Livro Merhy Cartografia Do Trabalho Vivo Em Ato

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:\ .1 SAÚDE EM DEBATE 'I'f'l'UI,O~ t:M CATÁLOGO Educação POpUllJT 110S Serviços de Saríde, Eymurd 1\1.Veaeenceloe Educ(lção Médico c Capitnlismo, Liliu Hlimu Schrniber 1~'pi(/(Jtuio/()g;a ,,/u S(lll(/(l lnfuntíl (um MaI",al JJ"rlt Díngnósticos Comunitârio . »), Fernundo C. ltur-roa c Céee r-G. Vielol'" Terapia Ocupacionul: Lógica do Trabalho ou lia Capital?, Leu Bcotriz Tcixciru Sourcs lUu/lwrtls: "Sallituristcu du I)éll [)mcu{ços", Ncltli,JlU Meio d(, Olivciru Diutl () J)fJ,.'Iuj;o do Cm,/lUcimcmlo: P'f.H/uisu Qmt!ilativu (1m Sut'idfl, Mm"iu C(~cilitl tio 5our;n Minuyo Uo/arma tia.Refornuu Hepensonslo (f. Suúde. Gustlio Wugner de Souaa Cumpo!:l Epidemiologia puru Municípios,J. P. Vungbun c R. ]1. Morrow .- Distrito Sanitário: O Processo Social de .Mu.lll11lçulias l)róticas Sanitárias do Sistema Unico de Saúde, Eugenio Villlçu M4~~Hlctl (org.) ()/U!,.tliWf de) Vit/u: 1~';f;U. CUlIIC;fl fi Suú(/o, Giuvunni Hur-liuguot- O Métlico e Seu Trabalho: Limites do Liberdude, .Liliu H. Scltruihcr Ruídos Ri.3cos e Prevenção, Ubiratun Puula 500t08 ct 01. Informações em Saúde: Da Prática Fragmentada ao Exercício da Cidadania, Ilaru H. S. de Morucs Saber Preparar uma Pesquisa, A.-P. Contendr-iopuulos ct nl. (),~Estudos Brasileiros u (} Díruito d Saúde, Sueli C. Dulluri Uma História (lu Satule Público, Gcorge Hoeen Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde, Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves Os Muitos Brasist Saúde e População na Década de 80, Maria Cecília dc Souza Minayo (org.) Da Saúde e das Cidades, David Capierreno Filho AilJs: Ética, ~fe{licina e Tecnologia, Dina Csercaniu ct aI. (orga.) Ai(ls: Pesquisa Social e Educação, Dina Czercsnia et al. (orgs.) Maternidade: Dilema entre Nascimento e Morte, Ana Cristina d'Andretta Taneka Memória da Saúde Pública. A Fotografia como Testemunho, Mada da Penha C. Yasconcelloe (coord.) Ilclaç(io Ensino/Serviços: Dez Anos de Integração Docente Assístencíal (IDA) no Brasil; Regina Cifram Mars.iglin Velhos c Novos lfales da Saúde no Brasil: A EvolfLção do País e de Suas Doenças, Curlos Augusto Monteiro (org.) lJilvnlflJj o Desafios das Ciências Sacia;" na Saúde Coletiva, Ana Maria Caneequi (org.) () "Mito" do Atividade Físico e Saúde, Yara Maria de Carvalho Sflúdo & Comunicação: Visibilidades e Silêncios, Aurca M. da Rocha Pirta f'nifijjiollalizaçcio e Conhecimento: a Nutrição em Questão~ Afaria Lúcia Megalhãee Boai Nuírição, Trubolho e Sociedade, Solange Vcloso Vinno '1111/1 Agemla para a Saúde, .'Eugênio Viluça Mendes ";'úm do Smí(le, Ciovanni Hcrlingucr Sul)ru (}Ilijt:u. Para Compreender 6 Epidemíologíu, José llicurc.lo de C. MC1UluitltAyrcs (,'j{Jm:iujSociais 6 Saúde, Alia Mllria Cunesqui (OI'S') Contro li MlIré à BeiraAUur: A Experiência do SUS emSantos,Floriauita Coelho Br-aga Cumpo8 e Cláudio Muierovitch I! [Icnt-iqucs (orge.) A I~rutio Sttneomenlo. As nIU(!.~ tlu.Política tio Suúc/u l'úb/i(~u 110 Brosíl, Gilber-to Huohmun O Adu/to Brnsííuíro e ti." /)Otlfl~:(l." da /Uudurll;tlu<lu: l<:J'illvmi%gia (/u.~J.)oOlrçwf CrOnica .•NiIo~'/huumi.~l(iIJVi.. " I'IlII:j !..CI:jI:jU (org.) . li Organização <laSaúde no Nível Local, Eugênio Vilaça Mendcs (org.) M"c/(t"Ç(I.~nu Educ(lçüO Mé(lica e Uu. .,i(/fJncia IJló(/ic(l no Brasil, Luuru Feucrwerker A fl1uIlHJ'~ ti Soxnnlidntle CI t) '/h.lmllw, Elt~o,wrn Mmlhmt:d dtl Olivllirn A 1':dru:uçlJo c/eM Profíssíonaís dOS(Júfltt <lflA",6r;t:ca/,utiIlU. 'I't/()I';O" l'l'dth.·o du um !Uovi"wnto tio A1fl(/ml~:(J.I- Um Oíhur Allalftico, .Márciu Almcida ct ai (orge.} A l~ducação dos Profíssíonuís de Saúde da América Latina. Teoria e Prática de um Movimento de Mudança. 11-As Vozes(IasProtagonistlU, Márcio Almcidu ct al (orge.) Sobre ti Sociologiu (/u Soúde, Evorurdo Duur-te NUllclJ /t;ducut:iIo PUI'"ltlr u u Atou~:Il() t\ SlIú(/o (/tl Fumtliu, Eymur,l Mourúo VlltU!OIWI,lol:j Um M6todo ParaAndli..e 6 Co~Gl!stão de Coletivos, Castãc Wugner de Sousu Campos A Ciência da Saúde, Naomar de Almeida Filho A Voz do Dono e o Dono da Voz: Saúde e Cidadania no Cotidiano Fabril, José Carlos Cacau LOpC8 DaArte J)entária, Carlos Botnezo SuúdtJ 6llunlcmizuçiio: a Experiência de Chapecõ, Aparccido Linhnrea Pimcnta (org.) li mp/iando o Possível: a Poluica de Saúde do Brasil, Joeé Serra A Saúda nas Palavrcl! e nos Gestos: Reflexões da Rede de Educação Popular e Saúde, Eymard Mouriío Vaeccnceloe ftt"nicipalizaçtio ela Sail([e e Poder Local: Sujeitos, Atores e Potuícos, Silvio Fernandea da Silva A Cor-Agem do PS/t", Muria Fátima de Souea Agente" Comunitários de Saúde: Choque de Povo. Maria Fátima de Sousa SAÚDE CARTOGRAFIA DO TRABALHO VIVO·EM ATO OlJTHOS TITULO" DA COLEÇÃO sAÚllE EM DEllATEAClIAM-SE NO >1M DO IJVRO.

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  • :\.1

    SADE EM DEBATE'I'f'l'UI,O~ t:M CATLOGO

    Educao POpUllJT 110S Servios de Sarde, Eymurd 1\1.VeaeenceloeEduc(lo Mdico c Capitnlismo, Liliu Hlimu Schrniber1~'pi(/(Jtuio/()g;a,,/u S(lll(/(l lnfuntl (um MaI",al JJ"rlt Dngnsticos Comunitrio .), Fernundo C. ltur-roa c Cee r-G.

    Vielol'"Terapia Ocupacionul: Lgica do Trabalho ou lia Capital?, Leu Bcotriz Tcixciru SourcslUu/lwrtls: "Sallituristcu du I)ll [)mcu{os", Ncltli,JlU Meio d(, Olivciru Diutl() J)fJ,.'Iuj;o do Cm,/lUcimcmlo: P'f.H/uisu Qmt!ilativu (1m Sut'idfl, Mm"iu C(~cilitl tio 5our;n MinuyoUo/arma tia. Refornuu Hepensonslo (f. Sude. GustlioWugner de Souaa Cumpo!:lEpidemiologia puru Municpios,J. P. Vungbun c R. ]1. Morrow .-Distrito Sanitrio: O Processo Social de .Mu.lll11lulias l)rticas Sanitrias do Sistema Unico de Sade, Eugenio

    Villlu M4~~Hlctl (org.)()/U!,.tliWf de) Vit/u: 1~';f;U. CUlIIC;fl fi Su(/o, Giuvunni Hur-liuguot-O Mtlico e Seu Trabalho: Limites do Liberdude, .Liliu H. ScltruihcrRudos Ri.3cos e Preveno, Ubiratun Puula 500t08 ct 01.Informaes em Sade: Da Prtica Fragmentada ao Exerccio da Cidadania, Ilaru H. S. de MorucsSaber Preparar uma Pesquisa, A.-P. Contendr-iopuulos ct nl.(),~Estudos Brasileiros u (}Druito d Sade, Sueli C. DulluriUma Histria (lu Satule Pblico, Gcorge HoeenTecnologia e Organizao Social das Prticas de Sade, Ricardo Bruno Mendes-GonalvesOs Muitos Brasist Sade e Populao na Dcada de 80, Maria Ceclia dc Souza Minayo (org.)Da Sade e das Cidades, David Capierreno FilhoAilJs: tica, ~fe{licina e Tecnologia, Dina Csercaniu ct aI. (orga.)Ai(ls: Pesquisa Social e Educao, Dina Czercsnia et al. (orgs.)Maternidade: Dilema entre Nascimento eMorte, Ana Cristina d'Andretta TanekaMemria da Sade Pblica. A Fotografia como Testemunho, Mada da Penha C. Yasconcelloe (coord.)Ilcla(io Ensino/Servios: Dez Anos de Integrao Docente Assstencal (IDA) no Brasil; Regina Cifram Mars.iglinVelhos c Novos lfales da Sade no Brasil: A EvolfLo do Pas e de Suas Doenas, Curlos Augusto Monteiro (org.)lJilvnlflJj oDesafios das Cincias Sacia;" na Sade Coletiva, Ana Maria Caneequi (org.)() "Mito" do Atividade Fsico e Sade, Yara Maria de CarvalhoSfldo & Comunicao: Visibilidades e Silncios, Aurca M. da Rocha Pirtaf'nifijjiollalizacio e Conhecimento: a Nutrio em Questo~ Afaria Lcia Megalhee BoaiNurio, Trubolho e Sociedade, Solange Vcloso Vinno'1111/1 Agemla para a Sade, .'Eugnio Vilua Mendes";'m do Sm(le, Ciovanni HcrlingucrSul)ru (}Ilijt:u. Para Compreender 6 Epidemologu, Jos llicurc.lo de C. MC1UluitltAyrcs(,'j{Jm:iuj Sociais 6 Sade, Alia Mllria Cunesqui (OI'S')Contro li MlIr BeiraAUur: A Experincia do SUS emSantos,Floriauita Coelho Br-aga Cumpo8 e Cludio Muierovitch

    I! [Icnt-iqucs (orge.)A I~rutio Sttneomenlo. As nIU(!.~ tlu.Poltica tio Suc/u l'b/i(~u 110 Brosl, Gilber-to HuohmunOAdu/to Brnsuro e ti." /)Otlfl~:(l." da /Uudurll;tlu

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    12 SUMRIO

    ApNDICES1. Ato de cuidar: alma dos servios de sade2. Apostando em projetos teraputicos cuidadores:desafios para a mudana da escola mdica (e dos

    servios de sade)3. Todos os atores em situao, na sade, disputam a

    gesto e produo do cuidado

    Bibliografia

    115

    135

    149

    179

    APRESENTAO

    Por qu e para que fazer este livro?

    Antes de tudo, este livro conseqncia da minha livre-docncia "Reflexes sobre as tecnologias no materiais em

    sade e a reestruturao produtiva do setor: um estudo

    sobre amicropoltica do trabalho vivo", defendida na

    Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual

    de Campinas (Unicamp), em 2000, da qual retirei parte do

    material.

    Os textos escolhidos foram produzidos em distintas

    circunstncias, alguns para serem publicados em revistas -

    como anoto no captulo referente -, outros de modo

    particular para a tese. Mas, de uma forma ou de outra, todos

    esto atados mesma perspectiva: refletir sobre. o modo

    cotidiano de se produzir sade em nossa sociedade,

    tomando como referellcial a cartografia da micropolLica

    do trabalho vivo em ato.

    O que segue vem embalado nesta idia central.

    Optei por colocar alguns textos como apndices, que

    poderiam provocar "desvios" do eixo analtico adotado para13

    .- BIBLIOTECA I CIRFACULDADE DE SADE PBLICA.nU\/FRSIOADE DE sso PAULO

    !.

  • 14 APRESENTAO APRESENTAO 15

    este livro, com o sentido de dar mais componentes para o

    leitor adentrar neste territrio reflexivo, reforando a

    possibilidade de se pensar que tanto a gesto, como campo

    de tecnologias, fundamental para a discusso atual da

    reestruturao produtiva, quanto a produo do cuidado,

    como marcador-a das situaes institucionais sobre as qunis

    fao minhas elaboraes.

    No h nunca uma identidade, individual ou coletiva,

    que fica para sempre no tempo em ns. Esta, est sempre

    em produo. Partindo de um certo territrio, abrindo-se

    para outros possveis.

    Produzindo mapas, desenhando cartografias.

    Passamos de sujeitos que sujeitam a sujeitados, o tempo

    todo.

    Para complicar, as teorias que procuram compreender

    estas situaes, so muitas e nada amigveis. Muitas vezes,

    so contraditrias entre si.

    bvio que no tenho a pretenso de dar conta delas, ou

    mesmo de exp-Ias. Mas, com este material, polemizo com

    algumas.!

    Parto do princpio que somos em certas situaes, a par-

    tir de certos recortes, sujeitos de saberes e das aes que

    nos permitem agir protagonizando processos novos como

    fora de mudana. Mas, ao mesmo tempo, sob outros re-

    cortes e sentidos, somos reprodutores de situaes dadas.

    Ou melhor. Mesmo protagonizando certas mudanas, em

    muito conservamos.

    Somos sujeitos?Protagonistas ou vtimas?

    Eta, perguntinha chata de responder.

    E, isto, porque nos interroga sobre a confortvel idia

    de que somos sempre os mesmos - como seres psicolgicos

    no nvel individual, ou como seres polticos no nvel coletivo,

    por exemplo - atuando sempre do mesmo jeito, como

    plenos senhores das situaes em que nos encontramos.

    Mas de fato, somos e no somos, sujeitos.

    Ou melhor, somos sujeitos que sujeitam em certas situa-

    es, e somos sujeitos que se sujeitam em outras.

    Isto , somos muitos sujeitos e no sujeitos em diferentes

    situaes.

    Institudos e instituintes.

    Melhor dizendo, somos sujeitos que sujeitam sem que com

    isso deixemos de ser sujeitados tambm.

    I E de parte delas sou devedor confesso. Em particular aos pensamentos de Karl Marx,Antonio Gramsci, Cados Matus, Miguel Benasayag, Fclix Guallari. Em uma grandesalada que fao dos mesmos. Fato de total responsabilidade minha.

    Entretanto, sob qualquer um destes ngulos somos res-

    ponsveis pelo que fazemos. No possvel no nos reco-

    nhecermos nos nossos fazeres.

  • i-=-

    16 AT'RESENTAO

    Somos dados e dandos. Somos definidos. Quando che-

    gamos, algo j estava ali.M.as nem por isso somos vtimas das situaes. Somos

    constitudos nisso e por isso. E nas nossas aes eonst.itu i-

    mos, em si e em relaes, as situaes. As fabricamos.

    Vivemos estas tenses, como sujeitos da ao, o tempo

    todo. Cartografamos no viver este processo, gerando infini-

    dades de mapas territoriais de identificao.E podemos, de modo intencional, ambicionar ser mais

    sujeitadores que sujeitados em certas circunstncias e para

    isso explorar nossas capacidades de agir, nossas capacida-

    des de interpretar o lugar onde nos territorializamos procu-

    rando interferir em suas regras, abrindo linhas de fugas'.

    Partir para novos mapas. Novos sentidos territoriais.

    Fazemos isso, bem como os outros tambm o fazem,

    muitas vezes sem ter claro o conjunto das intenes em jogo.

    s vezes, acontece. Outras, planejamos.Somos protagonistas ao mesmo tempo que somos

    protagonizados.Podemos fazer diferente de outros o que j temos como

    estabelecido, quando emergimos em uma situao j dada.

    Somos determinados e determinantes.E podemos ambicionar isso. No como sujeitos plenos

    de razo, mas como certos apostadores, que podem com

    certos recursos _ cognitivos, desejantes, instrumentais, por

    exemplo _ aumentar as potncias dos nossos fazeres por

    APRESENTAO 17

    ouLros sentidos, para o nosso agir no mundo, produzindo

    novos significados para as situaes.

    Procurando tensionar mais ainda a possibilidade de ser-

    mos sujeitos do senso comum ou no.

    Apostando que todos imersos nos processos de fabrica-

    o subjetiva. Nas relaes.

    E que isto unha e carne do ser sujeito em ao, do coti-

    diano e do "transcendente".

    Se d certo ou no, no sentido de construir novos modos

    de produzir a vida no plano coletivo, comprometido com a

    igualdade e a convivncia democrtica, no sei. Mas, como

    faz entender Paulo Freire no seu livro Pedagogia do oprimi-do: devemos assumir que somos responsveis, com os nos-

    nsos saberes e fazeres, pelo que vai ser amanh. Ou o faze-

    mos diferente, ou no o ser.

    Nesta tnue linha, neste livro, procuro explorar vrias

    situaes reflexivas que possam contribuir para clarear

    estes enunciados, para contribuir com a criao de um

    novo modo de produzir sade, em particular, no dia-a-diados servios.

    Mas, sem receitas, que deixo para livros de comida.

    So muitos em ns

    Com tudo isso, quero deixar claro que ns somos muitosns.

    I

  • 18 APRESENTAO

    Em ns indivduos, pessoas e grupos. Fatos que somos

    todos ao mesmo tempo e cada um de modo singular.

    H c haver sempre muitos outros. Memrias, situaes

    rcgistradas antes, agoras e processos.

    No sendo possvel creditar a todos nominalmente suas

    presenas aqui neste trubalho.

    Muitos so inominveis.

    OuLrosno.

    Posso lembrar deles em mim. De mim, neles.

    Mas no quero nominar todos que posso.

    Fao de propsito para alguns.

    Lembro do movimento sanitrio brasileiro.

    Lembro da esquerda brasileira e latino-americana.

    Lembro do marxismo.

    Do movimento popular de sade.

    Dos companheiros da sade de Campinas.

    Da Unicamp e das universidades.

    Dos alunos, dos cursos e investigaes. Das teses.

    Dos de Minas. Dos argentinos.

    Lembro da Mina.

    Lembro minhas mulheres e homens.

    Lembro de minhas crianas.

    Mas, aqui, tambm sou eu, com todos os ns que me

    entrelaam.

    Crie sua leitura e aproveite do jeito que bem entender.

    CAPTULO 1AMICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATONA SADE COMO CONTRIBUIO PARA ACOMPREENSO DAS APOSTAS EM TORNO DEUMA REESTRUTURAO PRODUTIVA NO SETOR

    M ARX, no livro 1 de O capital,l aponta, no captuloXIII da Parte Quarta sobre a produo da mais-valia relativa,

    que a indstria moderna realiza uma revoluo na

    manufatura, no artesanato e no trabalho em domiclio.

    Mostra que:

    "Com o desenvolvimento do sistema fabril e com a trans-

    formao da agricultura que o acompanha no s se es-

    tende a escala da produo nos demais ramos de ativida-

    des, mas tambm muda seu carter."2

    E na seqncia de sua anlise - coerente com outras nas

    quais demostra que o modo de produo capitalista

    _':prisioneiro" das inovaes tecnolgicas, para resolver o

    I Marx, K. o capital. So Paulo: Difel, 1985.2 Ibidem, p. 528.

    19

  • 20 A MICROPOLTICA DO THABALHO VIVO EM ATO NA SADE

    ~~~ __acl!.!!lulao d~ cap~ vai t~.!Ill!lJ:l~e.

    que e~e processo inovador, atualmen~~enominado d>-

    ____tr:.~sio tecnolgica, imprime alter~significativas no

    parcelamento dos processos de trabalho, no perfil da

    qualificao dos trabalhadores, no ~~_.- ------_. ---_ ...- ~trabalho, nos processos de troca, en~.

    Essa situao, de viver uma transio tecnolgica, que

    est articulada de fato a uma reestruturao produtiva em

    geral,4 passa a ser uma constante nas anlises a partir desse

    autor, e marca no olhar dos estudiosos perodos no interior

    dos processos sociais.Quando em 1848, Karl Marx e Friedrich Engels

    produziram o M"anifesto comunista,5 um dos temas queabordaram de forma enftica foi o da apario e

    consolidao de um novo modo social de produzir a riqueza,

    articulado existncia de um processo de luta de classes

    que marcaria o futuro da humanidade. Nesse material, os

    autores partilhavam da noo de que, sob o comando das

    relaes sociais capitalistas, uma revoluo acontecia nos

    pases europeus.Essa constatao vai ser tratada com espanto por vrios

    autores, como Paul Lafargue no seu livro O direito

    3 Nesse mesmo livro, Marx, na anlise mais global que faz da produo da mais-

    vulin, demonstru tul questo." Aqui, no seurido de urnu out.ru Iormu tl(~ (JI'lHlu:t.il' UH IIwt(.nUH p"U(1111.0~, 011 nH'.HI110

    novos ainda nio (~onhccitlm~.O Jl1o.ncnlu du lt'unHiu tccllulgicll II pl'C8Cnn denovns teonologias, quc sinalizam "movimentos" nos processos produtivos.

    5 Marx, K. & Engels, E O mal.ifesto comuni.ta. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

    .

    A MICltOl'OLTICA DO TUAllALHO VIVO EM ATO NA SADE 21

    preguia,6 quando conclui que a riqueza produzida pelarevoluo tecnolgica do capital, em vez de gerar melhores

    condies, altera para pior a vida dos trabalhadores. Mas

    seus escritos no deixam de mostrar com nitidez que o

    perodo dos meados do sculo XIX, na Europa, marcadoprofundamente por transformaes nos processos

    produtivos que reestruturam por completo o modo de se

    organizar as sociedades. H mais riqueza, novos grupos

    SOCIaIS.

    Hoje, so vrios os autores 7 que apontam que o final do

    sculo XX assiste a uma transio tecnolgica, que vemreestruLurando a produo, de uma dimenso semelhante

    experimentada naqueles momentos vitais para a

    organizao do prprio capitalismo.

    O conjunto de suas anlises gira em torno de processos

    que vm ocorrendo no plano das indstrias e servios com

    a introduo de novas tecnologias de ponta, transformando

    de modo radical o parcelamento dos processos de

    trabalho, o mercado da fora de trabalho, os

    procedimentos produtivos e o ciclo de acumulao do

    capital. Entretanto, no h quase nenhum trabalho nessa

    temtica especfica para o setor sade, que conta com o

    6 Lafurguc, P. O direito

  • 22 A MICROPOLnCA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE .\ MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE 23

    de equipamentos de tecnologia de ponta e a

    terceirizao. "10estudo de Denise Pires,B roalizudo em 1996, corno uma das

    excees regra."

    Pires, em sua tese de doutoramento, partindo de uma

    anlise dos processos de trabalho em dois hospitais, um

    pblico e outro privado, considerados relevantes e de boa

    qualidade, estuda, no contexto atual, as mudanas

    provocadas pela introduo de tecnologias de ponta, tendo

    como foco central o trabalho de enfermagem. Nesse seu

    material, que tem como pano de fundo a reestruturao

    produtiva e o trabalho em sade no Brasil, h contribuies

    muito interessantes, e, por ser um dos poucos que toma

    explicitamente essa temtica como seu objeto, torna-se

    tambm relevante para este meu estudo.

    A prpria autora tambm constata esta precariedade

    aps a sua pesquisa bibliogrfica, afirmando:

    "N o Brasil, especialmente a partir dos anos 80,

    estabeleceu-se uma disputa em relao definio de

    diretrizes polticas para o campo da sade. De um lado,

    esto as foras que defendem o direito sade e vida [.

    .. ]. De outro lado, esto os interesses do setor privado [..

    ]".."Atualmente o trabalho em sade , majoritariamente,

    um trabalho institucionalizado [... ]. O ato assistencial

    resulta de um trabalho coletivo realizado por diversos

    profissionais de sade e por diversos [... ] no especficos

    No citado estudo, assinala que o trabalho em sade,

    apesar de ser especial, tem sofrido influncia das mudanas

    tecnolgicas e dos modos de organizao dos processos de

    trabalho da atualidade. Indica que ele no tem as

    caractersticas tpicas do industrial, pois est no terreno do

    setor de servios, porm sempre sofreu a influncia das

    organizaes produtivas hegemnicas. Como por exemplo

    o taylorismo e o fordismo.

    Como contribuio conclusiva de seu estudo, assinala.U

    "[ ... ] poucos [so os estudos em sade que] relacionam

    trabalho e reestruturao produtiva. No entanto, as

    mudanas no trabalho industrial e nos servios esto

    influenciando o setor sade, destacando-se o uso intensivo

    U Pires, D. ReestrulUrtllio produtiva e trabalho em sade no Brasil. So Paulo:Annuhlume, ]99B.

    v COllslero que h outros truLulhm:l que contr-ibuem no estudo dCHHt! terna, mesmoque no o tenham destacado explicitamente, dentre os quais assinalo as investiga-CH de Mendcs Gonalves, R. B. Raizes sociais do trabalho mdico, mestrndo noCUl"i:JO de :P68 Gnu.luuiio em Mcdiciun Prcventivu (lu Fuculdud do ,Metlieillll .IuUSp, So Paulo, 1978; Schraiber, L. B. O mdico e seu trabalho. Limites da liber-dade. So Paulo: Hucitec, 1993 e Nogueira, R. P. Perspectivas da qualidade emsnltl". Hiu .1" Jll""i .o: QllllitY""llk, \

  • b -~~3--

    24 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE

    de sade. [... ]. O mdico o elemento central do processo

    assistencial. Decide sobre o diagnstico; sobre os exames

    complementares; sobre a teraputica e sobre o uso, ou

    no, de vrlos dos cquipamcutoa d(~Lec!no1ogia do ponta

    [... 1. Delega partes do trabalho assistencial a outrosprofissionais de sade [... ]. Apesar disso, dcpondom doLrahalho mdico para que seu trabalho se realize. [... ]. A

    assistncia fragmentada, resultante de um trubalho

    parcelado e compartimentalizado, ao mesmo tempo que

    mantm algumas caractersticas do trabalho do tipo

    artesarial. "

    "Neste final de sculo [ ... ] da ampliao do

    reconhecimento de que preciso repensar o modelo

    assistencial hegemnico, percebem-se algumas iniciativas

    [... ] no sentido de romper com a excessiva fragmentao

    do trabalho e buscando colocar as necessidades do cliente

    no foco da assistncia. Na pesquisa de campo [. . .]

    [destaco]:

    "a) a implantao, no hospital privado, da metodologiade assistncia integral de enfermagem [... ]

    "b) o surgimento, no hospital privado, de gruposinterdisciplinares [... ]

    "c) a implantao, nos dois hospitais, das Comisses eServios de Controle de Infeco Hospitalar [... ]

    "d) o surgimento, mesmo que incipiente, de medidaspara controle da qualidade da assistncia;

    A MICROPOLTICA DO TRABALIfO VIVO EM ATO NA SADE2S

    "e) o registro da evoluo do cliente no mesmodocumento [... ]

    ".I) o direito acompanhantes e a visitas [... ]" (p.2.'39)

    "Os equipamentos de hase microeletrnica soIIliJi;"adoH 110 llaha/ho cru sade (~pellel.nl/n 1/0 Hc~lol.de

    forma desigual. [... ]. Os dois hospitais estudados utilizam

    equipamenlo de leenologia de J)()/lla, sendo que 110hospital privado o uso mais intensivo [... ]."

    "O uso intensivo, de tecnologia de ponta no setor sade,at o presente momento, no resultou em aumento do

    desemprego [... ] no substitui o trabalho humano de

    investigao, avaliao e deciso sobre a teraputica etratamento em geral. [... ]."

    "O uso de tecnologia de ponta exige uma melhor

    qualificao dos trabalhadores para o manuseio dos

    equipamenlo~, ao mesmo tempo que aprofunda a divisoentre trabalho manual e intelectual [... ]."

    "Considerando_se que o objetivo central das instituies

    privadas o lucro, elas so mais pressionadas para reduzir

    custos e so mais influenciadas pela estratgia de

    terceirizao, que est sendo utilizada pelas indstrias.[...]."

    Acho que Pires faz Umestudo, neste momento, de grande

    relevncia, e mais do que isso, COma investigao realizada,

  • 26 A MICnOPOLITICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE .\ MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE 27

    ".,,~

    pe diante dos estudiosos do tema algumas idias

    importantes sobre o significado da noo de reestruturao

    pr-orlu tiva em cer-tas orgllni:wes ele sade, a pnrtir do

    impacto que a presena de equipamentos de ponta provoca

    na conformao tecnolgica dos trabalhos em sade,

    indicando as alteraes nos processos de parcelamento, de

    qualificaes profissionais, de redefinio do trabalho

    intelectual e manual, de mudanas nos processos

    burocrticos e hierrquicos, entre outros,

    Chamo a ateno para o fato de que para a autora o

    tema da reestruturao produtiva se identifica, quase que

    exclusivamente, com as alteraes que o modelo mdico

    hegemnico vem sofrendo pelas mudanas operadas por

    cquipumentos novos c PO[' se ver' diante de lima crise de

    eficincia e eficcia, Mas, ao mesmo tempo, lembrando que

    a mesma autora diz que essa entrada de equipamentos no

    anula momentos singulares do trabalho em sade,

    insubstituveis pela presena de equipamentos, como a

    dimenso tpica da produo do ato cuidador, Destaco,

    tambm, que no deixa de referir que as intervenes nos

    processos gerenciais so chaves para o reordenamento

    produtivo, mas d destaque terceirizao dos servios ao

    modo da indstria,

    Acentuo a noo que a autora utiliza de que, na passagem

    do milnio, vive-se uma reestruturao produtiva em geral

    e, como o setor sade sempre sofreu a influncia das

    organizaes produtivas hegemnicas, deve-se encontrar nos

    estudos das organizaes de sade a presena da atuao

    dos seus determinnntes.

    E, da mesma maneira que na poca da Organizao

    Cientfica do Trabalho, asorganizaes de sade revelaram,

    hoje, uma penetrabilidade do redesenho dos processos

    produtivos hegemnicos, que devem estar presentes no setor

    sade,

    Creio que as concluses de Pires, mostradas antes, reve-

    lam muito dos acertos desse seu estudo e do percurso ana-

    ltico, mas uma questo fica "parada no ar": por que ser

    que a autora, nas concluses, no deu mais nfase s dife-

    renas entre os setores produtivos da sade, da indstria e

    dos servios em gel'al, nas sociedudcs contemporneas, a

    ponto de buscar outras linhas de anlise ou mesmo de pro-

    duzir outras concluses? Acho, mesmo, que essa sua "ce-

    gueira" paradigmtica no a faz perceber que a reestrutu-

    rao produtiva na sade, hoje, pode no estar sendo mar-

    cada pela entrada de equipamentos, mas tanto pela pr-

    pria "modelagem" da gesto do cuidado em sade,12 quan-

    to pela possibilidade de operar sua produo por ncleos

    tecnolgicos no dependentes dos equipamentos, fato que,

    para ela, um pequeno detalhe e no elemento importante

    a ser realado pelo estudo,

    ..12 Tanto no plano dos estabelecimentos e propriamente na produo dos atos de

    sade, quanto no campo da organizao das polticas do setor.

  • r.& ---====--.-

    28 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE

    A entrada de equipamentos nos processos produtivos

    em sade, sob a modelagem de gesto mdico hegemnica,

    que sob a forma da medicina tecnolgica U j havia

    delimitado uma transio significativa na organizao do

    trabalho em sade em geral, e do mdico em particular,

    neste momento no parece provocar reestruturao

    produtiva. Esta j esteve na marca da passagem do perodo

    de uma medicina mais mercantil e de um profissional mais

    liberal,14 e constituiu um perodo dos processos produtivos

    em sade que se expressaram na qualificao dos

    profissionais cada vez mais em torno de ncleos

    especializados, restringindo-os, num crescente, produode um procedimento especfico (um exame laboratorial, um

    ato clnico, etc.).Assim, o que a autora encontra pela frente no o

    impacto reestruturante da entrada de novos equipamentos

    de ponta nos processos produtivos, mas sim a continuidade

    de um modelo hegemnico com alteraes que no

    compem uma transio.Uma reestruturao produtiva que implique substancial

    mudana nas configuraes tecnolgicas dos processos de

    produo, alterando no perifericamente a composio da

    fora de trabalho, mas centralmente, pois levam prpria

    13 Schraiber, L. B. Op. cito" Donnangelo, M. C. E Medicina e sociednde. So Paulo: Pioneira, 1975; Mendes

    Gonalves, R. B. Op. cito

    A MICUOPOLTICA DO TUABALHO VIVO EM ATO NA SADE 29

    produo de novos produtos, deve estar mapeada pelos

    novos terr-itr ibs de tecnologias no-equipamentos. Tal

    plocesso, da r-ecstrutur-ao produtiva, sempre se vincu1a a

    uma transio tecnolgica, na qual novas tecnologias e

    mesmo configuraes diferenciadas das anter-iores passam

    a operar a produo de novos produtos ou maneiras

    diferentes de produzir os "antigos". Nas indicaes dos

    autores, j citados, sobre reestruturao produtiva, h

    afirmaes nessas duas direes, em particular em Marx,

    ao falar sobre a produo do produto mercadoria nas

    relaes capitalistas de produo.

    Por no imaginar que a reestruturao produtiva algomais intenso e que est estrategicamente articulada a novos

    territrios tecnolgicos no materiais, a autora no consegue

    evidenciar que as alteraes mais significativas, em seu

    campo de investigao, no so as articuladas por

    remodelagens da prpria medicina tecnolgica e sua base

    profissional - o mdico especialista e seus equipamentos

    tecnolgicos - mas, pelo contrrio, devem estar ocorrendo

    no terreno das tecnologias no-equipamentos, o territrio

    das tecnologias leves15 e Ieveduras.I'' e que se expressam

    nos processos relacionais dos atos de sade e nas prticas

    15 Como as que permitem operar os processos relacionais do encontro entre o traba-lhador de sade e o usurio. Tema que tratarei mais detalhadamente no captuloseguinte.

    16 Como os saberes estruturados que operam esses proeessos, em particular a clnicae a epidemiologia.

  • 30 A MICROPOLfTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SAD.E A mCROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE 31

    que governam os atos produtivos, nos processos de

    trabalho-? e na sua capacidade de gerar novas modalidades

    de produo do cuidado, bem como de govern-Ias.

    Hoje, a mudana na sade no consegue ser

    suficientemente compreendida pelo caminho analtico

    escolhido pela autora. Creio que Pires tem como esse seu

    limite uma importao direta da viso clssica dos processos

    produtivos para ti sade, suas dimenses lecnolgicas e n

    noo paradigmtica das transies tecnolgicas oferta da

    por algumas correntes da Sociologia do Trabalho, de

    extrao marxista,18 que, em torno do modelo fabril,

    constroem suas anlises. Diga-se, de passagem, que na

    modelagem do tipo da medicina tecnolgica que se

    assemelha em parte aos processos produtivos do tipo fabril,

    esse modelo de anlise tem aproximao razovel sobre o

    objeto de estudo, porm, em novas maneiras de se produzir

    o cuidado, torna-se muito insuficiente.

    Talvez por isso, a autora e muitos outros analistas do

    campo da sade que adotam paradigmas semelhantes.!"

    no permitem, com suas anlises, a percepo de que, hoje,

    a transio tecnolgica que se vem construindo, provocada

    pela presena do capital financeiro no setor de modo cada

    vez mais macio,20 visa exatamente o oposto do que

    analisam, como se ver no decorrer deste trabalho, pois

    busca atingir o ncleo tecnolgico do trabalho vivo em ato

    na sua capacidade de produzir novas conformaes dos atos

    de sade e o seu lugar na construo de processos

    produtivos, descentrando o trabalho em sade at mesmo

    dos equipamentos e dos especialistas.

    Assinalo, tambm, que o percurso de procura de uma

    nova conformao tecnolgica para a produo dos atos

    de sade, impactando a relao entre o ncleo tecnolgico

    do trabalho vivo em ato em sade com os outros ncleos

    deste processo produtivo, faz parte de uma aposta que se

    coloca de modo anti-hegemnico - tanto em relao medicinu teenolgica, quanto da Ateno Gereneiada que

    o capital financeiro vem introduzindo no setor sade -, por

    setor-es ur-ticuladoa ao movimento sanitrio brasileiro, o que

    17 Vale ubsurvur que u outego .ju mdica hoje HC defl'tHltu com uma ngcndn do Iutu, nuqual tem ocupado lugar privilegiado, a disputa com os modelos de organizaodos processos de trubalho adotndos pelos setores empresariais vinculados aos se-fJ;III'OH ti., Hu(uln. AH IIIUtlull,nK IIU nl4a.~u.lu .In Ir'ulmllto nl(Hli.,u '''Ul '~Ijn.ln IIOVOHelementos para a luta eorporativn dos mdicos, quc evideuciam que a luta coutrno controlc que o capital financeiro deseja sobre o truhnlho mdico, e as trnnsfor-It1l1mt pnJlmlflitluH no Ht~1I pcwril pr'ofiI:iHiHllul, 1,01'lIam cluro () ct"C' IU'cwllt'u dt'~U1Ullt:;lrur COlll este trubulho: H tl"lHHliiio tccnol6gicu nu snde, hoje em do, OCOI'-re no campo das tecnologias leves, inscritas no modo de atuao do trabalho vivoem ato e nos processos de gesto do cuidado. Esse tema, durante o decorrer doestudo, estar sendo descrito e unulisndo rnais explicitamente.

    18 Sem discordar da base de muitas das questes levantadas por essas correntes, oque assinalo sua insuficincia para os estudos na sade. Para viso de uma dascontribuies mais significativas dessas correntes, ver Antunes, R. Op. cit,

    le} Cr,.,io CII'" UH jl f~illUl"H uulor'eH tllt HlI(uln (~()mo: 1)01l1l11l1g.,lo o MC:JuloH (;oJlnIVWi,sio bons exemplos do que estou upontnndo, alm de Arouca, A. S. O dilemapreuentivista. Tese de doutorado defendida no Curso de Ps-Graduao em Me-dicina. Campinas: Unicamp, 1974.

    zo It-iur't, C. ll.; Mcrhy, K E. & \Vaitzkin, H. La ntencin gerenciada en AmricaLatina: transnacionalizacin del sector salud en el contexto de Ia reforma. Rio deJaneiro: Cadernos de Sade Pblica. 2000,16:95-105.Apresento o texto comoAnexo 2, neste livro.

  • ~' r mU!~ r r ,-_ _,...,t...- : t --":' - ;'""-'----'----_.._'._'~.2l! dei! C -

    32 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE

    mostra que problematizar e procurar intervir, por esse

    caminho, no privilgio s do setor financeiro do capital.

    Existem autores do movimento sanitrio brasileiro que h

    muito vm indicando essas questes. Em particular

    C.' 21 N . . C 'I,' 22 I > - ~ bampos, oguelra c ecUI,O, (entre outros, sao em

    ricos em suas formulaes, mas no a ponto de proporem

    outra eomP.'censo da mieropolea dos proeessoS de

    trahalho em sade no nvel da prpria teoria, tomando para

    si o estudo destes processoS produtivos. Apesar de sugerirem

    questes relevantes para aquela compreenso.Campos, por exemplo, aponta para um dos centros

    bsicos do que hoje considerado uma agenda prioritria

    dos sujeitos sociais envolvidos no tema da reforma dos

    sistemas de sade na Amrica Latina, apontando como

    central a capacidade do movimento sanitrio de atuar no

    dia-a-dia dos servios de sade, procurando configurar um

    modelo de ateno que se ordene pela radical defesa da

    vida, advogando que esse um dos principais lugares para

    o confronto com os projetos neoliberais, que cotidianamente

    se fazem presentes nos modos de gerir aqueles servios no

    plano poltico e no produtivo.Indica como indispensvel, e mesmo como produto dessa

    ao, a construo de um compromisso efetivo dos

    2l Campos, G. W. S. Reforma da reforma: repen.,ando o SUS. So Paulo: Hucilcc,1992; c Os mdicos e a poltica de sade. So Paulo: HucilCC, 19B7.

    22 Em particular cito Nogucira, R. P. Op, cit. c Ccclio, L. C. O. ["ventando a 1/"'-

    dana na sade. So Paulo: HucilCC, 1997.

    A MICHOPOLTICA DO TllAlIALHO VIVO EM ATO NA SADE 33

    trabalhadores de sade com omundo das necessidades dos

    usurios, que permita explorar de modo exaustivo o que as

    tecnologias em sade detm de efetividade, em um novo

    modo de operar a gesto do cuidado em sade. Mostra como

    essa passa pela produo de novos coletivos de

    trabalhadores comprometidos Lico-politicamente com a

    radical defesa da vida individual e coletiva.

    Em HIHIHUJUliH(~R,tm demonRtrndo corno () eonl".onLo

    entre defensores de um servio pblico versus um privado

    no consegue dar conta da situuo real vivida de hcgcmouia

    do projeto neoliberal mdico, por este se reproduzir

    micropoliticamente em todos os lugares e momentos de

    produo de atos em sade. Indicando que isto pe o

    movimento diante do desafio de saber operar a gesto dos

    estabelecimentos de sade e dos processos de trabalho de

    uma outra maneira, anti-hegemnica, em relao ao projeto

    mdico neoliberal.

    Para Campos, tal tarefa passa pela busca da construo

    de um modelo tecnoassistencial, que no pode desprezar

    nenhum recurso tecnolgico, clnico e, ou, sanitrio para

    sua ao, no qwl ocupa lugar estratgico o trabalho mdico,

    comprometido e vinculado com os usurios, individuais e

    coletivos, atuando em equipes multiprofissionais, operadores

    de conhecimentos multidisciplinares.

    Como assinalei, hoje o contexto de disputa est um pouco

    mais turvo. No terreno do capital e em uma adeso ao

    -- BIBLIOTECA I CIRFACULDAD-E DE SADE PBLICAUNIVERSIDADE DE SO PAULO

  • 34 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE ,\ MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA .SADE 35

    modelo neoliberal de desenvolvimento social, com a apario

    da Ateno Gerenciada,23 vem constituindo-se outra

    prtica que se ope ao modelo mdico llCgemnico da

    medicina tecnolgica, e que aponta para a necessidade de

    um "gerenciamento do cuidado em sade" que permita criar

    uma gesto competitiva entre presta dores de servios, em

    torno da noo de clientela consumidora inteligente,

    possibilitando um equacionamento entre racionalizao dos

    custos da produo dos atos de sade e qualidade dos

    servios prestados, tendo em vista reformar o sistema de

    sade, que gasta muito para ser pouco efetivo, mas em

    funo das lgicas de interesse do capital financeiro que

    vem penetrando os servios de sade, no plano mundial.

    A Ateno Gerenciada, como se ver em maior detalhe

    nos captulos adiante, aposta na produo de tecnologias

    no campo da gesto de processos de trabalho em sade que

    possam deslocar a microdeciso clnica pela administrativa,

    impondo nova forma tecnolgica de constituir o prprio ato

    de cuidar e o modo de operar a sua gesto, tanto no interior

    dos processos produtivos em sade, quanto no campo de. ~ d ,.. 21orgamzaaoo proprJO sistema. '

    O conjunto desses novos atores que se opem ao projeto

    mdico hegemnico, bem como os do movimento sanitrio,

    apesar de no partilharem de propostas idnticas, discutem

    seus projetos e se confrontam nesses terrenos, procurando

    impactar o territrio tecnolgico responsvel pela

    incorporao de tecnologias duras no ato de cuidar, e a

    prpria organizao dos atos de cuidar no mbito do sistema

    de sade, apontando-os como lugares estratgicos para a

    operacionalizao da reforma dos sistemas de sade como

    um todo, ou seja, como lugares da transio tecnolgica do

    setor sade para um novo patamar produtivo.''

    O investimento que vrios organismos internacionais,

    comprometidos com os projetos neoliherais, vm realizando

    para difundir a proposta da Ateno Gerenciada nos pases

    latino-americanos tem contribudo para produzir uma

    agenda razoavelmente semelhante na Amrica Latina, entre

    todos os que vivem os processos de reforma do Estado, em

    geral, e dos sistemas de sade, em par-ticular.?

    Na considerao dos organismos aparece, de manerra

    muito clara, a noo de que o terreno do "gerencinmenro

    do cuidado" neutro e atinente a uma racionalidade

    t~o consumidur, THHU H(H' visto ndiunte, InUI;i grunde parte tlel:iKu conclnao eHl ins-pirada no texto produzido por Merhy, E. E.; Iriart, C. B. & Waitzkin, H. Atenogerenciado: da microdeciso clnica administrativa, um caminho igualmenteprivatizante?, apresentado no 7 Congreso Latino-Americano dc Medicina Social,Buenos Aires, 1997. Este texto foi publicado tambm pelos Cadernos Prohasa,nmero 3, So Paulo em 1998.

    25 Nos captulos 2 e 4, adiante, demonstro o significado dessa situao.2. Paganini, J. M. Nuevas modalidades de organizaci6n de los sistemas y servicios

    de salud en el contexto de Ia reforma sectorial: Ia atenci6n gerenciada, bibliogra-fia anotada. Washington, D.C.: Opas/ serie HSP/Sos, 1995.

    23 Iriart, C. B.; Merhy, E. E. & Waitzkin, H. La atenci6n gerenciada en AmricaLatina ... , op. cito

    24 Destaco, nessa questo, o fato de que o projeto da Ateno Gerenciada aposta nainterveno nas microdecises clnicas e tambm na criao de quatro operadoresdo sistema de servios de sade: o seguro 1administrador, o financiador, o prestador

  • 36 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADl~

    instrumental, prpria dos modelos de gesto organizacional

    e dos processos de trabalho em sade. Procurando-se, assim,

    constituir no plano imaginrio um campo comum, que

    pertenceria a todos osque desejam as reformas e se envolvem

    com elas, e que deveria ser partilhado a partir dos mesmos

    receiturios de intervenes ideologicamente ~~vendidos"

    como modernizadores. interessante verificar que rtos E.U .A., onde essa

    proposta teve origem, h hoje confronto de pelo menos trs

    grandes linhas de disputa em torno da poltica de sade:

    uma vinculada ao projeto empresarial neoliberal mdico

    hcgemnico, outra ao projeto ncoliheral da Ateno

    Gerenciada e, outra que, espelhada na experincia

    canadense, prope a construo de um Sistema Nacional

    de Sade, fortemente regulado pelo Estado e

    compromissado com a sade como direito de cidadania, e

    no como bem de mercado.27

    Destaco que tomo aqui, como foco principal de estudo, o

    campo dos processos produtivos em sade no momento do

    ato de cuidar e sua organizao no interior dos

    estabelecimentos, em sua dimenso organizacional. Assim,

    a anlise da gesto do cuidado que procuro imprimir neste

    trabalho est marcada por este mbito, pois a que se refere

    ao campo da gesto do cuidado, no terreno da organizao

    27 Ver Wail:

  • \j,1,

    'I!;l'ilT'

    Q

    38 A MICROPOLiTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE A MICROl'OLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE 39

    -,

    organizacionais que pem em jogo o que j se produziu de

    tecnologias gestoras para governar servios de sade e

    processos produtivos.

    Por isso, encaro como desafio bsico para o movimento

    sanitrio brasileiro aprofundar-se em novos conceitos para

    compreender, de modo mais preciso, o tema da

    reestruturao produtiva e da transio tecnolgica em

    sade, reconhecendo a necessidade de uma constr-uo

    terica que d conta das singularidade dos processos

    produtivos do setor, que a teoria mais geral utilizada para a

    anlise desses processos, apesar de sua efetiva contribuio,

    no tem sido suficiente. Alm de prOeUral" constru ir uma

    caixa de ferramentas para os gestores de organizaes de

    sade que lhes permitam fazer frente, de modo an ti-

    hegemnico, aos atuais modelos de ateno sade na sua

    disputa cotidiana em cada estabelecimento.

    Ceclio28 soma nessa direo, junto com outros autores,

    percebendo que o confronto que o movimento sanitrio

    brasileiro vem desenvolvendo com os neoliberais, que se d

    em um amplo terreno de disputas pelos sentidos das relaes

    Estado e sociedade, por meio das poltticas sociais, exige dos

    contendores uma competente capacidade operacional para

    implementar um modo de produzir sade, no nvel dos

    servios assistenciais e sanitrios, que seja coerente com as

    estratgias globais assumidas, de tal modo que o

    "gerenciamento do cuidado" seja inevitavelmente marcado

    pela idia de sade como direito universal de cidadania.

    Vrios militantes deste movimento vm procurando

    equacionar a construo de modelos de ateno sade,

    no nvel dos estabelecimentos e das redes de servios, no

    terreno das gesto organizacional e do trabalho, mostrando

    que, para superar o modelo mdico hegemnico neoliberal,

    devem constituir-se organizaes de sade gerenciadas de

    modo mais coletivo, alm de processos de trabalho cada

    vez mais partilhados, buscando um ordenamento

    organizacional coer-ente com uma lgica usur-io-ccntrada,

    que permita construir cotidianamente vnculos e

    compromissos estreitos entre os trabalhadores e os usurios

    nas formataes das intervenes tecnolgicas em sade,

    conforme suas necessidades individuais e coletivas.

    Por outro lado, interessante passar a idia da

    necessidade do controle rgido do custo como inevitvel para

    sobreviver em um ambiente competitivo entre prestadores

    de servio, por financiamentos e clientelas, e advogam que

    s quem for econmico e satisfizer o cliente permanecer.

    Na mo deste iderio, o "gerenciamento do cuidado" um

    terreno implicado com os interesses das grandes

    corporaces financeiras e com todos os setores que advogam

    a modernidade como um imagem espelhada da atual

    sociedade americana.28 Ceellio, L. C. O. Op, eit.

  • A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE

    Entendo que um dos esforos tericos mais necessrios

    dos vrios setores do ~~movimentosanitrio brasileiro" na

    busca de suprir certas deficincias no confronto que tm

    pela frente, de disputar essa transio tecnolgica posta pela

    Ateno Gerenciada, o que aponta na direo de umareviso da teoria do trabalho em sade, em particular dos

    temas das tecnologias em sade que conformam o ato de

    cuidar e o da gesto dos proecssos pl~oduLV08,no nvel dos

    cstabelecimentos.29

    40

    29 Grande parte desta concluso est inspirada no texto produzido por Mcrhy, E.E.; Iriart, C. B. & Waitzkin, H. Ateno gerenciada ... , Op. cio

    CAPTULO 2

    AMICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:UMA QUESTO INSTITUCIONAL E TERRITRIODE TECNOLOGIAS LEVESl

    COM A PERSPECTIVA de aprofundar a compreenso dasquestes levantadas at agora, inicialmente partirei de um

    esquema que permita pensar os diferentes modos do agir

    humano no ato produtivo e os tipos de questes interes-

    santes de se levantar acerca desse processo.

    Partindo de um diagrama, como o exposto na pgina

    seguinte, que procura representar qualquer ato produtivo

    bem simples, como por exemplo a produo de um objeto

    rcajizudo pnt um aaputoir-o-m-tesfio, IH'()(;''''() nHlp(~I'" as

    questes que considero relevantes para esta reflexo. Em

    primci r-o lugar, levando em co ntu as vr-ius etapas do

    processo de produo de um sapato - o produto final

    realizado por aquele arteso - pode-se dizer que h a

    presena de cinco situaes que valem a pena ser descritas,

    1 O texto principal que utilizo neste momento Mcrhy, E.E, Em busca do tempo perdi-do: a micropoltica do trabalho vivo em alo, ln: Merhy, E.E. & Onocko, H. (orgs.)Agirem Sade ... obra citada.

    41

  • li

    42 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO: tHL\ QUESTO INSTITUCIONAL

    como mostra o desenho, que procuro relacionar com as

    formas trabalho morto e vivo dos atos produtivos:

    res, que se fazem presentes agora como trabalho morto, i.,

    j realizado e coagulado no produto. Dessa forma, o traba-lho anterior, de produzir ferramentas, estar presente no

    ato de produo do sapato, e o influenciar, mas no est

    em ato, no est vivo.

    c) o arteso, para juntar matria-prima e ferramenta na

    direo da produo de sapatos, precisa antes de tudo ser

    possuidor de um certo saber tecnolgico, que lhe permita

    dar, pela sua ao concreta em si de trabalhar, dentro de

    certa maneira organizada de realiz-Ia, formato de produ-

    to ao desenho imaginrio que tem em mente, expressando

    seu projeto. Esse saber complexo e em ltima instncia

    uma parte fundamental do saber-fazer sapatos, que no pro-

    cesso de produo est contido tambm na dimenso or-

    ganizao do processo. Faz parte dele, por exemplo o co-

    nhecimento sobre o couro mais apropriado, as tcnicas de

    corte, o conhecer as tintas melhores e suas adequaes com

    o material que est sendo usado, mas tambm a maneira

    de organizar temporalmente estes conhecimentos, como

    atividades, como um processo de produzir. Isto , o que

    deve ser feito antes, como deve ser feito, quanto se deve

    esperar para realizar os atos seguintes de produo, e as-

    sim por diante.

    d) entendo que essas duas dimenses, a da organizao e

    a do saber tecnolgico, no se comportam do mesmo jeito

    que o da matria-prima e o da ferramenta, pois neles o

    H l~ferramen-tas saberestecnol-gicos

    trabalhoem si

    organi-zao

    matria-prima

    T.M. T.M. T.M./T.V. T.V./T.M. T.V. T.M.

    T.M. = trabalho morto'r.V. = trabalho vivo

    a) a produo do sapato pressupe o encontro do traba-lho em si do sapateiro-arteso com certas matrias-primas,

    como o couro, o prego, a linha, a tinta, entre outras. Pode-

    se afirmar que essas matrias-primas so produtos de tra-

    balhos humanos que as concretizaram, pois no esto pron-

    tas na natureza, e mesmo se estivessem, como se brotassem

    em rvores, seria necessrio realizar um trabalho humano

    para colet-Ias, antes que pudessem entrar no processo pro-

    dutivo do sapateiro. Diz-se, ento, que as matrias-primas

    so produtos de trabalhos humanos anteriores, que nos seus

    momentos de ao tinham uma dimenso viva, mas que

    ago!'rl, como produto matria-prima do sapateiro, esto ex-

    pr~i',':mdo um trabalho morto, resultado do vivo anterior

    que o produziu.

    b) as ferramentas que o arteso-sapateiro usa para pro-duzir o sapato, como um martelo, uma faca, um pincel,

    entre outras, tambm so, semelhana do que se disse

    sobre as matrias-primas, produtos de trabalhos anter io-

    1II

    I1

    43

  • ........~~==~._-_. -------....,.' ~::,.= ,. -Z7rzt -m=

    44 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:arteso real que est fazendo o trabalho conta como peso,

    tem importncia. Sua histria, suas habilidades, sua

    inteligncia, sua capacidade inventiva, pode operar nessas

    situaes de organizar os processos e de compor os saberes

    tecnolgicos. Assim, em ambos os momentos do processo

    produtivo, o da organizao e o do saber, h uma situao

    dupla: a presena de saberes - tanto tecnolgicos quanto

    organizacionais -, produdos ulIlerionuell\.e (~

    Aislematizados, apreendidos pelo arteso, que expressam,

    ento, trabalhos anteriores e se colocam como

    representantes do u-abalho morto, mas que sofrem

    . influncia real do trabalhador concreto que est atuando e

    o seu modo de p-Ios no ato produtivo, como representantes

    do trabalho vivo em ato. Isso faz com que nessas duas

    dimenses haja a convivncia das duas modalidades de

    trabalho no fazer do sapateiro-arteso ao produzir

    concretamente o seu produto imaginado. Por isso aponto

    que nessas duas situaes h uma combinao de trabalho

    vivo c morto, simultaneamente. O grau de liberdade desta

    relul,;o um pouco mais favorvel na dimenso do saber

    tecnolgico em relao ao da organizao, pois esta tende a

    ser mais estruturada, mais governada pelo plo trabalho

    morto.e) vale observar que a noo de tecnologia aqui utilizada

    tem definio mais ampla da que pela qual corriqueiramente

    traduzida, pois no a confundo de maneira especfica

    UMA QUESTO INSTITUCIONAL 45com equipamento e mquinas, j que tambm incluo como

    tecnologias certos saberes que so constitudos para a pro-

    duo de produtos singulares, e mesmo para organizar as

    aes humanas nos processos produtivos, at mesmo em

    sua dimenso inter-humana. Desse modo, falo em tecnolo-

    gius duras, leve-duras c leves."

    1) claramente o momento do trabalho em si expressa demodo oxchraivo (I t.rulurlho vivo em alo. EHl:le ruorucnto

    marcado pela total possibilidade de o trabalhador agir no

    ato produLivo CO.IU gl'llUde liberdade mxima, porm o exer-

    ccio desse grau relaciona-se com a presena simultnea das

    quatro dimenses anteriores, o que permite dizer que deve

    haver processos de trabalho bem diferenciados nos modos

    como estas relaes simultaneamente ocorrem. Se forem

    imaginados, agora, outros tipos de trabalhos que no s o

    do sapateiro-arteso, pode-se dizer que h processos pro-

    dutivos nos quais o peso das dimenses que expressam o

    trabalho morto maior que o do trabalho vivo, e h outros

    que se manifestam de modo contrrio. Como exemplo do

    primeiro caso, um processo de trabalho morto centrado,

    cito a produo de uma mquina em uma metalrgica, e

    como do segundo caso, um processo trabalho vivo contra-

    do, a produo de uma aula ou dos atos de cuidar em sa-

    Com maior detulhnmonto sugiro n Iciturn tio texto Mcrhy, E. E. et ul. ,Em buscu deIer-rumentus nnnlienrlorus . lu obrn eitndu, no qual descrevo c defino coru maiur pn~eiso esacs termos, lHJr.n, cru um puinel nprcecntndo muis udinntc, Ino uru resumodos conceito s,

  • 46 A MICHOPOLTICA DO THAHALHO ViVO EM ATO: UMA QUESTO INSTITUCIONAL 47

    TESE 2 - a ao intencional do trabalho realiza-se em um

    processo no qual o trabalho vivo em ato, possuindo de modo

    interessado instrumentos para a ao, "captura" intencio-

    nalmente um "objeto/natureza" para produzir bens/pro-

    dutos (as coisas/objetos); e que pode ser esquematicamente

    visualizado no desenho, exemplificado a partir do trabalho

    de um arteso-sapateiro, que antes da realizao do pr-

    prio ato produtivo j sabia aonde queria chegar, isto , a

    que tipo de produto, que valor de uso estaria produzindo,

    e, com isso, opera um ato produtivo que amarrado por

    uma inteno posta anteriormente a ele;" no qual o traba-

    lho em si atua como trabalho vivo em ato e os instrumentos

    usados, bem como a organizao do processo, como traba-

    lho morto;

    TESE 3 - o modo de o trabalho vivo em ato realizar a

    captura do "mundo" como seu objeto vinculado ao modo

    como o trabalho vivo que o antecedeu, e que agora se

    apresenta como trabalho morto, atua como um

    determinado processo de produo tambm capturante,

    mas agora do prprio trabalho vi~o em ato, e que se

    de. Pode dizer-se, ento, que o processo fie captura do t.ra-

    balho vivo pelo trabalho morto, em certas produes, di-

    ferenciado, ou vice-versa, permitindo imaginar situaes

    nas quais o exerccio do protagonismo/liberdade ou do pro-

    tagonismo/reprodu03 estejam ocorrendo no mundo ge-

    ral da produo, tanto na conformao tecnolgica dos atos

    produtivos, quanto nos modos de govern-los, Onde h tra-

    balhadores pr-oduzindo, h essa polarizao, independen-

    te do que se produz, e isso ocorre em todos os setores: pri-

    mrio, secundrio e tercirio da produo, bem como no

    social em geral.

    g) com o painel apresentado adiante, expondo dezesseteteses sobre a teoria do trabalho em sade e as tecnologias

    de produo do cuidado, procuro sistematizar algumas

    questes-chave para entender o modo como lido com a no-

    o de tecnologia em sade:"

    TESE 1-falar em tecnologia ter sempre como referncia

    a temtica do trabalho, mas em trabalho cuja ao intenci-

    onal demarcada pela busca da produo de "coisas"

    (bens/produtos) - que funcionam como objetos, mas que

    no necessarjamente so matcr'iuis, du roa, pois podem ser'

    bens/produtos simblicos (que tambm portam valores de

    uso) - que satisfaam necessidades;

    , Veja que h trabalhos, como de um Picasso desenhando um sapato em um quadro, queno pt"csifli(lo por cstu rcluiio Jntcncionnl produtiva tccnolgica, mesmo 'llIU tenhade se utilizur de tcnicas para ser realizado. Hcpure que o produto, sapato desenhado,no necessariamente significa neste caso um sapato, pode ser uma mera representaode algo que o Picasso associa a uma situao qualquer. E para um observador qualquer,pode significar algo distinto. Sem dvida, o sapato do urteso-saputeiro tem de servircomo calado. Se perder essa funcionalidade no ser um bem sapato. Por isso, estetrabalho presidido como um fazer tec-nolgico, ao passo que o do Picasso um traba-lho, mas de outra natureza.

    Sobre esta situao de sujeito iustitudo e mstituinte vcja a Apresentao.Esse painel foi montado com base no texto Merhy, E. E. et aI. Em busca das ferramentasanalisadoras .. ln: Obra citada. Ver em particular o texto Ato de cuidar: alma dos ser-vios de sade, que aparece como apndice aqui neste livro.

    li"

  • 48A MICUOPOLTICA DO Tll.ABALHO VIVO EM ATO:

    expressa como um certo modelo (dentro de um certo modo)

    de produo;TESE 4 _ nesse modo de possuir, o trabalho vivo em ato

    opera como uma mquina de guerra poltica, demarcando

    interessadamente territrios e defendendo-os; e, como uma

    mquina desejante, valorando e construindo um certo mun-

    do para si (dentro de uma certa ofensiva libidinal);

    TESE 5 _ tal modo de possuir (eorno produo) instrumen-

    tos e pedaos da natureza, produzindo-os como ferramen-

    tas e objetos, dando-Ihes uma razo instrumental, apresen-

    ta-se como tecnologia como saber. As mquinas-ferramen-

    ta, por sua vez, so suas expresses como tecnologias-equi-r

    pamentos;TESE 6 _ as mquinas-ferramenta so expresses tecnol-

    gicas duras das tecnologias-saberes (leve-duras) e, como equi-

    pamentos tecnolgicos, no tm razo (instrumental) por

    si, pois quem as torna portadoras dessa intencionalidade

    raeional-instrumental o trabalho vivo em ato com seu modotecnolgico (seu modelo de produo) de agir e como ex-

    presso de certas relaes sociais e no outras;TESE 7 _ o trabalho em sade centrado no trabalho vivo

    em ato permanentemente, um pouco semelhana do tra-

    balho em educao. Alm disso, atua distintamcnte dc ou-

    tros processos produtivos nos quais o trabalho vivo em ato

    pode e deve ser enquadrado e capturado globalmente pelo

    trabalho morto e pelo modelo de produo;

    I I.

    UMA QUESTO INSTITUCIONAL 49

    TESE 8 - o trabalho em sade no pode ser globalmente

    capturado pela lgica do trabalho morto, expresso nos

    equipamentos e nos saberes tecnolgicos estruturados, pois

    o seu objeto no plenamente estruturado e suas tecnologias

    de ao mais estratgicas configuram-se em processos de

    interveno em ato, operando como tecnologias de relaes,

    de encontros de subjetividades, para alm dos saberes

    tecnolgicos estruturados, comportando um grau de

    liberdade significativo na escolha do modo de fazer essa

    produo;

    TESE 9 - por isso as tecnologias envolvidas no trabalho

    em sade podem ser classificadas como: leves (como no caso

    das tecnologias de relaes do tipo produo de vnculo,

    autonomizao, acolhimento, gesto como uma forma de

    governar processos de trabalho ), leve-duras (como no caso

    de saberes bem estruturados que operam no processo de

    trabalho em sade, como a clnica mdica, a clnica psica-

    naltica, a epidemiologia, o taylorismo, o fayolismo) e duras

    (como no caso de equipamentos tecnolgicos do tipo m-

    qmnas, normas, estruturas organizacionais);

    TESE 10 - no trabalho em sade, no cabe julgar se os

    equipamentos so bons ou ruins, mas quais razes instru-

    mentais os esto constituindo e dentro de que jogo de in-

    tencionalidades; cabendo, portanto, perguntar sobre que

    modelagem de tccnologia do trabalho vivo CIO ato se est

    operando, como ela realiza a captura das distintas dimen-

    ,J.,

  • 50 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO: U~{A QUESTO INSTITUCIONAL 51

    ses tecnolgicas, e o lugar que os usurios/necessidades e

    os trabalhadores/necessidades, como intenes, ocupam na

    rede de relaes que as constituem;

    TESE 11 - o trabalho vivo em ato opera com tecnologiasleves como em uma dobra: de um lado, como um certo modo

    de governar organizaes, de gerir processos, construindo

    seus objetos, recursos e intenes; de outro lado, como uma

    certa maneira de agir para a produo de bens/produtos;

    sendo uma das dimenses tecnolgicas capturantes que d

    a "cara" de um certo modelo de ateno;

    TESE 12 - para compreender os modelos tecnolgicos e

    assistenciais em sade, portanto, deve tomar-se com') eixo

    analtico vital o processo de efetivao da tecnologia leve e

    os seus modos de articulao com as outras;

    TESE 13 - a tecnologia em sade, dividida em tecnologia

    leve, leve-dura e dura, permite expor a dinmica do proces-

    so de captura do u-abalho vivo pelo morto, e vice-ver-sa, no

    interior dos distintos modelos tecnoassistenciais em sade,

    e at mesmo a configurao Lecnolgica de um certo pro-

    ceSROprodutivo em sade, um certo modo de produzir ocuidado;

    TESE 14 - a efetivao da tecnologia leve do trabalho vivo

    em ato na sade expressa-se como processo de produo

    de relaes interseoras" em uma de suas dimenses-chave,

    O termo interseores est sendo usado aqui com sentido semelhante ao de Deleuze, nolivro Conversaes, que discorre sobre a interseo que Deleuze e Guattari

    , rio final.xrue " "que e o seu encontro com o usuario nna ,que representa ,em ltima instncia, necessidades de sade como sua

    intencionalidade, e, portanto, o que pode, com seu

    interesse particular, "publicizar" as distintas

    intencionalidades dos vrios agentes em cena, do trabalho

    em sade;"

    TESE 15 - neste encontro do trabalho vivo em ato com ousurio final que se expressam alguns componentes vitais

    da tecnologia leve do trabalho em sade: as tecnologias ar-

    ticuladas produo dos processos interseores, as das re-

    laes, que se configuram, por exemplo, por meio das pr-

    ticas de acolhimento, vnculo, autonomizao, entre outras;

    TESE 16 - desse lugar, pode-se interrogar o formato de

    realizao da tecnologia das relaes, como um mecanismo

    analisador estratgico dos modelos de ateno em sade

    que tem capacidade de expor intensamente "as falhas" do

    mundo do trabalho em sade, como o "jogo" dos sentidos e

    sem sentidos das prticas de sade;

    (!C.JlIHlil.llr r UI1l quundo pnJlJII~il:unl o vru Antiedipo, tp.w no um sumutr-io de um, comoutro e produto de quatro mos, mas um "inter", interventor, Assim, uso esse termopara designar o que se produz nas relaes entre "sujeitos", no espao das suas interse-CH, que li um produto que existe pnrn 08 "doi"," em nto e no tem cxistnciu sem omomento da relao em processo, c na qual os intcr se colocam como instituintes nubusca de novos processos, mesmo um em relao ao outro. Trato com mais detalhes aquesto, em Merhy, E. E. O SUS e um dos seus dilemas: mudar a gesto e a lgica doprocesso de trabalho em sade. In: Teixeira, S. M. F. (org.). Movimento sanitrio: 20anos de democracia. So Paulo: Lemos, 1998.

    7 Nesse particular, recomendo de novo a leitura de Merhy, E. E. Em busca do tempoperdido: a micropoltica ... , obra citada.

  • ~~~------liIi;j

    52 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:TESE 17 _ o sentido desse interrogar deve ser o de repen-

    sar as lgicas das intencionalidades, que permita caminhar

    para a "publicizao" do espao da gesto do processo de

    trabalho em sade no qual elas se efetivam, pondo em jogo

    a possibilidade de incorporao de um outro campo de tec-

    nologias, que o que se articula com os processos de "go-c_vernar" estabelecimentos (como organizaes), e nos quais

    se faz presente o encontro do trabalho vivo em ato com os

    distintos agentes, com seus projetos e com seus mtodos,

    referentes aos diferentes espaos da gesto.h) esse processo polarizado de possveis capturas totais

    do trabalho humano vivo em ato pelo trabalho morto que

    so expressas na tenso autonomia versus controle, no

    estranho aos diferentes pensadores da sociedade contem-

    pornea, e em particular de dois deles, que se situaram em

    lugares bem diferenciados quanto a esse debate, a quem

    me reportarei para ajudar nas reflexes sobre algumas das

    distintas temticas que esto implicadas na discusso da

    ao hUIlUlIHI em nmbicnl:Cs produtivos.Trabalharei adiante comFrederick Winslow Taylor e Karl

    Marx, em busca do debate que fazem esses dois autores

    sobre protagonismos/liberdade e captura, e o mundo do

    trabalho.

    UMA QUESTO INSTITUCIONAL 53

    Imaginando uma polmica entre Marx e Taylor sobre oprotagonismo/liberdade, e algumas idias em torno damicropoltica do trabalho vivo em ato

    Recorro a esses pensadores, para refletir sobre as dife-

    rentes implicaes, no campo da sade, entre as aes hu-

    manas, que em ato so capturadas pelas lgicas que co-

    mandam as organizaes dos processos de trabalho medi-

    ante o trabalho morto, versus aquelas aes que em ato,

    em virtude da imposio dominante da presena do traba-

    lho vivo como seu componente, apontam para uma pro-

    funda possibilidade descapturunte do agir humano das l-

    gicas que o querem amarrar, que o querem conter.

    Marx, anticapitalista convicto, entendia que um

    trabalhador ao atuar em uma linha de produo dentro de

    um estabelecimento fabril, por exemplo, estava totalmente

    subordinado, no seu agir, lgica do modo duro e

    estruturado que a produo impunha por meio dos vrios

    processos capturantes da sua capacidade de trabalhar, Isto

    , o grau de liberdade de um operrio agir a seu modo nasatividades pr-odu tivas era zer-o, C a possibilidade de peJlsar'

    sua libertao estava dada por "algo" que, influenciando

    sua conscincia, a tornasse umaeonscincia de classe

    anticupitalista, abrindo, ento, cluince de lima atuao

    organizada, eomo a de um grupo de trabalhadores

  • .5Ll UMA QUESTO INSTITUCIONAL .55A MICHOPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:consciente, que imporia resistncias aos processos de

    explorao do capital. Marx apostava na fora determinante

    do capital para organizar as atividades do trabalhador, e

    imaginava que sua libertao estaria marcada pelas chances

    de desamarrar essa determinao pela produo de uma

    outra conscincia operria, que permitiria possibilidades

    de descapturas do trabalhador em relao a dominao

    capitalista. Marx era um anticapitalista que admitia a total

    captura do trabalho vivo pelo morto e apostava na formao

    da conscincia de classe, produto de processos externos ao

    mundo das atividades produtivas em si."Taylor, capitalista convicto, umas trs dcadas aps a

    mor-te de Marx, defendeu a idia de que o modo como se

    organizam os processos de trabalho altera as relaes entre

    a mquiJ)a e o trabalhador, pois pode Impactar os seus

    movimentos no tempo. Relata que aprendeu isso "olhando"

    os prprios trabalhadores nas suas atividades produtivas,

    onde exerciam graus de liberdade diferenciadas sobre as

    dimenses do processo de trabalho, impondo

    produtividades distintas para as mesmas mquinas e linhas

    de produo na realizao dos mesmos produtos. Taylor

    advogava que o operrio, sem o controle do capitalista, faria

    uma fbrica do seu jeito, e que nem sempre esse jeito era o

    melhor para quem visava a lucratividade e a competio

    no mercado. Desse modo, acabou elaborando um conjunto

    de tecnologias de gesto de processos de trabalho que

    permitia capturar a autonomia do trabalhador no exerccio

    do seu trabalho vivo, a fim de suhordin-lo aos interesses

    capitalistas da empresa. Pois s a captura realizada pelas

    tecnologias duras no era suficiente."

    De certa maneira, Taylor confirma o que Marx advogou,

    que o estabelecimento um lugar de intensa dominao,

    porm partindo do princpio de que se essa dominao

    no for permanentemente pensada para os exerccios dos

    atos dos trabalhadores, estes tendem a abrir "linhas de fu-

    gas" no interior das lgicas de produo e construir uma

    produo a seu modo. Taylor era um capitalista que admi-

    tia a permanente descaptura do trabalho vivo diante do

    mundo definido pelo trabalho morto e apostava em tecno-

    logias gerenciais para as organizaes produtivas que cap-

    turassem o trabalhador nos seus exerccios de liberdade e

    autonomia, no terreno do trabalho vivo em ato.

    Alis, de passagem, esta a histria das teorias adminis-

    trativas e gerenciais: a produo de tecnologiasleve-duras,

    no campo da gesto organizacional, que visam a captura

    do trabalho vivo, t:ransformando-o em morto. Ou seja, a

    NCHH(~ partieulur, indico u leituru do texto Marx, K, O 18 hrumr-io. I,,: 0111 brumrioe Cartas a Kugelmann, 4"Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982,

    9 Ver o debute sobre o tayloriamo exposto por ChiClVCIlCllo,I,IlItl'Oduiio teoria geral daadministrao, So Paulo: MacGraw-Hill, 1990,

    I;1.;

  • 56 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:

    produo de caixas de ferramentas gestoras de processos

    organizacionais produtivos.

    Voltando ao tema da sade, fixando conceitos

    Bem, com estas falas procuro introduzir o leitor no

    universo de alguns conceitos bsicos que o permitam ser

    um analisado r mais aguado do mundo da produo em

    geral e da material em particular. Mas h ainda algumas

    idias no muito fceis de serem entendidas sobre a distino

    de certos processos produtivos, que necessitam ser agregadas

    a e~te conjunto de conceitos que estou elaborando, e que

    fazem parte de uma leitura mais aprimorada dos processos

    de produo. Em particular, vale mostrar algumas questes-

    chave para compreender a distino de um processo

    tipicamente fabril, de um outro mais vinculado ao setor de

    servios - como o de sade -, no que se refere s

    caractersticas centradas ou no trabalho morto ou no

    trabalho vivo, e s diferentes questes levantadas nesta

    distino para a relao dos produtos realizados nesses

    setores de produo e o mundo das necessidades do seu

    consumidor.Um trabalho fabril tpico relaciona-se com o consumidor

    por intermdio do produto que este usa, ao passo que, em

    um trabalho de servio, o ato de produo do produto e de

    seu consumo ocorrem ao mesmo tempo. Por isso, denomi-

    UMA QUESTO INSTITUCIONAL 57

    no que no primeiro caso a relao objetal e no segundo"interseora", e, nesta ltima situao, o modo como o con-

    sumidor valoriza a utilidade do produto para si est sem-~

    pre presente na relao imediata de produo e consumo,

    ao IUlSAO flUC no do tipo objeta] a utilidade do pr-oduto panl

    o consumidor s ir realizar-se na obteno do produto e

    de seu consumo, c que OCOl"rC de modo separado do mun-

    do da produo do produto.

    Veja isto no texto e no painel, colocados adianter'"

    Quando um trabalhador de sade se encontra com um

    usurio, no interior de um processo de trabalho, em

    particular clinicamente dirigido para a produo dos atos

    de cuidar, estabelece-se entre eles um espao interseor que

    sempre existir nos seus encontros, mas s nos seus

    encontros, e em ato. A imagem desse espao semelhante

    da construo de um espao comum de interseo entre

    dois conjuntos, ressalvando que no s na sade que h

    processos interseores. E, alm de reconhecer a existncia

    desse processo singular, fundamental, na anlise dos

    processos de trabalho, descobrir o tipo de interseo que

    se constitui e os distintos motivos que operam no seu

    interior.

    1. Os esquemas mais comuns em processos de trabalho

    como os da sade, que realizam atos imediatamente de

    10 O texto que scgue retirado de Mcrhy, E. E. O SUS e um de seus dilemas: mudar agesto c a lgica do processo de trabalho em sade ... , obra cilada.

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    58 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:

    ass istncin com o usurio, apresenLam-se corno () do

    diagrama abaixo, a que chamo de uma "interseopartilhnda".

    trabalhador

    2. Os que se constituem nos casos mais tpicos de proces-

    sos de trabalho, como o de um marceneiro que produz uma

    cadeira, mostram que o usurio externo ao processo, pois

    o momento intercessor se d com a "madeira", que plena-

    mente eontidn pelo espao do L,'abalhador, corno lima "in-terseo objetar'.

    marceneiro

    xxx xxx xmadeiraxxxxxxx cadeira usurio

    Esta distino da constituio dos processos interseores

    mostra como a dinmica entre o produtor e o consumidor e

    os jogos entre necessidades ocorrem em espaos bem dis-

    Lintos, e Lambm como os possveis modelos de confi.gura-

    /'"

    59U~[A QUESTO INSTITUCIONAL

    o desta drnmica podem ser mais ou menos pcrmcavcia a

    essas caractersticas.

    No jogo de necessidades que se pe para o processo de

    trabalho possvel ento pensar:

    1 - que no processo de trabalho em sade h um encon-

    tro do agente produtor, com suas ferramentas (conhecimen-

    tos, equipamentos, tecnologias de modo geral), com o agen-

    te consumidor, tornando-o em parte objeto da ao daque-

    le produtor, mas sem que com isso deixe de ser tambm um

    agente que, em ato, pe suas intencionalidades, conheci-

    mentos e representaes, expressos como um modo de sen-

    tir e elaborar necessidades de sade, para o momento do I.,.trabalho; e

    2. que no seu inter-ior h uma busca de realizao de um

    produto/finalidade. Como, por exemplo, a sade que um

    valor de uso para o usurio, que a representa como algo

    til por lhe permitir- csuu- no mundo c poder viv-Io, de modo

    auto determinado, e dentro do seu universo de representa-

    es, do que isso possa significar, e que assimilado como

    um processo distinto pelos agentes envolvidos, mas que, no

    entanto, poder at mesmo coincidir.

    O que revela que a anlise do processo intercessor que se

    efetiva no cotidiano dos encontros pode evidenciar a

    maneira como os agentes se pem como "portadores/

    elabora dores " de necessidades nesse processo de "interseo

    partilhada" .

  • i:

    /y

    60 A MICROPOLTICA DO THABALHO VIVO EM ATO:

    J

    O d id ~" d "s agentes pro utores e consumi ores sao porta oresde necessidades macro e micropoliticamente constitudas,

    bem como so instituidores de necessidades singulares, que

    atravessam o modelo institudo no jogo do trabalho vivo e

    morto ao qual esto vinculados.

    A conformao das necessidades d-se, portanto, em

    processos sociais e histricos definidos pelos agentes em

    ato, como positividades, e no exclusivamente como

    carncias, determinadas de fora para dentro. Aqui no

    interessa o julgamento de valor acerca de qual necessidade

    mais legtima que outra, esta uma posio necessriapara a ao mas no pode ser um a priori para a anlise,porque o importante perceber que todo o processo detrabalho e de interseo atravessado por distintas lgicas

    que se apresentam para o processo em ato como

    necessidades, que disputam, com~ foras instituintes, suas

    instituies.

    o papel transformador do trabalho vivo em ato na sade esuas dobras tecnolgicaa"

    o processo de trabalho em sua micropoltica deve serentendido como um cenrio de disputa de distintas foras

    inatituintca: desde Io ras presentes clarnmento nos modos

    II G'"Ullflc JJUI,"lc! fio texto 'l'w vem LI Heguir f~)i rctirndo de Me.-lIY,E. E. Em Lusen do 1.(~I11POperdido ... , obru cilada.

    UMA QUESTO INSTlTUClONAL 61de produo - fixadas, por exemplo, como trabalho mor-to,

    e mesmo operando como trabalho vivo em ato -, at as que

    se apresentam nos processos imaginrios e desejantes, e no

    campo do conhecimento que os distintos "homens emao "12 constituem.

    Na micropoltica do processo de trabalho, no cabe a

    noo de nlpotncia, pois se o processo de trabalho est

    sempre aberto presena do trabalho vivo em ato, por-

    que ele pode ser sempre "atravessado" por distintas lgicas

    que o trabalho vivo pode comportar. Exemplo disso a cri-

    atividade permanente do trabalhador em ao numa di-

    menso pblica e coletiva, podendo ser "explorada" para

    inventar novos processos de trabalho, e mesmo para abri-Io

    em outras direes no pensadas.

    Mas no se pode desconhecer que isso pode ocorrer nos

    momentos em que se abrem fissuras nos processos

    institudos e em que a lgica estruturada da produo, bem

    como o seu sentido, so postos em xeque, incluindo a prpria

    maneira como est sendo gerida pelos trabalhos vivos

    precedentes, que se cristalizaram, alis, na potncia dotrabalhador.

    12 A pretenso tJIlC lCU10tl aqui murem- UUIU posiiio diHllnln do rucioun1iSIllo que operucom a noo de homem da razo, subsumindo essa racionalidadc aos processos quegovernam o homem cru situno e nu ao, como se posiuinnnm autores como Mnlus, C.P,)lfti(tJ./~/(lIlUiCllti() UKflfJtII""O "l,nl (Oilntln, t~IIU~HlllO l'nIH~IlIlnH,.J. Tf"(',.(U rl lu nccin.cOII/./lfcalitla.l\1utlr;: Tuurua, 1987. Sobrc este ltimo autor vcrtruubm HOUIIIlCl,P.S. &. Frcltug, B. (orgs.).llal,,,rmas. So Paulo. tiCIl, 1980.

  • 62A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:

    Portanto, atuar nesses processos "trabalho vivo

    dependentes" permite sair em busca da construo de

    distintas linhas de fuga, como, por exemplo, em relao

    lgica que preside o processo de trabalho como produo e

    satisfao de necessidades; ao modo de como se sabe

    trahalhar, isto , sua configurao tecnolgica; maneira

    coroo o espao institucional, da gesto desse processo, estordenado.

    Repensar a potncia e a impotncia como uma caracte-

    rstica situacional que pode ser atravessada por distintos

    processos instituintes - e mesmo agenciada - torna-se, as-sim, uma ousadia.

    Uma anlise mais detalhada das interfaces entre os su-

    jeitos institudos, seus mtodos de ao e o modo como es-

    ses sujeitos se intersecionam, permite realizar uma nova com-

    preenso sobre o tema da tecnologia em sade, ao se tomar

    como eixo norteador o trabalho vivo em ato, que essenci-

    almente um tipo de fora que opera permanentemente emprocesso e em relaes.13

    Por isso, os que apostam na possibilidade de se

    constituir tecnologias da ao do trnhalho v.ivo em ato e

    mesmo de gesto desse trabalho, abrindo fissuras e possveis

    linhas de fuga nas aes produLivas institutdas, como a

    Ateno Gerenciada, tm conseguido realizar intervenestt

    13 Veja de novo o tema dos intercessores , j abordado anteriormente.

    L

    63UMA QUESTO INSTITUCIONAL

    que focalizam o sentido da "captira" sofrido pelo trabalho

    vivo, abrindo-o para novas direcionalidades.

    Entender essa dupla dimenso da ao do trabalho vivo

    em ato, de gerir processos institucionais e de realizar pro-

    dues propriamente ditas, assim como as possibilidades

    de toc-Ia com processos diretamente referentes aos seus

    modos tecnolgicos de existir, primordial na reflexo que

    se est propondo, pois permite compreender como se pode

    interferir nos modos como o trabalho vivo opera uma dada

    produo concreta - como um modo essencialmente inter-

    seor de ser e atravs de suas formas tecnolgicas leves de

    agir, capturadas de determinadas maneiras em relao ao

    trabalho morto que opera coetneo consigo -, ao mesmo

    tempo que permite tocar nas maneiras como institucional-

    mente esse processo um espao de ao governamental,

    privado e pblico, que define os processos de "penetrahili-

    dade" mais ampla ou restrita, das arenas onde se decide o

    sentido da instituio. Quero pensar as tecnologias que po-

    dem tanto redefinir os processos de "captura" do trabalho

    vivo em ato, como um dado modelo de ateno, quanto

    tornar mais phlieo os proecs8os que governam a sua dirc-

    cionalidade. Quero compreender como os que disputam

    esses proecssos eatio dispondo de caixus de ferramenLas

    para suas intervenes.

  • 64 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:

    Enfim .. 14

    Retomando o tema central posto por esta tese: o da

    contribuio ao estudo da reestruturao produtiva do setor

    sade, com foco particular sobre os processos produtivos

    em sade, suas composies tecnolgicas e os modos de

    govern-Ios, e ao entendimento da composio da caixa de

    ferramentas dos gestores das organizaes de sade, a partir

    da categoria analtica trabalho vivo em ato, creio que at

    agora problematizei e demonstrei a noo de que na

    micropoltica dos processos de trabalho em sade

    necessrio compreender que os ncleos de intervenes

    tecno16gicas - no campo das tecnologias duras, leve-duras

    e leves - permitem processos muito singulares de transies

    para processos de reestruturaes produtivas no setor

    sade, marcados pelo lugar central ocupado pelo territrio

    das tecnologiasleves.

    Seja na sua forma atual hegemnica, da medicina

    neoliheral tecnolgica, na qual os mdicos, privatizando,

    tomam posse dos espaos microdecisrios, que definem o

    modelo de ateno e a incorporao de tecnologias duras e

    H Parte desta conclu8rl, quc remete ao captulo seguintc, esui inspirada no texto produ-zido por Merhy, E. E.; Iriart, C. B. &Waitzkin, H. Atell{o gerenciada: da microdecisoclnica .. , obra citada.

    UMA QUESTO INSTITUCIONAL 65

    leve-duras; seja na forma da ateno gereneiada, como parte

    do projeto do capital financeiro para a organizao

    produtiva do setor sade, na qual este capital cria

    mecanismos para retirar do mdico aquela privatizao dos

    espaos microdecisrios, alterando o modo de agregar as

    tecnologias; ou s}~ja,enfim, nos modelos que se propem

    seguir o eixo das necessidades dos usurios como seu

    ovdcnudo r, nos quais os processos de incorporao

    tecnolgica tm de superar tanto aquelas privatizaes dos

    espaos microdecisrios, quanto a reduo do bem sade a

    um bem de mercado.

    Assim, fica evidente que as anlises sobre as transies

    tecnolgicas em sade e as possibilidades de operar

    reestruturaes produtivas devem, analiticamente, procurar

    entender de modo articulado o lugar que o ncleo das

    tecnologias leves ocupam e seu modo de operar os processos

    produtivos, bem como os tipos de disputas que os modelos

    em competio impem neste territrio, e a composio das

    caixas de ferramentas utilizadas pelos seus protagonistas,

    para dar sentido s suas aes de manuteno ou de

    superao de um certo processo produtivo hegemnico.

    Hoje, ainda neste momento de grande hegemonia do

    modelo da medicina tecnolgica neoliberal, com a entrada

    em cena das modalidades tecnoassistenciais, que com ele

    disputam os processos produtivos, procurando imprimir

    uma transio tecnolgica no setor e apostando na

  • 66 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:

    possibilidade de uma definitiva reestruturao produtiva,

    o enmpo hegcmnico est mais impr-eciso.

    Do lado do prprio capital e articulado ao financeiro,

    aparece com fora o projeto da Ateno Gerenciada, do

    lado anti-hegemnico, os projetos que apostam na sade

    como um bem pblico, patrimnio de toda a sociedade, e

    valor de uso inestimvel, tanto individual, quanto coletivo.

    CAPTULO 3OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENOGERENCIADA PARA PENSAR UMA TRANSIOTECNOLGICA DO SETOR SADE

    E STE TE X T O produto de uma investigao, j citada,sobre a Ateno Gerenciada na Amrica Latina. Aps o

    final da investigao foram elaborados vrios relatrios mos-

    trando os resultados obtidos. Com o apoio do Conselho

    Nae io uu l de Det;(Jllvolvimell\.o Cionlfic:o (J '1.'I\(~lloI6gieo

    (CNPq), pude atuar nesta investigao dos anos 1997 para

    c. Como relatrio da investigao no Brasil, produzi um

    material do qual fiz um resumo, apresentado ao CNPq em

    1999, e que servir para a composio deste captulo.

    Os trechos que retirei desse material para apresentar aqui

    podem, do meu ponto de vista, expressar o que estou pro-

    curando estudar neste trabalho. Alm disso, para uma an-

    lise mais precisa, acresci partes de outro' texto, que apre-

    1 Grande purte dessa concluso est inspirada no texto produzido por Merhy, E.E.; Iriart, C. B. & \Vuilzkill, lI. Ateno gaenc;m{a: do m;crod",;;sliu elinica it

    administrativa .. , obra citada.

    67

  • 68 OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENO GERENCIADA

    sentei no 7Congresso Latino-Americano de Medicina Soci-

    al, com alguns dos membros da equipe internacional aci-

    ma citada, e que considera a interveno tecnolgica da

    Ateno Gerenciada, no terreno da gesto do cuidado e dos

    processos de trabalho, como focos de anlise.

    A Ateno Gerenc~ada como analisadora da atual

    transio tecnol6gica do setor sade

    A investigao realizada tinha como mote a relao en-

    tre os esforos de reformar os sistemas nacionais de sade

    na Amrica Latina e a presena do iderio da Ateno Ge-

    renciada, produzida e disseminada a partir do processo dedisputa entre o modelo mdico-hegemnico, que predomi-

    nou na organizao do sistema de sade americano, neste

    sculo, e o da Ateno Gerenciada capitaneada pelo capi-

    tal financeiro vinculado aos seguros de sade.

    Um dos fatos interessantes no desenvolvimento dessa

    pesquisa foi dado pela contemporaneidadc do estudo com

    a emergncia do prprio fenmeno analisado no Brasil.

    Entre o incio da coleta do material (1997) e o incio da

    anlise (1998) foi possvel perceber o nascimento da impor-

    tncia da A. G. para o debate da reforma do sistema de

    sade.Se, por um lado, isso trouxe uma situao muito especial

    para o que se pretendia na investigao, explicitada pela

    PARA PENSAR UMA TRANSIO TECNOLGICA 69

    d ,. "1 "dcrescente presena o tema nos varros ugares on e odebate se fez presente, por outro, criou certas dificuldades

    metodolgicas que senti ao ter de seguir um protocolo de

    investigao estr'uturudo para um estudo comparativo en-

    tre quatro pases Iatino-americanos - Brasil, Argentina, Chile

    e Equador, o que ficou bem evidente no momento das an-

    lises mais conjuntas que foram realizadas pela equipe da

    investigao, em mbito internacional.

    A apario da A. G., nos E.U.A., remonta construo

    de propostas interessadas na criao de parmetros e crit-

    rios que contribussem para uma deciso governamental,

    diante dos planos de ao no perodo da Guerra do Vietn,tendo como idia-base um clculo sobre a "otimizao" entre

    custos de aes de guerra e resultados estratgicos militares

    atingidos. No correr dos anos 70, uma metodologia com

    perspectivas semelhantes introduzida para a elaborao

    de projetos no campo da sade, centrada no diagnstico

    do altssimo custo das aes de assistncia e na sua vincula-

    o ao processo particular de microdeciso clnica, que ocor-. .

    na nos servios.

    Toma-se a possibilidade de transferncia do processo de

    deciso, sobre as aes de sade a serem realizadas nos ser-

    vios, do campo das corporaes mdicas para o dos admi-

    nistradores, como uma estratgia vital para atacar a rela-

    o custo-benefcio do sistema. Mas este no o campo res-

    trito de interveno dessas propostas, pois ela tambm se

  • 70 OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENO GERENCIADA

    filia a um outro conjunto de estratgias que visam a reorga-

    nizao dos modelos de ateno partindo da ao dos pres-

    tadores privados, centrados nas polticas das instituiesseguradoras e financeiras.

    J, quando se olha a partir de pases da Amrica Latina,

    eS8e~'anorama sofre algumas rotaes .

    .IJoje na Argentina. em nome de todo um projeto polti-

    co-social- o denominado Ajuste Econmico-Social, consi-

    derado necessrio para "modernizar" os pases do terceiro

    mundo, tirando o peso de um aparato estatal pesado, anti-

    go e ineficiente -, ganha corpo um iderio privatizante, que

    opera micropoliticamente a criao de projetos nos distin-

    tos espaos organizacionais, e neoliberal, que opera com a

    noo d que qualquer forma de direito social conquistado privilgio que fere as regras do mercado, a "nova coquelu-

    che" direcionadora do jogo entre produo de bens e ne-cessidades dos "cidados".

    Nesse cenrio, o setor sade tem-se dirigido para um de-

    senho insLil.ueiofluJque se or-dona pela gcr'ao da ofer-tade

    uma "cesta mnima" de consumo de aes bsicas de sa-Q

    de, que deve atingir' a Lodosos agrupamentos sociais, a par-

    tir da qual, por um acesso pelo mercado a prestadores pri-

    vados, se podem agregar novas modalidades de consumo

    no campo da assistncia.

    J

    2 ClO,como fonte fundamental para compreender o processo argentino, a tese dedouloramento de Iriart, C. Ateno gerenciada ... , obra citada.

    PARA PENSAR UMA TRANSIO TECNOLGICA 71

    Os governos dos pases latino-americanos, vinculados a

    essas perspectivas, tomam de emprstimo um elenco de

    propostas de reorganizao da gesto dos equipamentos

    organizacionais em sade, na direo de um processo pri-

    vatizante, e como mecanismo de operacionalizao do que

    denominam de "modcrnizao" dos servios de sade. No

    outro o sentido do projeto argentino do Hospital de Auto-gesto e de algumas propostas do governo brasileiro de trans-

    formao dos hospitais pblicos em Equipamentos Soci-

    ais, que buscariam seus complementos fmanceiros no "mer-

    cado de consumidores" individuais e, ou, coletivos, dispo-

    nvel.

    Mesmo que com possveis efeitos paradoxais, a Ateno

    Gerenciadatem sido "olhada" com carinho pelos governos

    locais e tambm por organizaes internacionais que tm

    grande influncia para criar temticas nos projetos de re-

    formas do setor sade. Nessa direo, a prpria Organiza-

    o Pan-Americana da Sade, em 1995, abriu um espaoeditorial publicando uma bibliografia comentada sobre a

    questo," que no mnimo v com bons olhos a proposta

    como eficaz receita para operar projetos de reformas em

    servios.Mesmo que a A. G. seja de modo freqente descrita como

    uma proposta de reforma recentemente desenvolvida,4 seus

    3 Paganini, J. M. Nuevas modalidades ... , obra citada.Walzkin, H. El dilema de Ia salud en EE.UU ... , obra citada.

  • 72 OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENO GERENCIADA

    antecedentes remontam dcada de 1960, particularmen-

    te nos trabalhos de Alain Enthoven, economista estaduni-

    dense.' Em seus trabalhos, Enthoven desenvolve uma pro-

    posta de programao, planificao e oramentao para

    o Departamento de Defesa Americano, com a finalidade de

    analisar os custos e benefcios de cada novo mtodo de con-

    duzir a guerra.Em 1977, ofereceu administrao Carter'' um projeto

    sohre um plano de sade por escolha do consumidor, base-

    ado em uma competio regulada no mercado privado. Este

    projeto foi construdo a partir das iniciativas de Paul

    Ellwood, em torno de "uma estratgia de manuteno da

    sade", e de Scott Fleming,7 na de "uma competio estru-

    turada dentro do setor privado". A proposta centrava-se

    em um papel fundamental, nos servios, do controle admi-

    "nistrativo sobre as decises clnicas, com a pretenso de re-duzir exames complementares e tratamentos custosos; e em

    uma competio, de mercado, entre grandes organizaes

    prestadoras de servios ou de financiamentos para estabe-

    lecer disputas por preos.

    Waitzkin, n. The stral1gc carecr of 11"""1gC

  • 74 OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENO GERENCIADA~.

    de novos funcionrios das grandes companhias de seguros

    privados dos E.U.AY

    Durante a campanha presidencial de Bill Clinton, ado-

    tou-se a orientao da Ateno Gerenciada como compo-

    nente do plano de governo para a composio de uma