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Psicologia Jurídica ensaios sobre a violência Marcelo Ribeiro (org.)

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Psicologia Jurídicaensaios sobre a violência

Marcelo Ribeiro (org.)

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2012

Psicologia Jurídica

ensaios sobre a violência

Marcelo Ribeiro (org.)

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Marcelo Ribeiro (2012

Revisão:Edilane Ferreira da Silva

Diagramação/Arte Final:Ana Paula Arruda

TextosAlzení TomázBruno Heim

Darlindo Ferreira de LimaFranklin Barbosa Bezerra

Juracy MarquesLeonardo Sousa

Liércio Pinheiro de AraújoLuiz Eduardo

Marcelo RibeiroMaria Elisa Pacheco de Oliveira Silva

Rita Luiza Garcia Rangel BrittoRobson Marques

Imagem da Capa:Salomé com a cabeça de São João Batista ( , provavelmente c. 1506-7.

Óleo sobre madeira, 57,2 × 47 cm. The Friedsam Collection, doação de Michael Friedsam, 1931. Fonte: http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/32.100.81

org.)

Andrea Solario)

Psicologia Jurídica: ensaios sobre a violência / Marcelo Ribeiro (org.). - Petrolina: Gráfica Franciscana, 2012.

116p.

Vários autores.Contém bibliografia ao final de cada capítulo.

1. Psicologia Jurídica . 2. Violência . 3. Direito da criança I. Personalidade criminal. II. Ribeiro, Marcelo (org.).

P974

CDD 347.066019

Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Integrado de Biblioteca - SIBI/UNIVASF

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Apresentação.................................................................................................... 05

A Formação Profissional no Âmbito da Psicologia Jurídica.................... 09

Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão........................................................................................................... 17

Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas Perspectivas Compreensivas............................................ 37

Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros.......................................................................................... 57

Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar........................... 77

A Verdadeira Personalidade Criminal.......................................................... 95

Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico.............................................................................................................. 103

Sumário

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Apresentação

Já não podemos falar que a chamada Psicologia Jurídica é uma nova subárea no campo das Ciências Humanas. Mesmo no Brasil, há inúmeras experiências, muitas formações e uma considerável publicação no contexto nacional. Apesar dessa consolidação e dos seus desdobramentos (na Psicologia Forense, na Psicologia Policial e Criminal, na Psicologia da Vítima etc.), há ainda uma miríade de possibilidades a ser explorada. Na fronteira dos consagrados campos de saber da Psicologia, como a Saúde e a Educação, a Psicologia Jurídica oferece profícuos espaços de reflexões e de inserções para práticas nas quais os profissionais estão, cada vez mais, ampliando suas ações em uma interdisciplinar.

O tema violência, que permeia, de uma forma ou de outra, os vários capítulos deste livro, é um exemplo de como a Psicologia Jurídica emerge, seja nas suas fronteiras com a Saúde, seja em suas fronteiras com Educação ou, mesmo, em suas fronteiras no terreno da Cultura.

A partir das produções de docentes e profissionais que atuam em diversas áreas, este livro foi forjado no seio da aventura de pensar a Psicologia Jurídica enriquecida, sobretudo, nas fronteiras com outros campos de saber. A temática “violência” foi o elo comunicante capítulos que compõem o livro.

No primeiro capítulo, no qual se discute a questão formação do profissional do operador jurídico, é posto em foco a necessidade de uma atenção particular, no que diz respeito à formação que privilegie a dimensão pessoal. O autor nos faz refletir sobre a necessidade de revermos a qualidade dessas formações iniciais, mas também de buscarmos rever as formações cominadas...

05Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

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06 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

O segundo capítulo traz uma discussão específica. Trata-se da reflexão sobre a condição de ser delegada da mulher. A partir de uma abordagem que busca apreender os sentidos e as vicissitudes dessa atividade, considerando todo um background cultural e histórico, os autores abrem novas possibilidades para que a Psicologia Jurídica seja contemplada em perspectiva compreensiva, na qual o humano é revelado via suas experiências.

O capítulo intitulado “Imagens da violência: um ensaio sobre a psicossociologia dos grupos violentos e suas perspectivas compreensivas” oferece um estudo sobre os desdobramentos dos esforços de profissionais e pesquisadores que se debruçam sobre a questão do chamado “grupos violentos”. É apontando, após considerável discussão, que esses esforços carecem da adoção de uma perspectiva multidisciplinar, para que possa dar conta dos seus objetivos.

Em “Ecologia de sangue: interpretações jurídicas dos sentidos sagrados dos povos de terreiros”, os autores desenvolvem uma original discussão, base de uma peça jurídica, na qual a temática violência é duplamente apresentada. Em um primeiro momento, a violência é abordada como uma prática contra os animais e, portanto, merecedora de ser coibida via as legislações que tratam dessa questão. Em um segundo momento, esse ponto é tomado de maneira crítica, à medida que se põe em discussão o direito à diversidade de crenças. Portanto, a questão da violência é problematizada em um terreno da cultura, mas, ao mesmo tempo, servindo (mesmo que indiretamente) de base para se pensar em possíveis contribuições à Psicologia Jurídica.

O livro também apresenta uma discussão sobre a “violação dos direitos da criança em idade pré-escolar”. A autora, a professora Maria Elisa Pacheco de Oliveira Silva, aborda o desenvolvimento humano, concebido a partir da teoria de Urie Bronfenbrenner, articulando condições e preparos da família e da escola para o cuidar, o proteger e o educar. Este tema, apesar de não ser, originalmente, fruto de preocupações da Psicologia Jurídica, parece ser fértil para uma série de possibilidades de articular esta subárea com o campo educacional.

O penúltimo capítulo aborda estudos sobre o comportamento criminoso e a relação na construção da chamada “personalidade criminal”. A dinâmica afetiva familiar “deficiente” é posta em discussão como provável gênese da violência.

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07Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Por fim, “Psicologia e direitos humanos: contradições geradoras para um fazer crítico”, discorre sobre alguns panos de fundo que podem estar fundamentados em um modus vivendi do humano na atualidade. Assumido uma perspectiva crítica, o capítulo propõe questionamentos sobre algumas das bases que sustentam o atual processo civilizatório e também aponta, indiretamente, algumas das possíveis raízes para os sentidos da violência.

Este livro, portanto, apresenta-se de maneira multiforme, tanto no que diz respeito à diversidade dos autores, em relação às suas formações e áreas de atuação, quanto às discussões desenvolvidas em cada capítulo. Entretanto, a maneira multiforme revela também um propósito claro que atravessa toda a obra. De maneira suscita e apresentativa, este livro visa legar ao leitor uma perspectiva de interesse em visitar os vários campos do saber, enriquecendo a construção da Psicologia Jurídica a partir de uma temática comum: a questão da violência.

Marcelo Ribeiro

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09Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

A Formação Profissional no Âmbitoda Psicologia Jurídica

1por Marcelo Ribeiro

Este texto visa refletir sobre as exigências e as produções das dimensões da formação profissional no âmbito da psicologia jurídica, especificamente, a dimensão pessoal. Acreditamos que essa dimensão da formação profissional é específica, à medida que seu desenvolvimento não se dá como mera aplicação da teoria sobre a prática e que não está garantida na qualificação técnica, sobretudo, oriunda da formação inicial. Nossa empreitada será caracterizar a área de atuação daquele que lida com a chamada psicologia jurídica. Antes de tudo, é importante dizer que não estaremos nos restringindo aos profissionais psicólogos, mas estaremos englobando todos aqueles profissionais que gravitam na ordem do direito e que necessitam de compreensões psicológicas para efetivar suas diligências, interpretações e ações. Como exemplo, poderíamos citar os operadores de direito, de modo geral, os assistentes sociais, os educadores, os psicólogos, que atuam nas mais diversas áreas judiciais. Poderíamos também acrescentar os policiais, investigadores, mediadores de conflitos, profissionais de saúde atuando na área jurídica etc.

CARACTERIZANDO A ÁREA DA PSICOLOGIA JURÍDICA

A psicologia jurídica é comumente concebida como uma psicologia aplicada à área do direito. Entretanto, como já sinalizado por César Coll (1996), o

1 UNIVASF. LETRANS

Professor Assistente do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco –

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10 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

sentido de aplicação não pode ser reduzido à mera aplicabilidade de um conhecimento sobre uma área de atuação. Na verdade, a própria interação entre conhecimento e área de atuação passa a exigir e, ao mesmo tempo, a produzir novos saberes e práticas específicas que, sem essa relação, não seriam possíveis.

Com isso, podemos dizer que o profissional que necessita da psicologia jurídica requer, tradicionalmente, conhecimentos, sobretudo, da psicologia da personalidade, da psicopatologia e da psicologia social. É verdade que essas três subáreas de conhecimentos não dão conta sozinhas das demandas vividas por esse profissional. Outras áreas são também importantes, de modo que a complexidade de conhecimentos não se esgota aí. Poderíamos elencar, além dessas subáreas, como exemplos, a psicologia do desenvolvimento e a psicologia da aprendizagem. Poderíamos também acrescentar grandes áreas como a antropologia, a sociologia, a biologia e a própria ciência do direito. Todos esses conhecimentos estão, portanto, voltados para a específica área de aplicação. Entretanto, a mera aplicabilidade desses conhecimentos não seria suficiente, como já mencionamos. Quando o profissional está envolvido, quando ele atua, quando ele vive suas experiências e reflete sobre o seu fazer, produz saberes que extrapolam a simples aplicação de conhecimentos externos que carrega.

A partir do que já colocamos, podemos, em um primeiro momento, afirmar que é exigido desse profissional um grande nível de conhecimento nas mais diversas subáreas e grandes áreas, mas também uma capacidade de produzir saberes singulares, sobretudo, a partir das especificidades da prática. Daí, sugere-se um esforço do profissional em lidar com a complexidade epistemológica própria da sua atuação. Entretanto, esse esforço parece não ser suficiente para garantir a efetiva performance profissional. Dele serão, também, exigidos conhecimentos tácitos, habilidades e outras competências que não vão estar suficientemente garantidas através dos conhecimentos teóricos.

Já é de conhecimento, na literatura específica, algumas dimensões como relevantes para a boa formação profissional. São elas: a dimensão técnica, a institucional e a pessoal. A primeira vai corresponder aos conhecimentos adquiridos a partir das áreas de conhecimentos, normalmente, garantidos na formação inicial do profissional. A segunda dimensão, a institucional, corresponde à cultura profissional, à organização que o profissional está

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11A Formação Profissional no Âmbito da Psicologia Jurídica

engajado e à categoria profissional. A terceira dimensão, a pessoal, que não está garantida na formação inicial, diz respeito à vivência das experiências profissionais e aos seus recursos subjetivos. É nessa mescla de dimensões que se constitui o que chamamos de identidade profissional.

Sem perder de vista a interação dessas três dimensões, a dimensão pessoal da formação profissional carece demandar uma atenção maior, justamente, por ser pouco contemplada nas formações, sejam elas formações iniciais ou contínuas (também chamada de formação em exercício).

Isto se torna um desafio, à medida que gera a seguinte pergunta: como preparar ou tentar preparar esses profissionais, contemplando, em suas formações, a dimensão pessoal? É importante também dizer que, ao falarmos de preparação, não estamos apenas nos restringindo à formaçao inicial. Estamos também nos referindo à formação continuada. Muitos estudos têm mostrado que, apesar da grande importância da formação inicial no desempenho do profissional, esta não é suficiente. É necessário a

2formação continuada, a formação em exercício .

Um aspecto importante a ser levado em consideração, para responder tal questão, ainda pouco levantada, é poder contemplar nas formações não só os conhecimentos técnicos, mas, principalmente, as experiências dos próprios profissionais, as suas histórias e os seus saberes. Essas experiências dos profissionais em formação precisam ser levadas em consideração para a construção de novos conhecimentos. A abordagem construtivista na pedagogia vai, por exemplo, apontar para a necessidade de trabalhar os novos conhecimentos que são inseridos a partir da experiência e de conhecimentos prévios dos alunos, tomando-os como ativos nos seus processos de construção do conhecimento.

A valorização dessas experiências, dos saberes tácitos e dos recursos da subjetividade dos profissionais em formação, significa contemplar a dimensão pessoal na formação. Isto, na verdade, nunca será uma garantia de uma qualificação eficiente, mas suspeitamos que significa a possibilidade do profissional estar mais apto a fazer frente aos desafios profissionais do ponto de vista psicológico, afetivo, cognito (subjetividade).

2 A formação continuada é toda aquela que segue a formação inicial, mas a formação em exercício é um pouco diferente. Além de ser pós a inicial, ela é intimamente ligada à atuação profissional e às situações do cotidiano do profissional.

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12 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Essa ressalva que fizemos, no sentido de uma formação que contemple a dimensão pessoal não garantir a eficiência, é justificada pela própria dinâmica das situações que os sujeitos estão expostos e, também, pelo próprio processo de transformação que todos nós estamos sujeitos. Entretanto, sustentamos a hipótese de que uma formação que contemple a dimensão pessoal possa criar mais condições básicas para que os sujeitos lidem com as situações, no caso, situações, muitas vezes, adversas ou mesmo imprevistas.

A partir do que falamos anteriormente, sobre as características ou condições de trabalho que vão exigir um nível de conhecimento (não só conhecimento teórico), podemos dizer que esses profissionais que “bebem” da psicologia jurídica vão lidar com situações que exigem habilidades e competências específicas, constextualizadas e relacionadas às suas práticas. Dentre algumas dessas situações, vão estar, por exemplo, a questão da morte, de sentimentos diversos como a raiva, o medo, os desejos inconscientes, os fenômenos de identicação etc.

Não se trata de inventariar todas as habilidades e competências necessárias para que esses profissionais estejam totalmente preparados. Até porque, isso não seria possível, na medida em que não é possível prever todas as ações ou situações. Entretanto, é tangível caracterizar as situações e condições de trabalho dos profissionais que lidam com o crime, com os sofrimentos e com os dilemas humanos. Essas caracterizações e condições de trabalho ajudam a trazer à tona toda uma situação que esses profissionais podem estar expostos. Daí, há de se ter, minimamente, uma ideia do que eles podem precisar para ter uma formação mais consistente.

Em termos práticos, no que diz respeito à formação que contemple a dimensão pessoal, é importante, por exemplo, que hajam espaços de trocas de experiências, que esses profissionais possam falar de como certos assuntos ou temas estudados chegam em suas vidas ou como eles vivenciam ou experienciam o dia a dia do trabalho. Espaços como esses, possibilitariam o partilhar de experiências, a mudança de percepção, o desenvolvimento de conhecimentos tácitos etc. Além disso, e, principalmente, tenderia a possibilitar o autoconhecimento. Esse ponto relativo ao autoconhecimento, deve ser um tópico à parte, que iremos desenvolver logo adiante.

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13A Formação Profissional no Âmbito da Psicologia Jurídica

A partir do foi dito, indagamos o seguinte: o que é mesmo importante em termos de dimensão pessoal para o profissional que atua no âmbito da psicologia jurídica?

Para responder a essa pergunta, faz-se necessário, antes de tudo, entender quais são as condições desse profissional, com o que ele tem de lidar, quais são seus desafios diários, que estresse está submetido e que recursos subjetivos são requeridos?

De modo geral, podemos dizer que esse profissional, no contexto brasileiro, lida, muitas vezes, com a bestialidade, com a barbaridade, com os crimes horrendos ou com as situações de injustiças sociais. Essas situações que esse profissional se depara podem fazer com que ele se sinta impotente diante de uma realidade que insiste em agredi-lo, podendo levá-lo à indiferença (insensibilidade diante do outro) ou a provocar fenômenos de identificações, ao ponto de interferir no seu desempenho profissional. Tudo isso, levando a algum tipo de sofrimento, estresse ou prejuízos crônicos na sua vida, como um todo. Para dar um exemplo, imaginemos um profissional que vê uma criança estuprada e imagina que poderia ter sido com o seu filho, ou se depara com uma mulher que foi espancada pelo marido e vem a lembrança do pai que batia em sua mãe, ou, até mesmo, a pobreza do menino que vive na rua e a recordação de sua infância pobre e do sentimento de culpa por viver um uma vida confortável quando se depara com a miséria do outro... Além desses exemplos, há também o reconhecimento em si mesmo da bestialidade e dos limites obscuros da humanidade. Esses profissionais se deparam com a sua própria humanidade negada, seja via um processo de exclusão social ou via um processo de exclusão de si mesmo (negando sentimentos ou lembranças).

Assim, os desgastes, as dificuldades e o nível de estresse podem ser bastante elevados para esse profissional. Além de conviver com situações como essas, ele precisa saber lidar com tudo isso e levar seu trabalho a cabo. Essas agruras fazem parte do seu ofício e podem até alimentar o seu profissionalismo, o seu desenvolvimento profissional, a partir de aprendizagens enriquecidas com as experiências. Longe de levá-lo à insensibilidade ou à desestruturação completa, esse profissional pode aprender e se desenvolver a partir disso.

Como vimos, esse profissional se depara, constantemente, com o sofrimento alheio, pode se identificar com o sofrimento do outro, pode se

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14 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

indignar com a injustiça social, pode se revoltar contra um ato brutal e pode perceber que muitas das desgraças e atrocidades fazem parte da dimensão e capacidade humana, portanto, dele próprio.

Outro profissional que vai também lidar com o sofrimento alheio é o terapeuta. A este respeito, Hycker (1995) comenta a profissão do terapeuta dizendo que este seria uma espécie de “curador ferido”. A metáfora da ferida, para o autor, significa que há uma história de sofrimento ou de dor na vida desse profissional, que serve para que ele se sensibilize e se solidarize com o sofrimento e a dor do outro. A ferida é algo importante para própria relação terapêutica. Entretanto, ele alerta para um perigo da ferida. Caso essa esteja “aberta ou mal curada”, o terapeuta pode se desestruturar ou não suportar o sofrimento ou a dor do outro. Como exemplo, poderemos citar o caso do terapeuta que não conseguiu resolver suas dificuldades infantis em relação ao abuso sexual que sofria do seu pai e se deparou com uma cliente que vivia, justamente, dificuldades sexuais com o marido.

ÚLTIMAS PALAVRAS - CUIDANDO DE QUEM CUIDA: POR UMA FORMAÇÃO DA PESSOA

3Alguns estudos têm apontado para necessidade de se criar condições de cuidado para aqueles profissionais que cuidam de outros submetidos a situações de estresse. Um dos exemplos desses estudos é a pesquisa sobre a condição de trabalho dos profissionais que atuam no Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente do muncícipio de Petrolina – PE. Nessa pesquisa, que pretendeu compreender o desgaste psicológico desses trabalhadores que tinham que lidar com o sofrimento do outro, no caso, sofrimento das crianças, dos adolescentes e dos seus familiares, foi observado a necesidade que eles tinham de serem também cuidados.

Estudos como esse vêm mostrar a grande necessidade que os profissionais que lidam, cotidianamente, com o sofrimento do outro e que, de certa forma, prestam assistência, necessitam também de serem assistidos, de terem algum tipo de apoio institucional para lidar com essas situações ou

3 Pude acompanhar esta investigação em 2007, na disciplina Processos de Investigação Científica, no curso de psicologia da UNIVASF, na qual as alunas desenvolveram um projeto investigando, justamente, o desgaste emocional dos profissionais que atuam no Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente do município de Petrolina-PE.

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15A Formação Profissional no Âmbito da Psicologia Jurídica

mesmo de serem cuidados. Entretanto, insistimos que as formações (inicial e continuada) precisam criar condições para uma qualificação que contemple, além dos aspectos teóricos e técnicos, as experiências, histórias de vida, em outras palavras, a dimensão da pessoa do profissional.

A racionalidade técnica não parece, minimamente, criar condições de aprendizagem para profissionais que lidam, sobretudo, em condições de estresse, de imprevisto e fortemente arraigados na relação com o outro.

O profissional que se inscreve no âmbito da psicologia jurídica toma como espaço e condição de trabalho a relação com o outro. Nesse sentido, podemos dizer que há uma dimensão ontológica ou inter-humana fortemente presente no seu fazer profissional. Isto tem implicações profundas e também exigências radicais para uma prática mais eficaz.

Donald Schön (2000) vai propor um “ensino prático reflexivo” para dar conta de uma formação mais global, que inclua o aproveitamento das experiências do cotidiano profissional, no qual se possa refletir sobre a ação e na ação. Esse profissional reflexivo seria mais habilitado a lidar com as situações de imprevistos e sempre se manteria atualizado, porque estaria constantemente aprendendo com as suas experiências.

Outros autores (Anadon, 1997; Arroyo, 2000; Byington, 1996; Muszkat, 1996; Ribeiro, 2007) apontam a necessidade de se pensar e fazer valer uma formação que assuma o processo identitário do profissional, que incluem as dimensões técnicas, as dimensões pessoais, as dimensões institucionais, as dimensões individuais e as dimensões coletivas (da sua categoria profissional).

Em nossa experiência, temos constatado que os parceiros envolvidos nas formações passam por profundos processos de aprendizagem, à medida que se oportunizam espaços que valorizem as experiências e histórias de vidas. Esses espaços adquirem um rico potencial transformador, justamente, porque permitem reflexões sobre as práticas, vivências pessoais, ressignificações de histórias vividas e produções de novos sentidos para as ações profissionais. Longe de transformar a sala de aula em um grande divã coletivo, esses espaços têm demarcação própria, pois se circunscrevem nos limites das

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atuações profissionais e as experiências, as histórias relatadas e compartilhadas são elementos que nutrem a construção de conhecimentos

4e produção de saberes profissionais. Portanto, uma formação que contemple a dimensão pessoal, uma formação da pessoa, pode favorecer a atualização ou renovação do fazer profissional, mesmo que seja um fazer profissional sujeito aos desgastes profundos, como é o daqueles que atuam no âmbito da psicologia jurídica.

16 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANADON, M. et al.. La construction identitaire de l’enseignant sur le plan professionnel: un processus dynamique et interactif. [S.l.]: [s.n.], 1997.

ARROYO, M. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis: Vozes, 2000.

BYINGTON, C. A. B.. Pedagogia simbólica: a construção amorosa do conhecimento de ser. Rio de Janeiro: Record, 1996.

COLL, César. Psicologia e educação: aproximação aos objetivos e conteúdos da psicologia da educação. In. Coll, César, Palacios, J. Marchesi (orgs.). Desenvolvimento psicológico e educação. Psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. v.2.

HYCNER, Richerd. De pessoa a pessoa. Psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1995.

MUSZKAT, M. Consciência e identidade. São Paulo: Ática, 1996.

RIBEIRO, M. O processo identitário. Olinda, Livro Rápido, 2007.

4 Que não se limite na formação inicial, mas que seja também continuada e em exercício.

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17Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão

1por Rita Luiza Garcia Rangel Britto2e Darlindo Ferreira de Lima

1 Psicóloga Clínica e pesquisadora colaboradora do Laboratório de Estudos e Práticas Transdisciplinares – Letrans-Univasf.2 Professor Adjunto do Colegiado de Psicologia da Univasf e pesquisador titular do Laboratório de Estudos e Práticas Transdisciplinares – Letrans-Univasf.

A violência se constitui como fenômeno presente no mundo em todas as civilizações e nas diversas épocas históricas. Há, na evolução histórica das sociedades, diversos modos de representação, desde as formas mais sutis até as mais cruéis, da violência, sobretudo, na contemporaneidade. Sob suas diferentes formas, a violência passou a ser discutida e tratada, como prioridade, por muitos governos em função da magnitude de suas implicações. Nesse contexto, desde 1996, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a considerá-la como o maior e mais crescente problema de saúde pública que atinge o mundo atual.

Há diversos tipos de violência apontados pelos estudiosos (GIFFIN, 1994; OLIVEIRA, 2000; SAFFIOTI, 2004), mas, dentre essas, a maior visibilidade é dada a violência do tipo física, por vezes, as demais formas parecem ser desconhecidas ou passam despercebidas até pelas próprias vítimas. O mesmo costuma ocorrer em relação à violência de gênero, cujo destaque se dá quando esta é acompanhada por agressão física, principalmente, em ambiente doméstico. A noção de gênero se faz presente, nesta discussão, por se constituir a partir de uma construção social mais ampla, ou seja, que não se restringe às características sexuais dos indivíduos, esse conceito engloba outras atribuições como: valores sociais,

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18 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

noção de poder e força atribuída aos homens, como também a ideia de fragilidade e subserviência atribuída às mulheres.

Segundo Saffioti (2004, p. 35), “As mulheres são ‘amputadas’, sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no exercício do poder”, o que influência e repercute na vida das mesmas, nos espaços por elas ocupados, e por todos os seus relacionamentos interpessoais. No que diz respeito a essa questão, algumas ações governamentais, sobretudo, nos últimos anos, têm buscado maiores esclarecimentos e enfrentamento para a problemática da violência de gênero. A lei nº 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha, pode ser considerada uma importante ferramenta que se propõe a prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa lei conta com o apoio de um importante dispositivo de enfretamento para a questão da violência, a saber: as Delegacias Especializadas em

3Atendimento à Mulher (DEAM’s) .

Os primeiros serviços da DEAM foram criados em São Paulo e Pernambuco, respectivamente, em agosto e novembro de 1985, com o objetivo de realizar investigações sobre crimes contra a mulher, com o passar do tempo, pouco a pouco se firmaram como principal dispositivo da política pública no combate à violência de gênero. Considerada pioneira no mundo, esse tipo de delegacia serviu de modelo para outros países e, desde que foi criada, tem expandido sua área de atuação, alcançando maior aceitação perante o público. A procura pelo serviço, desde a sua criação, demonstrou a existência de uma significativa demanda gerada pela violência de gênero e favoreceu a ampliação do número de delegacias com esse perfil (PASINATO e SANTOS, 2008). Ainda são insuficientes os estudos sobre as DEAM’s e os profissionais nelas inseridos, o que dificulta uma avaliação detalhada de suas formas de operacionalização e, consequentemente, a formulação e/ou reformulação de novas propostas de atuação.

Há uma escassez de estudos sobre as identidades das policiais; a forma como concebem a violência contra mulheres; como se relacionam com os movimentos feministas e de mulheres; e até que ponto absorvem e aplicam os ensinamentos dos cursos de capacitação em que participam (PASINATO E SANTOS, 2008, p. 34).

3 O Estado de Pernambuco utiliza a nomenclatura “Delegacia de Policia de Prevenção e Repressão aos Crimes Contra a Mulher”, no entanto, no nosso trabalho, seguindo a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contras às Mulheres, utilizaremos o termo DEAM.

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19Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão

Nossa aproximação com o tema escolhido se deu a partir de uma relação com o estágio obrigatório do curso de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), ocasião em que estagiamos nas DEAM’s das cidades de Petrolina-PE e Juazeiro-BA. Durante o período de um ano e meio, foi possível, dentre outras coisas, compreendermos a necessidade de desenvolver estratégias e políticas diversificadas para os profissionais dessas instituições, uma vez que o público atendido por eles possui especificidades que requerem uma formação complexa que possibilite a compreensão do fenômeno violência. Na busca por literatura, deparamo-nos com a escassez de material referente ao tema, que motivou esta pesquisa.

4O objetivo deste trabalho é compreender como se dá à práxis de delegadas das DEAMs de Pernambuco. Para tanto, buscou-se compreender como realizam sua prática, quais os impactos para essas profissionais da com-vivência diária com a violência de gênero, assim como elas constituem os seus saberes para lidar com tal contexto e as possíveis influências do ambiente profissional no seu saber fazer.

A profissão de delegada (o) de polícia está ligada à Polícia Civil. Segundo Sadek (2003), desde 1998 sua formação requer a conclusão do curso de Bacharel em Direito, aprovação em concurso público estadual seguido de curso de formação profissional. Considerada, inicialmente, como profissão predominantemente masculina, após a abertura das DEAM’s, houve uma significativa ampliação no mercado de trabalho para o cargo de delegada, uma vez que a orientação do governo federal foi para que o cargo fosse ocupado, preferencialmente, por mulheres (PASINATO e SANTOS, 2008).

As DEAM’s possuem especificidades de público e de atendimento, que as levam a sustentar a classificação de serviço especializado. No que se refere à violência de gênero, é o lócus específico para esses atendimentos, sendo, desde sua criação, subordinados e administrados pela Polícia Civil de cada Estado. Existe uma variação de modelos de serviços nessas instituições, entre outros motivos, propiciada pela diversidade de abordagens e práticas policiais, que podem ser encontradas, até mesmo, em um único Estado.

4 Práxis do grego prattein (passar por, experienciar), refere-se à ação, fazer, prática, como sendo um exercício de agir hábil de uma arte, ciência. Ao longo do tempo, assumiu o significado de conduta, costume ou hábito usual ou convencional, embora, ainda diga respeito a trabalho, obra (opera) do latim, referindo-se a um fazer cotidiano regular que, ao longo do tempo, pode ser tomado por habilidade (MORATO, 2008, p. 4).

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Pasinato e Santos (2008) ressaltam que, inicialmente, a função da delegacia, de acordo com o Código Penal, seria de investigação de crimes contra o gênero feminino; destacam também que “a grande novidade destas delegacias consistia no reconhecimento inédito, pelo Estado, das necessidades e dos direitos de grupos sociais frequentemente excluídos do acesso à justiça” (p. 11), tornando-se, então, a “principal política pública no enfrentamento à violência contra mulheres e atualmente são reconhecidas como a única política de extensão nacional” (p. 12).

As políticas para o direito da mulher têm percorrido um longo caminho em busca de consolidação. Seu marco inicial foi a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985, o primeiro órgão do país a tratar sobre o assunto. Esse conselho não tinha poder de execução e monitoramento das políticas públicas, mas formulava propostas políticas para as mulheres, tendo contribuído também no processo de construção da Constituição Federal de 1988 (PASINATO e SANTOS, 2008).

Um importante passo foi dado nos anos seguinte (1994-1998/1999-2002), quando o Brasil agrupou, no seu sistema jurídico-normativo nacional, algumas normas internacionais de direitos humanos, como a Convenção Americana dos Direitos Humanos, ratificada em 1992, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará, ratificada em 1995 (PASINATO e SANTOS, 2008).

Outra conquista política, no trato da violência contra a mulher, foi a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), em 2003, já que, antes disso, os conselhos estaduais e nacionais não conseguiram formular uma política nacional que abrangesse o enfretamento da violência contra a mulher (PASINATO e SANTOS, 2008). No mesmo ano, a SPM lançou a Política Nacional de Enfretamento da Violência contra a Mulher, cuja ação se deu visando prevenir, assistir e garantir os direitos da mulher em diferentes campos.

A partir desse contexto, é possível perceber que as políticas públicas têm sido ampliadas e/ou reformuladas com relativa frequência. Mesmo assim, por vezes, parece haver um descompasso temporal entre as novas determinações e as necessidades atuais. A dificuldade de se manter um

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diálogo profícuo entre momento e ação parece estar relacionada à insustentabilidade de formas predeterminadas e estáticas de comportamento humano.

Para Giddens (1991), a sociedade moderna produziu transformações nos modos de vida com uma velocidade jamais percebida em outras épocas, envolvendo descontinuidade e mudanças tão intensas nos relacionamentos humanos, que dificultam interpretações sobre sistematização da organização social e nos leva a ideia de perda de controle. O controle de tudo e de todos parece ter se tornado o objetivo a ser alcançado na e pela sociedade, mas não há a possibilidade de sucesso nessa busca, e o homem, sem acreditar nas próprias limitações, passa a se nutrir dessa procura utópica.

Ainda sobre as formas sociais de relacionamentos atuais, Bauman (2001) aponta a rapidez dessas transformações na sociedade contemporânea e as consequências desse fenômeno nas relações humanas. Para o autor, há uma “liquefação” das relações sólidas que fragmentam a sociedade e produzem dissolução dos laços afetivos e sociais substituindo-os por desapego, provisoriedade e liberdade, situações e sentimentos que tem provocado diversos sintomas nos indivíduos e na coletividade, dentre os quais destacamos a violência.

Partindo da ideia de que as relações se estabelecem em sociedade, daremos um enfoque no que diz respeito à violência, em virtude desta já ter se estabelecido veementemente na sociedade e já ter se tornado um problema de saúde pública (OMS, 2002).

A princípio, buscamos abordar a violência, trazendo alguns sentidos, sem, contudo, ter a pretensão de superar o assunto. Para a Organização Mundial da Saúde (2002, p. 5), a violência pode ser definida como:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.

Sobre violência e saúde, Minayo (1997/1998, p. 520) ressalta que "a violência afeta a saúde porque ela representa um risco maior para a

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realização do processo vital humano: ameaça a vida, altera a saúde, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou como possibilidade próxima" (AGUDELO apud MINAYO, 1997/1998).

Ainda para Minayo (1997/1998, p. 514), “... a violência consiste em ações humanas de indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral, mental ou espiritual”. Além da pluricausalidade do tema, a autora também ressalta que o mesmo é complexo, polissêmico, controverso, e propõe o tratamento no plural para essa realidade, ou seja, tratá-la como e por violências. Sugere, ainda, a criação de uma epidemiologia da violência, já que esta “inibe, modifica e enfraquece tanto a qualidade como a capacidade de vida” (MINAYO, 1997/1998, p. 521).

No mesmo sentido, na concepção de Chauí (CHAUÍ apud SANTOS e IZUMINO, 2005, p. 149), a violência corresponde, portanto, a:

(...) ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir. A ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não como “sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. Nesse sentido, o ser dominado perde sua autonomia, ou seja, sua liberdade, entendida como ‘capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir’.

A partir desse contexto, a violência pode ser compreendida como toda ação que cause ou possa causar dano e inferiorizar o sujeito, além de prejudicá-lo em vários âmbitos, como físico, psíquico, social e mental. Isto posto, reportamo-nos para a violência praticada contra as mulheres, mais especificamente, em relação à violência doméstica contra a mulher e seus desdobramentos, a qual a OMS (2002, p. 91) denomina de “violência perpetrada por parceiro íntimo”.

No que se refere ao conceito de violência doméstica contra a mulher, de acordo com a Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, 1994) podemos compreender “... por qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (artigo 1º).

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Em relação aos tipos ou formas de violência doméstica contra a mulher que podem ocorrer, podemos denominar, pelo menos, cinco, descritas também na Lei Maria da Penha (BRASIL, 2008), que são: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral (artigo 7º, I a V, da Lei 11.340/06). Os cinco tipos de violência são descritas no quadro 01.

Tipo de Violência Descrição

VIOLÊNCIAFÍSICA

Entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal.

Entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional, diminuição da autoestima ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

VIOLÊNCIAPSICOLÓGICA

VIOLÊNCIASEXUAL

Entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos

VIOLÊNCIAPATRIMONIAL

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pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

VIOLÊNCIAMORAL

Entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

QUADRO 01: Descrição dos tipos de violência contra a mulher. Fonte: BRASIL, 2008

De acordo com o quadro acima, pode-se compreender que os diversos tipos de violência encontram-se imbricados. Nos casos de violência física, por exemplo, esta não ocorre isoladamente. Ela pode estar associada à violência de ordem psicológica, moral e/ou sexual, dando a entender que o processo de violência acontece em progressão geométrica, aumentando de intensidade e frequência, com o passar do tempo, até culminar na violência física. (OMS, 2002; SILVA et al, 2007).

Questões como danos psicológicos, morais, sexuais e patrimoniais são tão importantes quanto os danos físicos para serem considerados no trato da violência doméstica contra a mulher, pois, além da própria mulher como vítima, os outros tipos de violência, como a violência psicológica, pode afetar, direta ou indiretamente, os outros membros da família, que presenciam ou convivem no ambiente em que a violência ocorre (SILVA et al, 2007).

A OMS reforça a ideia da coexistência de vários tipos de abuso em um mesmo relacionamento, no entanto, reconhece que os estudos sobre violência doméstica contra a mulher ainda são emergentes e que, por isso, há escassez de dados sobre os variados tipos de violência de gênero, afora sobre a violência física. A OMS (2002, p. 91) aborda que essa temática está relacionada às questões de gênero, ao enfatizar que:

O fato de as mulheres em geral estarem emocionalmente envolvidas com quem as vitimiza, e dependerem economicamente deles, tem grandes implicações para a dinâmica do abuso (...). Para muitas dessas mulheres, a agressão física não foi um evento isolado, mas sim parte de um padrão contínuo de comportamento abusivo.

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25Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão

A temática de gênero remete ao século XX, quando Simone de Beauvoir escreveu o livro chamado “O Segundo Sexo” para abordar fatos e mitos da condição da mulher (SAFFIOTE, 1999). O livro é considerado, atualmente, um precursor da prática discursiva sobre gênero, por ter originado questões sobre ambos os gêneros humanos, ter inaugurado a discussão sobre a situação da mulher e ter trazido questões que subsidiaram a construção social do feminino, elucidando em suas páginas que: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.” (SAFFIOTE, 1999, p. 160).

Para a realização deste trabalho, foi utilizada a metodologia qualitativa, com base na perspectiva Fenomenológica Existencial, fundamentada em Heidegger (1999), a partir da analítica do sentido de Critelli (2006). Para essa autora, que se baseia na fenomenologia existencial de Heidegger, compreender no sentido fenomenológico significa apreender-com, refletir sobre o homem a partir de seu modo de “ser no mundo”. Isso requer: pensar, interpretar e apreender, lidando com o fenômeno que emerge e que não se restringe a um objeto meramente concreto e metafísico.

Foi utilizada a narrativa de Benjamin (1985), como instrumento que permite ingressar no campo fenomenológico do outro. As experiências das delegadas foram colhidas através dos seus relatos verbais, tomados como a emergência do fenômeno, guardando em si o testemunho vivo da experiência numa forma de comunicação.

Para a pesquisa, foi realizada uma entrevista aberta com cada delegada titular das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, em funcionamento, do Estado de Pernambuco. Como critério de exclusão, foi vetada a participação de homens, caso houvesse algum ocupando o cargo de delegado. Desse modo, apenas cinco (05) delegadas colaboraram com a pesquisa, uma se encontrava de férias durante o período da colheita, sendo substituída naquele momento por um delegado e outra se recusou a participar, correspondendo a um total de 71,4% de todas as delegadas da mulher de Pernambuco.

Este trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Estudos Humanos da Univasf, seguindo as recomendações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde (1996).

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As entrevistas abertas se deram a partir da pergunta disparadora: “Como é para você ser delegada na Delegacia da Mulher (DEAM)?”.

5Após a colheita dos dados, foi realizada a transcrição literal das entrevistas e, posteriormente, a literalização, que se constitui num processo de transformação da narrativa transcrita numa narrativa literária. Em seguida, a produção literária foi enviada às entrevistadas, por correio eletrônico, para que elas pudessem verificar a literalização realizada, até que esta estivesse em perfeito acordo com o sentido primeiro de sua fala. A etapa seguinte foi a leitura das narrativas, a partir da qual foram anotados os agrupamentos de sentidos, que brotaram em decorrência da nossa relação com as narrativas, produzindo, então, as tematizações.

Compreendemos tematizações como a configuração das dimensões da experiência que perpassaram as narrativas das colaboradas, emergentes durante nossa relação com os depoimentos, uma vez que essas dimensões são agrupamentos de ideias e sentimentos que apontaram para o sentido de ser delegada de DEAM.

A análise das narrativas foi realizada a partir da analítica do sentido de Critelli (2006), já que essa autora propõe uma forma de analisar as narrativas numa perspectiva fenomenológica que dialoga com a ideia de experiência. Utilizamos a perspectiva narrativa de Benjamim (1985) como referencial de compreensão de experiência, ou seja, narrar é experienciar o “estar no mundo”. A partir das tematizações, provocamos um diálogo entre o que nos apropriamos das narrativas, com as leituras teóricas, e os autores compreendidos acerca do fenômeno em análise.

Buscou-se analisar como as delegadas das DEAM’s de Pernambuco compreendem e executam a sua práxis, ou seja, como constroem seus saberes e se o ambiente de trabalho, permeado por violência, influencia em seu desempenho profissional.

Desse modo, emergiram três tematizações, a partir da análise das narrativas, foram: 1) Sentidos de ser delegada da mulher; 2) A formação: um desafio a ser (re)pensado; 3) A experiência que (trans)forma a profissional delegada.

5 O termo colheita refere-se à ideia do pesquisador como um “recolhedor de experiências” que, segundo Schimidt (1990, p. 70), “deve se inspirar mais pela vontade de compreender do que como um analisador à cata de explicações”.

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27Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão

As narrativas apontam em direção aos prazeres e as dificuldades profissionais encontradas na função de chefia em um serviço, no qual a violência se interpola de forma significativa.

Sentimentos contraditórios como frustração, raiva e desesperança se intercalam a outros como, por exemplo: orgulho, realização e satisfação, num movimento constante que pode contribuir para a construção de modos no desempenho da função, bem como possíveis transformações nos mesmos. A convivência diária das delegadas com as mulheres vítimas de violência, que buscam o serviço, parece possibilitar a emergência dessa profusão de sentimentos, a partir da relação de aproximação que se estabelece entre elas. Diante disso, os sentimentos transitam entre polaridades extremas, como pode ser percebido nas narrativas abaixo:

Assumir essa função foi um desafio muito forte (...) mas sempre quis trabalhar com mulheres (...) nós somos tudo para quem nos procura, na verdade, somos psicólogas, amiga, protetora e delegada de polícia. (...) Ser delegada da mulher não é nada fácil, não é qualquer uma que encara isso. [Delegada I]

Ser delegada da mulher é maravilhoso! (...) é um trabalho diferente porque fazemos parte da vida daquelas pessoas. Poder mudar a história de violência de uma família é o mais gratificante. (...) dá para se envolver pessoalmente e atender cada uma das vítimas, não é impossível, inclusive, é o esperado de uma delegada de uma delegacia da mulher, que ela tenha esse contato com a vítima. (...) É preciso ter perfil para permanecer no cargo. [Delegada II]

Diniz e Angelim (2003) indicam que profissionais, que no seu ambiente de trabalho convivem com a temática da violência, em suas mais variadas formas de manifestação, parecem estar sujeitos a desenvolverem vários sentimentos, como “... o espanto, o horror, a incredulidade.” (p. 24), não só relacionadas à situação em si, como também nas relações e pessoas envolvidas. Outra dimensão, desvelada nas narrativas, aponta para as afetações que perpassam o profissional, posto que a convivência constante com fenômenos amplos e complexos, que necessitam de intervenções muito intensas, tendem a exigir adaptações, transformações e criatividade diferenciadas, que permitam conviver nesse contexto. (ALVES, MORATO, CALDAS, 2009)

Entretanto, a ambivalência de sentimentos, que se faz presente no dia-a-dia dessas profissionais, parece se atenuar ou se tornar menos impactante com o passar do

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tempo. As afetabilidades passam a ser controladas em benefício da própria saúde mental e/ou como atributo necessário para um melhor desempenho, sem, contudo, deixar de exigir, dessas delegadas, atenção e empenho constantes para a manutenção desse comportamento considerado “adequado”.

Para Dejours (1992), o trabalhador lança mão de uma série de estratégias defensivas para minimizar o sofrimento presente em determinadas funções, com o objetivo de evitar que se transformem em patologias. Talvez esse seja um dos maiores desafios enfrentados no exercício profissional, como nos mostram os depoimentos a seguir:

No início (...) tive que fazer uma terapia porque chegava em casa muito estressada. Com o passar do tempo, aprendi a vir para o trabalho, ouvir o que está aqui e deixar aqui mesmo, não levar nada para casa. [Delegada I]

Às vezes chegava a chorar junto com as mulheres. Então, me envolvia mesmo, mas agora consigo me preservar mais, acho que é um distanciamento necessário. [Delegada II]

Para lidar com a violência no dia-a-dia (...) não pode ser aquela pessoa fragilizada, porque senão vai trazer problemas, não só para si, mas para a pessoa que está sendo atendida... [Delegada IV]

Parece ser essa combinação de desafios e conquistas que alicerça essas profissionais no desempenho de suas funções, pois, ao mesmo tempo em que elas se sentem frustradas com determinadas situações, também buscam alternativas para superá-las. Assim, as delegadas parecem adquirir e usufruir de novos conhecimentos e experiências com as situações vivenciadas.

A experiência parece assumir aspecto relevante no desempenho profissional, nas narrativas das delegadas, ao ser citada como componente complementar à formação acadêmica, pois acrescenta às profissionais maior amplitude nas formas de atendimento, além de promover dispositivos de proteção psíquica das mesmas para a manutenção da integridade de sua saúde mental. Não sei como é que aprendi, na verdade, acho que, com o tempo, fui me acostumando. O que me proporcionou aprendizado mesmo foi o tato. Não estudamos uma teoria de como lidar com mulheres vitimizadas... Não temos essas teorias, entendeu? Então, acho que vem muito da experiência mesmo. [Delegada I]

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Entretanto, mais especificamente sobre minha atuação, acho que adquiri traquejo no dia a dia. [Delegada II]

Carneiro (2009, p. 79) ressalta que “existe um saber de ofício que passa pela experiência pessoal”, e se soma ao conhecimento científico e à prática, na resolução de uma demanda. O conhecimento nomeado, por alguns autores, como tácito, (FIGUEIREDO, 1993; POLANYI, 1891; SAIANI, 2004 apud CARNEIRO, 2009) costuma ser pouco valorizado pela academia, devido à dificuldade encontrada para sua transmissão, uma vez que suas origens “não se fundamentam em operações explicitamente lógicas” (p.77). Esses dois conceitos, saber acadêmico e conhecimento tácito, parecem se complementar e, ao mesmo tempo, indicar que situações semelhantes a outras já vividas podem ser solucionadas mais facilmente.

Figueiredo (2004, p. 116) define o conhecimento tácito como “Conhecimento incorporado às capacidades afetivas, cognitivas, motoras e verbais de um sujeito. O que caracteriza esse conhecimento é ser de natureza eminentemente pré-reflexiva”. Ou seja, é um conhecimento agregado aos saberes teóricos, que permite uma melhor relação e resolução da problemática.

Quando se ingressa na polícia, há um curso de preparação inicial do quadro de servidores, realizado na Academia de Polícia. Com a prática, o profissional adquire experiência e uma visão mais amadurecida dos fatos. [Delegada III]

Trabalhos anteriores foram uma escola (...) fui e vi que aprendi e, agora, sou capaz de ir para qualquer especializada, que vou saber fazer o trabalho. [Delegada V]

As narrativas das delegadas corroboram no sentido de que há uma complementação entre conhecimento explicito e tácito, ou seja, “... o conhecimento que se torna disponível na forma de sistemas de representação, como é o caso de uma teoria” (FIGUEIREDO, 2004, p. 117), embora essa complementação não se mostre, por completo, suficiente para o exercício da profissão.

Fazendo uma analogia com um iceberg, Nonaka e Takeuschi (1997 apud CARNEIRO, 2006) comparam o conhecimento explícito como a ponta visível desses blocos de gelo, em que a parte submersa e mais volumosa pode ser definida como conhecimento tácito, lembrando que, o que hoje

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30 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

está exposto já foi um dia submerso, como também o que ainda está submerso pode tornar-se visível a qualquer momento.

Dessa forma, compreende-se que o tempo de serviço, citado pelas delegadas como benéfico para o desempenho profissional, pode ser analisado como a incorporação de conhecimento tácito aos seus saberes acadêmicos. Essa junção de saberes pode se tornar um aliado das delegadas no desempenho de suas funções, sobretudo, se for colocado, constantemente, em diálogo e produção de novos conhecimentos sobre sua prática.

A formação inicial para o cargo de delegado(a) não se difere entre as diversas delegacias existentes - especializadas ou gerais. Após a aprovação em concurso e período de treinamento na Academia de Polícia Civil (ACADEPOL - PE), segundo as depoentes, os policiais podem passar, ou não, por um treinamento específico para ocupar as delegacias especializadas – narcotráfico, turista, idosos, criança e adolescente etc.

Para o trabalho em DEAM, faz-se necessário, dentre as competências e habilidades a serem desenvolvidas, um conhecimento específico voltado para lidar com as questões relativas à violência de gênero. Entretanto, a partir dos depoimentos, esse tema parece não ter sido contemplado durante a formação de algumas das profissionais delegadas. Segundo Pasinato e Santos (2008), os cursos de capacitação para profissionais policiais dependem de articulação política entre Secretaria de Segurança Pública e governos e, apesar de se verificar um aumento na oferta de palestras, cursos e seminários, ainda não foi possível avaliar o alcance e o impacto dos mesmos nas diversas delegacias do país. No entanto, observa-se que a formação continuada no estado de Pernambuco tem recebido atenção governamental.

Hoje a academia está preparando muito melhor do que preparava na minha época. Se compararmos os policiais de antigamente com os de hoje, veremos uma diferença gritante com relação a tudo: ao tratamento, à formação. (...) [Delegada I]

A formação profissional, atualmente, dá mais subsídios para a atuação como delegada (...) a formação foi melhorada. Somos uma delegacia bem nova (...) desse modo, os agentes já possuem outra formação, tiveram formação na academia e fizeram um curso antes de serem lotados aqui. [Delegada II]

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31Ser Delegada da Mulher: Construindo Sentidos Frente às Vicissitudes da Profissão

Existe necessidade de conhecimento e aprendizagem de outras áreas para exercer a função de delegada. Há uma preocupação, tanto pessoal quanto do departamento, para a qualificação profissional através da realização de cursos. [Delegada IV]

Ainda sobre o mesmo tema, o investimento em formação continuada revela sua importância, frente à constatação das próprias delegadas, ao indicarem que a atualização de conteúdos e informação, através de cursos ou minicursos, é um dispositivo importante na tarefa de contribuir para a execução de seus papéis, pois a formação por si só não pode garantir a sustentabilidade da atividade profissional.

É importante constante busca por aperfeiçoamento. [Delegada III]

Todos os policiais daqui têm cursos na área de violência doméstica e também participamos dos cursos periódicos da SENASP. Vários cursos são oferecidos. Agora mesmo estamos no meio de um curso... [Delegada IV]

É muito importante, gosto muito, digo que é agregar conhecimento. Por mim, teríamos treinamento de seis em seis meses, uma espécie de reciclagens. Mas não espero só pelo departamento, procuro fazer cursos que são oferecidos pelo SENASP. Para o exercício da profissão há uma necessidade de busca pessoal. [Delegada V]

As narrativas e as visitas realizadas às DEAM’s de Pernambuco possibilitaram a identificação de, pelo menos, três tipos de formação diferenciados entre as profissionais que, no período da colheita de dados, ocupavam o cargo de delegadas: o primeiro refere-se às profissionais cuja formação aconteceu há mais de 25 anos, período em que ainda não existiam as referidas delegacias no país; o segundo grupo foi representado pelas profissionais que têm 10 e 25 anos de formação; o terceiro grupo, sendo o mais numeroso, foi composto por mulheres que concluíram a academia dentro dos últimos dez anos.

A relação tempo-formação foi ressaltada pelas delegadas e observada pelas pesquisadoras como um diferencial que imprime características específicas na forma como elas executam e/ou compreendem sua função e, consequentemente, desdobram-se nas formas de atendimento oferecido à vítima que procura o serviço. Desdobramentos que podem ser identificados desde a preocupação com o espaço físico limpo, organizado e o mais acolhedor possível, até a forma como conduzem e

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32 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

orientam os atendimentos a serem realizados por sua equipe, como demonstram as falas a seguir:

Acho que, na verdade, todas as delegacias deveriam ser acolhedoras, independente de serem especializadas da mulher ou não. (...) Quando tem atendimento de criança, temos que fazer em uma sala reservada, que não haja barulho, nem interrupção, porque é complexo fazer oitiva de criança vítima de abuso sexual. Temos brinquedos na delegacia para ajudar nesse atendimento. [Delegada IV]

Gosto de orientar meu pessoal, até porque os policiais são como o esboço da delegada. Ela é o exemplo, se ela for ruim, então, aqueles policiais vão procurar se espelhar nela. (...) Digo aos meus policiais: perguntem o que a mulher está precisando. Não quero saber de nenhuma mulher saindo dessa delegacia reclamando de atendimento. [Delegada V]

Para algumas das delegadas, existe a preocupação e o cuidado de verificar como seus funcionários estão atendendo ao público que os procura. Essas profissionais parecem corroborar com a ideia das pesquisadoras de que as instalações e a forma como os serviços são oferecidos espelham o desempenho de suas gestoras.

Tornar-se profissional envolve um entrelaçamento complexo, dimensões que não podem ser integralmente controlados pelo humano. Compreendemos que o sentido de ser delegada, para as depoentes, constitui-se frente à manutenção da tensão entre conhecimento acadêmico e conhecimento tácito, transformada em uma práxis que se aprimora a partir de aprendizagens agregadas, cotidianamente, à profissão. O diálogo entre os saberes supracitados requer do profissional abertura para novas aprendizagens, que se fazem necessárias frente aos serviços, em especial, onde a violência de gênero surge como principal componente das demandas que ali se apresentam.

O convívio permanente, em contexto permeado por violência, provoca afetações e reações diferenciadas nos profissionais do setor, que costuma acompanhá-los, até mesmo, nos momentos de folga. Sobre essa questão, algumas alternativas são buscadas individualmente, mas a complexidade e a intensidade do problema fazem com que ele mereça ser priorizado e considerado uma necessidade coletiva do meio de trabalho, a ser cuidada desde o período da formação. Nesse sentido, existem propostas que podem

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ser trabalhadas de maneira eficaz para preservar a saúde psíquica do trabalhador através de suporte psicológico.

Foi possível percebermos que, no estado de Pernambuco, as delegadas da mulher participam de uma mudança gradual e constante concernente a formas de compreensão sobre as questões relacionadas ao gênero que, consequentemente, refletem na forma de atendimento destinada às usuárias do serviço. Dentre os aspectos que colaboram para as mudanças, destaca-se, nos últimos anos, o investimento pessoal de cada profissional e o crescente empenho do Departamento da Mulher (DPMUL-SDS-PE) como, por exemplo: padronização, aparelhamento das delegacias, capacitação e apoio aos profissionais.

Finalmente, queremos registrar que foi perceptível, durante a colheita de dados, o empenho das delegadas de DEAM’s e do governo de Pernambuco na implantação e subsídio de novas propostas que buscam melhoria na eficácia do seu trabalho e na erradicação da violência doméstica.

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37Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Imagens da Violência: Um Ensaio Sobre a Psicossociologia dos Grupos Violentos e suas

Perspectivas Compreensivas

1por Liércio Pinheiro de Araújo

1 Psicólogo, Mestre em Cognição, Doutor em Gestão do Comportamento, professor universitário e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Psicologia Jurídica do Centro Universitário CESMAC. E-mail: [email protected]

Nos últimos anos, temos acompanhado um aumento da atenção dada aos grupos violentos de rua. Profissionais e pesquisadores esforçam-se para compreender e neutralizar os efeitos de participação dos jovens nesses grupos. No entanto, apesar de uma riqueza de quadros teóricos e resultados empíricos, mesmo em questões fundamentais, como uma definição consensual, continuam a nos iludir. Consideramos, neste trabalho, algumas das estruturas teóricas mais influentes e resultados empíricos associados e descobrimos que, tal como está, o nosso conhecimento sobre esses grupos violentos é ainda limitado. Sugerimos que os caminhos futuros devem adotar uma abordagem mais multidisciplinar para o estudo dos grupos de jovens violentos. Para este fim, argumentamos que há um papel para a psicologia nesta importante obra, e que sua participação vai nos fornecer uma compreensão mais profunda e mais significativa das gangues e dos jovens que se juntam a elas.

No ano de 2010, presenciamos um fenômeno específico da violência nas ruas das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, grupos homofóbicos, gangues violentas que, num frenesi desmedido, espalharam o terror na praia de Copacabana, que, no linguajar brasileiro, são denominados “arrastões”, e grupos de jovens de classe média que apresentam reações violentas contra a diversidade sexual. No entanto, precisamos compreender tal fenômeno como algo universal, dado que grupos violentos de rua facilitam o

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comportamento destrutivo e não é apenas uma associação com seus pares agressores. Consequentemente, os grupos violentos de rua representam problemas para qualquer sociedade ordenada e digna de atenção de pesquisa. O objetivo deste trabalho é compreender as teorias existentes e pesquisar a violência de rua como atividades em que estão envolvidos estudos dentro da psicologia, sociologia e criminologia.

Diversos sociólogos e psicólogos têm produzido uma abundância de excelentes trabalhos, mas a ampliação da participação dos estudos da psicologia da violência possui o objetivo de ampliar o conhecimento de uma forma que só pode beneficiar a compreensão psicossocial do fenômeno da violência. E, assim, apresentamos também o argumento de que os pesquisadores precisam se tornar mais envolvidos no estudo de grupos violentos de rua.

É impossível, neste trabalho, a cobertura de todas as investigações sobre violência, pois a literatura é extremamente vasta. Os primeiros trabalhos sobre grupos violentos, produzidos por Thrasher (1929) e Short e Strodtbeck (1965), são tão relevantes hoje como eram historicamente e devem ter um lugar em qualquer teorização. A maioria das pesquisas foi realizada nos EUA e, posteriormente, outros trabalhos foram desenvolvidos em outros países. No entanto, tentar extrair alguma coesão para os debates em curso em torno da literatura, a respeito de grupos violentos de rua, é produzir mais ideias e indicações do que as abordagens multidisciplinares para a investigação de grupos violentos podem abraçar.

Antes de podermos começar a examinar qualquer fenômeno devemos ter uma definição clara dos conceitos que o abrange. Partimos do principio de que os fenômenos estudados não estão claramente definidos e são susceptíveis de serem repletos de mal-entendidos, que poderiam torná-los, contextualmente, sem sentido. Um breve olhar sobre a literatura referente a grupos violentos de rua mostra que a falta de consenso sobre o que constitui uma gangue tem perseguido a literatura durante grande parte do século passado (Bursík & Grasmick, 1993; Esbensen, Winfree, Ele, &Taylor, 2001; Spergel ver, 1995). Klein (1991) observa que, durante a década de 1960, os grupos violentos de rua foram considerados genéricos, eles pareciam iguais e membros agiam da mesma forma. Havia pouca pressão para assistir atentamente às questões de definição como, por exemplo, o que é uma quadrilha,

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quando um grupo não é uma gangue, o que constitui grupos violentos de rua ou de diferentes níveis de participação nesses grupos. No entanto, sem uma definição precisa e parcimoniosa do que constitui um grupo violento de rua, é impossível separar o fato da ficção (Bursík & Grasmick 1995). Definições precisas pode nos iludir, porque muitos interessados (por exemplo, pesquisadores, acadêmicos, políticos, mídia etc.) podem operar em definições diferenciais (Esbensen et al, 2001;. Esbensen & Weerman, 2005; Spergel, 1995) que levam à mídia distorcida (Horowitz, 1990).

Vários autores tentaram elaborar definições de modelos explicativos sobre o fenômeno em pauta. Por exemplo, Sharp (2006: 2), em estudo realizado no Reino Unido, define grupo violento de rua como:

Um grupo de três ou mais que gasta muito tempo em espaços públicos, tem existido por um período mínimo de três meses, exerceu atividades delinquentes nos últimos 12 meses, e tem pelo menos uma característica estrutural, ou seja, um nome de líder, código ou regras.

Outros têm sugerido que um grupo de jovens pode ser considerado uma quadrilha se identificar o seu grupo como unidade coletiva, se outras pessoas também identificá-los como um grupo e se o grupo considera a atividade antissocial ou criminal como uma norma de grupo (Hakkert, van Wijk, Ferweda & Eijken, 2001). Por outro lado, alguns pesquisadores (Bennett & Holloway, 2004) não consideram a criminalidade como um critério necessário para a definição de uma gangue, enquanto outros têm argumentado que a ausência de criminalidade faz com que a definição de uma gangue seja muito ampla (Klein & Maxson, 1989; Howell, 1998). Se a atividade criminosa não é um pré-requisito para a definição de uma quadrilha, então, inevitavelmente, haverá "bons" e "maus" grupos (ou seja, aqueles envolvidos em atividade criminosa e os que não são). O resultado disto é que, simplesmente, agrava a confusão que já contamina parte da literatura. Por exemplo, Araújo (2006) observa que, em São Paulo, no Brasil, grupos de jovens que foram rotulados como "gangues", relataram que a principal razão de eles estarem juntos era ficar longe de problemas. Outros observam a dificuldade em identificar membros de gangues e os medos de que as referências ao "gang" sejam entendidas como princípio para estigmatizar os jovens e criar um "gangster" de identidade (Bullock & Tilley, 2008).

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Se a definição não é imposta por aqueles que analisem um fenômeno, talvez pudesse vir de todos os envolvidos, ou seja, de autoindicação. Um estudo longitudinal, realizado no Canadá, pediu a jovens que respondessem a seguinte questão: "Durante os últimos 12 meses, você foi parte de um grupo ou gang que fez atos condenáveis?" (Gatti, Tremblay, Vitaro & McDuff, 2005, p. 1180). No entanto, mesmo se os jovens entendessem o significado da palavra "condenável", no sentido moral do termo, é possível a relativização da percepção subjetiva do que é condenável. Nos EUA, pesquisadores, utilizando a lógica do "se anda como um pato, fala como um pato, é um pato", simplesmente perguntaram aos participantes se eles eram membros de uma gangue e que atividades relacionadas com gangues têm estado envolvidas (Esbensen, 2001). Membros de gangues autodeclarados possuem maior envolvimento em comportamentos delinquentes e atitudes antissociais.

Uma vez que existem muitas diferenças entre e dentro de grupos (Fagan, 1989), alguns defendem o abandono do termo "gang" completamente (Ball & Curry, 1997). Outros argumentam que uma definição precisa não é possível nem vantajosa, desde que gangues, como qualquer outro grupo, não pode ser caracterizada por uma definição única que iria perdurar ao longo do tempo e do local (Goldstein, 1991). Goldstein (1991) argumenta que muitas das definições que foram oferecidas, ao longo dos últimos 80 anos, todos são muito corretos e o que constitui uma quadrilha varia de acordo com as condições políticas e econômicas, com as diversidades culturais e o sensacionalismo gerado pelos meios de comunicação ou com a indiferença em relação à lei.

No entanto, existem diferenças fundamentais entre grupos de jovens violentos participantes de gang e violência juvenil. Os membros de gangue são 20 vezes mais prováveis do que jovens em situação de risco para participarem de um tiroteio, dez vezes mais propensos a cometerem um homicídio, oito vezes mais propensos a cometerem roubo, e três vezes mais propensos a cometerem assalto em público (Huff, 1998). Mesmo os jovens considerados violentos podem aumentar os seus níveis de violência, dramaticamente durante a permanência em grupo e, em seguida, diminuem quando deixam a gang (Bendixen, Endresen & Olweus, 2006). A ligação entre gangues e violência é tão profunda que as flutuações nas taxas de assassinatos e crimes violentos em cidades dos EUA, tais como Chicago (Curry, 2000), Cleveland e Denver (Huff, 1998), Los Angeles (Howell &

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Decker, 1999), Miami (Inciardi & Pottieger, 1991), Milwaukee (Hagedorn, 1994) e São Luís (Miller & Decker, 2001) têm sido atribuídas às variações nas atividades da gangue.

Pesquisadores europeus, ao contrário dos seus homólogos americanos, chegaram a um consenso sobre a definição de grupos violentos de rua. (Weerman, Maxson, Esbensen, Aldridge, Medina, & van Gemert, 2009). Reconhecendo que uma definição consensual é fundamental para a investigação comparativa, devemos fazer uma importante distinção entre gangues, delinquência e quadrilha. Estabelecermos definidores é essencial para caracterizar um grupo como uma gangue. Essa definição não deve ser permeada por características consideradas simples, por exemplo, a etnia, idade, sexo, vestuário especial, localização, nomes de grupo, padrões de criminalidade, e assim por diante (Klein, 2006). Na definição específica, um grupo violento de rua ou gangue tem quatro componentes que os definem: a durabilidade (pelo menos vários meses), orientação de rua, (fora de casa, no trabalho e escola), juventude (média de idade na adolescência ou vinte anos) e identidade, através de atividades ilegais.

Em geral, o argumento de que a violência ou a criminalidade deve ser um critério necessário para definir uma gangue é convincente. Como tal, faz sentido que um comportamento criminoso deve ser incluído como um critério necessário para a definição de um grupo violento de rua, apesar de pesquisadores norte-americanos ainda não chegaram a um consenso sobre a definição de grupo violento e delinquência juvenil.

Precisarmos de uma definição clara e abrangente, que esclareça o que é um grupo violento de rua. É também necessária uma teoria abrangente para orientar o trabalho empírico e fornecer uma síntese para explicar por que as pessoas se tornam membros de uma gangue. Explicações teóricas de participação de jovens em gangues existem há quase um século e nos fornece uma vasta literatura. Nesta perspectiva, devemos analisar algumas das proposições teóricas mais influentes de envolvimento no crime e considerar o seu valor para explicar a participação de jovens em grupos violentos de rua.

Uma das primeiras concepções é conhecida como teoria da desorganização social. Embora o interesse no início de gangues foi, principalmente, descritiva, Thrasher (1927) abriu o caminho para a explosão de pesquisas e

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seu desenvolvimento foi baseado em concepções que levaram a uma série de especulações sobre como os jovens se tornaram membros de gangues. Thrasher (1927) argumentou que a desestabilização econômica contribuiu para a desorganização social que, por sua vez, levou à desagregação das tradicionais instituições sociais, como a escola, a igreja e, mais importante, a família, que "não conseguiu segurar o interesse do garoto, negligenciá-lo ou realmente obriga-o para a rua" (p.340). A erosão gradual dos estabelecimentos convencionais significava que eles eram fracos e incapazes de satisfazer as necessidades das pessoas, de tal forma que eles perderam, gradualmente, a capacidade de controlar o comportamento da população da área. Thrasher afirmou que uma razão pela qual as instituições sociais não conseguiram satisfazer as necessidades da população era porque várias pessoas estavam vivendo em áreas desorganizadas, eram imigrantes.

Os imigrantes eram incapazes de ajudar seus filhos a se adaptar à sua nova cultura, devido à falta de familiaridade com os costumes locais. Além disso, a falta de apoio da ordem social estabelecida, como as escolas, não conseguiu compensar esta ignorância dos pais. Thrasher (1927) ordenadamente definia o fracasso das instituições convencionais, em oposição à emoção e entusiasmo oferecidos por instituições não-convencionais, que ofereceram às crianças "a emoção e as raspas de participação em interesses comuns, mais especialmente a ação das empresas, na caça, captura, conflito, voo e escape " (p. 32-33). Para Thrasher (1927), uma quadrilha existia quando o grupo se tornou organizado, adotada uma estrutura formal, tornou-se anexado ao território local e se envolveu em conflito. O conflito era uma noção fundamental para Thrasher (1927), o qual argumentou que resultou na formação de quadrilhas, criando conflito com outras gangues e com a ordem social convencional, as quais se opuseram a eles.

As observações de Thrasher (1927), sobre a desorganização social, conduziram a uma sucessão de investigações de gangues que se seguiram. Shaw e McKay (1931, 1942) comentam as ideias desenvolvidas por Thrasher (1927), argumentando que os bairros socialmente desorganizados culturalmente possuem famílias pobres e que, em áreas urbanas, têm baixos níveis de autoridade funcional sobre os filhos, que, uma vez expostos às tradições delinquentes, tendem a sucumbir a comportamentos delinquentes. Nesse clima cultural, as gangues tornam-se uma alternativa satisfatória para insatisfatórias convenções legítimas. Se a família, escola, igreja e governo não fornecem adequadamente aos jovens, estes formam

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grupos nativos, como as gangues, que proporcionam um sistema de apoio social nas comunidades socialmente desorganizadas (Spergel, 1995; Hill, Howell, Hawkins & Battin-Pearson, 1999; Lane & Meeker, 2004; Papachristos & Kirk, 2006). Esta formação do grupo e a criminalidade que emana dele são passadas de geração para geração, através da socialização, motivando os jovens a se desviarem das normas convencionais. Por outro lado, o convencionalismo domina áreas de classe média, e jovens dessa classe, talvez, fiquem expostos às tradições delinquente e estão adequadamente controlados pelos pais em um ambiente estável. Em consequência, para Shaw e McKay (1931), é o ambiente e não a identidade étnica do indivíduo que determina a participação no crime.

Sutherland (1960) reconhece que o comportamento criminoso é predominante em todas as classes e desenvolveu uma teoria da associação diferencial, na qual os jovens tendem a desenvolver atitudes e habilidades necessárias para se tornarem descumpridores de uma norma estabelecida, associando com pessoas que são "portadoras" de comportamentos desviantes (Sutherland, 1937).

A essência da associação diferencial é que o comportamento criminoso é aprendido e a parte principal do aprendizado vem de dentro de importantes grupos de pessoal (Sutherland e Cressey, 1960). A exposição a atitudes de membros de grupos, que querem favorecer ou rejeitar códigos legais, influencia as atitudes do indivíduo. E as pessoas vão continuar a cometer crimes, se eles são mais expostos a atitudes que favorecem a violação e expostos à atitudes de transgressão da lei no início da vida. Exposto a atitudes delinquentes por um período prolongado de tempo. Uma vez que as atitudes infracionais têm desenvolvido, os jovens aprendem as habilidades de criminalidade da mesma maneira como eles aprendem todas as habilidades, pelo exemplo e pela tutela. Sutherland (1937) alegou que a parte principal desse processo penal de aprendizagem é derivada de pequenos grupos sociais, tais como gangues.

O apelo da associação diferencial é que não se deve olhar só para o meio ambiente para obter explicações sobre o comportamento criminoso e explicar as diferenças nas populações que outros pesquisadores, como Shaw e McKay (1931, 1942), tinham ignorado. Sutherland (1937) também considerou a transmissão e desenvolvimento de construções psicológicas, tais como atitudes e crenças sobre o crime. No entanto, as ideias de

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Sutherland também têm seus críticos. Uma das críticas é que elas não conseguem especificar o quanto as pessoas necessitam para favorecer o crime, antes que se tornem influentes no sentido pró-penal, uma vez que, geralmente, as pessoas têm crenças que justificam o crime apenas em determinadas situações (Agnew, 1995; Akers, 1997). A associação diferencial também foi criticada por dizer, simplesmente, que as atitudes pró ou anticriminal pode ser desenvolvida através da associação com outras pessoas, sem explicar como esse processo funciona (Akers, 1997). Expandindo as ideias da associação diferencial, aproveitando a teoria dos processos de aprendizagem social, Akers (1997) propõe que o crime é aprendido graças ao desenvolvimento de crenças de que ele é aceitável em algumas situações, o reforço positivo de envolvimento criminal (por exemplo, a aprovação dos amigos, ganhos financeiro) e da imitação do comportamento criminoso dos outros.

A riqueza de evidências empíricas corrobora com as proposições da criminologia, como desorganização social (Shaw e McKay 1930, 1942; Thrasher 1927), a transmissão cultural das normas criminógenas (Shaw e McKay 1930, 1942) e Associação Diferencial (Sutherland 1937). Quando há gangues de rua também há probabilidade de ser a pobreza, a vitimização, o medo e a desorganização social (Chin, 1996; Goldstein, 1991; Howell & Decker, 1999; Howell, Egley & Gleason, 2002; Huff 1996, Klein 1995; Knox 1994; Spergel, 1995) e status socioeconômico baixo (Chettleburgh, 2007; Rizzo, 2003). Os jovens que vivem em bairros com altos índices de pobreza são mais propensos a cometerem atos delinquentes, e membros de gangues têm maior taxas de delinquência que grupos que nunca se envolveram em gangues (Eitle, Gunkel, e van Gundy, 2004; Esbensen, Huizinga e Weiher, 1993; Gordon, Lahey, Kawai, Loeber, Stouthamer-Loeber & Farrington, 2004). Além disso, as crianças e jovens que são incapazes de integrar as instituições sociais são mais susceptíveis de se tornarem inadimplentes e participarem dos grupos de pares desviantes, como resultado (Dukes, Martinez, & Stein, 1997, Hill et al, 1999).

Observam-se evidências de que, em muitas cidades do mundo, onde a forma de governo é fraca e a insegurança, assim como a instabilidade, dominam, grupos organizados tendem a "reinar" (Sullivan, 2006). Em muitos desses casos, quadrilhas evoluíram para complexos, as gangues de terceira geração que têm sofisticadas agendas políticas e sociais (Sullivan, 2006). Citamos por exemplo, a guerra nos morros cariocas.

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Apesar de vários estudos que parecem apoiar os conceitos propostos pelas teorias descritas acima, os críticos são rápidos em apontar as deficiências conceituais desta escola de pensamento. A teoria de Sullivan (2006) foi acusada de conceber as pessoas como motivacionalmente vazias, sem escolha, e como vasos simples para serem preenchidos com as imposições da sociedade (Emler & Reicher, 1995). Há também indícios de que não existe qualquer ligação entre status socioeconômico baixo e gangues (Eitle al. Al, 2004), e que estas podem tão facilmente vir de famílias mais ricas (Spergel, 1995). No entanto, o conceito de desorganização social é também acusado de ser tautológico, explicando a delinquência em termos de desorganização, quando a delinquência é um critério de desorganização (Emler & Reicher, 1995). Caulfield (1991) argumenta que os teóricos subculturais tentam criar imagens de monstros e demônios que devem "atender a certos critérios - tais como estando na extremidade inferior de classe, raça e hierarquias de gênero." (p. 229).

É, realmente, uma ironia que os teóricos culturais, tentando destacar as desigualdades da estrutura social, também podem reforçar estereótipos negativos do trabalho da classe dos povos e dos imigrantes. Consequentemente, o foco da investigação sobre gangues e grupos violentos de rua nos oferece poucas garantias de que os locais onde as gangues são encontradas são representativos de locais de gangues ou lugares semelhantes que não têm gangues (Tita, Cohen & Engberg, 2005). Se os pesquisadores sociais se concentrarem em áreas em que os socioeconomicamente desfavorecidos e as populações étnicas vivem, há o perigo de que as explicações de participação na gangue serão enquadradas, exclusivamente, pela privação socioeconômica e étnica. É evidente que precisamos de uma perspectiva mais ampla, se quisermos explicar adequadamente por que as pessoas se unem a gangues e tornam-se grupos violentos.

Outra perspectiva é a teoria da tensão. O conceito central dessa teoria é que a sociedade define metas universais para a sua população e, em seguida, oferece a possibilidade de alcançá-las a um número limitado de pessoas. A desigualdade de oportunidade resultante provoca uma pressão sobre os objetivos culturais. Este, Merton (1938) propõe, leva à anomia (Durkheim 1893), uma quebra na estrutura cultural, devido a uma aguda divisão entre normas culturais prescritas e a capacidade dos membros para agir em conformidade com elas (Merton, 1938). A consequência da anomia é que as

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pessoas se adaptam à sua situação através da adoção de uma forma específica de comportamento (Merton, 1938). Cohen (1955) descreve os membros de gangue, jovens de classe que experimentam tensão resultante de frustração de status. Frustração de Status pode ser resolvida pelos jovens, associando com outras semelhantes, a fim de se afirmarem contra os ideais da classe média e seus padrões. Por sua vez, isso leva à formação de uma subcultura delinquente, na qual gratificação instantânea, brigas e comportamento destrutivo vão se tornando os novos valores. É uma rebelião considerada certa, justamente, porque está contra as normas da cultura maior. Cohen (1955) argumenta que uma criança experimenta frustração de tensão devido à desigualdade de oportunidades oferecidas em uma sociedade meritocrática, que pretende operar em princípios igualitários da igualdade de oportunidades. Tomamos, por exemplo, de socialização inadequada os recursos da comunidade pobre de uma dada população e a carência de brinquedos educativos. A criança, enfrentando essas privações sociais, gradualmente, deposita-se no fundo da hierarquia educacional e experimenta sentimentos de frustração de status, envolvendo auto-ódio, culpa, perda de autoestima, autorrecriminação e ansiedade. A criança atribui a si mesmo pelo fracasso e lida com ela, buscando caminhos alternativos para a realização de status como membros de gangues de rua (Cohen 1955).

Tomando uma perspectiva diferente sobre a mesma questão, Cloward e Ohlin (1960) constataram que os membros do grupo culparam o sistema, ao invés de a si mesmos, por seu fracasso social, e "em guerra" contra a sociedade, por meio de expressões de raiva e de combate. Esta teoria, conhecida com oportunidade diferencial, é frequentemente citada como uma teoria geral da delinquência, que começou como uma teoria de gangues (Knox, 1994). Tal disponibilidade diferencial de meios ilegítimos, para resolver a tensão, significa que crianças de classe média têm a oportunidade de aprender a afrontar. Crianças de classe baixa têm esta oportunidade e, assim, afrontar com mais frequência. Cloward e Ohlin (1961) argumentam que Shaw e McKay (1939, 1942) não observaram um diferencial na oportunidade para aprender a afrontar e, portanto, simplesmente assumida (erradamente) que as classes médias tinham menos tendência a ofender a ordem estabelecida. Cloward e Ohlin (1961) concordaram com as ideias de Sutherland (1937), afirmando que os jovens aprendem a afrontar através das ações dos mais velhos, os delinquentes mais experientes. Agnew (1992) afirma que a teoria da tensão é desenvolvida por meio da identificação de

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formas específicas de pressão (independentemente da classe): (1) os fracassos reais ou previstos para alcançar metas positivamente valorizada, (2) a remoção, real ou antecipada de estímulos positivamente valorizada, (3) a apresentação real ou antecipada de estímulos negativos". Cada uma destas perspectivas pode ter um efeito crescente sobre a delinquência e, assim, haverá diferenças individuais em resposta à tensão vivida.

Pesquisas mostram que as quadrilhas compensam a tensão através de meios ilegítimos para alcançar objetivos que não são alcançáveis devido às carências de emprego e educação (Klemp-Norte, 2007). Os membros de gangue são susceptíveis de ter perdido modelos positivos, uma vez que, muitas vezes, vêm de famílias desorganizadas e muitos perderam o contato com um dos pais por morte, separação ou divórcio (Klemp-Norte, 2007). Os membros de gangue também estão mais expostos a influências negativas, tais como drogas e companhias delinquentes (Sirpal, 2002; Klemp-Norte, 2007). Exposição ao estresse tem sido identificada como um fator de risco para a participação na gangue (onde age como um mecanismo de desvio de enfrentamento para as metas inatingíveis, Eitle et al, 2004). Dessa forma, torna-se uma estratégia de enfrentamento das emoções negativas, como raiva, frustração e ansiedade (Eitle et al, 2004;. Klemp-Norte, 2007), a necessidade de desenvolvimento pessoal (Spergel, 1995) e uma falta de confiança e autoestima (Dukes, Martinez, & Stein, 1997). Alguns pesquisadores afirmam que não há relação entre gangues e autoestima (Bjerregaard & Smith, 1993).

Um problema com a teoria da linhagem é que, embora explique algumas das razões pelas quais os jovens podem ingressar em gangues, deixa de explicar por que a maioria da juventude de classe baixa, eventualmente, pode levar uma vida obediente à lei, embora o seu estatuto econômico permaneça estático (Goldstein, 1991), ou por que muitos jovens não experiência essa transgressão (Webster, et. al., 2006). Trinta e três por cento dos jovens que vivem em áreas carentes e que nunca tinha transgredido à lei, tinham experimentado um trauma significativo, como o divórcio dos pais não criminal, violência doméstica, a institucionalização dos pais em unidades prisionais ou de saúde mental, distanciamento da família de irmãos (Webster, et. al, 2006). Além disso, longe de se rebelar contra as normas da classe média, muitos membros de gangues, realmente, endossam os valores da classe média (Klein 1995; Sikes, 1997). Em um estudo etnográfico de membros de gangues femininas, Sikes (1997)

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observou como a maioria dos membros manifestou o desejo de ingressar em várias profissões, como enfermagem e docência, apesar de uma baixa frequência na escola, um registo criminal variado e uma possibilidade real de serem mortos, enquanto engajados na atividade de grupo. Muitos membros do grupo também gastam uma grande parte do seu tempo envolvidos em atividades convencionais, tomando medidas para encontrar um emprego, participar de esportes e fazendo planos para o futuro, tal como se alistar na Marinha (Hughes & Short, 2005).

Uma crítica da teoria da linhagem é que a pesquisa mostra que os jovens que têm mais dinheiro fornecido pela família são, muitas vezes, aqueles que se envolverem em gangues (Knox, e Tromanhauser 1991). Esta pesquisa vai questionar o conceito de que, quanto menor o status econômico do indivíduo, maior probabilidade existe de sua filiação subcultural. A pesquisa também mostra que as famílias dos jovens membros de gangue não são mais propensas a ajudar seus filhos com a lição de casa (Knox et al., 1992), o que pode significar que o tempo dos pais, em vez de dinheiro, é um fator de proteção para que os jovens tornem-se participantes de grupos violentos.

Claramente, a teoria da linhagem não dá conta de muitas das conclusões relativas à participação na gangue. É importante referenciar o trabalho realizado por Strodtbeck (1965) que compara às gangues brancas, as gangues negras, jovens de classe baixa e jovens de classe média (mais de 500 entrevistados em cada grupo estudado). Os dados foram coletados a partir de múltiplas fontes, usando uma variedade de metodologias, incluindo a observação sistemática, entrevistas com gangues e membros de grupos de não gangue, e os relatórios dos participantes do grupo. Assim, a premissa central da teoria de tensão é a presença de relacionamentos negativos no desenvolvimento da delinquência.

Em outra perspectiva teórica, a teoria de controle concentra-se na ausência de relações-chave (Agnew, 1992; Klemp-Norte, 2007). Como a teoria de deformação e teoria da desorganização social, postula a teoria de controle que as comunidades com uma estrutura de deterioração social são um terreno fértil para a delinquência. A tese central da teoria de controle é que as pessoas são inerentemente dispostas a afrontar e transgredir. Isso porque oferece ganhos a curto prazo (por exemplo, o dinheiro imediato), e o objetivo central das pessoas com disposições ao

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crime é satisfazer os desejos da forma mais rápida e simples possível (Gottfredson & Hirschi , 1990). A transgressão é impedida pelo vínculo social, que opera em construtos psicológicos, como a consciência do indivíduo. Contudo, uma avaria em vínculos sociais durante a infância deixa uma criança livre para agir em suas inclinações naturais, sem repercussões emocionais negativas.

Inicialmente, a teoria de controle enfatizou o poder de restrição que o sistema de justiça tinha sobre a delinquência (Gottfredson & Hirschi, 1990; Hirschi, 1969), e é, portanto, fundamentalmente, amarrado com as teorias da dissuasão. No entanto, os teóricos que propoem a teoria de controle, em geral, concordam que a estrutura social legítima não ocorre simplesmente porque as normas sociais são impostas às pessoas através de processos sociais. As normas sociais são eficazes, porque as pessoas podem internalizá-las através de um processo de socialização no qual as sanções formais são reforçadas por sanções informais (Fagan & Meares, 2008).

Gottfredson e Hirschi (1990) explicam, em sua teoria geral do crime, que a causa do baixo autocontrole e, portanto, a delinquência, é a criação inadequada dos filhos e pode ocorrer em qualquer classe social. A adequada educação infantil inclui: monitorar o comportamento da criança e reconhecer e punir os comportamentos desviantes. O resultado será "uma criança mais capaz de adiar a gratificação, mais sensíveis aos interesses e desejos dos outros, mais independente, mais dispostas a aceitar restrições à sua atividade e mais improvável do uso da força ou da violência para atingir seus fins." (p 97).

A adequada educação dos filhos é vulnerável a obstáculos, incluindo: os pais que não cuidam de seus filhos, os pais que se importam, mas que são incapazes de prover supervisão adequada, os pais capazes de fornecer tanto cuidado e vigilância, mas que são incapazes de identificar um comportamento como errado, ou os pais que estão pouco dispostas ou incapazes de fornecer a punição para o comportamento (Gottfredson & Hirschi, 1990). Para seu crédito, os autores ressaltam que a fiscalização e a punição devem ser conduzidas de uma forma amorosa, e que a decepção dos pais é um mecanismo de controle mais eficaz do que os castigos corporais. Assim, eles não endossam as sanções severas e punitivas que os teóricos do controle têm sido acusados de favorecer (Currie 1985).

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Gottfredson e Hirschi (1990) sugerem que a maioria das casas em risco de produzir filhos delinquentes é aqulea que possui pais criminosos, porque eles não reconhecem o comportamento dos filhos como infratores e as famílias monoparentais, porque a família monoparental é incapaz de monitorar adequadamente o comportamento da criança e falta apoio psicológico a partir de outro adulto. Apresentando um padrasto, pode não melhorar a situação como novo membro da família, pode ter pouco tempo ou afeto para a criança, que irá criar discórdia familiar e faz muito pouco para aliviar os problemas de educação infantil. As mães que trabalham também podem colocar as crianças em risco, porque elas não podem supervisionar adequadamente seus filhos. As escolas podem ajudar a socializar as crianças, mas somente se os pais não se opõem a qualquer tentativa de incutir autodisciplina para a criança.

Apesar de Gottfredson e Hirschi (1990) não abordarem diretamente o envolvimento dos jovens nas gangues, a teoria de controle social tem sido usada para prever o aparecimento de gangues (Thornberry, 2006) e foi encontrada a possibilidade de prognosticar os níveis de delinquência (Huebner & Betts, 2002). A falta de compromisso com um futuro positivo é evidenciado por membros de grupos violentos, mostrando pouco ou nenhum comprometimento na escola (Hill et al, 1999;. Brownfield, 2003). Os membros de gangue também tendem a experimentar a ausência de modelos parentais, desorganização familiar (Klemp-Norte, 2007) e baixa capacidade de gestão dos pais (Eitle et al, 2004; Hill et al, 1999; Sharp et al, 2006; Thornberry et al., 2003).

Jovens de famílias monoparentais, famílias com um dos pais e outros adultos e jovens sem pais são mais propensos a se tornarem membros de gangues do que jovens de ambos os pais (mesmo padrasto), famílias (Hill, Howell, Hawkins & Battin-Pearson, 1999) parece apoiar a teoria de controle. No entanto, variáveis de processo de família foram encontrados para jogar um papel muito menor na gangue (Thornberry, et.al, 2003), sugere a teoria de controle. A pesquisa mostra também que os laços com os pais (anexo) e gestão de famílias pobres não são tão fortemente relacionados com gangues, como a estrutura familiar (Hill, et.al, 1999). Mesmo que a supervisão dos pais se refira à participação em gangues, o relacionamento é muito modesto (LeBlanc & Lanctot, 1998). Isto sugere que o controle familiar não é um fator tão essencial nas gangues, como a teoria de controle indica. Mesmo em famílias nas quais os pais tentam

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controlar seus filhos, a disciplina não é uma solução simples para a delinquência, uma vez que pode levar a uma maior probabilidade de inadimplência, independentemente das relações parentais (Wells & Rankin, 1988). De fato, muitos membros de gangues afirmam que, muitas vezes, eram castigadas fisicamente pelos pais autoritários, até que eles saíram de casa, ou retaliaram com agressividade semelhante (Klein, 1995).

Há também evidências de que, mesmo dentro de grupos legítimos, normas sociais continuam a ser reconhecidas. Por exemplo, membros de gangues prestarem auxílio financeiro (apesar dos lucros do comércio de drogas) para comunidades carentes e prestação de serviços à lei e à ordem, escoltas de segurança para os programas de lazer e ajudarem as famílias pobres com o fornecimento de mantimentos, transporte gratuito e mão de obra (Venkatesh, 1997). É também paradoxal que, enquanto membros de gangues podem ser considerados a ocorrer por causa de uma avaria em formais e informais de controle social, a pesquisa nos oferece exemplos de grupos que fornecem controle social. Por exemplo, os objetivos comuns de líderes de gangues e os cidadãos honrados em bairros de classe média têm resultado em um ambiente mais estável e seguro, porque as gangues oferecem o controle social para a comunidade.

Além disso, embora a teoria proponha que o controle informal quebra do controle social para baixo e ofender os resultados, a teoria não consegue explicar adequadamente como o controle social informal pode ser reestabelecida. Por exemplo, alguns teóricos do controle social argumentam que uma propensão para o envolvimento criminal é estável ao longo da vida e da desistência do crime, só ocorre quando há uma mudança em oportunidade para o crime (Gottfredson & Hirschi, 1990). Entretanto, a evidência mostra que é o efeito do controle social que incita as pessoas a pararem de ofender. Por exemplo, membros de gangues deixam o grupo em favor da paternidade (Moloney, Mackenzie, Hunt & Joe-Laidler, 2009), do emprego, serviço militar e do casamento, tudo contribui para uma cessação de ofender (Sampson e Laub, 2001). Parece, portanto, que os controles sociais podem ser mais flexíveis do que a teoria de controle e sugere que, mesmo que de forma informal, que o controle social é dissolvido na medida em que os jovens se envolvem em delinquência. Isto apoia o argumento de que as teorias convencionais não conseguem incorporar uma dimensão social contextual para o estudo das gangues (Bursík & Grasmick, 1993; Spergel, 1995; Jankowski, 1991).

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Alguns pesquisadores examinaram as características psicológicas dos membros de gangues, por exemplo, olhando para os efeitos de interação de vizinhança e de traços de personalidade dos membros da gangue. Jovens que vivem em bairros desorganizados (ou seja, com uma alta rotatividade de moradores) e que têm tendências psicopatas (com maiores níveis de hiperatividade e menores níveis de ansiedade e tendências pró-sociais) têm cinco vezes mais probabilidade de se tornarem membros de gangues de jovens do que grupos que não apresentam essa configuração de traços (Dupéré, Lacourse, Willms, Vitaro & Tremblay, 2006). Esses jovens também são menos sensíveis às tentativas dos pais de supervisão (Dupéré al. al, 2006). Participação em gangues é ainda mais provável se esses jovens vivem em um ambiente familiar adverso (Lacourse, Nagin, Vitaro, Côté, Arseneault & Tremblay, 2006). Fatores de risco para a participação na gangue também apontam para as diferenças individuais, tais como níveis mais baixos de QI (Spergel, 1995), dificuldades de aprendizagem e problemas de saúde mental (Hill et al, 1999.) e baixa autoestima (Dukes et al, 1997).

Mais recentemente, a Teoria Interacional (Thornberry, 1987; Thornberry & Krohn, 2001) elaborou hipóteses criminológicas, propondo que a participação em grupos violentos tem relação recíproca entre o indivíduo e as estruturas sociais, tais como bairro pobre e família carente, enfraquecimento dos laços sociais e um ambiente de aprendizagem que promove e reforça a delinquência (Hall, Thornberry & Lizotte, 2006). A teoria Interacional também reconhece que, mesmo dentro de gangues, nem todos os membros são iguais. Por exemplo, alguns membros do grupo são transitórios e alguns são estáveis. Por conseguinte, as diferenças individuais parecem estar a ganhar importância no desenvolvimento conceitual da teoria dos grupos violentos de rua e, como tal, há um papel para a psicologia como um processo compreensivo, contribuindo para um desenvolvimento teórico.

É evidente que precisamos entender mais sobre esses grupos violentos de rua. Por exemplo, são gangues femininas, meros satélites de gangues masculinas, como eles são frequentemente considerados (Hagedorn & Moore, 2006) ou são entidades independentes, que têm seu próprio conjunto de motivações para a adesão? Essas são motivações semelhantes ou não aos dos seus colegas do sexo masculino? Além disso, por que o abuso sexual em casa é maior antecedente para a gangue do sexo

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feminino do que para os membros do sexo masculino (Chesney-Lind, Sheldon & Joe, 1996)? Além disso, precisamos entender mais sobre a mudança na estrutura dos grupos violentos. Por exemplo, porque muitas gangues são cada vez mais multirraciais e multiétnica (Howell Egley & Gleason, 2002; cf Howell, 2007; Starbuck, Howell & Lindquist, 2001).

Outras pesquisas teóricas têm conclusões que oferecem algum insight, mas pouco fazem para se unir com a literatura e expandir a nossa compreensão global da etiologia dos grupos violentos de rua. Por que formar gangues? Elas provavelmente se formam como uma possibilidade de satisfazer as necessidades que os adolescentes têm: a amizade entre colegas, o orgulho, o desenvolvimento da identidade, reforço da autoestima, a emoção, a aquisição de recursos (Goldstein, 2002). Eles podem oferecer um forte sentido psicológico de comunidade, um bairro físico e psicológico, uma rede social e apoio social (Goldstein, 1991). A psicologia social oferece uma variedade de teorias abrangentes para explicar a dinâmica desses grupos e cada um oferece um potencial para a pesquisa frutífera em questão de formação de quadrilha (Goldstein, 1991, 2002). Por exemplo, a teoria social de troca (Kelley & Thibaut, 1978; Thibaut & Kelley, 1959), em que membros do grupo são avaliados de acordo com seus benefícios e custos. Outras teorias, como a teoria da identidade social (Tajfel & Turner, 1986), a teoria da dominância social (Sidanius & Pratto, 1999) e a teoria do conflito realista (Sheriff, 1966), oferecem-nos um potencial para explicar o conflito entre gangues (Goldstein, 2002). No entanto, nenhuma teoria, criminológica ou psicológica, tem o potencial para explicar completamente a etiologia das gangues. Um referencial teórico específico para a participação na gangue, que integra perspectivas sociológicas, criminológicas e psicológicas, seria muito importante para orientar a pesquisa e desenvolver mais a teoria.

Uma boa teoria deve ser capaz de explicar e prever o comportamento (por exemplo, Newton-Smith, 2002). Deve ser coerente, consistente e unificadora dos aspectos de um fenômeno que parece ser diverso para fornecer uma explicação clara e compreensível do mundo. Uma teoria integrada da gangue deve reunir as boas ideias contidas nas teorias atuais em um modelo que fornece o poder explicativo e hipóteses testáveis. Esse modelo vai facilitar a análise de aspectos específicos das gangues e do desenvolvimento da teoria.

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Com a possibilidade de organizarmos um modelo integrado de gangues, apresentamos, neste trabalho, um quadro muito preliminar dos grupos violentos de rua. Este quadro reúne conceitos da teoria criminológica e integra-os com relevantes fatores psicológicos. Inclui conceitos de modelos semelhantes (por exemplo, Howell & Egley, 2005) para fornecer um quadro mais abrangente, com hipóteses testáveis, que podem ser utilizadas para orientar os exames empíricos de por que a juventude pode ou não ingressar em gangues. Ilustrando o caminho para a criminalidade e/ou de gangues, juntamente com uma via alternativa para comportamentos não-criminais e caminhos para sair da criminalidade e das gangues, este modelo proporciona uma conceituação mais versátil da criminalidade, gangues e participação criminosa ou não. E é a inclusão de vias alternativas, em conjunto com os principais fatores psicológicos e criminológicos, que o distingue de outros modelos similares.

Para concluirmos, esta análise considera o papel da teoria e pesquisa para entender porque os jovens se unem a gangues e possibilitou identificar um grande número de questões problemáticas que precisam ser superadas. As pesquisas sobre grupos violentos de ruasão marcadas pela dificuldade de definição e que as atuais abordagens teóricas têm tanto valor e apresentam limitações. Como resultado, a investigação empírica, que é guiada por cada uma das abordagens teóricas que temos revisto, reflete tanto o seu valor e suas limitações. No entanto, a investigação de gangues de rua nos proporcionou uma riqueza de achados empíricos que nos presenteia com muita coisa a considerar. Assim, um dos problemas com tal riqueza de trabalho é a confusão que resulta dos pesquisadores de grupo de rua e os esforços para selecionar o melhor caminho teórico para um processo efetivo de compreensão do fenômeno abordado. Isso pode resultar no que parece ser mais de uma competição entre as teorias do que um esforço concentrado para desenvolver e mesclar as melhores proposições teóricas. Os argumentos apresentados mostram que temos as lacunas na literatura e sugerimos como uma abordagem multidisciplinar pode ligá-los. Há um papel para a psicologia na investigação de grupos violentos de rua, e caso os psicólogos e criminologistas trabalharem juntos para identificar as razões pelas quais os jovens ingressam em gangues, vamos ampliar nosso conhecimento e desenvolver explicações mais detalhadas do que as atualmente disponíveis. Com isto em mente, apresentamos diversos modelos teóricos de como os jovens podem estar envolvidos em gangues. Pesquisar os grupos violentos de rua é vital e, por isso, não se pode dar ao luxo de ser marginalizado por qualquer disciplina que poderia ter uma luz teórico-metodológica para compreender alguns dos seus múltiplos fatores.

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Ecologia de Sangue: Interpretações Jurídicas dos 1

Sentidos Sagrados dos Povos de Terreiros

1 Autores (as): Juracy Marques (Pós-Doutor em Antropologia, Prof. da UNEB e FACAPE); Alzení Tomáz (Estudante de Direito, Coord. do LAPEC/NECTAS); Leonardo Sousa (Estudante de Direito e Técnico do NECTAS/UNEB); Bruno Heim (Advogado, Prof. da UNEB); Luiz Eduardo (Advogado, Prof. da FACAPE); Robson Marques (Estudante de Educação Física, integrante do NECTAS).

Foi por obscuras relações de poder que a poesia foi inventada.(Foucault)

A humanidade sempre se impressiona com o que faz. Há um mecanismo analítico, a negação, que permite a qualquer pessoa conviver com o que lhe incomoda: fingido que viu, mas não acredita existir sabendo de sua existência. Eis o sentido para as incômodas interpretações sobre o sacrifício de animais, quer para sobrevivência biológica, quer associado a práticas sagradas, duas dimensões abismais. Este ensaio, baseando-se num processo de violação de direitos e judicialização de um terreiro na cidade de Petrolina (Tenda de Umbanda Estrela da Guia, da Yalorixá Renilda Bezerra Barbosa), analisa como, em nome das interpretações jurídicas, estabelecem-se formas judiciais de negação de direitos.

Palavras-Chave: Candomblé, Ecologia de sangue, Sacrifício de animais, crueldade.

INTRODUÇÃO

O que surpreende o humano? Estamos, plasticamente, analisando o espanto e, para alguns, a incômoda estética dos corpos sacrificados dos animais nas culturas humanas. Como no tempo dos suplícios, genialmente analisado por Foucault em “A Verdade e as Formas Jurídicas” (2002) e “Vigiar e Punir” (2010), se evitadas suas teatralizações e

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publicidades, pouco se tem a dizer se alguma espécie foi tolhida da sua condição de existência, quer seja animal, vegetal ou mineral.

Radicalmente, se estamos ancorados numa dimensão ética, precisamos nos valer dos seus mais nobres fundamentos, dantes lavas a serem erodidas dos adormecidos vulcões das verdades jurídicas. Não podemos, nem devemos, imaginar que nos corpos dos vulcões há apenas lavas adormecidas, nem, terminalmente, interpretar seus sistemas a partir de suas cinzas. Portanto, temos que nos apartar das comoções frente à morte dos animais dos adoradores de carne: “não suporto vê sangue, não consigo entrar num açougue, acho um absurdo sacrificarem um animal, mas adoro um churrasco”. Há uma dimensão abismal, portanto, oceânica, entre o sacrifício de animais em rituais sagrados e as demandas alimentares das sociedades de consumo. A morte como produto de uma ação, quer seja de animal, de um vegetal ou de um ser humano, não pode ser relativizada pela hipocrisia discursiva das autoideologias. Antes, morte é morte. Discutimos, pois, seus sentidos, significados e justificativas.

Do ponto de vista ético, qual a efetiva diferença da morte de um animal abatido nos frigoríficos do mundo para alimentar as pessoas e um animal abatido em práticas ritualísticas de sociedades culturalmente diferenciadas? Encolher essa complexa resposta à ideia de reduzir o sofrimento do ser que morre ou apenas mobilizar forças para proibi-la em cultos religiosos, quer de grupos afrodescendentes, mulçumanos, judeus, ou de qualquer outra cultura, deságua num fundamento racista.

Se o abate do animal for a questão a ser superada pela humanidade, o princípio é proibi-la na sua totalidade. Se apenas se prima para a redução de sofrimento dos animais a serem abatidos, a questão é normatizar as práticas nos diferentes espaços onde estas acontecem. Neste nosso estágio civilizacional, as normas jurídicas rezam que só é proibido o abate de animais silvestres, e proibidos por lei. Apenas o espírito antropocêntrico das leis é capaz de encarnar, nas letras das verdades jurídicas, que uma morte sem dor seja legítima frente ao desaparecimento da vida, mesmo a dos animais. Como, nestes casos, tipificar a crueldade? Estamos diante de um complexo sentido ético com rebatimento sobre o campo jurídico-formal.

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ECOLOGIA DE SANGUE

O sacrifício de animais é uma prática cultural que segue a humanidade desde os primórdios. Não sabemos precisar quando essa atividade se vincula a uma dimensão do culto ao sagrado. Nem de longe é uma atividade exclusiva das tradições africanas. Observamo-la entre os mulçumanos e judeus, além de outros povos, em sociedades tradicionais, capitalistas e socialistas. Em

2Cuba, por exemplo, o sacrifício de animais é “livre” . Em países da Europa, essa atividade é tipificada, em alguns casos, como crime. No Brasil, se quer os Povos de Terreiro são considerados na estatística oficial, como demonstra o quadro abaixo.

2 Destaca-se que, fora das discussões da Santeria, o abate de um bovino, sem autorização do Estado, pode ser punido com pena de 10 anos de cadeia. Isso tem a ver com a escassez desse tipo de alimento na Ilha.

Religião

Outras Religiões

Católicos Apostólicos Romanos

Evangélicos

Sem Religião

Espíritas

Afro-brasileiros

20001980 1991

73,689,0 83,0

15,46,6 9,0

7,41,9 5,1

1,30,7 1,1

0,30,6 0,4

1,81,2 1,4

Nota: Invisibilidade dos povos de Terreiros no Brasil. Fonte: Recenseamentos demográficos do IBGE de 1980, 1991, 2000.

Segundo as leis observadas no Antigo Testamento, o sacrifício animal era uma exigência de Deus aos humanos como forma de obtenção do perdão do “pecado”. No livro de Gênesis, observamos passagens em que a morte dos animais serviu para cobrir o pecado de Adão e Eva. Das suas ofertas a Deus, Caim foi rejeitado porque apresentou a Ele frutas, enquanto Abel foi agraciado, pois ofereceu ao Criador partes de animal. Noé, após o dilúvio, sacrifica animais para Deus. É, portanto, a substituição do sacrifício de Isaac, a ser feita por seu pai Abraão para Deus, por um cordeiro, a história mais “nobre” da imolação de um animal que “salva vida”. Segundo a tradição cristã, Deus deixa de exigir sacrifícios de animais, quando seu Filho, Jesus Cristo, é crucificado para curar a humanidade dos pecados: “eis o Cordeiro de Deus, que tiras o pecado do mundo” (JOÃO: 1-29).

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Mas há algo que se confunde quando estamos falando de matança animal: quando ela está associada à demanda de alimento para a sobrevivência material, biológica, e quando ela se ancora na dimensão simbólica, nas expressões humanas sobre o sagrado. Segundo Yannick Alves, «existe uma sutileza entre matar e sacrificar um animal. O sacrifício ritual de animais é uma prática com fundamentos milenares e mágicos, representando um dogma para estas religiões. Este não ocorre a qualquer momento ou por qualquer motivo».

Em algumas culturas, o sagrado tem forte relação com o sangue, também conhecido como «amenga» ou «ajé». É o caso de algumas tradições de matriz africana, como o canbomblé: «para haver o sagrado tem que haver sangue, mas sangue não é apenas a força dos animais, mas também a seiva das

3plantas e a água dos rios» (Babalorixá Toni, 2010). Fernandes Portugal , alerta que “para a Religião Africana tudo o que a natureza produz é "sangue", é o Axé. Utilizamos vários tipos de sangue para formar o Axé, visando ampliar, acumular e distribuir o mesmo, que é essencial para existência humana”.

A Ecologia do Candomblé é uma ecologia de sangue? O filme “Jardim das Folhas Sagradas”, de Pola Ribeiro, serve para respondermos a esta pergunta: esta obra de arte do cinema baiano, discute a instituição, em Salvador, de um terreiro de Ossain, orixá das matas, das folhas, com certo “tom de modernidade” e “discordante” das tradições. Bonfim, babalorixá responsável pelo terreiro, radicaliza, opondo-se à matança de animais e se pendura na crença de que seu Orixá, por ser da natureza, não pode ser a favor de tais sacrifícios. A trama do filme desenrola-se nesse limiar entre a possibilidade ou não de que o Candomblé, possa, um dia, nas suas práticas sagradas, evitar o sacrifício de animais. Portugal, que também é babalorixá, fala sobre essa possibilidade:

Eu acho que imaginar, pode-se imaginar tudo, mas não vejo, esses cultos perderiam todo o sentido sem o sacrifício animal. O Sacrifício Animal é um dogma da cultura Yorubá, que foi transplantado no Brasil pelos Africanos. É inviável, jamais vai se atingir esse ponto. Não consigo imaginar o que as pessoas imaginam quando anunciam “Candomblé sem sacrifício”. O sacrifício da pessoa em dormir na esteira? O Candomblé sem o sacrifício animal, não é candomblé.

3 In « Sacrifício de Animais em Rituais de Religiões de Matriz Africanas (Yannick Yves Andrade Robert).

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INTERPRETAÇÃO JURÍDICA DOS DIREITOS AO SENTIDO SAGRADO

Enquanto essas reflexões não ganham novos contornos, apesar dos avanços jurídicos na proteção dos direitos culturais, imateriais, práticas tradicionais, que fazem uso do sacrifício de animais em seus rituais sagrados, têm sido motivo de muitas ações judiciais em diversas partes do Brasil e do Mundo. Nestes casos, direitos e garantias fundamentais, com substratos diversos, entram em conflito.

a) O Caso da Yalorixá Renilda Bezerra Barbosa (Tenda de Umbanda Estrela da Guia):

O caso a ser analisado é o da Yalorixá Renilda Bezerra Barbosa, cujo Templo de Candomblé encontra-se inserido no município de Petrolina-PE. Seu Terreiro, Tenda de Umbanda Estrela da Guia, no dia 10 janeiro de 2012, foi invadido pela Vigilância Sanitária do município de Petrolina – PE, após denúncias. Em visita ao local, o servidor Jarbas Costa de Oliveira afirmou ter encontrado animais abatidos, com carcaças completas de caprinos e um garrote, sendo que a pele de um dos garrotes estava estendida no portão de entrada.

Mãe Estela (2012), integrante do Terreiro, relata que estava no local na hora da chegado do referido Servidor e que, perguntando a ele sobre que autorização tinha para entrar no Terreiro, teve a resposta de que ele tinha “19 denúncias”. Diz que o mesmo entrou e começou a fotogravar partes dos animais que tinham sido abatidos no Terreiro. Desabafou: “nos sentimos invadidas”.

A narrativa do Servidor da Vigilância Sanitária descreve que o chão do ambiente possuía sangue dos animais e havia bacias de alumínio e plástico com as vísceras em cima da carroceria de uma caminhonete Ranger. Com relação às pessoas presentes, informa que estas estavam descalças e com suas roupas sujas de sangue proveniente do abate. Mãe Estela disse que já havia sido feita a limpeza da “amenga” e que os bodes estavam para ser guardados no refrigerador.

A proprietária, senhora Renilda Bezerra (2012), afirmou que o local era um templo religioso, uma casa de Candomblé, cujo abate fazia parte do ritual, sendo este uma oferenda religiosa. Ocorre que, mesmo tendo a proprietária

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afirmado o caráter sagrado dos abates dos animais, a vigilância sanitária informou ao Ministério Público sobre o acontecido e este notificou a “Yalorixá” Renilda Bezerra para prestar esclarecimentos acerca de suposto “maus tratos e abatimento clandestino de animais”.

Dona Renilda relata que, quando menos esperou, o Servidor da Vigilância Sanitária já estava em sua sala e que, além de fotografar tudo, entrou em lugares sagrados do Terreiro, afirmando que alí era um “abatedouro clandestino”.

Em decorrência dessas observações da Vigilância Sanitária, a Yalorixá foi intimada a comparecer no Ministério Público de Petrolina para prestar esclarecimentos. Relatou que a Promotora disse que ela, a partir daquela data, não iria mais fazer sacrifício de animais, sob pena de sofrer processo judicial. Diz que, naquela circunstância, não tinha o que fazer a não ser concordar com a Doutora. A Promotoria de Justiça encaminhou oficio à Vigilância Sanitária do município, solicitando que esta realizasse visitas periódicas ao local e lhe enviasse relatórios sobre a situação. Indignada, afirmou, perante vários terreiros de Petrolina: “se eu não cortar mais, nenhum terreiro vai também matar”.

Esse procedimento motivou os Terreiros de Petrolina a discutir, com órgãos de proteção de direito humanos, particularmente povos de terreiros, universidades e o próprio Ministério Público, sobre os rumos e sentidos de tal decisão. Vera Baroni (2012), Yalorixá e Bacharel em Segurança do Trabalho, afirma que este caso pode ser pensado dentro da lógica do racismo institucional: “sabemos que a Vigilância Sanitária de Petrolina não invadiu um “abatedouro clandestino”, invadiu um Templo Sagrado. Não podemos mais aceitar práticas de racismo institucional.” Diz que, ao que lhe ocorre, a interpretação do Ministério Público de Petrolina sobre o caso deságua num entendimento pessoal e não traduz o entendimento institucional do Ministério Público de Pernambuco, por exemplo. Como Povo de Santo, diz: “a proibição instituída ao Terreiro de Mãe Renilda é uma proibição instituída a todos nós, Povos de Terreiros”.

b) A Proteção Constitucional das Religiões Afrobrasileiras

A Carta Magna de 1988 atribuiu diversos instrumentos que são aplicáveis às religiões afrobrasileiras. O primeiro direito, o qual se pode alertar, é o

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da liberdade religiosa. Tal direito é aplicável a toda e qualquer religião e está previsto no artigo 5º da Constituição, em seu inciso VI, que assim prescreve: “[...] é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida na forma da lei, a proteção aos locais de cultos e a suas liturgias”.

Perceba que tal direito, atualmente, subdivide-se em três formas de manifestação: a liberdade de crença; a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa (SILVA, 2005). A liberdade de crença é o direito que o individuo possui de crer (ou não) em algo com fé e convicção.

A liberdade de culto vai além do aspecto subjetivo do ser em crer em algo, estando mais ligado à possibilidade do individuo de exteriorizar seus atos de fé em casa ou fora dela. Citando Pontes de Miranda, “Compreende-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso” (apud SILVA, 2005, p. 249).

Já com relação à liberdade de organização religiosa, pode-se afirmar que é a possibilidade da instituição de templos religiosos e de como estes se relacionam com o Estado, podendo o Estado ter uma relação de confusão, separação ou de união. O Estado Brasileiro, desde o Decreto 119-A, promulgado em 7 de janeiro de 1890, de autoria de Ruy Barbosa, separa a religião do Estado, afirmando ser o Brasil um Estado laico (SILVA, 2005).

Valer ressaltar que, para os Constituintes de 1987, não bastou à previsão do livre exercício dos cultos religiosos, pois estes tiveram ainda o cuidado de, no artigo 19, em seu inciso I, vedar, expressamente, o Poder Público de realizar qualquer atitude que viesse a embaraçar o funcionamento de algum culto religioso. A atual Constituição mantém norma semelhante no seu art. 19, I, ao dispor que fica vedado ao Estado: “estabelecer cultos re l ig iosos ou ig re jas, subvencioná- los, embaraçar- lhes o funcionamento”. Novamente socorremo-nos em Pontes de Miranda (1970, p. 185 apud SILVA, 2005, p. 249), que interpretando igual dispositivo do Texto constitucional de 1967, vocaciona: “embaraçar o exercício dos cultos religiosos significa vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso”.

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Em se tratando de Candomblé, Umbanda, ou quaisquer outras manifestações religiosas afrobrasileiras, é imprescindível destacar o fato de que além da proteção à própria religião, recebem guarida constitucional em capítulo destinado à cultura, proporcionando assim, uma dupla proteção. Deste modo, afora os dispositivos acima mencionados, é também aplicável aos cultos afrobrasileiros o artigo 215, parágrafo 1º, que estabelece como dever do Estado a proteção às manifestações culturais populares, especificamente as manifestações afrobrasileiras.

Ratificando tal entendimento, afirma Fiorillo (2011, p. 437) que:

Claro está que a liberdade de crença vinculada ao livre exercício dos cultos religiosos se adapta a toda e qualquer religião que, na condição de bem de natureza imaterial, seja portadora de referência à identidade, à ação, à memória de quaisquer dos grupos formadores da sociedade brasileira mencionados no art. 215, § 1º, da Carta Magna.

A dupla proteção constitucional não está restrita somente às religiões afro-brasileiras, sendo aplicável, portanto, a todas as formas de cultos religiosos realizados por grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Entretanto, a proteção jurídica da religiosidade, bem como da manifestação cultural, não é irrestrita, pois inexiste, em nosso ordenamento, um direito em absoluto. Especialmente com relação ao direito à religiosidade, merece destaque a afirmação de Branco (2009, p. 460) que “A lei deve proteger os templos e não deve interferir nas liturgias, a não ser que assim o imponha algum valor constitucional concorrente de maior peso na hipótese considerada” (destaque nosso). Portanto, caberá aos interpretes do direito, em cada caso, realizar a sua mensuração.

c) A Proteção da Fauna no Direito Brasileiro

A fauna brasileira era tratada como Res nullius, fato que atribuía à mesma a natureza de direito privado, pois se observava o animal apenas como objeto passível de ser propriedade. Contudo, esta concepção privatista

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da fauna foi superada, a partir do momento em que o direito passou a proteger não o animal em si, mas as características e funções que este animal possui para a manutenção do meio ambiente sadio, adquirindo assim, uma natureza jurídica de bem ambiental (FIORILLO, 2011).

O legislador Constituinte traçou linhas gerais, ao determinar que, “na 4

forma da lei”, deve ser protegida a fauna , vedando condutas que ameacem sua função ecológica, possam levar à extinção de espécies e que sejam cruéis com animais (art. 225, §1º, VII). A norma de eficácia limitada, segundo consagrada classificação de José Afonso da Silva (1998), demanda preenchimento do legislador ordinário, para definição

5de sua eficácia , carecendo, portanto, de aplicabilidade imediata.

A definição de fauna oriunda da Lei 5.197/67 (Lei de Proteção à Fauna), recepcionada pela Constituição, por ser com ela compatível, determina no art. 1º, caput:

Os animais de quaisquer espécies em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição caça ou apanha.

Fica evidenciado pelo artigo acima transcrito, que o conceito de fauna previsto na legislação infraconstitucional não engloba a fauna doméstica, restringido seu âmbito de aplicação à fauna silvestre. O objetivo do legislador infraconstitucional de proteger apenas à fauna silvestre, deriva do fato de que somente esta corre o risco de modificar a função ecológica do habitat ou entrar em extinção.

Contudo, o aspecto de proteção à crueldade de que trata o artigo, diferente do que acontece com a função ecológica ou a extinção, é uma proteção de todo e qualquer animal, sendo este silvestre ou não (FIORILLO, 2011). Mas, o que é ser cruel?

4 Art. 225 [...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.5 A demanda da lei ordinária ou complementar para emprestar eficácia à norma constitucional não significa que seja desprovida de efeitos jurídicos. Como salienta o próprio autor, elas informam a concepção do Estado e da sociedade, estabelecem dever para o legislador, vinculando conteúdo da legislação futura, condicionam a atividade discricionária da administração pública e judiciário, entre outros (SILVA, 1998).

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c) O Conceito de Crueldade no Art. 225 da Constituição

A doutrina apóia-se no melhores dicionários para compreensão de “crueldade”. Neste sentido, de acordo com o dicionário Aurélio Buarque de Holanda o termo crueldade “significa aquilo que se satisfaz em fazer o mal, duro, insensível, desumano, severo, rigoroso, tirano” (apud FIORILLO, 2011, p. 273). Já o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa define-a como “a característica ou condição do que é cruel; prazer em derramar sangue, causar dor” (apud MACHADO, 2011, p.149)

Há, portanto, um aspecto doloso na caracterização de um ato cruel, tendo em vista que a pessoa que pratica a crueldade se satisfaz com isso. Tem-se aqui o prazer de um ser humano em maltratar, simplesmente, porque assim o quer.

Fato a ser destacado, é o de que a previsão do art. 225, 1º, VII, da Carta Magna, que proíbe os atos cruéis contra os animais, deriva do fato do ser humano, ao buscar planificar as suas relações sociais, valorou que o ato de submeter o animal a um mal além do necessário, afronta a “saúde psíquica do ser humano”, pois este não consegue ver, “em decorrência de práticas cruéis, um animal sofrendo”. Com isso, a “tutela da crueldade contra os animais fundamenta-se no sentimento humano” (FIORILLO, 2011, p. 273).

Assim, como poderíamos interpretar o caso da Yalorixá Renilda Bezerra? Veja que este é um caso polêmico, haja vista tratar, aparentemente, de um conflito de direitos “fundamentais”, ou seja, no caso em questão, tem-se, de um lado da balança, a proteção da vida dos animais, previsto no artigo 225, ao vedar às práticas que submetam os animais à crueldade; do outro lado, tem-se o direito à religiosidade de um povo tradicional, previsto no artigo 5º, inciso VI, no artigo 19, conjuntamente com o artigo 215, em seu parágrafo 1º e o artigo 216, todos estes constitucionalmente previstos.

A ritualística de religiões afro-brasileiras, como o candomblé, não carrega qualquer intenção deliberada de “fazer o mal” ou “causar dor” aos animais. Seu propósito é dar de alimento primeiro aos deuses e objetos necessários ao culto, expressando a dimensão simbólica do sacrifício e das oferendas e, em segundo momento, aos humanos que presenciam o ato.

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Samuel Vida (2006), professor de direito da Universidade Federal da Bahia e praticante de religiões afro-brasileiras, afirma que a necessidade de impor sofrimento aos animais não compõe a cosmo-visão das religiões afro-brasileiras, diferente do que talvez aconteça com outras religiões. Em suas palavras:

Não há qualquer lugar do ponto de vista teológico, do ponto de vista ritualístico, nas religiões de matrizes africanas para o sofrimento dos animais, o sofrimento pelo sofrimento. Talvez isto exista na tradição cristã, que precisa expiar pecados. Talvez isto se coloque na tradição judaica, em que há uma relação de substituição. Onde a susbtituição é feita, se substitui o pecador, imolando o animal em seu nome, e, se ele sofre, entende-se que ele deve sofrer como forma de expiação de pecados. Talvez por isto, a mitologia sobre a morte de Cristo seja tão sanguinária. Foi preciso sofrimento para expiar o pecado dos cristãos. Não há esta dimensão, absolutamente, na tradição religiosa de matriz africana (2006, p. 297-298).

Os animais são peça fundamental no culto religioso, sendo imprescindível seu sacrifício, sob pena de extirpar a própria prática religiosa, pois, como sustenta um dos principais estudiosos da cultura africana no Brasil, Roger Batisde (2001), sem axé não há candomblé. O pesquisador afirma que no Brasil “axé” é acumulo de força sagrada, significando, em primeiro lugar, os alimentos oferecidos às divindades. Como alimento, o sangue desempenha papel fundamental, pois “é por meio do banho de sangue que se estabelecem, no mundo africano da Bahia, todas as relações entre os objetos, os seres humanos e os orixás; fazem-se todas as participações, todas as mudanças de força” (2001, p. 77). Por fim, arremata Batisde: “o sangue, muito mais do que o alimento, é o princípio da vida, e as divindades não podem passar sem ele” (2001, p. 110).

Neste sentido, a morte de animais para oferenda não tem o condão de maltratá-lo, pelo contrário, sua morte é fonte de vida, seu sangue anima os seres divinos, os seres vivos e as coisas do mundo. O animal oferecido é respeitado e colocado em condição de dignidade, sendo alçado do local profano em que se encontra como animal doméstico, à condição de ser sagrado. Compreendemos isto a partir da própria noção de sacrifício, que etimologicamente “se aproxima da noção de consagração, de remoção do secular para a esfera do sagrado” (LIMA, 2010, p. 117). Com o mesmo

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entendimento, Vida (2003, p. 298) prefere denominar a morte dos animais em religiões afro-brasileiras como “sacralização” e não um “sacrifício”.

d) O Novo Paradigma Interpretativo do Direito

O ser humano sempre teve a utopia de, através do método científico, chegar ao conhecimento verdadeiro sobre um objeto. Este sonho também impregnou o modo de pensar e conceber o direito, sendo esta filosofia jurídica denominada de positivismo jurídico.

Com o objetivo de alcançar a neutralidade e objetividade contidas nas ciências exatas e naturais, o positivismo jurídico utilizava-se do método da subsunção como forma de se definir qual o direito aplicável ao caso concreto. Este método, basicamente, consiste em identificar os fatos do caso, levantar as normas jurídicas aplicáveis a este, e, a partir de um raciocínio silogístico, colocar as normas como premissa maior, os fatos como premissa menor e a conclusão é o direito.

No entanto, a neutralidade tão almejada pelos positivistas começa a perder credibilidade com os estudos sobre o papel do intérprete e a necessidade de relacionar o todo com a parte e a parte com o todo, constituindo, assim, um círculo hermenêutico. Essa mudança decorre do fato de que, a partir dos estudos hermenêuticos, em especial a contribuição de Hans-Georg Gadamer, o ser humano passa a entender que

O mundo não nos revela suas estruturas, sua natureza, simplesmente para que nossas teorias as reproduzam ou “representem”; a verdade de nossas teorias não era um reflexo das entidades objetivas da realidade do mundo, mas sim o resultado de um ato interativo de nossas faculdades interpretativas enquanto dedicávamos à atividade prática de viver no mundo e pertencer ao mundo (MORRISON, 2006, p. 498).

Além do fato da impossibilidade desse método objetivo e neutro, que tanto buscava o positivismo, essa prática, ao ser aplicada ao direito, acabava neutralizando a sua vinculação com os valores da justiça e eticidade, gerando, assim, atos abomináveis do ponto de vista humanístico; no entanto, do ponto de vista jurídico, totalmente legais. Exemplo histórico destes fatos é o caso do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha.

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Segundo Barroso (2009), estes foram os fatos emblemáticos para a decadência do positivismo jurídico.

Surge, assim, uma nova corrente teórica que busca estabelecer uma relação adequada entre o direito, os valores, os princípios e as regras da sociedade, utilizando-se, para tanto, dos estudos da nova hermenêutica constitucional e dos direitos fundamentais, de forma que a aplicação do direito retome aos laços anteriormente cortados com a justiça e com a ética. A esta nova forma de pensar o direito, foi dada a nomenclatura de pós-positivismo (BARROSO, 2009).

Esse novo paradigma jurídico utiliza as regras para garantir a segurança jurídica e dos princípios para a flexibilização do direito, de forma que possibilite a aplicação da justiça ao caso concreto (BARROSO, 2009). Diante disso, o método subjuntivo da tradição positivista não é adequado para realizar tal atividade, sendo necessária a construção de um novo método aplicável a esta nova forma de pensar o direito.

Na busca da construção de um método que comportasse tais objetivos, merece destaque as contribuições de Ronald Dworkin, sendo, posteriormente, desenvolvidas por Robert Alexy. O primeiro teve a grande contribuição ao mudar de foco o olhar do filósofo do direito, de modo que não observasse somente o direito em si, mas o intérprete na aplicação do direito nos hard case. Nas lições de Morrison (2006, p.503-504):

Dworkin define a tese positivista como uma concepção de direito como “simples questão de fato” (...) na verdade, em busca de uma resposta à pergunta “o que é direito?” ao se defrontarem com um certo conjunto de fatos simples que dão uma resposta já pronta e de fácil entendimento. De maneira instigante, Dworkin pergunta se essa é uma imagem adequada ou realista do direito. Em seguida nos leva a outra questão, esta mais profissional, à qual se chega através da pergunta “de que modo, nos tribunais, os advogados argumentam com os juízes, e de que modo um juiz ‘descobre o direito’?” Dworkin afirma que, em particular, nos “casos difíceis”, juízes e advogados [...] utilizam critérios que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de critérios. (DWORKIN apud MORISSON).

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Desta maneira, Dworkin, a partir da interpretação de diversos casos difíceis, chega à conclusão do papel dos princípios e dos valores contidos em uma ordem jurídica que orienta toda a sua aplicação. Exemplo clássico é o fato do fracasso do positivismo jurídico em responder a demandas que entram em conflito com os direitos igualmente constitucionais, a exemplo, o caso ora analisado no presente artigo.

Robert Alexy, desenvolvendo a teoria de Dworkin, cria um método de aplicação dos princípios no caso concreto, sendo este denominado de ponderação de interesses,

Tal método caracteriza-se pela sua preocupação com a análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema enfrentado afiguram-se determinantes para a atribuição do “peso” específico a cada princípio em confronto, sendo, por conseqüência [sic], essenciais à definição do resultado da ponderação.

A relevância conferida às dimensões fáticas do problema concreto, porém, não pode jamais implicar na desconsideração do dado normativo, que também se revela absolutamente vital para a resolução de tensões entre princípios constitucionais. Afinal, a Constituição é, antes de tudo, norma jurídica, e desprezar a sua força normativa é desproteger o cidadão da sua garantia jurídica mais fundamental. (...)

Por outro lado, a ponderação de interesses constitucionais não representa uma técnica amorfa e adjetiva, já que está orientada em direção a valores substantivos. Estes valores, que não são criados mas apenas reconhecidos e concretizados pela ordem constitucional (dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, segurança etc.), guiam o processo de ponderação, imprimindo-lhe uma irrecusável dimensão axiológica.

Pode-se, então, afirmar que a ponderação de interesses, pelo menos na versão ora defendida, ostenta uma estrutura tridimensional, pois compreende os três elementos em que se decompõe o fenômeno jurídico: fato, norma e valor. (SARMENTO apud BARREIROS NETO, 2011, p. 134).

Portanto, o intérprete, ao utilizar a teoria da ponderação de interesses, deve

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passar por três etapas (BARROSO, 2009). A primeira e segunda etapas são comuns a todo processo interpretativo, devendo o hermeneuta, primeiramente, definir o sistema de normas relativas ao conflito e estabelecer uma interação dos fatos com as respectivas normas.

Aplicando estas etapas no caso do sacrifício de animais em cultos de religiões afrobrasileiras e entre a proteção animal, em especial, ao caso da Ialorixá Renil B. Bezerra, é possível ter duas visões diferentes.

A primeira visão é que, apesar de problematizado anteriormente, não há conflito de interesses, pois não possui nenhum elemento normativo que impeça o ser humano de sacrificar um animal. O sacrifício nos rituais sagrados incorpora um contexto totalmente diverso da proibição ora cominada.

Repetimos: o sacrifício ritual de animais é prática com fundamentos milenares e religiosos, de cura espiritual, numa conexão entre o sujeito e o animal. Desta forma, não ocorre o sacrifício de qualquer jeito ou por qualquer motivo. Está contido o elemento da troca de energia com a finalidade de tirar as forças negativas, que passa do sujeito para o animal, a serem entregues para a entidade religiosa, ou mesmo, sendo feita com a finalidade precípua de alimentar a comunidade. Neste último caso, não se refere a um tratamento associado ao orixá, mas se estrutura pelos mesmos fundamentos de demanda de proteína para os corpos biológicos, também simbólicos.

No caso de religiões de matriz africana, o sacrifício de animais não é feito por qualquer pessoa, mas pelo “axogum”, autoridade indicada pelos orixás, responsável pelo “corte” com os cuidados necessários, preparado para não cometer erros. Desse modo, percebe-se que há uma grande distância do sacrifício para fins religiosos e a concepção de crueldade, prevista no artigo 225, 1º, VII, da Constituição que, conforme dito no item anterior, busca a defesa de um interesse coletivo em proibir a crueldade com os animais, o que não é o caso.

Já uma segunda visão, compreende ser o sacrifício de animais uma crueldade, independente da forma como estabelece a morte do animal, entrando em conflito aqui a proteção à fauna e o direito a liberdade religiosa, bem como o da manifestação cultural, um caso típico de conflito de interesses constitucionalmente protegidos. Assim, pergunta-se: como identificar qual a norma que deve ser aplicada neste caso?

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Resposta a tal pergunta é a terceira etapa do método ponderativo. Esta é a grande novidade do método proposto por Alexy, já que, nesta fase, dedicada à decisão,

[...] os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos ao caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso. Em seguida, é preciso ainda decidir quão intensivamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada (BARROSO, 2009, p. 361).

A diferença basilar deste método é que, diferente da análise do conflito de normas-regras, na qual se aplicava à máxima tudo ou nada, a inserção dos princípios dá uma abertura para a interpretação do direito em conformidade com o contexto em que ele está sendo aplicado, de forma a possibilitar o ideal de justiça. Assim, diante de um caso pode uma norma-principiológica retirar, momentaneamente, a aplicação de outra norma, sendo ela principiológica ou regra, para que os objetivos maiores, tratados na Constituição, sejam alcançados. Para realizar tais ponderações, o direito possui princípios instrumentais cujo objetivo é auxiliar na ponderação de tais direitos. Um destes princípios é o da dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana funciona como princípio legitimador de toda a ordem jurídica constitucional brasileira. Nas lições de SARLET (2011, p. 91), vê-se que,

[...] o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, destaca-se, pela sua magnitude, o fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem Constitucional, constituindo-se, de acordo com a significativa fórmula de Haverkate, no “ponto de Arquimedes do estado constitucional”.

Desta maneira, no conflito de interesses igualmente protegidos constitucionalmente, deve-se realizar uma atividade interpretativa, que terá como parâmetro a pessoa como o fundamento e o fim da sociedade e do

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Estado, típica noção kantiana de dignidade humana, ou seja, tratar o homem e a mulher como o fim em si mesmo (SARLET, 2011). Óbvio que esta percepção, antes antropocêntrica, está na contramão dos novos constitucionalismos vivenciados em alguns países da América Latina, que asseguram direitos à Natureza e não apenas uma espécie dela: os humanos.

Volta-se, então, ao conflito do sacrifício de animais e da preservação das religiosidades afrobrasileiras. Ponto crucial para a ponderação destes interesses é observar o papel da espiritualidade para a constituição do ser humano. Definindo o direito à vida, afirma SILVA (2005, p. 198) que:

A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). [...] Por isso é que ela constitui fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, com a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos.

Pode-se afirmar, assim, que o direito à religiosidade está intimamente ligado ao direito à vida, de modo que garantir a religiosidade para o ser humano é garantir o seu direito à existência, sem mencionar a garantia do direito à religiosidade e às manifestações culturais, anteriormente tratado.

Já do outro lado, ao analisar a proteção à fauna, com a vedação ao tratamento cruel aos animais, no caso do sacrifício nos cultos afro-brasileiros, deve-se lembrar que, atualmente, são utilizados somente animais domésticos, normalmente animais cujo consumo é comum para a maioria dos seres humanos, a exemplo, do boi, da galinha, do bode, não havendo aqui nenhum desequilíbrio na função ecológica da fauna nem a possibilidade de extinção de alguma espécie. Aliás, cabe destacar que a defesa dos animais é reflexo indireto da defesa do homem (FIORILLO, 2011), de modo que não é racional estes direitos se sobreporem ao direito à vida, à religiosidade e à defesa ao patrimônio imaterial.

Tensão analóga foi motivo de ação judicial no Rio Grande do Sul. Ao ser criado o Código de Proteção Ambiental do Estado do Rio Grande do Sul (Lei n. 11.915 de 2003), não havia referência às práticas de sacrifícios de animais para rituais religiosos. Todavia, em 22 de julho de 2004, entrou em

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vigor a lei n. 12.131, que acrescentou ao Art. 2º. da lei 11.915, um parágrafo único que, expressamente, diz : "não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana".

Esta inovação legal foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade de Nº 70010129690, perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Após amplo debate sobre esse assunto, chegou-se à conclusão, por maioria, de que o sacrifício de animais não pode ser comparado à ética dos maus tratos aos animais, como prevê o Art. 32 da lei 9.605 de 1998, devendo ser analisado, especificamente, em cada caso, se há ou não a crueldade, o que não é o caso da situação em tela.

CONCLUSÃO

Percebe-se que as tensões da passagem das tradições culturais para as tradições jurídicas é algo que requer muita habilidade quando da interpretação jurídica dos sentidos sagrados associados às práticas religiosas dos Povos de Terreiros.

Apesar de preocupados com o que aconteceu com Mãe Renilda Bezerra, percebe-se que há uma crença das pessoas de Terreiros de Petrolina nos instrumentos jurídicos. Dona Alda (2012), também integrante de Povo de Terreiro, diz que “somos livres para produzir os milagres que queremos e desejamos e a lei deve nos garantir isso”.

Tudo que foi pensado aqui está assentado sobre a percepção sagrada, ou não, dos sacrifícios de animais. A Yalorixá Edneusa (2012) esclarece:

E o sacrifício da fome? Você tem que matar o animal para alimentar a fome. Os mais antigos já fazia sacrifício e somente Deus recebia o sacrifício, então tem que mudar os tempos passados pra corrigir o futuro? O sacrífico para nós é homenagear o encantado. O sangue é a vida para um deus. Além, de matar a fome dos encantos, alimentamos e doamos pra comunidade. A vida tem valor para nós. Não se dar um animal cego, nem emprenhado, nem doente, tem que ter uma carne saudável e ainda podemos alimentar a comunidade. Precisa conviver com o povo de terreiro pra poder julgar. Nós sacrificamos o animal para o bem do humano, doamos o sangue para salvar muitas pessoas e liberta de doenças contagiosas e do mal lhe causado. Damos

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uma vida para salvar a vida de um ser humano, quando o ser humano precisa... Mau trato é no matadouro pra o mercado... Para estes animais agente não entrega seu sangue aos espíritos. O que fazemos, fazemos para agradar aos espíritos e nos curar.

Enquanto não existe jurisprudência sobre a questão legal a respeito desse assunto, aguarda-se pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre o mesmo, sabe-se que, esta lacuna, deixa, de certa forma, margens para diversas interpretações e práticas discriminatórias. O caso analisado no Rio Grande do Sul, tonou-se uma referência nacional para análise de tensões como a que é analisada neste ensaio.

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Refletir o que leva a família e escola a não cumprirem os direitos da criança pré-escolar, assegurados pela Lei Nº 8.069/90, e quais as repercussões dessas violações para o desenvolvimento integral da pessoa é o foco deste trabalho. Dados oficiais da Secretaria Especial de Direitos Humanos - SIPIA, quando confrontados com os documentos legais a favor dos direitos da criança, apontam a família, a escola e o Estado como os seus principais agentes violadores. A leitura interpretativa das condições contextuais violadas são discutidas à luz da Abordagem Bioecológica do Desenvolvimento Humano de Urie Bronfenbrenner, possibilitado uma profícua discussão sobre as condições e preparos da família e da escola para cuidar, proteger e educar.

O principal foco deste trabalho é refletir sobre a violação dos direitos da criança na família e na escola infantil, violação aqui compreendida como crime, delito, transgressão, desrespeito e como os diversos tipos de maus tratos, negligência, intimidação e fraude contra o que lhe é assegurado universalmente nos textos legais, porém com menor visibilidade quando o quadro não inclui a violência física (LEVÈFRE, 1993).

O interesse pelo tema, violação dos direitos da criança nos microssistemas sociais, família e escola, surgiu em decorrência da trajetória profissional da autora, primeiramente atuando como

Violação dos Direitos da Criançaem Idade Pré-escolar

1por Maria Elisa Pacheco de Oliveira Silva

1 Professora Assistente de Psicologia da Educação da UEFS, Mestre em Educação - UFBA, Doutorando Em família e Sociedade Contemporânea (Universidade Católica do Salvador) UCSAL. Email: [email protected]

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professora, coordenadora e diretora pedagógica de escolas infantis, quando observava mudanças nos comportamentos das crianças e supostamente as relacionava à situações de desassistência, omissão, maus tratos, negligência, entre outras ações prejudiciais ao desenvolvimento delas. Posteriormente, como docente dos cursos de formação de professores, supervisora de estágio curricular, consultora pedagógica do ensino fundamental, e orientadora de alunos dos Cursos de Pedagogia, acolhia várias queixas acerca do rendimento escolar, adaptação social, desinteresse e desmotivação, fatores que estimularam a buscar compreender como se dão os cuidados e a atenção que a criança demanda da família e da escola.

No presente estudo a concepção de desenvolvimento adotada é abstraída da abordagem Bioecológica de Urie Bronfenbrenner, porque concebe vários fatores presentes na vida da pessoa, interferindo no desenvolvimento, e assim sendo, não se considera apenas uma relação causal, mas uma gama de fatores sociais, situacionais e psicológicos (ALVES; EMMEL, 2008).

Para Bronfenbrenner (1996), os ambientes que moldam o percurso do desenvolvimento humano são criados pelo próprio homem, ou seja, suas ações e os vínculos que estabelece, físico, cultural, afetivo e social formam os ambientes, tornando o homem também responsável por esse processo.

Mentor de um modelo teórico que orienta o estudo do desenvolvimento humano, centrado nos contextos interrelacionados, desde o mais próximo onde o sujeito se insere corporalmente até os mais abrangentes e simbólicos, Bronfenbrenner possibilita-nos pensar em uma relação concreta e subjetiva que permite analisar violação de direitos e desenvolvimento da criança como um fenômeno produzido por múltiplos e recíprocos fatores. A teoria de Bronfenbrenner alberga a nossa crença de que seus fundamentos são necessários para identificar a imbricação e a indissociabilidade entre o ser humano e o contexto onde vive.

Concordamos com o pressuposto de que o desenvolvimento humano está imerso em uma relação bidirecional e multifacetada, pois não resulta de relações causais, seja do ambiente sobre ele ou vice-versa. Ambos, homem e ambiente se mantêm em constantes atualizações recíprocas por trocas físicas e simbólicas, e essa dinâmica, no que toca ao

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desenvolvimento da criança violada afeta seu potencial intelectual, afetivo e social de maneira que reflete nas relações posteriores estabelecidas com a escola, a família e outros grupos sociais.

A violação dos direitos da criança se traduz no descumprimento da atenção e dos cuidados necessários ao seu desenvolvimento físico e psicológico. Ocorre quando se desrespeita a lei vigente, se pratica atos ilícitos, como os de violência, assédio moral, veemente intimidação, fraudes e abusos contra a vontade da pessoa, refletindo de alguma forma negativamente em sua vida (AZEVEDO, 2000).

A preservação e o respeito aos direitos da criança é consenso para a sociedade e lei para o campo jurídico que os considera prioridade em conformidade com os direitos fundamentais: direito à vida, saúde, alimentação e educação; direito ao lazer, à profissionalização e cultura; direito à dignidade e ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. O Art. 227 da Constituição Federal de 1988 - CF/88 (BRASIL, 1988) determina que a criança seja salvaguardada de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, proposições que sofrem violações em diversas formas e graus.

Cabe ao Estado, família, escola e sociedade civil o dever de assegurar os direitos da criança conforme o conjunto de leis vigentes, a saber: a CF/88; o Estatuto da Criança e Adolescente, Lei 8.069/90 (ECA); a Declaração Universal dos Direitos Humanos; Ass. Geral das Nações Unidas/48; e a Convenção sobre os Direitos da Criança, Decreto nº 99.710/90. Mas as leis não tem sido suficientes para inibir a violação independentemente da classe social, credo e raça. As ameaças concretas advêm da ausência de políticas públicas; da qualidade dos serviços de saúde e de educação; da precariedade das condições financeiras e econômicas da população; dos meios de comunicação alijados da formação cultural, moral e ética; e da própria família que tem sustentado os altos índices de violência doméstica, (BRASIL, 2004), quando lhe caberia juntamente com a escola a função de cuidar, proteger e educar, e assim promover a integração/adaptação da criança à sociedade, do contrário sobrevêm a desestrutura, a violência e a mortalidade.

A violação dos direitos da criança é um tema recorrentemente atual, com repercussões concretas no cotidiano da família e da escola, espaços onde os direitos são negligenciados, seja porque faltam recursos e infra-estrutura

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para cuidar, proteger e educar, ou porque são motivados por crimes bárbaros (esganaduras, esquartejamentos, estupro, cárcere privado), tornando-os conteúdos de matérias sensacionalistas que denunciam as condições de vulnerabilidade/risco a que as crianças estão expostas.

O elenco dos direitos da criança é tratado segundo o valor que se atribui a cada ato violador. Assim, dá-se mais importância aos casos que envolvem a violência sexual e física e ao abandono de crianças do que a outros que somente o conhecimento dos direitos e a sensibilidade para apreendê-los poderão caracterizá-los como atos violadores, a exemplo da privação de espaço para brincar ou falta de vagas nas escolas. Para Lefèvre (1993), quando não configura um tipo de violência mais brutal, a violação é tolerada, pois implica em um ato imoral, mas como não se constitui em um escândalo, provoca, no máximo, indignação e revolta à sociedade, como deixar uma criança sozinha em casa, subtrair-lhe o afeto e a atenção ou retirá-la da escola, diferentemente dos casos de pedofilia, homicídio, tortura física, entre outros.

Mas, pensar a violação como um fato sem visibilidade e sem implicações no desenvolvimento da criança encontra contradição quando confrontado com o texto legal do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990), onde a criança é denominada como um ser em desenvolvimento e designa a família, a comunidade, a sociedade, e o poder público como responsáveis por seu desenvolvimento. Assim, as instituições sociais tornam-se responsáveis por criar oportunidades para que o desenvolvimento da criança alcance todas as dimensões humanas, quais sejam, a física, psicológica, afetiva, moral, social, garantindo as condições de vida com liberdade e dignidade.

Algumas vezes a violação da criança no ambiente familiar acaba transcendendo este espaço e se estendendo à escola que ignora a carência ou sofrimento dela. Nesse caso, a escola torna-se também um agente de violação, uma vez que se abstém de cumprir os objetivos pedagógicos que lhe requisitam cuidar, proteger e educar (MIGUEL, 2008). Assim, seja na família ou na escola, quando a criança ainda é de tenra idade, dificilmente entenderá que está sendo tratada inadequadamente e terá dificuldade para denunciar e se proteger, o que reforça a necessidade de uma atenção especial ao problema. Em síntese, ações ou omissões de cuidados que provoquem danos ao bem-estar, à integridade física e

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psicológica, à liberdade e ao desenvolvimento da criança constitui uma violação aos seus direitos.

A família e a escola são os contextos mais próximos da vida da criança, nos quais se pressupõe deva existir as bases para sua formação, de maneira que a partir desses microssistemas sociais é preciso discutir as bases legais dos direitos da criança e observar os aspectos e as possibilidades concretas da escola e da família os preservar. Para tanto, outros requisitos preventivos precisam ser objeto de atenção, tais como:

• identificar os indicadores de violação dos direitos da criança e analisá-los segundo as especificidades contextuais;• identificar os conflitos e os obstáculos no processo de desenvolvimento da criança na escola de educação infantil, e suas possíveis relações com a atenção e os cuidados recebidos da família.

DEVERES / VIOLAÇÕES NOS MICROSSISTEMAS SOCIAIS

A família, instituição social intergeracional, onde as pessoas se ligam e se constituem por vínculos de pertencimento, e onde também o cuidado e a proteção se traduzem em atenção, orientação e afetividade revela-se, algumas vezes, como um locus violador contra seus próprios membros, repercutindo em sua organização e dinâmica interna e em outras instituições sociais.

Estudos realizados sobre a violência contra crianças no ambiente familiar, reconhecem que a sociedade brasileira assimilou uma cultura que dificulta ou mesmo impede reconhecer no outro um sujeito de direito, de maneira que o método para disciplinar mais usual, desde os tempos coloniais, tem sido o castigo físico, reproduzindo a idéia de que a família tem o direito de assim proceder, com fins a educar os filhos para o convívio social (AZEVEDO, 1989); (AZEVEDO; GUERRA, 1995; 1998; 2000; e 2001).

Os registros atualizados por um sistema online da Secretaria Especial de Direitos Humanos, em Brasília, a partir de 1997 já computou 1 milhão de violações dos direitos da criança e do adolescente. O Governo Federal disponibiliza para os Conselhos Tutelares de todo o país, o Serviço de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA) registrar os dados

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referentes que possibilitam identificar e ilustrar o panorama nacional 2

dessas violações , incluindo a família e a escola como os grupos sociais mais violadores.

Segundo o SIPIA a mãe, o pai e a escola também se constituem agentes violadores, e revela que o direito mais violado é o de convivência familiar e comunitária, direito previsto no Art. 16 do Estatuto da Criança e Adolescente. Quanto aos sujeitos mais violados há uma leve predominância do sexo masculino sobre o sexo feminino, 59% contra 62%. O percentual de violações dos direitos da criança é pouco mais elevado do que o percentual de violações contra adolescentes, variando em 1,06%. Chama atenção nos dados do SIPIA a escola despontar como o lugar público com maior número de violações, e a discrepância dos números entre os estados brasileiros não expressar a realidade das violações, mas a ausência de denúncias, porque o Sul e o Sudeste aparecem com números de registros maiores que as demais regiões do país, todavia atribui-se que essa diferença deve-se a ausência de denúncias e não de casos de violação.

Os modelos das relações familiares algumas vezes encobrem as ocorrências que protagonizam a violação dos direitos da criança e que podem ser compreendidos a partir de diversos pontos de vista conceituais, por exemplo, Koller e De Antoni (apud ALMEIDA; SANTOS; ROSSI, 2006, p.279), por exemplo, citam alguns fatores adversos que caracterizam o âmbito familiar, tornando-o um reduto impróprio à criança, são os seguintes:

[...] a história anterior tanto da vítima como do abusador, bem como a ausência de recursos terapêuticos e de conhecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente; o sentimento de solidão e de insegurança no ambiente familiar somados aos segredos da família, problemas por estresse, saúde e questões financeiras, o desemprego e o empobrecimento; baixa auto-estima, comunicação ineficiente na família, somadas às práticas disciplinares punitivas com a naturalização e a banalização da violência e a aceitação da punição corporal pela sociedade; e, ainda, fatores relativos à cognição e à educação [...].

2 Quadro das violações em todo o território nacional; principais violações e os agentes violadores. SIPIA – Secretaria Especial de Direitos Humanos.

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83Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar

Além dos fatores adversos que aumentam a incidência de violação aos direitos da criança, outros estudos confirmam os dados oficiais dos Conselhos Tutelares do país, como os realizados pela Universidade do Rio Preto, em São Paulo, com a participação efetiva de 55 famílias, detectando os seguintes índices: sobre a modalidade de violência física, as mães atingem 23% contra 5,5% por parte dos pais; todavia a associação da violência física com a sexual o progenitor alcança 15,5% e 16% e quando se trata de negligência; as mães fazem mais uso da violência psicológica e da negligência, com índices de 27% (BRITO et al, 2005).

É importante saber de quem parte a violação porque a presença mais constante pode estar determinando as condutas dos genitores. O referido estudo não encontrou em nenhuma família a ausência total de algum tipo de violação dos direitos, de modo que as modalidades conjugadas apareceram em maior índice, e os tipos isolados em menor número. Neves e Romanelli (2004, p.121) concluíram estudos sobre a violência dos pais contra os filhos ponderando:

O pai e/ou a mãe que espanca, viola o corpo do outro sim, mas, bate, espanca, agride e até mata em nome de tentativas que precisam ser decodificadas. Em geral, eles reafirmam, [...] bato para educar, bato para a polícia não bater amanhã, bato porque amo meu filho. Batem, mas dimensionam o amor e o espancar como se constituíssem um mesmo campo de afeto, sem diferenciar o seu desejo e o desejo do outro, menor, submisso, passivo.

Essas pesquisas revelam que a visão do violador pode estar distante do que significa a violação dos direitos para a vida da criança, da família e da sociedade. As experiências boas e más passam a fazer parte das histórias pessoais e as famílias podem não saber o quanto e como essas marcas irão influenciar os indivíduos, e assim os atos violadores tornam-se silenciosos e passam a ser considerados comuns e banais. São diversos os fatores que podem atingir as famílias e torná-las ameaças concretas contra os direitos dos seus membros, sobremodo dos mais indefesos: idosos, mulheres e crianças. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) apresenta dados preocupantes sobre o sofrimento de 6,5 milhões de crianças vitimadas anualmente no país, dentro dos seus próprios lares e por seus familiares (AZEVEDO, 2000; AZEVEDO; GUERRA, 2001).

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84 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

A família lidera o “ranking” de maus tratos contra as crianças e as causas externas ou agravos foram as principais causas de seus óbitos com idades entre 1 a 9 anos, conforme dados do Ministério da Saúde em 2006. A partir desses dados buscaram-se políticas de prevenção à violência e a promoção da cultura da paz, cuidados para garantir o desenvolvimento da criança sem comprometer seus valores para o futuro.

Mas, segundo Matias e Bazon (2005), nem mesmo os Conselhos Tutelares têm números exatos da prevalência de ações contra crianças pequenas, pois os casos acompanhados pela agência oficial de proteção infantil são inferiores aos números que compõem a realidade. Para elas “urge a necessidade de desenvolver ações de detecção e intervenção precoces” (p. 295). Elas declaram-se convictas da importância e necessidade de novos estudos que postulem detalhar as variáveis sobre esse assunto para ajudar a reconfigurar o quadro adverso às crianças.

O Ministério da Saúde, através de uma política de atenção integral à criança, desenvolve, atualmente, uma linha de cuidados que abrange atenção ao recém-nascido, promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno, investigação do óbito infantil e ações de enfrentamento à violência. Essas ações são motivadas por estudos e levantamentos de números referentes às suspeitas ou confirmação de maus tratos, morbimortalidade por acidentes e violências à criança em situação de violência, e pretende estender o apoio às famílias, fortalecendo a rede de proteção social à criança (BRASIL, 2006).

A rede de proteção à criança se constitui pelas conexões interorganizacionais dos seus agentes, representantes da família, escola, sociedade civil, entidades governamentais, instituições de saúde, de segurança pública, jurídica, que em diferentes períodos e de forma dinâmica se articulam com a finalidade de garantir os direitos da criança assegurados por lei, prestando serviços de pronto atendimento. Entretanto, as redes de proteção nem sempre tem atuado de maneira a garantir o que se propõe, apresentando problemas como os encontrados na pesquisa pelo IPEA/CONANDA (SILVA, 2005), e sobre violação do direito de convívio familiar e comunitário, acusam-se:

Ausência de integração entre os atores que atuam nos vários âmbitos da rede (promoção, defesa e controle), o que anula as potencialidades do modelo sistêmico e gera ações concorrentes entre os atores; falta de complementaridade entre as medidas de proteção especial e a rede de serviços

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85Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar

sociais básicos, o que inviabiliza a garantia dos direitos de crianças e adolescentes abrigados; atuação passiva dos órgãos de assistência social em relação as crianças e adolescentes abrigados e a suas famílias (AQUINO, 2004 p.367).

Na escola, no que diz respeito à proteção da criança é preciso pensar na capacitação dos professores, investimentos em recursos humanos e materiais, na conscientização do papel do profissional da educação em relação às medidas preventivas contra a violação dos direitos da criança, tais como: o diálogo com a família; a implantação de projetos de valorização da afetividade na família e de sua inserção na escola; e a inclusão de temáticas relacionadas aos cuidados com a criança discutidos coletivamente (ASSIS, 1994; MIRANDA, 2003; 2004).

Os abusos contra a criança, sua incidência e intensidade leva-nos a repensar sobre a relação da violação dos seus direitos e o seu desenvolvimento. A criança pequena para livrar-se de ações violadoras precisa da ajuda do adulto, mas na maioria das vezes os pactos de silêncio que alimentam a impunidade se sustentam na tolerância, no medo ou na conveniência que configuram o entorno dela. O silêncio nesses casos funciona como proteção ao violador, e enquanto isso os demais permanecem impotentes para cuidar e garantir o bem-estar da criança (FALEIROS, 2000; OLIVEIRA, 2003; QUEIROZ, 2003).

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2000; 2001) declara que o direito da criança tem sido violado mundialmente e sob vários aspectos. Revela que apesar da Convenção dos Direitos da Criança, realizada em 1989, a exploração, os abusos, a falta de saúde, as doenças sexualmente transmissíveis, o trabalho infantil, o tráfico de drogas, o deslocamento com armamento, as violências de modo geral continuam presentes na vida das crianças. Nos países em desenvolvimento, a cada ano, 51 milhões de nascimentos não são registrados; 218 milhões de crianças a partir de 5 anos de idade estão envolvidas no trabalho infantil; a cada ano 1,2 milhão de crianças são traficadas; 300 mil crianças, com idade média de 8 anos, servem como soldados em conflitos armados em 30 países; até os anos 90, 2 milhões de crianças morreram servindo em ambientes de guerra; 70 milhões de mulheres e meninas vivas sofreram mutilações genitais; 2 milhões de crianças tornaram-se prostitutas; e 40 milhões de crianças sofrem de abusos e negligências.

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86 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Como a escola e a família se posicionam frente a esses dados? Qual o compromisso que têm em relação ao respeito e cumprimento dos direitos da criança? “Os artigos 13, 56 e 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem que profissionais das áreas de educação e saúde são obrigados a notificar (comunicar oficialmente) aos órgãos competentes todos os casos suspeitos ou confirmados de maus tratos contra crianças e adolescentes” (FALEIROS; FALEIROS, 2006, p. 96).

Isso posto, indagamos quais as causas e as motivações da família e da escola para descumprirem os direitos assegurados à criança pela Lei 8069/90, e quais as repercussões dessas violações para o desenvolvimento infantil? Sabemos que para compreender as variáveis que se apresentam nos microssistemas sociais é preciso considerar as interrelações entre o processo, a pessoa, o contexto e o tempo (BRONFENBRENNER, 1996; TUGDE, apud MOREIRA; CARVALHO, 2008).

A abordagem bioecológica admite que haja influência da criança nos seus próprios ambientes, seja por sua cotidianidade, seja através de uma nova atividade que passe a desenvolver, ou porque estabeleça novos vínculos com outras pessoas e então ocorra o que ele denomina de bidirecionalidade, ou seja, influências recíprocas entre a criança e o ambiente, aqui entendido também como pessoas, objetos e símbolos (BRONFENBRENNER, 1996; SIFUENTES; DESSEN; OLIVEIRA, 2007).

Isso significa deduzir que quando a criança sofre algum tipo de violação, como privação social, material, emocional, restringe seu universo de significação à medida que também diminui suas possibilidades de convivência com a diversidade de familiares, de espaços sociais e de referências com pessoas que simbolicamente têm importância em sua vida, havendo restrições no seu desenvolvimento natural.

A pessoa, o processo, o contexto e o tempo (PPCT) são aspectos multidericionais interrelacionados, objetos de observância e análise do desenvolvimento. Ao observar o aspecto pessoa atenta-se para as constâncias e mudanças na vida da criança, considerando as características pessoais dela (personalidade, interesses, objetivos, motivações), e compreendendo que tais características influenciam os tipos de contextos em que as pessoas se inserem e na maneira que neles vivem suas experiências. (BRONFENBRENNER, 1996, MARTINS; SZIMANSKI, 2004).

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87Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar

Nesse modelo de desenvolvimento há ênfase nas características biopsicológicas, porém nenhuma característica isoladamente exerce influência determinante na vida da pessoa. Há destaque para três tipos de características que influenciam e moldam o curso do desenvolvimento, são elas: as disposições pessoais da pessoa que impulsionam e operacionalizam os processos proximais - aqueles de interação recíproca e cada vez mais complexa, que ocorrem entre o ser humano em desenvolvimento com as pessoas, objetos e símbolos nos ambientes mais imediatos, nos microssistemas; os recursos bioecológicos de habilidade, experiência e conhecimento; e as demandas que incidem nas reações do contexto social e interferem na operação dos processos proximais (BRONFENBRENNER, 1996; MATURANO, 2006).

Martins e Szimanski (2004) defendem que o processo tem relação com os papéis e as atividades cotidianas da pessoa em desenvovlimento. Assim, o desenvolvimento está atrelado à participação ativa, requerendo, pois, para adultos e crianças, uma interação progressiva com regularidade no tempo. O terceiro aspecto do PPCT é o contexto e este envolve o microssistema, o mesossistema, o exossistema e o macrossistema. O microssistema, ou contexto imediato, pode ser ilustrado pelo ambiente familiar, onde o ser humano deve receber cuidados básicos, constituindo-se no primeiro sistema com o qual interage. Ali as relações se dão face-a-face e se pressupõe que sejam estáveis e repletas de significados. Alves (1997, p.2) assim caracteriza as relações no microssistema:

[...] reciprocidade (o que um indivíduo faz dentro do contexto de relação influencia o outro, e vice-versa), equilíbrio de poder (onde quem tem o domínio da relação passa gradualmente este poder para a pessoa em desenvolvimento, dentro de suas capacidades e necessidades) e afeto (que pontua o estabelecimento e perpetuação de sentimentos - de preferência positivos - no decorrer do processo), permitindo em conjunto vivências efetivas destas relações também em um sentido fenomenológico (internalizado).

O contexto na abordagem bioecológica do desenvolvimento humano, o mesossistema, a exemplo, compreende as interrelações entre dois ou mais microssistemas, nos quais a criança participa ativamente; o exossistema corresponde a outros ambientes onde a pessoa não participa

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ativamente, mas de alguma maneira tanto afeta como é afetado pelo o que acontece nesses espaços; e, por fim, o macrossistema que pode ser pensado como consistências e regularidades que estão presentes nos demais ambientes e fazem parte ou poderão fazer da sub-cultura ou da cultura. Os sistemas de crenças, valores e ideologia é um exemplo. No modelo PPCT, contexto de desenvolvimento é o meio global onde o ser humano está inserido e onde ocorrem os seus processos de desenvolvimento em todos os ambientes, do mais imediato ao mais remoto (ALVES, 1997; MARTINS; SZIMANSKI, 2004).

Essa imbricação dos ambientes que a pessoa participa em seu processo de desenvolvimento repercute na vida diária de maneira perceptível ou não. O plano do dia da criança, a escolha da escola e do turno de estudo, o cuidado com os objetos, a comanda dada, a recomendação ou o aviso, as explicações concedidas, as lições diárias tanto formam como deformam, como é no caso do convívio com o adulto violador dos direitos da criança.

O último aspecto do PPCT, o tempo, se relaciona à maneira como as mudanças ocorrem na vida das pessoas. As idéias de Bronfenbrenner e Moris (1998) alertam para que se observe acerca das marcas e transformações na vida das pessoas a partir dos eventos históricos, inclusive interferindo e alterando o desenvolvimento de pessoas e populações. Há também nessa abordagem uma ênfase nas estruturas interpessoais para explicar como nas relações entre as pessoas perpassam as transformações no processo de desenvolvimento (MARTINS e SZIMANSKY, 2004).

Assim, não se pode olvidar a existência de relações entre crescer, desenvolver, integrar socialmente a criança e formá-la como um sujeito de direito que é. Logo, é preciso incorporar o significado dos fatos, a subjetividade presente nas relações entre os sujeitos e entre as instituições sociais, escola e família, além de enfatizar a pessoa enquanto aquele ser que protagoniza sua história e assim reflete seu próprio contexto (MYNAIO, 2008). Ao arrolar a escola e a família, instituições que sofrem influências de diversos fatores e conjunturas, e por envolver no centro de ambas a criança em desenvolvimento, torna-se imprescindível ouvi-las e conhecê-las, verificar suas estruturas e

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89Violação dos Direitos da Criança em Idade Pré-escolar

funcionamentos, suas potencialidades e dificuldades, também segundo suas própr ias percepções (BRONFENBRENNER 1996 ; BRONFENBRENNER e MORRIS, 1998).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aproximação com os microssistemas sociais, família e escola a fim de compreender a relação entre a violação dos direitos da criança e seus processos educativos é uma tarefa complexa, e isso porque, por um lado envolve a preservação de uma condição protetiva delegada às duas instâncias educativas, e por outro, transparece atitudes acusatórias, embora balizadas por análises macro e micro sociais, ao se levantar as possibilidades concretas desses microssistemas responderem favoravelmente ao cumprimento dos direitos estabelecidos à criança. A observação, então, mostra-se como uma via propícia à apreensão dos agentes e fatos violadores, porque as pessoas estarão sob o foco contextual, tanto quanto os processos por elas vividos, enquanto o tempo e a frequência das ocorrências adversas e ou positivas nas relações com a criança vão se refletir nas condutas e nos tipos de vínculos que ela exibir nos ambientes sociais. A interlocução constante com os agentes que organizam, administram e financiam as políticas e as condições de bem-estar social da criança é a outra maneira de tangenciar as razões e os meios existentes em cada contexto social, a fim de explicar a respeito da existência de atos violadores. A conjunção dessas vias possibilita conhecer os espaços escolares, os agentes educativos, e a dinâmica de funcionamento das instituições de ensino. Também favorece a identificação de casos de violação e de obstáculos ao desenvolvimento integral da criança, e o acompanhamento da dinâmica da sala de aula e das atividades curriculares mais amplas, incluindo a relação família-escola.

Conhecer os indicadores de violação dos direitos da criança é um dever cidadão mas pressupõe conhecimento dos marcos legais, das políticas públicas voltadas para o bem-estar social das famílias, pressupõe ainda o interesse e a sensibilidade social, a interpretação de situações que à primeira vista não parecem críveis, tampouco dignas de considerações ponderáveis. Por fim, será preciso aliar os conhecimentos pré-referidos à apreensão contextual, livre de pré-conceitos e sob a orientação dos saberes sobre os processos educativos da pessoa humana.

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90 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

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95Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Os estudos atuais sobre o comportamento criminoso têm corroborado o poder da relação familiar na construção de uma personalidade criminal. Quando a família não é ajustada psicologicamente ela perde a capacidade de relação afetiva equilibrada, abrindo espaço para a insegurança, ódio e o conflito. Nesta dinâmica afetiva familiar deficiente é que geralmente se desenvolve toda violência e toda insensibilidade do futuro agente criminal.

Se soubéssemos quem sempre está por traz de toda destruição, das inúmeras mazelas, dos inúmeros genocídios e das inúmeras perversões sádicas que cotidianamente nos enchem de pavor, possivelmente, acordaríamos para avaliar nosso papel como cidadão e como responsável por tudo que nos rodeia.

A incapacidade de aprender pelas experiências vividas ou pelas punições sofridas, a completa ausência de remorso, o caráter exibicionista e a incapacidade de autocrítica, junto a uma profunda insensibilidade, caracterizam a verdadeira personalidade criminal.

Quando se fala de personalidade antissocial, deve-se levar em conta que estes “tipos”, apesar de serem resistentes a cumprirem as normas e códigos sociais, possuem uma conduta social camuflada e, no mínimo, aceitável; mesmo apresentando um caráter autoritário e fascista,

A Verdadeira Personalidade Criminal

por 1Franklin Barbosa Bezerra

1 CRP15 0361 Psicanalista. Professor/Supervisor da Clínica Escola do CESMAC. Professor da Matéria Psicologia da Personalidade Criminal.

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96 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

consegue ser admirado pelos inúmeros “Zés-ninguém” que os rodeiam e empestam suas vidas. Camuflam-se em todas as profissões, exercendo o poder e “protegendo” seus vassalos dos castigos da lei. Segundo nossas observações o grande criminoso é aquele que não consegue se sensibilizar com a miséria do outro, com a fome e com a desesperança. É aquele que não consegue lutar por nada que não lhe beneficie diretamente, ou aos seus protegidos.

As pesquisas sobre o comportamento criminoso têm detectado o poder do contexto familiar no desenvolvimento de uma personalidade criminal. Quando a família não é assistida psicologicamente, ela perde a capacidade de relação afetiva equilibrada, gerando insegurança, ódio e desespero. Nesta dinâmica afetiva familiar deficiente, é que, geralmente, desenvolve-se toda violência e toda insensibilidade do futuro agente criminal.

Se soubéssemos quem sempre está por traz de tudo o que não presta, das inúmeras mazelas, dos inúmeros genocídios e das inúmeras perversões sádicas/necrofílicas que, cotidianamente, enchem-nos de medo. Se soubéssemos o que aqueles que, às vezes, idealizamos e veneramos são capazes de fazer. Possivelmente, acordaríamos para avaliar nosso papel como cidadão e como responsável por tudo de bom e de ruim que nos rodeia.

O maior papel do Psicólogo jurídico é o de ser um facilitador para o livre e soberano exercício da cidadania. Só sabendo e lutando por nossos direitos, conseguiremos reverter este caos que é a violência em nossa sociedade.

Diariamente, deparamo-nos com notícias sobre abuso sexual infantil. Para muitos, isso representa dor; para outros, prazer. Ainda encontramos aqueles que desconfiam dessa cruel estatística e atribuem a culpa à mídia por expor, de forma dramática, esta triste realidade. A Psicologia sabe que por trás dessa violência, às vezes, esconde-se a toxicomania, o alcoolismo, a frustração, o desemprego, algumas psicopatologias etc. O que aterroriza é saber que o maior gerador de violência contra a criança é a insensibilidade, a negligência, a falta de maturidade emocional e a ausência parcial ou total de afeto. Afeto não só pela criança gerada, mas também em relação à criança que vive dentro de nós. Como posso amar sem ter sido amado? Como posso ser afetivo com o outro se o que tive do outro foi dor e sofrimento?

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97A Verdadeira Personalidade Criminal

Segundo Sanderson (2004, p.16), ”Não está claro quão difundido é na verdade o abuso sexual em crianças, ele é encoberto”. Ela sugere que é “imperativo que pais e professores encontrem maneiras de conversar com as crianças sobre os perigos do abuso sexual infantil na família e na comunidade, e não apenas em relação a estranhos”.

Através de inúmeras pesquisas, detectamos que a grande maioria das personalidades criminosas foi vítima de abuso sexual infantil, de brutalização e de indiferença. Com isso, não temos a pretensão de generalizar, mas de provocar reflexões! De apresentar um espelho para que o leitor possa enxergar a sua própria realidade familiar e analisar como se relacionam e como integram. Família afetiva é família aberta a diálogo; geradora de confiança entre pais e filhos. A criança, fruto de uma relação deste tipo, dificilmente é manipulável; não é a toa que abusadores de criança visam as mais carentes de afeto e as mais problemáticas, pois elas, infelizmente, são mais facilmente influenciadas e enganadas para servir a objetivos sórdidos.

A violência contra a criança é cometida, geralmente, por pedófilos ou por seres que odeiam crianças (alguns pais, alguma mães, vizinhos etc.) Nem sempre estes “seres” são estranhos ao ambiente familiar e quase nunca são percebidos pelo discurso; é claro que um profissional experiente terá mais condições de entender o que está por trás do discurso, de exagerar, nas entrelinhas, a perversidade e a dissimulação. “O mal é quase sempre gerado, alimentado e cultivado na própria carência afetiva do agressor, ele está lá ou para desempenhar um papel secundário ou para ser o ator principal de toda a destruição e de toda a ruína.”

Segundo Sanderson (2004, p. 88), “Acredita-se que aproximadamente 30% de todos os abusos sexuais contra crianças são cometidos por adolescente. As famílias podem ser grandes geradoras de humanos sadios, equilibrados, criativos, alegres e sensíveis; como também pode ser fonte geradora de criminosos cruéis, estupradores e abusadores de crianças. Se uma criança recebe ódio, indiferença, crueldade e sobrevive; alguém vai ter que pagar de alguma forma por tudo isso. Essa vitima deverá ser alguém que represente simbolicamente este agressor internalizado, ou toda sociedade. Se eu (criança) fui agredido pelas figuras mais significativas de minha vida (pais), talvez, desenvolva a crença de que a agressão é só uma forma, ou a única forma de relacionamento interpessoal! Se meus pais fizeram comigo, porque não fazer com os outros”.

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98 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Atualmente, a mídia tem se deparado com casos criminais que evidenciam a existência de “seres humanos” capazes de atrocidades e crueldades contra seres indefesos ou que jamais viram ou conviveram. Muitas vezes, são criminosos que, aparentemente, convivem satisfatoriamente em sociedade, nunca cometeram nada que os desabone ou os coloque como suspeitos de possuírem uma personalidade cruel e dissimulada. Encontramos outros que parecem implodir numa fúria cega e desmedida; tamanha violência e brutalidade que até aos mais próximos fica difícil de acreditar. Estamos falando da personalidade criminal conhecida como Serial Killer. Segundo Palomba (1995, p. 223), “geralmente apresentam deformidade na falta de senso moral, na afetividade subdesenvolvida, na insensibilidade e no egoísmo, podem apresentar uma mente organizada, serem loucos ou fronteiriços” difícil de diagnosticar, pois apresenta um comportamento homicida brutal comumente imotivado. Existem muitas formas de destruir alguém, formas muito mais cruéis do que o assassinato; mas o que mais nos choca é a passagem ao ato na forma homicida,quando isto acontece, necessitamos avaliar se o homicida é organizado mental ou portador de alguma doença mental.

Existem patologias mentais que podem estar por trás de um serial killer, Segundo Palomba (1995, p.24), como certos tipos de esquizofrenia, a psicose paranóide, ou também, para alguns, a eplepsia condutopática; no entanto, por mais difícil que pareça, a maior parte deles não possui nenhuma doença mental. Segundo Butcher (1971, p.76), “Não apresentam o que mais caracteriza as doenças mentais que são as alucinações e os delírios, apresentam geralmente ausência de afeto e senso moral, um caráter exibicionista, calculista e manipulador, são verdadeiros mestres da camuflagem, são meticulosos e ardilosos na execução do crime e na ocultação de evidências que possam prejudicá-los”. Tudo isto, segundo Lindner (1972, p.144), “porque não são afetados por algo que sempre nos denuncia: a ansiedade antecipada,vulgarmente falando, são frios o suficiente para serem interrogados e acusados por algo que sabem que cometeram, mas que não manifestam nenhuma ou quase nenhuma emoção”. O poder da sedução é sentido através da identificação que muitos sentem por estes tipos. Por que será que muitos serial killer possuem um fã clube tão apaixonado e fiel? Por que recebe tanta proposta de casamento? Por que alguns são protegidos e defendidos por cidadãos acima de qualquer suspeita?

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99A Verdadeira Personalidade Criminal

O importante é que não esqueçamos de que o serial killer, organizado mentalmente, é um ser antissocial sem, necessariamente, apresentar uma conduta antissocial. Eles precisam, para serem aceitos, de um comportamento social que não os denigra, pelo contrário, precisam ser vistos como educados bons vizinhos, às vezes, até bom pai e um bom marido, tudo faz parte da camuflagem. Todas as profissões estão cheias destes seres humanos, eles estão em todo lugar, o que constantemente os denunciam é a aversão que manifestam contra figuras de autoridade, códigos sociais e normas de convívio social.

Só são corretamente diagnosticados se passarem por avaliações psicológicas e psiquiátricas precisas, muitas vezes, necessitando também de uma análise neurológica.

Embora com as inúmeras tentativas de encontrar sua origem na genética, os cientistas têm reconhecido que sua origem está muito mais ligada a uma dinâmica afetiva familiar deficiente, a muita indiferença e muita violência familiar. Apesar de possuírem, desde que organizados mentalmente, muita criatividade, muito ritualismo e muita capacidade para ocultar provas, quando os órgãos de segurança se empenham na sua caça, eles são presos. Eles só não serão capturados se alguém que se destinou a procurá-los não conseguir vencer a identificação com eles ou com o que eles fizeram.

No início, a Psicanálise entendia a Perversão como tudo que diferia do chamado ato sexual normal. Ato sexual normal, na época de Freud, significava aquilo que acontecia por baixo dos lençóis e que, praticamente, representava a penetração pênis/vagina. Todos sabiam que existia mais do que isso, mas, preferiam manter ocultos estes comportamentos do discurso social. Quando a Psicanálise começa a estudar as histéricas e a sexualidade infantil, começa a enxergar a presença de outras formas de práticas que apareciam neste ato sexual normal. Este foi o grande avanço dado por Freud ao que chamamos de perversões.

O tema perversões é, talvez, o ponto mais crucial de toda teoria psicanalítica. Explicá-lo, com o pouco espaço que temos, seria impossível. A meu ver, o mais importante é tentar esclarecer se a pedofilia pertence ao mundo das perversões ou das psicoses (doenças mentais). A pedofilia é, para a Psicologia, uma desordem psicológica, principalmente, porque ela manifesta uma preferência sexual exacerbada de um adulto homem por

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100 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

crianças de até 12 anos. Ora, alguém poderia levantar a hipótese de conhecer uma criança com esta idade, mas que aparenta muito mais, que já possui uma estrutura mais adulta etc. Não nos esqueçamos do até doze anos. Na maior parte dos casos, as crianças não chegam a 10 anos!

Sabemos o quanto é negativo para um filho (a) assistir ao ato sexual dos pais. Imagine a tragédia dele fazer parte de um ato sexual. Por mais madura e encorpada que seja a criança, sua personalidade não consegue elaborar positivamente o sexo, como “alguns” adultos conseguem. Se a criança abusada por estranhos irá apresentar sequelas psíquicas dolorosas e desestruturantes, avalie este abuso sendo cometido por seus familiares ou por pessoas próximas a família? As características mais conhecidas destes agressores são: o interesse exagerado de alguns adultos por crianças; o agressor, normalmente, tem mais de 30 anos e adora tudo que diz respeito a crianças, geralmente, usa de presentes e confeitos para atrair a amizade das crianças; procura atividades profissionais nas quais possa ter um contato prolongado com crianças; adora visualizar o corpo nu de crianças, muitas vezes, adora tocar, apalpar e acariciar crianças; adora colecionar coisas infantis; procura crianças que são tratadas com indiferença e brutalidade, aquelas que vivem de casa em casa e às oriundas de lares desfeitos, Na maioria das vezes, são vistos como sociáveis, prestativos e até solidários pelos vizinhos. Cuidado com eles!!

Estas características citadas podem ajudar a descobrir um pedófilo, como também ajudará a perceber se o interesse exagerado de um adulto não camufla um abuso sexual, ou uma tentativa de estupro de uma criança. O mais importante é que saibamos que esses tipos sempre existiram; e o pior de tudo, pode morar do nosso lado, até do lado da nossa cama. A Internet possibilita para eles novos contatos, mesmo com o risco de serem desmascarados. Eles se sentem atraídos pela possibilidade de transgressão. Quando são submetidos a testes e entrevistas psicológicas, não apresentam nada que possa determinar doença mental. Existem crimes contra crianças praticados por psicóticos fanáticos, mas são mais raros. O crime dos pedófilos é preferirem, ao invés de adultos, crianças para se satisfazerem sexualmente. Talvez com algum sentimento de culpa, mas com dolo total.

Os atos de violência, como são os assaltos, estupros e os sequestros relâmpagos, têm um poder nefasto no equilíbrio mental das vítimas. Existem autores que os comparam a uma espécie de câncer da mente.

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Quando pessoas são atingidas por estes atos, elas, geralmente, vivenciam uma situação conflituosa de perder a confiança e a segurança naquilo que faziam. Desenvolvem uma insegurança e um medo exacerbado de continuar produzindo, trabalhando e, ao mesmo tempo, de viver situações de prazer que faziam parte do seu cotidiano. Imagine o que representa para os pais a ida de um filho (a) a uma boate depois daquela onda de violência e brutalidade que todos assistimos? Imagine as famílias que perderam ou quase perderam seus filhos em episódios semelhantes?

Para muitos, essa violência é fruto do desemprego, das diferenças sociais, dos preterimentos e dos preterimentos sociais; para outros, ela é fruto da impunidade proporcionada pelas ingerências políticas, pelos apadrinhamentos políticos que protegem seus afilhados de receberem a penalização devida. Alguns atribuem apenas fatores biológicos à gênese destes absurdos sociais. Mas, afinal, o que explicaria o fenômeno nefasto da criminalidade?

Outro aspecto que precisa ser visto é a potencialização da criminalidade no sistema penitenciário, enquanto não nos conscientizamos de que o preso um dia cumprirá a pena e voltará para a sociedade, pior do que entrou. E isto não é proteção a ele, mas a todos nós, se você entende que a criminalidade é um problema que tem de ser resolvido, não só dentro da família, mas dentro do sistema prisional. As verdadeiras personalidades criminais devem ser tratadas como personalidades fabricadoras de servos que, devidamente manipulados, estarão por trás de rebeliões e uma infinidade de crimes dentro e fora da prisão. Vamos lutar para que o operador de saúde mental, no sistema penitenciário, seja devidamente treinado e preparado para lidar com estes “tipos” que, na maior parte das vezes, estão fora da prisão, mas quando entram fazem um estrago nefasto na instituição mais despreparada e brutal que se chama, vulgarmente, de CADEIA.

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102 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ZIMERMAM, David. Aspectos psicológicos na prática jurídica. Ed. Millenium, 2002.

BONFIM, Edson. O julgamento de um serial killer. São Paulo: Ed. Malheiros, 2004.

BRITO, Leila Maria. Temas de psicologia jurídica. Ed. Relume Dumará, 2002.

CASOY, Ilana. Serial Killer. Ed WzT, 2002.

CASOY, Ilana. Serial Killer made in Brasil. Ed ARX, 2004.

GONÇALVES, Hebe e BRANDÃO, Signorini. Psicologia Jurídica. Ed. Nau, 2004.

JESUS, Fernando de. Psicologia Jurídica aplicada à justiça. Ed. AB, 2001.

LINDNER, R. A hora de Cinquenta Minutos. Sao Paulo: IMAGO, 1972.

RIGONATI, Sergio Paulo. Temas em psiquiatria forense e psicologia jurídica. Vol IEd. Vetor, 2003.

RIGONATI, Sergio Paulo. Temas em psiquiatria forense e psicologia jurídica. Vol II. Ed. Vetor, 2005.

SANDERSON.Cristiane. Abuso Sexual com crianças. Artes Médicas. 2004.

TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores de direito. Ed. Livraria do advogado, 2004.

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103Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Psicologia e Direitos Humanos:1Contradições Geradoras para um Fazer Crítico

por Marcelo Ribeiro

O surgimento da psicologia, enquanto ciência, coincide com o surgimento de novas aspirações humanas na modernidade. A crença numa ciência capaz de iluminar a obscuridade do mundo humano, a razão como suporte dessa ciência, a produção de conhecimentos e tecnologias para fins de previsão, controle e reprodução, coincidem com o afã de um mundo mais justo, mais liberto e realizado.

Embora os avanços, conquistas e o reconhecimento de muito do que somos seja fruto desse movimento coincidente da ciência com as novas aspirações da modernidade, não há como negar as contradições intrínsecas a todo esse processo.

Pensar acerca da psicologia e dos direitos humanos é arriscar-se numa 2reflexão que envolve o questionamento da modernidade . E esta, para nós,

parece estar marcada por uma promessa, por um desencantamento, por um deslumbramento, por um aumento inimaginável da produção de riquezas, por uma inconstância e impermanência e por uma abertura à vida híbrida.

1 Este texto é uma versão revisada e atualizada de um trabalho apresentado na mesa redonda sobre Psicologia e Direitos Humanos, na II UNPSI da Universidade Salvador, em março de 2004.2 Preferimos utilizar o termo “modernidade” e não “contemporaneidade” ou “pós-modernidade” porque achamos que as condições básicas do projeto civilizatório que nos marca foi constituído, sobretudo, na era moderna.

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104 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

A partir de agora, iremos desenvolver cada uma dessas marcas, tentando contextualizá-las enquanto processo do mundo moderno que desemboca na contemporaneidade, daí ganhando novos contornos. Esse processo, como veremos, parece ser atravessado pela contradição.

A promessa da modernidade se deu através da crença da ciência que, guiada pela razão, proporcionaria um mundo melhor. Esta promessa, alicerçada num sistema capitalista e nas suas múltiplas roupagens de desenvolvimento, instigou massas humanas ao longo do tempo para produzir certo mundo. Embora os embates, as divergências e as várias versões da “locomotiva da modernidade” se dessem de modo, muitas vezes, acirrado, mobilizou e constituiu um tempo.

A promessa da modernidade não se cumpriu plenamente. Pelo menos, não em termos do que havia prometido. Entretanto, o seu êxito se deu na capacidade mobilizadora para dar curso a todo um processo de modernização das relações de poder e dos meios de produção.

Os resultados de uma promessa que não cumpre seus fins, mas sim, a radicalização e o desenvolvimento dos seus meios, geram algumas consequências. Não obstante, seria desviar muito querer abarcar todas estas. Por isto, nos damos por satisfeitos apontar algumas consequências.

A primeira, diz respeito a uma crescente dependência dos meios. Uma promessa que não cumpre seus fins, mas reafirma seus meios, pode renovar o acreditar na própria promessa. Isto, por sua vez, tende a gerar dependência. Parece que não sabemos mais viver sem celular, internet, televisão, supermercado, forno micro-ondas, descascador de cebolas, analgésicos ou psicoterapias.

A dependência, nesse caso, indica um controle. Se alguém depende de algo é porque existe algo subordinando alguém. Somos, ao final das contas, todos subordinados. Dependemos tanto de tantas coisas e condicionamos muito das nossas vidas que, dessa forma, somos, muitas vezes, incapazes de suportar a ideia de romper com todos esses meios que prometem uma vida melhor. Ao mesmo tempo, necessitamos muito e, cada vez mais, desses meios. Nesse ritmo dinâmico de depender e necessitar cada vez mais de ter, o sistema torna-se eficiente. Daí, gera para si um ininterrupto mercado consumidor que se renova consumindo o próprio consumidor. Este, por sua vez, para fugir da dor, da sua voracidade dependente, consome a si.

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105Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico

A segunda consequência tem por característica a decepção, o questionamento, o embate e a busca por outras respostas de existência. Neste sentido, observa-se a própria contradição, inerente não só à condição humana em constante “vir a ser”, mas, sobretudo e, particularmente, na modernidade.

Esta contradição nasce também de uma promessa que não se cumpre, mas, principalmente, de uma promessa que não se pode cumprir. A contradição parece ser uma questão muito profunda para se entender a condição humana da contemporaneidade. Somos forjados pela contradição. Queremos ser algo que não somos, descobrimo-nos outros em um ritmo que nos escapa, negamos o que nos constitui e necessitamos buscar algo que não sabemos. Toda essa problemática faz parte da nossa atual itinerância e história, empurrando-nos, cada vez mais, para a incredulidade de um mundo melhor.

Antes de passarmos para a próxima “marca”, é importante salientar a crítica 3que um amigo, Zeca Medeiros , fez em relação à questão da decepção.

A decepção é de cada ser humano, de cada ser psicológico que, quando esteve diante da promessa, não apenas esperou que ela se cumprisse. A promessa foi, subliminarmente, ou, inconscientemente, feita por nós, a nós mesmos. Esse, a meu ver, é o grande trunfo do capitalismo moderno: assumirmos as promessas que não, efetivamente, fizemos.

Ao sermos colocados diante do modo de produção capitalista, não tivemos a exata dimensão no que nos metíamos. Em sociedade, nada, mesmo nos dias atuais de tanta informação e ‘conhecimento’ somos capazes de estarmos com a verdade dos processos que somos envolvidos. Não conhecemos o que nos envolve, apenas sentimos e seguimos em frente. Assim como no amor, não racionalizamos o que vivemos, apenas vivemos. Assim é o capitalismo, não existiu alguém de fora nos prometendo nada, nós nos fizemos a promessa e quando ela não se cumpriu, fomos nós que nos traímos. Penso que daí nascem as frustrações, as ansiedades e as sensações de incapacidade e impotência por termos nos traídos, por não termos cumprido a promessa que nós ‘fizemos’. Porém, finalizo relembrando: NÃO FIZEMOS A PROMESSA, pensamos que nós tivéssemos a liberdade de fazermos, mas não fizemos.

3 Jornalista e estudioso das ciências sociais. Esta crítica se deu a partir de mensagens via e-mail, em 22 de abril de 2004, em relação ao texto que aqui se apresenta. Como achei de importância esclarecedora, resolvi colocar na íntegra.

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106 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

Acreditando que ficou relativamente relacionada à questão da promessa não cumprida (em seus fins) com a decepção, já podemos passar para a próxima marca do momento humano, a saber, o desencantamento.

Para Max Weber (2003), o desencantamento foi imprescindível para o avanço da ciência e, portanto, para modernidade. Gradativamente, as relações entre o homem e o sagrado foram mediatizadas. O homem perdeu a relação com o sagrado e esta perda também danificou uma relação humana que constrói os (sagrados) direitos humanos.

Mais uma vez, recorrendo às críticas de Zeca Medeiros, em relação à perda da relação com o sagrado, este nos diz:

(...) direitos humanos (...) não o globalizado, mas aquele que faz com que um ser humano veja o outro na sua versão individualizada, não homogeneizada para sermos um grande mercado de consumo. O direito do outro não é, a meu ver, o direito de ser negro, mulher, homossexual, deficiente, etc, mas o direito de termos o que comer, o que vestir, onde estudar, morar, não ser assassinado nas ruas. A categorização nasce para dar uma nova roupagem da discussão do social, discussão (desculpe se o termo é da década de 60, mas...) essa apenas burguesa. Sempre haverá seres humanos que não tolerarão o outro, a cor do outro, o aspecto do outro, a opção do outro, mas não que esse seja um vaticínio da humanidade, mas o é do sistema de produção competitivo, sem contemplação do belo...

Diante dessa perda da relação com o sagrado, que começou com Deus, e que seria também uma relação divina entre os próprios homens, abriu-se espaço para uma relação do homem com o mundo mais instrumentalizada e mais individualizada. É neste sentido que Max Weber (2003) nos diz:

O fim precípuo de nossa época, caracterizada pela racionalização, pela intelectualização e, principalmente, pelo ‘desencantamento do mundo’ levou os homens a banir da vida pública os valores supremos e mais sublimes (p.57).

O homem soberano, dono de si, conquistador, explorando os limites insondáveis das sombras, transformando extraordinariamente os recursos da natureza, enfim, o homem moderno destemido teve que desencantar o mundo, na compreensão weberiana, para subordiná-lo. Entretanto, este desencantamento deixou-o vazio.

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107Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico

Vivendo a necessidade do desencanto para fazer valer sua promessa e vivendo um desencantamento do mundo, o homem redescobriu-se só. Mais uma vez, entre destinos que se impõem, o homem é chamado a dar respostas frente à contradição.

Minimamente, duas possibilidades de respostas, numa perspectiva existencialista, são aqui esboçadas. Uma pode estar relacionada ao homem que, ao redescobrir-se, só busca a voracidade de novos desencantamentos para suas últimas conquistas e, consequentemente, satisfações apaziguadoras de sua angústia. A outra possibilidade é encontrar, na relação com o outro, um sentido para existência, de um modo que possa assumir e sustentar a angústia de estar só no mundo. Isto nos parece ser uma das possíveis inspirações para a reflexão acerca dos direitos humanos. Mas, por enquanto, falemos um pouco mais sobre as satisfações apaziguadoras, uma das respostas tipicamente modernas.

Essas satisfações apaziguadoras se tornam possíveis porque há um deslumbramento em relação ao poder. Nesse sentido, é que o narcisista se perde e se deslumbra com o próprio reflexo, construindo a sensação e a relação com a imagem de si mesmo, no disfarce de não estar só, a partir de um poder heterônomo.

De acordo com Piaget (apud La Taille, 1992), a moral heterônoma está diretamente ligada à qualidade das relações autoritárias, onde um sujeito não interage com a alteridade do outro. A relação é espelhada e alimentada por deslumbramento de si mesmo no outro. Este deslumbramento se relaciona com a produção, não só de bens, mas também com a produção humana.

Assim, o deslumbramento da própria imagem põe em andamento um projeto disseminado de homogeneizar e padronizar a vida. Isto é facilmente observado no modo de vida que busca as padronizações nas organizações, nos critérios de qualidade adotados dos diversos espaços sociais, nas clonagens, nos alimentos geneticamente modificados, no que é politicamente correto, nos meios de comunicação unívocos e nas demais tecnologias forjadoras de subjetividades padronizadas (Santos, 2000).

O deslumbramento de si leva o homem a querer ser todo igual. O deslumbramento do seu poder sobre o outro e o mundo leva a querer

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108 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

aniquilar o que denuncia a sua diferença. O deslumbramento irradia no ser 4humano uma condição de não ser-sendo , tentando paralisar ou, no

mínimo, prever e controlar o seu vir a ser.

Portanto, à medida que o homem tenta potencialmente fazer do outro seu igual, faz também de si um igual para si. Este empobrecimento do múltiplo e da alteridade cria dificuldades, principalmente, para o campo das relações humanas. E, no que diz respeito à questão dos direitos humanos, isto parece ser algo grave. Atualmente, vivemos um acirramento da intolerância entre as pessoas, entre as culturas e entre as nações. O mundo parece ter se cindido entre o bem e o mal, entre bons e maus, entre deuses e demônios, não havendo espaços para interfaces ou diálogos.

Este cindir do mundo não separa apenas valores. A divisão entre pobres e ricos e entre países centrais e periféricos é também evidente. Embora a produção da riqueza humana, dos bens de consumo, de alimentos, de tecnologias e informação seja, extraordinariamente, marcante na atualidade, como apontado por Eric Hobsbawm (1995), não são compartilhados por todos e nem pela maioria.

Este aumento da riqueza, dos índices de qualidade de vida, de modo geral, e, ao mesmo tempo, a desproporcionalidade disso tudo, ou seja, o aumento da concentração de riqueza ou da distância dos mais ricos para os mais pobres é algo típico do Brasil, como observado por Minayo (1999), mas também algo da realidade mundial, principalmente, se calcularmos e localizarmos toda produção global. Assim, comparando e mensurando também as distâncias dos países mais ricos para os países pobres, muito provavelmente observaríamos que, embora haja um aumento da riqueza, em termos globais, há um aprofundamento ou um distanciamento entre os que mais têm e os que menos têm.

Coincidência ou não, este aumento global de riqueza e distanciamento entre os mais ricos e pobres acompanha, historicamente, uma crescente militarização planetária. Ainda segundo Eric Hobsbawm (1995), o mundo vive, na modernidade, uma ascendente prática de guerras em massa. Provavelmente, essa disposição para hecatombe, essa indústria milionária

4 Aqui me refiro a ideia do ser-sendo, desenvolvida por Dante Gallefi, em seu livro “O ser-sendo da Filosofia”. Salvador: EDUFBA, 2001. Esta ideia indica que ser se dá na relação com o outro no mundo.

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109Psicologia e Direitos Humanos: Contradições Geradoras para um Fazer Crítico

de máquinas de matar sustente uma permanente criação do inimigo. Precisa-se de um inimigo para justificar defesas e um mercado de guerra. Além disso, objetivamente, num mundo muito cindido e de grandes distâncias, a ameaça e a imposição bélica parecem ser saídas que asseguram, pelo menos superficialmente, as posições hegemônicas de poder.

Certamente, esta também é uma das principais marcas que atravessa a questão dos direitos humanos. A ameaça constante de guerra, um mundo belicoso, armamentos de grande poder de destruição em massa, as injustiças sociais, as disparidades de vida, o medo do revide do outro, as renovações constantes de ideologias totalizadoras e a própria insuportabilidade dos excluídos geram um mundo onde o homem, enquanto ser, perde importância.

Os direitos individuais, os direitos coletivos, o direito a dignidade de vida e todos os demais direitos são atropelados em nome da necessidade de defesa, de vigilância, de controle e de segurança. As ruas, os prédios, as casas, as escolas e outros espaços sociais passam a ser vigiados por câmeras, sensores, patrulhamentos diversos, enfim, pelo olho que tudo vê. Parece que o poder panóptico tão bem analisado por Foucault (1989; 1993) ganhou sua versão mais refinada na atualidade.

Tal poder termina oprimindo o ser humano, pois este fica muito mais a mercê de interesses extrínsecos à própria vida. Sua liberdade passa a ser tolhida, seus passos mais controlados, sua vida mais previsível e sua importância, enquanto existente, cada vez mais reduzida a números. O ser humano perde importância, justamente, naquilo que parece caracterizá-lo, ou seja, na constante realização de sua humanidade.

Não só o ser humano perde importância enquanto ser. Tudo parece perder algo, tudo parece estar reduzido à produtividade, à eficiência, ao econômico e ao deus ex machine do mercado. Essa redução do ser, por sua vez, veio acompanhada com o tic tac do relógio, com a máquina do tempo. Esse ritmo acelerado, que teve início na era moderna, ganha mais velocidade no mundo atual. Agora não são mais as buzinas das fábricas acordando cidades e nem relógios de bolso marcando a chegada do trem. Agora são os micro chips em tempo virtual-real transcendendo a sua própria lógica linear. A produção, com o tempo on line, atinge níveis de velocidade que o homem já não é mais capaz de acompanhar.

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110 Psicologia Jurídica: Ensaios Sobre a Violência

O controle do tempo e a sua submissão a uma lógica instrumental é uma marca herdada da modernidade. Nela, o tempo saiu do seu ritmo cíclico, orientado pelo movimento da natureza, e iniciou sua contagem emblemática num relógio formado por catracas e engrenagens. Agora, na atualidade, um novo paradigma é construído: a máquina digital e seu tempo virtual.

O tempo engole o homem e o mito se faz: Chronos se alimenta do homem que nasce a cada tempo. Assim, a inconstância e impermanência das coisas também forjam o homem, mas não de um modo processual e integrador, e sim de modo esquizofrenizado.

As mudanças são tão rápidas que não há tempo para o homem apreender as diversas coisas por ele, supostamente, experimentadas. Não só as coisas materiais que são descartáveis, mas também as próprias pessoas e relações são dimensionadas nessa perspectiva da inconstância, da impermanência e da descartabilidade, pois num momento servem e, logo no momento seguinte, já estão superadas e descartadas.

Em parte, esta velocidade ganhou novo ritmo (mais voraz) com o advento das novas tecnologias, principalmente, as relacionadas com a informática e as telecomunicações. Estas tecnologias lançaram o homem numa vivência muito particular. O homem reinventa o tempo e se reinventa nesse tempo. E ainda é cedo para se ter uma boa ideia dessa condição, que é também contraditória.

Podemos constatar que esse tempo tem implicações profundas na questão dos direitos humanos. Afinal, a qualidade das relações humanas e o contato da pessoa com ela mesma ou com a outra estão atrevessadas por um tempo. Por um tempo que não para, por um tempo que devora.

Como podemos perceber, até o momento, a contradição parece ser um item que se manteve ao longo de nossa reflexão acerca da modernidade e da relação entre a psicologia e os direitos humanos. Uma dessas sínteses possíveis da contradição iniciada na modernidade - e que chega até os dias de hoje -, diz respeito às fronteiras, aos limites, aos territórios e à identidade.

Como alguns apontam (Serres, 2001; Silva, 2000), a compreensão da identidade tem sido totalmente transformada. Se antes a identidade era vista

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de modo estanque, permanente, constante e cristalizadamente classificável, atualmente, passa a ser concebida enquanto processo. As noções de fronteira, territorialidade e limites são profundamente alteradas. Adentramos na era do hibridismo, da mestiçagem, do mundo líquido, do redesenho internacional das nações, da própria redefinição de nação, de territórios e limites.

A contradição parece acompanhar também esta marca. É importante atentar e chamar atenção para a questão dos direitos humanos, no que diz respeito à construção de novas (híbridas) identidades.

A “hibridade” ou a miscigenação da identidade não parecem garantir os direitos humanos. Novas composições podem ser elaboradas, novas desenhos territoriais podem ser articulados, mas enquanto o ser humano não estiver sendo convocado para discutir ou mesmo ouvir estas tendências ou posições correrá riscos. Estes, não mais por condenação ou subjugação de certo grupo humano em nome de uma pureza de raça, mas, provavelmente, por novas formas (híbridas) de opressão.

Mesmo considerando que nossas exposições tenham resvalado em algo sobre os direitos humanos, ainda cabe uma pergunta basilar: afinal, o que vem a ser direitos humanos?

A questão dos direitos humanos parece ser resultado de um amálgama de condições e que passa, sobretudo, no recorte por nós privilegiado, ou seja, pela contradição do nosso tempo. As ciências e, concomitantemente, a modernidade erigiram um mundo repleto de contradições onde as injustiças, ameaça à vida, a desvalorização da vida humana e desequilíbrios intensos, nos diversos ecossistemas do planeta, são vividos ao lado de conquistas nas mais diversas áreas.

São essas conquistas, avanços tecnológicos e científicos, explorações aos limites insondáveis da vida, exuberância da criação artística e, até mesmo, a reflexão crítica de tudo que acontece no processo histórico que chama atenção, mas chama atenção por coincidir com outras marcas do tempo. Marcas que atingem diretamente os direitos humanos. Aí está a contradição. Entretanto, a contradição não nos parece ser o problema, ao contrário, esta tende a impulsionar, a gerar possibilidades de questionamentos, reflexões, agitações e mudanças.

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As contradições forçam a discussão e, em particular, exigem da psicologia respostas imediatas. Estas, por sua vez, não estão, necessariamente, destinadas a reformar ou mesmo aperfeiçoar o sistema que hora vigora no mundo. Às vezes, as respostas que os seres humanos buscam dar e, mais precisamente, que a psicologia procura e deve oferecer, ao longo da história, estão relacionadas com a ruptura do modelo sócio-econômico-político e com os seus paradigmas norteadores.

A relação da psicologia com os direitos humanos traz algo de resgate. Resgata o valor humano, não mais etnocêntrico, mas o valor humano situado entre os diversos seres, numa relação de complentariedade. Esse resgate tem a ver também com a afirmação de que todas as pessoas têm direitos básicos inalienáveis e que devem ser garantidos como condição fundante para vida. Na verdade, é uma postura ética que norteia toda e qualquer relação entre as pessoas. Ou, como diria o poeta, “gente é para brilhar”. Esse resgate, ou mesmo essa inauguração, pode ser um dos sentidos da psicologia para a questão dos direitos humanos. Isto tem a ver com a compreensão dos aspectos psicológicos presentes na problemática do homem na atualidade e as suas consequências.

A psicologia pode também ajudar, à medida que proporciona compreensão da problemática e das consequências, mas, sobretudo, quando contribui para práticas afirmadoras dos direitos humanos. Estas, por sua vez, têm também uma relação direta com ações sociais, com uma recuperação da visão coletiva intrínseca em qualquer relação ou em qualquer atuação do psicólogo. Um dos primeiros passos para pensar e agir, numa perspectiva dos direitos humanos, seria compreender que não estamos sozinhos no mundo e que somos o que somos porque existe um outro, uma história e um contexto.

Certamente, a história é feita não só de eventos particulares que se tornaram importantes e contagiaram, digamos assim, o universal. Numa visão dialética, o universal também já estaria presente no particular. De modo que o particular e o universal fazem parte de um mesmo processo onde um constitui o outro.

Desse modo, as práticas afirmadoras passam por toda uma política explicitada nas várias possibilidades do fazer dos direitos humanos (direito da mulher, do idoso, da criança em situação de risco social, dos

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desvalidos etc.), mas, também, estas (e aqui vale especificamente para psicologia embora não se restrinja apenas a esta área) transmitem uma perspectiva do fazer psicológico em todas as suas manifestações.

Esta perspectiva dos direitos humanos merece atravessar todas as ações e perpassar o psicólogo, que se coloca disponível, enquanto ator social, na relação com o outro. Significa uma compreensão da dimensão do humano em toda a sua contradição atual geradora de sofrimento, angústia, miséria, mas também de possibilidades.

A relação da psicologia com os direitos humanos não deve se restringir apenas às práticas específicas ou aos grupos autodenominados defensores

5dos direitos humanos . Esta deve fazer parte da condição básica de ser psicólogo em todas as suas formas, no sentido de tentar apreender o outro em sua singularidade e universalidade histórica e se colocar como parceiro também imerso na contradição de um mundo, buscando criar e gerar possibilidades mais realizadoras para um homem em relação.

Para finalizar, vamos nos reportar a Marcos Vinícius de O. Silva (2001), quando fala da sua preocupação de que a discussão sobre direitos humanos vire moda. “É preciso pensar globalmente, porém agir localmente”. A perspectiva nas ações é importante.

5 Embora fosse importante uma maior adesão por parte dos psicólogos nesses movimentos, mais explicitamente engajados.

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SILVA, Marcus Vinícius de Oliveira. Conclusão. Em: Seminário Nacional de Psicologia e Direitos Humanos. Psicologia e direitos h u m a n o s : p r á t i c a s p s i c o l ó g i c a s : c o m p r o m i s s o s e comprometimentos, pp 143-144. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

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