LIVRO educação como exercicio de diversidade

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 Brasília, outubro de 2005

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Braslia, outubro de 2005

Copyright 2005. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad/MEC) DIRETORIA ANPEd Presidente: Betnia Leite Ramalho (UFRN/RN) Vice-Presidentes: Vera Maria de Souza Placco (PUC/SP) Lucdio Bianchetti (UFSC/SC) Mariluce Bittar (UCBD/MS) Secretrio-Geral: Jsus de Alvarenga Bastos (UFF/RJ) Secretrias-Adjuntas: Emlia Freitas de Lima (UFSCar/SP) Maria Jos Palmeira (UNEB/BA)

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Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitao de suas fronteiras ou limites.

edies MEC/UNESCO Conselho Editorial da Coleo Educao para Todos Adama Ouane Alberto Melo Dalila Shepard Katherine Grigsby Osmar Fvero Ricardo Henriques

BR/2005/PI/H/26

Educao como exerccio de diversidade. Braslia : UNESCO, MEC, ANPEd, 2005. 476 p. (Coleo educao para todos; 6). 1. Educao UniversalAmrica Latina 2. Democratizao da EducaoAmrica Latina I. UNESCO II. Banco Interamericano de Desenvolvimento III. Brasil. Ministrio da Educao CDD 379.2

SUMRIO

Apresentao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 As desigualdades multiplicadas Franois Dubet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 Educao escolar e cultura(s): construindo caminhos Antonio Flavio Barbosa Moreira, Vera Maria Candau . . . . . . . . . . . . . . .35

EDUCAO DE JOVENS E ADULTOSJovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem Marta Kohl de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59 Escolarizao de jovens e adultos Srgio Haddad, Maria Clara Di Pierro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83 Como erradicar o analfabetismo sem erradicar os analfabetos? Munir Fasheh . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .127 Programa Integrao: avanos e contradies de uma proposta de educao formulada pelos trabalhadores Sonia Maria Rummert . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .149

TNICO-RACIALMovimento negro e educao Luiz Alberto Oliveira Gonalves, Petronilha Beatriz Gonalves e Silva . . . .179 Trajetrias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reproduo de esteretipos ou ressignificao cultural? Nilma Lino Gomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .227 Os negros, a educao e as polticas de ao afirmativa Ana Lcia Valente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .249

EDUCAO NO CAMPOTrabalho cooperativo no MST e ensino fundamental rural: desafios educao bsica Marlene Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .269 A contribuio do homem simples na construo da esfera pblica: os trabalhadores rurais de Baturit Cear Snia Pereira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .303 Aprender e ensinar no cotidiano de assentados rurais em Gois Jadir de Morais Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .329

SEXUALIDADERevisando o passado e construindo o presente: o movimento gay como espao educativo Anderson Ferrari . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .349

ETNIA/NDIOSMovimentos indgenas no Brasil e a questo educativa: relaes de autonomia, escola e construo de cidadanias Rosa Helena Dias da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .369 E agora, cara plida? Educao e povos indgenas, 500 anos depois Nietta Lindenberg Monte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .399 Olhares que fazem a diferena: o ndio em livros didticos e outros artefatos culturais Teresinha Silva de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .429 Cara ou coroa: uma provocao sobre educao para ndios Maria Helena Rodrigues Paes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .447

APRESENTAO

A construo de uma efetiva agenda social para o Brasil pressupe a definio de estratgias polticas que contemplem no somente o setor da educao nas suas diversas dimenses e nveis, mas tambm os segmentos que compem a sociedade brasileira, com as suas necessidades especficas de aprendizagem. Uma exigncia substantiva e procedimental nesta estratgia o reconhecimento da responsabilidade conjunta do Estado e das organizaes sociais no atendimento s mltiplas demandas da sociedade. Nesta perspectiva, fundamental a sinergia entre Estado e sociedade civil no caminho da desejada transformao da realidade de excluso social, com base no reconhecimento do diferente e da diversidade como riquezas a serem exploradas e no como o extico a ser observado, negado ou marginalizado. No mesmo sentido, necessrio compreender a importncia de desencadear amplo movimento capaz de dinamizar as qualificaes que existem nesses diferentes espaos e de criar redes de interao que as faam saltar do nvel potencial para o real. Movimento dessa natureza exige solues polticas que traduzam entendimento estratgico das medidas capazes de promover a transformao pretendida e de converter em ao concreta a deciso de parcela significativa dos principais atores do Estado e da sociedade civil. Esse entendimento fundamental, embora nem sempre obtido por consenso. O processo exige anlise das propostas nascidas dos diversos grupos de interesses e opinies que definem os contedos programticos a serem articulados, enquanto as submete, democraticamente, anlise coletiva nos espaos de insero onde, finalmente, e sempre que possvel, formam-se consensos em torno das demandas e necessidades.

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Pensando nessa direo e admitindo a perspectiva das co-responsabilidades sociais e polticas possveis e necessrias, a diretoria da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao (ANPEd) e os responsveis pela Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD) passaram a dialogar de maneira sistemtica, ao longo dos dois ltimos anos, na elaborao de estratgias de aes convergentes e articuladas. A parceria entre essas conceituadas instituies do cenrio da educao nacional no somente aponta para a possibilidade de realizaes de grande alcance social e educacional, mas, sobretudo, revela que as partes envolvidas, tendo desafios comuns e identidades prprias, podem e devem buscar maneiras de um engajamento racional e inteligente para propor aes voltadas para o Brasil dos desassistidos, dos necessitados, dos excludos. Uma criteriosa e cuidadosa anlise dos objetivos e finalidades da ANPEd, como Associao da sociedade civil, da SECAD e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (INEP), na condio de rgos intra-Estado, culminou, aps sucessivas negociaes e convergncia de interesses, em um conjunto de medidas consubstanciadas no Protocolo de Intenes que estas instncias do Estado e da sociedade civil assinaram no decorrer da 28 Reunio Anual da ANPEd em Caxambu (MG), no perodo de 16 a 19 de outubro do corrente ano, objetivando conjugar esforos com vistas reduo das desigualdades educacionais, por meio de estudos, pesquisas, aes e projetos nos diversos campos de atuao da educao. A convico de que uma interveno eficiente do Estado na rea social requer essa articulao com as instncias da sociedade civil, assim como o entendimento de que essas diversas instncias precisam dirigir sua ao no sentido de institucionalizar, via Estado, as reformas desejadas e identificadas como necessrias nas prticas sociais e, no caso especfico, no cotidiano da educao, foi decisiva para que a ANPEd, o INEP e a SECAD adotassem uma racionalidade favorvel a aes mais efetivas no enfrentamento de nossos graves problemas scio-educacionais. A ANPEd, com quase 30 anos de atuao crtica no setor da educao, rene, em seus 21 Grupos de Trabalho (GTs) e um Grupo de

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Estudos (GE), expressivo contingente de professores pesquisadores de todas as regies e estados do pas. Constitui-se, assim, em grande potencial para o desenvolvimento de estudos e pesquisas que podem, entre outros, subsidiar o Estado na formulao e na avaliao de polticas pblicas para o setor. A SECAD, por seu turno, na condio de rgo intra-Estado, igualmente reconhecida, vem consolidando-se por sua relevncia na conduo das polticas educacionais voltadas diversidade, sustentabilidade e cidadania. A parceria reafirma o esforo conjunto de promover a incluso nos sistemas de ensino e em outros programas scio-educativos e culturais. Assim, oferecemos aos educadores brasileiros esta coletnea de artigos originalmente publicados na Revista Brasileira de Educao, editada pela ANPEd ao longo dos ltimos nove anos, fruto do trabalho de pesquisadores comprometidos com a luta pela incluso, como um dos primeiros resultados dos esforos que viemos empreendendo para a articulao interinstitucional. Frente a este fato, somos tomados pelo entusiasmo no caminho que buscvamos e que precisamos seguir: caminho da unidade de propsitos e do consenso progressivo de interesses entre os diversos programas no que eles tm de essencial e que os congrega a luta pela reduo das desigualdades sociais e educacionais, onde quer que se manifestem, na direo do desiderato de uma sociedade justa para todos(as). Braslia, outubro de 2005

Betania Leite Ramalho Presidente da ANPEd

Ricardo Henriques Secretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade SECAD

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AS DESIGUALDADES MULTIPLICADAS*Franois Dubet Universit Segalen, Bourdeaux, France. CADIS, EHESS, Paris, France

Podemos assumir duas posies com relao s desigualdades: tentarmos descrever as desigualdades, suas escalas e registros, seu crescimento e sua reduo, o que supe, para no ficarmos em generalidades, escolhermos uma dimenso particular, como o consumo, a educao, o trabalho;1 ou tambm analisarmos as desigualdades como conjunto de processos sociais, de mecanismos e experincias coletivas e individuais. No primeiro caso, corremos o risco de sermos precisos e sem perspectivas e, no segundo, de sermos vagos, mesmo tentando esclarecer certos aspectos da natureza das sociedades em que vivemos. Escolhi a segunda perspectiva, tentando mostrar a dupla natureza das desigualdades, dentre as quais algumas se reduzem enquanto outras, ao contrrio, se ampliam. Esse movimento no simples conseqncia da globalizao e se encontra no centro de nossa vida social e de suas tenses. preciso tambm situ-lo na experincia dos atores ou de alguns deles, para que da possamos tirar algumas concluses no mbito da anlise sociolgica. Se quisermos escapar do simples recenseamento, ainda que crtico, preciso trans* Les ingalits multiplies, texto da conferncia proferida no XVI Congrs International de lAssociation Internationale des Sociologues de Langue Franaise (AISLF), na Universit Laval, Qubec, Canad, em julho de 2000. Publicado posteriormente por ditions de LAube, Frana, em 2000. 1. Para um balano desse tipo, cf. A. Birh, R. Pfefferkorn, Dchiffrer les ingalits, Paris, Syros, 1995.

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formar as desigualdades num objeto sociolgico, talvez mesmo num objeto de filosofia poltica, j que, nesse campo, a relao com os valores e com a poltica est sempre vivamente presente nas teorias.

1. A DUPLA FACE DA MODERNIDADE Se consideramos a tradio sociolgica como a construo de uma representao e de uma descrio da modernidade, possvel distinguirmos dois grandes eixos, duas afirmativas gerais que transcendem diferentes autores e que no so contraditrias na medida em que evidenciam uma das tenses essenciais da modernidade. 1.1 A primeira das descries, representada por Tocqueville, identifica a modernidade e o prprio sentido da histria com o triunfo obstinado da igualdade. Essa igualdade no constitui a descrio emprica da pura igualdade real das condies de vida, mas sim a extenso de um princpio: o da igualdade dos indivduos a despeito e para alm das desigualdades sociais reais. Isso equivale a dizer que, na modernidade, os indivduos so considerados cada vez mais iguais e que suas desigualdades no podem encontrar justificativa no bero e na tradio. As castas e as ordens se enfraquecem e as classes se impem como um critrio de desigualdade produzido pela prpria ao dos indivduos no mercado. De outro modo, essa descrio remete que prope Louis Dumont quando distingue as sociedades holsticas das sociedades individualistas, as primeiras privilegiando as desigualdades coletivas, tidas como naturais, e as outras concebendo as desigualdades como o produto da competio entre indivduos iguais.2 Na prtica, essa interpretao da modernidade significa que as desigualdades justas, naturais, resultam do achievment, da aquisio de estatutos e no mais da herana e das estruturas sociais no igualitrias em seu princpio. Significa, tambm, que h uma tendncia de os indivduos se considerarem fundamentalmente iguais, podendo legitimamente reivindicar a igualdade de oportunidades e de direitos, reivindicaes estas capazes de reduzir as desigualdades reais. Desse ponto de vista, a igualdade um valor e as desigualdades injustas, ainda por definir, aparecem como um escndalo. claro que o cenrio descrito por Tocqueville foi amplamente confirmado: as2. L. Dumont, Essais sur lindividualisme, Paris, Ed. du Seuil, 1983.

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sociedades modernas so igualitrias, na medida em que estendem o direito igualdade, sobretudo o direito igualdade de oportunidades, aceitando, em termos normativos e polticos, as desigualdades, desde que no impeam os indivduos de concorrerem nas provas da igualdade de oportunidades. Uma descrio otimista da modernidade poderia mostrar, sem dificuldade, que as sociedades democrticas, no sentido de Tocqueville, conseguiram, pouco a pouco, fazer recuar as desigualdades de castas e ordens, a escravido, a ausncia de direitos polticos, a marginalizao das mulheres, as aristocracias de bero. O self made man s pode verdadeiramente vencer nas sociedades igualitrias. 1.2 A segunda face da modernidade representada por Marx. Para ele, as desigualdades de classes so um elemento fundamental, estrutural, das sociedades modernas quer dizer, das sociedades capitalistas. medida que o capitalismo repousa sobre um mecanismo de extrao contnua da mais-valia a partir do trabalho e, sobretudo, em que implica o investimento de uma parte crescente das riquezas produzidas, a oposio entre os trabalhadores e os donos do investimento, entre o trabalho e o capital, faz das desigualdades sociais um elemento funcional do sistema das sociedades modernas. Essa anlise bem mais que uma simples denncia, de resto banal, das desigualdades, porque acarreta uma abordagem da vida social a partir das desigualdades e das oposies entre as classes sociais.3 Bem alm da simples filiao marxista, as classes e as relaes de classes se tornaram o objeto central da sociologia. As classes e as desigualdades de classes so no s aquilo que precisa ser explicado, mas so, sobretudo, o que explica a maior parte das condutas sociais e culturais. Durante aproximadamente um sculo, a explicao das condutas pela posio social dos atores se imps como a prtica profissional mais elementar dos socilogos. As classes e as desigualdades de classes se tornaram, assim, uma espcie de objeto sociolgico total. As classes definem grupos de interesses objetivos e suscetveis de superar o egosmo dos interesses individuais atravs de uma conscincia de classe. Essa superao tornou-se possvel pelos modos de vida que tm em comum; as classes so tambm seres culturais e comunidades. Finalmente, as relaes entre as classes so tambm consideradas como relaes de dominao e as classes sociais vistas como movimentos sociais, como atores coletivos, graas a uma conscincia dos conflitos sociais. Assim, as relaes de classes explicam, ao mesmo tempo, os modos de consumo, as identidades coletivas e individuais3. O duplo desprezo de Marx pela aristocracia ociosa e o lumpemproletariado so suficientes para mostrar que as desigualdades, como tais, no esto no mago de uma teoria centrada na explorao e na dominao.

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(os habitus) e a prpria vida poltica parece estruturada por conflitos de classes e pelas orientaes culturais que eles determinam. Esse tipo de representao constituiu uma matriz geral bastante compartilhada pelos socilogos da sociedade industrial at a metade dos anos de 1960 e por socilogos to diferentes, como Aron, Darhendorf, Lipset ou Touraine. Nessa perspectiva que convm sublinhar, vai bem alm das fileiras marxistas , as desigualdades sociais constituem mais que um objeto particular da sociologia; elas so, de maneira mais ou menos direta, o objeto da sociologia, irrigando a sociologia do trabalho, a sociologia da ao coletiva, a sociologia dos modos de vida, a sociologia da educao e, de maneira geral, todas as sociologias que optam em graus variados por uma viso crtica. Mas estiveram tambm presentes num vasto espao da sociologia funcionalista em que as anlises da estratificao e da ordem social se superpem. 1.3 Essa dupla representao das desigualdades apareceu freqentemente como no contraditria atravs dos temas da diviso do trabalho e da integrao conflituosa. Se consideramos o funcionalismo como uma filosofia social, como nos sugere o prprio Durkheim em Diviso do trabalho social, as desigualdades de classe e a igualdade dos indivduos aparecem como compatveis. Existem desigualdades funcionais e o socialismo, quer dizer, as organizaes sindicais e corporativas, transforma essa diviso em solidariedade. Lembremos que Parsons tentou construir uma teoria das desigualdades definidas a partir de critrios funcionais.4 Uma das idias centrais da sociologia das sociedades industriais a da participao conflituosa e, mais precisamente, das virtudes integrativas do conflito. Como so negociados, os conflitos sociais provenientes das desigualdades engendram um modo de regulao poltica que os torna compatveis com o princpio da igualdade dos indivduos e com as desigualdades funcionais do capitalismo. Em outras palavras, o encontro da igualdade democrtica com as desigualdades capitalistas engendra a formao do Estado-providncia e de um sistema de protees e de direitos sociais. Como as principais desigualdades so oriundas do trabalho, a sociedade salarial organiza a coeso e a integrao sociais a partir do trabalho que, ao mesmo tempo, ope e une os indivduos. Tal o sentido da anlise de Castel que se coloca implicitamente numa perspectiva durkheimiana ao mostrar como o assalariado desenvolve4 T. Parsons, Nouvelle bauche dune thorie de la stratification, Elments pour une sociologie de laction, Paris, Plon, 1955.

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um conjunto de direitos que vo muito alm do simples espao do trabalho.5 Marshall adere a uma viso prxima da democracia industrial ao propor um vasto afresco histrico no qual os direitos do indivduo fecundam os direitos polticos que desembocam nos direitos sociais.6 Em suma, na maior parte das anlises da sociedade industrial, a dupla face da igualdade perfeitamente reconhecida, embora parea, de certa maneira, supervel. Mais ainda, ela est na origem da dinmica social da modernidade, definida simultaneamente por uma aspirao fundamental igualdade dos indivduos e por uma desigualdade estrutural ligada a sua historicidade e aos mecanismos de desenvolvimento do capitalismo. claro que muitas utopias, muitas crticas e alguns movimentos sociais sonharam com o rompimento dessa tenso em nome de uma igualdade pura e perfeita. assim que Durkheim definia o comunismo como uma utopia por oposio ao socialismo, concebido como um movimento.7 Mas, no essencial, a sociologia clssica se construiu mais nessa dialtica que contra ela.8

2. INVERSO DE TENDNCIA? Na Frana, pelo menos, consideramos geralmente que os anos de 1945 a 1975, os Trinta Anos Gloriosos, marcaram o apogeu do sistema de integrao da sociedade industrial com o crescimento dos conflitos de trabalho, das negociaes coletivas e do Estado-providncia em torno de um modelo qualificado, de maneira retroativa, de fordista. Acho essa reconstruo bastante artificial e francamente falsa, tendo, contudo e sobretudo, uma funo dramatrgica: colocar em evidncia a ruptura de um modelo de integrao. Grande parte da vulgata sociolgica francesa mostra a evoluo dos ltimos 25 anos como uma longa crise, como uma decadncia contnua, como um recrudescimento, em todos os sentidos, das desigualdades sociais, como o triunfo de um capitalismo selvagem. Ora, se algumas desigualdades se aprofundaram, outras se reduziram. Para entendermos o que aconteceu, voltemos dupla face da igualdade ou das desigualdades.

5 R. Castel, Les mtamorphoses de la question sociale, Paris, Fayard, 1995. 6 T. H. Marshall, Citizenship and social development, Chicago, Chicago University Press, 1977. 7 E. Durkheim, Le socialisme, Paris, PUF, 1971 (1928). 8. Politicamente, a maioria dos socilogos da sociedade industrial se definiro como sociais democratas, progressistas, intelectuais de esquerda.

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2.1 Apesar da crise econmica e da mundializao, observamos uma ampliao da igualdade sob a forma de uma homogeneizao da sociedade.9 No preciso ser ingnuo ou exageradamente otimista para registrar a extenso da igualdade tocqueviliana. O trao mais marcante a mistura das comunidades e, retomando a expresso de Goblot, a substituio das barreiras por nveis. A classe operria no apenas se reduziu, mas tambm se fracionou e se fundiu no universo das classes mdias inferiores com o desenclave do hbitat operrio. Com a entrada massiva das mulheres no assalariado da atividade terciria e de servios, a maioria dos casais operrios composta por um operrio e uma dessas trabalhadoras.10 Em 1993, a mobilidade estrutural faz com que aproximadamente um de cada dois filhos de operrio e mais de um de cada dois filhos de quadro qualificado no permanea na classe social de seus pais.11 Se os nveis de vida no se igualaram, os modos de vida se alinharam em torno de uma norma definida pelas classes mdias e pelo consumo de massa. A ampliao da influncia da mdia teve seu papel nessa evoluo que se manifesta nos vocabulrios culto e corrente, nos quais a noo de classe operria foi substituda por noes muito mais vagas como camadas populares ou camadas desfavorecidas, o plural reforando a impreciso. O crescimento de uma pobreza escandalosa, aprisionada em bairros de exlio, indica, ao contrrio, que o movimento de homogeneizao se manteve, j que tais pobres no so mais pobres que os pobres de antigamente, mas parecem estar reduzidos a esse estado. Com relao a um grande nmero de critrios, o acesso igualitrio aos bens de consumo cresceu: automveis, moradia, equipamentos domsticos, estrutura de despesas das famlias, lazeres. certo que esse crescimento bem mais contraditrio do que nos faz crer uma leitura superficial dos indicadores sociais, como mostra, de maneira exemplar, o acesso educao. Com a massificao escolar, o acesso aos estudos secundrios e superiores aumentou consideravelmente. Na Frana, o percentual de filhos de operrios que concluem o ensino mdio, que fazem o vestibular ou que obtm um diploma universitrio foi multiplicado por mais de quatro nos ltimos 25 anos. Mas, se olhamos mais de perto, tal democratizao bastante segregativa, pois os filhos das classes populares se encontram nos setores e formaes menos valorizadas e menos teis, enquanto os filhos das9. H. Mendras, La seconde rvolution franaise, 1864-1984, Paris, Gallimard, 1988. 10 P. Bouffartigue, Le brouillage des classes, em P. P. Durand e F. X. Merrien, Sortie de sicle, Paris, Vigot, 1991; J. P. Terrail, Destins ouvriers : la fin dune classe? Paris, PUF, 1990. 11 A. Desrosires, L. Thevenot, Les catgories socioprofessionnelles, Paris, La Dcouverte, 1996.

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categorias superiores adquirem uma espcie de monoplio das carreiras elitistas e rentveis.12 A igualdade cresceu porque a educao no mais um bem raro, beneficiando a todos, mas ela se tornou um bem muito mais hierarquizado quando as barreiras foram substitudas pelos nveis. Um raciocnio idntico poderia ser aplicado a outros setores, quer se trate do consumo de bens ou de cultura, do lazer ou de marcas de roupa. Da mesma maneira, as mulheres passaram a ter acesso a grande nmero de setores que lhes eram, at ento, fechados, sem que com isso a igualdade tenha sido reforada. Mas, se consideramos que o acesso aos bens e aos setores de atividade, at ento raros ou proibidos, um componente da igualdade, parece que a igualdade das esperanas e dos direitos tenha se reforado apesar do que chamamos de crise. 2.2 Em compensao, as transformaes da estrutura social fizeram emergir outras configuraes da desigualdade alm das presentes no modelo clssico da sociedade industrial. Mais que as desigualdades propriamente ditas, a fragmentao do mercado de trabalho que marca os ltimos anos. Quando a integrao em torno de um estatuto estvel e de direitos aferentes parecia se tornar regra comum, vimos multiplicar os mercados de trabalho. Podemos no somente opor um mercado primrio que oferece empregos estveis, bem pagos, abrindo carreiras e direitos, a um mercado secundrio, composto de empregos precrios e instveis,13 mas ainda observar que cada um desses mercados parece se dividir ao infinito pelo jogo da terceirizao, da interinidade, dos estgios, dos dispositivos de apoio social, do trabalho a domiclio. Em um mesmo conjunto produtivo e em um mesmo tipo de atividade, encontraremos estatutos extremamente diferentes segundo os graus de flexibilidade da mo-de-obra, os nveis de formao e as posies das empresas. A segmentao do mercado de trabalho no se opera apenas em funo de necessidades econmicas, ela ativa e exacerba diferenciaes sociais em funo do sexo, da idade, do capital escolar, da origem tnica.14 Com qualificao igual, os salrios dos homens e das mulheres atingem uma variao de 5 a 15%. Em 1975, os contratos de durao indeterminada atingiam 80% dos trabalhadores, atingindo hoje apenas 65%. Entre o fim da vida profissional ativa e a aposentadoria criou-se um perodo com estatutos12. P. Merle, Le concept de dmocratisation de linstitution scolaire, Population, v. 55, n 1, 2000. 13. S. Berger, M. J. Priore, Dualism and discontinuity, em Industrial society, Cambridge, Cambridge University Press, 1980. 14. A. Perrot, Les nouvelles thories du march du travail, Paris, La Dcouverte, 1992; M. Maruani, H. Mendras, op. cit.; E. Reynaud, Sociologie de lemploi, Paris, La Dcouverte, 1993.

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os mais variados, o mesmo acontecendo, alis, para os jovens, antes de entrar num emprego estvel.15 Quanto ao desemprego, ele ainda a mais flagrante das desigualdades, atingindo grupos sociais bastante especficos. Na realidade, j no podemos opor to claramente, como acreditvamos, os assalariados aos proprietrios dos meios de produo, nem mesmo em razo da extenso do assalariado. Na maioria das sociedades ocidentais, criou-se uma fronteira, mais ou menos visvel, opondo os integrados aos excludos. Mesmo que tal fronteira no esteja demarcada e que muitos indivduos circulem de um mundo para o outro, a estrutura social das nossas sociedades se latino-americaniza com o crescimento da pobreza, da incerteza, da economia informal. O declnio da sociedade salarial acarretou um deslocamento da questo social que se assemelha em vrios pontos ao da poca da entrada na sociedade industrial, na medida em que o ncleo dos problemas desloca-se da fbrica para a cidade, para as periferias ou centros de cidade degradados, onde se concentram os grupos mais frgeis, mais pobres, mais estigmatizados. H vinte anos, a Frana vem se habituando s rebelies urbanas, s violncias escolares e ao desemprego endmico. As formas tradicionais do Estado-providncia esto ameaadas tanto no plano econmico, quanto sob o ponto de vista de sua legitimidade ideolgica. A estrutura de classes das sociedades industriais passa por uma mutao que impe a distino entre vrios grupos constitudos a partir dos contratos de trabalho, dos rendimentos e das posies dos setores de atividade na competio econmica.16 Relaes de classes especficas se estabelecem no mundo dos competitivos entre setores econmicos atuantes no plano internacional. Outras se estabelecem no mundo dos protegidos, dos que obtm seu estatuto por sua influncia poltica, como os funcionrios, o pessoal da sade, os agricultores generosamente subvencionados. A dominao desses dois setores sobre o resto da sociedade engendra um movimento geral de externalizao dos custos e de terceirizao na direo de um setor social precrio, atingindo tanto os empregadores, quanto os empregados. Finalmente, constitui-se um setor excludo, assistido pelas polticas sociais, que se esfora para conquistar certa autonomia dentro da economia informal. s desigualdades que opem esses mundos se acrescentam as desigualdades internas a cada um deles e, sob este aspecto, as pessoas vivem num15 S. Paugam, Le salari de la prcarit; les nouvelles formes de lintgration professionnelle, Paris, PUF, 2000. 16 Cf. P. N. Giraud, Lingalit du monde, Paris, Gallimard, 1996; R. Reich, Lconomie mondialise, Paris, Dunod, 1993.

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duplo registro de desigualdades. Alm disso, esse tipo de representao das desigualdades ultrapassa, em muito, o simples quadro das sociedades nacionais em razo das implantaes e deslocamentos das empresas e da constatao de que os excludos formam freqentemente enclaves vindos do Sul pobre para o Norte rico, enquanto que os plos de riqueza e de desenvolvimento do Sul podem aparecer como enclaves do Norte rico num Sul pobre. Do ponto de vista analtico, o encontro de uma igualdade tocqueviliana contnua com as transformaes da estrutura social acarretou o declnio das anlises em termos de classes. Os anos de 1970 foram dominados pela tentativa e pelo fracasso de uma renovao da teoria de classes marxista.17 Hoje, a anlise das desigualdades (no sua descrio) confrontada separao entre a estratificao e as relaes de dominao, separao daquilo que a noo de classe total visava justamente unificar. As escalas de estratificao procuram combinar vrios registros e estabelecem fronteiras, muitas vezes incertas, como as que separam os operrios dos empregados de servios.18 As desigualdades de rendimentos variam sensivelmente, se levamos em conta salrios, rendas e rendimentos indiretos. Dessa maneira, na Frana, enquanto as diferenas de salrio diminuram, 10% das famlias continuam a deter metade do patrimnio e as desigualdades se tornam ainda mais marcadas, se levamos em conta o critrio de idade.19 Mais que nunca, no nos possvel construir escalas de estratificao confiveis a partir da idia de classes antagnicas. As relaes de dominao nem por isso desapareceram, pelo contrrio; mas j no permitem que as desigualdades reais sejam descritas objetivamente. A dominao j no se insere nas relaes de classes concretas e estveis. Os problemas da estratificao e da mobilidade se destacam dos conflitos estruturais e a anlise das desigualdades no conduz a uma viso organizada e estruturada das relaes sociais.20 Do mesmo modo que as desigualdades so mltiplas, os registros da dominao no so homogneos, como deixa claro a teoria dos capitais de Bourdieu.21

17 Na Frana, o nome de Poulantzas que o mais associado a esse esforo. 18 A. Desrosires, L. Thevenot, op. cit. 19 A. Bayet, Lventail des salaires et ses dterminants, La socit franaise, Donnes sociales, INSEE, 1996; F. Guillaumat-Taillet, J. Malpot, V. Paquel, Le patrimoine des mnages: rpartition et concentration, La socit franaise, Donnes sociales, INSEE, 1996. 20 A. Touraine, La socit postindustrielle, Paris, Denol, 1969. 21 O fato de que um destes capitais desempenha papel determinantetraz de volta uma postura, em ltima anlise, marxista clssica. Se consideramos que eles so independentes, a questo da ligao entre a dominao e a estratificao coloca-se novamente. Parece que a anlise de Bourdieu oscila entre essas duas posies.

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3. AS DESIGUALDADES MULTIPLICADAS Por um lado, as desigualdades pr-modernas continuam a se reduzir e a aspirao igualdade de oportunidades e direitos se fortalece. Por outro lado, as desigualdades funcionais no se reduzem e, freqentemente, se consolidam, sobretudo nas duas extremidades da escala social. O encontro desses dois processos exacerba a sensibilidade s desigualdades, como indica o desenvolvimento de novos movimentos sociais: as lutas feministas, os movimentos comunitrios ou os combates das minorias. Freqentemente ligada a esses movimentos, s vezes influenciada pela sociologia anglosaxnica, a sociologia francesa dedicou inmeros trabalhos ao estudo das novas desigualdades. Tais desigualdades no so evidentemente novas, so mesmo, na maioria das vezes, menos pronunciadas que as de antigamente, como no caso das desigualdades sexuais, mas constituem um novo objeto de pesquisa e de anlise. 3.1 A posio dominante das anlises, em termos de classe, foi abalada pela introduo de novos critrios de definio das desigualdades. Em trinta anos, a populao ativa se feminizou consideravelmente alcanando 44,7% em 1994. No entanto, todos os estudos mostram que essa ascenso das mulheres indo, incontestavelmente, ao encontro de uma extenso da igualdade, no elimina, de fato, a maioria das desigualdades. Alm das diferenas salariais, a diferenciao dos setores de emprego se manteve, diramos mesmo, se aprofundou. As mulheres dominam os servios, so majoritrias na educao e na sade, mas no entram na produo, na poltica ou em outros setores que continuam predominantemente masculinos. Poderamos falar de emancipao segregativa ou de emancipao sob tutela.22 Pior ainda, a autonomia das mulheres assalariadas freqentemente se traduziu por uma sobrecarga de trabalho e por opresses privadas, j que a diviso do trabalho domstico no foi sensivelmente afetada por tal emancipao. Essa autonomia tambm aumentou consideravelmente a vulnerabilidade das mulheres chefes de famlia, visto que so menos protegidas pela tradio e mais afetadas pela pobreza em caso de dificuldades econmicas e de divrcio. De maneira geral, os domnios privados e pblicos continuam bastante distantes e especficos, sexualmente marcados.23 Quanto mais se

22 R. M. Lagrave, Une mancipation sous tutelle. Education et travail des femmes au XXe sicle, em G. Duby, M. Perrot (ed.), Histoire des femmes en Occident, Le XXe sicle, Paris, Plon, 1992. 23 F. Hritier, Masculin, fminin, la pense de la diffrence, Paris, Odile Jacob, 1996.

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refinam os estudos, mais se evidencia a manuteno ou a consolidao de microdesigualdades. Assim, as meninas so as grandes beneficirias da massificao escolar; mas, ao mesmo tempo em que obtm melhores resultados que os rapazes, elas no se orientam para carreiras mais rentveis, sobretudo as de formao cientfica.24 Os estudos mostram que as mulheres no ganharam em todas as frentes e que essa incontestvel igualdade paga por novas desigualdades, tanto mais insuportveis por entrarem em choque com uma progresso objetiva da igualdade. As desigualdades tnicas sofreram um processo semelhante. Na Frana, de maneira geral, os imigrantes e, sobretudo, seus filhos se integram progressivamente sociedade francesa.25 Mas tal integrao, construda a partir de indicadores bastante globais, no impede que uma forte segregao se instale com a formao de zonas de exlio tnicas nos bairros mais pobres e, sobretudo, com a demonstrao patente da segregao e do racismo nas esferas da moradia e do emprego.26 Paradoxalmente, nesse domnio, a conscincia das desigualdades est mais viva hoje que ontem porque, ao mesmo tempo em que so integrados, os imigrantes so destinados a certos bairros, a certos empregos e esbarram quotidianamente em inmeras manifestaes de racismo. Esse paradoxo remete a um mecanismo, ainda novo para a Frana, o da transformao dos imigrantes em minorias.27 Enquanto os imigrantes eram acolhidos num processo de integrao econmica especfica, associado s aspiraes ligadas aos sonhos de volta, seus filhos so, de maneira considervel, assimilados cultura do pas que os acolhe, mesmo se sentindo excludos da participao econmica e social. A gerao dos pais era integrada e no assimilada; a dos filhos, assimilada, no se sente integrada, percebendo-se como uma minoria excluda, rejeitada, que pode devolver aos dominantes os estigmas que lhe so atribudos. Enquanto os imigrantes constituem a faixa inferior da classe proletria, as minorias se sentem definidas apenas por suas identidades e estigmatizaes tnicas e culturais. A distribuio das desigualdades entre as faixas de idade transformou-se profundamente durante os ltimos 30 anos, em funo das polticas de emprego e das formas de redistribuio social. Enquanto os jovens dos trinta gloriosos, nascidos logo aps a guerra, beneficiaram-se de condies bastante favorveis com relao aos mais velhos, houve uma inverso da24 25 26 27 M. Duru-Bellat, Lcole des filles, Paris, lHarmattan, 1990. M. Tribalat, De limmigration lassimilation, Paris, La Dcouverte, 1996. P. Bataille, Le racisme au travail, Paris, La Dcouverte, 1997. F. Dubet, Immigration, quen savons-nous? Paris, La Documentation Franaise, 1989.

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tendncia e a idade torna-se um fator importante das desigualdades. Os jovens so mais atingidos pelo desemprego que os adultos e, sobretudo, esto condenados a um longo perodo de incerteza e de precariedade antes de conseguirem um emprego estvel.28 A demografia, a situao econmica e as polticas sociais se conjugam para explicar essas novas desigualdades, pois tudo acontece como se a Frana tivesse escolhido castigar os jovens. claro que no se trata verdadeiramente de uma escolha, mas, sim, da conseqncia de mltiplas escolhas que acarretaram principalmente uma desvalorizao dos diplomas e um crescimento do custo de entrada na vida adulta, definida como o momento em que se podem engajar projetos de vida. Enquanto nos anos de 1960 os jovens eram empregados com salrios relativamente prximos aos dos adultos, hoje, o diferencial se aprofundou de forma considervel.29 Tais desigualdades globais, entre as diferentes faixas de idade, no impedem, evidentemente, que se formem ou se mantenham outras desigualdades dentro de cada grupo de idade, em funo dos sexos, dos tipos de formao, do emprego. A descrio das desigualdades inesgotvel. 3.2 Poderamos alongar indefinidamente a lista das novas desigualdades, conscientes de que sempre correramos o risco de contrariar esse ou aquele grupo por no reconhec-lo como vtima de desigualdades. Mas a anlise dessas mltiplas desigualdades transformou sensivelmente o olhar dos socilogos, porque a maioria delas no se reduz nem ao bero nem posio de classe, mas resulta da conjugao de um conjunto complexo de fatores, aparecendo mesmo, muitas vezes, como o produto, mais ou menos perverso, de prticas ou polticas sociais que tm como objetivo, justamente, limit-las. Mesmo que a crtica dos efeitos perversos do Estado-providncia nunca seja desprovida de reservas, foroso admitir que alguns desses efeitos perversos no podem ser ignorados, especialmente os efeitos de dependncia e de estigmatizao e, sobretudo, que tais polticas so freqentemente favorveis queles que so menos desfavorecidos. A anlise dos mecanismos de transferncias sociais mostra que, freqentemente, so as classes mdias as principais beneficirias no setor da educao ou da sade, por exemplo.30 A sociologia da educao ilustra bem tal transformao da visada sociolgica. Por muito tempo, o paradigma da reproduo dominou a sociologia da educao, atribuindo unicamente s desigualdades sociais a28 L. Chauvel, Le destin des gnrations. Structure sociale et cohortes en France au XXe sicle, Paris, PUF, 1998. 29 C. Baudelot, R. Establet, Avoir trente ans en 1968 et 1998, Paris, Ed. du Seuil, 2000. 30 Cf. X. Gaullier, La machine exclure, em LEtat-providence, Arguments pour une rforme, Paris, Le Dbat/ Gallimard, 1996; prface de F.X. Merrien G. Esping-Andersen, Les trois mondes de lEtat-providence, Paris, PUF, 1999.

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responsabilidade pelas desigualdades escolares. O paradigma do individualismo metodolgico props uma alternativa terica que no mudava o raciocnio nesse ponto. Nos dois casos, a escola era considerada como uma caixa-preta neutra que simplesmente gravava as desigualdades sociais sob a forma de desvantagens culturais num caso e de agregao de clculos racionais socialmente situados no outro. Em reao a teorias que podem levar a certo fatalismo poltico e sob a influncia da nova sociologia da educao inglesa, numerosos estudos se empenharam em mostrar que a escola desempenhava papel prprio na produo das desigualdades.31 Verificou-se primeiro que a oferta escolar estava longe de ser homognea, mesmo num sistema republicano, reconhecido como homogneo: a oferta de melhor qualidade quando destinada aos mais favorecidos, e isso apesar dos esforos de discriminao positiva. Em seguida, toda uma microssociologia da educao mostrou que as interaes escolares e as expectativas recprocas por parte dos professores e alunos beneficiavam os alunos oriundos das classes mdia e superior. Diversos efeitos no igualitrios foram evidenciados: efeito classe, efeito estabelecimento de ensino, efeito professor. Dessa maneira, a escola acrescenta s desigualdades sociais suas prprias desigualdades. Por muito tempo, pensamos que uma oferta igual pudesse produzir igualdade. Hoje percebemos que no s ela no realmente igual, mas que sua prpria igualdade pode tambm produzir efeitos no igualitrios somados aos efeitos que ela deseja reduzir. Deslizamos assim, sem nos darmos conta, para uma filosofia poltica menos centrada na igualdade que na eqidade. 3.3 Coloquemo-nos agora do lado dos atores sociais e dos indivduos. Se exclumos os grupos situados nos dois extremos da escala social e das relaes de dominao, a incongruncia estatutria torna-se a regra.32 Sabemos que Weber distinguiu classe, status e poder como dimenses analiticamente independentes da posio de um indivduo. A intuio weberiana hoje uma realidade.33 A organizao das desigualdades em torno simplesmente das classes sociais aparece como um fenmeno historicamente contingente em razo do predomnio da sociedade industrial, da manuteno das barreiras, das distncias aristocrticas e da organizao da vida poltica em termos de representaes, mais ou menos grosseiras, dos interesses de classes.31 M. Duru-Bellat, A. Van-Zanten, Sociologie de lcole, Paris, Armand Colin, 1999. 32 G. E. Lenski, Status cristalizations : a non vertical dimension of social status, American Sociological Review, XIX, 4, 1954. 33 R. Crompton, Class and stratification, Londres, Polity Press, 1993.

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Quando essas diversas dimenses se dissociam, elas o fazem em cada grupo e em cada indivduo, cujas posies, nas diversas escalas, j no so necessariamente congruentes. Uma pesquisa realizada nos anos de 1980, junto a operrios americanos, revela que os mesmos se definem como trabalhadores em termos de identidade profissional, comoclasse mdia em termos de consumo e como povo em termos de participao poltica.34 O ator est mais ou menos em condio de igualdade com os outros, em funo das diferentes esferas que constituem sua situao: seu sexo, sua idade, seu emprego, seu trabalho, sua formao e suas origens. medida que tal diversidade se depara com a afirmao da igual dignidade de todos como postulado central das sociedades democrticas, entendemos perfeitamente porque a identidade aparece menos dada que construda e reivindicada pelos indivduos. Segundo seus projetos e contextos de ao, os indivduos optam por mobilizar e priorizar tal ou qual dimenso de sua identidade e de sua experincia. Enquanto os operrios podiam agir como operrios porque no tinham, ento, outras identidades disponveis, hoje, a opo por agir e se expor enquanto mulher, trabalhadores, breto, religioso, diplomado. tambm por tal razo que os temas dos estigmas e da imagem de si adquiriram tamanha amplitude. A construo e exposio de si e de seu visual no se explica apenas pela submisso ao consumo de massa, mas tambm pela necessidade de expor, constantemente, ao olhar dos outros, a identidade escolhida. Com referncia aos movimentos sociais, tambm eles perderam o carter total e a vocao para englobar a totalidade de uma experincia e de um ser; eles se multiplicaram, assumindo tal ou qual dimenso da identidade individual o trabalho, a sexualidade, o status profissional, as escolhas ticas sem que nenhuma delas chegue a se impor s demais. Esse trabalho de construo de si, atravs da multiplicidade dos registros das desigualdades, por sua vez bastante desigual, pois mobiliza recursos tambm distribudos de maneira muito desigual. Alis, uma das caractersticas da expresso moderna das desigualdades a de ter tirado dos pobres a capacidade de construir plenamente para si uma identidade. Como nomear os moradores dos conjuntos habitacionais de periferia conhecidos como difceis? Habitualmente, e no fundo de maneira inaceitvel, eles so caracterizados pelos problemas tal como definidos pelas polticas sociais que deles se incumbem: pobres, desempregados, imigrantes, famlias desestrutu34 E. Hobsbawm, Farewell to the Labor Movement?, Politics for a rational left, Londres, Verso, 1989.

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radas, quando no delinqentes. Essas pessoas so definidas pelas categorias de uma desvantagenlogia que corresponde aos programas das polticas pblicas. A utilizao das classificaes objetivas j no resolve, pois esse mundo comporta, ao mesmo tempo, operrios e empregados, desempregados, famlias assistidas, outros que se viram, e se ningum rico, nem todos so pobres, pois alguns fazem percursos de mobilidade ascendente, enquanto outros a maioria se sentem resignados com tal situao. Ser que eles formam uma comunidade popular? Certamente no, pois esse mundo fracionado numa hierarquia sutil e complexa no compartilha as mesmas normas. Ele pe em prtica, de bom grado, identificaes negativas, recusando-se a se identificar com seus vizinhos, principalmente com os imigrantes, cujos laos comunitrios so estigmatizados e geralmente considerados perigosos. A homogeneizao e, na Frana, as polticas pblicas romperam os mecanismos de formao das comunidades populares, sem falar da mdia que apenas lhes devolve a imagem de seus problemas. Finalmente, aqueles que poderiam desempenhar um papel na construo dessas identidades, os mais dinmicos, os mais qualificados e os mais capazes de exercer uma influncia, deixam esses bairros logo que podem.35 Do ponto de vista subjetivo, os moradores de tais bairros se definem como de classe mdia, partilhando ou procurando partilhar o modo de vida das classes mdias. Essa identificao ainda mais forte por estar no mago das definies de normalidade emitidas pela escola e pelos servios sociais. Mas, ao mesmo tempo, esses atores no esto em condies de satisfazer tais aspiraes devido a sua situao de pobreza e acabam interiorizando os estigmas que lhe so impostos, descarregando-os em seus vizinhos. A partir da, sua experincia limite das desigualdades vivida como colonizao interna, colonizao da experincia vivida, j que se identificam com um ideal igualitrio que as invalida. Mesmo que sintam com intensidade a distncia que separa seu desejo de igualdade de suas desigualdades reais, tais desigualdades esto muito fragmentadas para poderem reunificar sua experincia e para engendrarem uma mobilizao contra uma condio tida como intolervel. Na realidade, salvo a violncia dos jovens, os mais desprovidos esto praticamente privados de capacidades coletivas de protesto.

35 C. Avenel et al., Le DSQ des Hauts de Garonne, analyse sociologique, Bordeaux, CADIS, LAPSAC; F. Dubet, Lapeyronnie, Les quartiers dexil, Paris, Ed. du Seuil, 1992.

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4. A EXPERINCIA SOCIAL DAS DESIGUALDADES Nunca a contradio entre as duas faces da igualdade (ou das desigualdades) foi to aguda. Nunca o confronto entre a afirmao da igualdade dos indivduos e as mltiplas desigualdades que fracionam as situaes e as relaes sociais foi to violento e to ameaador para o sujeito. 4.1 A obrigao de ser livre, de ser sujeito, de ser o autor de sua vida, que caracteriza o prprio projeto da modernidade, indissocivel da afirmao da igualdade de todos. Nas sociedades democrticas, os indivduos s podem aspirar igualdade se so livres; se, como diz Rousseau, todo homem nasce livre e dono de si mesmo. Esse domnio de si mesmo, essa capacidade de ser soberano, no a garantia de igualdade real, mas a condio de igualdade de oportunidades e, pois, de desigualdades justas, por decorrerem de uma competio entre iguais. neste sentido que a liberdade e a igualdade, que podem estar freqentemente em oposio, podem estar tambm em harmonia. A igualdade engendra a obrigao de ser livre e de ser para si mesmo sua prpria medida. s falsas hierarquias s podemos opor as hierarquias justas, fundadas no mrito, na responsabilidade e na liberdade dos indivduos. Da Reforma ao Iluminismo, a concepo moderna do indivduo sempre afirmou o vnculo de necessidade da igualdade e da liberdade, o que gera uma definio herica do sujeito que se constri a si mesmo, que se torna o autor de sua prpria vida, de seus sucessos como de suas derrotas. O fato de tal ideal nunca ter sido plenamente realizado no impede, longe disso, que ele se imponha como a nica norma da igualdade suscetvel de produzir desigualdades, tambm elas aceitveis. , sem dvida, porque o esporte uma encenao dramtica deste confronto entre a igualdade dos competidores e a hierarquia justa dos desempenhos, que ele aparece como o cenrio principal no qual se confrontam os deuses da democracia (a igualdade) e os do capitalismo (o mrito e o trabalho). Mas a obrigao de ser livre como condio da igualdade coloca os indivduos em uma srie de situaes subjetivas de prova que so as provas da igualdade ou, mais exatamente, as provas decorrentes do confronto entre o desejo de igualdade e as desigualdades reais. Quanto mais a liberdade e a autonomia do sujeito se impem, mais essa prova expe a pessoa e pode ser vivida como destruidora.

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4.2 As provas da igualdade podem ser demonstradas em uma srie de configuraes especficas. 4.2.1 A conscincia infeliz. Como a igualdade exige a auto-responsabilidade, ela priva, progressivamente, os indivduos da consolao inerente s sociedades legitimamente no igualitrias e no democrticas. Os grandes sistemas de consolao, religiosos e polticos, que explicam e justificam as desigualdades, independentemente da ao dos indivduos, j no conseguem explicar, de maneira eficaz, as desigualdades sociais e os fracassos dos indivduos. O indivduo se considera, ento, responsvel por sua prpria infelicidade e se deixa invadir pela conscincia infeliz. O triunfo do princpio de igualdade dissocializa a experincia das desigualdades numa sociedade que permanece fundamentalmente no igualitria, mas que tende a produzir desigualdades atravs de uma srie de provas individuais e no mais de lutas coletivas ou, mais precisamente, que tende a diluir as lutas coletivas em provas pessoais. Observemos o caso da experincia das desigualdades escolares;36 durante muito tempo, o sistema escolar francs foi estruturalmente no igualitrio, estando o acesso s diferentes carreiras diretamente determinado desde o bero: a cada categoria social um tipo de escola e, conseqentemente, um tipo de chance de sucesso. Assim, as crianas do povo iam escola do povo, as crianas da burguesia ao liceu e alguns indivduos particularmente dotados e aplicados escapavam dessa canalizao social das carreiras escolares. Como, desde o nascimento, os indivduos no eram considerados iguais perante a educao, os insucessos escolares podiam ser facilmente explicados por causas sociais, pela injustia do sistema e, s vezes, pelas injustias naturais, sendo as crianas do povo consideradas menos dotadas e menos ambiciosas que as da burguesia. A vantagem de tal sistema era a de no questionar a auto-estima dos alunos sem acesso s carreiras mais valorizadas que, alis, no eram feitas para eles. Cada um podia explicar seus insucessos como conseqncia de causas sociais, de causas exteriores a ele e a seu prprio valor. Um adolescente que se tornasse operrio e uma jovem que se tornasse me e dona-de-casa, ao final da escolarizao, podiam culpar as injustias sociais quando tal destino lhes parecesse injusto, sem se verem, pessoalmente, como a causa de tal percurso de vida.36 F. Dubet, D. Martuccelli, A lcole; sociologie de lexprience scolaire. Paris, Ed. du Seuil, 1996; F. Dubet, Sentiments de justice dans lexprience scolaire, em D. Meuret (ed), La justice du systme ducatif, Bruxelles, De Boeck, 1999.

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Tudo muda na escola democrtica de massa que se empenha, e no s formalmente, em oferecer condies iguais de oportunidades. Os alunos j no so selecionados na entrada do sistema escolar, mas, sim, durante os estudos, em funo unicamente de seu desempenho. evidente que os socilogos no ignoram que essa competio socialmente determinada pelas desigualdades sociais, o que, contudo, no impede que, do ponto de vista dos indivduos, seus sucessos e insucessos dependam essencialmente de seu desempenho e de sua qualidade. No fracasso na escola porque sou filho de trabalhador sem acesso ao liceu e condenado a ganhar a vida precocemente, mas porque meu desempenho fraco. Ento, como conciliar a afirmao da igualdade de todos com a desigualdade do mrito de cada um, como tornar compatveis as duas faces da igualdade? Em um sistema republicano que afirma profundamente sua vocao democrtica, como no caso francs, o trabalho que serve de mediador entre esses dois princpios opostos. As desigualdades so justas e no colocam em dvida a igualdade dos indivduos se admitirmos que o desempenho dos alunos resulta do seu empenho voluntrio durante a trajetria escolar..37 Enquanto os indivduos pensam que suas desigualdades escolares decorrem do trabalho que realizam livremente, a igualdade fundamental est garantida. Quando descobrem, o que comum, que no so iguais aos demais apesar do trabalho que realizam, s lhes resta duvidar de seu prprio valor, de sua prpria igualdade. Eles s podem se auto-responsabilizar, se sentir inferiores, o que lhes deixa a opo entre a retirada de um jogo em que esto perdendo e a violncia, a destruio desse jogo. porque as transformaes dos mecanismos de formao das desigualdades individualizam as desigualdades, que as desigualdades levam perda de auto-estima e conscincia infeliz. A meritocracia escolar pode ser um princpio libertador, o que no impede que legitime as desigualdades, na medida em que atribui sua responsabilidade s prprias vtimas.384.2.2 O desprezo. O apelo a uma concepo herica do sujeito igual amplia a experincia do desprezo, j que a pessoa no conta mais com estruturas sociais e culturais no igualitrias que a impediriam de ser livre e

37 Dominique Mda insiste nesse papel do trabalho como princpiode justia na economia poltica clssica, principalmente Adam Smith, em Le Travail, une valeur en voie de disparition, Paris, Aubier, 1995. 38 claro que esse tipo de raciocnio no vale apenas no espao escolar. Pode tambm dizer respeito a todas as experincias que colocam frente a frente a igualdade dos sujeitos e suas desigualdades de desempenho: o esporte, o trabalho, mas tambm o amor que uma forma de competio na qual cada um deve confirmar seu prprio valor.

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responsvel. Quando cada um responsvel por sua prpria vida, se expe ao desprezo que acompanha o fato de no ser digno dessa liberdade e de no poder assumir essa igualdade.39 Ao mesmo tempo que fizeram apelo igualdade, os intelectuais da modernidade manifestaram um gosto aristocrtico pronunciado pelas vanguardas e um desprezo igualmente pronunciado, pelas massas e preferncias pequeno-burguesas. De fato, se cada um deve ser autnomo, importa primeiro que seja reconhecido como uma pessoa especial, original, capaz de construir sua vida sem se submeter a outros princpios que no os seus prprios. Enquanto a vergonha vem do sentimento de ser desmascarado, o desprezo vem do desejo de reconhecimento de si, do seu carter nico; a vergonha surge quando o indivduo destitudo de seu papel, o desprezo, quando ele reduzido a seu papel, quando no reconhecido. Como est, inevitavelmente, ligado ao princpio de auto-responsabilidade, o desejo de igualdade traz consigo uma exigncia contnua de reconhecimento. Assim, a prova da dominao e das desigualdades injustas primeiramente vivida como uma manifestao de desprezo, de reduo da pessoa ao seu papel e ao olhar do outro. Os que afirmam que o triunfo do individualismo democrtico esvazia o trabalho de todo estado de conflito enfraquecendo as comunidades se enganam profundamente. Para alm das reivindicaes de salrio, existem sempre lutas contra o desprezo, contra a ignorncia do valor especfico dos indivduos. Este , freqentemente, o ponto central dos protestos e articulaes que escapam aos jogos sindicais tradicionais. Os pobres no aceitam ser reduzidos ao status de casos sociais, ser ignorados e, sobretudo, ser obrigados a se afirmarem como sujeitos portadores de projetos, no momento mesmo em que tal capacidade lhes tirada. Os alunos de liceu vem as hierarquias escolares como cadeias de desprezo nas quais cada um despreza o outro para se sentir menos desprezvel. Basta observarmos a obsesso do semblante e do desafio que comanda a sociabilidade dos jovens da periferia, para vermos at que ponto o desprezo tido como o sentimento social elementar daqueles que esbarram na contradio aguda entre igualdade fundamental e desigualdades sociais.40 Mas, enquanto a vergonha socializa a experincia social, o desprezo a dissocializa, transforma-a em um caso de pura auto-imagem, degradando a experincia de classe em uma srie de interaes narcsicas ou de afrontamento, como nas anlises de Goffman, cuja sociologia mais interessante quando concebida39 A. Honneth, La lutte pour la reconnaissance, Paris, Cerf, 2000. 40 F. Dubet, La galre, Paris, Fayard, 1987.

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como uma antropologia da modernidade que como expresso de um paradigma sociolgico.4.2.3 Retirada e violncia. Nas situaes dominadas pela conscincia infeliz e pelo desprezo, sobretudo nos jovens, quando os valores individuais so colocados prova, vrias estratgias so delineadas conforme o modelo de Hirschman.41 Muitos atores preservam sua auto-estima, recusando-se a participar de um jogo no qual acham que vo perder sempre. Assim, alguns alunos decidem que no vo se esforar para que seu desempenho no coloque em questo seu valor, sua igualdade fundamental; eles decidiram fracassar na escola, o que lhes evita serem afetados por seus insucessos. Enquanto um mau resultado numa tarefa insuportvel, ele se torna insignificante, quando o indivduo decidiu no cumprir com seu dever. Mais que tal forma radical de retirada, observamos na escola e tambm nos bairros desfavorecidos todo um conjunto de estratgias que consiste em fazer de conta. Os alunos negociam um conformismo escolar limitado em troca de notas mdias que lhes assegurem uma sobrevivncia tranqila no sistema. Ameaando os professores de se retirarem completamente do jogo ou de serem violentos, acabam obtendo um equilbrio precrio no qual uma boa vontade explcita lhes garante notas mdias. Da mesma maneira, os usurios dos servios sociais negociam certa boa vontade em troca de uma assistncia indexada ao seu desejo de se virarem. Nesse caso, como na escola, ningum se engana num jogo cuja forma se mantm, mas cujo contedo se esvazia, enquanto as aparncias so mantidas.

Outros alunos rompem o jogo pela violncia que aparece como o nico meio de recusar a imagem negativa de si, provocada por seu insucesso e sua liberdade. Os alunos invalidam o jogo escolar, agredindo os professores e transformando-os em inimigos. A violncia possibilita salvar sua dignidade e tambm engrandecer seu autor perante o grupo de iguais. Podemos, no entanto, nos perguntar por que tal violncia no se transforma em conflito, por que no coloca em questo os mecanismos estruturais das desigualdades escolares. Justamente, o recurso violncia se explica por tal impossibilidade e pelo fato de as provas da igualdade serem provas individuais numa sociedade ao mesmo tempo democrtica e competitiva. No fundo, os alunos violentos rompem esse jogo porque acreditam nele tanto quanto os outros, se no mais. Na violncia, eles invertem o jogo que os destroe, mas no41 A. Hirschman, Exit, Voice and Loyalty, Cambridge, Cambridge University Press, 1970.

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propem nenhum outro, como o mostra a cultura do desafio que organiza a vida e o modo de consumo deles. 4.3 Se admitimos os fundamentos de tal raciocnio, temos tambm de admitir sua conseqncia principal, ou seja, a tenso entre os dois lados da igualdade e o crescimento dessa tenso medida que a igualdade democrtica se desenvolve e que o mercado e o mrito estendem seu reinado. Do ponto de vista dos indivduos e de suas experincias, tal contradio s pode ser superada pelo apelo ao respeito e ao reconhecimento. O respeito se impe desde que as desigualdades de mrito e de desempenho no devam afetar a igualdade entre as pessoas. Desse ponto de vista, o desprezo aparece como confuso entre as esferas de justia, quando as desigualdades de desempenho desqualificam os indivduos enquanto sujeitos livres e iguais. Por exemplo, os alunos admitem as classificaes e as hierarquias escolares, desde que os piores alunos no sejam desprezados nem maltratados e que o julgamento da pessoa e o do desempenho sejam claramente diferenciados. Isso tambm o que esperam os usurios dos servios sociais, quando afirmam que nem a pobreza nem o desemprego devem tirar o valor da pessoa, nem afetar as condies de igualdade. O tema do respeito introduz uma mudana essencial na natureza dos princpios de justia. A igualdade de todos uma norma universal, uma fico, um postulado que no tem necessidade de ser fundamentado empiricamente: as raas so iguais, os sexos so iguais, os seres humanos so iguais por princpio. As desigualdades funcionais do mrito so tambm de natureza objetiva e universal; elas so a sano dos mecanismos impessoais do mercado de trabalho e dos concursos.42 E mesmo sabendo que essas provas so sempre um jogo de cartas marcadas, sabemos tambm que permanecem objetivas e justas em seu princpio, como o implica o tema da igualdade de oportunidades. Ao contrrio, o tema do respeito necessariamente indexado s particularidades individuais, naturais ou reivindicadas, exigindo o reconhecimento de caractersticas e de experincias especficas. Peo que me respeitem enquanto mulher, minoria cultural, comunidade de convico; peo que me reconheam como tal para que eu no seja destruda pelo choque entre as duas formas da igualdade. por tal razo que o confronto entre o princpio de igualdade e as desigualdades funcionais faz surgir uma reivindicao de reconhecimento como espao das identidades e42 Geralmente, aqueles que no gostam do mercado de trabalho gostam dos concursos, e vice-versa; mas este desacordo quanto aos procedimentos no os ope com relao crena nas desigualdades injustas.

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da civilidade. por tal razo que os movimentos sociais igualitrios esto tambm centrados no reconhecimento de particularismos. Nesse contexto, a reivindicao de igualdade nunca est separada de uma reivindicao de reconhecimento e de especificidade.43 Se o princpio de igualdade consiste em ser dono de sua prpria vida, o princpio de reconhecimento faz com que esse domnio se subtraia parcialmente s provas do mercado e do mrito. A globalizao provoca certamente o retorno das identidades, das culturas e das naes. Mas no podemos explicar tal retorno, como o faz Huntington, pelo carter irredutvel das diferenas ou pela defesa do local e do especfico contra o universal do mercado, confundido, no caso, com o modelo norte-americano.44 De modo mais fundamental, o tema do reconhecimento das identidades surge necessariamente como o nico modo de sntese e de conciliao possvel das duas faces da igualdade ou da igualdade dos indivduos com as desigualdades coletivas. Alis, a maioria dos movimentos sociais clssicos, de alguns anos para c, assumiram dimenso identitria e nacional. O rompimento dos registros e das dimenses da igualdade se traduz por multiplicao das escalas de hierarquizao das desigualdades e por dissociao relativa da dominao e dos critrios de estratificao. Isso no significa que haja crescimento ou diminuio das desigualdades, pois se elas aumentam segundo alguns indicadores, se reduzem segundo outros. E nada nos impede de nos indignarmos diante do carter escandaloso de muitas desigualdades. Contudo, do ponto de vista sociolgico, aquela observao significa que as desigualdades j no formam um sistema, supondo que um dia tenha sido o caso, mas que formam um conjunto de tenses e de problemas em cada momento especficos. inevitvel constatar que o marxismo no foi substitudo por uma concepo estrutural homognea e satisfatria das desigualdades que explique, ao mesmo tempo, as condutas dos atores e o funcionamento de uma estrutura. Tal situao no deve, no entanto, nos conduzir nem negao das desigualdades nem a sua simples denncia que proporciona mais benefcios morais que satisfaes intelectuais. Devemos, na melhor das hipteses, nos satisfazer com teorias ad hoc em funo dos problemas estudados.43 uma lgica que o universalismo republicano tem dificuldade de aceitar, convencido de que s o funcionamento das instituies meritocrticas pode garantir a contabilidade da igualdade de todos e das desigualdades justas. H. Mendras, op. cit. 44 S. Huntington, The clash of civilization, Foreign Affairs, v. 72, n 3, 1993.

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Encontraremos questes e problemticas globais mais satisfatrias no mbito da filosofia poltica, que se incumbe diretamente da diversidade dos critrios de justia que comandam toda anlise das desigualdades. Quais so as desigualdades justas, pergunta Rawls. Como manter a separao das esferas de justia, pergunta Walzer. Como conciliar o reconhecimento e os valores universais, interroga Taylor. Evidentemente, nenhuma dessas perguntas diretamente sociolgica. Mas seria to difcil transform-las em programas de pesquisa sociolgica, emprica e terica? Fazendo tal esforo, a sociologia no perderia sua alma, talvez mesmo a reencontrasse. Esse o caminho se quisermos que ela no se reduza nem a um recenseamento nem descrio cada vez mais refinada de prticas, elas prprias cada vez mais refinadas e, s vezes, cada vez mais insignificantes. Os pais fundadores fizeram da sociologia outra maneira de fazer poltica e filosofia social e por essa razo que ela nos interessa tanto hoje.

FRANOIS DUBET professor da Universidade de Bordeaux II, pesquisador do CNRS (cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales/ CADIZ). Autor de, entre outros: Sociologia da Experincia, Lisboa, Instituto Piaget, 1994; De la Galre: jeunes en survie Paris, Fayard, 1987; A lcole: sociologie de lexprience scolaire, em colaborao com Danilo Martuccelli, Paris, Ed. du Seuil, 1996 e A formao dos indivduos: a desinstitucionalizao, Contemporaneidade e Educao, ano 3, n 3, p. 27-33, maro 1998.

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EDUCAO ESCOLAR E CULTURA(S): CONSTRUINDO CAMINHOSAntonio Flavio Barbosa Moreira Universidade Catlica de Petrpolis, Mestrado em Educao Vera Maria Candau Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Educao

INTRODUO Em inmeros momentos de trabalho com docentes de redes estaduais e municipais, em diferentes cidades do pas, temos sido confrontados com perguntas que nos evidenciam a dificuldade presente entre o professorado, tanto de tornar a cultura um eixo central do processo curricular, como de conferir uma orientao multicultural s suas prticas. So freqentes, nesses encontros, indagaes relativas ao() aluno(a) concreto(a) que usualmente est presente na sala de aula: como lidar com essa criana to estranha, queapresenta tantos problemas, que tem hbitos e costumes to diferentes dos da criana bem educada? Como adapt-la s normas, condutas e valores vigentes? Como ensinar-lhe os contedos que se encontram nos livros didticos? Como prepar-la para os estudos posteriores? Como integrar a sua experincia de vida de modo coerente com a funo especfica da escola? Tais questes refletem vises de cultura, escola, ensino e aprendizagem que no do conta, a nosso ver, dos desafios encontrados em uma sala de aula invadida por diferentes grupos sociais e culturais, antes ausentes desse espao. No do conta, acreditamos, do inevitvel carter multicultural das sociedades contemporneas, nem respondem s contradies e s demandas provocadas pelos processos de globalizao econmica e de mundializao

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da cultura (Ortiz, 1994), que tanto tm intensificado a ciso do mundo em ricos e pobres, civilizados e selvagens, ns e eles, includos e excludos. Ao mesmo tempo em que se expressam dificuldades e dvidas por parte de muitos docentes, significativas experincias tm sido desenvolvidas, tanto no mbito das escolas como de outros espaos de educao no formal, propondo-se a transcender o pluralismo benigno de vises correntes de multiculturalismo e a afirmar as vozes e os pontos de vista de minorias tnicas e raciais marginalizadas e de homens e mulheres das camadas populares. Todavia, a despeito das conquistas e das contribuies dessas experincias, ainda no podemos considerar que uma orientao multicultural numa perspectiva emancipatria (Sousa Santos, 2003) costume nortear as prticas curriculares das escolas e esteja presente, de modo significativo, nos cursos que formam os docentes que nelas ensinam. Estamos ainda distante do que Connell (1993) denomina de justia curricular, pautada, a seu ver, por trs princpios: (a) os interesses dos menos favorecidos; (b) participao e escolarizao comum; e (c) a produo histrica da igualdade. Para o autor, o critrio da justia curricular o grau em que uma estratgia pedaggica produz menos desigualdade no conjunto de relaes sociais ao qual o sistema educacional est ligado. Considerando as especificidades e a complexidade do panorama social e cultural deste incio de sculo, sugerimos que a concepo de justia curricular se amplie e se compreenda como a proporo em que as prticas pedaggicas incitam o questionamento s relaes de poder que, no mbito da sociedade, contribuem para criar e preservar diferenas e desigualdades. Quer-se favorecer, como conseqncia, a reduo, na escola e no contexto social democrtico, de atos de opresso, preconceito e discriminao. Entendemos diferena como McCarthy (1998), que a define como o conjunto de princpios que tm sido empregados nos discursos, nas prticas e nas polticas para categorizar e marginalizar grupos e indivduos. Defendemos, ainda, o ponto de vista de que, particularmente em um pas como o Brasil, no possvel nos esquecermos da desigualdade e nos voltarmos apenas para as diferenas entre os indivduos. No cabe, portanto, abandonarmos a idia de totalidade (Garca Canclini, 1990). Apoiando-nos em Sousa Santos (2001, 2003), insistimos na necessidade de uma orientao

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multicultural, nas escolas e nos currculos, que se assente na tenso dinmica e complexa entre polticas da igualdade e polticas da diferena. As verses emancipatrias do multiculturalismo baseiam-se no reconhecimento da diferena e do direito diferena e da coexistncia ou construo de uma vida em comum alm de diferenas de vrios tipos (Santos, 2003, p. 33). Construir o currculo com base nessa tenso no tarefa fcil e ir certamente requerer do professor nova postura, novos saberes, novos objetivos, novos contedos, novas estratgias e novas formas de avaliao. Ser necessrio que o docente se disponha e se capacite a reformular o currculo e a prtica docente com base nas perspectivas, necessidades e identidades de classes e grupos subalternizados. Tais mudanas nem sempre so compreendidas e vistas como desejveis e viveis pelo professorado. Certamente, em muitos casos, a ausncia de recursos e de apoio, a formao precria, bem como as desfavorveis condies de trabalho constituem fortes obstculos para que as preocupaes com a cultura e com a pluralidade cultural, presentes hoje em muitas propostas curriculares oficiais (alternativas ou no), venham a se materializar no cotidiano escolar. Mas, repetimos, no se trata de uma tarefa suave. Nosso texto pretende, com base em resultados de pesquisas que coordenamos e de teorizaes que temos analisado, oferecer subsdios para que essa tarefa venha a ser mais bem enfrentada. Pretende ir alm da inteno de dialogar com os pares da academia e visa a apresentar princpios, exemplos e sugestes que possam ser teis ao professorado em seu empenho por tornar a cultura elemento central de seus planos e suas prticas. No pretende oferecer prescries. Nosso propsito outro: estimular nossos colegas a construrem e desenvolverem novos currculos de forma autnoma, coletiva e criativa. Julgamos ser possvel e desejvel que as pesquisas realizadas no mbito das universidades, principalmente as que se desenvolvem sobre e com a escola, possam catalisar experincias que tornem o cotidiano escolar no o espao da rotina e da repetio, mas o espao da reflexo, da crtica, da rebeldia, da justia curricular. Mais uma vez recorrendo a Connell (1993), julgamos que, se os currculos continuarem a produzir e a preservar divises e diferenas, reforando a situao de opresso de alguns indivduos e grupos, todos, mesmo os membros dos grupos privilegiados, acabaro por sofrer. A conseqncia poder ser a degradao da educao oferecida a

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todos os estudantes. Sem pretender esgotar os desafios e as possibilidades envolvidas nas temticas em pauta, estruturamos o texto de modo a discutir, inicialmente, como se deve entender hoje a centralidade da cultura na sociedade e na educao. A seguir, enfocamos as relaes entre escola e cultura(s). Em terceiro lugar, sugerimos estratgias pedaggicas que possam ser teis para a abordagem da diversidade e da pluralidade cultural no currculo. Finalmente, apresentamos nossas consideraes finais, trazendo cena alguns desafios envolvidos na formao dos(as) professores(as) que venham a considerar as questes culturais contemporneas no desenvolvimento de suas prticas docentes.

A CENTRALIDADE DA CULTURA A importncia da cultura no mundo contemporneo tem sido enfatizada por autores de diferentes tendncias. No mbito do pensamento psmoderno, a cultura adquire cada vez mais um papel mais significativo na vida social: hoje, tudo chega mesmo a ser visto como cultural (Baudrillard, apud Featherstone, 1997). A cultura estaria, assim, alm do social, descentralizando-se, livrando-se de seus determinismos tradicionais na vida econmica, nas classes sociais, no gnero, na etnicidade e na religio. Segundo Featherstone, no entanto, trata-se, na verdade, de uma recentralizao da cultura, expressa no aumento da importncia atribuda ao estudo da cultura no mbito da vida acadmica. A cultura, h muito situada na periferia do campo das cincias sociais, tem-se movido em direo ao centro, o que talvez se explique pela tendncia mais ampla de enfraquecimento das divises entre as reas de estudo e de intensificao de estudos inter e transdisciplinares. Para Featherstone, em sntese, a descentralizao mais geral da cultura tem sido acompanhada por sua recentralizao na vida acadmica. No campo da educao, Michael Apple (1999), um dos mais renomados autores da teoria crtica do currculo, sustenta que lutas e conflitos culturais no constituem meros epifenmenos, mas sim eventos reais e cruciais na batalha por hegemonia. Desse modo, as explicaes centradas na cultura, na poltica e na ideologia assumem hoje papel de destaque no cenrio social, adicionando-se s anlises dos fenmenos complexos e contraditrios que se desenvolvem no nvel econmico. Apple acrescenta, todavia, que valorizar e reconhecer a importncia da esfera cultural no pode implicar a desconsiderao

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da fora do capitalismo, do carter determinante das relaes de produo e do poder da classe social. Isso seria, insiste o autor, um grave erro. A centralidade da cultura tambm destacada pelos autores associados ao marxismo culturalista, entre os quais se destacam Raymond Williams e Edward Thompson. Para esses tericos, o modelo base-superestrutura, proposto pelo marxismo ortodoxo, transforma a histria em um processo automtico e a cultura em um domnio de idias e significados restritos a um mero reflexo da estrutura econmica da sociedade. Nesse enfoque, a cultura reduz-se a um epifenmeno, secundarizando-se as tenses, mediaes e experincias dos seres humanos reais (Giroux, 1983). Assim, no mbito do marxismo culturalista, a centralidade da cultura tambm enfatizada. Considera- se que a cultura no se aparta das atividades caractersticas e das interaes da vida cotidiana, o que implica o reconhecimento da importncia das aes e das experincias dos indivduos nas anlises dos fenmenos sociais. Para Giroux (1983), a despeito da supervalozio das experincias vividas, o marxismo culturalista traz tona os equvocos envolvidos na viso da cultura como mero reflexo da infra-estrutura, bem como propicia uma viso mais abrangente e profunda da esfera cultural da sociedade, na qual os indivduos atuam em meio a prticas e a conflitivas relaes de poder, produzindo, rejeitando e compartilhando significados. essa viso que se difunde e se amplia no seio dos Estudos Culturais, que tm em Stuart Hall um dos autores de maior proeminncia. Em marcante artigo, Hall (1997) reafirma a centralidade da cultura no cenrio contemporneo e ressalta seu papel constitutivo em todos os aspectos da vida social. Para o autor, estamos mesmo diante de uma revoluo cultural, evidenciada pela significativa expanso do domnio configurado por instituies e prticas culturais. Alm disso, os meios de produo, circulao e troca cultural tambm se ampliam, graas ao desenvolvimento da tecnologia, particularmente da informtica. Em suas palavras:A velha distino que o marxismo clssico fazia entre a base econmica e a superestrutura ideolgica de difcil sustentao nas atuais circunstncias em que a mdia , ao mesmo tempo, uma parte crtica na infraestrutura material das sociedades modernas, e, tambm, um dos principais meios de circulao das idias e imagens vigentes nestas sociedades. (p. 17)

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As transformaes culturais desenvolvem-se tambm de forma bastante aguda no nvel do microcosmo. A expresso centralidade da cultura, tal como empregada por Hall, refere-se exatamente forma como a cultura penetra em cada recanto da vida social contempornea, tornando-se elemento-chave no modo como o cotidiano configurado e modificado. Assim, a cultura no pode ser estudada como varivel sem importncia, secundria ou dependente em relao ao que faz o mundo se mover, devendo, em vez disso, ser vista como algo fundamental, constitutivo, que determina a forma, o carter e a vida interior desse movimento. Reiteram-se, pode-se observar, pontos j enfatizados por autores como Williams e Thompson. Alm da centralidade da cultura na ascenso de novos domnios, instituies e tecnologias associadas s indstrias culturais, na mudana histrica global, assim como na transformao do cotidiano, Hall reala o lugar central ocupado pela cultura no processo de formao de identidades sociais. Para ele:O que denominamos nossas identidades poderia provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentaes atravs do tempo daquelas diferentes identificaes ou posies que adotamos e procuramos viver, como se viessem de dentro, mas que, sem dvida, so ocasionadas por um conjunto especial de circunstncias, sentimentos, histrias e experincias nicas e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identidades so, em resumo, formadas culturalmente. (p. 26)

Aos aspectos j mencionados, Hall acrescenta a presena significativa de aspectos epistemolgicos na virada cultural. No interior dessa virada, passa-se a privilegiar determinados temas na anlise de fenmenos sociais, ala-se cultura condio de categoria essencial para o esforo de se compreender a vida e a organizao da sociedade, estabelece-se a matriz intelectual que propiciou a ecloso dos Estudos Culturais, bem como modificam-se prticas acadmicas hegemnicas. O autor procura esclarecer, ao mesmo tempo, que o posicionamento a favor da centralidade da cultura no implica considerar que nada exista a no ser a cultura. Significa, sim, admitir que toda prtica social tem uma dimenso cultural, j que toda prtica social depende de significados e com eles est estreitamente associada. A esfera econmica, por exemplo, no funcionaria nem teria qualquer efeito fora da cultura e dos significados.

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Economia e cultura constituem-se mutuamente, articulam-se. Certamente essa ressalva valiosa, por permitir que se evitem interpretaes apressadas, com base nas quais se acusem Hall e os demais autores dos Estudos Culturais de reducionismo. O que de fato Hall argumenta que toda prtica social depende do significado e com ele tem relao. A cultura uma das condies constitutivas de existncia dessa prtica, o que faz com que toda prtica social tenha uma dimenso cultural. Aceitando-se esse ponto de vista, no h como se negar a estreita relao entre as prticas escolares e a(s) cultura(s). ESCOLA E CULTURA(S) A problemtica das relaes entre escola e cultura inerente a todo processo educativo. No h educao que no esteja imersa na cultura da humanidade e, particularmente, do momento histrico em que se situa. A reflexo sobre esta temtica co-extensiva ao prprio desenvolvimento do pensamento pedaggico. No se pode conceber uma experincia pedaggica desculturizada, em que a referncia cultural no esteja presente. A escola , sem dvida, uma instituio cultural. Portanto, as relaes entre escola e cultura no podem ser concebidas como entre dois plos independentes, mas sim como universos entrelaados, como uma teia tecida no cotidiano e com fios e ns profundamente articulados. Se partimos dessas afirmaes, se aceitamos a ntima associao entre escola e cultura, se vemos suas relaes como intrinsecamente constitutivas do universo educacional, cabe indagar por que hoje essa constatao parece se revestir de novidade, sendo mesmo vista por vrios autores como especialmente desafiadora para as prticas educativas. A escola uma instituio construda historicamente no contexto da modernidade, considerada como mediao privilegiada para desenvolver uma funo social fundamental: transmitir cultura, oferecer s novas geraes o que de mais significativo culturalmente produziu a humanidade. Essa afirmao suscita vrias questes: Que entendemos por produes culturais significativas? Quem define os aspectos da cultura, das diferentes culturas que devem fazer parte dos contedos escolares? Como se tm dado as mudanas e transformaes nessas selees? Quais os aspectos que tm exercido maior influncia nesses processos? Como se configuram em cada contexto concreto?

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Segundo Gimeno Sacristn (2001, p. 21),A educao contribuiu consideravelmente para fundamentar e para manter a idia de progresso como processo de marcha ascendente na Histria; assim, ajudou a sustentar a esperana em alguns indivduos, em uma sociedade, em um mundo e em um porvir melhores. A f na educao nutre-se da crena de que esta possa melhorar a qualidade de vida, a racionalidade, o desenvolvimento da sensibilidade, a compreenso entre os seres humanos, o decrscimo da agressividade, o desenvolvimento econmico, ou o domnio da fatalidade e da natureza hostil pelo progresso das cincias e da tecnologia propagadas e incrementadas pela educao. Graas a ela, tornou-se possvel acreditar na possibilidade de que o projeto ilustrado pudesse triunfar devido ao desenvolvimento da inteligncia, ao exerccio da racionalidade, utilizao do conhecimento cientfico e gerao de uma nova ordem social mais racional.

Essa a utopia que impregnou e impregna ainda hoje a educao escolar. Esse tem sido, sinteticamente, seu horizonte de sentido. esse o modelo cultural que vem perpassando, no meio de tenses e conflitos, o seu cotidiano. Tal modelo seleciona saberes, valores, prticas e outros referentes que considera adequados ao seu desenvolvimento. Assenta-se sobre a idia da igualdade e do direito de todos e todas educao e escola. No entanto, numerosos estudos e pesquisas tm evidenciado como essa perspectiva termina por veicular uma viso homognea e padronizada dos contedos e dos sujeitos presentes no processo educacional, assumindo uma viso monocultural da educao e, particularmente, da cultura escolar. Essa nos parece ser uma problemtica cada vez mais evidente. O que est em questo, portanto, a viso monocultural da educao. Os outros, os diferentes os de origem popular, os afrodescendentes, os pertencentes aos povos originrios, os rappers, os funkeiros etc. , mesmo quando fracassam e so excludos, ao penetrarem no universo escolar desestabilizam sua lgica e instalam outra realidade sociocultural. Essa nova configurao das escolas expressa-se em diferentes manifestaes de mal-estar, em tenses e conflitos denunciados tanto por educadores(as) como por estudantes. o prprio horizonte utpico da escola que entra em questo: os desafios do mundo atual denunciam a fragilidade e a insuficincia dos ideais modernos e passam a exigir e suscitar novas interrogaes e buscas. A escola, nesse contexto, mais que a transmissora da cultura, da verdadeira cultura, passa a ser concebida como um espao de

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cruzamento, conflitos e dilogo entre diferentes culturas. Prez Gmez (1998) prope que entendamos hoje a escola como um espao de cruzamento de culturas. Tal perspectiva exige que desenvolvamos um novo olhar, uma nova postura, e que sejamos capazes de identificar as diferentes culturas que se entrelaam no universo escolar, bem como de reinventar a escola, reconhecendo o que a especifica, identifica e distingue de outros espaos de socializao: a mediao reflexiva que realiza sobre as interaes e o impacto que as diferentes culturas exercem continuamente em seu universo e seus atores. Conforme o mesmo autor:O responsvel definitivo da natureza, sentido e consistncia do que os alunos e alunas aprendem na sua vida escolar este vivo, fluido e complexo cruzamento de culturas que se produz na escola entre as propostas da cultura crtica, que se situa nas disciplinas cientficas, artstica e filosficas; as determinaes da cultura acadmica, que se refletem no currculo; as influncias da cultura social, constitudas pelos valores hegemnicos do cenrio social; as presses cotidianas da cultura institucional, presente nos papis, normas, rotinas e ritos prprios da escola como instituio social especfica, e as caractersticas da cultura experiencial, adquirida por cada aluno atravs da experincia dos intercmbios espontneos com seu entorno. (Prez Gmez, 1998, p. 17)

O que caracteriza o universo escolar a relao entre as culturas, relao essa atravessada por tenses e conflitos. Isso se acentua quando as culturas crtica, acadmica, social e institucional, profundamente articuladas, tornam-se hegemnicas e tendem a ser absolutizadas em detrimento da cultura experiencial, que, por sua vez, possui profundas razes socioculturais. Em vez de preservar uma tradio monocultural, a escola est sendo chamada a lidar com a pluralidade de culturas, reconhecer os diferentes sujeitos socioculturais presentes em seu contexto, abrir espaos para a manifestao e valorizao das diferenas. essa, a nosso ver, a questo hoje posta. A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferena.Tende a silenci-las e neutraliz-las. Sente-se mais confortvel com a homogeneizao e a padronizao. No entanto, abrir espaos para a diversidade, a diferena, e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que est chamada a enfrentar.

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ESCOLA, CULTURA E DIVERSIDADE CULTURAL: ESTRATGIAS PEDAGGICAS Abordaremos alguns aspectos especialmente significativos na tentativa de promover, no contexto escolar, prticas educativas sensveis a essas questes. Privilegiaremos duas dimenses: (a) diversidade cultural e currculo; (b) o combate discriminao e ao racismo no cotidiano escolar.DIVERSIDADE CULTURAL E CURRCULO

Em recente pesquisa,1 foram entrevistados sete pesquisadores(as) brasileiros(as) cujo objeto de estudo o multiculturalismo. Todos(as) mostraram-se associados(as) ao que se pode chamar de multiculturalismo crtico (Stoer & Corteso, 1999), correspondente a uma perspectiva emancipatria que envolve, alm do reconhecimento da diversidade e das diferenas culturais, a anlise e o desafio das relaes de poder sempre implicadas em situaes em que culturas distintas coexistem no mesmo espao. Para todos(as), uma ao docente multiculturalmente orientada, que enfrente os desafios provocados pela diversidade cultural na sociedade e nas salas de aulas, requer uma postura que supere o daltonismo cultural usualmente presente nas escolas, responsvel pela desconsiderao do arco-ris de culturas com que se precisa trabalhar. Requer uma perspectiva que valorize e leve em conta a riqueza decorrente da existncia de diferentes culturas no espao escolar. Alm da superao do daltonismo cultural, nossos(as) especialistas sugerem estratgias pedaggicas que permitam lidar com essa heterogeneidade. Destacamos algumas, sem esgot-las, complementando-as com pontos de vista e sugestes que se encontram na literatura especializada sobre multiculturalismo. Inicialmente, ressaltamos o que uma das especialistas afirmou:Temos que reescrever o conhecimento a partir das diferentes razes tnicas. Mas no cada um fechadinho no seu canto. Eu tenho que reescrever a partir da minha experincia nessa r