístico, ouseja, quando há mercado. A exceção que confirma a regra e vale a pena ser menciona-da diz respeito às festas de peão de boiadeiro, que misturam rodeio, apresentaçõesmusicais e feira comercial e se transformaram em produções milionárias, como nocaso da que é realizada anualmente em Barretes, interior de São Paulo.

As perspectivas dos negócios nos vários segmentos que compõem o ramo dolazer dependem do andamento da economia nacional e dos rumos ditados pela polí-tica económica. Na década de 1990, muitos empreendimentos milionários foram im-plementados por grupos nacionais, às vezes em associação com o capital estrangeiro,mas a crise económica tem prejudicado a rentabilidade de tais empreendimentos. Foi ocaso da Terra Encantada, um megaparque temático com equipamentos dos mais mo-dernos, instalado na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. O parque foi inaugurado em 1998,depois de absorver investimentos em torno de R$ 235 milhões, mas acabou fechandoem 2002. Por outro lado, há exemplos de parques bem-sucedidos mesmo em meio àsdificuldades atuais da economia brasileira. O Play Center São Paulo, inaugurado em1973 (é o mais antigo no género no País), recebe anualmente cerca de 5 milhões devisitantes e gera aproximadamente 1.500 empregos em época de alta temporada.

À medida que aumenta a importância do lazer como atividade económica desti-nada a um mercado consumidor, seja nas grandes capitais ou nas cidades do inte-rior, programas de incentivo ao desenvolvimento dessas atividades passam a assu-mir papel relevante na condução de políticas governamentais e a exigir estudosdetalhados sobre seu potencial económico e ações estratégicas. Contudo, há dificulda-des quanto à disponibilidade de informações adequadas e sistemáticas para delimitar emensurar com exatidão o valor adicionado, o volume de emprego e a contribuição tri-butária relacionados ao ramo do entretenimento e, em particular, ao turismo no Brasil.

Marcelo Weishaupt Proni

Bibliografia

ÍRAMANTE, António Carlos. Qualidade no gerenciamento do lazer. In: BRUHNS, Heloísa (Org.) In-rodução aos estudos do lazer. Campinas: Editora Unicamp, 1997.

lASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

[DICIONÁRIO CRITICO jooLAZEaJ

IPEA. Dinâmica do setor de serviços no Brasil: emprego e produto. Rio de Janeiro: Instituto de

Pesquisa Económica Aplicada, 2000. (Relatório de Pesquisa, 18).

KON, Anita. Sobre as atividades de serviços: revendo conceitos e tipologias. Revista de Economia Políti-

ca, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, abr./jun., 1999.

TRIGO, Luiz Gonzaga G. Turismo e qualidade: tendências contemporâneas. Campinas: Papirus, 1993.

SHOPPING CENTER

Aglomerado de lojas, serviços públicos, espetáculos, restaurantes e outras atividadescomerciais e de lazer, num mesmo conjunto arquitetônico. Centro comercial.

A partir das últimas décadas do século XX, os shopping centers constituemum importante exemplo do lazer aliado ao consumo que se manifesta de diversasmaneiras no cotidiano das cidades. Nesses espaços, os consumidores lidam com umaproposta urbana que promove seu próprio interior, tendo a segurança e o confortocomo argumentos principais. Os shoppings centers, ou malls, como são mais co-nhecidos nos Estados Unidos, simulam a cidade ideal dentro de cápsulas de concreto,ferro e vidro, representando uma espécie de resumo contemporâneo do sonho deharmonia urbana. Geralmente, são concebidos para receber portadores de necessi-dades especiais, com destaque para aqueles que usam cadeira de rodas. Mundo afo-ra, os shopping centers estão presentes, sempre com os mesmos elementos arquite-tônicos e códigos fundamentais: butiques, praças, alamedas, lojas-âncoras eestacionamento. Cinemas, teatros, parques de diversões, pistas de patinação e outrasexpressões do consumo do lazer também integram necessariamente o ambiente. Éum fenómeno global que se manifesta em nações de diferentes continentes; Tailân-dia, Portugal, França e Argentina são alguns dos inúmeros países que copiam a fór-mula norte-americana dos malls. As cidades brasileiras também incorporaram deforma exponencial esse tipo de empreendimento no seu imaginário. A maior con-centração está no Estado de São Paulo; são quase cem estabelecimentos que geram

mais de 190 mil empregos.Em 2003, o Brasil é o décimo país do mundo em quantidade de shoppings

construídos. O primeiro inaugurado foi o Iguatemi São Paulo, em 1966, seguido doConjunto Nacional Brasília, em 1971. Segundo a Associação Brasileira de ShoppingCenters (ABRASCE), são considerados qualificados para filiação os empreendimen-tos que satisfaçam os seguintes critérios: sejam constituídos por um conjunto pla-nejado de lojas, operando de forma integrada, sob administração única e centrali-zada; sejam compostos de lojas destinadas à exploração de ramos diversificados

Page 107: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

ou especializados de comércio e prestação de serviços; estejam os locatários lojistas

sujeitos a normas contratuais padronizadas, além de ficar estabelecido nos contratos

de locação da maioria das lojas cláusula prevendo aluguel variável de acordo com o

faturamento mensal dos lojistas; possuam lojas-âncora, ou características estrutu-

rais e mercadológicas especiais, que funcionem como força de atração e assegurem

ao shopping center a permanente afluência e trânsito de consumidores essenciais

ao desempenho do empreendimento; ofereçam estacionamento compatível com a

área de lojas e correspondente afluência de veículos ao shopping center, estejam sob

controle acionário e administrativo de pessoas ou grupo de comprovada idoneida-

de e reconhecida capacidade empresarial. As lojas-âncora caracterizam-se pela gran-

deza de suas dimensões e variedade de produtos. As lojas de departamentos e as de

hipermercados são as preferidas no caso brasileiro.

A Indústria de Shopping Centers, que conta em 2003 com mais de 250 shoppin-

gs filiados à ABRASCE, dos quais 45% no interior do País, demonstra vitalidade, de-

sempenhando importante papel na economia, como geradora de mais de 450 mil

empregos diretos e com expressiva integração com a comunidade. As vendas dos

shoppings em 2002 representaram 18% do faturamento de todo o varejo nacional,

excluídos os setores automotivo e de derivados de petróleo.

O shopping center já faz parte do imaginário urbano, no qual a família pós-

industrial troca os lugares tradicionais de lazer, como a praça pública, pelas alame-

das dos malls, em nome da segurança para o carro e da paz para caminhar. O Rio de

Janeiro é um caso exemplar desse cenário. Apesar de a cidade ser cercada por opções

de lazer gratuitas, como as praias e os parques florestais, é intenso o crescimento dos

shopping centers. Por todos os lados, encontram-se centros comerciais de diversos

tamanhos. Em bairros como Botafogo, chegam a ser vizinhos. Nesse contexto, o lugar

que mais chama a atenção é a Barra da Tijuca. Bairro emergente que não existia

poucas décadas atrás, a Barra tem o maior número de shoppings por quilómetro

quadrado. Entre condomínios fechados, centros empresariais, clubes e universidades

privadas pipocam malls genéricos e temáticos. Esse boom resulta num excesso de

espaços estandardizados, levando os jovens do bairro a lidar com outro Rio de Janei-

ro que nada tem a ver com os arcos da Lapa ou com as estritas ruas do centro. Desde

o seu aparecimento no início da década de 1980, os shopping centers transforma-

ram-se numa das grandes opções de convivialidade dos jovens cariocas. Após os pi-

oneiros Rio-Sul e BarraShopping, os adolescentes e jovens universitários incorpora-ram, de forma intensa, essa opção de vida.

Em muitas cidades brasileiras, o shopping center é uma espécie de extensãoda casa e da escola, recebendo jovens de outros bairros que entendem a visita aoshoppingcomo momento de entretenimento. Simulando espaços urbanos, situações

históricas ou monumentos reconhecidos, os shopping centers mantêm uma assep-

sia que deixa um sentimento de coisa fake no ar. Trata-se de uma assepsia perversa,

estabelecida para fortalecer a diferença entre a cidade aberta - supostamente feia e

suja - e a cidade fechada - hipoteticamente harmoniosa e limpa. Assim, os jovens e

suas famílias vivem a fantasia de estarem garantindo sua segurança. Ali é lugar de

namoro, de comer e passear com a família, de consumir algum objeto da moda vi-

gente ou, simplesmente, de flanar sozinho. Porém, é impossível manter os verdadei-

ros códigos da cidade do lado de fora por muito tempo. Hoje já percebemos, em vári-

as cidades brasileiras, transgressões à sua ordem original, por meio de diversas

manifestações de violência, da polícia ou das gangues urbanas. Existe também o pro-

blema do excesso de carros e pessoas em alguns horários específicos. A cidade real

começa a entrar no templo do consumo.

Ricardo Ferreira Freitas

Bibliografia

FREITAS,Ricardo F. Centres commeráaux: iles urbaines de Ia postmodernité.Paris: UHarmattan, 1996.

JAGUARIBE, Beatriz. Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

ABRASCE. Disponível: www.abrasce.com.br

TELEVISÃO

O conceito de televisão já existia meio século antes de se tornar realidade, a exemplo

do "telescópio elétrico" de Paul Nipkow, um disco explorador perfurado que divide a

imagem em linhas e que foi patenteado em 1884. Outra invenção alemã foi o tubo de

raios catódicos, um tubo de vácuo de vidro contendo um eletrodo que, quando aque-

cido, emite uma corrente de elétrons. Entre 1923 e 1931, o americano Vladimir

Zworykin produziu o iconoscópio, a primeira câmara de televisão do mundo. Hoje,

existe um conceito técnico que significa transmissão de imagens animadas por meio

de ondas eletromagnéticas.Com o passar dos anos, o conceito de televisão ganhou uma dimensão para

além desse aspecto linear. Para Bolano (1988), a televisão nos Estados Unidos, pas-sou a disputar com a Indústria do cinema a hegemonia da indústria cultural, trans-formando-se no principal veículo publicitário em substituição ao rádio. Assim, acre-dita-se que o predomínio da televisão, do vídeo, na indústria cultural é, na verdade,

Page 108: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

uma tendência mundial no capitalismo monopolista. A informação e a cultura re-presentam mercadorias na lógica capitalista cuja produção passa a ser um ramo queatrai os grandes capitais e se estrutura na forma moderna de oligopólio. Com isso, arelação histórica entre a indústria cultural e capitalismo monopolista encontra seu

elo de conexão na publicidade. Assim, a relação que se estabelece entre o público e a

televisão é no sentido de promover o consumo massivo, servindo a indústria comoelemento-chave no processo de crescimento da grande empresa.

A televisão é o fenómeno social e cultural mais impressionante da história dahumanidade. É o maior instrumento de socialização que jamais existiu, pois nenhumoutro meio de comunicação na história havia ocupado tantas horas da vida cotidia-

na dos cidadãos,fascinando-os e penetrando no seu imaginário social (FERRÉs.1998).A televisão consegue fazer uma síntese entre a magia da imagem, aquela advinda docinema, e o imediatismo do rádio, por isso a existência de uma força simbólica ou,

como diria Bourdieu, de um poder simbólico. Thompson (1998) explica que umadas conquistas técnicas da televisão é sua capacidade de utilizar grande quantidadede "deixas" simbólicas, tanto do tipo auditivo quanto visual, diferentemente do rádioou jornal, que se restringem à fala ou à escrita.

Em crítica à televisão comercial, Kellner (2001), explicita que esta é predomi-nantemente regida pela estética do realismo representacional, de imagens e históriasque fabricam o real e tentam produzir um efeito de realidade. Nesse aspecto, a televi-são comercial é constituído como um instrumento de entretenimento, pois seus pro-dutores acreditam que o público se diverte mais com histórias, com narrativas que

contenham personagens, argumentos, convenções e mensagens familiares e reconhe-cíveis, provocando assim, uma pobreza estética e afastando o público com outrosgostos e valores estéticos. Mesmo assim, para Kellner (2001), a televisão e outras for-

mas de cultura da mídia desempenham papel fundamental na reestruturação da iden-tidade contemporânea e na conformação de pensamentos e comportamentos.

Ainda para Ferres (1998), é um reducionismo pensar a televisão como causa-dora de todos os males individuais e sociais, ou pensar ingenuamente que ela repre-senta uma culminância histórica na democratização e socialização da cultura, ouque é uma diversão gratuita e ideologicamente neutra. Assim, entende-se que não sóos discursos, a razão e a consciência são influenciados, como também influencia-sedesde e respectivamente os relatos, as emoções e o inconsciente. A televisão sublimi-nar diz que sua influência não provém tanto de sua incidência sobre a razão quantopor seu apelo à emotividade; de que não condiciona a liberdade mediante a coerçãofísica, mas pela sedução.

Nessa perspectiva, a televisão é um instrumento de alienação quando as emo-ções e sensações impedem a pessoa de encontrar-se consigo mesma na reflexão e na

consciência crítica. No entanto, a televisão pode ser um instrumento libertador quandose constituir uma experiência integradora, unir opostos, resolver a dualidade radical

que é a pessoa, permitindo que racionalidade e emotividade interajam de maneira lú-cida, que as mensagens do meio e as mensagens ao meio sejam vividas consciente-mente; quando unir matéria e espírito, consciente e inconsciente, conceito e sentimen-

to, e a vivência emocional não impedir o exercício da racionalidade, e vice-versa.

Preocupado com o efeito de transmissão, pois ela contribui para divulgar ideolo-

gias e dirigir a consciência dos espectadores, Adorno (2000) aponta dois conceitos de

formação cultural associados à televisão: televisão educativa - a serviço da forma-

ção cultural; e televisão deformativa - em relação à consciência das pessoas, devi-do a enorme quantidade de espectadores e de tempo gasto diante dela. Adorno enten-

de que o que é moderno na televisão é a técnica de transmissão, longe, no entanto, decompreender que seu conteúdo seja moderno. Entende que o conceito de informação

é mais apropriado à televisão do que o de formação. Acredita que se deve ensinar -desenvolver aptidões críticas - como ver televisão sem ser iludido pela ideologia,

pois televisão como ideologia significa promover uma falsa consciência e um oculta-

mente da realidade, submetendo as pessoas a um conjunto de valores, como se fos-

sem dogmaticamente positivos.

John Condry (1995) sugere que a televisão rouba às crianças a oportunidade

de ser relacionar com as pessoas e de conhecer a si mesmas, pelo fato de passarem

demasiado tempo diante ela. Segundo esse autor, a televisão mente às crianças, apre-sentando-se como uma fonte confiável de informações sobre o mundo, além de vei-

cular um grande número de coisas falsas e deformadas. Seu conteúdo é centrado na

violência é reforçada nos desenhos animados. Além disso, a televisão influencia as

convicções, os valores e as condutas dos telespectadores. Apesar disso, Condry pon-dera que o nível de instrução do telespectador, o seu ambiente social e o contexto

familiar são fatores que podem intervir na influência exercida pela televisão. Assim,entende que se a televisão exerce influência sobre os jovens é precisamente porque as

outras instituições que se ocupam com as crianças, funcionam mal. Em muitos lares,a televisão substituiu a contação de histórias, pois o tempo passado diante dela des-

via as crianças da leitura. Considerando improvável que a televisão venha a se cons-

tituir num ambiente favorável à socialização das crianças, sugere que se tente me-lhorar a qualidade dos programas que oferecemos aos nossos filhos, por entenderque a televisão não é uma fonte de informação sobre o mundo e, portanto, não écapaz de ensinar às crianças aquilo de que necessitam para se tornar cidadãos escla-recidos. A televisão pode ser uma diversão, e o fato de nos divertirmos não é mau emsi. Pode ter também um papel de informação e isso, igualmente, é bom. Contudo,conclui Condry, não consegue ser um instrumento de socialização confiável, e é isso

Page 109: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

iue se deve reconhecer. A escola e a família devem desempenhar papel essencial noentido de reduzir a influência da televisão sobre as crianças.

Relativizando essas teorias hipodérmicas (WOLF, 2001), que atribuem efeitosmediatos e diretos da televisão sobre os telespectadores, destacam-se os chamados

:studos de recepção, que deslocam o foco das análises para o campo da audiência, aim de examinar como o receptor constrói suas estruturas de percepção e torna-seíujeito da atribuição de sentidos/significados próprios à mensagem televisiva. Nes-ie sentido, destacam-se os estudos socioculturais latino-americanos de comuni-:ação, notadamente na figura de Jesus Martin-Barbero, introdutor do conceito demediação, que, segundo Jacks (1999, p. 48-49),"pode ser entendida [...] como um

:onjunto de elementos que intervêm na estruturação, organização e reorganizaçãoia percepção da realidade em que está inserido o receptor, tendo poder também para

/alorizar implícita ou explicitamente esta realidade. As mediações produzem e re-

produzem os significados sociais, sendo o 'espaço' que possibilita compreender as

interações entre a produção e a recepção". (Grifo no original)

Simplificadamente, Lopes (1996) define as mediações como múltiplos filtros

subjetivos e sociais, constituídos pela interação entre a cotidianeidade e a formaçãocultural, por onde passam e são ressignificados quaisquer tipos de comunicação.

Martin-Barbero, todavia, alerta que essa importância atribuída ao receptor nãodeve levar ao falso entendimento de que emissor, mensagem e meio não têm mais

relevância. Deslocar o pólo para a recepção não deve, ingenuamente, desconsiderar

os sentidos primários da mensagem, nem os interesses que a perpassam e envolvem,mas sim que é possível propor uma nova interação entre emissor e receptor, em que

ambos tenham participação ativa e esclarecida de suas necessidades e desejos decomunicação, isto é, um processo mais simétrico de negociação dos seus significa-

dos (MARTIN-BARBERO, 1995).

Nessa perspectiva, Pierre Bourdieu (1997) afirma que os profissionais que li-dam com a imagem devem lutar para que esse instrumento democrático não se tor-ne um instrumento de opressão simbólica, justamente pela capacidade que tem atelevisão de atingir todo mundo, configurando-se como um monopólio de informa-ção, e nela perpassar uma grande demanda de interesses políticos e económicos.

O campo das manifestações da cultura de movimento, especialmente o das prá-ticas esportivas espetacularizadas, tornou-se um grande conteúdo cultural para atelevisão, que lhe dedica largas faixas de sua programação, tanto jornalística quantode entretenimento e publicitária. Se, por um lado, por meio da televisão, o esporteganha visibilidade e, com isso, possibilidades de financiamento para a melhoria doespetáculo esportivo, por outro, perde em autonomia, pois passa a depender cada vez

mais da venda dos direitos de televisionamento, o que garante à TV a ampliação dos

seus espaços de decisão sobre o esporte, como a imposição das fórmulas doscampeonatos e dos horários dos jogos, por exemplo.

Para Betti (1998, p. 151), a televisão pode se tornar uma ferramenta pedagógi-ca que a Educação Física mobiliza para a intervenção na vida: "A nossa janela de

vidro, de simples abertura que emoldura a contemplação de um mundo apresentado

pelas câmeras da TV, torna-se uma janela que se atravessa para nele intervir". Nesse

aspecto, diante de uma realidade onde crianças e adolescentes dedicam muito tempo

às mídias, trocando inclusive a "bola", pela assistência da televisão ou os jogos

eletrônicos, torna-se fundamental que os profissionais de Educação Física, no intuito

de contribuir para a formação de um espectador crítico, inteligente e sensível, possam

compreender sua dinâmica cultural e ressignificar esse instrumento tecnológico.

Pesquisadores como Feres Neto (2001) expressam certo entusiasmo com aspossibilidades de ampliação do entendimento sobre as práticas corporais a partir daexpansão do acesso às modernas tecnologias comunicacionais. Na sua opinião, no-vas vivências de esporte e lazer são oportunizadas pelos meios técnicos, ampliando

as condições de percepção e elevando o nível de informação sobre esse campo, por

meio da categoria da teleludicidade, isto é, uma nova forma de experimentar e com-preender os fenómenos corporais que vem se somar às manifestações esportivas tra-

dicionais. Mesmo reconhecendo as possibilidades de novos sentidos para a culturade movimento que são abertos a partir da televisão, não é demais alertar para as

consequências que essa mediação tecnológica pode significar para o lazer se confi-gurar-se, como indústria do entretenimento, como substituição da experiência cul-tural lúdica, sensorial e estética (PIRES, 2002).

Giovani De Lorenzi Pires

Sérgio Dorenski Dantas Ribeiro

Bibliografia

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BETTI, Mauro. A janela de vidro; esporte, televisão e educação física. Campinas-SP, 1998.

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FERES NETO, Alfredo. Virtualização do esporte e suas novas vivências eletrônicas: implicações paraa Educação Física. Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, 12, Anais.... Caxambu, 21 a 25/out./2001 (CD-ROM)

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FERRES, Joan. Televisão subliminar: socializando através de comunicação despercebidas. PortoAlegre: Artmed, 1998.

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KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: EDUSC.2001.

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ção social. In: SOUSA, Mauro Wilton (Org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: ECA/USP, Brasiliense, 1995.

PIRES, Giovani De Lorenzi. A mediação tecnológica do esporte como substituição da experiência for-mativa. Corpoconsciência, n. 9, p. 23-39, mai. 2002.

THOMPSON, John B. A Mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

TEMPO LIVRE

A express ao tempo livre corresponde, em inglês, afree time, em francês, diz- se temps

libre; em espanhol, tiempo libre; e, em alemão, usa-se a expressão Freizeit.

O ser humano vive no espaço e no tempo e é na relação dessas categorias quede estabelece suas relações sociais. A história da humanidade é marcada pela histó-ria do tempo e das maneiras de medir o tempo. Por isso, as formas de organizar emedir o tempo revelam a organização dos grupos sociais. As sociedades humanassempre se organizaram em "tempos sociais", ou seja, em tempos que determinam asitividades sociais: o tempo para o trabalho, o tempo para a família, o tempo da edu-

:ação, o tempo para a religiosidade, etc. A vida em coletividade é regida pela articula-ção desses tempos sociais, enquanto cada indivíduo percebe e controla o tempo in-

:ernamente. Hoje, estamos acostumados a viver com base nos símbolos do calendário: do relógio e a medir nossas atividades pelo segundo, minuto, hora, dia, semana,nês e ano, de tal forma que mal podemos imaginar como os homens de épocas ante-pores puderam existir sem a ajuda desses elementos. Quanto maior é o desenvolvi-nento tecnológico de uma sociedade, mais indispensáveis são os instrumentos de'adronização e medição do tempo. O tempo pode ser visto como uma instituição:ocial de caráter coercitivo (EuAS, 1998) já que toda a existência humana é abarcada>elo sistema de autodisciplina exercido pelo tempo.

A compreensão do tempo livre, visto como um dos tempos sociais, sempre:steve vinculada aos significados do trabalho e do tempo de trabalho e, dessa

maneira, seu sentido principal prevalece sendo o de um tempo de não-trabalho,

embora nem todo tempo fora da esfera do trabalho seja um tempo disponível para olazer ou para o ócio. Os séculos XVIII e XIX foram importantes para o significado dotempo de trabalho e do tempo de não-trabalho, pois o desenvolvimento das indústri-as nesse período altera os "usos" do tempo. A partir da chamada Revolução Industri-

al, exige-se maior sincronização e controle do tempo, tanto no trabalho como foradele. Antes das sociedades industriais, o limite entre tempo de trabalho e tempo de

não-trabalho era ténue, uma vez que os homens eram mais autónomos em relaçãoao uso de seu tempo. No campo, o camponês orientava - e em alguns lugares aindapode orientar - o tempo de suas atividades pela natureza, pela posição do Sol, pelo

canto do galo e o ritmo de trabalho variava de pessoa para pessoa. Com o desenvolvi-

mento das indústrias e do capitalismo, o tempo do homem passa a ser medido pelo

dinheiro e o tempo dominante passa a ser o tempo das máquinas. Assim, os donos das

máquinas passam a ser vistos como os donos do tempo. Com o movimento progressivo

da sincronização do trabalho, houve um processo de estruturação do tempo industrial

que implica, conforme sugere Pronovost (1996), a introdução de três aspectos maiores:

a regulação do trabalho, a divisão do trabalho e a disciplina do tempo de trabalho.

O uso do tempo no campo e no meio rural sempre foi incomparável com o uso

do tempo nas fábricas e no meio urbano. No campo, o tempo de trabalho é alterna-

do com o tempo de não-trabalho e o domingo é o dia estabelecido para o repouso,

com exceção das épocas de colheita. Este tempo vivido no campo vai sendo histori-camente substituído pelo tempo calculado, mensurável, previsto, linear e que, por-

tanto, pode ser gasto, desperdiçado, perdido ou ganho. A difusão e a popularizaçãodo relógio se davam exatamente no momento em que a Revolução Industrial exigia

uma maior sincronização no trabalho. Além da máquina à vapor, o relógio também

pode ser visto como uma "máquina" típica da Revolução Industrial. Os relógios ser-

vem, então, para harmonizar os comportamentos humanos. Segundo Elias (1998), à

função de orientação do relógio, soma-se a de instrumento de regulação da conduta

e da sensibilidade humanas. As ações humanas são influenciadas pela mensagem

passada pelo relógio: o atraso, a pontualidade ou o adiamento, por exemplo. Nessa

ideologia de valorização do tempo útil mensurável, que se acentua com o desenvolvi-mento do capitalismo e a ética puritana, o tempo de não fazer nada (ócio) ou de lazer

não era bem aceito. O tempo livre - no sentido de ser o tempo liberado do trabalho -

era considerado devorador do tempo-dinheiro. O tempo, por mais abstrato que seja,era propagado como mercadoria valiosa e não podia ser desperdiçado. Porque o tem-po era mensurável, ele poderia ser trocado por tudo, até por dinheiro. Desde o finaldo século XVIII, a desaparição progressiva da ociosidade foi anunciada. O Iluminis-mo impôs a valorização da atividade e a exaltação do trabalho produtivo, recusando

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To ócio - no sentido de desperdiçar o tempo de forma improdutiva. Ainda hoje, a pre-

guiça é um dos "pecados capitais". No entanto, o tempo livre de ociosidade era con-

denado apenas para a classe de trabalhadores, pois os setores dominantes das socie-dades industriais viam nesse tempo a possibilidade de libertação, criação e alegria. O

que marcava a classe dominante e a distinguia dos trabalhadores assalariados era,dentre outras coisas, o fato de ela poder dispor de seu tempo livremente. Dessa for-

ma, é possível afirmar que a disponibilidade de tempo é um marcador social que

pode dar prestígio ao homem. Veblen (1988) chamou de classe ociosa as classes no-bres, as classes sacerdotais, as classes altas que ocupavam seu tempo em ocupações

não industriais. As tarefas de subsistência, os trabalhos manuais e na indústria eram

reservados a uma classe inferior. Para Veblen (1988), o ócio não é indolência, mas umtempo gasto em atividade não produtiva, o que demonstra a capacidade e a possibi-

lidade de viver uma vida inativa e de gastar seu tempo com atividades que não visemà obtenção de dinheiro.

Grande parte dos autores que estudam lazer atribui ao tempo livre a ideia de

um tempo em que não se faz nada por obrigação; é, então, um tempo liberto dasobrigações no qual se pode optar por fazer alguma atividade prazerosa, descansar ousimplesmente não fazer nada. O lazer seria uma esfera desse tempo livre - ou tempoliberado - que implicaria em realização de atividades, enquanto ao ócio associa-se

comumente a ideia de não fazer nada, de contemplação e preguiça. A opção e a esco-lha são características típicas desse tempo livre. Alguns autores (Marcellino, 1990)preferem tratar desse tempo considerando-se um tempo disponível em que não sebusque nenhum objetivo financeiro, mas apenas a satisfação pessoal, seja pela práti-ca de lazer, seja pela contemplação no ócio.

A problematização que pode ser feita em torno da expressão tempo livre é que

tempo algum pode ser verdadeiramente livre das coações, da lógica do capital ou de

normas sociais (ADORNO, 1995; FROMM, 1963; MARCELLINO, 1990; PADILHA, 2000). Na ver-dade, quando se pensa na palavra "livre" para qualificar um tempo, o que está sendopensado como seu oposto, o que precisa ser liberado? Quais seriam as "oposições" àliberdade? O trabalho é visto - sobretudo no capitalismo - como a principal obriga-ção, a principal oposição à liberdade, a qual só poderia ser vivenciada pelo trabalha-dor num tempo fora do trabalho. Isso porque, em grande medida, sob a lógica docapital, o trabalho é momento de prevalência da heteronomia, da imposição de forapara dentro de como ocupar seu tempo, do que se deve fazer ou não fazer; o trabalhoé, para os trabalhadores, fonte de alienação ou de "estranhamento", para usar umtermo marxiano. Dessa forma, o tempo de não-trabalho é visto como um tempo deliberdade, de liberação das amarras presentes no trabalho, é um tempo de autono-mia em oposição a heteronomia do trabalho. Mas este valor atribuído ao tempo livre

advém de quê? Em outras palavras, pode-se perguntar: o que é que tem no tempolivre de verdadeiramente libertador?

A tese que alguns autores defendem (ADORNO, 1995; FROMM, 1963; MÉSZÂROS, 1989;ANTUNES, 1999; PADILHA, 2000) é a de que a lógica do capital rege não apenas o tempo

de trabalho, mas também o tempo de não-trabalho e que, dessa forma, não há nada

naturalmentelivre no tempo fora do trabalho. Pensar o tempo livre (e as atividades

de lazer) como um tempo que possui automaticamente as qualidades de alegria, li-

berdade, felicidade e descanso é reforçar uma concepção conservadora (como a fun-cionalista, por exemplo) da sociedade considerando-a harmoniosa, equilibrada e for-

necedora de remédios para os eventuais males sociais; uma concepção de sociedade

que vê a "cura" da alienação e do cansaço do trabalho no tempo de lazer. Isso não

quer dizer, no entanto, que o tempo livre não seja um tempo em que se encontrammais brechas de autonomia que no tempo de trabalho. O tempo livre pode ser um

tempo de alienação e consumismo, mas também pode ser um tempo de reflexão e

praxis. É preciso lembrar, no entanto, que as formas de ocupações e usos do tem-

po livre são variadas entre as distintas classes sociais e entre frações de uma mes-

ma classe, lembrança esta que nos atenta para os riscos de se pensar uma socieda-de homogénea em que todos são iguais e em que todos têm oportunidades iguais,seja de trabalho, seja de vivência do tempo livre. Numa abordagem crítica da socie-dade ela é apreendida como contraditória, o que faz com que o tempo livre, como

um fenómeno social, também seja cheio de contradições.

Abusca de uma redução da jornada de trabalhotem sido uma"luta" travadapor trabalhadores de várias épocas e lugares, em alguns momentos priorizando oaumento do tempo livre e, em outros, priorizando soluções para o desemprego. Para

Marx (1989), o "reino da liberdade" só poderia ser alcançado com a redução da jor-nada de trabalho, o que inspirou outros autores (GORZ, 1993) a pensar na necessidade

de redução da jornada de trabalho para liberar o tempo dos trabalhadores, o qualdeveria ser gradativamente autogerido com atividades autoterminadas. Para isso, aredução da jornada de trabalho não poderia ser acompanhada de uma redução de

salário. A meta dos sindicatos passaria a ser, então, não mais a luta pelo pleno empre-go, mas a luta pela redução radical da jornada de trabalho sem redução de salários.No entanto, o que falta nesse tipo de abordagem é um ataque mais incisivo aos limi-tes impostos pelo capitalismo à emancipação humana, de forma a pensar que aredução do tempo de trabalho "estranhado" não elimina o estranhamento do traba-lho. O tempo que resta continua sendo regido pela lógica do capital, ou seja, o tempodisponível ampliado continua sendo regido pelos interesses do capital. Então, valeperguntar: Qual é o elemento revolucionário necessariamente implícito na reduçãoda jornada e do tempo de trabalho? Não seria necessário, junto com a redução do

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tempo de trabalho, eliminar a dimensão abstraia do trabalho e a expropriação damais-valia para que o tempo disponível também seja vivido de forma autónoma?

Valquíria Padilha

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TERCEIRO SETOR

São três os setores capazes de estabelecer mudanças na realidade social. O primeirosetor é o Estado, responsável pelo controle coletivo e pela melhoria das condições de

vida. O segundo é o mercado que corresponde aos interesses privados, cuja competi-ção, por mais eficaz e racional, visa ao lucro como resultado. E o terceiro é a socieda-de civil, formada por comunidades locais, linguísticas, étnicas, profissionais, religio-sas, ou seja, pessoas em situações semelhantes e que partilham característicasimportantes, como a confiança, a solidariedade, a fé, a amizade, gerando cooperaçãoe unindo pessoas em sentido coletivo com o mesmo objetivo.

A ação do terceiro setor é definida como um conjunto de iniciativas particula-res sem fins económicos e com sentido público. Incluem-se nessa denominação asorganizações, que vão desde fundações, com estruturas formais rígidas e uma rela-ção de proximidade com o Estado e com grandes empresas, a movimentos sociaispouco ou muito estruturados, englobando grupos ambientais, culturais, religiosos eassociações de moradores que constróem estratégias que buscam melhorias para umacomunidade ou grupo específico da população. Uma de suas características é sua ex-trema heterogeneidade, o que repercute na ausência de consenso quanto à abrangênciade seu conceito (TEODÓSIO; RESENDE, 1999; FERNADEZ, 1994; VOIGT, 2001; dentre outros).

O nível de organização de uma sociedade guarda relação direta com o tercei-ro setor. A ação pública da sociedade civil é capaz de mobilizar recursos, sinergizariniciativas, promover parcerias em prol do desenvolvimento humano e social sus-tentável. O olhar da sociedade civil detecta problemas, identifica oportunidades evantagens colaborativas, descobre potencialidades e soluções inovadoras em lugaresem que o olhar do Estado não penetra e ao mercado não interessa, porque não geralucro. A quantidade, a qualidade, a força e o conhecimento acumulado dessas organi-zações formam o capital social de uma nação, não contabilizado nos cálculos de seuProduto Interno Bruto (PIB) (FRANCO, 2000).

O fortalecimento do terceiro setor tem relação direta com o surgimento de inú-meros desequilíbrios e desigualdades advindos do processo de desenvolvimento en-tre as nações. A globalização vem ocupando-se apenas dos aspectos económicos eestá deixando à mostra problemas sociais sérios que necessitam ser abordados comurgência, como a preservação do meio ambiente, mudanças nos processos de produ-ção, a exclusão social, a fome, a mortalidade infantil, a saúde humana, o analfabetis-mo, a habitação, valores como a paz e a ética. Existe o reconhecimento na sociedadeda importância de promover o desenvolvimento sustentado que, além do tradicionalenfoque económico, direcione esforços no atendimento às necessidades humanas eque todas as políticas públicas e ações governamentais procurem ir além dos pro-cessos de produção e consumo, vitais para a questão ambiental, mas que priorize

também o desenvolvimento social.Uma tendência bastante significativa para enfrentar os problemas sociais emer-

gentes é a ascensão de organizações não-governamentais (ONGs) que se apresentamcomo um dos fenómenos mais notáveis nesse final do século XX e começo do novomilénio. Esse fenómeno também passou a ocorrer no Brasil, com o início da organi-zação da sociedade que começou a querer fiscalizar e participar das decisões públi-cas, num processo de ampliação da cidadania. Hoje, no Brasil, somam-se, aproxima-damente 250 mil organizações aluando nos mais diferentes setores, com ênfaseprincipalmente na área social. Em todos os níveis, tanto local quanto de caráter

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global, surgem organizações de cidadãos em torno dos impactos sociais e ambien-tais, das políticas e das tecnologias industriais existentes (FERRAREZI, 2000).

Incapaz de resolver sozinho os problemas sociais, o governo tem procuradocriar novas alternativas mediante parcerias com instituições da sociedade civil,

principalmente do terceiro setor, na busca de soluções para o déficit social. Com

isso, o número de ONGs, com ações voltadas diretamente para a área social, temaumentado de forma incontestável e, com certeza, passará a ser uma alternativa de

trabalho para as pessoas que estão excluídas do mercado formal pela globalização epelos avanços tecnológicos. Nesse terceiro setor tem-se verificado o surgimento de

uma ação comunitária forte, atuante e mobilizadora, capaz de prover o cidadão dosserviços sociais básicos.

Muitas ações propostas pelo terceiro setor foram e estão sendo incorporadaspor governos e empresas privadas, que hoje têm, em suas metas, a promoção de pes-

quisa para o desenvolvimento de tecnologia de recursos renováveis e eficiência ener-

gética, de práticas empresariais socialmente responsáveis e de implantação da ges-tão ambiental, dentre outras iniciativas.

Com a participação do Estado e do mercado na destinação de recursos finan-

ceiros, tecnológicos e humanos, o terceiro setor vem ganhando espaço para uma atua-

ção mais efetiva, principalmente na área social. A parceria, principalmente com o

setor público, tem resultado em alterações de políticas públicas com a incorporação

de suas demandas e a participação na gestão de programas e projetos. A participação

do setor de mercado está dando um caráter mais transparente às ações, com acom-panhamento das atividades realizadas e avaliação dos resultados.

O maior desafio é firmar uma ética da solidariedade e uma prática de co-res-ponsabilidade entre as políticas públicas do primeiro setor, o dinamismo e os recur-

sos materiais, humanos t técnicos do segundo, e o espírito de luta, a sensibilidade e a

criatividade do terceiro setor em prol do desenvolvimento humano e socialmente

sustentado. O papel proativo do terceiro setor deve estar a serviço da redefinição do

desenho das políticas públicas governamentais, procurando transformá-las em po-líticas de parceria entre Estado, mercado e sociedade civil em todos os níveis, com a

incorporação das organizações de cidadãos em suas fases de elaboração, execução,monitoramento, fiscalização e avaliação.

O campo da gestão é considerado um dos espaços centrais para o avanço dasorganizações do terceiro setor que incorporaram a noção de bem público e de cida-dania à formação, implementação e avaliação de suas ações, conciliando a visão dosmecanismos de mercado, da política, do social e do constitucional. A gestão socialempreendida pelo terceiro setor trabalha para a construção da cidadania em uma

sociedade que se mostra cada vez mais multifacetada e tem como atributos centraisa capacidade de articulação e de negociação, diferentemente da gestão privada, que

se caracteriza pela agressividade e competitividade no alcance de metas do empre-

endimento (TEODÓSIO; RESENDE, 1999).

A profissionalização de prestadores de serviços na área social está se tornando,

assim, uma necessidade, tendo em vista a manutenção da qualidade dos serviços e a

sistematização das ações, o que dificilmente ocorre com o trabalho voluntariado. As

áreas relacionadas à manutenção da saúde, à preservação do meio ambiente, à ques-

tão da moradia, do lazer, da educação de crianças e adolescentes e o atendimento ao

idoso sobressaem como prioridades no atendimento às comunidades e organizações

sociais e, portanto, na profissionalização do terceiro setor.

A prática do lazer pode ser um importante instrumento de intervenção social

para gerar mudanças com objetivo de considerar o conjunto de condições básicas

para a melhoria da qualidade de vida, destacando-se o processo educativo conscien-

tizador, a valorização e o fortalecimento das iniciativas comunitárias e a formação

de agentes de mobilização social. O profissional da área de lazer que atua com desen-volvimento social, mobilização comunitária, organização de grupos de interesses co-

letivos, associações, cooperativas deverá ter competência para diagnosticar e anali-

sar a conjuntura social da comunidade, definir e redefinir diretrizes de ação frente a

conjunturas específicas, elaborar, executar e avaliar programas e projetos de interesse

da comunidade que visem a melhoria da qualidade de vida. Esse campo de ação requer

um profissional com ampla capacidade para atuar com as relações interpessoais, que

saiba trabalhar em grupo, tenha criatividade, iniciativa e espírito crítico.

Essa é uma área que apresenta uma multiplicidade de campos de ação, que

envolve diretamente mudanças sociais e requer um profissional capaz de promo-ver a integração e facilitar os processos de inclusão social, desenvolver atividades

de geração de emprego e renda ou ainda ter a capacidade de fomentar o bom apro-

veitamento do tempo livre transformando o ócio em produção criativa por meio

de práticas físico-desportivas, artístico-culturais, recreação, entretenimento e fol-

clore. Portanto, o mercado de trabalho está demandando um profissional que dêum caráter mais sistemático a programas sociais a partir de uma intervenção pla-

nejada, integrada e sustentada, quer no setor público, iniciativa privada, quer noterceiro setor. Diante desse quadro, o profissional da área de lazer que queira atuarno terceiro setor tem um amplo mercado de trabalho que, no entanto, ainda nãoestá totalmente delimitado, pois depende da consciência social e cidadã de gover-

nos, empresários e população em geral.

Cássio Avelino Soares Pereira

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Page 114: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

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TRABALHO

Á n-tn f^r,f*r:^^ .

A história da realização dos seres sociais, ao longo de seu processo de desenvolvi-mento histórico-social, sabemos, objetwa-se mediante a produção e reproduçãoda existência humana. Para a realização da produção e reprodução da existênciahumana, os indivíduos iniciam um ato laborativo básico, desenvolvido por meio doprocesso de trabalho.

É a partir do trabalho, em sua realização cotidiana, que o ser social distingue-se de todas as formas pré-humanas. É por demais conhecida aquela passagem deO Capital, em que Marx diferencia o pior arquiteto da melhor abelha: arquiteto"obtém um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e,portanto, idealmente. Ele não apenas efetiva uma transformação da forma da maté-ria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objeto, que ele sabe quedetermina, como lei, espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinarsua vontade" (MARX, 1983, p. 149-150).

Em outras palavras, o ser social, dotado de consciência, tem previamente con-cebida a configuração que quer imprimir ao objeto do trabalho no ato de sua realiza-ção. No trabalho, o momento distinguidor, essencialmente separatório.é constituídopelo ato consciente que, no ser social, deixa de ser um mero epifenômeno da repro-dução biológica. Ao pensar e refletir, ao externar sua consciência, o ser social se hu-maniza e se diferencia das formas anteriores do ser social.

Foi isso que permitiu a Lukács (1978,p.8) fazer esta síntese: "O trabalho é umato de por consciente e, portanto, pressupõe um conhecimento concreto, ainda quejamais perfeito, de determinadas finalidades e de determinados meios".

O trabalho mostra-se, então, como momento fundante de realização do ser so-cial, condição para sua existência; é, por isso, ponto de partida para a humaniza-ção do ser social. Não foi outro o sentido dado por Marx ao afirmar: "Como criadorde valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existên-cia do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessi-dade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vidahumana". (MARX, 1983, p. 50)

Por meio do processo de trabalho, com seu desenvolvimento na história huma-na, "tem lugar uma dupla transformação. Por um lado, o próprio homem que traba-lha é transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza;'desenvolve .as potên-cias nela ocultas' e subordina as forças da natureza 'ao seu próprio poder'. Por outrolado, os objetos e as forças da natureza são transformados ,em meios, em objetos detrabalho, em matérias-primas etc". (LuKAcs, 1978, p. 16)

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Esse processo de transformação recíproca faz com que o trabalho social se con-

verta em elemento central do desenvolvimento da sociabilidade humana.

Agora precisamos introduzir outro elemento analítico importante. Quando seestuda o trabalho humano, é fundamental resgatar a distinção feita por Marx entre

trabalho concreto e trabalho abstraio. Em suas palavras, "todo trabalho é, por um

lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa quali-

dade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstraio gera o valor das mer-

cadorias. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem

sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho con-creto útil, produz valores de uso" (Marx, 1983, p. 53).

De um lado, tem-se o caráter útil do trabalho, intercâmbio metabólico entreos homens e a natureza, condição para a produção de coisas socialmente úteis e

necessárias. Trata-se, aqui, do momento em que se efetiva o trabalho concreto, otrabalho em sua dimensão essencialmente qualitativa.

Deixando de lado o caráter útil do trabalho, sua dimensão concreta, resta-lheser apenas ser dispêndio de força humana produtiva, física ou intelectual, soci-

almente determinada. Aqui aparece a dimensão abstraía do trabalho, o trabalho

abstraio, no qual desaparecem as diferentes formas de trabalho concreto, que, se-

gundo Marx, reduzem-se a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abs-

traio. Neste último caso, trata-se de uma produção voltada para o mundo das mer-cadorias e da valorização do capital. O trabalho encontra-se envolto em relações

capitalistas que alteram em grande medida seu sentido histórico original.

Se podemos considerar o trabalho como um momento fundante da sociabilida-

de humana, como ponto de partida do processo de seu processo de humanização, tam-bém é verdade que na sociedade capitalista o trabalho torna-se assalariado, assumindo

a forma de trabalho alienado. Aquilo que era uma finalidade básica do ser social - abusca sua realização produtiva e reprodutiva no t pelo trabalho - transfigura-se e trans-forma-se. O processo de trabalho se converte em meio de subsistência, sendo que aforça de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria especial, cuja finalidade vem aser a criação de novas mercadorias objetivando a valorização do capital.

Desfigurado em seu sentido primeiro, de criação de coisas úteis, o trabalho torna-se meio, e não"primeira necessidade" de realização humana. Na formulação oferecida porMarx, constata-se que "o trabalhador decai a uma mercadoria", torna-se"um ser estranhoa ele, um meio da sua existência individual". (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 147 e 158).

Como expressão da realidade capitalista, da sociedade regida pelo valor detroca, tem-se a dialética da riqueza e miséria, da acumulação e privação, do possui-dor e do despossuído. Ainda conforme Marx, "segundo leis da Economia Política o

estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa de maneira que quantomais o trabalhador produz tanto menos tem para consumir, que quanto mais valo-

res cria, tanto mais se torna sem valor e sem dignidade, que tanto melhor formado

o seu produto, tanto mais deformado o trabalhador, que tanto mais civilizado o

seu objeto, tanto mais bárbaro o trabalhador, que quanto mais poderoso o traba-lho, tanto mais impotente se torna o trabalhador, que quanto mais rico de espíritoo trabalho, tanto mais o trabalhador se torna pobre de espírito e servo da nature-

za". (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 152).

Desse processo de trabalho na sociedade capitalista tem-se como resultante a des-realização do ser social. Desenvolve-se um trabalho que se desefetiva em seu processo detrabalho. O resultado do processo de trabalho, o produto, aparece ao trabalhador comoum ser alheio e estranho ao produtor. Tem-se, então, que essa realização efetiva do traba-lho aparece como desefetivação do trabalhador. (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 149).

Esse processo de alienação do trabalho (que Marx também denomina estranha-mento) não se efetiva apenas no resultado - a perda do objeto -, mas abrange tambémo próprio ato de produção, que é o efeito da atividade produtiva já alienada.

Se o produto é o resultado da atividade produtiva, resulta que esta encontra-setambém estranha ao trabalhador. Nas palavras de Marx: "no estranhamento do obje-to do trabalho só se resume o estranhamento, a alienação na atividade mesma dotrabalho" (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 152-153).

O que significa dizer que, sob o capitalismo, o trabalhador não se satisfaz notrabalho, mas se degrada; não se reconhece, mas se nega."Daí que o trabalhador sóse sinta junto a si fora do trabalho e fora de si no trabalho. Sente-se em casa quan-do não trabalha e quando trabalha não se sente em casa. O seu trabalho não é,portanto, voluntário, mas compulsório, trabalho forçado. Por conseguinte, não é asatisfação de uma necessidade, mas somente um meio para satisfazer necessida-

des fora dele" (MARX. In: FERNANDES, 1983, p. 153).

Em seus Extraías de Leitura sobre]. MUI, onde pela primeira vez apresentao significado da alienação, Marx afirma: "Meu trabalho seria livre projeção exteriorde minha vida, portanto desfrute de vida. Sob o pressuposto da propriedade privada(em troca) é estranhamento de minha vida, posto que trabalho para viver, para con-seguir os meios de vida. Meu trabalho não é vida". (MARX, 1978, p. 293).

O trabalho como atividade vital, verdadeira, sofre um enorme processo de re-dução: "Uma vez pressuposta a propriedade privada, minha individualidade se tornaestranhada a tal ponto, que esta atividade se torna odiosa, um suplício e, mais queatividade, aparência dela; por consequência, é também uma atividade puramenteimposta e o único que me obriga a realizá-la é uma necessidade extrínseca e aciden-tal, não a necessidade interna e necessária" (1978, p. 299).

Page 116: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

Desse modo a alienação como expressão de uma relação social fundada na pro-priedade privada e no dinheiro apresenta-se como "abstração da natureza específica,pessoal" do ser social que "atua como homem que se perdeu a si mesmo, desumaniza-do"(1978, p. 278). O trabalhador, diz Marx, sente-se livremente ativo em suas funçõesanimais (comer, beber, procriar etc.) e em suas funções humanas sente-se como umanimal. O que é próprio da animalidade se torna humano e o que é próprio da humani-dade torna-se animal. (MARX, 1983, p. 154).

Alienado e estranhado diante do produto do seu trabalho e do próprio ato deprodução da vida material, o ser social torna-se um ser estranho diante dele mesmo:o homem estranha-se em relação ao próprio homem. Torna-se estranho em relaçãoao género humano. (MARX, 1983, p. 158).

Não se verifica o momento de identidade entre o indivíduo e o género humano,mas o seu contrário, visto que nas sociedades regidas pelo capital "o valor de uso (oproduto do trabalho concreto) não serve para a satisfação das necessidades. Ao in-verso, sua essência consiste em satisfazer as necessidades do não-possuidor. Ao tra-balhador torna-se indiferente o tipo de valor de uso por ele produzido, não tendocom ele nenhuma relação. O que desenvolve para satisfazer suas necessidades é, aocontrário, expressão do trabalho abstraio: trabalha unicamente para manter-se, parasatisfazer as meras necessidades 'necessárias'." (HELLER, 1986, p. 54).

Na concretude do capitalismo, tem-se, portanto, que "tudo é'reificado'e as rela-ções ontológicas fundamentais são postas de cabeça para baixo. O indivíduo, con-frontado com meros objetos (coisas, mercadorias), quando seu 'corpo inorgânico' -'natureza trabalhada' e capacidade produtiva externalizada - foi dele alienado. Nãotem consciência de um'ser pertencente a uma espécie'..., em outras palavras, conver-te-se um ser cuja essência não coincide diretamente com a sua individualidade".(MÉszAROS,1981,p.76)

A atividade produtiva, dominada pela fragmentação e isolamento capitalista,no qual os homens são atomizados, não realiza adequadamente a função de media-ção entre o homem e a natureza, reificando e coisificando o homem e suas relações.Em lugar da consciência de ser social livre e emancipado, tem-se o culto da privaci-dade, a idealização do indivíduo tomado abstratamente. (Mészáros.p. 76-77)

Operou-se, portanto, uma metamorfose básica no universo do trabalho huma-no sob as relações de produção capitalistas. Ao invés do trabalho como atividadevital, momento de identidade entre o indivíduo e o ser genérico, tem-se uma formade objetivação do trabalho em que as relações sociais estabelecidas entre os pro-dutores assumem, conforme disse Marx, a forma de relação entre os produtos dotrabalho. A relação social estabelecida entre os seres sociais adquire a forma de

230 [DICIONÁRIO CRÍTICO DO LAZER]

uma relação entre coisas. "A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma ma-terial da igual objetividade de valor dos produtos de trabalho; a medida do dispêndiode forças de trabalho do homem, por meio de sua duração, assume a forma da gran-deza de valor dos produtos de trabalho; finalmente, as relações entre os produtores,em que aquelas características sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem aforma de uma relação social entre os produtos de trabalho" (MARX, 1983, p. 71).

Portanto, tem-se a prevalência da dimensão abstraía do trabalho, subordinandoe reduzindo sua dimensão concreta, de trabalho útil. Disso resulta o que Marx deno-minou de o caráter misterioso ou fetichizado da mercadoria: ela encobre as dimen-sões sociais do próprio trabalho, mostrando-as como inerentes aos produtos do tra-balho. Mascaram-se as relações sociais existentes entre os trabalhos individuais e otrabalho total, apresentando-as como relações entre objetos coisificados: "Não é maisnada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aquiassume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas" (MARX, 1983, p. 71). Navigência do valor de troca, o vínculo social entre as pessoas se transforma em umarelação social entre coisas: a capacidade pessoal transfigura-se em capacidade dascoisas. Trata-se, portanto, de uma relação reificada entre os seres sociais.

A racionalização própria da grande indústria capitalista moderna tende, ao sermovida pela lógica do capital, a eliminar as propriedades qualitativas do trabalha-dor, pela decomposição cada vez maior do processo de trabalho em operações parciais,operando-se uma ruptura entre o elemento que produz e o produto desse trabalho.Este, reduzido a um nível de especialização, que acentua a atividade mecanicamenterepetida. E essa decomposição moderna do processo de trabalho, de inspiração taylo-rista,"penetra até a'alma' do trabalhador". (LUKÁCS, 1975, p. 129)

Portanto, podemos dizer que, se por um lado, o trabalho é uma atividade hu-mana central na história humana, em seu processo de sociabilidade, posteriormente,com o advento do capitalismo, deu-se uma transformação essencial, que alterou ecomplexificou o trabalho humano. Marx utilizou de dois termos distintos (em in-glês) para melhor caracterizar essa dimensão ampla do trabalho: work e labour.O primeiro termo (work) é mais dotado de positividade, sendo por isso uma expres-são mais aproximada da dimensão concreta do trabalho, que cria valores socialmen-te úteis e necessários. O segundo termo (labour) expressa a dimensão cotidiana dotrabalho sob a vigência do capitalismo, mais aproximada à dimensão abstrata dotrabalho, ao trabalho alienado e desprovido de sentido humano e social.

O trabalho entendido como work seria expressão de uma atividade genérico-social, voltada para a produção social de valores de uso, sendo, por isso, o momentoda predominância do trabalho concreto. Em contrapartida, ao usar o termo labour, a

Page 117: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

ênfase está voltada para as atividades estranhadas e fetichizadas, que configuram otrabalho assalariado.

A desconsideração dessa dupla dimensão presente no mundo do trabalho,

que lhe dá complexidade, vem permitindo que muitos autores entendam equivo-

cadamente a crise da sociedade do trabalho abstrato como expressão da crise da

sociedade do trabalho concreto e, desse modo, defendam equivocadamente o fimdo trabalho.

Ricardo AntunesFontes bibliográficas

ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo:Boitempo Editorial, 1999.

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho?São Paulo: Cortez/Unicamp, l995.

HELLER, A. Sociologia de Ia vida cotidiana. Barcelona: Península, 1977.

HELLER.A. Teoria de Ias necesidades en Marx. Barcelona: Península, 1986.

LUKÁCS, G. As Bases Ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: Temas de CiênciasHumanas. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, n. 4,1978.

LUKACS, G. La Coisificación y Ia conciencia dei proletariado. In: Historia y Conciencia de Clase.Barcelona: Grijalbo, 1975.

MARX, K. O capital. São Paulo, Abril Cultural, v. l, Livro 1,1.1,1983.

MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: Marx. Extractos de Lectura -James MUI. Obras

de MARX y ENGELS, Orne. Manuscritos de Paris y Anuários Franco-Alemanes - 1844. Barcelo-na: Grijalbo, 1978.

MARX/ENGELS. História. In: FERNANDES, Florestan (Org.). São Paulo: Ed. Atiça, 1983.

MÉSZAROS,/. Marx: A teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

132 fDícioNAwo CRÍTICO DO LAZER]

Os autores e as autoras

Ana De Pellegrin - Bacharel licenciada em Educação Física, Mestre em Educação Físi-

ca, área de concentração Estudos do lazer, pela Unicamp. Atualmente está cursando o Doutoradoem Educação também na Unicamp, área de concentração História, Filosofia e Educação. Possui arti-

gos publicados sobre as relações entre Lazer e espaço e entre Lazer, educação e educação física.E-mail: [email protected]

Ana Elvira Wuo - Atriz, clown, pesquisadora do LUME - Núcleo Interdisciplinar de Pes-

quisas Teatrais (Unicamp) de 1993 a 1998. Bacharel em Artes Cénicas (Unicamp), Mestre em Estudos

do Lazer e Doutoranda em Pedagogia do Movimento - Estudos da Corporeidade, pela Faculdade de

Educação Física da Universidade Estadual de Campinas-SP. Trabalha atualmente com técnicas de for-

mação de clowns e atores em universidades do Brasil e exterior. E-mail: [email protected]

Antonia Marisa Canton - Diretora pela ECA/USP - Ciências da Comunicação com ênfa-

se em Turismo e Lazer. Especialização em Planejamento Turístico Málaga/Espanha. Docente na Funda-

ção Getúlio Vargas e SENAC. Professora e palestrante convidada em várias Universidades no Brasil.Diretora da Canton Eventos e Cultura. E-mail: [email protected]

António Carlos Bramante - Professor de Educação Física (São Carlos, SP), mestre em

Educação (West Chester State University/USA) e Doutor em Filosofia/Estudos do Lazer e Administra-ção de Parques Públicos (Penn State University/USA). Professor Voluntário da FEF/Unicamp no Depar-

tamento de Estudos do Lazer. Professor no Curso de Turismo da Universidade de Sorocaba. Consultor

em formulação e implementação de políticas de lazer no setor público e iniciativa privada. Autor deinúmeras publicações sobre o lazer no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected]

Cássia Hack - Licenciada em Educação Física e especialista em Educação Física Escolar

pela UFMT. Professora na Escola Estadual "Onze de Março" em Cáceres/MT. Aluna do Curso de Mestra-

do em Educação Física/Centro de Desportos/UFSC. Membro do Grupo de Estudos Observatório da

Mídia Esportiva - NEPEF/CDS/UFSC. E-mail: [email protected]

Cássio Avelino Soares Pereira - Mestre em Ciência Política pela UFMG. Diretor do

Centro de Pesquisa e Planejamento do Turismo - CPTUR. Contato: (38) 3221-7876. E-mail:[email protected]

Christianne Luce Gomes - Licenciada e Mestre em Educação Física, Especialista emLazer e Doutora em Educação. Docente da UFMG (Cursos de Educação Física e Turismo). Coordena-dora Pedagógica do Centro de Estudos de Lazer e Recreação (CELAR/DEF/UFMG). Editora da Re-vista Licere. Autora do livro Lazer, trabalho e educação (Editora UFMG). Co-autora do livro Lazere mercado (Editora Papirus) e Organizadora do livro Lazer, recreação e educação física (Autênti-ca Editora). E-mail: [email protected]

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Cristiane Queiroz de Souza Assunção - Licenciada em Educação Física pela UFMG.Professora do Centro Pedagógico da UFMG. Co-autora de artigos sobre o lazer, publicados em

Coletâneas do Encontro Nacional d,--. Recreação e Lazer e do Seminário O lazer em debate. E-mail: [email protected]

Daniel Braga Hiibner - Bacharel em Turismo pelo Centro Universitário Newton Paiva.

Especialista em Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do Curso de Administra-

ção Hoteleira da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte. Membro do Centro de Estudos de Lazer eRecreação - CELAR/UFMG. E-mail: [email protected]

Denise da Costa Oliveira Siqueira - Professora dos Cursos de Pós-Graduação e degraduação em Comunicação da UERJ. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Mestre emCiência da Informação (ECO/UFRJ). Especialista em Sociologia Urbana (IFCH/UERJ) e graduada em

Comunicação (FCS/UERJ). Pesquisa o universo da comunicação e da arte, especialmente as artes céni-cas. E-mail: [email protected]

Edmur António Stoppa - Graduado em Educação Física pela Unisa. Mestre e doutorandoem Educação Física, na área do lazer, pela Unicamp. Professor do Centro Universitário Claretiano, dasFaculdades Integradas de Guarulhos e membro do Grupo de Pesquisa de Lazer da Facef/Unimep. Autor

do livro Acampamentos de Férias e co-autor dos livros Lazer e mercado e repertório de atividadesde recreação e lazer, todos pela Editora Papirus. E-mail: [email protected]

Euclides Guimarães - Sociólogo pela UFMG e Mestre em Comunicação e Cultura pelaUFRJ. Professor da PUC-Minas nos cursos da área de Comunicação, lecionando as disciplinas de Histó-

ria da Arte e Sociologia da Comunicação. Trabalha com Teorias Contemporâneas em Cursos de Pós-graduação. Professor colaborador do Curso de Especialização em Lazer da UFMG. E-mail:[email protected]

Fernanda Pizzi - Produtora editorial (graduada na Escola de Comunicação da UFRJ). Mes-tranda em "Novas Tecnologias e Cultura" do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ.Integrante do "Núcleo de Pesquisa sobre Ciberculturas"(CiberIDEA - UFRJ). E-mail: [email protected]

Giovani De Lorenzi Pires - Licenciado e Mestre em Educação Física pela UFSM e Dou-tor em Educação Física/Ciências do Esporte pela Unicamp. Professor adjunto do Departamento de Edu-cação Física da UFSC e coordenador do Grupo de Estudos Observatório da Mídia Esportiva/NEPEF/UFSC. E-mail: [email protected]

Gisele Maria Schwartz - Licenciada em Educação Física (EEFUSP). Mestre em Educa-ção Física (FEF/Unicamp) e Doutora em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento Humano(IPUSP). Coordena o LEL - Laboratório de Estudos do Lazer, do DEF/IB/UNESP - Rio Claro. Profes-sora nos cursos de graduação em Educação Física e pós-graduação em Ciências da Motricidade naUnesp - Rio Claro, na linha de pesquisa Estados Emocionais e Movimento. É autora de diversos

artigos sobre psicologia do lazer e do livro Dinâmica Lúdica - novos olhares (Editora Manole).

E-mail: [email protected]

Hélder Ferreira Isayama - Professor e coordenador administrativo do Centro de Estudos

de Lazer e Recreação (GELAR) do Departamento de Educação Física da UFMG. Licenciado, Mestre e

Doutor em Educação Física. Editor da Revista Licere. Co-autor dos livros Lazer ó- empresa (Papirus,1999), Lazer e mercado (Papirus, 2001), Repertório de atividades de recreação e lazer (Papirus,

2002). Organizador do livro Lazer, recreação e educação física (Autêntica, 2003). E-mail:

[email protected]

Heloísa Turini Bruhns - Professora livre docente do Departamento de Estudos do Lazer-FEF/Unicamp. Autora dos livros: O corpo parceiro e o corpo adversário e Futebol, carnaval e capo-eira (Papirus). Organizadora dos livros: Conversando sobre o corpo; Viagens à Natureza e Olha-res Contemporâneos sobre o turismo (Papirus); Introdução aos Estudos do Lazer (Unicamp);Lazer e Ciências Sociais (Chronos); Temas sobre Lazer, O corpo e o lúdico, Enfoques contempo-râneos sobre o lúdico e Representações do lúdico (Autores Associados), Turismo, Lazer e Nature-za (Manole). E-mail: [email protected]

Janete da Silva Oliveira - Mestranda em Comunicação Social pela Universidade do Esta-

do do Rio de Janeiro. Graduada em Ciências e Económicas e também em Relações Públicas. Especialis-ta em Pesquisa de Mercado e Opinião Pública pela mesma instituição. E-mail: [email protected]

João Luís de Araújo Maia - Doutor em Sociologia - Universite de Paris V (Rene Descar-tes) em 1993. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e realiza o

Pós-Doutorado no PACC da UFRJ. Coordena projeto de pesquisa sobre questões relacionadas à cidade

e à comunidade. Líder de grupo de pesquisa no CNPq - Grupo CAC: comunicação, arte e cidade. É

editor da revista Logos e da Revista Contemporânea, ambas do Programa de Pós-Graduação emComunicação da UERJ. Atua na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação. E-mail:

[email protected]

José Alfredo Oliveira Debortoli - Professor na Escola de Educação Física, Fisioterapia

e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorado em Educação - PUC Rio.Autor de publicações sobre a infância, a brincadeira e o ensino de educação física para crianças.

E-mail: [email protected]

Luciana Marcassa - Graduada em Educação Física pela Unicamp, Mestre em Educaçãopela UFG, Professora da Faculdade de Educação Física da UFG, Pesquisadora vinculada ao GTT/Lazerdo CBCE com interesse na área de teoria e história do lazer. E-mail: [email protected]

Marcelo Weishaupt Proni - Economista, mestre em Ciências Económicas pela Uni-camp e doutor em Educação Física na Unicamp. É autor do livro A metamorfose do futebol(lE/Unicamp, 2000) Co-organizador do livro Esporte: história e sociedade (Autores Associados,

Page 119: Livro - Dicionário crítico do Lazer - Christianne Luce Gomes

2002) e coorganizador do livro Trabalho, mercado e sociedade: o Brasil nos anos 90 (Ed. Unesp,2003). Atualmente, é professor do Instituto de Economia da Unicamp. E-mail: [email protected]

Maria Cristina Rosa - Licenciada em Educação Física (UFV).Mestre em Educação Física/Área Estudos do Lazer, Doutoranda em Educação (UNICAMP). Organizadora do Livro Festa, Lazer e

Cultura (Papirus) e autora de outras publicações sobre o lazer. Professora da Universidade Federal deOuro Preto (UFOP). Email: [email protected]

Maria Inês Galvão Souza - Mestre em Ciência da Arte, Licenciada em Educação Física.Professora do Curso de Bacharelado em Dança/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coreógrafae intérprete da Companhia de Dança Helenita Sá Earp. Coordenador do Núcleo Dança, Cultura e

Sociedade do Grupo de Pesquisa Lazer e Minorias Sociais (www.lazer.eefd.ufrj.br). E-mail:[email protected]

Olívia Cristina Ferreira Ribeiro - Licenciada em Educação Física pela Unesp - Uni-versidade Estadual Paulista - Rio Claro/SP. Especialista em Lazer e Recreação e Mestre em Estudos do

Lazer pela Unicamp - Universidade Estadual de Campinas. Docente na Universidade Anhembi-Mo-

rumbi/SP nos cursos de Graduação em Lazer e Indústria do Entretenimento, Hotelaria e Turismo. Do-

cente no SENAC/SP na Graduação em Turismo e Hotelaria e nos cursos de Pós-Graduação em Lazer eAdministração Hoteleira. E-mail: [email protected]

Patrícia Zingoni - Mestre em Educação pela Universidade São Marcos/SP. Assessora deGerência de Projetos Especiais da Prefeitura de Belo Horizonte. Coordenadora Pedagógica do Projeto

Criança Esperança em Belo Horizonte. Membro do Centro de Estudos de Lazer e Recreação - Celar/UFMG. E-mail: [email protected]

Ricardo Antunes - Professor Titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp. Publi-cou os livros: Os Sentidos do Trabalho (Boitempo); Adeus ao trabalho?(Cortez l Editora Unicamp,publicado também na Itália, Espanha, Argentina, Venezuela e Colômbia); A rebeldia do trabalho (Edi-

tora da Unicamp); O novo sindicalismo no Brasil (Editora Pontes); Classe Operária, Sindicatos e

Partido no Brasil (Editora Cortez.); O que é sindicalismo? (Brasiliense), dentre outros. Coordena a

Coleção Mundo do Trabalho (Boitempo) e colabora em revistas e jornais nacionais e estrangeiros.Email: [email protected]

Ricardo Ferreira Freitas - Doutor em Sociologia pela Universidade Paris V/Sorbonne,Mestre em Comunicação pela UFRJ e graduado em Relações Públicas pela UERJ. Professor adjunto daFaculdade de Comunicação Social da UERJ. Autor do livro Centres commerciaux: iles urbaines de Iapostmodernité, editado pela L'Harmattan, Paris. Organizador da coletânea Desafios contemporâne-os em comunicação, editada pela Summus, São Paulo. Email: [email protected]

Rogério Correia da Silva - Professor do ensino fundamental. Mestre em Educação(UFMG) e Brincante, pesquisou sobre a presença da televisão nas brincadeiras de crianças.

Atua na formação de educadoras de creches e professores das escolas indígenas há 10 anos.

E-mail: [email protected]

Ronaldo Helal - Professor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado

do Rio de Janeiro. Doutor em Sociologia pela New York University. Co-autor de A Invenção do País do

Futebol: mídia, raça e ic/oiatria(Mauad,2001),co-organizadorde A Sociedade na Tela do Cinema:

imagem e comunicação (E-Papers, 2002); autor de Passes e Impasses: futebol e cultura de massa no

Brasil (Vozes, 1997) e de O que é sociologia do esporre (Brasiliense, 1990). E-mail: [email protected]

Sérgio Dorenski Dantas Ribeiro - Licenciado em Educação Física pela UFS. Professor

do Departamento de Educação Física da UFS e aluno do Curso de Mestrado em Educação Física doCentro de Desportos/UFSC. Membro do Grupo de Estudos Observatório da Mídia Esportiva - NEPEF/

UFSC. E-mail: [email protected]

Silvana Vilodre Goellner - Doutora em Educação. Professora na Graduação e Pós-Gra-

duação do Curso de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do

Centro de Memória do Esporte da ESEF/UFRGS e Pesquisadora do CNPq. Atualmente coordena o Gru-po de Estudos sobre Cultura e Corpo (GRECCO). Entre suas publicações destaca-se Bela, maternal e

feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica (Editora Unijuí, 2003) e Corpo, gé-

nero e sexualidade, livro organizado juntamente com Guacira Louro e Jane Neckel (Vozes, 2003).

E-mail:[email protected]

Silvia Cristina Franco Amaral - Professora do Departamento de Educação Motora -

Faculdade de Educação Física - Unicamp. Doutora em Educação Física - Estudos do Lazer - Faculda-de de Educação Física da Unicamp com estudos realizados na área de Políticas Públicas de Lazer. Auto-

ra de artigos em periódicos científicos nacionais e internacionais. E-mail: [email protected]

Valquíria Padilha - Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp - Doutorado "sanduíche"

realizado na Université de Bourgogne, Dijon, França. Mestre em Sociologia pela Unicamp. Especialis-

ta em Recreação e Lazer pela Unicamp. Autora do livro Tempo livre e capitalismo: um par imperfei-

to, Campinas: Alínea, 2000. Endereço eletrônico: [email protected]

Vânia de Fátima Noronha Alves - Graduada em Educação Física (UFMG). Especialis-

ta em Lazer (UFMG) e em Educação Física escolar (PUCMG). Mestre em Educação (UFMG). Douto-randa em Educação (USP). Professora de Lazer e Recreação no Curso de Turismo e Gestão em Hotela-ria da FACE/FUMEC. Autora do livro O corpo lúdico Maxacali: segredos de um "programa de

índio (FUMEC-FACE, C/ Arte). E-mail: [email protected]

Vera Lúcia Alves Batista Martins - Graduada em Sociologia e Política e em Adminis-tração Pública pela UFMG. Mestre em Administração (CEPEAD/UFMG). Especialista em: Desenvolvi-mento Económico (CEPAL/ILPES); Administração (Fundação João Pinheiro/Universidade de Colum-bia); Ecologia Urbana (PUC-Minas/Universidade de Bolonha); Política Social (UNB) e Relações

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Internacionais (PUC-Minas). Professora Adjunta dos Cursos de Relações Internacionais e de Tu-rismo na PUC-Minas. Autora de artigos sobre qualidade de vida, exclusão social e política social.

E-mail: [email protected]

Victor Andrade de Melo - Pós-Doutorado em Estudos Culturais. Doutorado em Educa-

ção Física (área: Educação Física e Cultura). Mestre em Educação Física (área: Estudos do Lazer). Pro-

fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Teoria do Lazer). Coordenador do Grupo de Pesquisa

Lazer e Minorias Sociais (ww.lazer.eefd.ufrj.br). Autor dos livros Introdução ao Lazer(Manole, 1993)

e Lazer e Minorias Sociais (Ibrasa, 2003). E-mail: [email protected]

Virna Carolina Carvalho Munhoz - Graduada em Educação Física e Pós-Graduadaem Lazer pela UFMG. Mestranda em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro/MG. Analis-

ta de Políticas Públicas da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Endereço: Av. Álvares Cabral, 200/5°

andar, Centro, Belo Horizonte, MG. CEP: 30170-000. E-mail: [email protected]