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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades
Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013
LIVRO DIDÁTICO E DISCURSO: EMBRANQUECIMENTO, EXOTISMO E INVISIBILIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA NO ENSINO DA HISTÓRIA
DA ARTE
CUCCO, MARCELO (1); MÜLLER, TÂNIA (2)
1. Mestrando em Relações etnicorraciais no Cefet-RJ. Professor do Instituto Federal Fluminense
2. Pós-Doutoranda em Antropologia Social na USP. Professora da Universidade Federal Fluminense
RESUMO O objetivo desse artigo é discutir como imagens de negros, a arte afro-brasileira e a África são apresentadas na História da Arte presente nos livros didáticos de Educação Artística. Pretende-se observar também de que maneira determinadas abordagens desta disciplina afirmam uma suposta superioridade da arte europeia, contribuindo para o embranquecimento e invisibilização dos referenciais simbólicos do negro. Partimos da premissa de que professores acabam usando o livro didático como suporte organizacional dos conteúdos ministrados ano a ano. Portanto, trabalhamos com a hipótese de que a cultura material escolar pode influenciar a visão de alunos e professores no sentido de colaborar com continuísmos históricos e discursivos que naturalizam uma suposta inferioridade racial e simbólica das pessoas negras. Nosso objeto de estudo é o livro “Descobrindo a História da Arte”, publicado pela editora Ática, amplamente utilizado como sugestão bibliográfica de concursos públicos para o magistério e pela rede federal de ensino Colégio Pedro II. Este estudo visa suscitar discussões acerca de como as questões raciais estão sendo abordadas nas aulas de Artes após a Lei 10.639/2003.
Palavras-chave: Livro didático. Ensino da Arte. Mídia e Educação. Arte afro-brasileira. Relações etnicorraciais.
O livro didático participa do processo de transmissão e recepção das formas
simbólicas existentes na cultura de massa, argumenta NASCIMENTO (2009, p.28). Esse não
seria imparcial quanto aos mecanismos de aquisição e mediação do conhecimento que
ocorrem no âmbito da cultura escolar, influenciando os agentes que dele fazem uso, neste
caso, alunos e professores. Apesar de não estar no escopo deste artigo, vale observar que a
comercialização de livros didáticos contribui substancialmente no mercado editorial brasileiro,
movimentando anualmente cifras bilionárias, via Programa Nacional do Livro Didático – PNLD
- ou pela venda direta ao consumidor, tornando-o comercialmente atraente a grandes grupos
editoriais (SILVA, 2005, p.86).
Neste imenso processo comercial de bens simbólicos ao qual o livro didático está
sujeito, seu papel principal está na mediação da informação e da comunicação, no sentido de
dar suporte organizacional para o mundo. Por estar integrado à lógica econômica,
tecnológica, e principalmente, simbólica, que regula as duas primeiras, opera na mediação
pela qual os indivíduos “regulam as trocas sociais, constroem as representações dos valores
que subjazem a suas práticas, criando e manipulando signos e, por conseguinte, produzindo
sentido” (CHARAUDEAU, 2009, p.15). Por isso, o livro didático não está imune à lógica do
discurso dominante, contribuindo efetivamente na perpetuação dos mecanismos de exclusão
social e cristalizando na cultura escolar o discurso homogeneizador da cultura de massa.
Muito tem sido feito no sentido de garantir um ensino realmente inclusivo para as
classes populares, especialmente no que tange à valorização da cultura e do referencial
simbólico dos diversos grupos étnicos existentes no Brasil. Dentre as principais ações
podemos destacar a Lei 10.639/2003, que apesar de trazer diversos avanços para a
educação das relações etnicorraciais, sua aplicabilidade ainda representa um desafio para os
sistemas educacionais. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira – Inep - apontam que menos da metade das escolas brasileiras adotam-na de
forma sistemática (PAIXÃO, 2013).
Muitas questões dificultam a aplicabilidade da Lei nos sistemas de ensino,
especialmente no que diz respeito ao seu princípio mais básico, que é a abordagem dos
conteúdos inerentes à cultura africana e afro-brasileira na sala de aula. Esse problema reside
no fato de que as trocas simbólicas, no qual irá operar, atravessam as culturas escolares
como um todo e por vezes entram em embate com os processos de homogeneização da
cultura de massa que também estão ali presentes.
Dentro deste contexto, GOMES (2003, p.77) aponta que a existência do racismo e da
desigualdade entre negros e brancos contribui para que a cultura afro-brasileira seja tratada
nas escolas de forma distanciada, como a cultura do outro, ocupando dessa maneira o lugar
do exótico e folclórico. Assim, falta, dentre outras coisas, o reconhecimento de que a arte
afro-brasileira é parte indissociável da cultura brasileira e possui especificidades que dizem
respeito à história dos negros. Neste sentido, o despreparo da maior parte dos professores de
Artes para trabalharem com o ensino das relações etnicorraciais opera em conjunto com a
complexidade da seleção dos conteúdos do componente curricular Artes.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino das Artes - PCN – Arte - apontam
que a dificuldade para a seleção desses conteúdos ocorre devido à diversidade de formas e
expressões artísticas. Orientam que esta seleção deve ficar a critério do professor e de sua
equipe, bem como a forma e a ordem como deverão ser trabalhados. Ocorre que, muitos
professores acabam recorrendo ao livro didático como suporte organizacional e conceitual
dos conteúdos ministrados ano a ano. Por isso, é fundamental permanecer atento quanto à
forma como estes apresentam a arte africana e afro-brasileira em suas páginas, a fim de evitar
continuísmos históricos e discursivos que mantêm o negro numa posição de inferioridade
social e simbólica.
O mercado editorial fornece uma quantidade significativa de livros didáticos de arte,
com as mais variadas abordagens e com conteúdos bastante diversificados. Dentro deste
universo analisaremos uma publicação da editora Ática denominada “Descobrindo a História
da Arte”, de Graça Proença. Dois pontos justificam a escolha desse objeto para análise: o
primeiro é a sua utilização como livro didático para os alunos do segundo segmento do Ensino
Fundamental e Ensino Médio dos treze campi da rede federal de ensino Colégio Pedro II. Um
segundo ponto a ser considerado é sua indicação por algumas organizadoras de concursos
públicos para o magistério na bibliografia. É o caso da Fundação João Goulart, que organiza e
realiza concursos públicos para a prefeitura do Rio de Janeiro e da Fundação Centro Estadual
de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro – CEPERJ -,
que efetiva os certames do Governo do Estado do Rio de Janeiro e de algumas prefeituras do
interior, tais como: São Gonçalo, Rio das Ostras, Itaboraí, Belford Roxo, dentre outras.
“Descobrindo a História da Arte”, é dividido em vinte capítulos, organizando
cronologicamente a história da arte numa sucessão de acontecimentos. O recorte para estudo
toma como ponto de partida a arte da pré-história europeia, tendo rápida passagem pelo
mesmo período no Brasil, abordando em seguida, a antiguidade do mundo Greco-romano e a
partir dai analisando a produção artística da Idade Média até a atualidade, percorrendo quase
que exclusivamente o mundo da cultura judaico-cristã europeia. Apesar de possuir 244
páginas ricamente ilustradas, imagens de negras, negros ou arte afro-brasileira aparecem
apenas nas páginas 141 (capítulo 13 – Século XIX no Brasil: a influência estrangeira), 199,
201, 202, 204, 205, 206 (Capítulo 18 – Século XX no Brasil: o Modernismo), e finalmente 237
e 238 (Capítulo 20 – Século XX no Brasil: a arte contemporânea). A única arte africana
analisada no livro é a do povo egípcio, que iremos observar detalhadamente mais adiante.
Neste momento, por entendermos ser importante, para melhor acompanhamento de
nossa análise, descreveremos como alguns capítulos do livro abordam a temática.
No capítulo 1 – “A pré-história” - a Europa, a partir de 30.000 AC é utilizada como
referencial de análise, principalmente as pinturas rupestres nas paredes das cavernas de
Altamira, na Espanha, não levando em consideração a vasta produção material dos povos
africanos do mesmo período, considerados os mais antigos do planeta. Esta visão corrobora
com a ideia de que os povos africanos não possuem trajetória histórica significativa, e
dependem de uma visão externa à sua realidade existencial para que esta possa ser
construída. Para M’BOW (2010, p. 21), este problema reside no fato de que a Idade Média é
frequentemente tomada como referência ao discurso histórico, no qual se ignora tanto outras
instituições como outras relações sociais, ressaltando-se apenas dados vinculados ao
passado europeu. Assim, há “(...) uma recusa a considerar o povo africano como o criador de
culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos séculos, por vias que lhes
são próprias e que o historiador só pode apreender renunciando a certos preconceitos e
renovando seu método”. (M’BOW, 2010, p. 22).
Neste capítulo também está apresentada a pintura rupestre nos sítios arqueológicos
de São Raimundo Nonato, no Piauí; entretanto, esta é uma mera aproximação temporal e
descritiva com a história europeia, ignorando o fato de que esses povos são formadores das
sociedades indígenas brasileiras e, consequentemente, também de nossos ancestrais. O
conteúdo é abordado de modo a criar um hiato entre esse período e o ano de 1500, quando a
historiografia oficial brasileira passa a existir em território europeu, em outras palavras,
quando o Brasil passa a existir para a Europa e se funda à história da América Portuguesa.
SEVCENKO (1996, p. 114) por outro lado, aponta que o referencial histórico
normalmente adotado nos currículos escolares parte de uma “sequência contínua com os
seguintes lances encadeados: Antiguidade Oriental, Antiguidade Clássica, Idade Média,
Modernidade e História Contemporânea”. Ou seja, povos nômades e de tradição oral
permanecem fora das análises históricas. E continua:
(...) povos nômades e seminômades, essa parte da humanidade, são povos sem história,
que não estão na história, que não contam para a história tal como ela foi montada, como
um instrumento de análise europeu. Mais ainda, são povos nocivos à história, são contra
ela, destroem-na. A história leva anos, séculos, milênios para montar-se, e vem um desses
povos sem história e destrói todos aqueles milênios de história. São povos profundamente
antipáticos do ponto de vista epistemológico. (SEVCENKO, 1996, p.116).
Deste modo, observamos que os processos discursivos que atravessam a escola
brasileira seguem uma tradição histórica que ignora a existência de civilizações fundamentais
à formação do povo brasileiro e da história mundial.
No capítulo 2 – “Arte no Egito” - são utilizados dois mapas (Figura I) para contextualizar
geograficamente o império egípcio da Antiguidade e a mesma região na contemporaneidade.
Um dos mapas, em tamanho menor, mostra a imagem de todo continente africano hoje, com o
Egito contextualizado geográfica e politicamente numa macrorregião africana. O segundo
mapa, maior, mostra um recorte do auge do Império Egípcio da Antiguidade,
descontextualizado do restante da África e realizando relações comerciais e simbólicas com
outros povos Mediterrâneos. Considerando a decadência e queda do Império Egípcio incluída
na macrorregião africana do mapa menor, o estudante pode ser levado a pensar que estes
foram problemas que assolaram todo território africano e estão presentes até os nossos dias,
sem levar em consideração processos históricos decorrentes da colonização,
descolonização, guerras e alianças entre povos do próprio continente, expansão do
islamismo, que reconfiguram o continente politicamente. Pode ser levado a perceber através
da observação do mapa maior, que o seu auge ocorreu apenas quando os egípcios se
encontravam num contexto sociocultural mediterrâneo, dividindo a hegemonia do discurso
histórico com povos da antiguidade europeia, presente em um passado remoto e abstrato,
reafirmado pela sensação de distanciamento temporal que as ruínas das antigas edificações
egípcias causam.
A sensação de desconexão entre os povos africanos mediterrâneos e o restante do
continente é reafirmada pela ilusão da tradição do discurso histórico que constrói, e apresenta
o deserto do Saara como uma região intransponível. Este argumento pode ser verificado em
M’bow na seguinte citação:
Apresentava-se frequentemente o Saara como um espaço impenetrável que tornaria
impossíveis misturas entre etnias e povos, bem como trocas de bens, crenças, hábitos e
ideias entre as sociedades constituídas de um lado e de outro do deserto. Traçavam-se
fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e aquelas dos
povos subsaarianos. (M’BOW, 2010, p. 22).
O antigo Egito é representado, como vemos, (figura I) separado por uma linha vermelha
do restante do continente africano, como se deste não fizesse parte, permanecendo de costas
para os povos da África central e de frente para o mar mediterrâneo, trazendo implícita a ideia
de cisão que teria existido entre a “África branca” e a “África negra”, não concebendo, por
exemplo, que a África mediterrânea tenha sido profundamente influenciada por povos de
outras regiões do continente.
Figura I
Um fato que chama atenção é a relação entre os capítulos 10 – “O Barroco na Europa”
- e 11 - “O Barroco no Brasil”. Até aqui o aluno é levado a “imaginar” uma possível linearidade
da História da Arte, com os estilos se sucedendo numa espécie de “evolução”, corroborando
com a possível crença da universalidade estética europeia, sem levar em conta o
espaço/tempo de outras produções artísticas. Isso pode ser observado na relação entre esses
dois capítulos, em que o estudante é levado a pensar que o Barroco brasileiro é uma espécie
de continuidade – o que não quer dizer uma evolução – do Barroco europeu.
Vale destacar como o fez Dilma Silva (1997, p.45) que o Barroco brasileiro
apresenta-se como um estilo advindo das camadas populares, mostrando um rompimento
com os cânones estéticos europeus. O que permitiu fazer emergir uma arte multicultural,
“unindo padrões da produção pré-colombiana, da africana e do catolicismo popular” (SILVA,
1997, p. 45), elementos catalisados na estética colonial brasileira. Nesse contexto,
CONDURU (2007) observa-se elementos ainda mais contundentes da presença africana no
Barroco brasileiro ao analisar a Igreja de Santa Efigênia, em Ouro Preto, afirmando que “a
igreja apresenta em sua talha elementos típicos da cultura religiosa africana – búzios, chifre
de carneiro – constituindo uma exceção notável de afloramento de elementos, princípios e
formas da África no Brasil”. (CONDURU, 2007, p.18).
E ainda, ressalta a relação da afro-brasilidade com o Barroco brasileiro:
Na conexão de afro-brasilidade à arte cristã, o dado que primeiro salta aos olhos é
a representação se santos e anjos com traços negroides, o amulatamento das figuras
representadas em pinturas, retábulos e imagens católicas. Os anjinhos negros, mulatos e
brancos brincando entre guirlandas, ou pendurados em capitéis e arquitraves, geralmente
encantam, seja pela graça, algo canhestra de suas formas, seja por simularem uma
ingênua harmonia celestial, bem distante da realidade terrena. (CONDURU, 2007, p.18).
No âmbito das trocas simbólicas ocorridas nesse período, pode-se observar a estreita
relação do catolicismo com a religiosidade afro-brasileira. É o caso da imagem de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida, uma Maria de Nazaré negra, com sua afro-descendência
derivada da cor de canela causada pela fuligem do tempo. Por outro lado, observa que existe
o branqueamento e a ocidentalização da iconografia africana pela Igreja Católica:
(...) a Igreja Católica substituiu o culto de Ibêji, par de divindades Iorubás infantis, pela
devoção aos santos Cosme e Damião (...). Nesse processo sincrético, as imagens da
dupla de santos católicos são geralmente representadas unidas por uma base única,
seguindo o modelo de representação de Ibeji da África. (CONDURU. 2007, p. 20).
O livro apresenta um discurso histórico-estético que faz referência ao catolicismo
colonial do século XVIII, sem citar, por exemplo, os agentes sociais envolvidos na elaboração
e construção dos monumentos artísticos, como se esses tivessem surgido por “encanto” no
Brasil. Não é levado em conta, por exemplo, os tensionamentos políticos decorrentes do ciclo
do ouro e a permanência de elementos simbólicos das culturas africanas na iconografia
religiosa brasileira. Neste sentido, podemos citar os dois maiores artistas do Barroco
brasileiro, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho e Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre
Valentim, afrodescendentes, mestiços e possivelmente influenciados pelo universo simbólico
africano (CONDURU, 2007, p. 21).
O capítulo 13 do livro – Século XX no Brasil: a influência estrangeira – apresenta a
vinda da Missão Artística Francesa para o Brasil, em 1816, o surgimento do estilo Neoclássico
e a fundação da Academia Imperial de Belas Artes, primeira escola de artes brasileira, que
inaugurou o ensino oficial das artes e ofícios (BARBOSA, 1986, p.18).
Após a chegada da corte portuguesa houve inúmeros avanços na sociedade brasileira
oitocentista. No campo da arte, a chegada da Missão Francesa representou o rompimento
com a arte colonial e a imposição de uma estética artística consagrada na Europa,
representadas pela fundação de uma escola de artes que simbolizava a própria imagem e
poder da cultura colonizadora cristalizada na família real portuguesa. Essa Escola teve um
importante papel político na negação da estética colonial escravagista e de “confundir” a
própria história do Brasil com a da Europa. Assim, ao passo que o Barroco brasileiro mostrava
um rompimento com os cânones estéticos europeus através de uma arte mestiça, o
neoclassicismo significou o retorno à ordem estética europeia e, consequentemente, a
imposição de novos padrões culturais de comportamento (SILVA, 1997, p.45).
Pudemos desvelar uma atenuação dessa imposição quando Graça Proença
apresenta que “a Missão Artística Francesa adotou o estilo Neoclássico e abandonou o
Barroco, que em nosso país, principalmente em Minas Gerais, havia se desenvolvido com
características e soluções brasileiras” (PROENÇA, 2009, p.142). O conteúdo exposto desta
forma ignora a presença negra na arte brasileira, e ainda, não considera a relação de forças
imposta pelo estilo Neoclássico como valor simbólico dominante, tratando tal mudança de
paradigma estético como um simples abandono, ao invés de uma imposição patrocinada pelo
Estado.
Neste mesmo capítulo aparecem as primeiras imagens de pessoas negras brasileiras
em obras de arte. Trata-se de dois quadros do artista francês Jean-Baptiste Debret, intitulados
“Negociantes paulistas de cavalos” (1834) e a “Ponte se Santa Efigênia” (1827). Apesar da
vasta obra que Debret realizou no período em que esteve no Brasil, de 1816 a 1831,
pesquisando e retratando a vida cotidiana oitocentista nos seus mais variados aspectos, o
livro optou por fazer uma abordagem estritamente formal das imagens, esvaziando-as de
seus simbolismos sociais. Nessas imagens as pessoas negras são expostas de forma
subalterna, reforçando, mesmo que implicitamente, a ideia de aculturação dos africanos e
seus descendentes, corroborando com o discurso histórico hegemônico que constrói uma
imagem de passividade e aceitação do negro à condição de escravo. Durante o período em
que esteve no Brasil, Debret assumiu a postura de um grande observador do universo
cotidiano brasileiro, elaborando pinturas que visam detalhar a vida social no período em que
esteve a serviço da família Real. Assim, destacam-se diversas obras que apresentam a
população negra em momentos de descontração, dissociados da imagem de sujeitos
escravizados, mas ao contrário, como sujeitos ativos no cotidiano ameno da sociedade
brasileira.
Roberto Conduru (2007, p.51) aponta que as pinturas mais conhecidas desse período
foram criadas por artistas estrangeiros que, além de retratarem a vida cotidiana, ajudaram a
construir uma visão europeia de Brasil. Neste sentido, entendemos que apesar da
incontestável importância histórica, algumas imagens produzidas por Debret dissociadas de
um discurso mais atento em relação ao sentido que carregam no imaginário cultural brasileiro,
podem fazer com que os sujeitos negros, na contemporaneidade, construam sua autoimagem
de forma distorcida, “presa” a um passado colonial perpetuado na obra dos artistas viajantes
dos séculos XVIII e XIX.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais
apontam para a importância da autoimagem na construção da cidadania das pessoas negras,
e por isso, orientam para a necessidade de reconhecer as especificidades do negro na
construção de brasilidade e como agente não passivo no universo simbólico e politico
brasileiro. Assim, indica que reconhecer esses direitos:
(...) implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem
como valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que
compõem a população brasileira. E isto requer mudança nos discursos, raciocínios,
lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras. Requer também que se
conheça a sua história e cultura apresentadas, explicadas, buscando-se especificamente
desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que difunde a
crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por
falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a
estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros. (MEC. 2004, p.11).
Portanto, não levar em consideração o discurso dominante do passado colonial
brasileiro presente na obra dos pintores viajantes, enfatizado pelo esvaziamento da análise
puramente formal dessas obras, podem trazer trazem enormes prejuízos para a população
negra, no que diz respeito ao auto reconhecimento e valorização da negritude.
O capítulo 18 – “Século XX no Brasil: o Modernismo” – analisa a obra e a vida dos mais
conhecidos artistas integrantes do Movimento Modernista Brasileiro. Neste ponto, diversas
representações de negritude aparecem nas obras dos artistas, isso, entretanto, não quer dizer
que elas sejam necessariamente positivas. Ao analisarmos o conjunto da obra exposta neste
capítulo, percebe-se a clara tendência de representar os negros associados ao trabalho
pesado no campo, ou como representantes de uma cultura exótica, e os brancos nas cidades,
ligados à cultura moderna e industrial. Roberto Conduru cita que é importante notar como, no
Brasil,
(..) esse interesse por questões culturais afrodescendentes foi de segundo grau, em boa
parte estimulado e filtrado pela valorização europeia das culturas entendidas então como
primitivas, além de não estar isento de preconceitos, nem imune a mitificações e
cerceamentos. (CONDURU, 2009, p 51).
O Movimento Modernista Brasileiro foi, sem dúvida, significativo para a “descoberta”
do negro e do mestiço na sociedade brasileira. Isso, porém, não quer dizer que a visão dos
artistas modernos brasileiros tenha sido de legitimar esses agentes na alta cultura, pelo
contrário, de acordo com o autor, foram absorvidos pelo pensamento antropofágico e
empurrados para uma espécie de limbo cultural do exótico, primitivo. Há, portanto, a
persistência de um “olhar etnográfico, mais interessado na caracterização de tipos e costumes
vinculados a classificações étnicas do que na absorção de práticas culturais e artísticas, que
continuaram sendo marginalizadas”. (CONDURU, 2009, p.51).
Em algumas pinturas expostas neste capítulo, é nítido nos negros a presença de um
olhar distante e um desconforto em relação ao seu lugar físico e social, e nos brancos a
expressão de sentimentos e interação com o ambiente à sua volta.
O livro apresenta, lado a lado, as pinturas “Operários” (1933) (figura II), de Tarsila do
Amaral, e “Café” (1934) (figura II) de Cândido Portinari. Na primeira aparece uma “pirâmide
humana” quase totalmente formada por imigrantes e brancos, estando três destes em seu
topo, um deles vestindo terno e gravata. A artista retrata os trabalhadores revelando a
situação de exploração do operariado, desvelando o cansaço e o sofrimento desses sujeitos
de uma sociedade moderna industrial. Na segunda há uma colheita de café, com dezenas de
trabalhadores negros, quase todos de rosto escondidos, com exceção de um, que tem o rosto
exposto, mas sem expressar sentimentos. O único branco na imagem parece estar
comandando o serviço dos demais. A medida que Tarsila do Amaral humaniza os
trabalhadores através do cansaço, fruto da condição do trabalho degradante nas fábricas, o
pintor de “Café” desumaniza os trabalhadores negros pela ausência de suas frontes, “sujeitos
sem caras”, e sem a representação da faina no campo. Apesar das diferenças apontadas,
essas imagens situadas lado a lado tendem a naturalizar a superioridade social, trabalhista e
tecnológica dos brancos e reforçar a “coisificação” do negro, perpetuada no trabalho braçal
que ocupa desde o período da escravatura.
Outra imagem que chama atenção é “Nascimento de Vênus” (1940) (figura III), de Di
Cavalcanti. A obra é uma referência à pintura renascentista do artista italiano Botticelli “O
Nascimento de Vênus” (1485), que representa o nascimento da deusa da beleza. Na tela de
Di Cavalcanti a deusa da beleza é concebida como uma mulher branca de cabelos ruivos
sendo aparada por três mulheres negras, destacando a naturalização de sua subserviência
em relação à beleza inocente da mulher branca, reproduzindo o estereótipo do lugar social
desejado das mulheres negras nos cuidados às “sinhazinhas”.
Figura II
Nas últimas páginas do capítulo XX aparecem as únicas obras de arte em que a autora
reconhece o referencial simbólico afro-brasileiro, condensadas em apenas uma página do
livro, no capítulo que se refere à arte do século XX. Trata-se da pintura “Dança” (1965), de
Heitor dos Prazeres, a escultura “Ape Awo II” (sem data), de Mestre Didi e a pintura “Emblema
4”, de Rubem Valentim. Na tela de Heitor dos Prazeres o livro chama atenção para a
musicalidade, na qual o artista lança mão de seu universo simbólico, e de sua cultura. No
trabalho de Mestre Didi, Graça Proença (2009, p.237) observa que o artista trabalhou “com
diversos tipos de material – búzios, contas, vegetais – o artista criou uma escultura com
formas e cores que lembram objetos usados em rituais. Percebemos nela traços que de uma
cultura que recorre com sabedoria à natureza para exprimir-se religiosamente e
artisticamente”. A obra de Mestre Didi é completamente inspirada no universo mítico do
candomblé. O livro oculta essa informação, tratando a obra do artista de forma generalista ao
indicar que os tipos de materiais “lembram” objetos utilizados em rituais, sem citar a que tipo
de ritual ele está vinculado, silenciando o referencial simbólico afro-religioso, presente, por
exemplo, na gigantesca produção artística que ocorre nos terreiros de candomblé e umbanda
pelo país, que continuam a existir e resistir numa espécie de subsolo artístico. Por fim, na
análise da pintura de Rubem Valentim, o livro ressalta que o artista é autodidata e sua obra é
inspirada nas tradições populares dos negros da Bahia, sem se referir a que dimensão da
cultura popular a obra está vinculada. A pintura de Valentim presente no livro é inspirada nos
símbolos litúrgicos do candomblé, presente em boa parte das obras do artista, buscando o
equilíbrio entre as tradições culturais populares que permeiam todo o universo simbólico da
cultura brasileira, especialmente a afro-religiosidade, ao meio de arte erudita, representada
pelo racionalismo construtivista.
Figura III – Di Cavalcanti – O Nascimento de Vênus (1940).
Figura IV
CONCLUSÃO
A cultura escolar, segundo JULIA (2001, p.10), se estabelece a partir da relação entre
as normas que perpassam a sociedade como um todo e às práticas escolares necessárias à
decodificação e apreensão dessas normas. Isso não quer dizer que a cultura escolar seja um
subproduto ou um resumo da sociedade, pelo contrário, ela estabelece regras próprias que
dialogam a partir do questionamento ou reafirmação das regras sociais, influenciando todos
os agentes que fazem parte desse processo. O livro didático está presente nessa relação
como um objeto midiático, fruto da cultura de massa, que media a relação do processo
ensinoaprendizagem1 no âmbito da cultura material escolar. Assim, podemos dizer que os
conceitos, a organização do conteúdo, a abordagem, e a diagramação de textos e imagens
1 Para Nilda Alves e Ines Barbosa de Oliveira a junção de determinados termos ou conceitos são usados “para dar
conta de superar as dicotomias e separações entre elementos de expressões que nos parecem ficar melhor
quando juntos e não dicotomizados” (ALVES e OLIVEIRA, 2012, p. 61).
não são elementos aleatórios no contexto da relação entre livro didático, cultura de massa e
cultura escolar.
Desta forma, o livro didático operando como mediador da relação ensinoaprendizagem
acaba por contribuir na elaboração de imagens deformantes da realidade. Isso porque, “a
informação é essencialmente linguagem, e a linguagem não é transparente ao mundo, ela
apresenta sua própria opacidade através da qual se constrói uma visão, um sentido particular
de mundo” (CHARAUDEAU. 2009. p. 16).
O Ensino das Artes no Brasil se estabeleceu a partir da relação entre produção e
observação contextualizada historicamente de obras de arte. A arte neoclássica ensinada na
Academia Imperial de Belas Artes trazia o vínculo entre a produção de arte daquele período e
o padrão estético da antiguidade clássica greco-romana, que deveria ser o ponto de partida de
todos os alunos. Portanto, a relação entre História da Arte e Ensino da Arte é indissociável e
estruturante dessa disciplina, podendo ser observada até hoje nas aulas de Artes da
Educação Básica, na forma da contextualização das obras (PCN-Arte), que significa, a priori,
alinhar o objeto artístico com o discurso histórico que vai dar significado àquela imagem
dentro de um sistema simbólico cultural ampliado, porém, convergente.
A História da Arte, por tradição, propõe a manipulação da lógica simbólica através da
universalização de uma narrativa (BELT, 2006, p. 24), promovendo a manutenção do
eurocentrismo europeu. Através do livro didático, a cultura escolar e, consequentemente, a
sociedade cristalizam essa lógica, reafirmando a desigualdade entre brancos e negros.
As Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Etnicorraciais destacam a
importância de superar o etnocentrismo europeu no âmbito dos sistemas de ensino. Partem
do princípio de que o professor deverá ter consciência de como se construiu o racismo na
sociedade brasileira a partir do estudo aprofundado das relações de forças desiguais que se
confrontaram durante a história. Por isso, após o exposto, entendemos ser necessário
reestruturar o discurso utilizando referenciais que demonstrem aspectos até então não citados
sobre a história estética do negro no Brasil (MEC, 2004). A História da Arte ensinada hoje nas
escolas brasileiras necessita ser revisada para que os sistemas de ensino efetivamente
consigam dar conta da história estética dos grupos excluídos do processo histórico.
Com essa análise pudemos observar a separação entre África “branca e África
"negra”o “embranquecimento” da arte Barroca, a “alegorização” da imagem do negro na arte
moderna e a “invisibilização” do referencial simbólico negro na arte afro-brasileira. Por trás
dessas visões existe um processo histórico de manutenção de espaços de poder que afloram
na relação de forças desiguais entre grupos sociais. Concluímos, então, que o processo de
integração do negro na sociedade brasileira pressupõe um processo de “embranquecimento”
cultural, em que a este é imposto a renegação da sua cultura ancestral, para que dessa forma,
possa se integrar num projeto de sociedade que pretende ser uma extensão do mundo
europeu.
O passaporte para a integração nesse projeto de sociedade é a negação da negritude
e por consequência a perpetuação do racismo. O cotidiano escolar tem exercido papel
fundamental no processo de mascaramento desse racismo, e por isso é importante pensar o
papel significativo do livro didático nesse contexto, como reprodutor da ideologia eurocêntrica
e hegemônica. O estudante negro não é posto valorizar o que o faz ser negro. Não se vê
agente participativo do próprio processo histórico. O resultado dessa equação não poderia ser
mais perverso: o abandono do processo escolar e descrença na própria cidadania.
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