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Poses e flagrantes

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Ana Maria Mauad

Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias

Editora da Universidade Federal Fluminense

Niterói, 2008

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Copyright © 2008 by Ana Maria Mauad

Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-900 - Niterói, RJ - Brasil -Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: (21) 2629- 5288 - http://www.editora.uff.br - E-mail: [email protected]

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Normalização: Caroline Brito de OliveiraEdição de texto: Icléia FreixinhoRevisão: Sônia PeçanhaCapa e projeto gráfico e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken MartinsSupervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo

Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIP

M448 Mauad, Ana Maria Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotografias / Ana Maria Mauad — Niterói : Editora da UFF, 2008.

262 p. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)

Bibliografia. p. 253

ISBN 978-85-228-0474-0

1. Fotografia. 2. Fotógrafo. I. Título.

CDD 770.23

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Reitor: Roberto de Souza SallesVice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Humberto Fernandes MachadoDiretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos

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Maria Laura Martins CostaMariângela Rios de OliveiraVânia Glória Silami Lopes

Editora filiada à

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Às mulheres da família...

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agradecimentos

Mesmo correndo o risco de cometer esquecimentos, parte do processo de rememoração, creio que este seja o momento de agradecer às pes-soas que me incentivaram em minha trajetória acadêmica e reflexão teórica

Ao Paulo Knauss, por ser o que ele é: amigo, parceiro e importante interlocutor.

À Angela de Castro Gomes, à Mariza Soares e à Hebe Mattos por aju-darem a criar um espaço especial para pensar e produzir: o LABHOI, e à Ismênia Lima Martins, por ter criado esse espaço e deixado de algum modo a sua generosidade inscrita nele.

Ao Flavio Damm, por ter conseguido ultrapassar os limites da cientifici-dade e se tornar um objeto-parceiro de pesquisa.

Ao Ciro Cardoso, por todo o incentivo e apoio ao longo de muitos anos.

Ao Milton Guran, por ter me aberto os olhos para a variedade do olhar fotográfico.

Às pesquisadoras do Museu Paulista, Solange Ferraz de Lima e Vânia Carvalho, por terem me recebido para o pós-doutorado e por continuarem a ser importantes e afetivas interlocutoras.

Às minhas bolsistas de iniciação científica: Adriana Hassim, Erica Gomes Daniel, Ana Flávia Pires, Fernanda Rabelo, Daniela Ferreira Nunes, Mariana Furloni, Mariana Silva, Beth Castelano, Ellen Guedes, Daiana Andrade.

Aos meus parceiros de uma história em movimento: Ana Paula da Rocha Serrano e Fernando Dumas.

À Katharina, ao Victor, João Gabriel e Alejandro, por me agüentarem em casa fazendo hummmmm.

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sumário

aPresentação, 11

introdução, 13

Parte icaPítulo 1 – através da imagem: fotografia e história – interfaces, 29caPítulo 2 – história e semiótica: sobre o conceito de

intertextualidade na análise de fontes de memória, 49caPítulo 3 – Passado comPosto: fotografia e memória, 57

Parte iicaPítulo 4 – as fronteiras da cor: imagem e rePresentação social

na sociedade escravista imPerial, 75caPítulo 5 – na mira do fotógrafo: o rio de Janeiro e seus esPaços

através das lentes de gutierrez, 93caPítulo 6 – a inscrição na cidade: Paisagem urbana nas fotografias

de marc ferrez e augusto malta, 111caPítulo 7 – imagens de Passagem: fotografia e os ritos da vida

católica da elite brasileira, 1850-1950, 121

Parte iiicaPítulo 8 – Janelas que se abrem Para o mundo: fotografia

de imPrensa e distinção social no rio de Janeiro, na Primeira metade do século xx, 149

caPítulo 9 – flávio damm, Profissão fotógrafo de imPrensa: o fotoJornalismo e a escrita da história contemPorânea, 171

caPítulo 10 – genevieve naylor, fotógrafa: imPressões de viagem (brasil, 1941– 1942), 195

caPítulo 11 – o mundo como comunidade imaginada: diversidade cultural nas rePresentações fotográficas de flávio damm e sebastião salgado, 227

conclusão

entre os temPos, a título de conclusão Precária, 245

referências, 253

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aPresentação

Enfim, juntos....O processo de comunicação social é, atualmente, dominado

pela imagem: até para escrever, entramos em uma imagem e dialo-gamos com “ícones”. Portanto, creio que não haja mais, no campo das ciências sociais, quem não veja a fotografia – e as imagens em geral – como um objeto (tanto físico quanto de estudo) capaz de revelar aspectos fundamentais dos fenômenos sociais. Isso porque a fotografia, sobretudo a de caráter documental, representa sempre um aspecto relevante da vida social. No entanto, pela banalização de seu uso e pela sua natureza polissêmica, aparentemente tão aberta, há até pouco tempo parecia impossível tratá-la cientificamente. Ela é, antes de tudo, um produto e responde, portanto, aos próprios imperativos da sua produção. Outra característica interessante é que ela só se rea-liza plenamente no ato do consumo, na leitura de quem a vê. De um lado, temos então um olhar que é o agente do recorte de um aspecto do mundo visível, que seleciona o conteúdo da imagem e a forma de apresentá-lo o que, por si só, já é matéria de estudo, tanto quanto a cena representada na imagem. E, de outro lado, temos o leitor que vai decodificar a imagem à sua maneira e com os condicionamentos de seu tempo e sua inserção social. Enfim, o uso da fotografia é um ato eminentemente cultural do princípio ao fim.

Acontece que tanto a produção quanto o consumo de uma fotografia envolvem, para sua realização, o emprego da imaginação, ou seja, da nossa capacidade de pensar abstratamente com o fim es-pecífico de descrever plasticamente o mundo visível. Ou seja, criar uma imagem que responda, de alguma maneira, não só à razão – como percebemos uma cena –, mas também às emoções e às sensações que são inerentes a este ato de percepção. É aí que entra o trabalho de Ana Mauad, que orienta o nosso olhar sobre as imagens para nos ajudar a descobrir mais e com mais qualidade, nos dando roteiros de leitura, enriquecendo nossa percepção e dirigindo-a para a produção de conhecimentos.

Estes textos, na verdade, propõem percursos do olhar tanto históricos quanto conceituais, que trama uma estratégia de análise que nos permite encontrar, no transcurso da leitura, tempos e refe-rências diversas, além de travar um estreito diálogo com a produção acadêmica em geral. A primeira parte do livro enfatiza a necessidade de uma análise transdisciplinar da imagem, ao incorporar numa pro-

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ção posta metodológica original as contribuições de estudos semióticos

e da teoria social. O debate aqui apresentado revela a ampliação dos campos e fazeres da história para muito além das fronteiras tradicio-nais. A leitura do livro nos permite percorrer os tempos e espaços da experiência fotográfica dos séculos XIX e XX, indo do império do retrato à dinâmica da fotografia instantânea e do fotojornalismo. Assim, os tempos das poses e flagrantes revelam formas de ver e ser visto.

Desta forma, o volume coloca em perspectiva, no campo his-toriográfico, as pesquisas produzidas ao longo de mais de dez anos de atividade da autora na Universidade Federal Fluminense e como pesquisadora do CNPq. Inscreve-se, assim, entre os pioneiros do gênero, partindo do campo epistemológico da história para transitar sem hesitações pelas demais ciências sociais. Assim, constrói uma sólida e abrangente reflexão sobre o que representam as fotografias e de como podemos utilizá-las para chegar à matéria-prima do nosso trabalho, ou seja, a vida que está por trás da imagem. Originais na forma de abordar a questão sem perder o rigor de análise, sempre dialogando com os propósitos e pressupostos mais instigantes da disciplina, os textos de Ana Mauad são, hoje, referência incontornável neste campo de estudos.

A grande vantagem deste livro é, justamente, reunir os textos e sistematizar reflexões dispersas, em parte inacessíveis, simplificando a vida de todos que, de uma maneira geral, já descobriram nas imagens as linguagens pelas quais circulam grande parte do que é essencial na vida dos indivíduos e das sociedades.

Milton Guran

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introdução

Em relação a muitas dessas fotos, era a História

que me separava delas. A História não é simplesmente

esse tempo em que não éramos nascidos?

(BARTHES, R. A câmara clara, p. 96-97)

Em relação às minhas próprias fotografias, venho mantendo uma prática herdada de minha avó: a coleção. Vovó Mariana as guardava numa grande caixa de papelão, misturadas aos recortes de jornais, santinhos de primeira comunhão, relicários e muitos outros retalhos de lembranças. Eu, de minha parte, desde o momento em que me dei conta de que já havia criado uma descendência, passei a organizá-las, cronologicamente, em álbuns. Aos poucos as fotografias em papel estão sendo substituídas pelas imagens digitais, mas, ainda assim, preserva-se a narrativa temporal acrescida da legenda temática desig-nada para distinguir cada arquivo: férias no Chile, 2006; aniversário Katharina, 2005.

Entretanto, a experiência de conviver com as muitas fotografias que a minha avó guardava imprimiu em minha consciência uma dimen-são de temporalidade, gravada em rostos, objetos, lugares, situações que já não mais existiam. Não sei se por isso resolvi fazer o curso de história, mas sei que foi por isso que tomei a coleção de fotografias de minha avó como um dos objetos da minha pesquisa de doutorado.

Chegar àquilo que não foi revelado, imediatamente, pelo olhar fotográfico e, como Alice diante de seus espelhos, ver através da imagem, foi o desafio que me propus em relação às fotografias. En-tretanto, diante de tal desafio, não podia me manter na condição de colecionadora, protegida pelo universo da intimidade familiar. Havia de me lançar à multiplicidade de fotografias, buscando decifrar seus usos e funções, mapear e diferenciar suas formas de agenciamento e representação. Enfim, compreender a experiência fotográfica como prática de produção de sentido social. Múltiplos sentidos, no entanto, todos históricos.

Relacionar a prática fotográfica a sua historicidade foi o cami-nho escolhido para analisar a presença da fotografia na experiência histórica dos séculos XIX e XX: as fotografias e suas histórias.

As reflexões reunidas neste livro foram feitas ao longo da minha prática como pesquisadora no Laboratório de História Oral e Imagem

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ução da UFF, no CNPq, e na docência em Graduação e Pós-Graduação, no

curso de história.O volume é composto por textos apresentados em simpósios

e seminários, escritos para sistematizar a pesquisa de dados e ao mesmo tempo consolidar uma reflexão teórico-metodológica sobre um campo da historiografia que veio se definindo juntamente com reflexões sobre a história da imagem, ou ainda, história visual (ME-NESES, 2003). As relações entre história e imagem, longe de definirem um campo autônomo de estudos, apresentam-se como um fórum em que se pode debater a história social. Assim, busca-se dimensionar o estatuto epistemológico do social pela valorização das diferenciadas experiências que definem as práticas sociais, dentre essas, a relação entre ver e conhecer, ou ainda, ver e imaginar.

Animada pelos pedidos reiterados de alunos e colegas em relação a trabalhos que publiquei em periódicos esgotados, anais de congressos com edição limitada, enfim, textos de difícil aquisição pelo público, dediquei-me a organizar esta coletânea. Entretanto, não me limitei a reproduzir as reflexões datadas, empenho-me aqui em travar um diálogo de idéias entre tempos. A cartografia do volume se orienta por duas temporalidades, a da minha própria trajetória como pesquisadora no campo de estudos da história da imagem, e uma outra, delimitada pelos tempos da história nos quais a prática fotográfica se inscreveu como objeto de estudo. Neste sentido, se distribuíram os textos por três partes, sendo que cada uma delas é introduzida por uma reflexão sobre a problemática histórica na qual ela se inscreve.

A primeira parte concentra um conjunto de reflexões de caráter teórico-metodológico, associadas à concepção da fotografia como fonte e objeto da história. Nesta parte são apresentados os princí-pios da metodologia histórico-semiótica para a análise da fotografia, desenvolvida em minha tese de doutorado. A ordenação cronológica dos textos e os comentários sobre cada um servem de medida para se avaliar a aplicabilidade de tal metodologia, suas contribuições para o campo de estudos e os seus limites. As reflexões que acompanham esta parte buscaram ampliar o enquadramento estritamente semiótico, incluindo-se as temáticas sobre narrativa, tempo e memória.

A segunda parte é composta por análises da fotografia na socie-dade oitocentista. Ressaltam-se nos trabalhos a dimensão da fotografia como prática de produção de sentido social, bem como seus usos e funções na sociedade imperial. Nesse sentido, a produção fotográfica na cidade do Rio de Janeiro é objeto de estudos cuja abordagem valo-riza a centralidade do olhar como forma de representar a sociedade brasileira nos Oitocentos. As experiências sociais tratadas são varia-

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das, assim como seus espaços e os sujeitos históricos. O comentário sobre os trabalhos ordenados cronologicamente serve de ponte para um diálogo com a historiografia.

Na terceira, e última parte, as questões mais recentes da pes-quisa com fontes orais e visuais orientam as reflexões apresentadas. São textos que se debruçam sobre a relação entre mídia e história, tomando como objeto de estudo o fotojornalismo brasileiro no século XX. Avalia-se o mercado editorial das publicações ilustradas, a relação entre imprensa e cultura visual burguesa, bem como a narratividade da imagem fotográfica na construção do acontecimento histórico. O texto que acompanha essa parte oferece uma visão, em perspectiva, sobre a relação entre experiência fotográfica e os sentidos da história contemporânea.

Por fim, a título de uma conclusão precária, buscou-se refletir sobre a problemática da imagem fotográfica na sua relação com os tempos da história.

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PARTE I

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A primeira parte é composta por três textos voltados para a reflexão teórico-metodológica sobre os usos das fontes visuais na história. Busquei incluir um exemplo de cada uma das associações teóricas tecidas na construção de uma metodologia de análise que articulasse a substância visual das fontes aos problemas historiográ-ficos levantados pela pesquisa.

O Capítulo 1 apresenta a sistematização dos princípios metodo-lógicos da análise histórico-semiótica de fotografias. A metodologia havia sido desenvolvida ao longo do meu doutorado (1986-1990) e, até esse momento, sua apresentação ficava limitada à introdução da tese. Aproveitei a oportunidade de escrever para o dossiê sobre metodo-logia da Revista Tempo do Departamento de História da UFF, a fim de dar um corpo a esses princípios metodológicos, acrescentando-lhes novas discussões, dentre as quais, aquela apresentada pelo filósofo francês Philipe Dubois a respeito do realismo fotográfico e da natureza fundadora do ato fotográfico.

A leitura de Dubois permitiu-me ampliar o escopo das reflexões, deslocando para dentro da mensagem fotográfica a natureza complexa do seu ato de fundação: a fotografia registra, apresenta e represen-ta, sendo ao mesmo tempo índice, ícone e símbolo. A polissemia da mensagem visual explicava-se pela natureza complexa da sua criação, cujas possibilidades de interpretação estavam abertas à dimensão histórica da sua recepção e apreensão.

O problema de ver e conhecer orientava o princípio da análise proposto. Dubois entende a fotografia como uma operação racional que fornece sentido às experiências sociais, mas que, ao mesmo tempo, as dignifica e hierarquiza tornando-as memoráveis. Não se fotografa qualquer coisa, a escolha do que será fotografado segue alguns protocolos que são perpassados pelas experiências sociais compartilhadas, apropriadas ou ainda, expropriadas (se pensarmos em todas as formas de apagamento das imagens). O ato fotográfico foi assim concebido como experiência visual inscrita nos tempos his-tóricos, cujos ritmos diferenciados qualificavam a própria natureza da imagem fotográfica.

Dentro desse contexto de análise, valorizava-se o aspecto comunicativo da imagem fotográfica, que foi concebida como mensa-gem. Tal procedimento engendrou alguns desdobramentos teórico-metodológicos, dentre os quais se ressaltam os processos de produção

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as de sentido visual na sociedade contemporânea, com destaque para os seguintes aspectos: o papel desempenhado pela tecnologia; a defini-ção do circuito social da produção de imagens técnicas, enfatizando historicidade dos regimes visuais; o papel dos sujeitos sociais como mediadores da produção cultural, compreendendo que a relação entre produtores e receptores de imagens se traduz numa negociação de sentidos e significados; a capacidade narrativa das imagens técnicas, discutindo-se aí a dimensão temporal das imagens, os elementos defi-nidores de uma linguagem eminentemente visual e, por fim, o diálogo estabelecido entre imagens técnicas e outros textos, tanto de caráter verbal, como não verbal, a partir do princípio de intertextualidade.

Deste conjunto de desdobramentos, podemos sintetizar quatro aspectos ao considerarmos as imagens fotográficas:

A questão da produção – o dispositivo que media a relação entre o 1. sujeito que olha e a imagem que elabora ocorre pela manipulação de um dispositivo de caráter tecnológico, que possui determina-das regras definidas historicamente integradas às tecnologias da visão (MENESES, 2005).A questão da recepção – associada ao valor atribuído à imagem 2. pela sociedade que a produz, mas também a recebe. Na medida em que este valor está mais ou menos balizado pelos efeitos de realismo da imagem, vai apontar para a conformação histórica de um certo regime de visualidade. Portanto, se a questão da relação da imagem com o seu referente e o grau de iconicidade dessa imagem é uma questão estética, seu julgamento (ou apropriação) tem a ver com as condições de recepção e como, através dessa recepção, se atribui valor à imagem: informativo, artístico, íntimo etc. Problematiza-se aqui o domínio do visual (MENESES, 2005).A questão do produto – entende-se, aí, a imagem consubstancia-3. da em matéria, e ainda a capacidade de a imagem potencializar a matéria em si mesma, como objetivação de trabalho humano, como resultado do processo de produção de sentido social e como relação social. Compreendida como resultante de uma relação en-tre sujeitos, a imagem visual engendra uma capacidade narrativa que se processa numa dada temporalidade. Estabelece, assim, um diálogo de sentidos com outras referências culturais de caráter verbal e não-verbal. As imagens nos contam histórias, atualizam memórias, inventam vivências, imaginam a história. Esse o campo que define a ordem do visível (e do invisível).A questão do agenciamento – relacionada ao processo social que 4. envolve a trajetória das imagens como artefatos, tais como coisas

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que são guardadas, distribuídas, manuseadas, arquivadas e des-truídas. A biografia das imagens e sua vida social importam, pois implicam relações sociais diferenciadas. Uma fotografia feita no Centro do Rio dos anos 1950, cuja legenda refere-se à Copacabana, possui uma trajetória cujas histórias revelam experiências sociais só esclarecidas pelo estudo das condições de seu agenciamento, pelos guardiães da memória, pelos colecionadores, pelas insti-tuições de guardas, enfim, pelos diferentes sujeitos sociais que operaram sobre essa imagem. Tal dimensão supera, em grande medida, a compreensão da imagem fotográfica como texto e a concebe como materialização de uma prática social.

Vale considerar que, se esses quatro aspectos visam orientar de forma ampla a análise histórica de fotografias, a ênfase em um ou em outro variará de acordo com a problematização proposta para o desenvolvimento do estudo. Ainda assim, não é demais ressaltar, se-guindo a trilha aberta por Meneses (2003), que os estudos históricos, ao tomarem a imagem visual como fonte, devem discutir seu estatuto epistemológico. Dito de outra forma, a noção de fonte histórica há de ser problematizada à luz de uma crítica que a considere como suporte de práticas sociais, superando-se a visão ingênua de que as fontes contêm o passado, e se revelam ao olhar do presente, por sua pura existência. Toda fonte histórica é resultado de uma operação histó-rica (CERTEAU, 1979), não fala por si só, é necessário que perguntas lhe sejam feitas. Tais questionamentos devem levar em conta a sua natureza de artefato e de objeto da cultura material, associado a uma função social e a sua trajetória pelos tempos.

Neste sentido, toda fonte é também objeto de estudo na proble-matização do passado, definindo-se também pelo problema proposto para a análise. Tal perspectiva, longe de recuperar um empiricismo mecânico, busca dialogar com as questões levantadas pela micro-história (LEVI, 1992). Segundo essa abordagem, o contexto histórico não deve ser concebido como pano de fundo de uma mise en scène política ou cultural, completamente dissociada do problema proposto. Ao contrário, a elaboração dos quadros de historicidade, ou como propõe Levi, das lógicas de racionalidade, deve partir da materialidade das experiências sociais, dos seus indícios, vestígios, restos e pistas. Os documentos, dentro desta perspectiva, devem urdir a trama da ex-periência passada, elucidando no presente sua alteridade. As imagens visuais, como documentos /monumentos, permitem-nos conhecer por ângulos pouco habituais a urdidura das relações sociais. No entanto, não basta olhar, é fundamental estranhar.

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as O Capítulo 2 aborda o estudo da relação entre palavras e ima-gens. Tal preocupação inscreve-se no âmbito das pesquisas que vêm sendo realizadas ao longo da minha participação como pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF. Criado em 1982, pela iniciativa das professoras Ismênia Lima Martins e Eulária Lobo, o LABHOI foi um dos primeiros grupos de pesquisa a valorizar o uso de fontes não tradicionais, a saber: fontes orais e visuais na pesquisa histórica. Desde 1994, com a ampliação dos seus participantes, o grupo foi reafirmando a sua vocação precursora.

Do ponto de vista teórico, o trabalho desenvolvido pelo LABHOI, com fontes visuais e orais, associa pesquisa de dados, discussão conceptual e prática docente. Meu trabalho dentro do grupo vem priorizando os estudos sobre a relação entre fontes visuais, em espe-cial a fotografia e as fontes orais, compreendidas como mediadores privilegiados para o estudo das memórias sociais. O texto em questão consiste numa primeira sistematização de um conjunto de conceitos para se operar na pesquisa com suportes de natureza distinta.

A escolha da perspectiva semiótica para apoiar a análise histó-rica das chamadas fontes de memória implica a compreensão de que tais registros, longe de se apresentarem prontos à análise histórica, são resultados do trabalho de pesquisa e da orientação teórico-metodológica. Tal orientação implica o fato de que a construção do objeto de estudo, a elaboração da problemática teórica, bem como o estatuto epistemológico das fontes de memória são resultados de uma operação historiográfica (CERTEAU, 1979).

Oriento-me, portanto, por meio de um lugar social, segundo certos protocolos aceitos pela comunidade, na qual me reconheço como sujeito do conhecimento, a comunidade de historiadores. Assim, o pertencimento a um grupo de pesquisa, o LABHOI, implica também uma prática social fundamentada em princípios de investigação. Na linha das fontes de memória, discute-se o estatuto da visualidade e da oralidade como fonte e objeto da história, a relação entre memó-ria e sociedade, o papel do sujeito na produção social da memória e os usos sociais do passado. Desta forma, amplia-se o ponto de vista estritamente semiótico, sem, entretanto, abandoná-lo.

Vale ressaltar, assim, outros investimentos nos estudos da re-lação entre fontes orais e visuais, dentre os quais estão a capacidade narrativa de ambos os meios de expressão e o reconhecimento da pluralidade do tempo histórico. Tempo e narrativa são conceitos que se associam na problematização das fontes de memória.

Do ponto de vista das narrativas, destaca-se a produção do do-cumento oral. A perspectiva das histórias de vida, em geral adotadas

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nos roteiros das entrevistas, implica a definição de um fio condutor do ato de rememoração que coloca o sujeito como elemento central da enunciação. No entanto, longe da individualidade e transparência do indivíduo liberal, esse sujeito é sempre coletivo, pois como categoria histórica mantém uma relação de pertencimento (conflitiva ou não), como o grupo do qual provém. Assim, os enunciados elaborados por esse sujeito no ato de rememoração são compostos por tramas nar-rativas cujas lógicas cabe ao pesquisador investigar.

Tais lógicas são tributárias da forma como a categoria tem-poral é acionada. Em geral, a cronologia dos acontecimentos e das experiências compartilhadas domina a forma como a narrativa é construída. Entretanto, tal dimensão, apesar de ser a mais evidente, não é exclusiva, há que se considerar os lapsos, as interrupções, os esquecimentos, bem como as alusões, as digressões e associações em relação a ritmos diferenciados de passagem do tempo dentro da enunciação.

Em relação à narratividade da imagem visual, opera-se principal-mente com a noção de série, na qual o conjunto de imagens estabelece a lógica de representação do objeto fotografado. Tal lógica segue um princípio temporal que é cronológico, mas não exclusivamente, pois há de se considerar a capacidade evocativa da imagem e os usos simbólicos aos quais pode servir. Assim, as múltiplas durações do tempo histórico são consideradas. É o caso das fotorreportagens, dos álbuns de família, das coleções autorais, ou ainda, das seleções temáticas. Nestes exemplos, a narrativa visual é garantida pela rela-ção entre as imagens e das imagens com outros textos, inclusive de caráter verbal.

Entretanto, recentemente, venho me aventurando a buscar a trama narrativa inscrita em uma só imagem. Nesse caso, ao contrário do trabalho com as séries, a dimensão temporal não é diacrônica, ou seja, não se movimenta pelos eixos de longa, média e curta duração (BRAUDEL, 1978). A temporalidade inscrita em uma única foto é resultado do ato fotográfico, portanto, ela é sincrônica. Reúnem-se no seu quadro, da mesma forma que nas séries, níveis temporais diferenciados entrevistos pela forma como os elementos da cena são combinados. Assim, sua condição histórica é referida pelos objetos, figuração, vivências, temas fotografados e recursos técnicos adotados para a produção da imagem fotográfica.

No entanto, sua trama temporal inclui também uma relação entre sujeitos – o fotógrafo e o fotografado. No século XIX, a negociação da pose evidenciava o estúdio fotográfico como espaço onde as disputas pelos sentidos atribuídos às representações sociais eram travadas. O

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as tempo da pose delimitava a inscrição na imagem de uma duração. No século XX, o imperativo do instante e a noção de flagrante transferiram o tempo de duração da imagem da pose para a espera, concentrando no sujeito fotógrafo a tarefa de capturar no fluxo temporal a imagem desejada (LISSOVSKY, 2003).

Neste sentido, a análise de uma única foto deve partir dos indí-cios, dos rastros temporais deixados dentro do quadro, resultantes do ato fotográfico e partir para o fora de quadro rumo ao mundo no qual essa imagem se insere como narrativa sintética.

Cabe ainda considerar como na produção do texto histórico as palavras e as imagens adquirem força explicativa, evitando-se seu uso acessório ou ilustrativo. Nesse caso, o recurso às novas tecnologias da imagem torna-se uma possibilidade, mas, ao mesmo tempo, um desafio a quem está acostumado a trabalhar com o texto escrito.

Nesse âmbito, o LABHOI vem buscando desenvolver aquilo que denominamos escrita videográfica. Utilizando-se dos recursos de edição conjunta de fontes orais e visuais, segundo um roteiro pre-estabelecido, tem-se conseguido elaborar, em diálogo estreito com o campo do documentário cinematográfico, narrativas nas quais o cruzamento de palavras e imagem cria um texto historiográfico que incorpora a natureza do documento nas diferentes formas de expres-são (sonora, visual e escrita). Um exercício que implica a efetivação de uma formação interdisciplinar para o profissional de história.

O Capítulo 3 debruça-se sobre o tema da memória que, no bojo do processo de redemocratização da sociedade brasileira dos anos 1980, entrou para a pauta de discussões dos diferentes grupos orga-nizados. Neste contexto, um amplo espectro de movimentos sociais (negros, mulheres, homossexuais, sem-teto, sem-terra, entre outros), partidos políticos, associações civis etc. voltou-se para a organização de sua memória. Multiplicaram-se casas, centros, institutos, consubs-tanciando-se, ao longo desses últimos anos, aquilo que Pierre Nora chamou de memória-dever.

A preocupação com a memória denotava claramente o papel desempenhado pela apropriação do passado na construção das identidades sociais. Paralelamente refletia a salutar emergência da consciência política, ao mesmo tempo que organizava e conservava indicadores empíricos, preciosos para o conhecimento de fenômenos relevantes e merecedores de uma análise histórica mais detida. No entanto, é necessário ultrapassar os limites do senso comum do qual a memória emerge e onde encontra sua inspiração primeira, abrindo caminho para a avaliação crítica da história.

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Neste sentido, o estudo da memória, através de seus diferentes sistemas, suportes, agentes e da sua relação com os processos so-cioculturais, vem integrando trabalhos acadêmicos de procedências disciplinares variadas e ocupando um lugar privilegiado nos debates das ciências humanas, notadamente nos espaços interdisciplinares da história oral e dos estudos culturais.

A crise dos espaços legítimos de representação, a mundialização da cultura, a fragmentação dos sujeitos sociais são temas colocados na pauta da contemporaneidade, devendo ser adensados a partir de uma reflexão profunda sobre a nação e seus significados históricos. Sendo assim, o estudo da memória de grupos que tiveram um papel significativo na elaboração dos quadros culturais de uma época é peça-chave para a compreensão das dimensões da história do tempo presente.

Quero aprofundar, nesta reflexão, a problemática que associa a imagem, notadamente a fotográfica, e a memória social, na sua di-mensão pública, tendo em vista que o tema abordado em tal capítulo associou-se à experiência de construção de memórias familiares. Tal preocupação está relacionada às minhas pesquisas recentes sobre a construção das memórias do mundo contemporâneo através do fotojornalismo e sua relação com o regime de historicidade no qual vivemos.

Tendo em vista que os grandes e não tão grandes fatos que marcaram a história do século XX foram registrados pela câmera fotográfica de repórteres atentos ao calor dos acontecimentos: Qual a natureza destes registros? Como fica a narrativa dos acontecimen-tos elaborada pela linguagem fotográfica? Quais são as imagens que compõem a memória social do século passado? É possível falar de uma história feita de imagens? Qual o papel do fotógrafo como criador de uma narrativa visual? E da imprensa como uma ponte entre os aconte-cimentos e sua interpretação? Na busca de respostas a esse conjunto de questões, é fundamental enveredar pela proliferação de imagens técnicas que substituem a experiência pelo seu simulacro, inventando uma memória compartilhada como quem implanta um chip na mente de um andróide – a alusão ao filme Blade Runner é proposital.

Creio ser possível considerar que as fotografias produzidas pela imprensa sejam suporte de uma memória coletiva que registra, retém e projeta no tempo histórico uma versão dos acontecimentos. Essa versão é construída por uma narrativa visual e verbal, ou seja, intertex-tual, mas também multitemporal: o tempo do acontecimento, o tempo da sua transcrição pelo modo narrativo, o tempo da sua recepção no marco histórico da sua publicação (medido pela permanência do tema

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as na pauta das publicações), e o tempo da apropriação historiográfica, ou seja, o momento em que a memória se torna objeto da história.

Antes do ato de problematização do registro pelo viés da crítica histórica, as imagens fotográficas são registros visuais, expressões de um regime de visualidade, suporte de relações sociais, mas não a memória dos acontecimentos em si mesma. A memória não é inerte, ela não se deposita nas coisas, é, ao contrário, resultado do investimento das sociedades humanas em fazer lembrar, em evitar o esquecimento, diferencia-se da história, operação racional e cognitiva, por ser da ordem da emoção, da ação coletiva, do mito. Portanto, as fotografias conformam os quadros da memória social que, acionados pelo traba-lho de memória, também servem para fazer lembrar.

Assim, o conhecimento histórico produzido sobre o passado – categoria sempre definida e reconstruída como objeto – tem, na própria produção de memórias, uma de suas fontes e também um de seus objetos privilegiados. Por outro lado, a imagem fotográfica como suporte de memórias sociais relaciona-se ao campo de estudos da história visual, segundo o qual seria fundamental deslocar a atenção das fontes visuais para o campo da visualidade como objeto detentor de elevado interesse cognitivo (MENESES, 2003).

Dentro dessa perspectiva, alguns aspectos devem ser conside-rados ao se tratar da problemática social da memória, seguindo-se as diretrizes da história visual, a saber: o regime de visualidade, as imagens fotográficas e seus significados, e os fotógrafos que atuam na esfera pública.

Neste sentido, ao se eleger o fotojornalismo como matéria fun-damental de estudo, elege-se também um sujeito histórico: o fotógrafo, que atua como mediador cultural do processo comunicativo. A noção de mediação cultural, tal como apresentada por Raymond Willians (1979) e apropriada por diferentes pensadores latino-americanos, como Martin-Barbero (1997) e Nestor Garcia Canclini (1989), permite que se rompa com a ultrapassada teoria do reflexo e se desvende a intricada rede de influências sociais que consubstanciam a produ-ção cultural na sociedade capitalista. A idéia defendida por Willians propõe associar mediação ao próprio ato de conhecer e elaborar expressões, no âmbito do ativo processo de produção de represen-tações sociais.

As fotografias e suas histórias integram os quadros de rememo-ração desse grupo profissional que atuou na imprensa, em diferentes momentos da história do século XX. Suas memórias, aludindo à experiên cia fotográfica, fundamento da sua trajetória social, permi-tem que se amplie a capacidade cognitiva das imagens fotográficas,

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associando-se visão, informação e imaginação. Dessa forma, as fo-tografias produzidas pelos fotógrafos no calor dos acontecimentos servem não só para lembrar, mas também para visualizar e imaginar a própria história.

Os três textos que se seguem foram escritos em momentos dife-rentes, mas convergem para uma discussão comum, a da valorização de uma metodologia pertinente aos trabalhos de pesquisa com fontes visuais e orais.

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caPítulo 1

através da imagem: fotografia e história – interfaces

Qual é a relação entre história e fotografia? Será a história pu-ramente a duração e a fotografia seu registro? Existem dois caminhos para operar sobre tal relação. O primeiro é tomar a direção de uma história da fotografia que, mais recentemente, além de inventariar os processos de evolução da técnica fotográfica, busca dimensionar sua inserção social naquilo que se convencionou chamar de circuito social da fotografia.1 Já a segunda alternativa busca compreender o lugar da fotografia na história. É justamente nela que nos inserimos.

Esta reflexão pretende discutir o uso da fotografia na composi-ção do conhecimento histórico, dividindo-se em dois momentos. Ini-cialmente, o objetivo fundamental é apresentar as principais questões teóricas que envolvem a compreensão histórica da fotografia, sua rela-ção com a experiência vivida e com o conhecimento constituído pelas diferentes áreas das ciências humanas. A idéia central, nesta parte, é apresentar a fotografia como uma mensagem que se elabora através do tempo, tanto como imagem/monumento quanto como imagem/documento (LE GOFF, 1985), tanto como testemunho direto quanto como testemunho indireto do passado (BLOCH, [19--], 2001).

No segundo momento, procede-se à exposição de uma metodo-logia histórico-semiótica para análise da imagem fotográfica, elabora-da com base nas reflexões propostas anteriormente. Trata-se de um texto eminentemente metodológico, no qual se buscou sistematizar as etapas de um método aperfeiçoado, na medida em que vem sendo aplicado em diferentes tipos de fotografias.

a ilusão da realidade

A fotografia surgiu na década de 1830 como resultado da feliz conjugação do engenho, da técnica e da oportunidade. Niépce e Daguerre – dois nomes que se ligaram por interesses comuns, mas com objetivos diversos – são exemplos claros desta união. Enquanto 1 Dentre os trabalhos que tratam a fotografia como objeto de análise histórica, des-

tacam-se: MARCONDES DE MOURA, C.E. Retratos quase inocentes. São Paulo: No-bel, 1983; VASQUEZ, Pedro. D. Pedro II e a fotografia no Brasil. Rio de Janeiro: Index, [19--]; FABRIS, A. Usos e funções da fotografia no século XIX. São Paulo: Edusp, 1993; TURAZZI, M .I. Poses e trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo (1839-1889). Rio de Janeiro: Rocco: Funarte, 1995.(Ao longo dos dez anos que nos separam da publicação desse artigo, o perfil das produções brasileiras se ampliou bastante, todavia, continuam limitadas aos programas de pós-graduação, sem uma linha editorial que as divulgue.)

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aces o primeiro preocupava-se com os meios técnicos de fixar a imagem

num suporte concreto, resultado das pesquisas ligadas à litogravu-ra, o segundo almejava o controle que a ilusão da imagem poderia oferecer em termos de entretenimento (afinal de contas, ele era um homem do ramo das diversões). É bem verdade que no século XIX a distinção entre técnica e magia não era tão clara quanto hoje, como bem ilustra o nome de uma das primeiras lojas de venda de material para eletricidade no Rio de Janeiro: “Ao Grande Mágico”.

Desde então e ao longo de sua história, a fotografia foi marca-da por polêmicas ligadas aos seus usos e funções. Ainda no século XIX, sua difusão provocou uma grande comoção no meio artístico, marcadamente naturalista, e que via o papel da arte eclipsado pela presença da fotografia, cuja plena capacidade de reproduzir o real, através de uma qualidade técnica irrepreensível, deixava em segundo plano qualquer tipo de pintura.

O caráter de prova irrefutável do que realmente aconteceu, atribuído à imagem fotográfica pelo pensamento da época, transfor-mou-a num duplo da realidade, num espelho, cuja magia estava em perenizar a imagem que refletia. Para muitos artistas e intelectuais, dentre eles o poeta francês Baudelaire, a fotografia libertou a arte da necessidade de ser uma cópia fiel do real, garantindo para ela um novo espaço de criatividade. Baudelaire expõe, nesta passagem de seu artigo “O público moderno e a fotografia”, qual era, para ele, o verdadeiro lugar da fotografia dentre as formas de expressão visual de meados do século XIX:

Se é permitido à fotografia completar a arte em algumas de suas funções, cedo a terá suplantado ou simplesmente corrompido, graças à aliança natural que achará na estupidez da multidão. É necessário que se encaminhe pelo seu verdadeiro dever, que é ser a serva das ciências e das artes, mas a mais humilde das servas [...]. Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e dê aos olhos a precisão que faltaria à sua memória, que orne a biblioteca do naturalista, exagere os animais microscópicos, fortifique mesmo alguns ensinamentos e hipóteses do astrôno-mo; que seja enfim a secretária e bloco de notas de alguém que na sua profissão tem necessidade duma absoluta exatidão mate-rial. Que salve do esquecimento as ruínas pendentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, preciosas coisas cuja forma desaparecerá e exigem um lugar nos arquivos de nossa memória; será gratificada e aplaudida. Mas se lhe é permitido pôr o pé no domínio do impalpável e do imaginário,

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em tudo o que tem valor apenas porque o homem lhe acrescenta

a sua alma, mal de nós. (apud DUBOIS, 1992, p. 23)

Baudelaire enfatiza a separação arte/fotografia, concedendo à primeira um lugar na imaginação criativa e na sensibilidade humana, própria à essência da alma, enquanto à segunda é reservado o papel de instrumento de uma memória documental da realidade, concebida em toda a sua amplitude.

Mas será a fotografia uma cópia fiel do mundo e de seus acon-tecimentos como queriam os positivistas dos Oitocentos? Por muito tempo esta marca inseparável de realidade foi atribuída à imagem fotográfica, sendo seu uso ampliado ao campo das mais diferentes ciências. Desde a entomologia até os estudos das características físicas de criminosos, a fotografia foi utilizada como prova infalsificá-vel. No plano do controle social, a imagem fotográfica foi associada à identificação, passando a figurar, desde o início do século XX, em identidades, passaportes e nos mais diferentes tipos de carteiras de reconhecimento social. No âmbito privado, através do retrato de família, a fotografia também serviu de prova. O atestado de um certo modo de vida e de uma riqueza perfeitamente representada por meio de objetos, poses e olhares.

No entanto, entre o sujeito que olha e a imagem que elabora há muito mais do que os olhos podem ver. A fotografia – para além de sua gênese automática, ultrapassando a idéia de analogon da realidade – é uma elaboração do vivido, o resultado de um ato de investimento de sentido, ou ainda, uma leitura do real realizada mediante o recurso a uma série de regras que envolvem, inclusive, o controle de um deter-minado saber de ordem técnica.

fotografia, história e conhecimento

A história da fotografia confunde-se com as diferentes aborda-gens que, em diversos momentos do pensamento ocidental, aplica-ram-se à imagem fotográfica. A idéia de que o que está impresso na fotografia é a realidade pura e simples já foi criticada por diferentes campos do conhecimento, desde a teoria da percepção até a semio-logia pós-estruturalista (DUBOIS, 1992, cap. 1). A própria crítica à essência mimética da imagem fotográfica já envolve um exercício de interpretação desta imagem, datado e, por conseguinte, historicamen-te determinado. Percebendo tais injunções, o filósofo francês Philipe Dubois apresenta dois momentos dessa crítica:

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aces A fotografia como transformação do real (o discurso do código e 1.

da desconstrução);A fotografia como o vestígio de um real (o discurso do índice e 2. da referência).

O primeiro momento, predominante no século XX, compreende três setores do saber:

Estudos relativos à teoria da percepção, representados pelos •escritos de Rudolf Arnhein em seu livro Filme como arte. O ponto de partida das considerações de Arnhein é a desnaturalização da representação fotográfica, estabelecendo uma comparação entre a imagem fotográfica e o objeto concreto. A fotografia é bidimensio-nal, plana, com cores que em nada reproduzem a realidade (quan-do não é em preto-e-branco). Ela isola um determinado ponto no tempo e no espaço, acarretando a perda da dimensão processual do tempo vivido. É puramente visual, excluindo outras formas sen-soriais, tais como o olfato e o tato. Enfim, a imagem fotográfica não guarda nenhuma característica própria da realidade das coisas. Vale lembrar que uma desconstrução como a do realismo fotográ-fico detém-se, exclusivamente, sobre os efeitos que os recursos da técnica fotográfica exercem sobre a percepção, não considerando os aspectos de conteúdo da mensagem fotográfica.A vaga estruturalista da década de 1960 esforçou-se em denunciar •os efeitos ideológicos produzidos pela imagem fotográfica, tanto pela expressão estética embutida nesse tipo de imagem, quanto pelo seu conteúdo. Do ponto de vista da estética da imagem fo-tográfica, Hubert Damisch e Pierre Bourdieu, ambos escrevendo entre 1963 e 1965, denunciam o débito da fotografia para com a no-ção de espaço perspectivo, própria do pensamento renascentista e fortemente marcada por uma determinada visão de representar o mundo. Para esses autores, a fotografia é baseada em convenções socialmente aceitas como válidas e, sendo assim, constitui um importante instrumento de análise e interpretação do real. Dando continuidade às críticas da década de 1960, a revista Cahiers du Ci-nema, na década de 1970, investe na denúncia do caráter ideológico das fotografias de imprensa. Num artigo histórico – “Le Pendule”, datado de 1976 –, Alain Bergala aborda as fotografias históricas, denunciando aquilo que chamou de “a parte ‘encenada’ das ima-gens que marcaram a história”. Para este autor, tal encenação seria garantida pelos modos de integração do fotógrafo na ação, pelo efeito de paragem da imagem, pelo papel da grande angular

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etc., elementos que, conjugados ao texto impresso, produziriam uma determinada versão dos fatos históricos que, pelo realismo fotográfico, garantiriam o estatuto de verdade anunciado.A terceira e última postura ligada à concepção da fotografia como •a transformação do real remete a uma visão antropológica, cuja principal preocupação é apontar que o significado da mensagem fotográfica é convencionalizado culturalmente. Neste sentido, a recepção da fotografia e sua compreensão pressupõem uma certa aprendizagem, ligada à interação dos códigos de leitura próprios à imagem fotográfica.

O grande problema deste primeiro momento da crítica à imagem fotográfica apontado por Dubois é desconsiderar a realidade empírica que fundamenta os discursos imagéticos, operando, exclusivamente, sobre eles. Portanto, não haveria realidade fora dos discursos que a revelam.

Já a segunda postura crítica em relação ao realismo fotográfico ultrapassa os processos de desconstrução discursiva, retomando, em outro nível, a questão do referente, ou ainda, da materialidade da imagem fotográfica. O ponto de partida é compreender a natureza técnica do ato fotográfico, a sua característica de marca luminosa, daí a idéia de indício, de resíduo da realidade sensível impressa na imagem fotográfica. Em virtude deste princípio, a fotografia é considerada como testemunho: atesta a existência de uma realidade. Como corolário des-te momento de inscrição do mundo na superfície sensível, seguem-se as convenções e opções culturais historicamente realizadas.

Portanto, o segundo passo é compreender que entre o objeto e a sua representação fotográfica interpõe-se uma série de ações con-vencionalizadas, tanto cultural como historicamente. Afinal de contas, existe uma diferença bastante significativa entre uma carte-de-visite e um instantâneo fotográfico de hoje. Por fim, há que se considerar a fotografia como uma determinada escolha realizada num conjunto de escolhas possíveis, guardando esta atitude uma relação estreita com a visão de mundo daquele que aperta o botão e faz “clic”.

É justamente por considerar todos esses aspectos que as fo-tografias nos impressionam, nos comovem, nos incomodam, enfim, imprimem em nosso espírito sentimentos diferentes. Cotidianamente, consumimos imagens fotográficas de jornais e revistas que, com o seu poder de comunicação, tornam-se emblemas de acontecimentos, como aquela já famosa foto do bombeiro carregando o corpo inerte de uma criança no atentado do edifício em Oklahoma, em abril de

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aces 1995. A simples menção da foto já nos remete aos fatos e aos seus

resultados.Por outro lado, também faz parte da nossa prática de vida foto-

grafar nossos filhos, nossos momentos importantes e os não tão signi-ficativos. Um elenco de temas que vai desde os rituais de passagem até os fragmentos do dia-a-dia no crescimento das crianças. Apreciamos fotografias, as colecionamos, organizamos álbuns fotográficos, em que narrativas engendram memórias. Em ambos os casos é a marca da existência das pessoas conhecidas e dos fatos ocorridos que salta aos olhos e nos faz indicar na foto recém-chegada da revelação: “Olha só como ele cresceu!”.

Desde a sua descoberta até os dias de hoje, a fotografia vem acompanhando o mundo contemporâneo e registrando sua história numa linguagem de imagens. Uma história múltipla, constituída por grandes e pequenos eventos, personalidades mundiais e gente anô-nima, lugares distantes e exóticos e intimidade doméstica, sensibili-dades coletivas e ideologias oficiais. No entanto, a fotografia lança ao historiador um desafio: como chegar ao que não foi imediatamente revelado pelo olhar fotográfico? Como ultrapassar a superfície da mensagem fotográfica e, do mesmo modo que Alice nos espelhos, ver através da imagem?

história e iconografia, Problemas e soluções

Não é de hoje que a história proclamou sua independência dos textos escritos. A necessidade dos historiadores em problematizar temas pouco trabalhados pela historiografia tradicional levou-os a ampliar seu universo de fontes, bem como a desenvolver abordagens pouco convencionais, à medida que se aproximavam das demais ciên-cias sociais em busca de uma história total. Novos temas passaram a fazer parte do elenco de objetos do historiador, dentre eles, a vida privada, o cotidiano, as relações interpessoais etc. Uma micro-história que, para ser narrada, não necessita perder a dimensão macro, di-mensão social, totalizadora das relações sociais. Neste contexto, uma história social da família, da criança, do casamento, da morte etc. pas-sou a ser contada, demandando, para tanto, muito mais informações que os inventários, testamentos, curatela de menores, enfim, tudo o que uma documentação cartorial poderia oferecer. A tradição oral, os diários íntimos, a iconografia e a literatura apresentaram-se como fontes históricas da excelência das anteriores, mas que demandavam do historiador uma habilidade de interpretação com a qual não estava aparelhado. Tornava-se imprescindível que as antigas fronteiras e os

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limites tradicionais fossem superados. Exigiu-se do historiador que ele fosse também antropólogo, sociólogo, semiólogo e um excelente detetive, para aprender a relativizar, desvendar redes sociais, compre-ender linguagens, decodificar sistemas de signos e decifrar vestígios, sem perder, jamais, a visão do conjunto.

Michel Vovelle, na primeira parte de Ideologias e mentalidades, discute a relação entre iconografia e história das mentalidades, des-tacando a sua utilização por parte dos historiadores da Idade Média que – ao analisarem ex-votos, altares, estátuas etc. – buscaram tra-çar tanto uma geografia do sagrado como o perfil das sensibilidades coletivas no passado. Os problemas levantados por Vovelle (1987) convergem para uma única questão: “Pode-se, efetivamente, elaborar uma verdadeira semiologia da imagem?” (p. 93).

A esta pergunta o coro de respostas não é unívoco, muito me-nos consensual, e engloba propostas das mais diversas, que incluem o estudo do mito, o trabalho lingüístico, uma abordagem filosófica, a avaliação estética, a discussão sobre o tipo de mensagem que as iconografias transmitem, segundo a abordagem da comunicação, métodos quantitativos etc.

Neste âmbito, como no anterior, a diversidade converge para um ponto único: a questão da grade interpretativa. Que unidades com-poriam a grade de interpretação das imagens do passado? Mais uma vez, tal como no jogo infantil de encaixe, ao tirarmos uma caixa en-contramos outra. Cabem, portanto, as perguntas: como interpretar as imagens produzidas no passado? Qual a natureza da produção visual? Esta produção é invariável ou possui condicionantes históricos? Será a imagem das pinturas, dos desenhos, da estatuária sagrada, dos vitrais das capelas medievais, da mesma natureza que as imagens técnicas, a exemplo daquelas do cinema e da fotografia? Questões e mais questões que complicam e enriquecem o trabalho do historiador dedicado à análise de fontes não-verbais. Desta forma, como bem aponta Michel Vovelle, “as interrogações que hoje se colocam são antes uma prova de saúde do que de enfermidade” (1987, p. 102).

fotografia e história: aPontamentos Para uma abordagem transdisciPlinar

No que diz respeito à fotografia, alguns problemas merecem atenção especial. Problemas que envolvem tanto a natureza técnica da imagem fotográfica como o próprio ato de fotografar, apreciar e consumir fotografias, entendendo-se este processo como o circuito social da fotografia. Deve-se acrescentar ainda, é claro, o problema

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aces relativo à análise do conteúdo da mensagem fotográfica que envolve

questões específicas no que se refere aos elementos constitutivos desta mensagem: existe a possibilidade de segmentar o contínuo da imagem? Caso afirmativo, qual a natureza das unidades significantes que estruturam a mensagem fotográfica? Entendendo-se a fotografia como mensagem, quais os níveis que a individualizariam?

Para tentar solucionar este feixe de problemas há que se assumir uma proposta transdisciplinar. A aproximação da história da antropo-logia e da sociologia é bastante profícua. Em relação à antropologia, destacam-se algumas importantes contribuições, tais como: a abor-dagem antropológica do conceito de cultura; o estudo da dimensão simbólica das diversas práticas cotidianas; a análise da extensão ideal das práticas materiais etc.

Esse conjunto de questões deve estar associado a uma perspec-tiva sociológica que distingue, entre outros aspectos: a importância em considerar a dimensão de classe da produção simbólica, bem como o papel da ideologia, na composição de mensagens socialmente significativas, e da hegemonia como processo de disputa social que se estende à produção da imagem. Não se deve descartar também o fato de que a avaliação das redes sociais da fotografia envolve uma abordagem em que produtores e consumidores da imagem fotográfica possuem um “locus” social definido.

Tudo isso, aliado à necessidade de se analisar o conteúdo da mensagem fotográfica que demanda, por sua vez, conceitos de áreas de conhecimento, cujo diálogo não se faz com a mesma freqüência das anteriormente indicadas, compondo, assim, metodologias coordena-das, tais como uma abordagem histórico-semiótica da fotografia.

Nessa perspectiva, a fotografia é interpretada como resultado de um trabalho social de produção de sentido, pautado sobre códigos convencionalizados culturalmente. É uma mensagem, que se processa através do tempo, cujas unidades constituintes são culturais, mas as-sumem funções sígnicas diferenciadas, de acordo tanto com o contexto no qual a mensagem é veiculada, quanto com o local que ocupam no interior da própria mensagem (MAUAD, 1990). Estabelece-se, assim, não apenas uma relação sintagmática, na medida em que veicula um significado organizado, segundo as regras da produção de sentido nas linguagens não-verbais, mas também uma relação paradigmática, pois a representação final é sempre uma escolha realizada num conjunto de escolhas possíveis.

Portanto, ao redimensionar o papel da interpretação dos con-ceitos, conjugando uma série de disciplinas na elaboração da análise, a abordagem das mensagens visuais é transdisciplinar. Nesse sentido,

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se é a associação da história à antropologia ou à sociologia (ou às duas juntas) que indaga sobre as maneiras de ser e agir no passado, é a semiótica que oferece mecanismos para o desenvolvimento da análise. É ela que permite que se compreenda a produção de sentido, nas sociedades humanas, como uma totalidade para além da fragmen-tação habitual que a prática científica imprime.

Desta forma, para a análise das ideologias, mentalidades ou práticas culturais, a utilização de fontes não-verbais deve ter em pau-ta o imperativo metodológico, sugerido pelo historiador americano Robert Darnton: “Ao invés de confiar na intuição numa tentativa de invocar um vago clima de opinião, seria o caso de tomar pelo menos uma disciplina sólida dentro das ciências sociais e utilizá-la para rela-cionar a experiência mental com as realidades sociais e econômicas” (DARTON, 1990, p. 254).

fotografia como fonte histórica: leitura e interPretação

A fotografia é uma fonte histórica que demanda por parte do historiador um novo tipo de crítica. O testemunho é válido, não im-portando se o registro fotográfico foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida. No entanto, parafraseando Jacques Le Goff, há que se considerar a fotografia, simultaneamente, como imagem/ documento e como imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como índice, como marca de uma materiali-dade passada, na qual objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado – condições de vida, moda, infra-estrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo.

Tal perspectiva remete ao circuito social da fotografia (FABRIS, 1992, cap. 1) nos diferentes períodos de sua história, incluindo-se, nesta categoria, todo o processo de produção, circulação e consumo das imagens fotográficas. Só assim será possível restabelecer as con-dições de emissão e recepção da mensagem fotográfica, bem como as tensões sociais que envolveram a sua elaboração. Desta maneira, texto e contexto estarão contemplados.

Os textos visuais, inclusive a fotografia, são resultado de um jogo de expressão e conteúdo, que envolve, necessariamente, três componentes: o autor, o texto propriamente dito e um leitor (VILCHES,

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aces 1992). Cada um destes três elementos integra o resultado final, na

medida em que todo o produto cultural envolve um locus de produção e um produtor, que manipula técnicas e detém saberes específicos à sua atividade, um leitor ou destinatário, concebido como um sujeito transindividual cujas respostas estão diretamente ligadas às pro-gramações sociais de comportamento do contexto histórico no qual se insere, e, por fim, um significado aceito socialmente como válido, resultante do trabalho de investimento de sentido.

No caso da fotografia, é evidente o papel de autor imputado ao fotógrafo. Porém, há que se concebê-lo como uma categoria social, quer seja profissional autônomo, fotógrafo de imprensa, fotógrafo oficial ou um mero amador “batedor de chapas”. O grau de controle da técnica e das estéticas fotográficas variará na mesma proporção dos objetivos estabelecidos para a imagem final. Ainda assim, o con-trole de uma câmera fotográfica impõe uma competência mínima, por parte do autor, ligada fundamentalmente à manipulação de códigos convencionalizados social e historicamente para a produção de uma imagem possível de ser compreendida. No século XIX, este controle ficava restrito a um grupo seleto de fotógrafos profissionais que ma-nipulavam aparelhos pesados e tinham de produzir o seu próprio ma-terial de trabalho, inclusive a sensibilização de chapas de vidro. Com o desenvolvimento das indústrias ótica e química, ainda no final dos Oitocentos, ocorreu uma estandardização dos produtos fotográficos e uma compactação das câmeras, possibilitando uma ampliação do número de profissionais e usuários da fotografia. No início do século XX, já era possível contar com as indústrias Kodak e a máxima da fotografia amadora: “You press the botton, we do the rest”.

É importante levar em conta também que o controle dos meios técnicos de produção cultural envolve tanto aquele que detém o meio quanto o grupo ao qual ele serve, caso seja um fotógrafo profissional. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que o controle dos meios técnicos de produção cultural, até por volta da década de 1950, foi privilégio da classe dominante ou de frações desta.

Paralelamente ao processo de desenvolvimento tecnológico, o campo fotográfico foi sendo constituído a partir do estabelecimento de uma estética que incluía desde profissionais do retrato em busca da feição mais harmoniosa para seu cliente e o paisagista que buscava a nitidez da imagem e a amplitude de planos, até o fotógrafo amador-artista, geralmente ligado às associações fotoclubísticas, que defendia a fotografia como expressão artística, baseada nos mesmos cânones da pintura (por isso, não poupava a imagem fotográfica de uma inter-

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venção direta, tanto através do uso de filtros, quanto do retoque, entre outras técnicas). Técnica e estética eram competência do autor.

À competência do autor corresponde a do leitor, cuja exigência mínima é saber que uma fotografia é uma fotografia, ou seja, o supor-te material de uma imagem. Na verdade, é a competência de quem olha que fornece significados à imagem. Essa compreensão se dá a partir de regras culturais, que fornecem a garantia de que a leitura da imagem não se limite a um sujeito individual, mas que acima de tudo seja coletiva. A idéia de competência do leitor pressupõe que este mesmo leitor, na qualidade de destinatário da mensagem fotográfica, detenha uma série de saberes que envolvem outros textos sociais. A compreensão da imagem fotográfica, pelo leitor/destinatário, dá-se em dois níveis, a saber:

Nível interno à superfície do texto visual, originado a partir das •estruturas espaciais que constituem tal texto, de caráter não-verbal;Nível externo à superfície do texto visual, originado a partir de •aproximações e inferências a respeito dos mesmos. Nesse nível, podem-se descobrir temas conhecidos e inferir informações im-plícitas.

É importante destacar que a compreensão de textos visuais é tanto um ato conceitual (os níveis externo e interno encontram-se necessariamente em correspondência no processo de conhecimento) quanto um ato fundado numa pragmática, que pressupõe a aplicação de regras culturalmente aceitas como válidas e convencionalizadas na dinâmica social. Percepção e interpretação são faces de um mes-mo processo: o da educação do olhar. Existem regras de leitura dos textos visuais que são compartilhadas pela comunidade de leitores. Tais regras não são geradas espontaneamente; na verdade, resultam de uma disputa pelo significado adequado às representações cultu-rais. Sendo assim, sua aplicação por parte dos leitores/destinatários envolve, também, a situação de recepção dos textos visuais. Tal si-tuação varia historicamente, desde o veículo que suporta a imagem até a sua circulação e consumo, passando pelo controle dos meios técnicos de produção cultural, exercido por diferentes grupos que se enfrentam na dinâmica social. Portanto, se a cultura comunica, a ideologia estrutura a comunicação, e a hegemonia social faz com que a imagem da classe dominante predomine, erigindo-se como modelo para as demais.

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aces No caso da fotografia, os veículos incluem desde os tradicionais

álbuns de retrato até os bytes de uma imagem digitalizada, podendo a circulação limitar-se ao ambiente familiar ou ampliar seus caminhos navegando pela internet. Já a situação de consumo é direcionada para um destinatário, seja ele um apaixonado que guarda o retrato de sua amada como uma relíquia, seja um banco de memória que armazenará a imagem fotográfica, até que alguém acesse a informação e assuma o papel de leitor/destinatário.

Na qualidade de texto, que pressupõe competências para sua produção e leitura, a fotografia deve ser concebida como uma mensa-gem que se organiza a partir de dois segmentos: expressão e conteúdo. O primeiro envolve escolhas técnicas e estéticas, tais como enqua-dramento, iluminação, definição da imagem, contraste, cor etc. Já o segundo é determinado pelo conjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências que compõem a fotografia. Ambos os segmentos se corres-pondem no processo contínuo de produção de sentido na fotografia, sendo possível separá-los para fins de análise, mas compreendê-los somente como um todo integrado.

Historicamente, a fotografia compõe, juntamente com outros tipos de texto de caráter verbal e não-verbal, a textualidade de uma determinada época. Tal idéia implica a noção de intertextualidade para a compreensão ampla das maneiras de ser e agir de um determinado contexto histórico: na medida em que os textos históricos não são autônomos, necessitam de outros para sua interpretação. Da mesma forma, a fotografia – para ser utilizada como fonte histórica, ultrapas-sando seu mero aspecto ilustrativo – deve compor uma série extensa e homogênea no sentido de dar conta das semelhanças e diferenças próprias ao conjunto de imagens que se escolheu analisar. Nesse sentido, o corpus fotográfico pode ser organizado em função de um tema, tais como, a morte, a criança, o casamento etc., ou em função das diferentes agências de produção da imagem que competem nos processos de produção de sentido social, entre as quais estão a família, o Estado, a imprensa e a publicidade. Em ambos os casos, a análise histórica da mensagem fotográfica tem na noção de espaço a sua chave de leitura, posto que a própria fotografia é um recorte espacial que contém outros espaços que a determinam e estruturam, como, por exemplo, o espaço geográfico, o espaço dos objetos (interiores, exteriores e pessoais), o espaço da figuração e o espaço das vivências, comportamentos e representações sociais.

Do ponto de vista temporal, a imagem fotográfica permite a presentificação do passado, como uma mensagem que se processa através do tempo, colocando, por conseguinte, um novo problema

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ao historiador que, além de lidar com as competências acima refe-ridas, deve lidar com a sua própria competência, na situação de um leitor de imagens do passado. Retomamos, neste ponto, a pergunta anterior: como olhar através das imagens? Por tudo que já foi dito, considerando-se a fotografia como uma fonte histórica que demanda um novo tipo de crítica, uma nova postura teórica de caráter trans-disciplinar, algumas pistas para responder tal questão já foram dadas. Resta, no entanto, indicar, nesta cadeia de temporalidades, qual o locus interpretativo do historiador.

Já foi dito que as imagens são históricas, que dependem das variáveis técnicas e estéticas do contexto histórico que as produziram e das diferentes visões de mundo que concorrem no jogo das relações sociais. Nesse sentido, as fotografias guardam, na sua superfície sen-sível, a marca indefectível do passado que as produziu e consumiu. Um dia, já foi memória presente, próxima àqueles que as possuíam, as guardavam e colecionavam como relíquias, lembranças ou teste-munhos. No processo de constante vir a ser, recuperam o seu caráter de presença, num novo lugar, num outro contexto e com uma função diferente. Da mesma forma que seus antigos donos, o historiador entra em contato com este presente/passado e investe nele sentido, um sentido diverso daquele dado pelos contemporâneos da imagem, mas próprio da problemática a ser estudada. Aí reside a competên-cia daquele que analisa imagens do passado: no problema proposto e na construção do objeto de estudo. A imagem não fala por si só; é necessário que as perguntas sejam feitas.

olhando através da imagem

Todas estas reflexões inspiraram a elaboração de uma aborda-gem histórico-semiótica que, sem a pretensão de ser definitiva, vem sendo aplicada, com sucesso, em diferentes tipos de fotografias.

As imagens fotográficas foram utilizadas como a principal fonte histórica em diversas situações: fotografias da Guerra de Canudos, produzidas e organizadas pelo Exército em um álbum representativo da memória da vitória e de uma certa versão de história; as imagens fotográficas das revistas ilustradas de crítica de costumes da primeira metade do século XX, que avaliam o tipo de educação do olhar que elas imprimiam em seus leitores; a construção do outro nas foto-grafias de escravos; os álbuns de família dos séculos XIX e XX, que ensejam penetrar na privacidade da memória através dos retalhos do cotidiano neles contidos; as fotografias oficiais, que permitem a construção da representação simbólica do poder político. Em todos

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aces estes estudos, foi utilizada uma metodologia histórico-semiótica na

análise de imagens fotográficas, cujos princípios básicos compõem a exposição que se segue.

A fotografia deve ser considerada como produto cultural, fruto de trabalho social de produção sígnica. Neste sentido, toda a produ-ção da mensagem fotográfica está associada aos meios técnicos de produção cultural. Dentro desta perspectiva, a fotografia pode, por um lado, contribuir para a veiculação de novos comportamentos e representações da classe que possui o controle de tais meios, e por outro, atuar como eficiente meio de controle social, através da edu-cação do olhar.

Partindo-se desta premissa, a fotografia não é apenas docu-mento, mas também, monumento e, como toda a fonte histórica, deve passar pelos trâmites das críticas externa e interna para, depois, ser organizada em séries fotográficas, obedecendo a uma certa cronologia. Tais séries devem ser extensas, capazes de dar conta de um universo significativo de imagens, e homogêneas, posto que numa mesma série fotográfica há que se observar um critério de seleção, evitando-se misturar diferentes tipos de fotografia (por exemplo, pode-se trabalhar com álbuns de família e revistas ilustradas para recuperar os códigos de representações sociais e programações de comportamento de uma certa classe social, num dado período histórico; no entanto, cada tipo de fotografia compõe uma série que deve ser trabalhada separada-mente). Feito isso, parte-se para a análise do material.

O primeiro passo é entender que, numa dada sociedade, coe-xistem e se articulam múltiplos códigos e níveis de codificação, que fornecem significado ao universo cultural dessa mesma sociedade. Os códigos são elaborados na prática social e não devem ser considerados como entidades a-históricas.

O segundo passo é conceber a fotografia como resultado de um processo de construção de sentido. A fotografia, assim concebida, revela-nos, através do estudo da produção da imagem, uma pista para se chegar ao que não está aparente ao primeiro olhar, mas que concede sentido social à foto.

A fotografia comunica por meio de mensagens não-verbais, cujo signo constitutivo é a imagem. Portanto, sendo a produção da imagem um trabalho humano de comunicação, pauta-se, enquanto tal, em códigos convencionalizados socialmente, possuindo um caráter conotativo que remete às formas de ser e agir do contexto no qual estão inseridas como mensagens.

O terceiro passo é perceber que a relação acima proposta não é automática, posto que entre o sujeito que olha e a imagem que elabo-

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ra existe todo um processo de investimento de sentido que deve ser avaliado. Portanto, para se ultrapassar o mero analogon da realidade, tal como a fotografia é concebida pelo senso comum, há que se aten-tar para alguns pontos. O primeiro deles diz respeito à relação entre signo e imagem. Normalmente caracteriza-se a imagem como algo “natural”, ou seja, algo inerente à própria natureza, e o signo, como uma representação simbólica. Tal distinção é um falso problema para a análise semiótica, tendo em vista que a imagem pode ser concebida como um texto icônico que antes de depender de um código é algo que institui um código. Neste sentido, no contexto da mensagem veiculada, a imagem – ao assumir o lugar de um objeto, de um acontecimento ou ainda de um sentimento – incorpora funções sígnicas.

Um segundo ponto remete à imagem fotográfica enquanto mensagem, estruturada a partir de uma dupla referência: a si mesma (como escolha efetivamente realizada) e àquele conjunto de escolhas possíveis, não efetuadas, que se acham em relação de equivalência ou oposição com as escolhas efetuadas. Dito em outras palavras, deve-se compreender a fotografia como uma escolha efetuada em um conjunto de escolhas então possíveis.

Finalmente, o terceiro ponto concerne à relação entre o plano do conteúdo e o plano da expressão. Enquanto o primeiro leva em consi-deração a relação dos elementos da fotografia com o contexto no qual se insere, remetendo-se ao corte temático e temporal feitos, o segundo pressupõe a compreensão das opções técnicas e estéticas, as quais, por sua vez, envolvem um aprendizado historicamente determinado que, como toda a pedagogia, é pleno de sentido social.

A partir destes três pontos, foram organizadas duas fichas de análise no intuito de decompor a imagem fotográfica em unidades culturais, guardando a devida distinção entre forma do conteúdo e forma da expressão.

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aces Ficha de elementos da forma do conteúdo

Tabela 1Agência ProdutoraAnoLocal retratadoTema retratadoPessoas retratadasObjetos retratadosAtributo das pessoasAtributo da paisagemTempo retratado (dia/noite)No da foto

Ficha de elementos da forma da expressão Tabela 2

Agência produtoraAno

Tamanho da foto

Formato da foto e suporte (relação com o texto escrito)

Tipo de foto

Enquadramento I: sentido da foto (horizontal ou vertical)

Enquadramento II: direção da foto (esquerda, direita, centro)

Enquadramento III: distribuição de planos

Enquadramento IV: objeto central (arranjo e equilíbrio)

Nitidez I: foco

Nitidez II: impressão visual (definição de linhas)

Nitidez III: iluminação

Produtor: amador ou profis-sional

No da foto

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Cada um dos campos das duas fichas deverá ser preenchido de acordo com os itens presentes nas fotografias, concebidos como unidades culturais. O conceito de unidade cultural, sob o ângulo se-miótico, é assim apresentado por Umberto Eco:

Uma unidade é simplesmente toda e qualquer coisa culturalmen-te definida e individuada como entidade. Pode ser pessoa, lugar, coisa, sentimento, estado de coisas, pressentimento, fantasia, alucinação, esperança ou idéia [...] uma unidade cultural pode ser definida semioticamente como unidade semântica inserida num sistema. [...] Reconhecer a presença dessas unidades cul-turais (que são, portanto, os significados que o código faz cor-responder ao sistema de significantes) significa compreender a linguagem como fenômeno social. (ECO, 1974, p. 16)

Feito isso, tais unidades culturais serão realocadas em catego-rias espaciais, estabelecidas para a estruturação final da análise, a saber:

Espaço fotográfico: compreende o recorte espacial processado pela •fotografia, incluindo a natureza deste espaço, como se organiza, que tipo de controle pode ser exercido na sua composição e a quem este espaço está vinculado – fotógrafo amador ou profissional –, bem como os recursos técnicos colocados à sua disposição. Nes-ta categoria, estão sendo considerados as informações relativas à história da técnica fotográfica e os itens contidos no plano da expressão – tamanho, enquadramento, nitidez e produtor –, que consubstanciam a forma da expressão fotográfica.Espaço geográfico: compreende o espaço físico representado na •fotografia, caracterizado pelos lugares fotografados e a trajetória de mudanças ao longo do período que a série cobre. Tal espaço não é homogêneo, mas marcado por oposições, como campo/cidade, fundo artificial/natural, espaço interno/externo, público/privado etc. Nesta categoria, estão incluídos os seguintes itens: ano, local retratado, atributos da paisagem, objetos, tamanho, enquadramento, nitidez e produtor.Espaço do objeto: compreende os objetos fotografados tomados •como atributos da imagem fotográfica. Analisa-se, nesta categoria, a lógica existente na representação dos objetos, sua relação com a experiência vivida e com o espaço construído. Neste sentido, estabeleceu-se uma tipologia básica constituída por três elemen-tos: objetos interiores, objetos exteriores e objetos pessoais. Na

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composição do espaço do objeto, estão incluídos os itens: tema, objetos, atributo das pessoas, atributo da paisagem, tamanho e enquadramento.Espaço da figuração: compreende as pessoas e animais retrata-•dos, a natureza do espaço (feminino/masculino, infantil/adulto), a hierarquia das figuras e seus atributos, incluindo-se aí o gesto. Tal categoria é formada pelos itens: pessoas retratadas, atributos da figuração, tamanho, enquadramento e nitidez.Espaço da vivência (ou evento): nela estão circunscritas as ativida-•des, vivências e eventos que se tornam objeto do ato fotográfico. O espaço da vivência é concebido como uma categoria sintética, por incluir todos os espaços anteriores e por ser estruturado a partir de todas as unidades culturais. É a própria síntese do ato fotográfi-co, superando em muito o tema, na medida em que, ao incorporar a idéia de performance, ressalta a importância do movimento, mesmo em imagens fixas. Ou, para utilizar-se a terminologia do fotógrafo francês Henry Cartier-Bresson, trata-se do movimento de quem posa ou é flagrado por um instantâneo e do movimento de quem monta a cena ou capta o “momento decisivo”.

Pelo exposto, fica patente que a mesma unidade cultural pode estar presente em diferentes campos espaciais e que tais campos não são estanques. Na verdade, eles possuem interseções, na medida em que representam reconstruções de realidades sociais. Daí os campos espaciais permitirem o restabelecimento dos códigos de representa-ção social de comportamento, no seu marco de historicidade.

Vários autores – dentre os quais o já citado Umberto Eco, a artista plástica e teórica da arte Fayga Ostrower (1988, 1989), e a his-toriadora Miriam Moreira Leite, que há muito reflete sobre a utilização da fotografia como fonte histórica – são unânimes na escolha da noção de espaço como chave de leitura das mensagens visuais devido à natureza deste tipo de texto. Vale a referência ao trabalho de Míriam Moreira Leite, pela dimensão histórica que tal escolha assume:

Chegou-se à conclusão de que a noção de espaço é a que do-mina as imagens fotográficas explícitas. Não apenas as duas dimensões em que a imagem representa as três dimensões do que comunica. Mas toda captação da mensagem manifesta se dá através de arranjos espaciais. A fotografia é uma redução, um arranjo cultural e ideológico do espaço geográfico, num determinado instante. (LEITE, 1993, p. 19)

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Por fim, a minha própria experiência vem demonstrando que, a cada novo tipo de fotografia e objeto a ser estudado a partir da imagem fotográfica, o pesquisador vê-se obrigado a atualizar o método de aná-lise e adequá-lo à sua matéria significante, guardando os imperativos metodológicos apresentados. Nesse sentido, é sempre importante lembrar que toda metodologia, longe de ser um receituário estrito, aproxima-se mais a uma receita de bolo, na qual cada mestre-cuca adiciona um ingrediente a seu gosto.

conclusão

Nunca ficamos passivos diante de uma fotografia: ela incita nossa imaginação, faz-nos pensar sobre o passado, a partir do dado de materialidade que persiste na imagem. Um indício, um fantasma, talvez uma ilusão que, em certo momento da história, deixou sua marca registrada numa superfície sensível, da mesma forma que as marcas do sol no corpo bronzeado, como lembrou Dubois (1992 p. 55). Num determinado momento, o sol existiu sobre aquela pele; num determi-nado momento, um certo aquilo existiu diante da objetiva fotográfica, diante do olhar do fotógrafo, e isto é impossível negar.

Discute-se a possibilidade de a imagem fotográfica mentir. A revolução digital provocada pelos avanços da informática torna cada vez maior esta possibilidade, permitindo até que os mortos ressurjam para tomar mais um chope, tal como a publicidade já mostrou. Não importa se a imagem mente, o importante é saber por que mentiu e como mentiu. O desenvolvimento dos recursos tecnológicos deman-da do historiador uma nova crítica que envolva o conhecimento das tecnologias feitas para mentir.

Toda imagem é histórica. O marco de sua produção e o momento de sua execução estão indefectivelmente decalcados nas superfícies da foto, do quadro, da escultura, da fachada do edifício. A história embrenha as imagens, nas opções realizadas por quem escolhe uma expressão e um conteúdo, compondo, através de signos de natureza não-verbal, objetos de civilização, significados de cultura.

O estudo das imagens, como bem ensinou Panofsky (1991) no seu método iconológico, impõe o estudo da historicidade desta ima-gem. O objetivo central deste texto, embora sem seguir uma linha ico-nológica, foi refletir sobre a dimensão histórica da imagem fotográfica e as possibilidades efetivas de utilizá-la na composição de um certo conhecimento sobre o passado. O caminho proposto é também uma escolha, num conjunto de reflexões possíveis.

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caPítulo 2

história e semiótica: sobre o conceito de intertextualidade na análise de fontes de memória

Em um artigo já clássico, intitulado “Imagens através de pala-vras”, a historiadora Miriam Moreira Leite (1993) discute a relação entre palavra e imagem, a partir de um questionamento simples: “Uma imagem vale mais de mil palavras?”. Egressa do senso comum, a simplicidade de tal pergunta não se sustenta numa abordagem mais crítica da relação entre palavra e imagem. Isto porque palavra e ima-gem cumprem duas funções diferentes no processo de comunicação e de construção de memórias coletivas.

No âmbito da comunicação verbal e não-verbal, a diferença im-posta referenda-se no modelo da lingüística estruturalista que imputa à língua natural a função de estrutura modelizante de todas as lingua-gens, verbais e não-verbais. Neste sentido, a estrutura comunicativa composta por imagens ficaria sujeita às regras da palavra, sendo, por conseguinte, dependente desta. Em última instância, todo processo de decodificação, interpretação, ou leitura de imagens se processaria via a tradução para a linguagem verbal. De acordo com este pressuposto, ao vermos uma imagem, imediatamente a traduzimos em palavras.

No entanto, tal argumento não se sustenta diante das pesquisas ligadas tanto à psicologia da percepção, quanto à semiótica dos sis-temas não-verbais, que incluem desde os processos de comunicação entre os animais até os objetos da cultura material, ampliando-se o universo de produção de sentido social para além do que a palavra possa traduzir. Portanto, para se operar legitimamente com a relação entre palavras e imagens, há que se romper com a lógica da dependên-cia e pensar ambas as formas comunicativas como textos autônomos que se entrecruzam na construção da textualidade de uma época.

Do ponto de vista da construção das memórias coletivas, pa-lavras e imagens1 também podem ser trabalhadas de forma coope-rativa, pela natureza distinta do suporte que veicula os significados engendrados por tais memórias. A palavra pode ser emitida por um discurso oral ou por um texto escrito, o grau de controle racional do sujeito sobre o produto final de cada um destes dois tipos de discurso variará em função:

1 Utilizo-me do conceito imagem limitando-o às imagens visuais (bidimensionais e tridimensionais), excluindo as imagens oníricas, pensamentos e imagens literá-rias.

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Das condições de enunciação do discurso verbal (narrativa bio-1. gráfica, entrevista, discurso público etc.);Das possibilidades de recepção (diálogo, público amplo identifi-2. cado, público amplo desidentificado etc.);Do local de emissão do discurso (âmbito privado, doméstico, 3. âmbito público institucional, rua etc.);Do objeto discursivo (temas específicos, rememoração espontânea, 4. entrevista preparada em torno de um problema prévio etc.);Do registro do discurso (ao vivo, gravado em videocassete, em 5. fita cassete, transcrito etc.).

Todos estes elementos interferem no contexto de interpretação das palavras, organizadas em discursos concebidos como textos.

A imagem, por sua vez, apresenta também variáveis semelhan-tes, ligadas a uma forma de expressão que se utiliza fundamentalmente do signo visual. Neste caso, o resultado dos investimentos de sentido com base em imagens variará de acordo com:

O tipo de dispositivo (fotográfico, fílmico, plástico, digital);1. A relação entre sujeitos (produtor e consumidor de imagens);2. A relação entre tempos (produção, circulação e consumo de 3. imagens);O tipo de estoque (álbuns de família, memória RAM, caixas de 4. sapato, arquivos públicos, arquivos particulares etc.);Os objetos da imagem (fragmentos cotidianos, narrativa ficcional, 5. função comprobatória, notícias públicas etc.).

Tais variáveis devem ser consideradas no processo de interpre-tação dos textos visuais, no marco das sociedades históricas.

Os textos verbais e não-verbais, considerados a partir dos aspectos acima relacionados, devem ser dimensionados na sua inter-relação, ainda que:

Estudar conjuntamente aqueles dois aspectos fundamentais da atividade humana significa recusar admitir que o verbal e o não-verbal constituem dois domínios independentes. A produção e o uso de palavras de mensagens verbais sem a produção e o uso concomitante de objetos sígnicos não-verbais simplesmente não existem [...] ambos constituem as duas maneiras fundamentais de objetivação e da comunicação humanas. Abaixo dessas maneiras não se pode descer sem que o discurso cesse de ter o homem como seu objeto. (Rossi-Landi, 1985, p.127)

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Neste sentido, ambas as formas comunicativas podem ser compreendidas a partir de uma abordagem histórico-semiótica, cujo objetivo fundamental é “o estudo dos fenômenos sociais sujeitos a mutações e reestruturações” (Eco, 1980, p. 22).

semiótica e história, alguns esclarecimentos

A lição dos Annales e dos recentes trabalhos em História Cultural nos apontam o caminho da transdisciplinaridade como o mais corrente para o historiador que trabalhe com fontes pouco tradicionais. Mesmo aqueles afeitos aos documentos notariais, tais como inventários, censos, curatelas etc., buscam ler nas entrelinhas do entrançado social que sustenta a legislação, reeducando seu olhar para avaliar a dimensão de alteridade do passado.

Desde a parceira mais antiga, a sociologia, até as bem pouco comuns, como a semiótica, a história vem reavaliando seu estatuto como forma de conhecimento. Neste sentido, a escolha de uma disci-plina oriunda da lógica deve apresentar algum atrativo ao historiador. Sem dúvida, Umberto Eco, a partir da definição acima exposta, cria atrativos bastante interessantes àqueles interessados em compreender os fenômenos históricos segundo a lógica dos processos de produção de sentido social, tanto das práticas quanto das representações. Vale a reflexão de Eco:

A pesquisa semiótica será guiada por uma espécie de princípio

de indeterminação: uma vez que significar e comunicar são

funções sociais que determinam a organização e a evolução

cultural, “falar” dos “atos” de palavra, significar a significação

ou comunicar a respeito da comunicação não pode deixar de

influenciar o universo do falar, do significar, do comunicar.

(Eco, 1980, p. 22)

Continua, rejeitando a suposta neutralidade científica e desta-cando quais seriam as motivações da pesquisa:

Quem quer conhecer algo o faz para fazer alguma coisa. Se

afirmar desejar conhecer pelo puro prazer de conhecer (e não

para fazer), isto significa que ele quer conhecer para não fazer

nada, o que representa uma forma sub-reptícia de fazer algo,

isto é, deixar as coisas como estão. (Eco, 1980, p. 22)

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Conclui, identificando na semiótica um projeto teórico que, ao explicar como e por que as pessoas se comunicam, num determinado tempo, acaba por indicar as maneiras e as razões pelas quais proce-derão no futuro. Para Eco, o projeto da semiótica é revolucionário, já que reúne teoria e prática.

Alguns anos atrás (1995), Eco foi tema do suplemento Mais! do jornal Folha de S. Paulo. Em meio ao conjunto de artigos sobre o autor, publicou-se uma entrevista, em que o próprio Eco revia a tendência imperialista da semiótica e sua vocação para o pansemioticismo, ou seja, todos os fenômenos sociais se reduziriam às produções sim-bólicas e às convenções. Projeto megalômano de viés idealista que reduziria todos os fenômenos sociais a fenômenos do espírito, quando sabemos que a dinâmica social é bem mais complexa.

O movimento dos sem-terra, por exemplo, não disputa a terra por uma simples vocação política. Aliás, tal vocação provém de uma necessidade concreta: o acesso à terra para sobreviver, alimentar os filhos e reproduzir a vida. A reflexão sobre o processo de produção de representações associadas a este movimento, que envolve exemplos como: a música composta pelo Chico Buarque, o texto de Saramago, as fotos do Sebastião Salgado, a premiação do líder do MST pelo go-verno belga, a rejeição do governo brasileiro a dialogar, a violência física etc., não deve perder de vista o pressuposto de materialidade fundamental: o acesso à terra. Caso contrário, perde-se mesmo a legitimidade ideológica do processo.

Esta digressão foi feita propositadamente para pensarmos no marco das sociedades históricas e suas problemáticas. Qual é o projeto semiótico a ser proposto?

Tendo a compreender a semiótica muito mais como uma meto-dologia adequada ao estudo de uma história cultural preocupada com a análise dos comportamentos sociais e das representações a estes re-lacionadas do que como um campo teórico autônomo. Ela nos oferece um raciocínio lógico, uma forma de interpretar os fenômenos sociais com base em categorias que recompõem estruturas significativas. Tal procedimento valoriza tanto a dimensão processual, propriamente histórica, visto que o processo de produção de sentido é contínuo e contextual, como também o papel ativo dos sujeitos históricos:

A semiótica deve definir o sujeito da semiose através de cate-gorias semióticas. A semiótica possui o seu sujeito (no duplo sentido, argumento e protagonista): a semiose. A semiose é o processo pelo qual os indivíduos empíricos comunicam, e os processos de comunicação são tornados possíveis pelos siste-

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mas de significação (códigos) [...] Se se aceita criticamente este seu limite metodológico, a semiótica escapa do risco idealista. Em vez disso, inverte-o: reconhece como sujeito verificável único do seu discurso a existência social do universo da signi-ficação, tal como ela é exibida pela verificabilidade física dos interpretantes, que são, e deve-se insistir nesse ponto pela última vez, expressões materiais. (Idem, p. 257-258)

Portanto, a relação entre história e semiótica se processa no marco dos estudos dos processos de produção de sentido social, considerando-os a partir das práticas e representações dos sujeitos históricos. Sendo que tal processo traduz-se, via de regra, em produtos textuais fundamentais na composição de textualidades e contextos.

sobre a noção de intertextualidade

Texto, contextos, sentido são noções que pressupõem a dis-cussão sobre o quadro de referência no qual se tornam inteligíveis como categorias analíticas. Sem dúvida, tal quadro referencial é a própria cultura, compreendida como categoria semiótica. Nesta perspectiva, cultura é comunicação, é informação, enfim, o resultado de uma prática social criativa. É fundamental ter-se em conta que a cultura, ao realizar-se no dia-a-dia, coloca em funcionamento uma série de códigos que permitem expressar esta “realidade diária”, através de objetos, pensamentos, comportamentos, palavras, etc., que assumem funções sígnicas variadas no processo de semiose social. O sociólogo italiano Rossi-Landi é claro na sua avaliação da cultura como categoria semiótica:

[...] nós continuamente “dizemos coisas” mesmo não verbal-mente, comunicamos pensamentos e sentimentos ou mesmo apenas reações e atitudes inconscientes pela “linguagem de nosso comportamento”. Isso ocorre de modo diferente dentro de cada cultura. Neste sentido, cada cultura é uma vasta orga-nização comunicativa distinta de todas as outras, uma espécie de “enorme língua histórica” [...] sendo que a instituição dos quadros comunicativos se faz sempre através da instituição de sistemas sígnicos. (ROSSI-LANDI, 1985, p.110-111)

A cultura como uma enorme “língua histórica” pressupõe a existência de regras de ordenamento dos significados, sem as quais

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o ato de comunicar e significar não se processaria. Portanto, cultura pressupõe códigos que, por sua vez, criam condições a partir das quais objetos, comportamentos e sentimentos assumem funções sígnicas. De acordo com Eco, “há signo toda vez que um grupo humano decide usar algo como veículo de outra coisa” (Eco, 1980, p. 11).

No processo de semiose social, compreendida pela dinâmica social de investimento de sentido, existem condições fundamentais para que o ato comunicativo se realize. A produção de textos é uma delas. No entanto, qual a diferença entre signo e texto? O signo não existe como entidade em si mesmo, possui uma natureza relacional e dinâmica, daí tal noção ter sido atualizada para função sígnica, a partir das reflexões do filósofo da linguagem Louis Hjelmslev (1975). A expressão da dinâmica de produção sígnica inerente aos processos de significação das realidades sociais se faz através de textos de di-ferentes tipos, tanto verbais quanto não-verbais.

O texto é considerado uma unidade macroscópica do processo comunicativo (VILCHES, 1992, cap. 2). Do ponto de vista de uma abor-dagem semiótica, o texto é um conceito misto, porque, além de ser um sistema de significação, é também uma realização comunicativa. Neste sentido, há que se considerar as condições de sua produção, ou seja: as circunstâncias de sua emissão, a posição do enunciador, os canais de emissão etc., elementos destacados pela gramática gerativa do texto desenvolvida por Noam Chomsky (1975).

A partir de tais elementos – veículos da significação –, o texto pode ser considerado como mensagem, elemento importante no pro-cesso comunicativo. Sobre isso, Eco nos esclarece: “[...] usualmente um único significante veicula conteúdos diversos e interligados e, portanto, aquilo que se chama ‘mensagem’ constitui, o mais das ve-zes, um texto cujo conteúdo é um discurso em vários níveis” (Eco, 1980, p. 48).

Um texto seria então o resultado da coexistência de vários có-digos e subcódigos, sendo o texto a escritura que produz a expressão oral. Para o semioticista espanhol Lorenzo Vilches, os textos devem ser compreendidos na sua dimensão plural, na condição de uma série, daí a possibilidade de se considerar a fotografia, o cinema, a arquite-tura etc. como textos. Tal pluralidade é a condição necessária para se operar com a noção de intertextualidade, pela qual a análise textual é compreendida como uma prática social realizada sobre outra prática social, num processo continuado (VILCHES, 1992, p. 32).

Vilches, seguindo a senda aberta por Eco e Verón, elabora a noção de intertextualidade a partir da semanálise de Julia Kristeva e da semiologia de Christian Metz. Segundo tal noção, só é possível

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interpretar um texto a partir de uma série de textos precedentes, neste processo o receptor da mensagem a interpreta, atualizando o significado emitido a partir de sua competência de receptor. Tal com-petência pressupõe uma experiência sociocultural, na qual os sujeitos históricos interagem na produção de variados textos sociais. Daí Kristeva empregar a noção de “trabalho” sobre o texto para explicar o processo de semanálise:

Transformando la materia de la lengua (su organización lógica y gramatical), y llevando, allí, la relación de las fuerzas sociales desde el escenario histórico (en sus significados regulados por el pasaje del sujeto del enunciado comunicado) el texto, se liga – se lee –, doblemente, con relación a lo real: a la lengua ... a la sociedad. (KRisTEVa, 1978, p. 10)

Eco ressalta a existência de uma relação intertextual pouco tra-balhada que se relaciona aos textos que integram os discursos, sem, no entanto, estarem aparentes em sua superfície, tais como: croquis, projetos de arquitetura, roteiros de entrevistas etc. Para este autor, a análise deste material é de fundamental importância, pois:

oferece-nos esclarecimentos fundamentais sobre o processo de produção e sobre a leitura do discurso no nível da recepção. Estes discursos ocultos desempenham um papel fundamental na produção de certos objetos discursivos e, em tal sentido, constituem lugar privilegiado onde transparecem certos mecanismos ideológicos que funcionam na produção. (Eco, 1980, p. 122)

Portanto, na condição de noção operativa sobre práticas discur-sivas, a intertextualidade possibilita uma reflexão mais aprofundada sobre o processo de produção de sentido dos relatos orais bem como da imagem visual. Ambos concebidos como fontes de memória.

conclusão

Fala-se muito hoje em dia de crise, do advento de um pós-modernismo que dissolve o sujeito numa história sem face. Por outro lado, fala-se também da renovação dos métodos da história, de novos objetos e novas abordagens, que definitivamente se consolidam no Brasil. Entre o dito e o feito existe ainda uma grande distância, cabe-nos diminuí-la em nossa prática acadêmica cotidiana. Para tanto, a

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aproximação com as demais disciplinas das ciências sociais é quase um imperativo. A opção apresentada neste texto deve ser entendida, não no quadro de um modelo teórico que reduz todos os fenômenos sociais a sua dimensão de convenção cultural, num relativismo irra-cionalista, mas no contexto de um paradigma semiótico ou indiciário que não perde a dimensão material das representações simbólicas. Fica, portanto, a título de conclusão, a importante reflexão de Rossi-Landi:

Uma semiótica retamente entendida pretende formar parte de uma ciência global do homem e de suas relações com o resto do mundo. Sua importância decisiva para a desmistificação ideológica e para a teoria da ação política reside no fato de que todas as operações da prática social, em sua mesma essência, são operações sígnicas. [...] Isto não quer dizer que a realidade social fundada sobre a necessidade, o trabalho e exploração se esgote nos sistemas de signos. Quer dizer, sim, que o conteúdo de tais sistemas são sociais. O conhecimento desses sistemas de signos que precisamente a ciência da semiótica reúne sob tal denominação é, portanto, necessário para operar sobre a realidade, especialmente em uma situação de altíssimo nível de elaboração sígnica reacionária, como da sociedade neoca-pitalista ocidental. (ROSSI-LANDI, 1985, p. 208)

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caPítulo 3

Passado comPosto: fotografia e memória

Gosto de tirar fotografias, gosto herdado de meu avô paterno, que registrou em imagens uma boa parte da nossa trajetória familiar. Desde pequena acostumei-me a posar para fotos e a esperar ansiosa-mente a sua revelação. Aos poucos se revelavam momentos vividos em formas monocromáticas que, com o tempo, foram ganhando cor e diversidade de formatos e texturas.

Depois de crescida, o interesse pela fotografia ampliou-se, inclusive para tarefas mais sérias, mas continuei fotografando e or-ganizando álbuns em que podíamos acompanhar o nascimento dos filhos, as viagens de férias, as variadas comemorações, os passeios matinais, retalhos do cotidiano que eram costurados, de tempos em tempos, pela apreciação conjunta das imagens. Sentados com os ál-buns sobre as pernas, recontávamos as histórias nas quais fomos os principais personagens.

Por ocasião do nascimento do meu terceiro filho, mais uma vez, repetimos o ritual de descer os álbuns das prateleiras e, começando pelo primeiro, com as fotos mais antigas, recontar a nossa breve história. Nesse hábito de ver e rememorar se inscrevem duas ativida-des complementares, nas quais palavras e imagens atualizam como memória a experiência vivida.

O interessante é constatar como este hábito tão pessoal e fami-liar é compartilhado por diferentes famílias de lugares e procedências sociais variadas. Na minha própria família, meu pai, imigrante portu-guês, era o encarregado do ato fotográfico. Atualmente, o responsável pela atividade fotográfica familiar é o Alejandro, que veio do Chile anos atrás, e trouxe com ele a sua máquina fotográfica.

O ato fotográfico arraigou-se de maneira tal na construção das memórias familiares, na sociedade ocidental, que é impossível falar sobre o passado sem ter como incentivo de rememoração as imagens fotográficas. Uma atividade que estabeleceu responsabilidades em relação à preservação do passado, criando a figura do guardião de memórias. Esse personagem, além de organizar as fotografias em álbuns, ou simplesmente guardá-las em caixas, é o depositário de muitas histórias.

A idéia deste texto é refletir sobre a relação entre imagens e palavras na construção das narrativas históricas pautadas no ato de rememorar.

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O entrecruzamento de imagens fotográficas e narrativas de tra-jetórias de vida permite a atualização de memórias e, por conseguinte, da imagem que aquele grupo quis perenizar para todo o sempre. A fotografia, devido ao seu caráter técnico, é o estatuto de uma verda-de anunciada e conclamada a ser preservada da ação do tempo, nos álbuns de família, ao mesmo tempo que confirma o relato de vida. Por outro lado, estes mesmos relatos fornecem elementos para que tais imagens possam ser devidamente lidas e interpretadas.

Materiais da memória coletiva, os documentos são monumentos, na medida em que para além da simples descrição traduzem valores, idéias, tradições e comportamentos que permitem tanto recuperar formas de ser e agir dos diferentes grupos sociais, em diversas épocas históricas, como também operar sobre as representações que deles ainda hoje perduram e atuam como elemento de coesão social para seus descendentes (LE GOFF, 1985).

A memória possui um papel específico na coesão social da família que a constrói e transmite, uma memória que, ao definir o que é comum ao grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sociocultu-rais. Geralmente tal coesão é realizada pela adesão do grupo a uma “comunidade afetiva”, criada a partir de um processo de conciliação entre memória individual e coletiva, alcançada através da preservação de determinadas lembranças narradas de geração em geração, de objetos preciosos e das próprias fotografias familiares.

Longe de ser o somatório de memórias individuais, a memória coletiva é, justamente, a reconstrução de narrativas individuais a partir de um enquadramento coletivo, guardando os determinantes temporais e espaciais como elementos fundamentais em tal processo. Desta forma, entende-se por memória coletiva o passado que se per-petuou e ainda vive na consciência coletiva. A base comum das me-mórias individuais é consubstanciada por uma compreensão comum dos símbolos e significados, transmitidos pelos objetos de memória e pelas noções de comunhão que os membros do grupo familiar compar-tilham ao se reconhecerem em tradições e valores socialmente aceitos como válidos. Acrescida pelo sentimento de realidade transmitido pela caracterização espaço-temporal das lembranças, sentimento este, na maioria das vezes, disponível, ou através da própria visita aos lugares, ou através de fotos de eventos significativos.

A família, ao guardar determinados objetos, ao relatar certos eventos, ao organizar um álbum de fotografias, determina o que deve

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ser lembrado e preservado da ação do esquecimento. Nenhum grupo social tem a sua perenidade assegurada, há que se trabalhar neste sentido, daí a preocupação da família em manter a identidade do gru-po através da preservação e transmissão de sua memória. Por outro lado, a família, ao mesmo tempo que é o espaço onde tais recordações podem ser avivadas é também o objeto destas lembranças. Neste sen-tido, a família, enquanto agente de memória, constrói uma determinada representação de si mesma que perdura no tempo e é reiterada pelo ato de recordar. Recordam-se em família os feitos de família através dos objetos guardados pela própria família, preservando o lugar social a ser ocupado por ela e pelos seus descendentes.

O álbum de fotografias torna-se o objeto de memória por exce-lência, pois ali, em imagens tão reais, retornam do passado bisavós, avós, tios, primos etc., retomando-se, através de poses e trejeitos, crô-nicas familiares apreendidas no decorrer de muitas vidas e tradições, transmitidas por tantas gerações. Sem dúvida, a fotografia desempenha um papel simbólico na legitimação da família, mas há que se saber ler nas “entrelinhas”, principalmente das fotografias posadas e tão bem arranjadas do século XIX. Ao historiador é interditada uma visão con-templativa, como nos avisa a historiadora Miriam Moreira Leite:

convém distinguir, na leitura da fotografia, o que ela reproduz da condição do retratado, o que silencia desse grupo e os indícios que permitem o observador perceber ou sentir outros níveis de realidade: sentimentos, padrões de comportamento, normas sociais, conformismo e rebeldia. (LEITE, 1993)

cruzando relatos e dados e recuPerando o texto significativo

Os estudos sobre visualidade e tradição oral investem na elabo-ração de uma reflexão aprofundada sobre memória, como o caminho por excelência para se operar sobre as narrativas do passado. Fotogra-fias e relatos orais são utilizados para “resgatar” a memória, como se esta estivesse oculta dentro destas simulações do passado. Em artigo bastante interessante, “História cativa da memória”, o historiador Ulpiano Bezerra de Meneses (1992) rejeita tanto as idéias de resgate como as de recuperação da memória, investindo na noção de cons-trução da memória. Caminho aberto a uma reflexão profícua.

Nas idéias de resgate e recuperação deixa-se de lado a avaliação dos intertextos do discurso presente que engendra a construção da

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memória. O relato oral rememora o passado, mas o faz a partir de um diálogo com textos presentes, investindo num vir a ser, num futuro, geralmente planejado e desejado. É fundamental, ao se recuperar a textualidade de uma época, avaliar-se a coexistência temporal. A descontinuidade do tempo é patente na relação dialógica que o sujeito do discurso estabelece com suas memórias. Os discursos de reme-moração são narrativas presentes que, por sua vez, dialogam com as demais narrativas contemporâneas, bem como com um conjunto de referências temporais acionadas pelo ato de lembrar.

No jogo de entre tempos e entre imagens, o sujeito social, ao relatar o passado no presente, elabora um passado composto pela contemporaneidade, pelo diálogo que estabelece com a sociedade na qual está inserido e da forma pela qual se insere. Aliás, é a forma de inserção social que estabelece o marco da competência do receptor e que atua de forma decisiva na elaboração do discurso oral e visual.

Venho, há tempos, trabalhando com a fotografia como fonte histórica e, em todos os momentos deste trabalho, utilizei-me do relato oral como forma de estabelecer os intertextos relativos ao cor-pus fotográfico que analisava. Em duas oportunidades, relacionadas ao trabalho com álbuns de família, as entrevistas com os guardiães das fotos determinaram a estrutura da composição do corpus bem como a ressignificação do objeto fotográfico para a sua condição de mensagem que se processa através do tempo. Relatarei, brevemente, ambas as experiências.

A primeira experiência realizou-se na pesquisa de meu douto-rado. Trabalhei com dois tipos de séries: a) fotografias de uma família de imigrantes libaneses; b) fotografias de três periódicos ilustrados publicados na cidade do Rio de Janeiro (Fon-Fon, Careta e O Cruzei-ro). O objetivo foi o de recuperar os códigos de comportamento e representações sociais de uma cidade em fase de aburguesamento. O objetivo central foi cruzar dois tipos de agência de produção da imagem, tanto privada quanto pública, para avaliar tal processo. Não cabe aqui relatar o trabalho como um todo, mas focalizar a parte da organização das fotografias de família.

Encontradas em um enorme baú, as fotografias de dona Ma-riana tiveram de ser limpas, identificadas, datadas e organizadas em álbum. Todo este processo se fez acompanhar da dona das fotos, que identificava pessoas e lugares, situava temporalmente as fotos, num moto contínuo de construção de uma memória que estava fragmen-tada dentro do baú. Não a entrevistei, gravei nossas conversas sobre as fotos, das fotos saíam histórias, das histórias, referências a outros textos. Junto com as fotografias havia muitos recortes de jornais, que

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misturavam o passado mais remoto com o passado mais recente, sem continuidade temporal, mas com unidade temática, eram todos sobre os “fatos que marcaram a história do Brasil”, segundo expressão de dona Mariana, guardados com a preocupação de uma testemunha ocular da história.

Não trabalhei com os jornais, pois investi no trabalho com me-mórias de vida, prioritariamente, assim nos dedicamos a organizar cronologicamente as fotografias identificadas em seus personagens e lugares. Na construção de nosso álbum de fotos, as marcas do presente foram índices da competência histórica de quem constrói memórias. Nosso álbum compôs um texto que dialogava tanto com o passado, como experiência vivida, trajetória familiar consumada, quanto com o presente, dimensão temporal na qual o passado se potencializa alimentando projetos de futuro.

A segunda experiência relaciona-se a uma pesquisa que realizei sobre o circuito social da fotografia no século XIX. Trabalhei com a coleção de fotografias da família Werneck de Vassouras, guardada por um de seus descendentes, o genealogista Roberto Menezes de Morais.

Dessa vez, o trabalho foi completamente diferente do anterior. Dono de uma memória fantástica, Roberto guardou e registrou, em um caderno, todas as histórias que sua avó, a anterior guardiã das fotos, lhe contara sobre a família. Somou às histórias de sua avó seus estudos sobre genealogia, seu interesse por história do Império e seu próprio projeto de vida, na construção de um texto sobre as fotos o qual, por vezes, me deixou aturdida com tantas informações.

Ele próprio havia recuperado as fotos e acondicionado estas em um álbum do período, apesar de não ser o original. Na organização das fotos no álbum, surge o texto da genealogia. Ao folhear as páginas do álbum identificando as pessoas e a época, o texto do descendente responsável pela perenização da memória surgiu de forma clara. Na avaliação do verso das fotos para identificar os fotógrafos, era reve-lado o conhecimento profundo sobre a história da cidade no século XIX, suas relações sociais, seus quadros de poder, enfim, uma análise crítica sobre a sociedade de corte brasileira. Passado composto no presente como um projeto de vida, de vir-a-ser.

Em ambos os casos, o relato oral e a fotografia estabeleceram uma relação dialógica fundamental para a construção do corpus de análise que, de forma alguma, limita-se a uma justaposição de imagens. Textos orais e visuais complementam-se na elaboração do material histórico a ser analisado.

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No entanto, essa é uma opção entre outras possibilidades de relação entre oralidade e visualidade. Dependerá do tipo de objeto de estudo a escolha da estratégia adequada para se estabelecer tal relação.

conclusão

O escritor inglês, Bernard Shaw, parafraseando o provérbio chinês que originou a nossa pergunta inicial – “Uma imagem vale mais do que mil palavras” –, escreveu: “Uma imagem vale mais do que mil palavras desde que elas tenham as mil palavras para acompanhá-las.” A colaboração entre palavras e imagens é tão antiga quanto a neces-sidade de comunicação da espécie humana. Ambas atuam tanto no sentido de relatar, compor narrativas e registrar como no de indicar, apresentar e ilustrar. No entanto, tanto a fotografia como os relatos dela provenientes compõem imagens-monumentos que selecionam o que deve ser lembrado.

No que diz respeito ao significado das fotografias familiares, ficam claras as diferenças entre as referências escrita e oral em rela-ção às imagens fotográficas. O título no verso da foto, ou no álbum, pode simplesmente dizer: mamãe e papai, Vassouras, agosto, 1893, e oferecer apenas um registro da época e do lugar. Já as histórias provenientes dos relatos pessoais, contadas a partir da apreciação de uma imagem, são sempre mais densas e complexas, indo muito além do enquadramento da foto e revelando um extracampo bastante significativo.

“Nesta foto”, aponta a saudosa sobrinha, “aparece a tia Maria-zinha e o tio Antônio, os biscoitos amanteigados que ela fazia eram simplesmente o máximo! E ele adorava uma conversa.” Por outro lado, diante da mesma foto, o filho do casal nos relata como a mãe era superprotetora, ou como o pai o tiranizava. As fotografias de família não mudam, mas as histórias que elas ensejam, sim.

Neste texto, tomei como referência o relato de dois guardiães da memória, e desse relato busquei pistas e indícios para a compreensão de toda uma história que inclui o vivido, o retratado, o lembrado e o que foi herdado, passado de avó para neto, de geração em geração, compondo, assim, um mosaico feito de fragmentos de memória.

O trabalho intertextual, com fontes de memória visual e oral, impõe como imperativo a busca de outras evidências através de di-ferentes tipos de registro histórico, tais como: anúncios, crônicas e notícias veiculadas na imprensa ilustrada, fotografias de outras famí-lias etc. No entanto, esta premissa não tem como objetivo a busca de

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uma verdade que estaria oculta no entrelaçado histórico, ou ainda, que evidenciasse que o que foi dito “realmente aconteceu”. O que se coloca como fundamento epistemológico desse tipo de trabalho é o caráter transindividual das memórias sociais construídas a partir da oralidade e da visualidade.

Por outro lado, busquei refletir também de que forma as con-venções sociais foram sendo assimiladas, ao longo do tempo, por diferentes grupos como forma de identificação e de construção de memórias sociais. Neste sentido, a fotografia de família não é somen-te uma motivação para fazer aflorar saudades e pesares, é também um conjunto de regras visuais que moldam a nossa experiência e memória.

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PARTE II

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Os artigos sobre o século XIX apresentados em seminários e congressos, publicados em veículos de circulação restrita, e que serviram de base para outros trabalhos publicados como capítulos de livros de maior alcance público compõem essa segunda parte. Es-colhi textos que buscassem dialogar com a renovação historiográfica associada, principalmente, aos estudos de história cultural. O diálogo se processa no âmbito da problemática dos sujeitos históricos, na centralidade da visualidade como dimensão das práticas sociais e, por fim, na discussão sobre os espaços sociais da história – identificados pelas noções de privacidade, intimidade e cotidiano.

O Capítulo 4 tem como tema principal a representação visual do negro na sociedade oitocentista. As reflexões sobre a escravidão no Império Brasileiro do século XIX vêm, desde os anos 1980, renovando a sua perspectiva de análise num duplo movimento. O primeiro movi-mento emerge do bojo da sociedade brasileira que, em seu processo de redemocratização, vai redefinindo as políticas de identidade e de construção de suas memórias. O movimento negro organizado não data desse momento, mas ganha força nos combates pela história que se travavam na arena pública. Não tenho condições de me alongar sobre esse processo histórico, mas creio ser importante registrá-lo, na medida em que se associa, como fenômeno histórico, à renovação dos estudos brasileiros sobre a condição de ser escravo no Brasil, notadamente, na área de história.1

Nos anos 1980, surgiram os primeiros frutos da ampliação dos programas de pós-graduação na área de história (FALCON, 1996), com a defesa e publicação de dissertações e teses que buscavam, dentro de um movimento mais amplo da historiografia internacional, dar conta de uma “história que vem de baixo” (BURKE, 1992). A tradução e leitura de textos de E.P. Thompson (1998) e dos historiadores do grupo do “marxismo britânico” (NEGRO; SILVA, 2001) foram fundamentais para a incorporação do escravo como sujeito da sua própria história.

A história de ponta-cabeça, na feliz expressão de Christopher Hill, permitiu a toda uma geração de historiadores romper com os padrões de uma sociologia que tomava ao pé da letra o que diziam

1 Cabe esclarecer que não estou tomando como automática a relação entre as de-mandas sociais e a produção historiográfica, tal afirmação seria no mínimo ingê-nua. O que afirmo é uma relação de engajamento do conhecimento histórico como prática social, apoiando-me tanto em reflexões de Eric Hobsbawn, no seu livro Sobre história (São Paulo: Companhia das Letras, 1997) e em Frederic Jameson, na sua feliz tentativa de Periodizar los Sessenta (Córdoba: Alción, 1997). Ambos os autores defendem a relação dialética entre sujeitos do conhecimento e prática social.

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as os documentos, dos quais retiravam a famosa frase de Antonil, que dizia ser o escravo, os pés e as mãos do senhor de engenho. Assim, a existência social do escravo ficava limitada a sua condição de força de trabalho, de um objeto animado.

O corolário de uma revisão epistemológica do estatuto do sujeito oitocentista foi uma verdadeira revolução documental, encetada pela postura interdisciplinar da história social de inspiração serial, ou da história antropológica, e seus estudos de redes de parentesco. O que se observou foi a superação do documento único que, embora não tenha sido abandonado, passou a ser reconsiderado à luz das séries documentais, tais como: inventários, matrículas de escravos, registros paroquiais, processos-crimes, farta iconografia etc.

Vale lembrar, dentro desse ambiente, a presença cada vez mais marcante da micro-história nos estudos sobre o Oitocentos, investindo na configuração das lógicas de racionalidade, próprias deste período histórico, através da composição de uma trama documental de natu-reza variada, que serve à análise desses casos particulares. Segundo essa abordagem, indício é a pista para desvendar o entrançado de relações sociais que teceram a sociedade brasileira dos Oitocentos.2

Foi dialogando com os trabalhos produzidos nesse ambiente de renovação que escrevi o texto “Fronteira da cor”. Seduzida pela possibilidade de encontrar a pulsão de vida nos vestígios do passa-do, fui recolhendo registros visuais e escritos sobre a vida no século XIX. Em tais registros, negros e negras, adultos ou crianças, na sua condição de escravo ou de liberto, tinham uma expressividade que era fundamental avaliar para se ter uma visão completa da experiência contraditória e conflitiva do cotidiano da escravidão.

As fotografias produzidas no século XIX, a um primeiro olhar, mostravam-se estáticas e silenciosas, as poses pré-figuradas e a am-bientação codificada eram de uma incômoda e ilusória objetividade. Compreender as estratégias da representação visual, dialogar com o regime visual do qual essa produção era tributária, inserir a fotografia no seu circuito social foram procedimentos fundamentais para fazer surgir os sujeitos sociais ocultos na imagem.

Assim, a imagem, antes de aparência imutável, ganhou o mo-vimento das ruas nos pregões, batuques e cantorias, adentrou o re-côndito das casas aconchegando-se no colo sob o som das canções de ninar, no abraço terno, na posse do corpo, enfim, no cotidiano

2 Sobre a aplicação dos princípios da micro-história numa pesquisa de dados sobre história do Império Brasileiro, ver: MUaZE, Mariana de Aguiar. Império do retra-to: família, riqueza e representação social no Brasil oitocentista (1840-1889). Tese (Doutorado)-Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Flu-minense, Niterói, 2006.

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perpassado por sentimentalidades contraditórias. As fotografias se revelaram um precioso suporte de relações sociais que, para se olhar com precisão, há que se atentar para os detalhes: um olhar, um objeto, uma expressão, um deixar-se estar.

Jogos de cena que encenam vidas que conformam histórias, mais uma vez as imagens só falam se perguntas lhes forem feitas. Perguntas elaboradas no diálogo com a historiografia e em sintonia com os demais textos de época.

O Capítulo 5 volta-se para a análise da produção fotográfica de Juan Gutierrez, procurando relacioná-la à experiência visual do século XIX. Neste contexto, a prática fotográfica oitocentista – tanto aquela especializada no retrato, quanto a voltada para a produção de vistas panorâmicas e registros de eventos – guardava uma estreita relação com as práticas ilusionistas que tanto encantavam audiências teatrais em diferentes partes do mundo.

Ambas as práticas associavam o uso da imagem para colocar em questão a relação entre realidade e ilusão, ou o real e o imaginário. O século XIX, momento no qual as disciplinas acadêmicas definiam suas fronteiras e a institucionalização do saber científico, demandava protocolos precisos de aferição do valor de verdade das proposições. As artes da ilusão e da fotografia fomentavam debates que englobavam desde o objetivismo cientificista até a metafísica mística.

O fotógrafo e o ilusionista dividiam, portanto, a imagem como dimensão espaço-temporal da imaginação. Enquanto o primeiro prometia, pela imagem fotográfica, capturar a realidade tal qual era vista, criando a ilusão pela busca de uma fidelidade total ao real que pretendia representar; o segundo, pela ilusão, criava uma atmosfera de realidade que fazia com que uma audiência cresse que lenços se transformassem em pombas. Cada qual com um aparato diferente de fazer iludir, um dispositivo para criar a impressão do real duplicado, ou ainda, transformado.

Observando as fotografias de Gutierrez, criamos uma imagem sobre a cidade do Rio de Janeiro, no século XIX, que possui todos os atributos de uma ilusão: harmonia, equilíbrio, grandiosidade. Tal como os cenários da imaginação romântica, a cidade se revelava, ao primei-ro olhar, sem contradições, mas a vida se revelava nos detalhes. Foi justamente pela busca das formas de iludir que a prática fotográfica ensejava que enveredei pelo caminho da análise de seus elementos expressivos e de conteúdo, desmontando a imagem tal qual um afi-cionado faria com um número de ilusionismo.

O que se consegue ao final é basicamente compreender a manei-ra pela qual as imagens fotográficas eram produzidas, seus códigos,

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as enfim, seu princípio de racionalidade, definindo-as como resultado de uma prática social. Assim, os desdobramentos da análise e suas conclusões sobre as representações sociais engendradas seguiram as pistas deixadas pelo próprio fotógrafo na elaboração da sua men-sagem fotográfica.

Entretanto, a esse primeiro resultado se segue uma indagação um tanto mais complexa, que envolve justamente a apropriação des-sas imagens pelos costumes na vivência cotidiana de estar na cidade e imaginá-la, deixando-se penetrar pela ilusão da imagem projetada. Ou ainda, pelo agenciamento das fotografias e a manutenção do seu estatuto de duplo da própria cidade, sendo vendidas no exterior como a imagem fiel da capital do Brasil. Essa dupla indagação aponta para o lugar que a visualidade ocupava na sociedade oitocentista como experiência coletiva, e como princípio de realidade e de ilusão.

Assim, o caminho toma parte da mensagem elaborada e busca desvendar seus efeitos de realidade, depois retorna para indagar sobre a função social da ilusão criada pelo efeito de realidade produzido. No caminho de volta, as várias pistas deixadas sobre o poder de con-vencimento das representações sociais revelam os caminhos a serem tomados para compreender por que, ao longo da nossa história, foram sendo atualizadas, quase sempre com o apelo à imagem visual e às diferentes maneiras de iludir.

O Capítulo 6 é dedicado ao estudo sobre a autoria fotográfica com base nas trajetórias e trabalhos de dois fotógrafos emblemáticos para a história da fotografia no Brasil: Marc Ferrez e Augusto Malta. Sua leitura sugere uma reflexão, sobre o conceito de trabalho criativo e as artes do fazer no século XIX, que pode ser realizada tomando-se as considerações do semioticista italiano Emilio Garroni (1980). Suas idéias indicam as possíveis relações entre o fazer fotográfico e o fazer artístico.

Garroni levanta a hipótese de que a criação original não é resul-tado de um gênio criativo individual tomado de uma inspiração meta-física, mas de um trabalho criativo que tem como aspecto central uma dialética de escolhas dentro de um campo de possibilidades finito.

O tema da criatividade é enfrentado como uma prática social que envolve a experiência do sujeito-criador, estando associado com a sua capacidade de manejar-se dentro dos códigos estabelecidos para a produção artística, de acordo com normas ou tradições estabelecidas e com a possibilidade de romper com os padrões e violar a norma, num processo de superação.

Nesse sentido, numa primeira instância, suas escolhas são rea-lizadas “num conjunto global de opções já dado e o seu oposto, isto

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é, como algo de já determinado de algum modo, mesmo apenas de modo meramente negativo” (GARRONI, 1980, p. 116); entretanto, numa segunda instância criativa se move em um “conjunto de opções mais determinadas: as opções de artistas ou de uma poética contemporâ-neas dele, ou então de uma certa tradição; e, perante aquelas escolhas determinadas, a alternativa oposta começará a apresentar-se não já simplesmente como negativa, mas articular-se-á e precisar-se-á em função das opções negadas, quer ligando-se, pelo menos em parte e com circunstanciadas deformações, a outras opções determinadas, não negadas, isto é, a outros modelos históricos, quer tornando aptas à função de modelo operativo outras opções possíveis, que até então tinham permanecido como puramente potenciais” (GARRONI, 1980, p. 117).

Vale enfatizar que, para esse autor, o trabalho criativo, ou o com-portamento criativo, se processa gradualmente através de uma série de situações culturais polifônicas, dinâmicas e imprevisíveis, cujas ações não são necessariamente conscientes, ou ainda, nunca se tornam totalmente conscientes. No entanto, tais situações culturais, apesar de surgirem como fenômenos desordenados, são formalmente ordenáveis segundo um esquema processual extremamente variado.

Garroni orientava-se na análise de modelos arquitetônicos e seus gênios criativos, entretanto, suas ponderações não estimulam a elucubração em relação às demais formas artísticas que se alicerçam em práticas e circuitos sociais, apesar de a relação entre fotografia e arte não ser nem de longe um ponto pacífico nos debates travados nos salões oitocentistas. Fica, entretanto, o caminho aberto, para pensar que as fotografias no século XIX serviam para iludir, encantar e imaginar, tais como as telas expostas nos mesmos salões que as rejeitavam como um igual.

O que enfim determinaria o não-lugar da fotografia no campo das belas artes não seria a sua capacidade de criatividade plástica e visual, mas o seu público consumidor, cuja variedade e mundaneidade tirava-lhe toda a sacralidade de obra de arte.

O Capítulo 7, que encerra a Parte 2, aborda a prática fotográfica e a experiência privada na sociedade brasileira dos séculos XIX e XX, segundo uma abordagem da história cultural. A historiografia sobre a história cultural, desde o final dos anos 1970, vem redefinindo seus campos e canteiros, incorporando não somente temas variados, mas, fundamentalmente, instituindo um novo território de trabalho para o historiador: as práticas e representações culturais (CHARTIER, 2002). O universo da experiência social teve, por sua vez, as fronteiras

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as redesenhadas, incorporando a esfera da intimidade e os rituais do cotidiano como dimensões da história.

Do ponto de vista da compreensão dos sujeitos históricos, a renovação foi significativa, pois, apesar de as mulheres e crianças fa-zerem parte da história, não eram valorizadas como sujeitos ativos na dinâmica social, devido a uma historiografia de ênfase eminentemente masculina (PERROT, 1991). Os sujeitos participantes das múltiplas dimensões da história passaram a integrar as novas abordagens que valorizavam aspectos de gênero, geração e classe.

Entretanto, o que se coloca em questão quando abordamos as formas de representar visualmente os ritos da vida católica nos séculos XIX e XX é justamente o lugar ocupado pela visualidade na produção de representações sociais privadas e sua projeção na esfera pública.

As experiências de classe e a percepção que seus sujeitos têm delas são mediadas pelas formas de representá-las, portanto, nas práticas de registro da experiência social já estão embutidas as suas possíveis modalidades de apresentação. O estudo das formas de re-presentar os ritos da vida católica, realizado neste artigo, revela que a intertextualidade, como princípio ordenador dos diversos suportes textuais que fornece sentido e espessura à vida social, é fundamen-talmente histórica.

No século XIX, a relação entre as modalidades de escrita de si, cartas, diários, relatos de vida, cronologias anotadas (GOMES, 2004), e a imagem fotográfica aponta um conjunto de diferenças que orien-tam a compreensão do habitus aristocrático. Segundo este princípio ordenador, as experiências fotografáveis seriam aquelas consagradas ao público, passíveis de serem veiculadas em álbuns acessíveis ao olhar dos estranhos visitantes cujo acesso a casa limitava-se à grande sala. Nessa, os álbuns ficavam estrategicamente posicionados como a primeira trincheira da representação de classe. A memória construída pela fotografia era da ordem do emblema e da efígie, cuja atualização se processava pelo ato de ver e reconhecer. Dependendo do sujeito da fruição, o reconhecimento poderia ser pela identidade com o grupo ou pela diferença. Já os textos da escrita de si não ficavam abertos ao público, pois eram da ordem da intimidade. Sua leitura estava restrita ao seu autor e, quando muito, ao outro membro da família, portanto, eram depositários de memórias privadas e subterrâneas.

A manutenção dos ritos de passagem da vida católica ao uni-verso das representações elaboradas pela escrita de si, portanto das memórias reservadas à experiência privada, não quer dizer que esses não fossem também rituais festivos e abertos a uma comunhão mais ampla, como experiência social concreta. O que de fato se con-

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clui é que a forma de registrá-los implica a escolha de uma forma de representá-los, essa ficando restrita ao espaço da intimidade familiar. A escolha da valorização dos indivíduos e sua pose, em detrimento de suas vivências mais espontâneas, revela a função que a visualida-de fotográfica assumia no âmbito privado oitocentista, a de encenar uma identidade de classe, plena de atributos de distinção. Exibia-se pela fotografia uma condição social, uma auto-imagem pública que decalcava o social no político.

Ao longo do século XX, a relação entre a escrita de si e a ima-gem fotográfica nos espaços privados foi se estreitando, a ponto de as narrativas se confundirem, como no caso dos cartões-postais. A diferenciação entre uma privacidade cotidiana reservada aos mate-riais da escrita de si e uma auto-imagem de classe que se publicava pela imagem fotográfica foi redefinida pelo surgimento da imprensa ilustrada e seus semanários de crítica de costumes. O álbum de família ganhou nova função abrindo-se à diversidade das experiências sociais, tomadas como acontecimentos memoráveis. O agenciamento político das imagens produzidas no âmbito dos eventos sociais familiares vai ser realizado através dos contatos com as revistas ilustradas, permitindo-se a circulação das fotografias do âmbito privado para o público. Assim, a narrativa visual familiar assumia a função de registrar para educar o olhar na forma ideal de representar.

As fotografias dos ritos de passagem da vida católica – dentre outros, ritos elencados na rubrica de eventos sociais –, veiculadas pelas revistas ilustradas, produzidas e consumidas pelas camadas dominantes da sociedade, decalcavam o político no social, potenciali-zando o valor de representação da visualidade próprio à modernidade. Tema que abre a Parte 3.

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caPítulo 4

as fronteiras da cor: imagem e rePresentação social na sociedade escravista imPerial

A imagem na sociedade oitocentista teve, como um dos princi-pais veículos expressivos, a fotografia. Sob o império do retrato, grupos sociais se distinguiam, construindo através de marcas visuais a sua identidade social. O retratado, por meio da pose e da mise-en-scène do estúdio fotográfico, deixava em evidência a adoção de um determinado estilo de vida e padrão de socialidade. Os objetos e trejeitos adotados para criar a ambientação ilusória do estúdio atuavam como emble-mas de pertencimento social, verdadeiras representações sociais de comportamento, do grupo que detém os meios técnicos de produção cultural ou o acesso a estes.

No entanto, o retrato fotográfico, como bem mostra Gisele Freund, democratiza a imagem, antes limitada aos recursos da pintura. O barateamento dos custos e a ampliação do número de fotógrafos itinerantes, ao longo do Segundo Reinado, ampliam o mercado consu-midor, que se configurava em uma clientela cada vez mais heterogênea. Já não é raro encontrar fotografias de ex-escravos, como também de um número cada vez maior de imigrantes pobres que utilizavam a fotografia como um meio de construir a própria posteridade.

O objetivo deste artigo é analisar as representações sociais de escravos e ex-escravos, tomando como fontes principais a fotografia de estúdio e os anúncios de aluguel e venda de escravos. O ponto central da análise será o cruzamento de fontes verbais e não-verbais, distinguindo-se os elementos que nos eram dados a ver pelo branco sobre o negro e como o próprio negro se deixava ver pela sociedade branca.

elementos de uma mise-en-scène imPerial: o código do retrato oitocentista

A fotografia brasileira, amplamente premiada em diferentes exposições nacionais e internacionais por seus panoramas e vistas urbanas, teve no retrato o meio mais adequado para a aristocracia rural ver sua auto-imagem construída e perenizada (TURAZZI, 1995; MAUAD, 1997). Fotógrafos que faziam fama através das premiações ou homenagens oficiais ganhavam a vida, justamente, com os serviços de retrato, o que mais atraía a clientela já consolidada na Corte na

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década de 1860. Aliás, o século XIX, apesar de todo o fascínio causado pelas vistas estereoscópicas, foi dominado pelo império do retrato, cuja divulgação está indefectivelmente ligada ao nome do fotógrafo francês Eugene Disderi.

Por volta de 1852-1853 apareceu um homem em Paris que im-primiu ao desenvolvimento da fotografia uma decisiva mudança de orientação. No centro de Paris, no Boulevard des Italiens, abre as portas um novo estúdio de fotografia. Nele se estabeleceu um homem de nome Disderi.

[...] com um instinto muito ajustado, ele foi o primeiro a apreen-der as exigências do momento e os meios de as satisfazer. Viu que a fotografia, porque era muito cara, era apenas acessível à reduzida classe de ricos. [...] apercebeu-se que o ofício não daria resultados a menos que conseguisse alargar a clientela e aumentar a encomenda de retratos [...] reduzindo o formato criou o retrato carte-de-visite. (FREUND, 1989, p. 68)

O relato de Gisele Freund nos aponta uma radical transformação na fotografia, até então associada à produção única e exclusiva do daguerreótipo. Disderi é o produto de um tempo de transformações, no qual a fotografia passa a ser uma mercadoria requisitada por um público cada vez mais amplo que, por motivos de ordem econômica, via a sua auto-representação através do retrato a óleo completamente vetada. A burguesia urbana era a principal clientela do retrato foto-gráfico, feito às dúzias para ser presenteado e trocado por outros. Uma clientela enriquecida pela disputa colonial e pelos contratos financeiros, mas alijada da “boa sociedade” e de seus atributos de representação por falta de tradição nobiliária. Para este público, a fotografia reordenaria as possibilidades de auto-representação:

A máquina fotográfica tinha democratizado definitivamente o retrato. Frente à câmara, todos são iguais, artistas, sábios, ho-mens de Estado e modestos empregados. O desejo de igualdade e o desejo de representação das diversas camadas da burguesia eram satisfeitos ao mesmo tempo. (FREUND, 1989, p. 74)

O sucesso do retrato carte-de-visite deve-se tanto a sua reprodu-tibilidade, pois com uma tomada se produziam vários retratos, quanto a sua capacidade de prover ao cliente escolhas variadas, através de um catálogo de objetos e situações nas quais podia se adaptar aos moldes preestabelecidos. Desta forma, o estúdio do fotógrafo passa a

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ser um depósito de complementos escolhidos para caracterizar dife-rentes papéis sociais que se quer fabricar. A mise-en-scène do estúdio do século XIX variou ao longo do tempo, cada década no período da carte-de-visite e, mais tarde, do cabinet-size teve seus acessórios espe-cialmente característicos: nos anos 1860, era a balaustrada, a coluna e a cortina; nos anos 1870, a ponte rústica e o degrau; nos anos 1880, a rede, o balanço e o vagão; nos anos 1890, palmeiras, cacatuas e bicicletas e, no início do século XX, o automóvel. O próprio cliente se converteu, ele mesmo, num acessório de estúdio, suas poses obede-ciam a padrões estabelecidos e já institucionalizados de acordo com a sua posição social.

A fotografia do período não abria mão da sua própria estética, como fica exposto no livro Estética da fotografia, publicado por Disderi, em 1862. Neste livro, o fotógrafo francês estabeleceu seis princípios básicos de uma boa fotografia:

Fisionomia agradável;1. Nitidez geral;2. As sombras, os meios-tons e os claros bem pronunciados, estes 3. últimos brilhantes;Proporções naturais;4. Detalhes nos negros;5. Beleza.6.

A busca da beleza tornar-se-ia o ideal a ser conquistado pelo fotógrafo e uma prerrogativa exigida pelo cliente. Ao satisfazer esta exigência, o fotógrafo criava um padrão de representação que apaga-va o indivíduo em prol de um estereótipo social. Ao se reconhecer como parte integrante da mesma sociedade de imagens dos chefes de Estado, sábios e artistas, o cliente se satisfazia, pois via preservada da ação do tempo a representação que queria alcançar. Na fotografia ornamentada com acessórios, na maioria das vezes ausentes de seu cotidiano, revestia-se dos emblemas de classe, pela qual queria ser reconhecido. Como complemento insubstituível da ambientação ilusó-ria do estúdio, estava a pose. Robertsonem, em 1867, já afirmava ser a pose “a mais importante de todas as operações fotográficas” (apud TURAZZI, 1995, p. 14).

Na mesma época, Alexandre Ken (1864), autor das Dissertations historiques, artistiques et scientifiques sur la photographie, afirmava:

No atelier do fotógrafo o modelo posa apenas meio minuto diante do instrumento. É preciso que antes de entrar no sa-

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lão de pose ele tenha esquecido na sala de espera qualquer preocupação exterior; que ali folheando álbuns, examinando os retratos expostos, indagando sobre o seu valor artístico e o caráter de cada um deles possa apreciar e captar a pose e a expressão que melhor lhe convenha e que alguns conselhos do artista lhe ajudarão a assumir. Tudo deve ser feito para distrair o visitante e dar ao seu semblante uma expressão de calma e felicidade, para fazer nascer em seu espírito idéias agradáveis, risonhas que, ao clarearem seus traços com um doce sorriso, façam desaparecer aquela expressão séria que a grande maioria tem tendência a assumir, e que, sendo a que mais se exagera, dá geralmente à fisionomia um ar de sofrimento, contração ou de tédio. (apud TURAZZI, 1995, p. 15)

A pose era o ponto alto da mise-en-scène fotográfica no século XIX, pois através dela combinavam-se a competência do fotógrafo em controlar a tecnologia fotográfica, a idéia de performance, ligada ao fato de o cliente assumir uma máscara social que, muitas vezes, não lhe competia, e a possibilidade de uma nova forma de expressão adequada aos tempos do telégrafo, trem a vapor, enfim, a um tempo que tinha como entretenimento antever o futuro. A fotografia, principalmente, o retrato fotográfico, com toda a sua possibilidade de encenação, in-ventava uma memória para ser perenizada, eternizando-se na emulsão fotográfica uma vontade de ser, algumas vezes risível, mas, na maior parte, crível. Uma imagem capaz de criar uma representação ideal para ser lembrada no futuro, nos álbuns de família, guardiães das tradições, inventadas ou não.

No Brasil, a moda do retrato foi aceita como todas as demais que vinham do estrangeiro para enquadrar nosso comportamento e para fornecer-nos molduras para nossas próprias imagens. Rapidamente, fotógrafos estrangeiros, fugindo da concorrência de seus países de origem, invadiram a Corte, integrando-se sem maiores resistências à geografia do cotidiano da cidade, juntamente com as modistas, os ca-beleireiros, os joalheiros, entre outros agentes da civilização ocidental. No entanto, o circuito social da fotografia na Corte do Rio de Janeiro não se limitava aos setores mais ricos da sociedade, a democratização da imagem pelo retrato envolvia também a produção de alteridades, tal como pode ser entendida a fotografia de escravos e ex-escravos.1

1 Para um inventário minucioso e bem estruturado das imagens de escravos e ex-escravos ver CARNEIRO, M.L.T.; KOSSOY, B. O olhar europeu: o negro na iconogra-fia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994.

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cotidiano e consumo na sociedade oitocentista

Ao abrir os jornais da Corte, do Segundo Império, mergulhamos num mundo de aparências, marcado pelo afrancesamento da lingua-gem e dos produtos oferecidos. A influência francesa foi a marca deste tempo, reconhecida e assumida por seus próprios contemporâneos. Tal influência fica patente na conferência que um jovem engenheiro brasileiro proferiu, em 1885, por ocasião da Exposição Internacional de Beauvais:

O brasileiro tem uma espécie de idolatria pela França. Nossos costumes, nossas inclinações são grande parte os vossos; vossa bela língua nos é cara e nos é familiar, [...] senhores quando chegamos em um país estranho, nós nos sentimos sempre estrangeiros, mas se chegarmos na França, três dias não se passam e já nos sentimos em casa. (BRASIL. Comissão Brasileira na Exposição Universal de Beauvais, 1885 apud TU-RAZZI, 1995, p. 94)

Não é sem razão tal familiaridade dos brasileiros na França. No jornal O Actualidade, publicado na Corte na década de 1860, todos os anúncios da programação de espetáculos eram escritos em francês: “Une Nuit Terrible – A l’etude. Meredi 6 janvier – representation ex-Meredi 6 janvier – representation ex-traordinaire au bénéficie de: M. Amélia. L’affiche au jour donnera le programme. On peut se procurer des billets à l avanue chez la bénéfi-ciaire, hotel de Milan; Rue d’Ouvidor” (O Actualidade, 4 jan. 1864).

Nestes jornais, os anúncios moldam o perfil do cotidiano, crian-do modas e inventando comportamentos. A destacada presença da publicidade na Corte apontava para um mercado consumidor bastante movimentado, já na década de 1850. Trinta anos depois, os anúncios já ultrapassavam as folhas dos jornais diários, invadindo os muros e espaços vazios da cidade. O movimento do Rio de Janeiro, nos seus odores, ruídos e imagens, foi registrado pelo alemão Koseritz em suas crônicas da Corte: “A vida de rua no Rio faz sobre o estrangeiro, prin-cipalmente sobre o provinciano, uma impressão de aturdir. Os nervos da vista, do ouvido e do olfato do habitante do Rio são, naturalmente, longamente preparados contra tais impressões, mas o alienígena deve empregar meses para se habituar”. Em relação aos ouvidos, reclama dos pregões variados, do trânsito de carroças, bondes e do barulho infernal das rodas contra o calçamento de paralelepípedos.

No que concerne à visão, sua descrição ainda é mais detalhada:

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Além do copioso movimento das ruas, que na rua do Ouvidor, em dias de semana, chega ao tumulto, desperta a atenção do olhar a multidão de quiosques, enfeitados de bandeiras colori-das e cobertos de cartazes e tabuletas também em cores, nos quais se vende café e bebidas [...] Efeito semelhante produzem os gigantescos anúncios, belamente enfeitados com figuras de toda a sorte e pintados a óleo com letras enormes, que cobrem todos os muros e paredes vazias. Até no interior dos cafés e restaurantes anúncios semelhantes [...] estão nas paredes como tapeçarias. Estas figuras mostram que aqui o povo está se americanizando. (KOSERITZ , 1980, p. 73-74)

Curioso comentário para uma cidade que teve a marca da cultura francesa pelo menos até os anos 1940 do século XX.

A cultura visual dos jornais, revistas e das ruas abre uma janela para o cotidiano oitocentista na Corte do Rio de Janeiro, o que permite avaliar os significados atribuídos às noções de conforto e bem viver. A maior parte da publicidade era ilustrada com desenhos ou acom-panhada de uma minuciosa descrição que permitia uma visualização clara do produto a ser consumido.

Nos periódicos e catálogos, anunciava-se de tudo: banhos de vapor e de saúde, acompanhados ou não por choques elétricos; banhos de mar, “com um magnífico tanque de natação”, aberto desde as quatro e meia da manhã, ou ainda os mais confortáveis, que oferecem “gran-des camarins para famílias com espelho, pente, bacia com água para os pés” e, ainda, “empregados de toda a confiança para acompanhar dentro d’água as pessoas que assim o desejarem”; tintas para tingir o “cabelo, barba e bigode”; mobiliário variado incluindo-se “camas francezas, cômodas, toilletes, lavatórios, toucadores, secretárias de mogno, guarda-vestidos, berços, bidés, mezinhas de costura, mezas elásticas de jantar, aparadores de sala-de-jantar, guarda-louças e outros muitos artigos”; cervejas de “Londres e da Escóssia”; “machi-nismos hidráulicos” com grande “sortimento de latrinas inglezas fixas e portáteis, bidés, ourinões de parede, lavatórios para casa, repuxos e fontes de louças, bombas para poço e de alta pressão e para regar jardins; louças e aparelhos de todas as qualidades para jantar e almo-ço – porcellanas brancas, douradas e esmaltadas, objetos de fantasia de variadas formas e gostos, candelabros, serpentinas, castiçaes, palmatórias e arandelas de bronze, casquinhas inglesas e francesa, serviços de crystaes, vidros e bandejas de xarão e ferro”; baixelas de “Electro-plate”; talheres de níquel “muito em uso na Europa, em substituição da prata de lei”; drogarias com “relações diretas com os

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principais droguistas de Londres, Paris, Hamburgo, Gênova, Lisboa e New York”, onde era possível qualquer “pedido de drogas que lhes seja feito, por preços moderados”; artigos para eletricidade, telefo-nia, telegrafia e máquinas de costura Singer, típicos de um tempo de invenções, vendidos numa loja famosa da rua do Ouvidor, cujo nome – “Ao grande Mágico” – denota perfeitamente a ambigüidade do século XIX em relação às inovações tecnológicas; perfumes; tônicos para o cabelo; remédios para depurar o sangue, expelir vermes, melhorar a pele, facilitar a digestão, tratar vertigens, dor de cabeça, vômitos, enjôos, entre outras mazelas; papéis pintados; tecidos variados, tais como: morim, algodão americano, brim de linho e algodão, brancos e escuros, irlandas, cambraietas, cambrainhas, paninhos, escossias, riscadinhos finos e riscadinhos grossos etc.; anéis elétricos e uma infinidade de estabelecimentos de ensino, confeitarias e hotéis, fora as oficinas fotográficas.2

Em tal publicidade, os produtos importados eram valorizados pela sua qualidade e o estabelecimento comercial que os vendia garantia sempre contato direto com a matriz internacional, com o intuito de asseverar a idoneidade dos produtos. Em tais anúncios, a narrativa é objetiva e valoriza-se a variedade das mercadorias colo-cadas à disposição do consumidor. Em um outro tipo de publicidade, busca-se atrair a atenção do cliente através de um recurso cômico. No entanto, a publicidade também revelava hábitos e costumes nada modernos e bem próprios da sociedade escravista – os anúncios de venda, aluguel e serviços de escravos.

as fronteiras da cor: fotografia e rePresentação social de afro-brasileiros no segundo reinado

A escravidão presente no cotidiano das relações sociais não passou despercebida pelas lentes dos fotógrafos do Segundo Império. Alguns deles produziram imagens de escravos dentro e fora de seus ateliês. Christiano Jr. anunciava no Almanaque Laemmert de 1866: “variada colleção de costumes e typos de pretos, cousa muito própria para quem se retira para a Europa”. Produziu uma variada coleção de carte-de-visite, em que os escravos apareciam em atividades cotidia-nas, encenadas no estúdio do fotógrafo, em outras fotos posavam em trajes bem cuidados, as mulheres com turbantes e os homens de terno, mas todos sempre descalços. A escravidão era delineada, neste caso,

2 Referências retiradas do Jornal do Commercio, Actualidade, Almanack Laemmert, entre outros periódicos que circulavam na Corte do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX.

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pela estética do exótico. Em outras fotos, o ângulo enfocado era o das relações inter-raciais ou, como se costumava dizer, dos costumes.

FigURas 1 E 2 – chRisTiano dE FREiTas JR., caRTE-dE-VisiTE, aLbúMEM, c. 1865 . Mhn.

A casa de George Leuzinger, com sua “officina especial e melho-res instrumentos ingleses para paisagens, panoramas, stereoscopos [sic] e costumes”, foi responsável por preciosas imagens em que o cotidiano tanto era recriado no estúdio quanto captado no detalhe dos amplos panoramas. O primeiro caso é exemplificado por uma série de seis carte-de-visite que registram o trabalho dos ambulantes, majoritariamente, negras vendedoras de frutas, doces e fazendas, sendo que uma delas traz pendurada, às costas, uma criança negra de colo, indicando o hábito e a possibilidade de se manter o filho perto mesmo durante o trabalho. Já no segundo caso, o registro é casual, na fotografia do casario da Lapa surgem os lençóis estendidos no gramado ou pendurados nos varais, indicando a atividade das lavadeiras.

Victor Frond, no álbum Brasil pitoresco, publicou litogravuras de fotografias, em que o trabalho escravo na rotina das fazendas de café e açúcar tornou-se tema conhecido internacionalmente. Marc Ferrez também registrou o trabalho escravo nas fazendas de café. Numa das fotos, em imagens nítidas, definidas e detalhadas, o grupo de negros vindos do campo posa, ao ar livre, para o fotógrafo, não lhe evitam o olhar, miram direto a objetiva, encarando o fotógrafo como se quisessem fazer a imagem falar. Em outra, o quadro é mais perfeito, pois, ao retratar o trabalho de secagem do café, registra a convivência

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cotidiana das crianças brancas e negras nas brincadeiras, e o hábito de ter crianças por perto mesmo durante o trabalho.

Nas fotografias tiradas no Recife, a ama-de-leite aparece com a criança refestelada em seus braços: a ama sentada com os braços apoiados, elegantemente vestida com uma medalha no pescoço, é fotografada com o menino a seu lado, de pé, recostado em seu ombro, ternamente lhe tomando o braço; o negro idoso, de fraque, colete, gravata-borboleta, bengala e cartola, posa sentado e cansado por toda uma vida sem ser dono da própria vida.

FigURa 3 – aMa-dE-LEiTE da FaMíLia adoLFo siMõEs

baRbosa. EUgênio & MaURício caRTE- dE-VisiTE, RE-

ciFE, 1864 apUd KossoY, b.; caRnEiRo, M. i. T.

O Olhar eurOpeu: o nEgRo na iconogRaFia bRasiLEiRa

do sécULo XiX. são paULo: EdUsp, 1994. p. 70.

FigURa 4 – RETRaTo sEM idEnTiFicação. aLbERTo

hEnschEL, MaURício caRTE- dE-VisiTE, REciFE apUd

KossoY, b.; caRnEiRo, M. i. T. O Olhar

eurOpeu: o nEgRo na iconogRaFia bRasiLEiRa do

sécULo XiX. são paULo: EdUsp, 1994. p. 65.

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Em todas estas imagens, o olhar fixo na objetiva, direto para o fotógrafo, mais uma vez querendo dar voz à imagem. Olhares que dizem muito registraram, para a posteridade, o modo como eram fei-tos os trabalhos, suas instalações e a presença cotidiana do escravo, na intimidade da casa, próximo às crianças, mas silenciaram sobre a violência presente no cotidiano das relações sociais. Sobre esta os anúncios são eloqüentes.

Nos anúncios de serviços domésticos era comum encontrar-se, juntamente com o aluguel de escravos, para variados serviços, o aluguel de “livres” e “brancos”, casais, na sua quase totalidade estrangeiros, denotando que o conteúdo da palavra aluguel ligava-se diretamente à oferta de serviços. Tal observação estendida aos casos dos escravos indica que tanto o senhor poderia lucrar alugando o serviço de seu escravo, quanto o próprio escravo poderia oferecer os seus serviços, em caso de alforria ou compra de liberdade. Concen-tramos nossa análise nos anúncios de aluguel e venda de negros, no sentido de avaliar a presença destes no cotidiano doméstico da Corte e a forma como eles eram verbalmente representados. Por oposição às imagens visuais, a descrição verbal do escravo imputa um papel ao negro e tipologiza seus atributos, criando uma representação que descaracteriza a pessoa e sua humanidade ao valorizar o seu caráter de mercadoria e de trabalho potencializado.

Os anúncios, principalmente publicados no Jornal do Commercio, localizavam-se nas páginas finais. Os de aluguel de “pessoas” vinham em primeiro lugar, separados das demais mercadorias, já os de venda apareciam misturados às ofertas de outros produtos. Todos possuíam um padrão geral de descrição que guardavam a seguinte lógica:

Tabela 3Aluga-se ou vende-seTipo de pessoa (cor e sexo); escravo (a) ou ocupação

Idade, qualidades (fiel, humilde, limpo etc.) e endereço para a negociação

Em torno deste padrão ocorriam algumas variações que de-monstram o tratamento dado ao negro pela sociedade oitocentista no espaço urbano. Em relação à cor, eram comuns as expressões “pardinha” ou “negrinha”: “Aluga-se uma pardinha, livre, perfeita en-gomadeira; [...] Também se aluga uma negrinha, escrava, para andar com crianças e fazer serviço leve de casa” (Jornal do Commercio, 2 jun. 1878, p. 5). Anúncios como este desapareceram depois da Abo-lição; no que se segue, permaneceu a atribuição da cor, mas com a

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omissão desta: “Aluga-se dous rapazes de cor, um bom chacareiro e um copeiro, ambos de conduta afiançada e diligentes [...]” (Jornal do Commercio, 8 out. 1888, p. 6).

Nem sempre, nos anúncios, a condição de escravo era explici-tada, valorizando-se, principalmente no caso dos homens, o tipo de serviço prestado. Já em outros, era o caráter de mercadoria o mais valorizado. Nestes, o escravo era tratado como uma “peça”, não se enunciava nem a ocupação, bastando a referência no caso de se tratar de “uma preta bonitta” ou uma “bela peça”.

Na sua maioria, a oferta era de uma só pessoa, entretanto, a incidência da venda e do aluguel de casais, famílias, parceiros, mãe e filho e de lotes não era incomum. No caso dos aluguéis, antes do endereço, eram expostas algumas condições, sendo a mais comum, principalmente no caso de mulheres e crianças, a de não poder sair na rua desacompanhado, indicando uma preocupação clara contra roubo e fuga. No rol de trabalhos oferecidos, os mais comuns eram os de: ama-de-leite (sempre com a especificação da idade do leite e se é primeiro parto ou não); ama-seca; “lidar” ou “brincar com crianças”; copeiro; cozinheiro; lavadeira; engomadeira; doceira; costureira; mucama; chacareiro; quitandeiro, criado de escritório, ganhador; vendedor; moleque de recados; carregador, trabalhador de roça etc. Indicando que, no espaço das cidades, o trabalho escravo especiali-zava-se para além da divisão, presente nas fazendas, entre escravos do eito e de dentro de casa.

FigURa 5 – VEndEdoRa dE FRUTas, RodoLpho

LindEMann, bahia, caRTão-posTaL, c.1900

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FigURa 6 – aMa, RodoLpho LindEMann,

bahia, caRTão-posTaL, c.1900.

Os atributos masculinos e femininos se distinguiam pelo tipo de serviço realizado. A mulher era sempre bem prendada, carinhosa com as crianças, sadia, com bons costumes, sem vícios, perfeita ou insigne trabalhadora. Todas qualificações de ternura e intimidade, necessárias ao convívio doméstico e cotidiano, próprios de uma moral burguesa que já estava se disseminando no Brasil, neste período. Já os homens eram valorizados pela inteligência, fidelidade, habilidade, esperteza e força. Atributos necessários à vida na rua e nos limites da casa. Acompanhando-se a freqüência de tais anúncios em cinco anos, observou-se a seguinte proporção:

Tabela 41878 1881 1885 1888jul. /set. jan./mar. abr./jun. abr./jun. out./dez.

VENDA* 18,6% 11,7% 1,6% 0,3% –ALUGUEL* 120,7% 143,1% 89,5% l68,9% 54,6%

*Média diária de anúncios

É patente a predominância do aluguel sobre a venda, fato que se explica, principalmente, se levarmos em consideração o valor de venda do escravo e o aluguel pago pelo serviço mensalmente. Enquanto o aluguel de um “preto bom cozinheiro” saía por 35$ mensalmente, na década de 1870, o seu valor de compra não ultrapassava 1:200$ (Jornal do Commercio, 2 jun. 1878, p. 5; 23 nov. 1877).

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Mesmo depois de abolida a escravidão, os anúncios de aluguel de negros continuou, por algum tempo, apontando para a permanên-cia do trabalho negro no âmbito doméstico. Fato também registrado nas fotografias, posto que, nas décadas subseqüentes à Abolição, era comum o retrato de família, com o pai, a mãe, as irmãs, os irmãos, as crianças e bebês e as negras da casa, geralmente nas extremidades da foto. Ou ainda o registro, já no século XX, da permanência do negro, juntamente com o imigrante branco nas fazendas de café.

Os dois tipos de textos – anúncios e fotografias – veiculam imagens diferenciadas sobre a condição de ser escravo e ex-escravo no Brasil oitocentista. A fotografia, pautada nos cânones do retrato, que, como vimos, coordenava beleza e harmonia, produz uma repre-sentação das relações sociais que valoriza a convivência pacífica em vez de uma conflituosa. Os anúncios, por sua vez, denotam um outro tipo de representação, baseada na lógica da mercantilização e valori-zação dos atributos da aparência do produto, próprias à publicidade da época. Em ambos os tipos de texto, pode ser reconhecido o olhar que a sociedade branca lança sobre o outro, o afro-brasileiro.

Os elementos que elaboram esta alteridade sustentam-se em unidades culturais consagradas pelo universo de sentido da socieda-de escravista. Dentre eles, destacam-se a cor negra e suas variantes parda e mulata, o domínio de uma atividade/trabalho, a forma físi-ca – estabelecida por atributos de força e beleza –, a cordialidade e passividade.

Enquanto os anúncios adjetivam, as fotografias, seguindo a lógica do pitoresco, transferiam o fotografado da rua para o estúdio, do seu local de trabalho para o espaço da encenação e recriavam, através da ambiência ilusória, o retrato do negro para o branco. Neste contexto, como chama a atenção Annateresa Fabris:

As imagens do pai de família, do homem respeitável, da mulher honesta, engendradas pela elite, permeiam a visão de si de toda a sociedade brasileira, e é isso que é revelado pelos retratos fotográficos das amas-de-leite negras e crianças brancas. É o estereótipo da maternidade que se vê neles, é a busca de uma dignidade derivada dos padrões sociais dominantes e revelada pelas poses adotadas, e não uma relação pessoal profunda. (FABRIS, 1997, p. 11)

No entanto, o ato fotográfico pressupõe um consentimento, uma aceitação tácita do fotografado em relação às regras do jogo da representação. Ao mesmo tempo que é visto, o fotografado também

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se mostra, ele assume uma pose resultante de uma negociação entre o querer do fotógrafo e o desejo do fotografado. Seguindo as idéias de Roland Barthes em a Câmara clara, Fabris ainda aponta, no retrato fotográfico, o encontro e o confronto de quatro “personagens”: aquele que o retratado acredita ser; aquele que gostaria que os outros vissem nele; aquele que o fotógrafo acredita que seja; aquele de que o fotógrafo se serve para exibir sua arte (FABRIS, 1997, p. 2).

FigURa 7 - RETRaTo casaL, FaMíLia VaLLiM,

cabinet size, sEM idEnTiFicação do FoTó-

gRaFo, c. 1870, coLEção REsgaTE.

FigURa 8 - RETRaTo casaL sEM idEnTiFica-

ção, MiLiTão aUgUsTo aZEVEdo, carte-

de-visite, c. 1880, MUsEU paULisTa.

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FigURa 9 - RETRaTo MascULino sEM idEn-

TiFicação, MiLiTão aUgUsTo aZEVEdo,

carte-de-visite, c. 1880, MUsEU paULisTa.

FigURa 10 - RETRaTo MascULino, FaMíLia

VaLLiM, carte-de-visite, sEM idEnTiFicação

do FoTógRaFo, c. 1870, coLEção REsgaTE,

LaboRaTóRio dE hisTóRia oRaL E iMagEM/UFF.

A construção da identidade do fotografado, nesta dinâmica de representação, fica sujeita a um conjunto de mediações que vão desde a forma como, no caso estudado, o escravo ou ex-escravo se insere no cotidiano social (considerando sua trajetória social) até o rigor do fotógrafo em obedecer aos cânones do retrato fotográfico. Sem deixar de considerar a negociação inscrita no processo de construção da auto-imagem desse fotografado através de índices de resistência que

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podem se concentrar num olhar fixo para a câmera, num pé descalço ou num adorno investido de marcas étnicas. Ao se mostrarem, para a sociedade branca, de uma determinada maneira e não de outra, os escravos e ex-escravos realizaram escolhas com base em disputas simbólicas.

FigURa 11 - cREoULa, RodoLpho LindEMann,

bahia, caRTão-posTaL, c.1900 apUd Kos-

soY, b.; caRnEiRo, M. i. T. O Olhar

eurOpeu: o nEgRo na iconogRaFia bRasiLEiRa

do sécULo XiX. são paULo: EdUsp, 1994.

FigURa 12 - RETRaTo FEMinino, EscRaVa

aLFoRRiada, FiRMino & Lins, pERnaMbUco,

carte-de-visite, c. 1868 apUd KossoY,

b.; caRnEiRo, M. i. T. O Olhar eurO-

peu: o nEgRo na iconogRaFia bRasiLEiRa do

sécULo XiX. são paULo: EdUsp, 1994.

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FigURa 13 - RETRaTo dUpLa FEMinina,

FoTógRaFo não idEnTiFicado, caRTE-

dE-VisiTE, c. 1860 apUd KossoY, b.;

caRnEiRo, M. i. T. O Olhar eurOpeu:

o nEgRo na iconogRaFia bRasiLEiRa do

sécULo XiX. são paULo: EdUsp, 1994.

FigURa 14 - cREoULas, Ro-

doLpho LindEMann, bahia,

caRTão-posTaL, c. 1900.

Entre a total sujeição aos estereótipos estabelecidos pela socie-dade escravista, como querem alguns historiadores, e às possibilida-des de negociação e conflito, como querem outros, a construção de representações sociais de afro-brasileiros, na sociedade oitocentista, desvenda-se como um processo dinâmico e complexo. Por um lado, a lógica da sujeição aos estereótipos sociais é confirmada pelos anún-cios de jornais e pelos retratos de estúdio, em que o fotografado ora

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aparece com atributos de um outro grupo social, ora em posição de subalternidade. Por outro, ao assumir a condição de fotografado, o escravo ou ex-escravo tem a oportunidade de negociar sua própria auto-imagem, abrindo, com isso, uma nova arena social.

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caPítulo 5

na mira do fotógrafo: o rio de Janeiro e seus esPaços através das lentes de gutierrez

A fotografia de paisagem nas últimas décadas do século XIX trazia como um de seus motivos prediletos a cidade do Rio de Janeiro. A cidade, seu casario, seus limites (rural e urbano), seus costumes e seus espaços de sociabilidade diversa eram figurados através de cha-pas de grande formato, cujo domínio técnico surpreendia em nitidez e definição de detalhes.

Verdadeiros filtros do olhar, as fotografias de paisagem forma-ram um estilo bastante praticado por fotógrafos de diferentes proce-dências, atraídos para a cidade devido à sua rica clientela e situação de centro político.

O objetivo deste texto é analisar a forma da expressão e do conteúdo das fotografias sobre a cidade do Rio de Janeiro produzidas pelo fotógrafo espanhol radicado no Brasil Juan Gutierrez.1 O ponto central da análise será apresentar a cidade, filtrada pelas lentes de Gu-tierrez, que definia seus espaços e fronteiras, à medida que a figurava pela fotografia. Paralelamente, tentar-se-á situar socialmente a figura de Gutierrez no campo da produção fotográfica oitocentista, marcado por critérios de excelência e de proximidade ao poder.

fronteiras do olhar: entre Pintura e fotografia, uma linguagem adequada à Paisagem urbana

O que os meus olhos virem. Com esta frase na ponta da pena, Robert Walsh, capelão da comitiva do Lorde Strangford em visita ao Brasil nos anos de 1820, revela suas intenções ao viajar pelo Brasil. A idéia de anotar tudo o que pudesse ver e ouvir sobre o novo país, que estava por conhecer, vinha sempre acompanhada do desejo de ser imparcial, como explica o capelão:

Irei para um país novo com a mente livre de qualquer informa-

ção prévia, anotarei as coisas para informá-las a você à medida

que chamarem minha atenção e enquanto esta impressão for

1 A coleção analisada compõe-se de 118 fotografias existentes no arquivo fotográfi-co do Museu Histórico Nacional. Em 1998, a equipe do MHN lançou um CD-ROM reunindo o acervo de Gutierrez que, além da série Rio de Janeiro, é composto pelas fotografias da Revolta da Armada.

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rrez recente (WALSH, Robert. Notícias do Brasil apud SUSSEKIND,

1990, p. 115).

As intenções de Walsh estão em perfeita sintonia com os interes-ses e atitudes de diferentes viajantes, que praticamente descobriram um novo Brasil, depois da abertura dos portos por D. João VI em 1808. Para tais viajantes, a impressão causada pela visão é a que fica, a que fornece o estatuto de verdade ao relato. O fato de ter estado presente, ter sido testemunha ocular de um evento ou mesmo de um hábito cotidiano qualquer garante à narrativa o teor de testemunho incontestável. O ideal de uma mente livre isenta de preconceitos e pré-noções encobria diferentes chaves de leitura para uma mesma realidade. Uma primeira leitura mostraria uma paisagem plena de atributos de oposição ao lugar de origem dos viajantes; uma segunda se estruturaria a partir dos interesses da viagem, ressaltando nas descrições, relativamente detalhando, um ou outro aspecto do lugar; e por fim, uma terceira chave de leitura, ancorada na tradição visual renascentista, era composta pela necessidade de moldar e enquadrar o que se via, a partir do que já se tinha visto (GOMBRICH, 1995).

No entanto, todas essas possibilidades tinham em comum uma educação do olhar, que ensinara a figurar e a descrever o Brasil (SUS-SEKIND, 1990, p. 39). Por outro lado, a característica de diferenciação de tais leituras residia, justamente, na natureza do texto que lhe sus-tentava – verbal ou visual. O diálogo entre textos era uma constante, as expedições para o interior do Brasil eram sempre acompanhadas de “riscadores”, artistas encarregados de dar a ver o que todos tinham visto, traduzindo, pela linguagem plástica, a experiência.

A demanda por um meio ágil de se registrar essa experiência foi se acentuando ao longo do século XIX, paralelamente a investimentos concretos no sentido de criá-lo através da invenção da fotografia. No entanto, como explica Alivoni:

O nascimento da fotografia, assim como toda a sua história, baseia-se num equívoco estranho que tem a ver com sua nature-za de arte mecânica: o de ser um instrumento preciso e infalível como a ciência e, ao mesmo tempo, inexato e falso como a arte. A fotografia, em outras palavras, encarna a forma híbrida de uma “arte exata” e ao mesmo tempo de “ciência artística”, o que não tem equivalentes na história do pensamento ocidental. (apud FABRIS, 1993, p. 173)

Entre arte sublime e técnica pura se desenrola o debate em torno dos usos e funções da fotografia no século XIX. A polêmica

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revela distintos discursos em relação à capacidade de representar a realidade: um primeiro, de caráter idealista, compreende a obra de arte como fruto da subjetivação do artista, resultado de seu espírito criativo; o segundo, diametralmente oposto, valoriza a reflexividade do referente ante a objetividade do registro técnico, como se ambos os meios de expressão não fossem resultantes de investimentos de sentido, ancorados em práticas sociais bastante concretas.

Neste sentido, para analisar o conjunto de 118 fotografias pro-duzidas por Gutierrez nos anos 1890, é necessário situar a produção da fotografia de vistas urbanas numa certa tradição visual. Avaliar a natureza do diálogo travado entre as pinturas de paisagem e as vistas panorâmicas é o primeiro passo.

A pintura de paisagem instituiu um código que, partindo do “desenho em trânsito” dos riscadores das expedições da primeira metade dos oitocentos, mesclou à lógica documental elementos da pintura romântica. O que deve ser enfatizado é que a figuração da paisagem se desdobrou em duas modalidades: uma que aperfeiçoou a figuração pela linguagem pictórica, utilizando-se das diferentes técni-cas da pintura; uma outra que, partindo da busca de uma visualidade ideal a mais próxima possível do olho humano, criou a fotografia. Esta última tem como paradigma a figura de Hercule Florence, o ilustrador que inventou a fotografia, isolado na vila de São Carlos, nos idos anos 1830, por necessitar de um meio para a documentação o mais fiel possível à visão humana – a câmera fotográfica.2

No entanto, a fotografia, que nasce do desejo de retratar fielmente a realidade, é, por sua vez, mais uma interpretação desta mesma realidade, pois, ao mesmo tempo que apresenta o referente, o representa através de uma linguagem codificada, invalidando, com isso, a ambição de cópia fiel da realidade. A fotografia é sempre uma outra coisa, uma imagem, um signo.

A estética realista almejada pela fotografia oitocentista pode ser entendida como uma tentativa frustrada de ser o desenho feito pelo sol, ou, como queria Talbot, “o lápis da natureza”, que, por sua vez, gera uma solução inovadora. No entender da historiadora Vânia Carvalho

nas imagens fotográficas, as dificuldades técnicas acabaram por se tornar qualidades peculiares de uma linguagem que contradiz status de produto real outorgado à fotografia. A desin-tegração das formas, a contração do espaço, a desarticulação

2 Sobre o fotógrafo francês radicado no interior de São Paulo, ver KOSSOY, Boris. Hercules Florence – 1833: a descoberta isolada da fotografia no Brasil. 2. ed. São Paulo: Nobel, 1980.

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rrez de planos e a perda da profundidade culminam em imagens

sintéticas, que anunciam mudanças nas convenções visuais instituídas pelo realismo. (CARVALHO, 1993, p. 215)

Descendente direta dos cânones da pintura, a fotografia não apenas se constitui como linguagem própria, “mas será responsável pela transformação em senso comum de uma visualidade, que germi-nava no círculo restrito dos produtores da obra de arte” (CARVALHO, 1993, p. 228). A imagem fotográfica coloca-se no contexto das múlti-plas leituras para paisagem circundante, como aquela que descrevia, com base no que já tinha visto (apoiando-se nos motivos da pintura de paisagem), e, ao mesmo tempo, que educava o olhar para novos modos de ver.

Vale lembrar que a fotografia se estabelece como dispositivo de representação, no período em que o crescimento das cidades e da indústria estava gerando uma vasta produção artística – tanto em termos de literatura quanto de artes plásticas – como resposta à crescente influência das áreas urbanas. Neste processo, a fotografia assume o seu lugar de maneira ativa, dando conta tanto da variedade e da multiplicidade da vivência urbana como elaborando uma respos-ta plástica específica à questão de como o espaço urbano deveria ser percebido e representado. Desta maneira, a imagem fotográfica sintetiza a cidade tanto como imagem quanto como experiência. É a representação da modernidade que adquire excelência através da sua elaboração, por um dispositivo moderno (CLARKE, 1997, p. 55).

a mira do fotógrafo: traJetória social de Juan gutierrez

O processo acima descrito tem como agente o fotógrafo, que, através do ato fotográfico, inscreve a paisagem e seus habitantes na imagem, transformando-a em duplo de uma realidade cuja reelabo-ração tem a marca de sua autoria. Na condição de duplo, de repre-sentação, a imagem da cidade e seus habitantes integra o estoque de bens colocados à disposição para o consumo e intercâmbio simbólico, necessários aos diferentes setores da classe dominante na elaboração de seus habitus de classe.

A autoria, marcada pela inscrição no verso das fotos do nome ou assinatura do fotógrafo, ou pela própria assinatura na imagem, à maneira dos pintores, como fazia Ferrez e Malta, localizava o autor e atuava como marca de distinção e pertença sociais. Existe uma dife-rença entre a paisagem ou o retrato produzido por Disderi ou Nadar,

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por Juan Gutierrez ou Insley Pacheco, por Ferrez ou Malta. O lugar ocupado pelos vários fotógrafos no interior do campo fotográfico consubstanciava tal diferença.

O próprio circuito social da fotografia evidenciava uma hie-rarquia de valores, cuja organização estruturava tal campo. Dentre estes, se destacam o acesso às inovações técnicas, as opções estéticas adequadas aos padrões internacionais, a localização geográfica do ateliê, a premiação em exposições, a proximidade do poder de Esta-do, a clientela consolidada, os contatos com o exterior, e, em menor grau, a formação artística proveniente das Belas Artes, denotando a autonomização do campo fotográfico em relação ao artístico.

Qual é a situação de Gutierrez no interior do campo? O historia-dor da fotografia Pedro Vasquez conta que Gutierrez foi o penúltimo fotógrafo a receber o título de “Photographo da Casa Imperial”, em 3 de agosto de 1889 (VASQUEZ, 1990). Título que pouco aproveitou como marca de distinção, tendo em vista a queda do regime meses depois. No entanto, o fotógrafo não se fez de rogado: já no ano seguinte, no verso das fotos se qualificava como fotógrafo da República, ornamentando o nome de seu estabelecimento com o símbolo da República.

Sua adequação à nova ordem institucional não se limitou aos emblemas e efígies. Em 1893, foi contratado pelo Exército para fo-tografar a campanha da Revolta da Armada. Algumas destas fotos, juntamente com outras sobre a paisagem da cidade do Rio de Janeiro, compõem um álbum finamente ornamentado, presenteado ao presi-dente Prudente de Morais quando da sua posse. Todos esses indícios caracterizam sua posição de destaque no campo fotográfico em fins do século XIX.

Desde que chegou da Espanha, em fins da década de 1880, Gu-tierrez abriu estabelecimento na Corte. Nos primeiros anos, instalou sua “Photographia União – Estabelecimento de Primeira Ordem”, na rua da Carioca, no 114, e atendia uma clientela composta por fazen-deiros do Vale do Paraíba e alguns elegantes da cidade. Na década seguinte, tornou-se proprietário da “Companhia Fotográfica Brazileira”, apresentando-se como “Juan Gutierrez Sucessor” no verso das fotos. O novo estabelecimento situava-se na rua Gonçalves Dias, no 40; um endereço que, em termos da geografia dos estúdios do Rio de Janeiro, estava muito melhor situado – uma área de excelência que dividia com a rua do Ouvidor a disputa pelas vaidades mundanas, espaços de ostentação e consumo de luxo.

Em relação ao acesso à tecnologia fotográfica – um dos ele-mentos de hierarquização entre os fotógrafos –, encontra-se no verso das fotografias, desde 1886, o destaque para sua “especialidade em

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rrez ampliações pelo processo inalterável do carvão”, que não foi muito

disseminado no Brasil. Além desse processo, encontram-se referências a outros, tais como platynotipia, albúmen e phototypia, característi-cas que demonstram que o fotógrafo preocupava-se em atualizar-se nas diferentes inovações de seu tempo, preservando e ampliando a clientela.

A mudança de endereço, a preocupação em se manter em sin-tonia com os processos internacionais, o atendimento a uma clientela distinta ávida por eternizar sua auto-imagem no retrato fotográfico, e sua gradual proximidade ao poder, retratando os eventos da República, revelam aspectos da trajetória social desse profissional. No entanto, foi retratando a cidade que Gutierrez adquiriu sua distinção no campo fotográfico, controlando de forma perfeita a estética da fotografia de vistas urbanas.

encenação da Paisagem: do Panorama ao detalhe; do símbolo ao índice, a cidade através

das lentes de gutierrez

Refletindo sobre os requisitos para a realização do ato fotográ-fico, um fotógrafo de nome Brogi escreveu, em 1885, que:

É necessário que o operador tenha muito conhecimento do processo químico; prática e gosto artístico para escolher o ponto de vista quando se trata de monumentos ou de vistas. É necessário que estude o ponto de luz mais favorável para ob-ter daqueles justos contrastes de claro-escuro, de meios-tons, com suficiente força de conjunto. É necessário finalmente, que espere o beneplácito do fator principal da fotografia (a luz) para realizar seu trabalho. (apud FABRIS, 1993, p. 186)

Brogi destaca os atributos necessários à perfeita execução da fotografia. Uma combinação de engenho, técnica, criatividade e gosto forneceriam à imagem fotográfica uma originalidade que, ao mesmo tempo, estava plenamente sintonizada com as demandas visuais do seu tempo. Daí seu grande sucesso e disseminação tanto na forma de retrato quanto de vistas.

Ainda na sua avaliação sobre o ato fotográfico, fica evidente nas preocupações de Brogi que tal combinação deveria ser feita com base numa linguagem definida por elementos peculiares – contrastes de claros-escuros e meios-tons –, adequados aos temas escolhidos – vistas ou monumentos. A valorização atribuída à luz a dignifica como

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elemento diferenciador da linguagem fotográfica em relação à pintura de paisagem. Enquanto nesta a luz é captada de um foco específico, o céu, a fotografia capta a luz irradiada por todos os objetos, sendo necessário para uma boa foto o controle total da entrada de luz e da intensidade da luminosidade.

Os recursos técnicos disponíveis no final do XIX já habilitavam muitos fotógrafos a obter um bom nível de contraste e meios-tons, inclusive fotografando as nuanças das nuvens do céu, evitando o céu chapado. No entanto, como chama a atenção Vânia Carvalho, apesar da atualização tecnológica dos fotógrafos brasileiros, parece que estes resolveram “desviar o olhar do céu para a terra e assim valorizar os elementos no plano inferior do quadro” (CARVALHO, 1993, p. 208).

Neste sentido, podemos afirmar que, ao final do século XIX, as fotografias de vistas urbanas constituíam uma forma de representação visual da cidade que reunia a modernidade do dispositivo fotográfi-co aos cânones da pintura romântica, cujo resultado era inovador. A imagem fotográfica seria, portanto, uma representação do real/ material, que possibilitava a descrição dos aspectos da cidade, habi-litando um conhecimento que vai do índice ao símbolo e do detalhe ao panorama.

Através de imagens nítidas e bem definidas se descortina aos olhos do observador uma cidade que pode ser esmiuçada nos deta-lhes do arruamento, infra-estrutura, paisagismo, arquitetura, como no movimento de suas figuras e personagens, além dos espaços de trânsito e de sociabilidade. Ao mesmo tempo, enchem a visão e exta-siam os sentidos com a amplitude e equilíbrio das formas e volumes, estratégia típica das fotos de panorama.

Todas estas características e preocupações foram encontradas na avaliação da forma da expressão e do conteúdo elaborada por Gu-tierrez em seu conjunto de 118 fotos sobre a cidade do Rio de Janeiro, encontradas no Museu Histórico Nacional.

Passamos a partir deste ponto a analisar esse conjunto de foto-grafias segundo uma abordagem histórico-semiótica, que tem na noção de espaço sua chave de leitura fundamental. Portanto, a análise seguirá a ordem dos campos espaciais encontrados na fotografia concebida como mensagem, a saber: espaço fotográfico, espaço geográfico, espa-ço da figuração, espaço do objeto e espaço da vivência. Neste estudo, destaca-se a avaliação da forma como a cidade foi visualizada.

visualizando a cidade

Para compor sua imagem da cidade do Rio de Janeiro, Gutierrez realizou um conjunto de escolhas em meio a um conjunto de possibili-

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rrez dades, que circunscreviam as fotografias de vistas e panoramas. Estas

eram, geralmente, realizadas em chapas de grande formato. No período em que as fotografias foram tiradas (1893 – 1894), já se utilizavam as chapas de vidro e o processo de colódio seco. As chapas já vinham preparadas, acondicionadas em caixas de madeira com divisões, e depois de sensibilizadas retornavam às suas caixas, sendo, mais tarde, reveladas, e suas cópias eram feitas por contato.

Cabe ressaltar que tais escolhas não eram feitas de forma aleatória. Como bem mostrou Brogi acima, existe a necessidade de saber dominar a linguagem para compor uma interpretação adequada daquilo que se vê ou que se quer mostrar. Portanto, ao escolher uma determinada forma de expressão e não outra, Gutierrez investiu de sentido suas fotografias. Em tais escolhas, além de valores técnicos e estéticos, estão em jogo, na composição da imagem adequada, valores ideológicos do universo social do qual o fotógrafo provinha, o qual atuava como mediador cultural, cuja prática artística só podia ser entendida como prática social.

No conjunto de opções realizadas, temos o seguinte quadro:

Tabela 5Tipo da foto

Posada 93,0%Instantânea 7,0%Sentido da fotoHorizontal 85,5%Vertical 14,5%Direção – ponto de vista do fotógrafoDa direita para a esquerda 44,0%Da esquerda para a direita 9,5%Centralizada 46,5%De baixo para cima 5,0%De cima para baixo 57,0%Nivelada 38,0%

Distribuição de planos1 plano –2 planos 24,5%3 planos 55,0%4 planos 20,5%

Objeto centralFiguração 2,5%Objeto exterior 17,0%

PaisagemDensamente edificada 36,0%Regularmente edificada 16,0%

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Tipo da fotoEscassamente edificada 11,0%Não edificada 17,5%

Arranjo e equilíbrioConcentração inferior 68,0%Concentração mediana 32,0%Concentração superior 0%Linha reta 57,5%Semicírculo 38,5%Espalhada 4,0%Diagonal 51,0%

Nitidez

FocoTudo no foco 67,0%Foco desigual 33,0%Fora de foco 0%

Impressão visual/texturaLinhas bem definidas 73,0%Linhas definidas 27,0%

IluminaçãoClara com sombras 62,0%Clara sem sombras 38,0%Escura 0%

O padrão encontrado para o item enquadramento foi o seguin-te: imagens grandes (em geral 27 x 19cm), retangulares, posadas, horizontais, com equilíbrio entre o ponto de vista que vai da direita para a esquerda e o centralizado, valorização da perspectiva visual descensional em detrimento da nivelada, três planos, a paisagem como objeto central em 80,5% das fotos, com concentração na parte inferior e elementos arranjados em linha reta, com tendência ao movimento devido à incidência de linhas em diagonal. Para o item nitidez, o padrão encontrado foi o composto por imagens com todos os planos no foco e linhas bem definidas, indicando contraste e perfeita delimitação dos meios-tons, características confirmadas pelo item iluminação, com fotos prioritariamente claras, mas com sombras.

O que essas escolhas traduziriam em termos de práticas sociais? Francastel (1985) destaca a importância do pensamento plástico na relação dialética entre o real e o imaginário. Neste sentido, a media-ção entre o vivido e o imaginado, entre o visto e o simbolizado passa pelo filtro do olhar de quem vê, como um sujeito cultural e histórico, recompondo o real na sua dimensão de representação. Portanto, o próprio ato fotográfico, como modo de representar a cidade, é uma prática social ancorada num saber ver e num saber fazer.

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rrez As imagens fotográficas que Gutierrez produz do Rio de Janeiro

são panorâmicas, com profundidade de campo, tiradas do alto para valorizar a sucessão de planos, equilibradas com forte valorização dos aspectos terrestres, em detrimento do céu que, quando aparece, é completamente chapado. São, ainda, compostas de maneira quase geométrica, valorizando-se a angulação da própria geografia urbana. Desta forma, linhas retas em diagonal ou semicírculo em deslocamento servem de apoio ao arranjo que se completa pela contigüidade espacial fornecida pelo contraste com sombras.

É fato que, num primeiro momento, a relação com a pintura de paisagem parece automática. Gutierrez fotografa o que vê através do que já tinha visto numa pintura de Rugendas ou Facchinetti, mas, ao colocar em prática o saber adquirido para o ato fotográfico, realiza uma nova imagem, cujos elementos e seu arranjo a diferenciam da pintura.

Além disso, a tradição fotográfica oitocentista tem no panorama urbano não somente seu elemento de sustentação, mas aquilo que a distingue como forma de expressão original, como reflete Grahan Clarke:

In essence, a panoramic view suggests control and possession by the eye. As its derivation implies (Greek pan = all), we see all of a city from a single point of view. The eyes imagines that it dominates a dense and disparate space whilst simultaneously keeping the city at a distance. The view suggests the totality of the urban scene and, crucially, makes the eye of the viewer the center of that totality. Weather it would be a fully-fledged panorama, a prospect, or looking down from an upstairs win-dow, the photographer has always attempted to rise above the street: looking up toward the sky. Such a vertical axis has a dense symbolic function and, especially in relation to New York, accrues a distinctive tradition in its own right. (CLARKE, 1997, p. 76)

Completa destacando os ícones (arranha-céus, torres de igre-jas, torres etc.) que celebram a cidade e produzem uma hierarquia, através da qual compomos seu mapa turístico, assim, construindo uma geografia individualizada do espaço urbano.

reconstruindo a cidade

O espaço da cidade é hierarquizado por meio da cartografia fotográfica de Gutierrez, hierarquia que se estabelece em função de

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alguns aspectos da composição fotográfica: quantidade de atributos e detalhes, incidência numérica de certos lugares em detrimento de outros e, principalmente, a relação tema/lugar. A avaliação deste úl-timo item possibilitou a distribuição das fotografias pelos principais locais da cidade, segundo o princípio de organização temática, que envolveu a escolha de 19 temas:3

Movimento urbano1. Atividade do mercado: MERC2. Aspectos do transporte: TRANS

Panorama urbano3. Vista geral da cidade: VGC4. Região portuária em perspectiva: RPP5. Região portuária – Instalações: RPI

Região litorânea6. Movimento costeiro: MC7. Litoral do centro com casario: LCC8. Região central – densidade de edificação, aspectos do arruamento,

morros com edificação, morros sem edificação, destaque para as construções religiosas, laicas e públicas: RC

9. Região Florestal (com benfeitorias urbanas): RFU10. Prédios Públicos: PP11. Região residencial com casario e perfil dos morros: RR12. Praia residencial: PR13. Fábrica: F14. Beleza natural (sem edificação): BN15. Arrabalde em fase de urbanização: A16. Ponto turístico: PT

Panorama marítimo:17. Ilha sem identificação: I18. Praia tropical: Pt19. Parques e Jardins: PJ

Este conjunto de temas se distribuiu pela cidade de acordo com a seguinte tabela:

3 Ao lado de cada tema, a abreviação que foi utilizada na tabela de quantificação a seguir.

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rrez Tabela 6

LOCAL RETRATADO

TEMA RETRATADO

MERC TRANS VGC RPP RPI MC LCC RC RFU PP RR PR F A BN I PT Pt PJCENTRO DA CIDADE

Cais Pharoux – mercado de peixe

6 6

Cais Pharoux – adjacências

1 1

Cais dos Mineiros 1 1Docas da Alfândega 1 2 3Saco da Gamboa 1 1Arsenal da Marinha 1 1Mosteiro de São Bento

1 1

Ilha das Cobras 1 1Ilha Fiscal 2 2Praia de Santa Luzia 4 4Passeio Público e adjacências

1 1

Centro da Cidade 9 1 10Morro do Castelo 3 3Praça XV e adjacências

1 1

Rua Larga 1 1Lapa e adjacências 4 4Praça da República e adjacências

2 2 1 5

Morro de Santa Tereza

2 2

Morro do Senado 2 2Praça Tiradentes 1 1 2

LOCAIS INDEFINIDOSIlha na Baía de Guanabara

1 1

CONJUNTO DA CIDADERio visto da Ilha de Villegagnon

1 1

Rio visto da Floresta da Tijuca

2 2

Rio visto do Corcovado

2 2

NITERÓIPedra do Índio 2 2Pedra de Itapuca 2 2Paquetá 3 1 4 9

FLORESTA NO RIOCaminho do Silvestre

3 3

Paineiras 2 1 3Estrada do Corcovado

1 3 2 6

Mirante Chapéu de Sol

2 2

BAIRROS FORA DO CENTROCatete 3 3Flamengo 2 2Praia do Russel 1 1Glória 3 3Largo do Machado 2 2Laranjeiras 2 2Jardim Botânico 1 7 8Praia da Saudade / Enseada da Urca

3 2 5

Copacabana 1 4 5São Cristóvão 1Botafogo 2 1 2TOTAIS 6 3 1 2 1 5 25 3 9 21 11 4 9 1 4 4 9

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Em termos de região, a geografia da cidade se reconfigura entre o centro e fora do centro. Na região central, o tema se concentra no casario e na densidade de edificação; no conjunto fora do centro, a diversifica-ção temática garante que se perceba o crescimento da malha urbana e a configuração de funções diferenciadas para distintas localidades, já no final dos oitocentos. Fora do centro passa a ser o lugar da moradia, do entretenimento, do contato com a natureza e da possibilidade da redefinição espacial da cidade através da conquista da floresta e dos arrabaldes pela civilização que avançava.

De acordo com essa geografia, têm-se os seguintes pares de identidades: centro da cidade/área densamente edificada; Cais Pharoux – mercado/movimento urbano; Paquetá/praia tropical; Jardim Botânico/parques e jardins; Morro do Corcovado/beleza natural sem edificação; Botafogo, Flamengo, Laranjeiras, Catete, Glória/áreas regularmente edificadas identificadas como regiões residenciais; e Copacabana/ar-rabalde em fase de urbanização e área escassamente edificada. Estes pares criam uma oposição entre o espaço edificado e o não-edificado, entre o natural e o civilizado, criando uma hierarquia cujo valor estético das imagens e das belezas naturais é o elemento de distinção.

A cidade, cuja vocação seria a beleza, deveria adequar esta ao seu destino de civilização, valor absoluto para a modernidade de fim de século. Não podemos analisar as imagens de Gutierrez a partir do que sabemos que foi feito da cidade, anos depois, com a reforma Pereira Passos. Em vez de denunciar diretamente a desordem urbana do centro da cidade, o fotógrafo conformava essa região num quadro de harmo-nia com a paisagem circundante, denotando sua precariedade. Assim, Gutierrez, ao contrapor as imagens da região central às possibilidades abertas pelas fronteiras do olhar, que se lançavam rumo aos arrabaldes, revelava sua saturação e apontava a necessidade de reformas.

Paralelamente, a ênfase dada, nas suas imagens, à ação do ho-mem sobre a natureza, da qual a seqüência de fotos do Corcovado é emblemática, ressaltava a capacidade da civilização em se adequar à paisagem, reinventando a cada novo território conquistado uma nova concepção de beleza. Não há, portanto, um juízo de valor estético em relação às diferentes regiões da cidade. Através das lentes de Gutierrez, todas são inegavelmente belas. Uma beleza realizada e uma a realizar, tendo o homem como seu artífice.

a cidade vivida

Na série de fotografias em que Gutierrez recria a paisagem do Rio de Janeiro, em somente 30% das imagens aparece alguma figuração, distribuída de acordo com a seguinte tabela.

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rrez Tabela 7

FIGURAS RETRATADAS

TRANSEUNTES INDEFINIDOS

MULHERES NEGRAS

MULHERES BRANCAS

HOMENS NEGROS

HOMENS BRANCOS

CRIANÇAS ANIMAIS

ATIVIDADETransitando 5 1 2 1 2 1 1Trabalhando 3 2 2 2Conversando 1 1 1 1No bonde 2Posando para foto 1 1 15 1

INDUMENTÁRIARoupas simples de trabalho

3 4 4 15

Roupa estilizada (baiana)

3

Roupas de passeio 2 2 1 2POSIÇÃO DAS PESSOAS NA FOTO

1o Plano e objeto central

3

1o Plano no contex-to da paisagem

2 1 4 15 2 1

2o Plano 4 1 1 13o PlanoLocal da cidade . Cais Pharoux-

mercado de Peixe; Cais Pharoux adja-cências; Rua Larga; Pra-ça da República e adjacên-cias, Mirante Chapéu do Sol, Copacabana = 9 fotos

Cais Pharoux e adjacências = 4 fotos

Praça da República e Adja-cências; Botafogo=2 fotos

Cais Pahorux e adjacências, Caminho do Silvestre = 3 fotos

Cais Pharoux e adjacên-cias, Praça da República e adjacên-cias, Praça Tiradentes, Pedra de Iatpuca, Paquetá; Estrada do Corcovado; Copacabana = 15 fotos

Paquetá; Praça XV e adjacências = 2 fotos

Praça XV e adjacências =1 foto

Segundo a tabela acima, a figuração é circunscrita a um topos, cuja representatividade se faz tanto pela lógica do pitoresco quanto pela sua inserção na nova lógica de divisão do capital/trabalho que se instituía.

Esta última tendência é visualizada pela escolha em retratar as pessoas trabalhando, em roupas simples ou estilizadas, de forma bas-tante próxima. São fotos em geral niveladas e com dois planos, o que evita a profundidade de campo e consolida a sua inserção no contexto da paisagem. A seqüência de fotos sobre o mercado do cais Pharoux é significativa, ao apresentar, de forma vívida e detalhada, aspectos da rotina e do movimento do mercado. A região mais retratada, mais densamente edificada era, naturalmente, a mais povoada.

Ao mesmo tempo, seguindo a tendência presente nos pano-ramas, o olhar enquadrava o que via, segundo um modelo anterior e ideal, da ordem do pitoresco. Mas o que finalmente revelava eram as condições desiguais e precárias das camadas recém-libertas da população. Em franco contraste com os “retratos de typos” tão co-

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mumente divulgados pelos retratistas, tais imagens abriam caminho para o tempo da fotorreportagem, pela valorização da fugacidade da tomada não posada.

os detalhes da cidade

Um universo significativo de objetos compõe o mosaico de panoramas elaborados pelas lentes de Gutierrez. Ao fragmentarmos a imagem em seus detalhes, em suas unidades culturais, os objetos adquirem uma função sígnica, como vetores de relações sociais. Via de regra, estes objetos se apresentam, na imagem fotográfica, a partir de uma tipologia básica: objetos interiores, exteriores e pessoais. Tais objetos indicarão a interpenetração dos espaços ou a valorização de um em detrimento de outro, dimensionando a ênfase entre as esferas públicas e privadas.

No conjunto de fotografia analisado, a tabela de objetos foi a seguinte:

Tabela 8OBJETOS RETRATADOS

POR FOTOSOBJETO

CENTRALDISTRIBUÍDOS ENTRE OS

PLANOS-CONTEXTO DA PAISAGEM

EXTERIORESBarcos 3 19Postes 16Cestos 3Caixas 3Toldos 5Guindastes 9Prédios públicos 6 27Edificação militar 4Construção religiosa 2 17Diversão pública 2Construção provisória 1Construção precária 9Casario (casas baixas e sobrados)

2 42

Palácios e chácaras 1 6Prédio de fábrica 1 1Casa de operários 1 1Material de construção 5Jardins 7 13Pátios e terreiros 8Lojas 3Quiosques 7Hotel 1

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rrez OBJETOS RETRATADOS

POR FOTOSOBJETO

CENTRALDISTRIBUÍDOS ENTRE OS

PLANOS-CONTEXTO DA PAISAGEMMercado 2 5Arborização 1 41Vegetação 35Palmeiras 33Torres das igrejas 17Telhados 32Chaminés 19Sacadas 1Lixo 5Fachadas 24Estações 6 6Ilhas 2 2Tílburis 4Bondes 4Trem 1 3Trilhos 2 10Transporte de carga 2Barcas ou ferries 2Funicular 1Mirante 2 3Estábulo 1Estátuas 1 2Chafariz 2Mastros 7Canteiros 1 7Cercas, muros e gradil 13

OBJETOS PESSOAISGuarda-chuva 3Roupas secando 3

A lógica presença dos objetos – maciçamente exteriores – na fotografia de Gutierrez se faz através da sua inserção no conjunto. Como partes de um mosaico, adquirem sentido quando vistos na totalidade. O detalhe se explica pela lógica do panorama, assumindo sua função sígnica quando associado ao espaço geográfico. A presença significativa, como demonstra a tabela acima, do casario (sobrados e palacetes), árvores e vegetação em geral, telhados, fachadas, prédios públicos, construções religiosas, postes e barcos traduzem um Rio de Janeiro densamente edificado, urbanizado, com ênfase em prédios associados a alguma forma de poder, mas que se mantém em harmonia com sua fronteira natural. Em 55% das fotos encontram-se três planos, distribuídos de modo a colocar ao fundo os objetos, ou seja, Gutier-rez enquadrava a paisagem valorizando a profundidade de campo e,

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com isso, a emoldurava com a silhueta dos morros – o próprio limite imposto pela natureza.

Por outro lado, o olhar acurado desvenda nos detalhes da mon-tagem elementos que corroboram a oposição espacial já antevista na análise do espaço geográfico. A cidade traduzida por seus detalhes é também uma cidade que opõe o centro ao arrabalde; as áreas de trabalho às de moradia; a natureza à civilização, ao mesmo tempo em que abre possibilidades de interação através da presença de objetos exteriores típicos de uma localidade em outra. O arrabalde torna-se área de moradia através da presença dos trilhos de bonde; já o centro, densamente povoado, mantém as características de balneário: nas fotos da rua Santa Luzia, emoldurada por coqueiros, daria quase para sentir a brisa do mar e o clima aprazível.

Neste sentido, a retórica positivista da valorização do progresso material é perturbada pela historicidade da imagem, que, por seus indícios e detalhes, aponta as peculiaridades da cidade no contexto das crescentes demandas por modernização.

a cidade e sua vivência fotográfica

No espaço das vivências, experiências e comportamentos, a paisagem panorâmica decalca-se na geografia da cidade, indicando uma especialização espacial de atividades associadas ao cotidiano da cidade e ao seu processo de expansão rumo aos arrabaldes. Cada bairro, cada acidente geográfico, cada instantâneo do movimento ur-bano retratado buscava tecer a relação entre civilização e natureza, ora harmonizando-se com a lógica romântica da pintura acadêmica de paisagem, ora descendo aos rés do chão e detalhando a cidade nas suas múltiplas contradições sociais.

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a inscrição na cidade: Paisagem urbana nas fotografias de marc ferrez e augusto malta

O presente artigo tem como objetivo avaliar o papel desempe-nhado por dois importantes fotógrafos da cidade do Rio de Janeiro na construção de uma imagem de cidade adequada ao seu papel de Capi-tal, tanto do Império quanto da República. Por outro lado, pretende-se discutir a idéia de autoria na produção fotográfica, recuperando, assim, a sua dimensão de trabalho criativo. A dimensão criativa associada ao trabalho fotográfico implica a avaliação da possibilidade de se falar de um campo propriamente fotográfico, associado a um certo habitus (Bourdieu), próprio a uma sociabilidade urbana.

Assim, ao assinar suas fotografias, Ferrez e Malta deixavam suas inscrições na cidade como marca de uma autoria, cujas escolhas engendraram a elaboração de imagens-monumentos, suportes de memória tomados como objeto da história.

Paisagem urbana e exPeriência visual

O daguerreótipo chega ao Brasil em 1840, pouco tempo depois de ter sido apresentado na França. Sua chegada foi registrada pelos jornais da Corte:

Finalmente passou o daguerreótipo [sic] para cá os mares e a fotografia, que ate agora só era conhecida no Rio de Janeiro por teoria, [...]. Hoje de manha teve lugar na hospedaria Pha-roux um ensaio fotográfico tanto mais interessante, quanto e a primeira vez que a nova maravilha se apresenta aos olhos dos brasileiros. Foi o abade Compte que fez a experiência: e um dos viajantes que se acha a bordo da corveta francesa L’Orientale, o qual trouxe consigo o engenhoso instrumento de Daguerre, por causa da facilidade com que por meio dele se obtém a representação dos objetos de que se deseja conservar a imagem [...] E preciso ver a cousa com seus próprios olhos para se fazer idéia da rapidez e do resultado da operação. Em menos de nove minutos o chafariz do Largo do Paço, a praça do Peixe, o mosteiro de São Bento, e todos os outros objetos circunstantes se acharam reproduzidos com tal fidelidade, pre-cisão e minuciosidade, que bem se via que a cousa tinha sido

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feita pela própria mão da Natureza, e quase sem a intervenção do artista. (Jornal do Commercio, 17 jan. 1940)

A necessidade da experiência visual, ressaltada na crônica, é uma constante no século XIX. Numa sociedade em que a grande maioria da população era analfabeta, tal experiência possibilita um novo tipo de conhecimento mais imediato e generalizado. Ao mesmo tempo que habilita os grupos sociais a formas de auto-representação até então reservadas à pequena parte da elite que encomendava a pintura de seu retrato. A demanda social por imagens incentivou pesquisas no sentido de melhorar a qualidade técnica das repre-sentações, facilitar seu processo de produção e retirar-lhe o caráter de relíquia, ainda presente no daguerreótipo. De fato, apesar de sua possível reprodutibilidade, o daguerreótipo ainda aparecia como uma peça única, acondicionada em estojo de luxo, às vezes considerado como uma jóia.

Portanto, o desenvolvimento técnico aliado à conquista de novos mercados consumidores e de paisagens exóticas foram ingredientes importantes para os novos usos e funções da imagem, notadamente a fotográfica, no século XIX. Atuando nesta direção, os fotógrafos paisagistas contribuíram para corroborar a imagem delineada pelos paisagistas e desenhistas que acompanhavam as expedições naturalis-tas. Ou seja, enquadrando o Brasil a partir de esquemas pictóricos já dados, mais uma vez a paisagem é fundada e criada, e o olhar educado a admirá-la de uma certa maneira. No século XIX, a fotografia de pai-sagem prendia-se aos cânones da pintura romântica e do paisagismo dos grandes panoramas, daí a utilização de chapas de grande formato serem as mais adequadas a este tipo de fotografia, por produzirem um resultado próximo às vistas e panoramas pintados. Marc Ferrez, fotógrafo brasileiro que atuou na Corte a partir da década de 1870, especializou-se em vistas, chegando mesmo a aperfeiçoar o aparelho inventado por Brandon, próprio para vistas panorâmicas.

Entretanto, é importante perceber que a fotografia de vistas, mesmo com apoio nos cânones da pintura, desenvolve uma linguagem própria, em que a nitidez e a distribuição clara dos planos é a marca fundamental. Uma estética cuja função primordial é a de transmitir mensagens que engendrem um sentido, distinto daquele produzido pelas pinturas, aquarelas e desenhos. Como bem avalia Solange Ferraz de Lima, a fotografia abstrai o tempo e reordena elementos do real na síntese da imagem. “Ao escolher temas variados e isolados entre si para compor as vistas, tais imagens eliminam as relações sociais, justapondo-se numa colagem do real, onde o progresso se equivale

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pelo que aparenta não pela realidade” (LIMA, 1993, p. 79). Guardando tal perspectiva, a fotografia brasileira no século XIX teve como espaço de excelência para a sua divulgação as exposições universais. A par-ticipação do Brasil em tais eventos também contribui para a criação de uma imagem do Império.

As premiações conquistadas através da participação nas ex-posições figuravam no verso dos retratos dos fotógrafos da Corte, como marca de distinção e qualidade de seus serviços. Apesar de a premiação ser dada pelos belos panoramas realizados, era o retrato o que mais atraía a clientela já consolidada na Corte na década de 1860. Aliás, o século XIX, apesar de todo o fascínio causado pelas vistas estereoscópicas,1 foi dominado pelo império do retrato.

Figura 15 – Verso de carte-de-visite, coleção Resgate.

A pose é o ponto alto da mise-en-scène fotográfica no século XIX, pois através dela combinam-se a competência do fotógrafo em controlar a tecnologia fotográfica, a idéia de performance, ligada ao fato de o cliente assumir uma máscara social que, muitas vezes, não 1 Sobre as imagens esteroscópicas, ver: TURAZZI, M.I. Poses e trejeitos: a fotografia

e as exposições na era do espetáculo (1839-1889). Rio de Janeiro: Rocco: Funarte, 1995. p. 281.

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lhe competia e à possibilidade de uma nova forma de expressão ade-quada aos tempos do telégrafo, trem a vapor, enfim, um tempo que tinha como diversão imaginar o futuro. A fotografia, principalmente, o retrato fotográfico, com toda a sua possibilidade de encenação, in-venta uma memória para ser perenizada, eternizando-se na emulsão fotográfica uma vontade de ser, algumas vezes risível, mas, na maior parte, crível. Uma imagem produzida dentro de um regime visual cuja função era a de ser uma, tal como define Bourdieu, “representação da sociedade em representação” (apud FABRIS, 2004), ou seja, um duplo do próprio ato que a fundava como imagem/monumento.

Do espaço das capitais até pequenas cidadezinhas do interior, a fotografia foi criando seu circuito social composto por fotógrafos de diferentes procedências, que ofereciam produtos variados para uma clientela que crescia e se diferenciava socialmente.

entre imagens: camPo fotográfico e habitus de classe

O fotógrafo através do ato fotográfico inscrevia a paisagem e seus habitantes na imagem, transformando-a em duplo de uma rea-lidade cuja reelaboração tem a marca de sua autoria. Na condição de duplo, de representação, a imagem da cidade e seus habitantes integram o estoque de bens colocados à disposição para o consumo e intercâmbio simbólico, necessários aos diferentes setores da classe dominante na elaboração de seu habitus de classe.

O nome do fotógrafo, no verso da foto, ou a sua assinatura, na própria imagem, como faziam os pintores, definia tanto a autoria do trabalho quanto atuava como marca de distinção social. Isso porque o lugar ocupado pelo fotógrafo no interior do campo de profissional era guiado por uma hierarquia de valores que orientava a prática fotográfica como experiência social.

Essa hierarquia estabelecia-se segundo um critério orientado pelos seguintes princípios: acesso às inovações técnicas; opções estéticas adequadas aos padrões internacionais, local onde o studio do fotógrafo estava localizado; prêmios e menções obtidas nas ex-posições nacionais e internacionais; proximidade ao poder imperial, sendo fotógrafo da Casa Imperial ou obtendo alguma menção, tal como “cavaleiro da Ordem da Rosa”; contatos comerciais com o mer-cado de vistos, estampas e retratos internacionais; e ainda, formação artística proveniente das Belas Artes. Tais princípios organizavam a atividade de profissionais da fotografia que atuaram em várias partes do Brasil.

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Tomemos dois fotógrafos de dois tempos, para compor tal idéia: Marc Ferrez e Augusto Malta.

Marc Ferrez, carioca, nascido em 1843, dedicou-se fundamen-talmente a fotografar vistas,

longe de ser um paisagista casual ou episódico como os demais fotógrafos de seu tempo, reivindicou de modo claro sua opção pelo paisagismo e fez questão de qualificar sua empresa de estabelecimento, ao invés de empregar os termos mais usuais, à época, de ateliê ou estúdio [...]. ( VASQUEZ, 1995, p. 30).

De fato, Ferrez se anunciava no Almanaque Laemmert como fotógrafo de vistas e panoramas.

Devido a esta escolha, Ferrez estava sempre envolvido com algum projeto expedicionário, ou algum tipo de especialidade, como foi o caso das fotografias de embarcações, que lhe valeram o título de Fotógrafo da Marinha Imperial. Além deste título, foi sagrado Cava-leiro da Ordem Imperial da Rosa, em 1885. Premiado em exposições nacionais e internacionais, dentre as mais importantes, destacam-se: a Exposição do Centenário da Independência dos Estados Unidos, em 1876, e a Exposição Universal de Paris, em 1877, conquistando, através de tais eventos, reconhecimento internacional.

Além de incansável pesquisador de paisagens e temas urba-nos, Ferrez se dedicava à atualização técnica. Inventou um sistema de fixação da câmera para neutralizar o balanço das ondas do mar quando fotografava embarcações, foi um dos primeiros a utilizar o flash de magnésio, a introduzir chapas coloridas, e pioneiro na exploração comercial dos cinemas, além de ter desenvolvido uma gigantesca câmera para fixar imagens de panoramas.

Apesar de não ser retratista, Ferrez realizou inúmeros retratos da família imperial, denotando, através desta escolha, sua situação no interior do campo fotográfico. Gozava da intimidade do poder, detinha um capital técnico e cultural expressivo e participava do circuito fotográfico internacional, itens fundamentais para uma ex-pressiva trajetória como profissional de imagens no século XIX.

Augusto César Malta de Campos, alagoano, nascido em 1864, veio cedo para o Rio de Janeiro, dedicando-se, desde então, a um rol variado de atividades. Foi vendedor de móveis, guarda-livros, co-merciante de secos e molhados e, antes de se tornar fotógrafo aos 36 anos, vendedor ambulante de tecidos, atividade na qual conquistou uma seleta clientela que depois lhe freqüentou como fotógrafo.

Apresentado, casualmente, ao prefeito Pereira Passos por um amigo, o ferrenho republicano, Augusto Malta, torna-se, em 27

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de julho de 1903, o primeiro fotógrafo oficial da prefeitura do Rio de Janeiro. Dentre as suas tarefas estava a de documentar detalha-damente o processo de remodelação e modernização da Capital Republicana, além de registrar solenidades oficiais e o cotidiano da prefeitura. No entanto, Malta não se limitou ao contato profis-sional com Passos, tornou-se seu amigo e fotógrafo particular da família Passos. Além disso, mantinha constante comunicação com o prefeito através das inscrições que realizava em suas fotos, nas quais indicava os prédios que necessitavam ser colocados a baixo, entre outras opiniões sobre a cidade e seus habitantes (OLIVEIRA JR., 1994, 1998).

Além do trabalho como fotógrafo oficial, Malta também tinha um estabelecimento fotográfico próprio, onde realizava trabalhos para uma clientela formada por famílias importantes, personali-dades do governo e por destacadas empresas privadas, dentre as quais a Light, companhia de fornecimento de energia elétrica, sua cliente por mais de 40 anos. Malta não foi honrado com premiações: seu capital simbólico estava representado pela proximidade que mantinha com o poder, portanto, suas imagens contribuíram para a construção da ideologia do progresso e da modernização própria ao contexto de redefinição da inserção do Brasil na ordem capitalista internacional.

Ambos são exemplos claros de fotógrafos que, apesar de não terem uma origem social na classe dominante, atuam no sentido da produção de bens culturais que são computados no armazenamento do capital simbólico colocado à disposição desta na construção do projeto hegemônico de sua representação política. No entanto, à medida que adquirem relevo no interior do campo, reinvestem-se de uma competência que os distingue dos demais fotógrafos como aqueles que produzem sentido social, delimitadores do habitus de classe (BOURDIEU, 1982, p. 192) .

Por isso nos parece relevante dimensionar o papel da imagem fotográfica na estruturação do habitus. Vale refletir como o circuito social da fotografia, a experiência visual por ela disponibilizada e as práticas sociais de memória elaborados a partir da invenção e difusão da fotografia estão estreitamente relacionados à elaboração de representações sociais de comportamento que constituem a dis-tinção dos diferentes grupos que circulam e convivem na cidade.

Neste sentido, Ferrez e Malta não se opõem no interior do campo fotográfico, ao contrário, atualizam temporalmente o capital ideológico investindo numa nova qualidade de imagens como forma

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de capitalização simbólica para a fração de classe dominante que detém o poder tanto imperial quanto republicano.

a inscrição na Paisagem: ferrez e malta visualizando a cidade

A fotografia surge em um momento no qual a cultura ocidental estabelecia uma nova consciência do mundo natural associada aos processos de expansão e colonização de novas regiões do globo. Ao menos visualmente, a fotografia possibilitava controle quase total da terra, segundo o padrão de ordenamento e as demandas políticas do colonizador.

Dois eixos norteariam as representações elaboradas visual-mente pela fotografia neste contexto: o primeiro estaria associado ao pitoresco e ao lazer possibilitado pela cada vez maior circulação de pessoas entre diferentes países. Neste caso, o pitoresco é um índice cultural, e o turista pitoresco busca cenas ideais pautadas em determinados pressupostos não ditos, numa mirada penetrante que tem a ver tanto mais com um ideal imaginado do que propriamente com o que está sendo visto. O segundo buscaria representar o espa-ço modernizado e civilizado. A natureza dominada visualmente terá como ícone da modernidade a paisagem urbana. A fotografia urbana do final do século XIX, como explica a historiadora Vânia Carvalho, reintroduz a noção de “belo ideal” nas imagens da natureza ordenada segundo os modelos dos jardins franceses. Na refuncionalização do espaço da natureza pela fotografia urbana, estariam implícitas formas de disciplinarização baseadas no seu uso produtivo e como espaço de lazer (CARVALHO, 1993, p. 225).

O crescente processo de urbanização da segunda metade do século XIX produziu uma nova textualidade, na qual textos verbais e não-verbais se entrecruzariam na elaboração dos campos de signifi-cação da cidade como imaginação e vivência. A fotografia toma parte desse processo, de maneira ativa, simultaneamente respondendo à variedade e à multiplicidade da vida e de experiências urbanas, e às questões relativas a como a cidade era percebida e representada. Em resumo, o ato fotográfico inscrito no espaço urbano relaciona-se, es-treitamente, à complexidade visual da cidade tanto como experiência quanto como imagem (CLARKE, 1997, p. 75).

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É dentro desta lógica que se inscrevem a produção fotográfica de Marc Ferrez e Augusto Malta.2 Vale lembrar que tais produções estariam associadas à posição de ambos os fotógrafos no interior do campo fotográfico, e serviriam, assim, à constituição do capital simbólico necessário ao exercício do poder.

Marc Ferrez é o fotógrafo dos grandes panoramas, nos quais a cidade surge na sua totalidade, como espaço a ser possuído e con-trolado pelo ponto de vista de quem fotografa. O olhar panorâmico cria a ilusão de que o espaço denso e extenso está sendo dominado através do enquadramento, ao mesmo tempo que a cidade é mantida à distância.

Em geral, os panoramas de Ferrez eram realizados do alto dos morros, torres ou qualquer outro marco de elevação, de onde projetava o olhar para a totalidade da cidade, ao mesmo tempo que centralizava esta totalidade a partir do seu olhar. O resultado dessa dialética de pro-jeções é a elaboração de uma representação em que os eixos verticais e horizontais se cruzam na criação de uma certa imagem da cidade. Tal imagem é o resultado da síntese de uma tradição pictorialista com os elementos trazidos pelo uso de recursos técnicos da fotografia, o que gerou na linguagem fotográfica a possibilidade de elaborar um novo padrão de visualidade. No entanto, ainda no século XIX, este padrão não está plenamente definido, já que as imagens encontram-se ainda bastante ancoradas no ideal de beleza clássico.

Neste sentido, os eixos horizontais permitem associar a cidade a um espaço extenso e equilibrado, mas delimitado. Os limites, apesar de serem os naturais, tais como os morros e o mar, indicam que a extensão do espaço e da natureza está sob controle. Por outro lado, o eixo vertical, definido pelos ícones – torres das igrejas, prédios mais altos, morros com construções –, celebra a cidade e produz uma hierarquia, através da qual se desenha sua cartografia, construindo uma geografia individualizada do espaço urbano.

O enquadramento panorâmico de Marc Ferrez dissolvia os detalhes das decantadas ruas estreitas e coloniais, compondo uma

2 A produção paisagística de Ferrez e Malta foi analisada a partir das fotografias publicadas em livros e catálogos. A lógica que norteou a montagem do corpus foi a da relação entre paisagem e cidade, entendendo-se as fotos publicadas como lugares de memória, acepção atribuída pelo historiador francês Pierre Nora aos lugares onde a memória se torna objeto da história. Publicações consultadas: FER-REZ, Gilberto. O Rio Antigo do fotógrafo Marc Ferrez: paisagens e tipos humanos, 1865-1918. Rio de Janeiro: Ex-Libris, 1985; VASQUEZ, Pedro. Mestres da fotografia no Brasil: a coleção Gilberto Ferrez. Rio de Janeiro: CCBB, 1995; ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Augusto Malta: catálogo da série negativo em vidro, Aristógiton Malta. Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura, Divisão de Editoração, 1994; SANTOS, Affonso Carlos Marques dos. O Rio de Janeiro de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Rioarte, 1983.

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paisagem ordenada. Nas fotografias de panorama das décadas de 1880 e 1890, tal ordenamento era fornecido pelo equilíbrio na composição das imagens, nas quais um mar de telhados entremeado por torres de igrejas definia as regiões habitadas da cidade. À medida que ela foi sendo reformada, os panoramas passaram a enfatizar as praças, os jardins e as avenidas, ícones de uma paisagem ordenada segundo a lógica da modernidade. Nestas imagens, a natureza, tão presente na paisagem do Rio de Janeiro, sugere o limite, o outro lado da cidade, um espaço para o lazer bucólico, ante a crescente movimentação urbana.

A figuração no panorama atuava como ponto de equilíbrio, como elemento de composição. Já nas fotos de plano médio, a figuração atua tanto como elemento associado ao movimento urbano – pessoas tran-sitando, ou subindo nos bondes –, quanto como o lado pitoresco da vida cotidiana – a famosa série dos tipos de ambulantes que circulam na cidade é uma referência importante.

Augusto Malta inicia seu trabalho de fotógrafo bem depois de Ferrez, e desde o início já associou à sua profissão de fotógrafo uma missão política: reeducar o olhar do cidadão a um novo padrão de paisagem urbana que se redefinia através do forte investimento do poder. Assim, compôs a imagem da cidade por meio de um mosaico temático, no qual se desenhou claramente uma política de reforma e modernização do espaço urbano. Dentre os principais temas que compõem a série de imagens pertencentes à coleção do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, onde estão alocadas as imagens produ-zidas para a prefeitura da cidade por mais de 30 anos (1903-1936) de trabalho como fotógrafo contratado, destacam-se: abastecimento, comemorações oficiais, diversões, exposições, higiene e assistência pública, instrução pública, limpeza pública, matas e jardins. Além disso, registrou todo o processo de reformas do centro da cidade, incluindo-se o desmonte do morro do Castelo, o processo de arrua-mento e urbanização dos bairros do litoral sul: Copacabana, Ipanema e Leblon. Fora da prefeitura, Malta mantinha sua atividade regular de fotógrafo, registrando a cidade no seu cotidiano por dentro e por fora de seus diversos espaços de sociabilidade.

A composição da expressão fotográfica das imagens produzi-das por Malta variava em torno do plano geral (ou panorama), plano conjunto, plano médio, plano americano (ou meio-plano) e primeiro plano, sem estabelecer uma hierarquia entre eles.3 Em todo caso, em

3 Sobre a construção espacial na expressão fotográfica de Malta, ver: OLIVEIRA JR., Antônio Ribeiro de. Do reflexo à mediação: um estudo da expressão fotográfica e da obra de Augusto Malta. Dissertação (Mestrado)- Pós-Graduação em Multimeios, Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, SP, 1994. cap. 3.

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sua coleção, ao contrário de Ferrez, não predominam os panoramas. A fotografia de Malta está situada ao “rés do chão”, engajava-se na confusão da cidade, no burburinho caótico que misturava ambulantes com seus pregões, burros sem rabo, bondes e transeuntes. Imagens que, ao mesmo tempo, celebravam a multiplicidade e a diferença, denunciavam o perigo do caos urbano.

As fotografias tiradas no nível da rua envolvem um senso dife-rente de espaço e um novo posicionamento do olhar do fotógrafo, que, ao contrário do panorama, não se concebe como centro da totalidade, mas como parte do constante movimento urbano. Ao colocar-se neste nível, o olhar do fotógrafo Malta promovia uma negociação entre os eixos horizontal e vertical, os extremos visuais da concentração e des-concentração do espaço, que compõem a dialética de como a cidade veio sendo visualizada ao longo das últimas décadas do século XIX. O resultado foi a criação de imagens de um tempo que passava de forma acelerada, redefinindo seus espaços de sociabilidade, segundo oposi-ções significativas: o público e o privado, o detalhe e o plano geral, o exterior e o interior, o histórico e o moderno, o perene e o transitório. Uma redefinição que tinha como substrato a mudança do habitus de classe segundo os parâmetros da modernidade ocidental.

A inscrição na paisagem urbana por dois fotógrafos em tempos distintos – Ferrez e Malta/séculos XIX e XX – possibilita, portanto, a avaliação de como a cidade atua como referente para a fotografia. Se no século XIX a cidade tornara-se um tema central para a câmera fotográfica, sua expressão ainda era um misto dos cânones da pin-tura romântica com experiências realistas. Já a fotografia do século XX, acostumada à cidade, não teria mais a função de ordená-la como paisagem, mas de estabelecer os termos para figurá-la segundo os princípios do novo dispositivo fotográfico. Constrói-se uma linguagem adequada à velocidade impressa pelo novo século ao cotidiano das cidades: o instantâneo fotográfico passa a ser a dimensão temporal do espaço urbano – uma paisagem em pleno movimento.

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caPítulo 7

imagens de Passagem: fotografia e os ritos da vida católica da elite brasileira, 1850-1950

Os ritos da vida religiosa católica pontuam a trajetória das famílias, dos distintos grupos da sociedade brasileira de maneira diferenciada ao longo do tempo. Nas camadas mais ricas, os eventos religiosos tornaram-se eventos sociais cuja comemoração envolve um investimento simbólico significativo. Gradualmente, o padrão de comportamento da classe dominante burguesa passa a atuar como marca de distinção entre os pares sociais e modelo para as demais camadas da população, que se apropriam do ritual de acordo com sua visão de mundo.

A mise-en-scène religiosa envolve desde a escolha da indumentá-ria adequada para todos os participantes até o registro, quer seja por fotografia ou mais recentemente por vídeo. No entanto, a elaboração das representações sociais de comportamento religioso pela classe dominante brasileira sofreu mudanças significativas, desde meados do século XIX até a consolidação do modo de vida burguês nos anos 1950 (MAUAD, 1990, 2002). Mudanças essas capazes de criar uma imagem-monumento que deixasse como legado às gerações futuras um certo modo de viver.

Neste processo, a imagem fotográfica vai assumindo um papel cada vez mais importante, pois as fotografias familiares não congelam momentos vividos de forma automática, elas interpretam e dialogam com o tempo vivido traduzindo-o numa linguagem de imagens; para interpretá-la, a presente análise se organizará em três tempos:

Imagem fotográfica como representação: identificam-se os nexos 1. entre representação e ritualização na imagem fotográfica, a partir de um acesso histórico-semiótico.Fotografia, família e religiosidade – o silêncio oitocentista: avaliam-2. se os tipos de imagens que se produziam e a presença dos ritos da vida católica no cotidiano das famílias das camadas médias e altas da sociedade brasileira. Cruzar-se-ão as evidências escritas com as ausências nas imagens, buscando-se entender o porquê de a imagem de tais ritos não se constituir como uma representação para a sociedade oitocentista – mesmo que os recursos da técnica fotográfica possibilitassem tais fotografias.

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Fotografia, família e religiosidade – a eloqüência burguesa: neste 3. segundo momento, a fotografia atinge a privacidade dos lares, passa a fazer parte do cotidiano social, tendo como agente deste processo os pais de família. O desenvolvimento da técnica foto-gráfica levou à compactação das máquinas, ao barateamento dos custos da produção da foto e a uma generalização de laboratórios especializados em revelar e ampliar a imagem fotográfica. O que, antes, era relatado no diário de família passa a compor o álbum de fotografias. A palavra escrita cede lugar à imagem fotográfica na elaboração das representações sobre as vivências religiosas. Atuando como importante baliza na narrativa das memórias fami-liares, as fotografias sobre eventos religiosos têm como marca de possibilidade muito mais do que as facilidades da técnica fotográ-fica: a mudança nos códigos de representação social, fortemente marcada, desde a virada de século, por códigos de comportamento tipicamente burgueses. Desta forma, a publicização do evento religioso pela imagem fotográfica estava associada a uma nova forma de sensibilidade religiosa, agora relacionada a uma codifi-cação do tipo burguês.

fotografia como rePresentação

O conceito de representação passou a fazer parte do vocabulário histórico, a partir da aproximação da história com as demais discipli-nas das ciências sociais, notadamente, a antropologia. No entanto, a categoria de representação, tal como tantos outros conceitos tomados de empréstimo pela história, na tentativa de alargar seus horizontes teóricos, merece um pouco mais de atenção, dada a sua característica, muitas vezes, polissêmica.

Logo de início, vale atentar para o fato de que o conceito de re-presentação, originário da matriz oitocentista da antropologia cultural – Mauss e Durkheim – ganhou um campo mais amplo de aplicação com a gradual aproximação da antropologia com as ciências da linguagem, particularmente a semiótica e a semiologia.

Desta forma, tal como aponta Roger Chartier, o conceito de re-presentação tem, em sua base etimológica, uma duplicidade de signifi-cado, cuja aplicação engendra procedimentos teóricos antagônicos:

As definições antigas do termo manifestam a tensão entre duas famílias de sentidos: por um lado, representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por

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outro lado, a representação como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou alguém. (CHARTIER, 1989, p. 20)

Teríamos, segundo esta distinção, duas modalidades de repre-sentação:

Representação como imagem presente de um objeto ausente. Aí, 1. identificada com uma noção já ultrapassada de signo, que o defi-niria como algo que mantém uma relação de substituição com o objeto que o origina.Representação como constrangimento. Neste caso, a presença 2. de signos visíveis seria a prova de uma encenação. Neste sentido, como completa Chartier, “a representação transforma-se numa máquina de fabrico, de respeito e de submissão” (CHARTIER, 1989, p. 22).

No entanto, deter-se em um destes dois sentidos seria, justamen-te, perder a enorme contribuição que os estudos sobre os processos de produção de sentido forneceram para a compreensão e análise das práticas e comportamentos sociais – individuais e coletivos. Dentro desta perspectiva, a definição proposta por Sergei Moscovici para o conceito de representação social desvenda toda a sua possibilidade analítica. Para este autor, a representação social define-se como:

Um sistema de valores, de noções e de práticas, com uma dupla vocação. Inicialmente, de instaurar uma ordem que dê ao indiví-duo a possibilidade de se orientar no ambiente social, material e dominá-lo. Em seguida, de assegurar a comunicação entre os membros de uma comunidade propondo-lhes um código para suas trocas e um código para dominar e classificar de maneira unívoca as partes do seu mundo, de sua história individual e coletiva. (MOSCOVICI, 1978, p. 131)

Claro que tal definição não se distancia muito da de Chartier quando ele habilita teoricamente o conceito de representação como a chave para a compreensão de uma dada realidade histórica. Ao ultrapassar o limiar idealista inscrito no conceito de mentalidade, a noção de representação ensejaria três formas de articulação das idéias, valores e sentimentos com a dinâmica do mundo social:

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Em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais, a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos, seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetiva-das graças as quais “representantes” (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade. (CHARTIER, 1989, p. 23)

Devedor da tradição sociológica inaugurada por Norbert Elias, Chartier define representação a partir de um outro conceito que, na verdade, o fundamenta. O conceito fundador é o de habitus. Para Elias (1992), habitus é a forma de sentir e agir não-reflexiva, o equivalente a uma segunda natureza que, através da disciplinarização das pulsões e do autocondicionamento psíquico, vai, pouco a pouco, estruturando a personalidade humana.

Ainda nesta linha de reflexão, Pierre Bourdieu distingue os esquemas geradores das práticas das representações mesmas que envolvem tais práticas. Tais esquemas geradores, segundo o autor, podem ser chamados de cultura, competência cultural, ou, para evitar equívocos, habitus. Bourdieu (1982) define habitus como um sistema de estruturas interiorizadas e “condição de toda objetivação”.

O habitus, dentro de tal perspectiva, constitui a matriz a partir da qual os códigos de comportamento e as estruturas sociais são inter-nalizados historicamente. Neste processo, o conjunto de experiências sociais vivenciadas pelos indivíduos, ao longo de seu crescimento, nas diferentes etapas de sua vida, estaria norteado pelo habitus de classe, limite e condição das representações sociais.

Como representação, a fotografia não pode ser dissociada do ato que a fundamenta, ou seja, também se fundamenta num habitus. Muito mais do que uma mensagem que se processa através do tempo, a fotografia atualiza, no tempo, o referente que a engendrou. Na sua dimensão de índice, de marca e de resquício, a fotografia é sempre uma presença. Não substitui a experiência vivida, mas institui, a cada fotografia tirada, a cada fotografia admirada, uma nova experiência. Portanto, antes de representar, a fotografia aponta, indica e designa. Para Roland Barthes, o certificado de presença inscrito na imagem fotográfica a diferencia das demais imagens, sempre associadas aos signos icônicos:

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A fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi [...]. Diante de uma foto, a consciência não toma necessariamente a via nostálgica da lembrança, mas a vida da certeza: a essência da fotografia consiste em ratificar o que ela representa [...] a fotografia é in-diferente a qualquer revezamento: ela não inventa; é a própria autenticação; raros artifícios por ela permitidos não são proba-tórios; são, ao contrário, trucagens: a fotografia só é laboriosa quando trapaceia [...], ela jamais mente: ou antes, pode mentir quanto ao sentido da coisa, na medida em que por sua natureza é tendenciosa, jamais quanto a sua existência. Impotente para as idéias gerais (para a ficção), sua força, todavia, é superior a tudo o que o espírito humano pode, pôde conceber para nos dar garantia da realidade. [...] Toda a fotografia é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo que sua invenção in-troduziu na família de imagens. (BARTHES, 1984, p. 127-129)

O fundamental é diferenciar esta forma de presença daquela, tratada por Chartier, que se relaciona à encenação e ao constrangi-mento. O filósofo francês Philipe Dubois relaciona a idéia de presença inscrita na fotografia à ontologia da imagem fotográfica, ou seja, a sua gênese automática – no exato momento de sensibilização, pela luz, da superfície fílmica, o ato fotográfico foge ao controle humano, é pura escrita de luz. Daí a marca de resquício e a relação de contigüidade, estabelecida entre a imagem fotográfica e seu referente. Aqui também encontram-se as idéias de atualização e presentificação, inscritas na pragmática do ato fotográfico.

O signo fotográfico, segundo Dubois, é, dependendo do nível das relações que estabelece com sua situação referencial, tanto índice, quanto ícone e símbolo, ou seja, é resquício de luz, é representação por analogia e é, também, convenção social. No entanto, mesmo valorizando os procedimentos e atos fundamentados em escolhas culturais – nos chamados códigos –, Dubois prioriza a dimensão in-diciária do signo fotográfico, por esta implicar plenamente o próprio sujeito na experiência:

Em suma, um dos grandes desafios desta lógica do índice é colocar radicalmente a imagem fotográfica como impensável fora do próprio ato que a faz ser, quer este ato passe pelo re-ceptor, pelo produtor ou pelo referente da imagem. Espécie de imagem-ato absoluta, inseparável da sua situação referencial, a fotografia afirma por isso sua natureza fundamentalmente

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pragmática: ela encontra seu sentido primeiro na sua referência. (DUBOIS, 1992, p. 73)

A necessidade de considerar a dimensão pragmática, antes mesmo de compreender os atributos semânticos da mensagem por ela engendrada, distingue significativamente a fotografia dos demais meios de representação.

Portanto, a fotografia apresenta, para então, representar – as-sumir a sua dimensão de mensagem significativa, de classificação ou, quiçá, de lugar de memória. No entanto, para não cairmos numa fenomenologia do ato fotográfico, é fundamental que se relacione à sua pragmática fundadora a noção de circuito social da fotografia, relativa, como tantos outros comportamentos, ao habitus de cada época e grupo social.

É desta forma que entendemos a constituição dos álbuns de família. Um procedimento relacionado a uma necessidade que orienta sua organização, de formas diferenciadas ao longo do tempo. Desde os pesados e luxuosos álbuns oitocentistas até o banco de imagens digitalizadas e distribuídas pela internet, a produção de sentido no âmbito familiar pode ter mudado na forma, mantendo, no entanto, a substância que a alimenta, como reflete Dubois:

Toda a prática do álbum de família vai ao mesmo sentido: para lá das poses, dos estereótipos, dos clichês, dos códigos datados, para lá dos rituais de ordenação cronológica e da inevitável escansão dos acontecimentos familiares (nascimento, batismo, comunhão, casamento, férias etc.), o álbum de família não deixa de ser um objeto de veneração, cuidado e cultivado [...] abre-se com emoção, numa espécie de cerimonial vagamente religiosos, como se tratasse de convocar os espíritos. Seguramente, o que confere um tal valor a esses álbuns não são nem os conteúdos representados, nem as qualidades plásticas e estéticas da composição, nem tampouco o grau de semelhança e realismo das fotografias, mas a sua dimensão pragmática, o seu estatuto de índice, o irredutível peso referencial, o fato de se tratar de verdadeiros vestígios físicos de pessoas singulares que esti-veram ali e têm relações particulares com os que guardam as fotografias. Só isso explica o culto de que são objeto as fotos de Família. (DUBOIS, 1992, p.77)

Como forma de expressão das sensibilidades religiosas, a foto-grafia tanto apresenta quanto representa as formas como as socieda-

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des e seus grupos sociais vivenciaram os ritos de passagem da vida religiosa. O interessante é notar como, no século XIX, as opções do retrato simplesmente implicaram a ausência de temas relativos à vida religiosa. É a partir da dialética entre aquilo que a fotografia apresenta e aquilo que ela silencia, sobre os ritos da vida religiosa, que refletire-mos sobre as imagens produzidas pela sociedade oitocentista.

fotografia, família e religiosidade: o silêncio oitocentista

Como coloca Roger Chartier, toda representação só se con-substancia numa prática que, por sua vez, engendra uma forma de apropriação, sendo a história cultural o estudo dos processos com os quais se constrói o sentido. Dito isso, como interpretar a ausência de imagens dos ritos da vida religiosa – batismo, comunhão e casamen-to –, nos álbuns de família da sociedade oitocentista? A ausência na imagem é também uma forma de representação que de forma alguma implica a desvalorização de tais ritos. Ao contrário, esta ausência nos obriga, em primeiro lugar, a refletir sobre qual é o papel designado a tais práticas na sociedade e, em seguida, a avaliar no que efetivamente era fotografado a relação com tal ausência.

Em um interessante manuscrito, denominado, “Meu nascimento e factos mais notáveis da minha vida (1835-1900)”, o médico residente em São Cristovão, Augusto José Pereira das Neves, rememora os fa-tos mais significativos de sua vida. Anualmente sintetiza os eventos considerados por ele relevantes. Passeios, doenças e mudanças de en-dereço, batizado, comunhão, casamentos e morte dos filhos pontuam sua narrativa como fio condutor de um tempo que já passou, mas que é atualizado no momento da escritura pelo filtro da memória.

Aí encontramos devidamente referendados os ritos da vida católica. Logo no início do manuscrito, antes de principiar a narrativa dos anos, Augusto José faz uma breve biografia de cada um de seus 10 filhos. Em tais sumários biográficos, a data com a hora e o local do batismo são informações indispensáveis, que apareciam seguidas da data do enterro quando os filhos morriam pequenos.

No decorrer do século XIX, escreve Anne Martin-Fugier (1991), o batismo e a comunhão, além de marcar a entrada das crianças na comunidade cristã, transformam-se em reuniões de família, ocasiões para comprovar sua vitalidade e renovar seus atos.

Os filhos do doutor Augusto foram batizados quase todos na matriz de Santa Rita, com idades que variaram entre três meses de vida a um ano e três meses. Somente um deles, a filha Annita, foi batizado

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“no oratório do colégio da prima Rosinha a rua Miguel de Frias, para o que pedi licença ao vigário da Matriz de Santa Rita”.

O horário da cerimônia de batismo era livre, sendo o mais cedo às sete e meia da manhã e o mais tarde às cinco horas da tarde, depois se seguia uma breve celebração. Na lista dos presentes à cerimônia, os padrinhos ganhavam destaque, sendo anotada entre parênteses a relação que os escolhidos mantinham com a família, isto porque “tan-to o padrinho quanto a madrinha têm a função oficial de assegurar a educação do afilhado, no caso da perda dos pais. Mas acima de tudo são encarregados de presentes ritualizados”.

Os padrinhos também cumpriam um importante papel no enter-ro dos filhos pequenos, como fica explicitado na seguinte passagem: “O padrinho lhe fez o enterro com toda a crença. Deus lhe dê o ceo pobre filhinha – tão esperta e engraçadinha”.

A morte presente na narrativa verbal, como marco de consuma-ção, também podia ser encontrada na fotografia. O retrato de crianças mortas não era raro nos álbuns de família, denotando que esta forma de ritual não era interditada ao retrato, inscrevendo a morte na imagem como forma de perenizar a presença do ente que se foi. Uma presença que não se consome com o tempo e se atualiza a cada novo olhar. Mesmo não estando presente, o filho morto está ali.

Na sociedade oitocentista, a primeira comunhão disputa com o casamento o título de “mais belo dia da vida”. Sob muitos aspectos, ela antecipa o papel do casamento, pois representa um compromisso feito perante toda a comunidade. A cerimônia também prefigura o ritual do matrimônio, desde a indumentária – vestidos e véus de mus-seline para as meninas e o sóbrio traje negro para os meninos – até a mise-en-scène de entrada na igreja e a expressão dos sentimentos de comoção religiosa (MARTIN-FUGIER, 1991, p. 248).

A Igreja tentava, sucessivamente, adiantar a data da primeira comunhão como forma de garantir mais cedo a pureza da alma, ao mesmo tempo que buscava reduzir o luxo que rodeava tais celebra-ções. Entretanto, ao longo do século XIX, a primeira comunhão era feita entre 10 e 12 anos. Somente no século XX que a data dos sete anos, pretendida pela Igreja, torna-se obrigatória com o decreto papal de 8 de agosto de 1910 (MARTIN-FUGIER, 1991, p. 250).

O doutor Pereira das Neves não deixou de relatar o dia da primeira comunhão de sua filha mais velha com bastante emoção, denotando a importância do ato: “A 15 de agosto de 1874 (N.S. da Gló-ria), fez Alice sua 1a comunhão, no collégio de Botafogo, dirigido pelas irmães. Fomos todos assistir a tão solenne acto. Deus lhe conceda a sua divina graça!”.

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O casamento dos filhos também merece nota na narrativa dos fatos notáveis da vida do dr. Augusto José, com descrição da cerimô-nia relacionando, inclusive, os convidados que compareceram. Na sociedade oitocentista, o casamento assegurava aos setores mais aristocráticos a manutenção da linhagem. No caso da família em questão, pertencente a uma possível elite urbana, o casamento era a garantia de que as filhas mulheres seriam amparadas e consideradas socialmente. Afinal de contas, toda a educação feminina era voltada para este destino. Algumas vezes precoce demais.

O interessante é que a família Pereira das Neves possui fotogra-fias que seguem o padrão das coleções fotográficas do século XIX, dei-xando de fora os ritos tão lembrados pelo pai nas suas memórias.

Muitos outros exemplos de famílias do século XIX que, em seus diários, relatavam os ritos da vida religiosa, mas não os mencionavam nas fotografias familiares poderiam ser citados. O fragmento do diá-rio de Bernardina, filha de Benjamim Constant, relativo ao segundo semestre de 1889, relata com detalhes aniversários, batizados e até mesmo o baile da Ilha Fiscal, visto do ponto de vista de quem não foi convidado. Mas as fotografias que compõem a coleção de Benjamim Constant mantêm o mesmo padrão de tantas outras em que tais even-tos estão ausentes. Qual seria este padrão?

A fotografia oitocentista se divide em dois tipos: panoramas e vista e o retrato. Os panoramas e vistas podem ser considerados fotos públicas, completamente voltadas para paisagens urbanas e rurais. Guardam uma estreita relação com o panorama da pintura, em termos de opções estéticas, tais como: distribuição equilibrada dos volumes, dos claros e escuros e opção pelo enquadramento central e horizontal.

O retrato mantém os mesmos padrões pictóricos, ganhando novos atributos no que diz respeito aos elementos de composição da foto, tais como: cenário e pose. Mas o que definitivamente revolucionou a arte do retrato foi a invenção, em 1852, pelo fotógrafo francês Eugene Disderi, do formato carte-de-visite, um retrato de proporções reduzidas (6x10cm), que poderia ser copiado às dúzias, trocado, guardado e presenteado, acompanhado de uma dedicatória que remetia a imagem a alguma forma de relação entre quem dava e recebia a imagem.

O sucesso do retrato carte-de-visite deve-se justamente à capa-cidade de adaptar o cliente a moldes preestabelecidos e de possível escolha através de um catálogo de objetos e situações; o estúdio do fotógrafo passa a ser um depósito de complementos escolhidos para caracterizar diferentes papéis sociais que se quer fabricar. A mise-en-scène do estúdio do século XIX variou ao longo do tempo, cada

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década, no período da carte-de-viste e, mais tarde, do cabinet-size, teve seus acessórios especialmente característicos. Nos anos 1860 era a balaustrada, a coluna e a cortina; nos anos 1870, a ponte rústica e o degrau; nos anos 1880, a rede, o balanço e o vagão; nos anos 1890, palmeiras, cacatuas e bicicletas e, no início do século XX, o automóvel. O próprio cliente se converteu, ele mesmo, num acessório de estúdio, suas poses obedeciam a padrões estabelecidos e já institucionalizados de acordo com a sua posição social.

A fotografia do período não abria mão da sua própria estética, como fica exposto no livro Estética da fotografia, publicado por Disderi, em 1862. Neste livro, o fotógrafo francês estabeleceu os princípios básicos de uma boa fotografia, protocolos a serem cumpridos para um bom resultado final.

A busca da beleza se torna o ideal a ser conquistado pelo fotógrafo e uma prerrogativa exigida pelo cliente. Ao satisfazer esta exigência, o fotógrafo cria um padrão de representação que apaga o indivíduo em prol de um estereótipo social. Ao se reconhecer como parte integrante da mesma sociedade de imagens que os chefes de Estado, sábios e artistas, o cliente se satisfaz, pois vê preservada da ação do tempo a representação que quer alcançar. Na fotografia ornamentada com acessórios, na maioria das vezes ausentes de seu cotidiano, reveste-se dos emblemas da classe com a qual quer se ver identificado.

A impossibilidade técnica, da fotografia de então, de produzir instantâneos, já que somente no final do século XIX o tempo de fixação da imagem passa a ser contado por segundos – antes disso o tempo de exposição variava de cinco a um minuto –, inscreveu no próprio ato fotográfico oitocentista a relação que a imagem fotográfica estabe-lecia com o seu referente. Uma relação pautada na pose estática e na hierarquia dos objetos e atributos relativos ao cenário. Paralelamente, a prática de trocar fotografias e de guardá-las em álbuns ratificou a padronização da imagem retratada como forma de garantir a comuni-cação entre fotografias concebidas como objetos de memória.

No caso da sociedade brasileira do século XIX, escravista e extremamente hierarquizada, a fotografia tinha a função de ratificar através de sua imagem a posição do fotografado na hierarquia social. Integra, assim, o habitus das sociedades de corte, nas quais:

A posição objetiva de cada indivíduo depende do crédito atri-buído à representação que ele faz de si próprio por aqueles de quem espera reconhecimento; quando compreende as formas de dominação simbólica, por meio do “aparelho” ou do “apa-

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rato”[...] como corolário da ausência ou do apagamento da violência bruta. É no processo de longa duração de erradicação e de monopolização da violência que é necessário inscrever a importância crescente adquirida pelas lutas de representações, onde o que está em jogo é a ordenação, logo a hierarquia da própria estrutura social (CHARTIER, 1989, p. 23).

Neste sentido, a ausência dos ritos da vida religiosa se faz em função da presença da hierarquia social estampada na superfície da imagem. A representação fotográfica publica uma imagem que circula entre os membros da sociedade, como forma de pertencimento e de reconhecimento do lugar social, reservando para o espaço dos diários os relatos das experiências familiares que deveriam ser mantidas no recôndito da intimidade. Assim na formalidade da imagem fotográfica e de seus códigos rígidos de representação se impregna a escrita de si (GOMES, 2004), como o outro lado da imagem, mais terna e afetiva, porque reservada ao privado.

fotografia, família e religiosidade: a eloqüência burguesa

Bem, mas se a fotografia oitocentista cala em relação à repre-sentação dos ritos da vida religiosa na imagem fotográfica, a burguesia que se formula ao longo da primeira metade do século XX no Brasil a referenda. Desta vez, como marca de uma vivência de classe, como parte integrante do habitus, de uma sociedade que ganha em mobili-dade social e promove a renegociação, entre seus pares, dos signos de distinção social.

Neste contexto, a fotografia cumpre um importante papel na construção das representações sociais de comportamento da socie-dade burguesa. Uma breve avaliação do circuito social da fotografia na primeira metade do século XX nos permite compreender tal papel.

Já no início do século, a fotografia ultrapassa os limites dos ate-liês fotográficos tão típicos no século XIX, para conquistar os espaços públicos e domésticos da sociedade burguesa de então, abandonando, neste processo, a rigidez da pose do retrato para ganhar a agilidade do instantâneo fotográfico.

No século XX, a máxima da Kodak You press the botton and we do the rest é a melhor forma de caracterizar as mudanças no hábito de fotografar. Eximidos da pressão do tempo de fixação da imagem, fotógrafos e fotografados lançaram-se ao delírio de tudo pela objetiva capturar.

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Em 1904, a edição de domingo do Jornal do Brasil registra, de forma cômica, a invasão das câmeras portáteis. Na primeira página, um grande desenho reproduz uma cena dominical em que todos os personagens, adultos e crianças, homens e mulheres, portam uma câmera portátil, em cuja lateral se lê o seguinte comentário:

A fotografia e as praias – exclamava há dias uma venerável senhora que ainda vai às praias para tomar banho. É uma praga, ninguém toma banho e todos tiram fotografias! Se uma pessoa se levanta – clic! – ouve-se um estalido; se assenta, tem de tomar posição conveniente, porque fica rodeada de objetivas ávidas.

A publicidade sobre a fotografia é a fonte principal para se ava-liar: o perfil do consumidor de produtos fotográficos e a fotografia; o arsenal de recursos disponíveis; e as expectativas relacionadas ao ato fotográfico.

A publicidade da Kodak voltava-se para a educação de um amplo público, e potencial mercado consumidor. Assim, desde a década de 1920, passou a publicar anúncios nas principais revistas ilustradas cariocas. Em tais anúncios, apresentava-se a forma mais fácil, correta e interessante de gravar os momentos da vida diária nas suas diver-sas expressões. Graças à Kodak, o ambiente doméstico também é conquistado pela fotografia.

A chamada da publicidade sintetiza a idéia: Photographias em casa - são faceis de tirar com a Kodak moderna. Em seguida, um texto relativamente longo explica detalhadamente as vantagens do progres-so técnico da Kodak:

Em dez annos a photographia de amadores tem mudado tanto que as idéias de há dez anos são agora antiquadas. Por exemplo: anteriormente julgava-se muito difficil tirar photografias no in-terior de casas e que se podia obter bons instantâneos somente fóra de casa, sob condições ideais de tempo. Presentemente, podem-se tirar photographias dentro de casa, podem-se tirar instantâneos á sombra ou sob condições de luz pouco favoráveis [...]. (Photograma, n. 5, ago. 1928)

Paralelamente, é a Kodak quem garante a qualidade das imagens tiradas pelo fotógrafo amador, ao qual “não é necessária nenhuma experiência: a experiência está na Kodak” (Photograma, n. 5, ago. 1928). Esta experiência foi adquirida através de um desenvolvimento

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técnico, com bases científicas, bem como pela lógica industrial de se produzir um material de qualidade a um preço acessível: “Devido á produção em grande escala e fabricação scientifica, os peritos da Kodak conseguiram produzir uma objetiva anastigmática que ha tres annos sómente podiam obter em camera pelo dobro do preço” (Pho-tograma, n. 5, ago. 1928).

O próprio prazer de fotografar e preservar fotografias é garan-tido pelo sucesso das imagens estandardizadas pelo padrão técnico da Kodak:

Para o photographo amador, a Kodak moderna augmenta a variedade de photographias interessantes que elle pode tirar. Aumenta o numero de photographias que vale a pena guardar num album e aumenta, portanto os prazeres que a photografia proporciona ao amador. (Photograma, n. 24, jul. 1928)

Os temas para a fotografia são propostos tanto pelas imagens veiculadas a título de exemplo dos procedimentos descritos nos anúncios como no próprio texto:

Ao rever seu álbun de photographias tomadas com a Kodak, não sente V.S. o receio de que talvez o interessante instantaneo de Chiquinho ao banho ou de Sinhásinha, com sua boneca, po-deriam ter saido velados devido a ligeira imperfeição do film? (Photograma, n. 33, jul. 1930).

Portanto, os temas recorrentes nos anúncios são banhos de crianças, a hora do almoço na cadeirinha de bebê, o dever de casa, as brincadeiras infantis, fragmentos do cotidiano, ao longo do cresci-mento das crianças. E quem é o agente das imagens? As mães, tias e primas, sempre mulheres.

Apesar de estar endereçada ao fotógrafo amador, a figuração nas fotografias era sempre feminina para quem tirava a foto, e femini-na ou masculina para quem era objeto da foto. O que apontava uma tendência para a fotografia amadora do século XX diferente daquela apresentada nos anúncios do século XIX, notadamente endereçados aos chefes de família que detinham o capital financeiro disponível para o investimento em consumo de bens simbólicos. Nestes anúncios, a ênfase recaía sobre a habilidade do dono da casa fotográfica e os serviços disponíveis para a criação de uma perfeita ilusão.

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Figura 16 - Publicidade

KODAK, Revista Fotogra-

ma, Rio de Janeiro, 1925.

Uma outra companhia que, juntamente com a Kodak, era de-tentora de uma importante fatia do mercado de produtos fotográficos era a empresa alemã AGFA. A publicidade da AGFA, que vendia um estilo de vida e um padrão de qualidade sempre preocupados com a estética, imprimia, em tais anúncios, um clima de distinção e elegância protagonizado por mulheres esbeltas em traje de banho ou vestidos esvoaçantes e homens musculosos com poses masculinas ou prati-cando esportes. As crianças não faziam parte deste mundo clean.

Outro elemento que distinguia a publicidade da AGFA daquela feita pela Kodak era a opção pelo desenho em vez das reproduções fotográficas; a impressão de fotos não contribuía com a nitidez neces-sária à exibição adequada do produto. Seus desenhos caracterizavam, através de um traço fino e delicado, o mundo daqueles que tinham acesso aos produtos AGFA. De acordo com a tendência da época, era um mundo chic e elegante, em que o ato de fotografar estava associado a um alto padrão de consumo. Acompanhava a elegante simplicidade do desenho um slogan curto e objetivo, em que a mensagem principal era a alta qualidade e a avançada tecnologia alemã.

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Figura 17 - Publicidade

Agfa, Revista Fotograma,

Rio de Janeiro, 1925.

Paralelamente à ampliação do mercado consumidor de fotografia e da elaboração de uma estética amadora – identificada pelas revistas especializadas da época como os “batedores de chapa” –, a profissão do fotógrafo social se consolida, possibilitando às diferentes frações da classe dominante o acesso a uma auto-representação condizente com o padrão burguês. Tal padrão é amplamente difundido pelas revistas ilustradas que circulavam pela capital federal e grandes cidades bra-sileiras. A ampliação do uso de fotografias em tais revistas, ao longo da primeira metade do século XX, permite que as colunas sociais passem a ser ilustradas com imagens da alta sociedade em diferentes eventos, dentre os quais, os ritos da vida católica. O que era visto na revista era tomado como referência para o trabalho dos fotógrafos de reportagens sociais em diferentes eventos, criando-se uma estética própria à representação social da burguesia urbana.

Os rituais do batismo, da primeira comunhão, da crisma e do casamento, na classe dominante brasileira, acompanham a tendên-cia, inaugurada na Europa do século XIX, de solenidade mundana. O aparato cerimonial na igreja é feito para deixar, para cada um destes ritos, uma lembrança indelével, devidamente preservada pela imagem fotográfica. Desde os anjinhos das cidades do interior dos anos 1920 até o aparato suntuário que acompanha a jovem na sua primeira co-munhão, nos anos 1940, foi se dando um entrelaçamento de imagens que posiciona a infância como o momento inaugural da sensibilidade religiosa católica.

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Figura 18 - Retrato, 8x10cm, fotógrafo

amador, c. 1920, coleção da autora.

Figura 19 - Retrato, 8x13cm, Foto

Nilo, 1942, coleção da autora.

Figura 20 - Retrato, 18 x

24cm, fotógrafo profissional

não identificado, 1950,

coleção da autora.

A rigidez dos noivos em 1923, acompanhada pelo olhar curioso das crianças que não foram convidadas para a fotografia, é um bom contraponto para a pose mais descontraída do casal dos anos 1930, como para a fotografia estilo reportagem social dos anos 1950. O casamento em três tempos.

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Figura 21 - Retrato, 12 x 18cm,

César Rally photographo,

1923, coleção da autora.

Figura 22 - Retrato, 17 x

22cm, fotógrafo profissional

não identificado, 1939,

coleção da autora.

Figura 23 - Retrato, 18 x

24cm, Sacha fotógrafo,

1956, coleção da autora.

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Em entrevista com algumas das donas dos álbuns de família do século XX, indaguei sobre a importância e a dinâmica de tais ritos nas suas vidas familiares, e a resposta dada reenvia-nos para a narrativa dos diários oitocentistas, em que tais comemorações, mais uma vez, servem de baliza para contar sua história, tendo os filhos como atores principais. Segue-se um pouco desta narrativa recriada:

O batizado era geralmente realizado depois de alguns meses, para que a mãe também pudesse aproveitar a festa. Os padri-nhos eram escolhidos de acordo com a amizade de cada um, mas era muito comum a prática dos avós batizarem os netos. Para ser madrinha tinha que ter feito a primeira comunhão. A preparação do batismo incluía o enxoval e a festa, geralmente, um almoço na casa dos avós. Quando a criança nascia fra-quinha, era logo batizada, minha tia, como passou muito mal quando pequena, foi batizada duas vezes, a primeira rapidinho, pois achavam que ela ia morrer, já depois que vingou, o batismo foi feito com mais calma.

Na minha época de catequista, preparei muitas crianças para a comunhão. Era feita, com todos juntos, depois a festa com mesa de doces oferecida pelas mães. As crianças se vestiam de anjo e eram acompanhadas por um anjo da guarda, que podia ser o irmão ou a irmã menor. O dia da comunhão era um dia muito sério. O jejum era total, não podia nem engolir a saliva. A gente confessava de tarde, vinha à preparação, o padre falava com todo mundo, depois até a comunhão todo mundo tinha de ficar quieto, bem concentrado. Comigo foi assim, mas com meus filhos não. Eles fizeram primeira comunhão sozinhos e depois teve um lanche lá em casa. (informação verbal)1

Dentre todos os ritos da vida católica, o de maior prestígio em termos de representação fotográfica era o casamento. Para a sociedade burguesa, o casamento representava a possibilidade de ampliação do patrimônio e a consolidação das redes de influência social e política. Esta celebração, a partir dos anos 1940, passou a ter direito inclusive a um álbum próprio, no qual todos os momentos da cerimônia são retratados.

1 Texto resultante da entrevista realizada, em junho de 1998, com Mariana Jabour Mauad e Julieta Mauad, ambas com cerca de 80 anos, as quais vivenciaram, na mesma época, os ritos da vida católica. Uma delas, Mariana Jabour, dona da cole-ção de fotografias analisada por mim em outro trabalho.

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É comum se encontrar no patrimônio iconográfico de famílias muito ricas um álbum pequeno, elaborado exclusivamente com provas das fotografias que integrariam o álbum principal, este em formato maior e adornado com detalhes na capa e no papel vegetal que se-parava as páginas. O álbum menor era como se fosse o “rascunho” da vivência, em que se poderia flagrar uma pose mais descontraída ou até uma careta, mas o álbum final deveria conter somente as fotos condizentes com o padrão monumental da cerimônia, ou seja: posadas e arranjadas de forma harmônica. Em ambos os casos, a narrativa é composta exclusivamente de imagens, deixam-se de lado os relatos escritos de tais vivências, que são amplamente substituídos pelo texto fotográfico.

É importante ressaltar que, desde o final do século XIX, a foto-grafia instantânea já é uma possibilidade. Ao longo dos primeiros anos do século XX, a fotografia democratiza-se devido ao barateamento e à compactação das máquinas fotográficas. Tal desenvolvimento tecno-lógico inscreve a dimensão instantânea no ato fotográfico, habilitando o registro do momento. Com esta mudança na pragmática fotográfica, a emoção espontânea passa a ser valorizada pela idéia do flagrante.

A pose, apesar de toda a agilização da fotografia, permanece como elemento constitutivo da hierarquia de sentido na representação fotográfica. Fotos de distinção, preparadas para servirem de emblema social, só poderiam ser posadas e geralmente apresentadas em passe-partouts finamente decorados.

Neste caso, a eloqüência das imagens reinscreve os ritos da vida católica como marcas de formação e identidade do grupo social. Eles atuam como signos de pertencimento a uma certa comunidade de iguais. No circuito social da imagem, eles ultrapassam a circu-lação restrita e ganham uma dimensão pública. Como se afirmou anteriormente na crônica social das revistas ilustradas, veiculavam-se, juntamente com notas sobre o casamento ou batizado dos filhos da elite dominante, as fotografias tiradas por fotógrafos da melhor qualidade, especializados em reportagens sociais. Desta forma, as fotos de batizado, comunhão e casamento da alta burguesia carioca, veiculadas pelas revistas ilustradas cariocas, integram o catálogo de representações a serem internalizadas, e seguidas como modelo, pelo conjunto do público das revistas. Mantêm-se, assim, os laços de coesão do grupo social, garantindo-se, ao mesmo tempo, a construção da representação hegemônica.

A sensibilidade religiosa, nesta dinâmica, é apropriada pelo significado de distinção e de status atribuído às representações sociais pela sociedade burguesa. As fotografias sobre os ritos de passagem

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da vida católica que integram os álbuns da família burguesa atuam como balizas, que datam o processo de crescimento individual e de integração do indivíduo na classe a qual pertence. O sentimento de pertencimento é reforçado quando, ao virar as páginas dos álbuns e olhar para as fotografias, as gerações futuras elaboram narrativas sobre os eventos passados, atualizando pela memória construída a experiência vivida.

conclusão

A fotografia, como representação que se fundamenta num ato, numa pragmática, remete à análise dos processos de produção de sentido por ela veiculada e ao contexto histórico no qual é realizada. Neste caso, sua leitura é sempre histórica. A dimensão da historici-dade, reinscrita na mensagem fotográfica pela idéia de ato fundador, não só reabilita o sujeito como agente produtor de sentido, como o identifica com o objeto fotografado, considerando ambos como partes de uma mesma ação.

Desta forma fica para o historiador, sujeito de um outro tempo e agente de um novo sentido, o desafio de aperfeiçoar sua capacidade em decifrar pistas, compreender indícios e avaliar sinais.

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PARTE III

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Os textos reunidos na Parte III estão associados às minhas pes-quisas recentes sobre a relação entre fotografia e narrativa histórica. Foram escritos como resultados preliminares de uma reflexão em andamento sobre as memórias do contemporâneo e o impacto das imagens técnicas nas análises históricas sobre o tempo presente.

O Capítulo 8 indaga sobre qual é o papel das imagens técnicas na construção da hegemonia de um grupo social. Ou poderia se for-mular a pergunta de uma outra forma: podem as imagens técnicas conformar os princípios de dominação de um grupo social sobre outro? As imagens não existem sem as práticas que as produzem, não são coisas em si, mas resultados de processos que envolvem os sujeitos e suas disputas sociais.

Os estudos sobre cultura visual, para não se limitarem ao patamar descritivo dos procedimentos e aparatos, relacionam sua problemática à questão do poder através da forma como as imagens são agenciadas pela sociedade que as produz e consome como ima-gens-signo. A análise do poder de convencimento das fotografias de imprensa que povoaram o imaginário urbano, ao longo de boa parte do século XX, revelou uma estratégia de educação do olhar, cuja função didática seria a naturalização das diferenças sociais.

Neste sentido, a fotografia veiculada pela imprensa ilustrada contribuiu, de maneira decisiva, para a veiculação de novos comporta-mentos e representações da classe no poder. Por outro lado, a imagem fotográfica atuou como eficiente meio de controle dos comportamen-tos e representações da maioria dos grupos que a antagonizavam na dinâmica social, principalmente devido a sua pretensa objetividade.

Vale lembrar que todo o processo de desenvolvimento tecno-lógico ocorrido a partir da segunda metade do século XIX, com des-cobertas científicas – relacionadas, entre outras coisas, à produção de energia – e aprimoramento de outras, como foi o caso da própria fotografia –, viabilizou a criação da idéia de um “admirável mundo novo” repleto de certezas e possibilidades.

Este mundo moderno criado no bojo de uma segunda revolu-ção industrial era um mundo que se pretendia anônimo. A simulação caracterizaria a experiência contemporânea, justificando-se, assim, o prestígio concedido à imagem, pois através dela se substituiria a experiência por sua representação. Suzan Sontag caracteriza a moder-nidade, experimentada pelo século XX, sob este ponto de vista.

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as Uma sociedade torna-se moderna quando uma de suas princi-pais atividades passa a ser a produção de imagens; quando as imagens, que possuem poderes extraordinários para determi-nar as nossas exigências com despeito à realidade, são elas mes-mas substitutas cobiçadas da experiência autêntica, tornam-se indispensáveis à boa saúde da economia, à estabilidade política e à busca da felicidade individual. (SONTAG, 1980, p. 147)

É interessante notar que o processo de naturalização da imagem e homogeneização das representações se faz, par a par, em relação à instituição da ordem burguesa que, como explica Roland Barthes, é:

O movimento pelo qual a burguesia transforma a realidade do mundo em imagem do mundo, a História em Natureza. E esta imagem tem de notável o fato de ser uma imagem invertida. O estatuto de burguesia é particular, histórico, e o homem que ela representa será universal e eterno; a classe burguesa edificou o seu poder sobre progressos técnicos, científicos e sobre uma transformação sem limites da natureza. (BARTHES, [19—b], p. 208)

A relação entre o controle dos meios técnicos de produção da imagem técnica, pela imprensa, garantiria a possibilidade de se criar um padrão de representação, que se estenderia para o conjunto da sociedade. Assim, o mundo diante das lentes é revivido ao ser sele-cionado, enquadrado e transformado em um só plano por aquele que está por trás das lentes. Este último não é um sujeito individual, mas um sujeito coletivo que produz representações sociais. Tal produtor de discursos fotográficos pertence, ou está atrelado por laços de dependência a uma determinada classe social, cujas representações e códigos comportamentais são pertinentes ao papel que ela desem-penha no conjunto da sociedade.

Com efeito, a classe dominante controla os meios técnicos de produção cultural tanto no nível de propriedade dos equipamentos, máquinas, meios de locomoção, quanto no nível da concepção e divul-gação de valores culturais. Portanto, através da mensagem fotográfica, foram traçados o perfil do universo de representações e os principais códigos comportamentais da classe dominante, na cidade do Rio de Janeiro, que se constituiu nas primeiras décadas deste século e se instituiu ao longo dos anos posteriores.

Em tal universo de representação, estão contidas imagens que permitiram a esta classe adquirir consciência de dominação, assim

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como aquelas que lhe possibilitaram exercer a sua hegemonia sobre os outros grupos, principalmente em relação às classes populares, na constituição da sociedade burguesa carioca, na medida em que tais imagens interferiram na produção de representações próprias dos grupos dominados, ou então relegaram suas manifestações culturais ao plano do pitoresco.

Neste sentido, o discurso fotográfico da imprensa ilustrada, como expressão da classe dominante, reforça a ilusão da “liberdade burguesa” ao reafirmar, principalmente através da abundância e variedade das imagens, o caráter de simulacro das relações burguês-capitalista, nas quais o real é substituído por sua representação, o trabalho torna-se mercadoria, e as relações de classe são descarac-terizadas nas representações de massa. Reafirma-se, assim, um dos pressupostos da percepção burguesa: a transformação da história em natureza.

No Capítulo 9, debruço-me sobre a primeira reportagem de Flávio Damm, e trabalho com estratégias metodológicas que buscam relacionar as fontes visuais e orais, pautadas no princípio da inter-textualidade. Tal noção possibilita o desvendamento das tramas que tecem as redes de significação entre trajetória individual – Flávio Damm, profissão fotógrafo – e a trajetória da própria profissão de fotógrafo, evidenciando o impacto no Brasil das transformações in-ternacionais do campo.

As entrevistas com o fotógrafo foram realizadas no formato história de vida, buscando-se enfatizar a noção de campo de pos-sibilidades para balizar as escolhas efetivamente realizadas pelo fotógrafo. Tal estratégia implica considerar que o sujeito da entrevista é um sujeito transindividual que se insere no mundo, segundo uma racionalidade compartilhada e incorporada pela comunidade com a qual se identifica na prática social. Claro que tal racionalidade não é unívoca e se orienta segundo os espaços de sociabilidade, no caso estudado, o profissional. O compartilhamento de saberes e normas de conduta profissional implica a apreensão comum de determinados textos sociais, de caráter verbal e não-verbal, como o caso da circu-lação de imagens e dos protocolos de conduta ética passados pela tradição profissional. Assim, as táticas e estratégias adotadas pelos indivíduos na sua experiência profissional explicam-se à luz da própria constituição social do campo.

Por outro lado, as escolhas técnicas e estéticas que definem a narrativa visual do fotógrafo também se explicam pelo acesso dos fotógrafos aos dispositivos do campo fotográfico, tais como: publi-cações especializadas, prática profissional na imprensa e fora dela,

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as equipamentos atualizados, acesso a comunidades artísticas, como o caso dos fotoclubes, ou espaços menos formalizados, como a casa Fo-tóptica, pertencente a Thomas Farkas, importante empório fotográfico, mas acima de tudo espaço de sociabilidade e troca de experiências. A entrevista de história de vida permite que tais informações sejam apreendidas e articuladas à análise das imagens produzidas.

Assim, a produção da entrevista em história oral se faz em re-lação a um conjunto de informações constitutivas do próprio objeto de pesquisa na qual se insere como fonte de dados. Por outro lado, deve ser considerada a estratégia própria ao ato de rememoração que envolve a situação na qual a entrevista é realizada, pois condiciona a forma como o entrevistado se posiciona em relação ao seu passado e à sua própria trajetória. Por tudo isso, as fontes orais, apesar de serem importantes instrumentos de análise para a história do tempo presente, demandam uma nova crítica por parte do historiador, que passa a ser ele mesmo um produtor de evidências históricas.

O Capítulo 10, sobre o trabalho da fotógrafa norte-americana Genevieve Naylor, durante a Segunda Guerra Mundial, como funcio-nária do Departamento de Estado dos Estados Unidos, evidencia as possibilidades dos fotógrafos em romperem com as imposições e protocolos oficiais.

A documentação produzida por Naylor no Brasil, atualmente sob a guarda de seu filho Peter Reznikoff, ultrapassa o número de mil negativos. Desse conjunto, as fotos analisadas no artigo fornecem uma medida clara das táticas e estratégias adotadas pela fotógrafa para manter a sua autonomia em relação às imposições feitas pelas agências, produzindo uma imagem variada e diversa do Brasil dos anos 1940. Entretanto, a forma de agenciamento das imagens produzidas por Naylor, como funcionária do Departamento de Estado, através da organização de exposições ou da publicação na imprensa, expressa os limites dessa autonomia.

As escolhas efetivamente realizadas na montagem da exposição que percorreu os Estados Unidos, bem como as imagens que ilustraram matérias na imprensa, valorizaram a lógica do exótico, do pitoresco, mas também da informação. Lógicas próprias aos protocolos estabe-lecidos tanto pela visualidade da política da boa vizinhança, quanto pela função que a imprensa advogava para si na época.

Evidencia-se, por essa análise, que o tratamento das séries fotográficas deve sempre ter em conta o circuito social da imagem. Valoriza-se, assim, nas trajetórias dos fotógrafos, sua formação pro-fissional e intelectual, bem como o campo de possibilidades no qual se movimenta. Na biografia de suas imagens, revelam-se as condições

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de sua produção, as formas de apropriação e agenciamentos por di-ferentes audiências e agências sociais.

O capítulo final debruça-se sobre o trabalho de dois fotógrafos que apresentam trajetórias bem distintas para pensar o mundo como comunidade imaginada. A aproximação a este mundo se fez por estra-tégias narrativas diversas.

Damm opera no umbral da janela, recolhendo os nacos do co-tidiano como quem monta um mosaico; seu trabalho se aproxima ao do cronista que observa e, em seu texto, reelabora o que viu numa poética própria, plena de luminosidade e humor, num estranhamen-to em relação ao trivial, que nos ensina a enquadrar a cada vez que olhamos. Damm compartilha com os gregos o seu sentido de história, registra o que vê para então saber.

Salgado projeta-se no abismo, olha o mundo, e o seu olhar o revela na sua dimensão épica. A saga dos povos, seus deslocamentos, suas dores e sofrimentos, recriados pelo princípio da poesia épica, da epopéia, nada é simples nesse mundo de luz e sombras. Salgado compartilha com os gregos o seu sentido de poesia, registra o que imagina para então agir.

Em um texto sobre a mudança dos paradigmas em história, o historiador inglês Eric Hobsbawn (1998, p. 206) escreveu:

Não há nada de novo em preferir olhar o mundo por meio de um microscópio em lugar de um telescópio. Na medida em que aceitemos que estamos estudando o mesmo cosmo, a escolha entre micro e macrocosmo é uma questão de selecionar a técnica apropriada.

O que vale para os historiadores pode valer para se pensar a diferença entre os dois fotógrafos e o papel da fotografia na represen-tação da variedade do mundo.

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caPítulo 8

Janelas que se abrem Para o mundo: fotografia de imPrensa e distinção social no rio de Janeiro,

na Primeira metade do século xx

Primeiro fomos mais ou menos lisboetas, com o mundanismo. Depois londrinos e parisienses agora somos new-yorquinos e hollywoodenses. O que chamava antigamente de “sarau” passou a ser “soirée” e hoje em dia é “party” [...]. No tempo do binóculo floresceu nossa primeira linhagem de elegantes republicanos. O asfalto, depois o automóvel fizeram o resto [...]. Hoje podería-mos dizer: o Rio “grows well” ou se acharem o adjetivo “smart” também já foi vocábulo elegante usado antes de 1914, poderão fazer uma tradução mais moderna – “Rio grows swell”. (Revista Rio Ilustrado, n. 170-171, ago./set. 1953)

Vivemos em um mundo repleto de imagens, constatação que sobrevive no senso comum dos habitantes das grandes cidades con-temporâneas. No entanto, entre o sujeito que olha e a imagem que elabora existe muito mais que os olhos podem ver.

Portanto, o que aparenta naturalidade é, em suma, o resultado deste processo de investimento de sentido.

A produção de sentido envolve as sociedades históricas des-de que o primeiro homem manifestou-se através dos gestos e dos desenhos nas paredes das cavernas. A escolha da expressão correta para produzir um determinado conteúdo é resultado de uma expe-riência histórica de julgar, escolher e interpretar. Existe sempre um conjunto de escolhas possíveis a partir do qual uma escolha é feita. Tal conjunto pode, com certeza, ser denominado de cultura.

Ao longo dos primeiros 50 anos do século XX, a Capital Federal sofreu intervenções cirúrgicas na sua forma urbana, resultado de uma política urbanista que visava moldar a metrópole tropical à imagem e semelhança das cidades temperadas. Bulevares substituíram vielas, cafés, confeitarias, freges e quiosques, e o pacato cidadão deu lugar ao dandy ou ao smart; todas as instâncias do viver em cidade foram sendo adequadas a um novo padrão de comportamento.

Neste processo, as revistas ilustradas de críticas de costumes, publicadas na cidade desde o início do século, tiveram um papel fundamental ao possibilitarem a divulgação e assimilação rápida de

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imagens de pessoas, objetos, lugares e eventos, contribuindo, de forma decisiva, para a criação deste novo padrão de sociabilidade.

O objetivo deste artigo é discutir o papel da imagem fotográfica veiculada pela imprensa ilustrada na elaboração dos códigos de repre-sentação social da classe dominante brasileira, na primeira metade do século XX. Tal processo pautou-se na elaboração de um habitus de classe, norteado pelas noções de privilégio e distinção,1 segundo o qual esta classe passou a identificar-se com a cultura burguesa ocidental.

A estratégia de análise adotada divide-se em duas partes: na primeira, pretende-se situar historicamente tais publicações e seus vínculos com a rede social dominante; na segunda, através da análise histórico-semiótica das imagens fotográficas das revistas, recupe-ramos os quadros de representação social e os comportamentos subjacentes a estes.

na mira do PróPrio olhar: as revistas ilustradas no rio de Janeiro na Primeira metade do século xx

Careta, Fon-Fon, O Cruzeiro, Revista da Semana, Kosmos, Malho, Avenida, Ilustração Brasileira, Rua do Ouvidor, Vida Doméstica, Selecta, Eu Sei Tudo, Para Todos, Vamos Ler, Scena Muda, Cinearte, Beira Mar, entre outras, compuseram o perfil de uma época em que as imagens fotográficas tinham nas revistas ilustradas o seu principal veículo de divulgação. Veículos que, através de uma composição editorial adap-tada ao seu próprio tempo e às tendências internacionais, criavam modas, impunham comportamentos, assumindo a estética burguesa como a forma fiel do mundo que representavam. Janelas que se abriam para o mundo retratado na foto, tais revistas contribuíram, em gran-de medida, para a generalização do mito da verdade fotográfica. Ao mesmo tempo, através de suas crônicas e notas sociais, impunham valores, normas e representações, num processo que transformaria

1 Segundo Pierre Bourdieu, o conceito de habitus pode ser compreendido como “um conjunto de esquemas implantados desde a primeira educação familiar, e cons-tantemente repostos e reatualizados ao longo da trajetória social restante, que demarcam os limites à consciência possível de ser mobilizada pelos grupos e/ou classes, sendo assim responsáveis, em última instância, pelo campo de sentido que operam as relações de força” (MICELLI, Sérgio. Economia das trocas simbó-licas. São Paulo: Perspectiva, 1982. p. XLII). É interessante notar a adequação do conceito de habitus ao de representação para os estudos dos processos de con-trole da produção de sentido social por parte de grupos/classes. Neste sentido, não só a imagem fotográfica, mas também os próprios atos de fotografar, se deixar fotografar e consumir imagens fotográficas podem ser considerados importantes integrantes do habitus social.

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a cidade em cenário e as frações da classe dominante em seus atores principais.

Os atores dessa cena social eram os dignitários das agências do Estado, sujeitos associados às atividades urbanas, tais como setor de serviços, comércio de exportação, e ao capital financeiro, e que emprestavam suas vivências à experiência pública de ver e ser visto. Neste sentido, as imagens fotográficas veiculadas pela impren-sa ilustrada foram importante instrumento, deste grupo social, no empenho de naturalizar suas representações através da imposição de uma determinada forma de ver e reproduzir o mundo a todas as outras possíveis.

Consumidas por quem era o seu conteúdo principal, tais revistas auxiliaram também na coesão interna do grupo em ascensão social. Com efeito, veiculavam comportamentos tidos como necessários para se tornar um bom cidadão, atuando como modelo a ser copiado e como exemplo a ser seguido. Em sucessivas cenas, o Rio, Capital Federal, torna-se metrópole burguesa. Nesse processo, um mundo de signos é produzido na experiência coletiva, fornecendo a tônica do tempo vivido. Signos que emergem no presente como possibilidade de compreensão de uma certa versão de passado.

Quem cria esta versão são os cultuadores do dandismo e beletrismo da Belle Époque, que se travestem de almofadinhas e me-lindrosas, que bronzeiam a pele em Copacabana, tomam sorvete na Americana depois da sessão vespertina do Odeon. São os que olham o Rio por cima, da janela dos arranha-céus, e “fazem a avenida” às 16 horas a caminho do five o’clock tea na Colombo.

São os que civilizam o Rio de Janeiro, seguindo o modelo de exclusão social, derrubam o Morro do Castelo, o marco de fundação da cidade, e constroem a avenida Presidente Vargas, nos moldes das grandes avenidas norte-americanas. São os que andam na primeira classe dos bonds da rua Jardim Botânico ou passeiam pela avenida Beira-Mar, num Bayard-Clement último tipo.

São os que jogam na bolsa de valores, são acionistas da Light ou do Banco do Brasil, além de participarem dos negócios na indústria e no comércio de importação e exportação. São os que no verão sobem para Petrópolis, a imperial cidade serrana, fugindo do cheiro e das doenças, que em sua concepção excludente exalam do suor do povo. São os que votam na UDN, mas que algum dia festejaram a Revolução de 30 juntamente com a primavera, nas Batalhas de Flores da Praça da República.2

2 Este parágrafo sintetiza informações sobre comportamentos e lugares freqüenta-dos por frações da classe dominante que disputavam a hegemonia cultural, na primeira metade do século XX.

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Cultuadores do ornato, do status, da aparência e do que dirão. São chics, up-to-date ou tran-cham.3 Vivem no Brasil com um olho na Europa e o outro nos Estados Unidos da América. Burguesia, elite, grã-finagem, jet-set, 300 de Gedeão, grand-monde, high-life são nomes intercambiáveis que escondem, sob a aparência do bem-viver, códigos de comportamentos e representações sociais. Nomes utilizados, ao longo do século XX, para designar as frações de classe que disputaram o controle do capital simbólico fundamental ao processo de instituição de uma hegemonia de classe. Importantes agentes instituidores de um habitus de classe, que discrimina uns e coopta outros, que hierarquiza os espaços da cidade, dignificando-os ou rebaixando-os, que elege o consumo como norma de vida, que dita modas e cria ilusões.

A capacidade das frações de classe dominante em exercer al-gum poder sobre os processos sociais de produção de sentido estava estreitamente ligada à elaboração de uma rede social que vinculasse os empresários da comunicação aos altos funcionários do governo, à tradicional aristocracia agrária e aos setores emergentes do em-presariado industrial, ou do comércio exportador. Neste sentido, o controle dos meios técnicos de produção cultural permitia que as representações sociais de comportamento dos grupos vinculados à rede fossem disseminadas no conjunto da sociedade, com força de uma norma incontestável.

No interior de tais redes sociais, os donos das revistas ilustra-das, bem como todos os intelectuais a elas associados, detinham o controle de um grande capital simbólico que os habilitava a partici-par intensamente da vida política do país. Vale ressaltar, portanto, a necessidade de tais agentes, como empresários da comunicação, em atualizar seus veículos não só para a manutenção como também para a ampliação de sua audiência, garantindo, assim, seu lugar na dinâmica social.

Portanto, na primeira metade do século XX, as revistas ilustra-das sofreram importantes transformações, muito mais na forma do que no conteúdo. Adaptando-se às mudanças políticas, às influências internacionais e ao mercado consumidor que, ao longo deste perío-do, cresce e se diversifica, afinal, o leitor da Fon-Fon ou da Careta de 1908 poderia ser até o mesmo em 1950, mas com certeza dividiria as suas páginas com seus filhos e netos, frutos de um outro tempo, mas pertencentes à mesma classe social. Daí, a manutenção de determi-nados conteúdos de classe que, simplesmente ao longo do tempo, se adaptaram às novas tendências. Entre o dandy e o self-made-man 3 Termos utilizados em diferentes momentos, na primeira metade do século XX,

para adjetivar a classe dominante, detentora dos meios técnicos de produção cul-tural e do capital simbólico à disposição para a hegemonia de classe.

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existe uma diferença de forma, mas a substância, para a sociedade carioca, é a mesma.

Em linhas gerais, este longo período da história das publicações ilustradas de críticas de costumes, que circunscreve a primeira meta-de do século XX, pode ser dividido em dois subperíodos delimitados por transformações de ordem técnica que influenciaram a forma de apresentação dessas revistas (MAUAD, 1990, 2002).

O primeiro período se inicia em 1900 com a introdução de foto-grafias na Revista da Semana, único periódico ilustrado com fotos até então, e se prolonga até 1928, quando foi lançada a revista O Cruzeiro, um marco na história do jornalismo brasileiro, tanto por introduzir uma linha editorial de influência marcadamente norte-americana, como pelo aumento significativo no uso de fotos.

Na primeira fase editorial, o tom das publicações variava do crítico e cômico ao refinado e artístico, circunscrevendo o imaginário carioca em todas as suas possibilidades. A tendência crítica e cômica pode ser exemplificada nos editoriais de lançamento das revistas Fon-Fon e Careta.

A Fon-Fon se lançava como “semanário alegre, político, crítico e esfuziante, noticiário avariado, telegrafia sem arame e crônica epi-dêmica” cujo único objetivo era

fazer rir, alegrar a tua boa alma carinhosa [...] com o comentário leve das coisas da atualidade [...]. Para os graves problemas da vida, para a mascarada política, para a sisudez conselheiral das finanças e da intrincada complicação dos princípios sociais, cá temos a resposta própria: aperta-se a sirene... FON-FON! (Fon-Fon, 15 abr. 1907)

A revista Careta, por sua vez, seguia o mesmo tom de pilhéria, propondo em seu editorial, “um programa vasto e sedutor” para o público “apreciador das sessões galantes do jornalismo smart” (Careta, 6 jun. 1908). Dentro desta mesma linha editorial, situavam-se a Revista da Semana e O Malho. Esta última foi lançada em 1902 e especializou-se em crítica política e caricaturas. A tendência, mais refinada e artísti-ca, teve como representantes a Ilustração Brasileira e a Kosmos. Em 1904, surgiu o primeiro número da Kosmos, uma revista nos moldes modernos dos semanários internacionais, que apresentava, portanto, uma publicação bem cuidada, de acabamento primoroso.

À época de seu lançamento, a revista Kosmos foi descrita da seguinte maneira: “um primoroso álbum de nossas belezas e primores artísticos, propagando o seu conhecimento a outros pontos do país

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e do estrangeiro” (apud NOSSO SÉCULO, 1980, v. 1, p. 220). No seu conteúdo, constavam manifestações artísticas e literárias, crônicas e reportagens sobre eventos sociais da elite endinheirada da cidade do Rio de Janeiro. Colaboravam nesta revista: Arthur Azevedo, Gonzaga Duque, Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha.

O segundo período se inicia com o lançamento da revista O Cruzeiro e se prolonga, em termos de linha editorial, até a década de 1960, com a introdução, entre outras modificações, da cor nas fotos de revista. Além das modificações propriamente técnicas, constata-se, a partir dos anos 1960, uma reconfiguração no campo das comunica-ções, este assume um caráter mais tecnocrático, diferente dos anos anteriores em que o dono das empresas era considerado um capitão de indústrias, que influía diretamente tanto nas organizações de suas empresas, quanto na política nacional (ORTIZ, 1988).

Os anos que circunscrevem o período de 1930 a 1960, na história das publicações ilustradas, diferenciam-se dos anteriores, tanto pela introdução de novas técnicas de impressão, tais como a rotogravura, quanto por uma redefinição no perfil do mercado editorial, ávido por informações atualizadas. Tais fatores foram definitivos para a mudança no padrão estético e informativo das revistas ilustradas. Enquanto o primeiro momento foi fortemente marcado pela presença de textos ficcionais, crônicas e por fotografias pequenas e independentes do texto escrito, o segundo enfatiza a notícia, a interpretação dos fatos nacionais e internacionais e as fotografias em grande formato asso-ciadas às notícias.

É importante enfatizar a diferença entre estes dois períodos como forma de caracterizar as mudanças inscritas na própria trans-formação do público das revistas, dentre as quais se pode destacar: a ampliação dos estratos médios da sociedade carioca, o crescimento urbano e a valorização de padrões comportamentais associados aos meios de comunicação, passando a mídia a ser um elemento impor-tante na formação do gosto.

A revista O Cruzeiro foi lançada no dia 10/11/1928, com uma ti-ragem inicial de 50 mil exemplares, cifra bastante significativa para a época. Em seu editorial de lançamento, evidenciou-se o perfil moderno e inovador que a empresa Os Diários Associados, pertencente a Assis Chateaubriand e responsável pela publicação de O Cruzeiro, O Jornal e o Diário da Noite, queria traçar para si mesma:

Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio Colonial, através dos escombros a civilização traçou

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a reta da avenida Rio Branco: uma reta entre o passado e o futuro. O Cruzeiro encontrará ao nascer o arranha-céu, a radio-telephonia e o correio aéreo. O esboço de um mundo novo no novo mundo [...]. A revista é um compêndio da vida [...] revela a sua expressão educativa e estética, por isso a imagem é um elemento preponderante. Uma revista deve ser como o espelho leal onde se reflete a vida, seus aspectos edificantes, atraentes e instrutivos. (O Cruzeiro, 10 nov. 1928)

Neste contexto, ao mesmo tempo que a revista O Cruzeiro se inseria no conjunto das chamadas publicações “frívolas”, advogava para si o direito quase missionário de ser o espelho fiel da vida. Tal postura inscreve-se num contexto cultural, no qual a imprensa exerce uma influência decisiva não somente na interpretação, mas também na própria elaboração dos fatos sociais. Sendo assim, a imprensa, se-gundo a concepção desta revista, ficaria encarregada da nobre missão de, no caso dos jornais, julgar, e no das revistas, depurar os fatos da vida para que o leitor se educasse de forma correta.

Esta postura tem como premissa básica a idéia de que o que está escrito é a própria verdade. Tal concordância seria reforçada pela utilização maciça de imagens. Isto porque a imagem, diferentemente do texto escrito, chega de forma mais direta e objetiva à compreensão, com menos espaço para dúvidas, pois o observador confia tanto nas imagens técnicas quanto em seus próprios olhos.

Com o intuito de reafirmar o papel predominante da imagem sobre o texto, a empresa Os Diários Associados investiria, três anos depois do lançamento da revista, na modernização dos equipamentos de impressão, buscando uma melhoria na qualidade da imagem foto-gráfica. Em breve, as páginas de O Cruzeiro ganharam cor, a princípio, exclusivamente em ilustrações e caricaturas e, bem mais tarde, em fotografias.

A revista O Cruzeiro, que se prolongaria até o final da década de 1930, em sua primeira fase editorial, apesar de em muitos pontos assemelhar-se às outras revistas ilustradas contemporâneas, especial-mente à Revista da Semana, apresentou um caráter mais cosmopolita, obtido através da utilização dos serviços das agências de notícias internacionais, ampliando o seu universo temático. Um exemplo disso foi o aparecimento de sessões exclusivas, como a chamada: “Pelas Cinco Partes do Mundo”.

Resultado do empenho pessoal do dono da empresa Os Diários Associados, Assis Chateaubriand, O Cruzeiro surge no mercado edito-rial de publicações semanais com o real objetivo de inovar. O Cruzeiro

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de Chateaubriand era uma revista com papel da melhor qualidade, repleta de fotografias, com os melhores articulistas e escritores do Brasil e do exterior, além de assinar todos os serviços internacionais de artigos e fotografias. Foi lançada nas principais cidades e capitais do Brasil, com tiragem inicial de 50 mil exemplares, uma cifra considerável para o mercado editorial dos anos 1920, acostumados a números mais modestos que chegavam, no máximo, a 27 mil exemplares.

Todo este investimento foi feito pelo fato de que Chateaubriand não possuía competidores à sua altura e para ampliar o estoque de capital político à sua disposição. Ambos os movimentos reforçaram a influência deste empresário, tanto na rede social, composta pelos setores dominantes, quanto no aparelho de Estado.

No entanto, foi a partir da década de 1940 que O Cruzeiro in-corporaria o padrão de qualidade das publicações internacionais, incluindo, desde então, nas suas primeiras páginas, um detalhado expediente, em que se pode constatar a especialização dos serviços da revista em vários departamentos, bem nos moldes das famosas revistas Life, Look, Paris Match, entre outras. Por esta época, O Cruzeiro já contava com uma tiragem de 120 mil exemplares.

Dentre os repórteres que faziam parte do quadro regular da revista constavam: David Nasser, Edmar Morel, Rocha Pita, Nelly Dutra etc. Como colaboradores eventuais: José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Millôr Fernandez. Cabe ressaltar que foi O Cruzeiro a primeira publicação a conceder o crédito das fotografias publicadas, contando inclusive com um departamento e uma equipe fotográfica que reunia fotógrafos, tais como: Jean Manzon, Edgar Medina, Salomão Sciclar, Lutero Avila, Peter Scheir, Flávio Damm, José Medeiros, entre outros. Aqueles estavam encarregados, juntamente com os fotógrafos, de introduzir uma linguagem fotográfica: o fotojornalismo.

Uma nova linguagem imbuída de um caráter fundamentalmente didático e de um controle rígido da correlação texto/imagem, por parte da equipe editorial. O fato é literalmente construído, seguindo esta nova tendência as fotografias deixaram de ser simplesmente dispos-tas nas páginas das revistas, para serem, com diferentes tamanhos e formas, deliberadamente arranjadas, rompendo-se com o esquema ilustrativo tradicional.

Com tais mudanças, a revista O Cruzeiro promoveria uma re-formulação geral no padrão das publicações ilustradas, que tiveram de reordenar toda sua linha editorial para poder concorrer com o novo padrão estético imposto por O Cruzeiro. Algumas publicações que tradicionalmente tinham uma boa entrada no mercado, tais como

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Careta, Fon-Fon e Revista da Semana, conseguiram se reformular e sobreviver.

ver, imaginar, criar: os quadros de rePresentação social da classe dominante

nas revistas ilustradas cariocas

Para proceder à recuperação dos quadros das representações sociais de comportamento da burguesia urbana, elaborado pela im-prensa ilustrada carioca na primeira metade do século XX, através da imagem fotográfica, organizou-se um corpus, ou seja, uma série fotográfica extensa e homogênea. A série foi composta por 867 foto-grafias selecionadas das revistas O Cruzeiro e Careta, em anos-chave, nos quais as revistas sofreram modificações nas formas de expressão e de conteúdo.4

Neste sentido, destacaram-se respectivamente, 1908, 1914, 1922, 1928, 1935, 1942,1949 para a revista Careta, e 1928, 1934, 1943, 1950, para a revista O Cruzeiro. Em cada ano foram escolhidos três números relativos, cada um, a uma época do ano: janeiro /fevereiro, junho/julho e dezembro, com o intuito de cobrir os principais eventos da cidade, tais como: festas de fim de ano, carnaval e as aberturas de temporada – verão e inverno. Vale lembrar que a revista Careta e O Cruzeiro foram escolhidas devido à constância na periodicidade, volume de fotografias, condições de acesso e reprodução das imagens e por serem, cada qual, um exemplo típico de dois momentos das publicações ilustradas, anteriormente assinalados.

O segundo passo foi a escolha de um eixo de análise que con-templasse o caráter não-verbal da linguagem fotográfica. Optou-se pela avaliação de como a noção de espaço foi codificada na mensagem fotográfica elaborada pelas revistas ilustradas. Tal escolha justifica-se tanto pelo papel determinante que a noção de espaço ocupa nas linguagens visuais, gestuais etc., como pelos critérios a partir dos quais o imaginário urbano é construído, tomando-se sempre como referência básica a existência de um topos. Desta forma, a noção de espaço codifica tanto a expressão da linguagem fotográfica como o 4 Os anos-chave foram definidos a partir de uma análise rigorosa da totalidade dos

anos publicados. Ao longo dos anos, as revistas apresentaram mudanças na linha editorial tais como: diminuição do texto escrito em relação à foto, ampliação do número de fotos, mudança na identidade visual da revista, anúncio de inovações técnicas pelo editor, mudanças na equipe de colaboradores etc. Enfim, mudan-ças ligadas ao próprio veículo, mas também consideraram anos importantes em termos de marcos históricos relacionados à história da cidade/país e à história mundial, tais como: as grandes guerras mundiais, exposições nacionais e interna-cionais, reformas urbanas, eleições etc. Via de regra, o que vigorou foi um entre-cruzamento destes dois critérios.

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conteúdo por essa veiculada nos semanários ilustrados da primeira metade do século XX.

Entretanto, cabe ressaltar que tal noção não é homogênea, seu desdobramento é balizado pelas unidades culturais que estruturam a mensagem fotográfica e que podem ser organizadas, para efeito de análise, em categorias espaciais, tais como: espaço fotográfico, espaço geográfico, espaço do objeto, espaço da figuração e espaço da vivên-cia (MaUad, 2005b). Cada uma delas é analisada, separadamente, no entanto, na dinâmica de produção de sentido social, entrecruzam-se. Em tal processo, balizam a elaboração dos quadros de representação social, norteadores das formas de ser e agir da burguesia urbana.

As opções estéticas, as formas de consumo, os lugares da ci-dade que deveriam ser freqüentados como signo de distinção e per-tencimento social, enfim, toda uma codificação em torno da noção de “bom gosto” (identificado com o gosto burguês) era estabelecida pelas imagens fotográficas e padrão gráfico das revistas ilustradas.

A seguir serão avaliadas as categorias espaciais acima apresen-tadas, nas fotografias de ambas as publicações – Caretas e O Cruzeiro – buscando-se, com isso, recuperar os comportamentos e os quadros de representação social correspondentes à burguesia urbana5 em ascensão.

flagrantes e instantâneos

A composição do espaço fotográfico está intimamente relaciona-da ao tipo de aparelhagem utilizada. A máquina fotográfica limitará as possibilidades de enquadramento, tamanho, profundidade de campo e nitidez da foto.

As imagens fotográficas das revistas ilustradas sofreram uma variação de padrão correspondente à própria evolução da técnica fotográfica, e do acesso que as redações das revistas tinham a este progresso tecnológico. Paralelamente a estas variáveis, mais um fator

5 A historiografia brasileira sobre o período estudado não é consensual no que diz respeito à utilização do conceito de classe burguesa para este momento da histó-ria do Brasil. Noções como camadas médias urbanas, classes médias, frações do-minadas da classe dominante são correlativos para a noção de burguesia urbana tal como a utilizamos aqui. A opção pelo conceito de burguesia urbana deveu-se principalmente ao objetivo central do estudo, qual seja: avaliar como, dentro do contexto de inserção do Brasil na lógica do capitalismo internacional, os costumes e comportamentos no espaço das cidades, notadamente na Capital, transforma-ram-se. Tal transformação tomou como referência os códigos de comportamento dos países do Hemisfério Norte, primeiro a França e a Inglaterra e, depois da Se-gunda Guerra Mundial, os Estados Unidos, estes, sem dúvida alguma, pautados em valores e normas burgueses. Não cabe aqui discutir a base econômica da classe dominante brasileira do período, eminentemente agrária, mas absenteísta por na-tureza e cosmopolita por verniz.

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interfere na composição do espaço fotográfico das revistas ilustradas, qual seja: a relação da imagem com o texto escrito.

Neste sentido, as variáveis na composição do espaço fotográfico, nas revistas ilustradas, foram as seguintes:

Tamanho da foto: variou entre pequeno, médio e grande. As fotos •pequenas tomaram no máximo 1/8 do espaço total da página; as fotos médias, cerca de 1/4 e as grandes, mais de 1/2. A opção por expressar os valores métricos em frações deveu-se ao fato de que as fotografias não possuíam um padrão métrico constante, como, por exemplo, as fotografias que integram um álbum de família.Formato da foto: variou entre o quadrilátero, que inclui o for-•mato retan gular e o quadrado, e a circunferência, que inclui o formato oval e circular, bem como outras formas semelhantes, como no caso de foto dentro de letras ou emolduradas.Suporte da foto: caracteriza-se pela forma da relação entre o texto •escrito e a linguagem fotográfica. Foram encontrados quatro pa-drões de variação na relação texto e imagem:1a relação: reportagem fotográfica com título, texto e legenda; 2a relação: reportagem fotográfica com título e legenda; 3a relação: fotografia avulsa com título e legenda; 4a relação: fotografia avulsa somente com título.

Vale ressaltar a existência de parceria entre fotógrafo e repór-ter, em que ambos assinam seu trabalho, texto escrito e visual. Tal recurso é utilizado nas reportagens fotojornalísticas a partir de fins da década de 1930 e estabelecia uma nova relação entre linguagem escrita e visual. Neste caso, a fotorreportagem adquiria uma nar-rativa que poderia ultrapassar uma edição da revista, caso o tema fosse sucesso de público, como os famosos crimes passionais, com cobertura exclusiva.

Tipo da foto: posada ou instantânea, para se avaliar o grau de na-•turalidade das fotos e se detectar a existência de comportamentos emergentes.Enquadramento: item que reuniu o sentido, a direção, a distribui-•ção dos planos, o objetivo central e o arranjo das fotos coletivas como forma de avaliar a hierarquização do espaço fotográfico e possíveis seqüências de significados.

Nitidez: item que inclui o foco, a impressão visual e a iluminação. A •avaliação apurada de tais itens, ao longo do tempo, permite recupe-

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rar as mudanças estéticas na forma de expressão da fotografia de imprensa, enfatizando-se, ou não, o mito da verdade fotográfica.

A revista Careta apresentou o seguinte padrão de espaço foto-gráfico ao longo dos 50 anos cobertos pela análise:

Tabela 9Tamanho 40% pequenas; 30% grandes; 30% médiasFormato Retangulares (99%)Suporte Reportagem fotográfica com título e legenda (44% do total)Tipo 68% posada e 32% instantâneosEnquadramento Sentido horizontal (66%); direção central (57%); 2 planos

distintos(80%); grupo misto como objeto central disposto eqüita-tivamente em semicírculo ou linha reta (quase não há fotos com pessoas espalhadas)

Nitidez Linhas definidas (90%), com todos os planos no foco (90%); sem sombras e com contraste (90%)

O espaço fotográfico da revista O Cruzeiro configurou-se da seguinte maneira:

Tabela 10Tamanho 58% pequenas; 26% médias e 14% grandesFormato Retangulares (99%)Suporte Reportagem fotográfica com título, texto e legenda (72% do total,

sendo que cerca de 50% foram realizadas nos moldes do fotojor-nalismo)

Tipo 60% fotos posadas contra 40% de instantâneosEnquadramento Sentido vertical (76%); direção central (56%); 2 planos distintos

com objeto central concentrado no 1o plano devido à opção verti-cal (80%); mulher como objeto central (27%)

Nitidez Linhas definidas (90%); objeto central no foco (74%); sem som-bras e com contraste (90%)

Como pode ser constatado pelas tabelas acima, existiam poucas diferenças entre as duas revistas. A Careta apresentava imagens com contornos bem definidos, planos distintos, equilíbrio de elementos e homogeneidade de organização. Tais opções reafirmam o pressuposto de que o que era exibido na foto mantinha uma relação direta e objetiva com a própria realidade.

Já a revista O Cruzeiro foi mais ousada, principalmente numa avaliação de cada período separadamente, quando se constata a influência de outros tipos de imagem, como o cinema, nas opções estéticas. No conjunto dos anos analisados, as imagens caracteriza-

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ram-se pela concentração no plano central, homogeneidade, pouca profundidade, definição de linhas e contornos e pela sexualização do espaço figurativo, com a escolha da mulher como objeto central da maioria das fotos.

Numa análise numérica da incidência homem/mulher como objeto central das fotos de O Cruzeiro, a distribuição encontrada foi a seguinte:

Tabela 111o Plano 2o Plano Plano central

Figura masculina 18% 8% 17,5%Figura feminina 18% 6,5% 27%

Com efeito, a tendência geral é para a distribuição equilibrada entre o espaço feminino e masculino, já que ambos incidem igualmente no primeiro plano. No entanto, há que se ressaltar a maior incidência da figura masculina em segundo plano e da feminina em plano cen-tral, revelando-se aí uma maior valorização da imagem feminina na composição fotográfica da revista O Cruzeiro. A presença feminina explica-se tanto pela introdução de sessões especializadas em moda, como pela valorização do corpo feminino, a partir da década de 1940, associada a uma mudança em termos de representações culturais do popular e do nacional nos meios de comunicação.

O padrão adotado nas fotorreportagens de O Cruzeiro expres-sava um maior investimento nas experimentações estéticas. Tal fato deveu-se principalmente à valorização da relação texto e imagem através da construção de uma narrativa visual, cuja autoria passa a ser identificada, e o trabalho do fotógrafo, valorizado na sua dimensão criativa muito mais do que informativa.

Por outro lado, a opção pelo fotojornalismo criou uma ancora-gem da imagem para com o texto escrito. Sendo estas interpretadas a partir das idéias escritas, limitando-se, assim, a autonomia do texto visual em relação ao escrito. Ao mesmo tempo enfatizava o caráter didático que a imprensa assumiu a partir da década de 1940.

geografia da diferença

A cidade, suas avenidas, praias, contorno dos morros ou a baía – um espaço próximo e vizinho compõe uma determinada imagem do Rio de Janeiro que, por predominar, silencia as demais. O Brasil, suas regiões e paisagens criam uma imagem que expõe tanto a face

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de riqueza e desenvolvimento quanto o lado pitoresco e exótico de um país tão cheio de diversidade.

O estrangeiro surge nas páginas ilustradas através das cidades-capitais e seus modos de vida peculiares. Imagens que indicam a am-pliação dos contatos internacionais, o mundo passava a estar, como que por mágica, ao alcance dos olhos. Tudo isso incitava a curiosidade e a adoção de modismos e comportamentos emergentes.

O espaço engendrado pela mensagem fotográfica das revistas ilustradas tem como característica básica a variedade. Entretanto, mesmo dentro desta variedade, existe uma hierarquia de temáticas que são associadas a determinados lugares.

No conjunto das imagens analisadas nas revistas Careta e O Cruzeiro, o espaço geográfico foi dividido em três grandes blocos regionais, cuja proporção de incidência na imagem foi a seguinte:

Tabela 12Região Revista caRETa Revista o cRUZEiRoRJ – Zona Sul 36,5% 24,5%RJ – Zona Norte 7% 1%RJ – Centro 24% 15%RJ – Subúrbios 1% 4%Estado do RJ 2% 9,5%Fora do Rio, no Brasil 10% 8%Fora do Brasil 15% 32%RJ (não identificada) 4,5% 6%

É importante ressaltar que cada uma destas regiões manteve uma relação com o eixo principal – a cidade do Rio de Janeiro –, ora reforçando-lhe o caráter cosmopolita, ora atribuindo-lhe determinadas funções que podiam ser turísticas, políticas ou propriamente de palco, para o desfile de personagens da classe em ascensão, a burguesia.

Os blocos regionais, por sua vez, foram subdivididos em dife-rentes lugares, compondo uma paisagem formada por clubes com seus salões luxuosos e áreas externas, estádios de esporte, hotéis, praias, avenidas e ruas, edifícios públicos, escolas, teatros, estúdios, ambientes domésticos, selvas etc. Duas regiões se destacam do con-junto: na revista Careta, a região RJ – Zona Sul e, na revista O Cruzeiro, o estrangeiro. Emblemas de um estilo de vida que estava se impondo. Comecemos pela Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e sua identifi-cação com o habitus da classe dominante.

A Zona Sul do Rio abarca os bairros litorâneos localizados entre o mar e os morros. São mais distantes do centro de negócios e, até os

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anos 1950, eram fundamentalmente destinados à moradia e lazer das camadas mais ricas da população urbana. Portanto, era uma área onde se podia facilmente retratar a vida, os hábitos, as maneiras de vestir, os passeios, os eventos etc. de uma classe que cada vez mais se iden-tificava com os valores e comportamentos da burguesia ocidental.

Os lugares de maior incidência, nas fotos da Zona Sul, da Careta, são: os parques, as avenidas, as ruas, os clubes, as praias, os estádios de futebol de clubes, os hotéis e as veredas tropicais à beira-mar. Assim, os lugares fotografados compunham uma mensagem que rea-firmava a vocação destes espaços para o lazer e a diversão de setores privilegiados da população. A freqüência a tais lugares, como não era aberta ao público, funcionava para o seu usuário como um signo de distinção social.

Uma tendência evidenciada nas fotografias de escolas, em que o tema escolhido não foi o das salas de aula, mas o das festas de for-matura e de encerramento do ano letivo; no mesmo estilo, os prédios públicos – principalmente, o palácio do governo, localizado no bairro de Laranjeiras (Zona Sul) – compareciam somente nas fotos de fes-tividades, geralmente, Natal, quando se distribuíam, nos jardins do palácio, presentes aos pobres. Mais uma vez, reafirma-se a idéia de privilégio na forma de representação dos espaços freqüentados pelos grupos dominantes. Em relação às escolas, os ritos de passagem evi-denciavam o aprimoramento cultural e intelectual dos filhos e netos dos donos do poder, paralelamente, a caridade garantia a manutenção da distância social entre os grupos privilegiados e os desfavorecidos, agentes e pacientes do ato caridoso.

Neste sentido, a Zona Sul da cidade sempre foi associada a códi-gos de comportamentos relacionados aos grupos dominantes, emble-mas de sua distinção social, tais como: banhos de mar na praia da Urca, defronte ao Cassino em grandes tendas; bailes de formatura do Clube Fluminense, com seus lustres e espelhos, que criavam uma ambiência de exclusividade e luxo; lanches na varanda do hotel Copacabana Pa-lace, tendo como ornamentação a bela avenida Atlântica, reformada e cheia de automóveis importados, entre outros exemplos.

Em O Cruzeiro, a maioria das fotografias analisadas é de locali-dades estrangeiras, destacadamente a Europa Ocidental e Hollywood. Da Europa Ocidental chegavam notícias das guerras e dos grandes fatos que marcaram a história contemporânea da humanidade. No en-tanto, era com Hollywood que o carioca (como eram e são chamados os habitantes da cidade do Rio de Janeiro) se reciclava e assimilava o padrão burguês de comportamento como uma norma de atitude.

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Ao longo da década de 1920, os Estados Unidos cresceram economicamente, despontando como a terra do dinheiro fácil, de homens vigorosos e da ilusão consumista. Uma sociedade afluente e moldada sob medida para uma classe dominante carente de um pro-jeto cultural próprio, tal como a burguesia carioca se apresentava. O automóvel americano e as fitas de Hollywood exportavam o american way of life.

No caso do Rio de Janeiro, capital federal, a indústria cinemato-gráfica, através da Companhia Cinematográfica Brasileira, consegue intervir no panorama urbano com a construção da Cinelândia. Um espaço, no centro de negócios da cidade, totalmente reformado para abrigar as novas salas de cinema. Ir ao cinema havia se transformado no ato de consumo de um produto: os filmes; daí a necessidade de locais adequados para consumi-los.

Ingressos caros, mas conforto, higiene e luxo eram oferecidos a todos os freqüentadores pelos quatro cinemas inaugurados na Cine-lândia, entre 1925 e 1928. Capitólio, Odeon, Palácio e Glória, com suas estréias espetaculares, produziram um novo espaço de aparência na geografia da cidade.

A revista O Cruzeiro lançava em 1928, ano da inauguração do último cinema do complexo, uma sessão denominada “Cinelândia”. Aí eram tratadas as “coisas do cinema”, numa composição de fotografias e comentários sobre a vida pessoal dos artistas, cenas de filmes, a qualidade da audiência nos cinemas etc. Uma tendência que se alas-trou por outras publicações ilustradas, pois, nos anos subseqüentes, inauguraram seções exclusivamente sobre Hollywood, sinônimo de cinema, dentre as quais destacaram-se: “Galeria dos artistas da tela” (Fon-Fon); “Novidades de Hollywood” (Careta); “Cine-revista” (O Cru-zeiro) etc. Além das revistas especializadas em cinema, tais como: Selecta, Cinearte e Para Todos.

O cinema, incentivado por tais publicações, passou a fazer parte do cotidiano social carioca, reordenando a geografia de diversões, ao mesmo tempo que impunha novos códigos de comportamento.

A imagem proveniente de Hollywood influenciava no tipo da in-dumentária, nos cortes de cabelo, na maquiagem, na forma de beijar,6 bem como na redefinição dos locais de lazer da burguesia carioca, e na estruturação de um star-system nacional utilizando-se das artistas do rádio. Nos anos 1940, a política da boa vizinhança encetada pelos Estados Unidos, para os países da América Latina, redefiniria a estra-tégia de sedução hollywoodiana. Carmem Miranda e o personagem

6 “Técnicas do beijo”, reportagem publicada com fotos de artistas se beijando, pela revista O Cruzeiro, em 1934.

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de Walt Disney, Zé Carioca, tornaram-se ícones a partir dos quais deveríamos nos amoldar. Uma imagem imposta redefinidora da nossa própria auto-imagem.

Neste momento, não só o Brasil, mas a sociedade latino-ameri-cana como um todo sofre um processo de internacionalização. Em tal processo, as referências culturais de caráter tipicamente burguesas, já consolidadas nas sociedades do hemisfério norte, mesclam-se aos valores tradicionais de cada formação social, gerando uma cultura híbrida. A marca fundamental deste novo padrão cultural foi a va-lorização do popular na sua dimensão de mercadoria de consumo e a manutenção dos códigos comportamentais pautados na exclusão social.

Nesse contexto, uma nova sociabilidade urbana se formava com base nos códigos de representação social que valorizavam o samba, o malandro, a boemia, enfim, elementos de uma cultura popular apro-priados e reelaborados pela ótica do estrangeiro. Portanto, o popular passa a ser uma mercadoria consumida através da organização do chamado star-system, composto pelas estrelas e astros dos filmes de Hollywood, das chanchadas da Atlântida,7 dos programas e novelas da rádio Nacional e pelas fotografias das revistas, que veiculavam a imagem de todos os agentes destas atividades como símbolos da nossa brasilidade.

O reverso desta imagem é a exclusão, de fato, de setores popu-lares das áreas valorizadas da cidade, da diferenciação de lazer de elite e do povo, do agravamento das diferenças sociais e da perda de referências culturais propriamente nacionais.

Por outro lado, a ênfase dada ao espaço estrangeiro pela revista O Cruzeiro explica-se por ser esta uma revista mais cosmopolita e criada a partir do novo padrão empresarial da imprensa moderna. Em compasso com esta tendência, mantinha-se contato direto com as agências internacionais de notícias, tais como: Schert de Berlim, ABC de Lisboa e o Consórcio Internacional de Imprensa de Paris, além de manter um correspondente especial em Hollywood.

No entanto, nas imagens havia ausências. O Leste Europeu e o Oriente surgiam somente como paisagem exótica. No entanto, a Améri-ca Latina e os bairros pobres de suas cidades são apagados da imagem dominante como uma realidade inexistente, equiparados à condição de periferia na configuração da geopolítica ocidental burguesa.

O Cruzeiro e a Careta seguem uma tendência semelhante, salvo as ênfases acima apresentadas. O Cruzeiro marca sua diferenciação 7 Estúdio cinematográfico responsável por uma significativa produção de filmes

nacionais, pautados na estética norte-americana, durante as décadas de 1940 e 1950.

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do conjunto de revistas ilustradas investindo no aspecto cosmopo-lita do Rio de Janeiro, Capital Federal, enquanto a Careta manteve sua tradição de revista de crítica de costumes, tipicamente carioca, elevando as imagens da Zona Sul ao padrão ideal de representação.

Enquanto O Cruzeiro opunha a cidade a um outro espaço – Rio x Mundo – buscando sua identificação, a Careta complementava a cidade com este espaço estranho, criando uma nova identificação: Rio = Mundo. Vale complementar tal avaliação pela dimensão política da cidade, centro de decisões ligado ao gerenciamento dos negócios públicos e privados. A cidade-capital surgia nas fotografias como refe-rência paradigmática de Brasil. Ao longo de 50 anos de imagem, o Rio passa de Paris dos trópicos, símbolo da modernidade sustentada por uma elite agrária dominante, à metrópole sintetizada nos arranha-céus da avenida Presidente Vargas, inaugurada em 1945. Em todos estes momentos, atualizava sua função de centro de poder, local onde se decidia o futuro do país e de onde o Brasil se projetava para o mundo civilizado. Uma estratégia das classes dominantes para manter a uni-dade nacional através da identificação do país com sua capital.

emblemas do gosto burguês

Os objetos, numa coleção de fotografias de revista, são atribu-tos da mensagem fotográfica que fornecem a dimensão dos lugares retratados e dos eventos a estes relacionados. Para efeito de análise, dividiram-se os objetos retratados em três tipos: objetos-pessoais, objetos-interiores e objetos-exteriores. Na mensagem fotográfica transmitida pelas revistas ilustradas, tais objetos foram apresenta-dos tanto como dignos símbolos do padrão de vida dominante, como objetos úteis para a realização de determinadas tarefas. Entretanto, em ambos os casos, o objeto investe a imagem de determinados sig-nificados próprios ao espaço e tempo da representação.

Os objetos-pessoais estão associados à representação do indi-víduo, isto é, de seu estilo de vida e sua posição na hierarquia social. Os objetos-interiores caracterizam o tipo de paisagem que se está retratando: privada ou pública; muitas vezes, como no caso das cenas de filmes, a transposição de objetos-interiores para espaços públicos, como estúdios de cinema, visa criar, justamente, uma ambiência priva-da. O terceiro tipo, os objetos-exteriores, caracteriza o meio retratado, podem também, quando associados às pessoas, indicar o estilo de vida e o padrão social no qual elas se enquadram.

É especialmente no âmbito dos objetos que a mensagem fotográ-fica das revistas ilustradas entra na intimidade do leitor, moldando-lhe

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os gostos e educando-lhe o olhar, interferindo, tanto na sua represen-tação pessoal, quanto na criação de novos códigos de comportamento para uso coletivo.

Esse processo ocorre porque os três tipos de objetos que fazem parte do cotidiano dos receptores das mensagens fotográficas, ao serem recortados da realidade vivida e transpostos para a realidade da imagem, adquirem uma função-signo de modelo, na qual estão investidos de um poder de persuasão até então não dimensionado. A combinação de redes de significado compondo objeto + figuração + vivência adere à representação, indicando formas corretas de se comportar em diferentes ocasiões.

No conjunto das fotografias analisadas, evidenciou-se um es-tilo de vida baseado no consumo supérfluo do luxo e da abundância de objetos, marca registrada do novo cidadão urbano. Em 70% das fotos os objetos estão em segundo plano, atuando como elemento de reconhecimento do ambiente retratado, em geral urbano (66%) e elegante: clubes (26%), ruas e avenidas da moda (24%) e hotéis (14%). Em termos de objetos-pessoais, em 50% das fotos analisadas a indumentária escolhida incluiu trajes como: gala, passeio completo, esporte fino e esportivo. Tal preocupação pelo traje adequado para a hora certa denota a existência de um código do bem-vestir pautado na utilização de objetos-pessoais para a caracterização da situação que se está vivenciando e como elementos de distinção social.

os donos do olhar: hierarquia de gênero e idade na rePresentação social da burguesia

Compreendendo o espaço da figuração engendrado pela men-sagem fotográfica das revistas ilustradas a partir de três oposições básicas: grupo/indivíduo; homem/mulher e adulto/criança, desvenda-se um mundo no qual os habitantes possuíam lugares determinados no espaço da representação. Neste a imagem feminina estava associada à frivolidade e aos papéis de espectadora e modelo exemplar, e a masculi-na, à ação, inteligência e ao poder. No trabalho de relacionar a figuração ao evento retratado, tal distinção evidenciou-se.

Os homens foram relacionados às temáticas que incluem: os eventos sociais, militares, políticos e esportivos, além das curiosidades nacionais e internacionais, item que contém uma grande variedade de temas que poderiam incluir desde os acontecimentos cotidianos da ci-dade – como desastres de avião ou automóvel, especialidades culinárias dos cozinheiros dos principais hotéis e clubes da cidade, reportagens sobre recursos naturais etc. – até as últimas novidades do século XX.

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Por outro lado, a imagem feminina foi associada à vida dos artistas e de pessoas famosas do high society internacional e principalmente à moda. Sobre a moda havia uma distinção entre as novidades interna-cionais e a sua utilização no âmbito nacional. É justamente através da imagem da moda nacional que a especialização entre o espaço feminino e masculino evidencia-se mais claramente, posto que tal temática está representada nas fotografias do Jockey Club, onde as mulheres são retratadas como o público elegante, destacando-se a sua indumentária bem cuidada e o seu estilo requintado.

Entretanto, no espaço feminino também se incluíram imagens das condições de vida das classes populares, que veiculavam uma representação dicotômica da sociedade que vem a confirmar os papéis socialmente impostos. A mulher das classes populares é fotografada, via de regra, trabalhando em serviços braçais, tais como: lavar roupa, cozinhar, cuidar de criança etc., ou em situações de dificuldade e pre-cariedade. A ela são associadas roupas simples e à sua casa poucos objetos interiores, além de estar localizada nos subúrbios desassistidos pelas autoridades.

Neste sentido, o espaço feminino para as classes populares é formado por um ambiente periférico, que acaba por confundir-se com o coletivo, não recebendo com isso a mesma valorização das mulheres da classe dominante, que surgiam na imagem sempre com boa aparên-cia, em lugares exclusivos e protagonizando situações de lazer ou de romance.

Na representação criada pela imagem fotográfica, o universo infantil é um simulacro daquele do adulto, no qual todas as potencia-lidades para um cidadão realizado são apresentadas como condição natural e inerente ao grupo social do qual provêm.

Em 10% das fotos analisadas, as crianças aparecem sozinhas, em 14% estão acompanhadas de adultos, o restante são fotos exclusi-vamente de adultos. Diante de tal proporção, investiu-se na descoberta dos temas e do tipo de indumentária que foram associados às crianças, para dimensionar-se quais eram as representações sociais que estavam atreladas ao universo infantil.

Basicamente, os eventos sociais, os banhos de mar e os passeios foram os temas que obtiveram a maior incidência de crianças sem a companhia de adultos (21%). Neste caso, os eventos sociais são for-mados por festas de encerramento do ano letivo e por bailes infantis em ocasiões especiais – um exemplo deste tipo de evento são as fotos dos bailes da Exposição Internacional de 1922, em suas versões adulta e infantil.

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Acompanhadas de adultos, as crianças são retratadas nos eventos sociais, militares, políticos, esportivos e nos passeios e banhos de mar (18%). Desta vez, os eventos sociais e a temática de maior incidência (7%) compõem-se por festas de caridade com a presença de menores carentes.

Com efeito, mesmo quando as crianças são retratadas sem a com-panhia dos adultos, mantêm-se a eles atreladas. A marca da dependência se evidencia através da opção temática das fotos infantis, nas quais se apresentavam os mesmos tipos de evento para adultos e crianças, ou ainda nas imagens de festas de caridade, nas quais um conjunto de crianças espreita os adultos na busca de presentes ou benefícios.

No espaço infantil, a sociedade reaparece segmentada em dois grupos sociais distintos: um que, socialmente despossuído, depende da caridade do universo adulto, e outro que compartilha da fruição dos lugares exclusivos e do consumo dos signos de luxo e riqueza e que se prepara para assumir os papéis já estabelecidos na dinâmica social. A própria indumentária reafirma a existência de tais papéis, tendo em vista que, do conjunto de fotos de crianças acompanhadas ou não de adultos, em cerca de 40% as crianças estão fantasiadas, 18% trajam passeio-completo e 16,5% em modo esportivo. De acordo com tal propor-ção, são as fantasias a escolha principal para compor o espaço infantil, dentre as quais se destacam: príncipes, nobres, militares, esportistas, bailarinas etc. Imagens que associam as crianças a representações sociais tipicamente adultas e de um certo universo de adultos.

distinção social e vivência de classe na sociedade carioca da Primeira metade do século xx

Em 1950, no Rio de Janeiro, florescia um mundo moderno de me-trópole burguesa definitivamente constituída. Um espaço bem marcado, com suas fronteiras delimitadas pela gare da estação de trens da Central do Brasil e pela orla marítima. Entre tais fronteiras, vivia o Rio moderno e promissor, sociedade afluente de signos de distinção. Para além da Central do Brasil, os subúrbios eram o reverso desta imagem, onde “a vida tem horizontes exíguos e as aspirações e os sonhos encontram seus limites nos trilhos da estrada de ferro, sendo o rádio a única porta de evasão” (PEREGRINO JR. apud NOSSO SÉCULO, v. 4, p. 154).

Ao longo da primeira metade do século XX, das representações sociais de comportamento engendradas pela imagem fotográfica, das revistas ilustradas, surge uma cidade onde os espaços são redimensiona-dos tendo em vista atividades para as quais não foram programados, em função de uma vivência de classe. Neste sentido, o lazer é associado ao

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XX trabalho no exercício do poder, na medida em que os grandes negócios

empresariais ou as importantes questões nacionais eram resolvidos em banquetes e festas. Os espaços adquiriam uma nova dignidade por terem sido fotografados como ambientes para eventos exclusivos, ou simplesmente, porque neles se deixaram fotografar pessoas ostentando objetos que caracterizassem um determinado estilo de vida associado ao luxo e à exclusividade. Assim, a coesão de classe e a construção de uma Capital cosmopolita e moderna, plenamente preenchida por valores de tipo burguês, se processam tanto através da vivência e do consumo de um mesmo universo de signos, como pela produção de uma imagem em que o locus social aparece como dado inerente à própria história.

Portanto, o pobre é retratado como naturalmente pobre e o rico como naturalmente rico, posto que em nenhum momento são representados fora do código dominante que associa um determinado espaço geográfico a certos objetos e pessoas, orientando-se com isso a própria representação dos eventos/vivência dos grupos sociais. As-sim, a naturalização do processo histórico, através da hegemonia da imagem fotográfica dominante, atuou como elemento estruturante das representações sociais de comportamento que se instituíram ao longo da primeira metade do século XX, moldando os gostos e escolhas dos cidadãos que se tornavam consumidores.

As revistas ilustradas compuseram o catálogo de valores, em-blemas, comportamentos e representações sociais, por meio do qual a burguesia se imaginou e se fez reconhecer, criando a utopia de um mundo digno, porque civilizado, empreendedor, e livre, porque aces-sível e transparente aos olhos de todos. A imagem publicada torna-se o ícone, por excelência, de um modo de vida vitorioso, que prescinde da própria realização para existir, bastando para tanto que as imagens fotográficas o refletissem.

Cinqüenta anos de imagens que revelam o processo social de um grupo que, aos poucos, adquire consciência de classe, tanto pelo papel conquistado no âmbito da produção, quanto pelos quadros de repre-sentação social e programações de comportamento elaboradas neste processo. Tais referências culturais foram estendidas para o conjunto da sociedade como sendo a forma correta de ser e agir, relegando-se todos os comportamentos alternativos ao âmbito da marginalidade.

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flávio damm, Profissão fotógrafo de imPrensa: o fotoJornalismo e a escrita da história contemPorânea

O goleiro que pega a bola na hora do gol; o torcedor desdentado grudado no seu radinho de pilha; a moça bonita que, estirada na praia, projeta seu corpo para o mundo; o banhista atento à movimentação faz pose de sportsmen; no ponto de ônibus, as pessoas em fila esperam o próximo a chegar; na outra esquina, o ônibus é depredado pela mul-tidão; do avião caem projéteis e a imagem seguinte é a de um grande cogumelo atômico. Imagens fotográficas vistas ou imaginadas narram a nossa experiência contemporânea no mundo.

Ao longo da história das publicações ilustradas, a fotografia foi criando uma linguagem através da qual os fatos assumiam uma histo-ricidade, ao mesmo tempo que eram concebidos por meio do estatuto da verdade fotográfica. Proponho, para analisar esse processo de pro-dução de sentido, uma metodologia transdisciplinar que, segundo os princípios de uma análise semiótica da imagem visual, estabeleça sua interface histórica num procedimento intertextual com as fontes orais. Desta forma, o passado composto mediante palavras e imagens poderá dar conta das imbricações conceituais entre memória e história.

Abordaremos, neste artigo, a trajetória do fotógrafo Flávio Damm, que em 2005 completou 60 anos de carreira. Sua entrevista é objeto de uma avaliação a partir da relação entre biografia e mediação cultural.

a traJetória do olhar de flávio damm

“Ana, que bom que minhas fotos emocionam. De São Paulo um [grande] fotógrafo diz que gosta da minha simplicidade foto-gráfica. Vou acabar Harekrishna. Vou acabar dando conselhos para noivas inexperientes[...]” (Flávio Damm, por e-mail, em 10 maio 2005).

A estratégia metodológica adotada para este trabalho se orienta segundo duas grandes linhas que já vêm norteando, desde sua fun-dação em 1982, o trabalho do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI/UFF): criação de acervo com fontes orais e tratamento infor-

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matizado das fontes visuais. Dentro desta perspectiva, a produção das fontes orais se processa com base no princípio de intertextualidade, segundo o qual as narrativas, textos e discursos são sempre resulta-do de um processo contínuo de produção de sentido, realizado com base num conjunto de experiências sociais prévias, que podem vir condensadas pela memória através de imagens.

Neste sentido, inscrevo minha proposta no marco da história da memória de um grupo de indivíduos – os fotógrafos de imprensa. Por um lado, valorizo o circuito social de suas fotografias e sua situação no regime visual do século XX, historicamente definido pelos processos de produção, circulação e consumo de imagens técnicas. Por outro, busco a recomposição das trajetórias dos principais fotógrafos que atuaram na imprensa, principalmente a partir da segunda metade do século XX, por meio de entrevistas com aqueles ainda vivos, no senti-do de compreender as relações entre as histórias de vida (estratégias profissionais e escolhas pessoais), mediação cultural e a produção visual da história.1

Para o trabalho com fontes orais foi adotado o seguinte pro-cedimento: definição da comunidade de entrevistados; pesquisa de dados informativos; definição do roteiro da entrevista; estabeleci-mento do contato com nossos futuros entrevistados e realização da entrevista (após a escuta da primeira entrevista, se necessário fosse, marcar-se-ia uma segunda entrevista ). Já tendo nossa comunidade de entrevistados definida – os fotógrafos de imprensa –, partiu-se para a coleta de dados informativos, que é a base para o início de qualquer trabalho de pesquisa. Os dados levantados se referem tanto à histó-ria do fotojornalismo e da imprensa, como também à comunidade de nossos entrevistados. Essa tarefa foi realizada a partir da atualização bibliográfica, o que permitiu não só a própria atualização e aprofun-damento do tema, como também capturou dados importantes para as entrevistas e para a confecção do roteiro.

Optou-se por um roteiro que enfatizasse as lembranças de cada fotógrafo acerca da produção de suas fotografias e de sua trajetória profissional, sem negligenciar a história pessoal de cada um. Embo-ra comum a todos os entrevistados, o roteiro é flexível, não sendo necessário que seja seguido à risca. Serve como base para apoiar o entrevistador e lhe dar um norte em relação às questões basilares que precisam ser mencionadas. Porém, o ritmo da entrevista é o que realmente conduz entrevistador e entrevistado.

1 Sobre os conceitos de projeto, campo de possibilidades e trajetória que nortearam a elaboração das entrevistas de história de vida, ver: VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: por uma antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994.

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Com os dados coletados e o roteiro em mãos, partiu-se para a realização das entrevistas, sabendo que relato oral e fotografia complementam-se na elaboração do material histórico a ser analisado. Ou seja, a associação do uso de fontes visuais aos relatos orais como fontes para o estudo da história.

O contato inicial foi com o fotojornalista Flávio Damm. A pri-meira entrevista logo se revelou insuficiente para dar conta de suas histórias, sendo que, ao todo, realizamos três entrevistas ao longo de 2003 (24/04/2003; 15/05/2003 e 7/10/2003). Além de conversas informais e trocas de e-mails que complementam o trabalho de re-composição da sua trajetória.

As entrevistas mais formais transcorreram em ambiente tranqüilo e com bastante disposição por parte do entrevistado em fornecer informações e impressões sobre a história do fotojornalismo contemporâneo. O roteiro seguido enfatizou sua trajetória profissional e a lembrança das fotografias que mais marcaram sua carreira.

O primeiro trabalho de Flávio Damm na imprensa foi na Revista do Globo, quando ainda morava no Rio Grande do Sul. Depois de algum tempo, foi incentivado por alguns amigos e por companheiros de pro-fissão a vir tentar a sorte no Rio de Janeiro, em função da qualidade de seu trabalho. Foi o que ele fez. Quando chegou ao Rio, foi diretamente pedir emprego numa das revistas mais famosas e conceituadas da época: O Cruzeiro.

Sobre O Cruzeiro, para a qual trabalhou durante dez anos, as lembranças são muitas. Falou tanto da importância desta revista na época, como também da rotina dentro da redação e da linguagem foto-gráfica utilizada. Muitas são as reportagens que compõem os quadros da sua rememoração, estas incluem desde a Coroação da Rainha da Inglaterra, as últimas fotografias de Eva Perón, até o crime do Sacopã, na Zona Sul carioca. Cada qual narrada com rigores de explicação técnica, enfatizando o lado de aventura que envolve o imaginário do trabalho do fotógrafo contemporâneo.

Após sua saída da revista O Cruzeiro, Flávio Damm teve vários trabalhos desenvolvidos e todos relacionados à fotografia, é claro. Abriu um estúdio num apartamento que tinha no Flamengo, fotografou petróleo para a Petrobrás, trabalhou como produtor de serviço gráfico (arte gráfica), escreveu livros, participou de inúmeras exposições, além de ter sido um dos primeiros fotógrafos brasileiros a criar uma agência de fotografia, em 1961: Agência Jornalística Image Ltda.

Amante da fotografia em preto-e-branco e se dizendo avesso à prostituição dos encantos da imagem digital, diz ter a necessidade de estar sempre fotografando, uma vez que a fotografia é o ar que

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ele respira. Considerado por seu irmão mais novo como fotógrafo batedor de carteira em função de sua discrição ao fotografar o que ele chama de cotidiano surrealista, Flávio Damm defende a idéia de que a fotografia é uma arte sim. Para ele, os grandes mestres da foto-grafia, como é o caso de Cartier-Bresson, legaram momentos de arte através da fotografia.

O esboço biográfico de Flávio Damm confirma o fato de que, ao elegermos o fotojornalismo como matéria fundamental da pesquisa, elegemos também um sujeito histórico: o fotógrafo de imprensa que atua como mediador cultural do processo comunicativo. A noção de mediação cultural tal como apresentada por Raymond Willians e apro-priada por diferentes pensadores latino-americanos, dentre os quais, destaca-se Martin-Barbero, permite que se rompa com a ultrapassada teoria do reflexo e se desvende a intricada rede de influências sociais que consubstanciam a produção cultural na sociedade capitalista. A idéia defendida por Willians propõe associar mediação ao próprio ato de conhecer e elaborar expressões no âmbito do ativo processo de produção de representações sociais.2

fotografia e mediação cultural, algumas anotações básicas

A fotografia como parte integrante do universo das máquinas de imagem deve, de acordo com Phillipe Dubois (1999), integrar os regimes visuais de cada época, segundo o princípio que a define como imagem técnica, ou seja, o resultado de um saber-fazer, que implica um aprendizado dos meios de produção. Para o autor

é evidente que toda a imagem, mesmo a mais arcaica, requer uma tecnologia, ao menos de produção, em certos casos de recepção, já que pressupõe um gesto de fabricação de artefatos que recorrem a instrumentos, regras, condições de eficácia, bem como um saber. Originalmente, a tecnologia é simplesmen-te, e literalmente, um savoir-faire. (DUBOIS, 1999, p. 65)

Neste sentido, a fotografia ou as diferentes modalidades de fotografia se definem historicamente em circuitos sociais, dos quais participam como mediadores culturais privilegiados os fotógrafos. A prática fotográfica oitocentista foi bem definida pela expressão o olho da história, cunhada por Mathew Brady, chefe da equipe fotográfica 2 Sobre o conceito de mediação ver: WILLIANS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio

de Janeiro: J. Zahar, 1979; MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: co-municação, cultura e hegemonia, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

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responsável pela cobertura da Guerra Civil norte-americana, ao se referir à câmera fotográfica. As fotografias produzidas nos campos de batalha eram consideradas como verdadeiras testemunhas oculares da história, pois desnudavam em imagens a dura realidade da guerra de uma maneira bem diversa dos relatos escritos. A imagem fotográfica, segundo a concepção oitocentista, era assimilada a partir da crença de que as fotografias não passavam de janelas que se abriam para o mundo lá fora, expondo-o da maneira mais fidedigna possível. Portan-to, tudo o que era visto era representado como tal. O relato histórico ganhava, assim, a força comprobatória da verdade fotográfica.

Nesse momento, o campo fotográfico se definia em função de alguns critérios de notabilidade que variavam de acordo com as condições de cada localidade. Em linhas gerais, os fotógrafos do século XIX se distinguiam por quatro características básicas, estrei-tamente associadas à noção de saber-fazer: a) atualização em relação às inovações tecnológicas associadas à arte de reproduzir imagens tecnicamente; b) acesso à compra de material de última geração; c) proximidade do poder político e, finalmente, d) formação artística nas artes acadêmicas. Tais características orientavam a produção das imagens fotográficas, diferenciadas, fundamentalmente, entre retratos e paisagens (até mesmo as fotografias de guerra seguiam o cânone visual das pinturas de paisagens) (MAUAD, 2005a).

No século XX, a diferenciação do ato fotográfico pelas categorias de fotógrafos já evidenciava uma mudança no regime de visualidade e nos usos e funções da fotografia no Oitocentos. A revista Photograma, publicação mensal do Fotoclube Brasileiro, responsável pela difusão da fotografia amadora no Rio de Janeiro, na qual eram ensinadas teo-ria e prática fotográfica, dividia a fotografia em três tipos: fotografia anedótica, fotografia documentária e fotografia artística ou pictorial (Photograma, ano 4, no 33, p. 6, ago. 1930).

A revista explicava tal distinção associando cada modalidade a certa prática fotográfica. A fotografia anedótica era praticada por pessoas comuns que seguiam a máxima “kodakiana”, qual seja: “Você aperta o botão e nós fazemos o resto”. A foto de caráter documental era feita por fotógrafos profissionais, associados às agências da im-prensa. Finalmente, a fotografia artística era atribuição do verdadeiro amador, aquele que fotografava por amor à arte.

Dentre os batedores de chapa – os amadores e os profissionais da fotografia –, se dividiram as categorias de fotógrafos, cada qual operando o dispositivo fotográfico segundo as mediações culturais que a sua condição social impunha. O aprendizado de cada um, tam-bém, variava: aos batedores de chapa ficava reservada a publicidade

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das fábricas de filmes e câmeras, que, ao venderem seus produtos, ensinavam a utilizá-los da forma correta, desenvolvendo uma pedago-gia do olhar nos semanários ilustrados; aos amantes da fotografia, o privilégio dos espaços exclusivos dos fotoclubes, reservados para os iniciados nas artes pictóricas; já os profissionais da fotografia, catego-ria mais complexa, vão evidenciar as tensões entre ver e representar próprias do circuito de informação da imprensa contemporânea e seus contatos com as experimentações visuais das vanguardas ar-tísticas do Oitocentos, no Brasil, notadamente, com o Concretismo. De qualquer forma, a linguagem fotojornalística foi se definindo no regime visual contemporâneo a partir das relações de analogia e de experimentação formal com o referente, organizando em diferentes espaços de sociabilidade os locais do seu aprendizado.

Compreende-se, assim, Flávio Damm como um mediador entre o mundo dos acontecimentos e o mundo das suas imagens, que apre-senta como resultado uma síntese original, filtrada pelo saber-fazer do fotógrafo. Suas fotografias revelam uma narrativa da história do Brasil contemporâneo, sem a qual muito da riqueza de detalhes, do impre-visto e do não-dito ficaria perdido. Sem contar que sua trajetória se confunde com a própria história do fotojornalismo, uma vez que ele estava presente no momento em que a profissão de fotojornalista estava se constituindo e tomando corpo.

fotoJornalismo em PersPectiva

A fotografia entrou para os jornais diários em 1904, com a publi-cação de uma foto no jornal inglês Daily Mirror. Um atraso de mais de 20 anos em relação às revistas ilustradas, que já publicavam fotografias desde a década de 1880.3 No entanto, o ingresso da fotografia no perio-dismo diário traduz uma mudança significativa na forma de o público se relacionar com a informação, através da valorização do que é visto. O aumento da demanda por imagens vai levar ao estabelecimento da profissão do fotógrafo de imprensa, procurada por muitos a ponto de a revista Collie’r’s, em 1913, afirmar: “It is the photographer that writes history these days. The journalist only labels the characters.”

Uma afirmação bastante exagerada, tendo em vista o fato de que, somente a partir dos anos 1930, o conceito de fotorreportagem estaria plenamente desenvolvido. Nas primeiras décadas do século, as fotografias eram dispostas nas revistas de modo a traduzir em imagens um fato, sem muito tratamento de edição. Em geral, eram publicadas 3 Para uma avaliação do fotojornalismo no mundo contemporâneo, ver: SOUSA, Jor-

ge Pedro. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental. Chapecó: Grifos Florianó-polis: Letras Contemporâneas, 2000; FREUnd, 1989.

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todas do mesmo tamanho, com planos amplos e enquadramento cen-tral, o que impossibilitava uma dinâmica de leitura, como também não estabelecia a hierarquia da informação visual (soUsa, 2000, p. 70).

Foi somente no contexto de ebulição cultural da Alemanha dos anos 1920 que as publicações ilustradas, principalmente as revistas, ganhariam um novo perfil, marcado tanto pela estreita relação entre palavra e imagem na construção da narrativa dos acontecimentos quanto pelo posicionamento do fotógrafo como testemunha desperce-bida dos acontecimentos. Eric Solomon (1928–1933) foi o pioneiro na conquista do ideal da testemunha ocular que fotografa sem ser nota-da. No prefácio de seu livro Contemporâneos célebres fotografados em momentos inesperados, publicado em 1931, ele enuncia as qualidades que o fotojornalista deveria ter:

A atividade de um fotógrafo de imprensa que quer ser mais do que um artesão é uma luta contínua pela sua imagem. Tal como o caçador está obcecado pela sua paixão de caçar, também o fotógrafo está obcecado pela fotografia única que quer obter [...] É preciso lutar contra a administração, a polícia, os empregados, [...] é preciso apanhá-las (as pessoas) no momento preciso em que elas estão imóveis. Depois é preciso lutar contra o tempo, pois cada jornal tem uma deadline ao qual é preciso antecipar-se. Antes de tudo o mais um repórter fotográfico tem de ter uma paciência infinita, e não se enervar nunca; deve estar ao corrente dos acontecimentos e saber a tempo e a hora onde é que irão desenrolar-se. Se necessário devemos servir-nos de toda a espécie de astúcias, mesmo se elas nem sempre são bem-sucedidas. (apud FREUND, 1989, p. 117; SOUSA, 2000, p.78).

Solomon é responsável pela fundação da primeira agência de fotógrafo, em 1930, a Dephot, preocupado em garantir a autoria e os direitos das imagens produzidas. Questão que se prolonga até os dias de hoje nos meios de fotografia de imprensa. Em todo o caso, foi através de iniciativas independentes como esta que a profissão do fotógrafo de imprensa foi ganhando autonomia e reconhecimento. Associado a Solomon em sua agência estavam: Felix H. Man, André Kertesz e Brassai.

A narrativa por meio de imagem passa a ser valorizada através do surgimento do editor de fotografias. O editor, figura que surge nos anos 1930, originou-se do processo de especialização de funções na imprensa e passou a ser o encarregado de dar sentido à imagem, articulando adequadamente palavras e imagens, por meio do título,

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da legenda e de breves textos que acompanhavam as fotografias. A teleologia narrativa das reportagens fotográficas tinha como objetivo precípuo o de capturar a atenção do leitor, ao mesmo tempo que o instruía na maneira adequada de ler a imagem. Stefan Lorant, que já havia trabalhado em diversas revistas alemãs, foi o pioneiro na elabo-ração do conceito de fotorreportagem (COSTA, 1993, p. 82).

Lorant rejeitava a foto encenada, portanto vai fomentar a fotor-reportagem em profundidade sobre um único tema. Nestas reporta-gens, geralmente apresentadas ao longo de várias páginas, fotografias detalhadas são agrupadas em torno da foto central. Esta tinha por missão sintetizar os elementos de uma “estória” que Lorant pedia aos fotojornalistas que contassem em imagens. Uma fotorreportagem, segundo tal concepção, deveria ter um começo e um fim definidos pelo lugar, tempo e pela ação (soUsa, 2000, p. 80).

Com a ascensão do nazismo, os fotógrafos deixam a Alemanha. Solomom é morto em Auschswitz. Alguns deles, dentre os quais, o húngaro Andrei Friemann, que assume o pseudônimo de Capa, vão para a França, onde em 1947 fundam a agência Magnun, outros, como Lorant, se exilam na Inglaterra, assumindo a direção de importantes periódicos, tais como Weekly Illustrated. Posteriormente, com o acir-ramento do conflito, seguiram para os Estados Unidos e trabalharam junto às revistas Life, Look e Time (1922).

O período entre guerras foi também o de crescimento do foto-jornalismo norte-americano. Destacando-se, neste contexto, o apare-cimento dos grandes magazines de variedades como a Life (1936) e a Look (1937). A primeira edição da revista Life saiu em 11 de novembro de 1936, com tiragem de 466 mil exemplares e com uma estrutura em-presarial que reunia, em 17 seções, renomados jornalistas e fotógrafos da sensibilidade de um Eugene Smith.

Criada no ambiente do New Deal, a Life foi projetada para dar sinais de esperança ao consumidor, tratando em geral de assuntos que interessavam às pessoas comuns. Objetivava ser uma revista familiar que não editava temas chocantes, identificando-se ideologicamente com: a ética cristã, a democracia paternalista, a esperança num futuro melhor com o esforço de todos, trabalho e talento recompensados, apologia da ciência, exotismo, sensacionalismo e emotividade tempe-rada por um falso humanismo.

Segundo o seu fundador, Henry Luce, a finalidade da revista seria fazer ver:

[a Life surge] Para ver a vida; para ver o mundo, ser testemunha ocular dos grandes acontecimentos, observar os rostos dos

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pobres e os gestos dos orgulhosos; ver estranhas coisas – má-quinas, exércitos, multidões, sombras na selva e na lua; para ver o trabalho do homem – as suas pinturas, torres [edifícios] e descobertas; para ver coisas a milhares de quilômetros, coi-sas escondidas atrás dos muros e no interior de quartos, coisas de que é perigoso aproximar-se; as mulheres que os homens amam e muitas crianças; para ver e ter prazer em ver; para ver e espantar-se; para ver e ser instruído. (SOUSA, 2000, p. 108)

Com base nesta finalidade foi dado à fotografia um espaço signi-ficativo, desenvolvendo-se plenamente, nesta publicação, os preceitos de fotorreportagem defendidos por Stephan Lorant, que aí veio atuar nos anos da guerra. A fotorreportagem marcou época na imprensa ilustrada, respondendo à demanda de seu tempo. Um tempo em que a cultura se internacionalizava e a história acelerava seu ritmo no descompassado das guerras e conflitos sociais. Em compasso com a narrativa de imagens, os acontecimentos recuperaram a sua força de representação, a ponto de se poder contar a história contemporânea através dessas imagens.

A geração de fotógrafos que se formaram, a partir da década de 1930, atuou num momento em que a imprensa era o meio por excelência para se ter acesso ao mundo e aos acontecimentos. A imagem desta geração de fotógrafos exerceu uma forte influência na forma como a história passou a ser contada. As concerned photographs, fotografias de forte apelo humanista, produzidas a partir do estreito contato com a diversidade dos grupos da sociedade, conformaram o gênero também denominado de documentação social.

Projetos associados à rubrica de documentação social são bas-tante variados, mas em geral se associam a uma proposta institucional, oficial ou não. Seguem-se dois exemplos significativos para a história da fotografia engajada:

Farm Security Administration: a Grande depressão norte-ame-ricana que sobreveio ao crack da bolsa de Nova York em 1929, dois milhões de desempregados e uma massa de imigrantes vivendo em condições subumanas. As péssimas condições de vida, associadas ao deslocamento de populações no interior do próprio país, marcaram este período por um constante medo de explosões de conflito social, o que demandava uma atenção continuada por parte das autoridades.

Um número significativo de fotógrafos, consternados pela situa-ção, respondeu de maneira favorável à demanda oficial. Sob os auspí-cios do que foi conhecido como FSA (Farm Security Admnistration), uma agência de fomento governamental, dirigida por Roy Stryker, a

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vida rural e urbana foi registrada (e devassada) pelos mais renomados fotógrafos do período: Dorothea Langue, Margareth Bourke-White, Russel-Lee, Walker Evans etc.

Muitas destas respostas foram lidas como exemplos de fotojor-nalismo, portanto, suas imagens foram valorizadas como um registro permanente de sua época, ao mesmo tempo que foram vistas como tendo um lugar dentro do contexto no qual foram produzidas. Neste sentido, o objetivo destes fotógrafos era não somente registrar e infor-mar, mas mover e mobilizar a opinião pública no sentido de uma ação positiva. Para isso, não poupavam recursos, tais como a “linguagem dramática” (CLARKE, 1997, cap. 8).

Agência Magnum: o aumento constante da busca por imagens conduz à multiplicação de agências de imprensa em todos os países. Elas empregam fotógrafos ou estabelecem contratos com fotógrafos independentes. Em geral, as agências ficavam com o grosso da venda das fotos, o fotógrafo responsável por todos os riscos não tinha como controlar a venda de suas fotografias.

Por estas razões que, em 1947, Robert Capa, juntamente com outros fotógrafos, fundaram a Agência Magnum. Dentre os fundadores estavam, além de Capa, David Seymour, Henri Cartier-Bresson, George Rodger, Willian Vandivert e Maria Eisner. Em 1949, juntaram-se ao grupo: Werner Bishop, Ernst Haas e Gisèle Freund. Entre 1951 e 1959, a agência é acrescida por mais um conjunto de novos colaboradores: Eve Arnold, Erich Hartmann, Erich Lessing, Denis Stock, Cornell Capa, entre outros.

Para este grupo de fotógrafos, a fotografia não era apenas um meio para ganhar dinheiro. Aspiravam exprimir, através da imagem, os seus próprios sentimentos e idéias de sua época. Rejeitavam a montagem, e valorizavam o flagrante e o efeito de realidade suscitado pelas tomadas não posadas como marca de distinção de seu estilo fotográfico. Em geral, os participantes dessa agência eram adeptos da leica, uma câmera fotográfica de pequeno porte que prescindia de flash para as suas tomadas, o que valorizava o efeito de realidade.

Em ambos os exemplos o que se percebe é a construção de uma comunidade de imagens em torno de determinados temas, aconteci-mentos, pessoas, ou lugares, podendo-se inclusive cruzar estas catego-rias. No caso do projeto FSA, suas imagens corroboraram, em grande medida, o processo de construção de identidades raciais, políticas e étnicas, dentro dos Estados Unidos, a partir da ótica do Estado do Bem-Estar Social. Segundo tal lógica, a comunidade norte-americana sobreviveria na adversidade por sua diversidade social, amalgamada como símbolo de uma vida ideal, pelo projeto governamental (STANGE,

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1989). A questão que se colocava entre os fotógrafos e o gerenciador do projeto Roy Stryker dizia respeito à posse dos negativos, pois estes pertenciam ao Estado contratante, apesar dos protestos e atitudes de fotógrafos como Dorothea Langue ou Walker Evans.

Cabe esclarecer que foi somente na convenção de Berna-Bruxelas, nos anos 1950, no seu artigo seis, que se reconheceram formalmente os direitos de autor dos fotógrafos, ao estabelecer-se que a fotografia não deveria ser deformada, mutilada ou objeto de qualquer outra modificação que atentasse contra a honra do fotógrafo.

A luta pelo direito autoral e pela autonomia de criação foram elementos fundamentais para definir o padrão de visualidade criado pela agência Magnum. A morte do miliciano espanhol, de Robert Capa, ou ainda, a mulher segurando uma flor na Marcha pela Paz, contra a guerra do Vietnã, em 1967, de Marc Riboud, são exemplos clássicos de como as fotografias da Magnum projetam os acontecimentos no tempo, compondo um imaginário para a história do século XX.

A longa existência da agência foi marcada por conflitos comuns a um grupo de estrelas da fotografia, no entanto, nenhum tão signi-ficativo a ponto de colocar em risco sua sobrevivência como ícone das “concerned photographs”. Num de seus encontros anuais, Henry Cartier-Bresson (1908–2005), um de seus pais fundadores, definiu-lhe o significado:

Magnum é uma comunidade de pensamento, que compartilha uma qualidade humana, a curiosidade sobre o que está acon-tecendo no mundo, um respeito pelo que está acontecendo e o desejo de transcrever tudo isso visualmente. Por isso o grupo sobreviveu. É justamente isso que nos mantém unidos. (MILLER, 1998, p.15)

Paralelamente ao trabalho mais engajado, o fotojornalismo da grande imprensa foi ganhando força pela rapidez com que dava a ver os acontecimentos. O investimento em tecnologia de captação e repro-dução das imagens, em tempo cada vez mais exíguo, vai permitir que as fotografias assumam o papel de difusoras de informação. O furo de reportagem será também definido pela melhor fotografia sobre o que aconteceu. A concorrência marcaria o surgimento das agências de notícias, já nos anos 1930.

O uso de imagens fotográficas não somente para ilustrar, mas fundamentalmente como suporte de informações redefiniu o padrão gráfico dos jornais e revistas, desde o início da década de 1920, como explica Kevin Barnhurst e John Nerone:

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Althought larger photos appeared in the 1920s, the contrast between small and large shots increased over the period. The shots were mostly long and medium range at first. Closer shots (or cropping) got more frequent in the 1920s, and longer shots declined after 1936’s. These shifts were consonant with the emergence of modern photojournalism, which valued events and emotive detail. (apud SOUSA, 2000, p. 103)

A crescente demanda por fotografias produzidas ao calor da hora levou ao desenvolvimento de recursos tecnológicos que permitis-sem a sua transmissão no menor tempo possível. Dentre os principais recursos, destaca-se a telefoto, introduzida em 1935, na Associated Press, e um ano depois na Soundphoto, do grupo Hearst, que fornecia imagens para o The New York Times, e na Scripps-Howard’s NEA – Acme telephoto.

Os serviços de telefotos levaram a uma estandardização das fotografias na grande imprensa. Na década de 1940, as agências de notícias já eram os principais fornecedores de imagens fotográficas para a imprensa diária e semanal. Em geral, os clientes dos serviços fotográficos das agências de notícias exigiam, sobretudo, apenas uma fotografia nítida por assunto. Os temas mais solicitados eram essencial-mente crimes, conflitos, desastres, acidentes, atos das figuras públicas, eventos desportivos, valorizando-se o princípio do impacto na recepção, ou ainda, a foto-choque. Segundo a pesquisadora galega Margarida Leda Andión, o universo de representação deste tipo de imagem

abrange toda a iconografia do anormal, da violência colhida “ao vivo” dos resultados de uma catástrofe comum ou individual. A foto-choque é, cada vez mais, uma das rotinas na política informativa dos Mass-Media, rotinas que têm a ver não só com os critérios de noticiabilidade praticados, mas também, com as fontes que controlam a oferta das notícias – instituições e agências. (apud SOUSA, 2000, p.152)

As agências internacionais de notícias foram as grandes res-ponsáveis pela homogeneização ocorrida na mídia do pós-Segunda Guerra Mundial. Entre as agências de notícias com serviço fotográfi-co inicia-se, nos anos 1950, uma intensa competição: a United Press International (UPI), por exemplo, surgiu como um competidor de importância significativa com a Associated Press, incorporando a Heart’s International News Service e a ACME Photo Agency. A hege-monia norte-americana, inaugurada nos anos 1930 com a criação da

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agência fotográfica Black Star, só encontraria competidores à altura da sua eficiência e rapidez na transmissão da imagem nos anos 1980, com a criação da Reuters e da France Presse (mais tarde incorporadas à European Press Photo Association – EPA), entre outras.

Em termos de recursos técnicos, o fotojornalismo já dispunha, desde o final dos anos 1920, de um conjunto de equipamentos que aceleraram o trabalho fotográfico, fornecendo mais agilidade à ima-gem. Como explica o historiador português, Jorge Pedro de Sousa, em 1929 aparece o sistema reflex de duas objetivas, com a Rolleiflex; em 1933, surge o sistema reflex de uma única objetiva, que é aquele até hoje mais usado no fotojornalismo. O sistema de reflex direto permi-tirá enquadramentos mais exatos, facilitará a focagem e facultará ao fotógrafo uma maior concentração no tema. Em 1936, a Agfa consegue obter um filme de sensibilidade de 100 ASA (21DIN).

A descoberta de filmes mais sensíveis e dispositivos mais rá-pidos na captação da imagem vai proporcionar o investimento das agências de notícias na elaboração de uma narrativa cada vez mais fiel e próxima dos acontecimentos. No entanto, para o historiador explicar essa história, não pode bancar o ingênuo, há que se tomar a imagem do acontecimento como objeto da história, como documento/monumento, como verdade e mentira, indo de encontro à memória construída sobre os eventos, a história a desmonta, a desnaturaliza, apontando todo o caráter de construção, comprometimento e subjetividade.

no brasil

O mercado editorial brasileiro, mesmo incipiente, já existia des-de o século XIX, com publicações as mais diversas (SUSSEKIND, 1990). Em 1900, é publicada a Revista da Semana, que foi o primeiro periódico ilustrado com fotografias. Desde então, os títulos se multiplicaram, como também o investimento neste tipo de publicação. Um exemplo disso é o aparecimento, em 1928, da revista O Cruzeiro, um marco na história das publicações ilustradas (MAUAD, 2005b).

A partir da década de 1940, O Cruzeiro reformulou o padrão técnico e estético das revistas ilustradas, apresentando-se em grande formato, com melhor definição gráfica, reportagens internacionais ela-boradas a partir de contatos com agências de imprensa do exterior e, em termos estritamente técnicos, introduz a rotogravura, permitindo uma associação mais precisa entre texto e imagem. Toda esta moder-nização era patrocinada pelos Diários Associados, empresa de Assis Chateaubriand, que começava a investir fortemente na ampliação do mercado editorial de publicações periódicas.

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A nova tendência inaugurada por O Cruzeiro encetou uma reformulação geral nas publicações já existentes, obrigando-as a modernizar a estética de sua comunicação. Fon-Fon, Careta, Revista da Semana, periódicos tradicionais, adequaram-se ao novo padrão de representação, que associava texto e imagem na elaboração de uma nova forma de fotografar, o fotojornalismo.

Assumindo o modelo internacional, sob forte influência da revis-ta Life, o fotojornalismo de O Cruzeiro criou uma escola que tinha entre os seus princípios básicos a concepção do papel do fotógrafo como “testemunha ocular” associada à idéia de que a imagem fotográfica possui uma narratividade, ou seja, pode relatar um evento, contar uma história, ou ainda, elaborar uma narrativa sobre os fatos. No entanto, quando os acontecimentos não ajudavam, encenava-se a história.

O texto escrito acompanhava a imagem como apoio, uma narra-tiva paralela, que, no mais das vezes, amplificava o caráter ideológico da mensagem fotográfica. Daí as reportagens serem sempre feitas pelo jornalista, responsável pelo texto escrito, e por um repórter fotográ-fico encarregado das imagens, ambos trabalhando em sincronia. No entanto, somente a partir dos anos 1940 o crédito fotográfico será atribuído com regularidade nas páginas de revistas e jornais. Uma dupla, em especial, ajudou a consolidar o estilo da fotorreportagem no Brasil: David Nasser e Jean Manzon. A primeira dupla do fotojor-nalismo brasileiro e protagonistas de histórias em que se encenava a própria história (COSTA, 1998; CARVALHO, 2002).

Além de Manzon, outros fotógrafos contribuíram para a con-solidação da memória fotográfica do Brasil contemporâneo: José Me-deiros, Flávio Damm, Luiz Pinto, Eugenio Silva, Indalécio Wanderley, Erno Schneider, Alberto Jacob, Evandro Teixeira, entre outros que definiram uma geração do fotojornalismo brasileiro. Fotógrafos de perfis diferenciados que atuaram na grande imprensa brasileira, vi-venciando tanto os “anos dourados” como os “anos de chumbo”. Vale lembrar que alguns, como Flávio Damm, também prestaram serviço para as agências internacionais, como a Black Star e a AP. A trajetória destes profissionais aponta o caminho através do qual a fotografia contemporânea brasileira se estabeleceu como meio de expressão documental e artística. Dicotomia que foi, em geral, superada pelo transbordamento de estilos de um campo para outro.

Assumindo uma perspectiva crítica para estudar a história do fotojornalismo ocidental, o historiador português Jorge Pedro de Sousa adapta o conceito de comunidade interpretativa utilizado por Barbie Zelier. Esse conceito permite compreender como os fotojornalistas se relacionam coletivamente com as mudanças tecnológicas na fotografia,

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de modo a criar grades interpretativas e sentidos comuns sobre os acontecimentos. A comunidade interpretativa de fotojornalistas tem nas agências de imagem o seu melhor enquadramento.

Foi através de agências fotográficas, criadas a partir da década de 1930, que se define uma forma narrativa para os acontecimentos mediáticos. Segundo Barnhusrt, “the narrative teaches that the world is not safe, that when things go wrong, what is needed is a hero to intervene and set them right. And a need for a hero presumes a victim, someone who waits passively for rescue” (apud soUsa, 2000, p. 22)

Na verdade isto significa que, num determinado contexto histórico-cultural, as narrativas convencionais no (foto) jornalismo contribuem para que seja dado significado social a determinados acontecimentos em detrimento de outros, promovendo, por conse-qüência, certos acontecimentos e não outros à categoria de notícias, concorrendo para dar uma aparência de ordem ao caos que é a erupção aleatória de acontecimentos que geram inteligibilidade em relação ao real, devido à taxonomização deste em determinadas categorias.

Adriano Duarte Rodrigues enfatiza o papel da mídia na elabo-ração do acontecimento na sociedade moderna, na qual o mito teria sido substituído pela narrativa mediática como forma de organizar as experiências sociais aleatórias de vida num todo racionalizado. O fotojornalista não apenas reporta as notícias, como também as cria: as (foto) notícias são artefatos construídos por força de mecanismos pessoais, sociais (incluindo-se os econômicos), ideológicos, históricos, culturais e tecnológicos.

A própria noção de visualidade da narrativa factual envolve as condições de existência do acontecimento ditadas pelos meios do mundo atual. Pierre Nora cunha a noção de acontecimento monstruo-so para caracterizar o papel da mídia na promoção do imediato ao histórico:

o fato de terem acontecido não os torna históricos, para que haja acontecimento é necessário que este seja conhecido através da lógica do espetáculo [...]. Os mass media fizeram da história uma agressão e tornaram o acontecimento monstruoso. Não porque sai, por definição, do ordinário, mas porque a redundância intrínseca ao sistema tende a produzir o sensacional, fabrica permanentemente o novo, alimenta uma fome de acontecimen-tos. (NORA, 1979, p.181-183)

Em suas considerações sobre as metamorfoses do aconteci-mento, Nora afirma que, nas sociedades democráticas, este assume

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o papel do maravilhoso no imaginário das massas, imita os temas do fantástico tradicional através do efeito de sobremultiplicação das performances da sociedade tecnocrática. Os fatos que marcaram o cotidiano das últimas décadas do século XX tiveram a marca do espetacular, atribuída pela possibilidade da transmissão direta, em que o próprio acontecimento moderno encontra-se numa cena ime-diatamente pública.

Paralelamente à elaboração do espetáculo do acontecimento pela mídia, é preciso que haja também uma comunidade de leitores/espectadores. A existência dessa comunidade pressupõe que com-partilhem dos mesmos valores, a partir dos quais a interpretação dos acontecimentos está sendo construída pela mídia. Refletindo sobre o papel da revista O Cruzeiro, no imaginário social brasileiro, o historiador francês André Seguin des Hons, destaca:

A combinação da informação com o sensacional e a aventura tem, para o historiador, uma significação que vai além da sim-ples receita de sucesso da revista. Ela se inscreve na sensibilida-de do momento e é possível que essa identificação leitor-revista traduza a exaltação de um período no qual o Brasil aparece, freqüentemente, aos olhos de suas classes médias como um país do futuro [...] a revista tanto atendia a um público popular quanto às classes privilegiadas [...] mais que um simples reflexo do movimento ideológico, O Cruzeiro foi um de seus amplifica-dores. (Presse et histoire, 1935-1985. Paris: L’Harmattan, 1985. p. 30 apud cosTa, 1996, p. 153)

Portanto, o fotógrafo de imprensa, apesar de pertencer a um grupo, consegue ultrapassar as determinações sociais que lhe confere este pertencimento basilar, ao desenvolver uma trajetória profissional que lhe permite atualizar sua competência cultural através de novos contatos e variadas informações, num processo continuado de apro-priação e criação. Assim, torna-se um mediador entre o processo his-tórico, as demandas sociais, e sua elaboração por meio das fotografias, recriando nas páginas das revistas e jornais uma complexa narrativa histórica dos fatos e acontecimentos, ao mesmo tempo que materializa em imagens anseios e expectativas de um projeto social.

entre Palavras e imagens, se constrói a história

Ao voltarmos à transcrição das entrevistas de Flávio Damm para analisar a configuração dos quadros de memória, tentamos estabele-

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cer alguns princípios que possibilitassem um maior esclarecimento na relação entre autoria no campo do fotojornalismo e a escrita da história através das imagens fotográficas. No entanto, todo o trabalho de análise buscou estabelecer procedimentos conceituais próprios ao campo da intertextualidade, como prática social. Dito de outra forma: o fundamental é entender que na situação da entrevista um conheci-mento está sendo gerado. Este conhecimento persegue pistas que são dadas pela experiência de entrevistar e ser entrevistado, pela crença depositada na autoridade do discurso do entrevistado e pela forma como as imagens são indicadas como âncoras narrativas.

Neste sentido, estabelecemos que todo o trabalho de análise leve em conta três princípios:

• Escuta: este aspecto lida com a competência do entrevistador na situação da entrevista e a forma como opera com a noção de auto-ridade compartilhada;

• Argumentosememórias: este ponto compreende que todo o pro-cesso de rememoração envolve necessariamente a construção de argumentos, que conferem sentido à história contada. No caso tra-balhado, os argumentos são criados também pela alusão à imagem fotográfica;

• Narrativaseimagens: este aspecto envolve os dois anteriores, pois é nele que se define a relação entre a escrita da história, ou a narra-tiva historiográfica, de competência do entrevistador/historiador, e a construção da memória social, através da narrativa biográfica, da competência do entrevistado. Neste âmbito as imagens são necessariamente acionadas para definir as marcas da narrativa.

Vamos ver como este procedimento pode ser aplicado em um trecho de sua primeira entrevista, realizada em 24/04/2003, cujo tema relacionava-se ao retorno de Getúlio Vargas à política:

Flávio Damm: Não. A revista do Globo era quinzenal [...] Ela era preto-e-branco. E era uma revista muito conceituada no Sul. Ela foi fundada pelo Bertázio e pelo Getúlio. Dr. Getúlio, né. E..., e coincidentemente a minha grande primeira reportagem foi a..., foram as primeiras fotos do..., de Getúlio em 47 [1947]. Getúlio foi deposto em 29 de outubro de 45 [1945] e foi pro exílio na fazenda do Itu, em São Borja, no Rio Grande do Sul. Durante dois anos ele recebeu jornalistas do mundo inteiro, mas não recebeu fotógrafos. Estava muito gordo, aquela coisa, aquelas bombachas. E não queria a idade dele explorar. Então ele não

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permitiu a entrada de fotógrafos. Eu era amigo do Jango. Foi Presidente da República. Amigo de boemia.[...] Jango, Jango era apenas um fazendeiro rico e eu era um fotógrafo pobre. Então era amigo de Jango, amigo do Maneco Vargas, filho, o filho de Getúlio que se suicidou há pouco tempo. E com isso, é, a gente tinha uma relação boêmia. E quando o PTB resolveu lançar Dr. Getúlio, eu chamo de Dr. Getúlio, resolveu lançar Getúlio candi-dato em mil novecentos... Pra 1950. Aquela coisa da volta. Volta do retrato... Volta do retrato do velho, não é? E o Queremismo. Aí o Jango me chamou. Eu já era da Revista do Globo, logicamente, registrado. Trabalhando full time. E tinha abandonado os estu-dos. Tinha ficado só no clássico e não quis mais fazer faculdade. Preparei pra vestibular de Direito, depois desisti. O jornalismo já tinha tomado conta. Eu já era absolutamente assumido e as-similado pelo jornalismo. E principalmente pela fotografia, que era realmente o ar que eu respiro. Então, o Jango me chamou e disse: olha, vamos ao Itu, fazer uma reportagem com o Dr. Getúlio, que ele vai concordar em fazer fotografia pra se fazer uma grande reportagem na Revista do Globo. Ele já tinha falado com os Bertázio. Aí fomos pra Itu e lá eu passei o tempo lá no Itu fotografando o Dr. Getúlio. Fizemos reportagem que teve um tí-tulo sintomático. Um título de abertura de um caminho que era, que foi a longa viagem de volta. Isso foi no dia... As fotografias foram feitas no dia em que..., em que se comemorava três anos da deposição dele. Ele caiu em 29 de outubro de 45 [1945] e as fotografias foram feitas em 29 de outubro de 48 [1948]. [...] Na Revista do Globo. Aí, como não havia fotografias de Getúlio em lugar nenhum que nos últimos dois anos, não é, essas fotos dele de bombacha, fumando charuto, comendo churrasco, montado a cavalo. Isso não existia. Ele tinha saído daqui direto pro Itu. Essas fotografias foram publicadas quando eu tinha 19 anos. Foram publicadas no Prafter de Moscou. É, no Parismatch de Paris. Enfim, em jornais do mundo inteiro. Porque a Revista do Globo vendeu essas fotografias pra esses jornais que eram, for-mam notícia. Getúlio sairá candidato à presidência. Ele saía de uma ditadura de 15 anos e entrava num processo democrático, que efetivamente aconteceu. Ele foi eleito democraticamente, ficou no governo de 51 [1951] a 54 [1954] quando se suicidou. Então, com 19 anos, eu tive as minhas fotografias publicadas no mundo inteiro. [...] Foi o meu... Foi o meu passaporte pra entrar em O Cruzeiro. Eu fiquei na Revista do Globo 48 [1948], 49 [1949] e em 49 [1949], eu saí da Revista do Globo e vim pra pedir um

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emprego no O Cruzeiro. Esse emprego eu tive instantaneamen-

te. Eu entrei no O Cruzeiro, pedi um emprego. Tive o emprego.

Três dias depois já fui mandado pra Recife, acompanhando Dr.

Assis lá na Paraíba. Coisa que eu nunca tinha imaginado, ir à

Paraíba. Eu tinha saído de Porto Alegre, quatro dias depois eu

estava no... lá no Cariri.

Ressalta-se no trecho escolhido, e esta estratégia repete-se em outros momentos, a forma como o discurso historiográfico impregna a narrativa. Mesmo sem intervenção da entrevistadora, a noção de queremismo, para definir a volta de Getúlio Vargas ao poder, surge como um dado importante para elucidar o acontecimento e construir o argumento da narrativa. Desta forma, percebe-se que o entrevistado está compartilhando de uma autoridade prevista para o entrevistador, já que este se apresentou como “historiador”.

A autoridade do discurso histórico é ressignificada à medida que o fotógrafo se apropria desta. A experiência fundadora da sua atividade fotográfica, aquela que o projetou no mundo do fotojorna-lismo internacional, é uma foto cuja dimensão para a história coletiva é relevante. Neste caso, seu passaporte para projetar a sua própria história associava-se necessariamente ao processo histórico como um todo.

A atividade fotográfica definiu a expressão da historicidade do momento, pois era fundamental, para garantir o retorno de Getúlio, que ele reabilitasse sua imagem pública, deixando-se fotografar. A escolha de Damm, fotógrafo jovem, mas bem preparado, garantiria a produção de uma “boa imagem”. Estudando-se a produção do retrato fotográfico na história fica evidente que a produção da individualidade burguesa, através deste tipo de imagem, se dá em função da atribuição de signos que produzem uma identidade social ligada a sua colocação no espaço da produção e do poder. No caso dos homens públicos, e de Getúlio Vargas em especial, a imagem fotográfica desempenhou um papel central na construção do carisma e da crença no governante.

Por fim, vale ressaltar que a delimitação do projeto de vida e a indicação do campo de possibilidades para efetivá-lo envolviam tanto a capacidade individual do fotógrafo (sua formação intelectual, acesso ao aprendizado e à tecnologia fotográfica) quanto a rede de relacionamentos (amizades, contatos etc.) que conseguia construir. Tais elementos evidenciam, ao mesmo tempo, aspectos do campo profissional para os fotojornalistas que, neste momento, definiam suas regras de funcionamento dentro da grande imprensa.

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A complementação do exercício envolve a análise das fotografi as publicadas no dia 6 de novembro de 1948, na Revista do Globo (ano 19, n. 470) em matéria intitulada “A longa viagem de volta”, com texto assinado pelo repórter Rubens Vidal.

As fotos seguintes são: a reprodução da chamada da matéria na primeira página e as fotos que integram a seqüência da notícia. Optou-se por trabalhar exclusivamente com as imagens na avaliação de sua autonomia narrativa em relação ao texto escrito, ao mesmo tempo que se articulava ao registro da entrevista a situação histórica da produção da reportagem.

Figuras 24 a 31 – pri-

meira reportagem de

Flavio Damm, Revis-

ta do Globo, Porto

Alegre, ano 19, n. 470,

6 nov. 1948. Disponí-

vel em: <http://www.

ipct.pucrs.br/cgi-bin/

letras/letras.cgi>.

Acesso em: 22 maio

2006.

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O número da Revista do Globo no qual foi publicada a fotorrepor-tagem de Flávio Damm contava com mais três reportagens ilustradas com imagens fotográficas, sobre temas variados. A primeira, intitulada “Um por cento de ingenuidade”, apresentava o piloto de bombardeiro norte-americano que, em protesto contra a corrida armamentista, resolveu soltar uma pomba nas escadarias do prédio da ONU. Ela contava com um total de dez fotos. A segunda, intitulada “Mar de Histó-rias”, contava com um total de sete fotos sobre a biblioteca pública da cidade de Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul. A terceira tratava da criação da cidade de Londrina no estado do Paraná e apresentava um total de 12 fotos. Finalmente, a fotorreportagem sobre o retorno de Getúlio Vargas ao cenário político, intitulada “A longa viagem de volta”, contava com 23 fotos produzidas pelo jovem fotógrafo Flavio Damm. Quase o dobro de imagens das demais reportagens, o que é o indício mais evidente do peso de tal matéria para a revista.

Nascido em 8 de agosto de 1928, Flávio Damm tinha somente 20 anos quando se lançou no mundo da imprensa ilustrada. Como ele relembra em entrevista, a oportunidade da reportagem foi criada por conta de suas relações sociais e pelo reconhecimento da sua competên-cia profissional. Portanto, era uma chance que deveria ser aproveitada da melhor maneira possível, como fica evidente pelo apuro técnico das fotos, pela experimentação estética e pela sagacidade política de aproveitar o que de melhor a imagem de Getúlio poderia oferecer.

Surge nas fotos a imagem de um fazendeiro aposentado da política, atento aos cuidados da sua fazenda, mas altivo como um cavaleiro que não perde sua destreza no domínio do animal. Das 23 fotografias que compõem a fotorreportagem, em 14 o ex-presidente aparece como objeto central da foto, tendo sido fotografado sozinho em diferentes poses e atividades. Nas nove restantes, Vargas está acompanhado de familiares e criados da fazenda de Itu, mas sempre no centro da foto.

No seu conjunto as fotos são nítidas, com linhas bem definidas pelo contraste entre claro e escuro, não apresentam mais de dois pla-nos, valorizam o close-up do rosto e o corpo inteiro em primeiro plano. Um corpo que recupera a sua vitalidade sendo sempre apresentado em atividade e movimento: caminhando, cavalgando, trabalhando na terra, tomando café, lendo, escrevendo, pensando e sorrindo. Portanto, as opções de pose, enquadramento, foco e iluminação seguem as dire-trizes do fotojornalismo de construir uma imagem objetiva e de rápida captação pelo sujeito-leitor. A exceção acontece na foto de abertura da reportagem, que alude a certo mistério, em franco diálogo com as experimentações visuais do cinema de vanguarda da época.

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Esta foto captura um naco da cena e redefine o seu sentido: no centro da foto o cinzeiro denota o charuto que está na outra mão de quem escreve, o sujeito da ação prescinde dos óculos que pousam perto do chapéu, que define uma marca pessoal. Mesmo sem enqua-drar Getúlio Vargas, mas os objetos que o identificam, a imagem de Damm anuncia a sua presença, num movimento metonímico quando a parte indica a presença do todo.

Na seqüência da quarta página da reportagem, este todo ganha sentido com a complementação da imagem inicial. Esta seqüência ini-ciada pela foto de Getúlio Vargas pensando segue com mais três ima-gens que sugerem a projeção de seu pensamento, nelas o fotografado se revela nas suas múltiplas faces: circunspeto, alegre e interessado. Como se fosse uma banda fílmica, as imagens se conectam na compo-sição de uma narrativa de retorno, da sua volta à cena política.

As imagens possuem autonomia em relação ao texto escrito, mantendo, entretanto, uma relação de complementaridade. O texto escrito relata a situação por um outro ângulo, valorizando mais a oportunidade da reportagem e as impressões do repórter em relação à agilidade do político. As legendas das fotos seguem o padrão do fotojornalismo da época, localizando a cena e ancorando o sentido da imagem visual. No entanto, as imagens são mais evidentes que o texto e a imediaticidade com que são capturadas pelo sujeito-leitor garante a apreensão do sentido proposto pela matéria de forma mais rápida e inequívoca: o retorno de Vargas à cena política está comprovado pelo atestado da “verdade fotográfica”, que transforma cenas do cotidiano em fatos históricos.

Por sua produção fotojornalística, Damm inscreve-se na mesma tradição histórica dos antigos gregos, cujas historiê revelavam a his-tória pelo sentido da visão. Nas imagens de Flávio Damm, ver implica também conhecer.

conclusão

A relação entre história e imagem fotográfica é caminho para se compreender as estratégias de investimento de sentido que a im-prensa realiza pelo viés da construção da memória. As fotografias que integram as fotorreportagens e narram os acontecimentos passados são monumentos, projeções para o futuro, e devem ser tratadas pelo estudioso na sua dimensão de memória oficial. As relações de poder dentro das revistas e jornais, entendidos como espaços instituciona-lizados, são relações de força que definem a lógica da representação do acontecimento mediático. Longe de traduzirem um consenso, ex-

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pressam as contradições dos diferentes atores sociais, que colocam em jogo seu capital político para construir uma hegemonia do olhar. As imagens publicadas em jornais e revistas revelam o embate pela versão final dos acontecimentos.

A capacidade narrativa das imagens visuais, dentro da lógica do fotojornalismo, redefine o estatuto da história contemporânea, apon-tando a força do acontecimento como síntese de múltiplos tempos: o tempo longo, no qual a lógica das relações sociais explica-se pela força da imaginação social; o tempo médio, dos ciclos e conjunturas econômicas e políticas; e tempo curto, do acontecimento propria-mente dito. Esse, ao ser capturado pelas lentes atentas de fotógrafos e cinegrafistas, assume a dimensão de uma verdade anunciada em tempo real.

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caPítulo 10

genevieve naylor, fotógrafa: imPressões de viagem (brasil, 1941-1942)

Life é a única revista que eu conheço que distrai pela falta de assunto. A gente passa aquilo como criança passa livro de figu-ras, constatando rapidamente a aparição de uma curiosidade ou outra: “toto”, “neném”, “fon-fon”, e assim por diante. Mas é impossível resistir-lhe à fotografia. Quem por acaso já teve ocasião de conhecer algum fotógrafo de Life, sabe perfeitamente disso. São criaturas de conto de fadas, capazes de lambuzar de caramelo toda uma “panzerdivisionem”, verdadeiros gê-nios do instantâneo, sabedores de todas as infantilidades da alma grande. Eu já conheci dois, sendo que em ambos senti esse mesmo adejamento endiabrado, uma mesma alegria de vagalume que vai queimando as suas lâmpadas sobre as coisas surpreendidas. Um deles é uma americanazinha adorável que se acha aqui no Rio. Genevieve se chama, mulher desse grande Micha que conquistou a nossa pequena cidade artística com a sua simpatia e sua sensibilidade plástica. Genevieve parece ter saído de uma história de Robin-Hood, com seu arzinho de jovem pagem, sua elegância bem colorida, uma pena sempre atrevidamente espetada no chapéu. Nada escapa, no entanto, à maquinazinha dessa enfeitiçada. Perto dela não há momento fotográfico que passe sem cair naquela arapuca bem armada. Genevieve dá um pulinho – e a vida ali ficou batendo asa na sua chapa impressionada. (MORAES, Vinícius de. A última catedral. A Manhã, 19 out. 1941)

O fascínio do então cronista e crítico de cinema, Vinícius de Moraes, pelas imagens sensíveis de Genevieve Naylor revela a pre-sença ambígua e sempre marcante dos Estados Unidos no Brasil, e por extensão, na América Latina, como um todo. As imagens visuais – fotográficas, cinematográficas e publicitárias – sedimentaram a ponte pela qual a aproximação cultural entre as Américas se realizou.

O que está em jogo na elaboração da chave de leitura histórica para se compreender as fotografias produzidas no Brasil por Genevieve Naylor, durante sua permanência entre 1940–1942, como funcionária do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (CIAA)? Por um lado,

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no contexto da política da Boa Vizinhança, o crescente interesse de intelectuais e artistas norte-americanos pelo Brasil e a ampliação das trocas culturais (Portinari, as exposições artísticas norte-americanas no Brasil, a criação do MAM/RJ). Neste aspecto, o contexto norte-americano delimitava-se pela experiência da depressão econômica dos anos 1930, pelo crescimento urbano, pelas experimentações das vanguardas artísticas e pelas instituições criadas no âmbito do Estado de bem-estar social – o New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Por outro lado, havia o declarado interesse, por parte do Departamento de Estado dos Estados Unidos, em consolidar a presença americana na América Latina através de acordos comerciais, planos de coope-ração internacional e, por fim, de alianças políticas que garantissem a hegemonia dos Estados Unidos na região.

Neste sentido, para analisar a mensagem fotográfica elaborada pela fotógrafa durante a sua permanência no Brasil, pretendo primei-ramente relacionar a produção brasileira de Genevieve Naylor com a tradição da fotografia documental norte-americana, ao mesmo tempo que aponto os diálogos que são travados com a cultura visual elabo-rada pela agência oficial da política da Boa Vizinhança: Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (CIAA).

Definidos os quadros de significação histórica que conformam o conjunto possível de escolhas para a fotógrafa, parto para a análise dos elementos da forma da expressão e do conteúdo da mensagem fotográfica, enfatizando os dois aspectos mais marcantes da sua narrativa visual:

1o) como a figuração humana é retratada, entendendo as re-presentações do corpo como suporte de relações sociais. O corpo representado nas fotografias de Naylor é o signo através do qual as relações sociais se revelam;

2o) como os lugares por onde Naylor viajou foram figurados na elaboração de uma geografia sensível que busca transgredir os protocolos oficiais, para mostrar um Brasil múltiplo.

Neste sentido, Naylor, mais do que conformar uma imagem do Outro, através dos protocolos etnográficos da alteridade, em suas imagens, define este Outro pela sua condição humana. Investe muito mais nas possibilidades de se estabelecerem nexos comuns, do que em criar diferenças impenetráveis (ou acessíveis somente pelo discurso científico da etnografia). A forma de compor suas fotografias revela o diálogo que a fotógrafa estabeleceu com as referências visuais de seu tempo. Principalmente aquelas associadas à produção artística dos anos 1930, cuja valorização do indivíduo se fazia em consonância com o papel por ele desempenhado nas relações sociais.

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O resultado da conjugação dessas referências foi a elaboração de uma alteridade plural dos brasileiros e brasileiras – jovens, crianças e velhos –, possível de ser apreendida pela gente comum dos Estados Unidos, o público-alvo das suas fotografias.

notas sobre a Política da boa vizinhança entre brasil e estados unidos nos anos 1940

A doutrina do destino manifesto foi a base sobre a qual a cultura política norte-americana cunhou sua auto-imagem, fundamental para a elaboração do mito americano. Um mito que tinha como missão espalhar os verdadeiros sentimentos da América, através dos seus sonhos de (perfectibilidade) perfeição. Tal estratégia pautava a política externa norte-americana numa moral que concebe a América do Norte como o local da perfeição e que compreende a sua intervenção em outras regiões do mundo como a tentativa de estender tal perfeição. Os pilares deste sonho de perfectibilidade seriam a Democracia e a Liberdade introduzidas pela homogeneização cultural,1 como mais um produto a ser consumido.

Naylor chega ao Brasil, em outubro de 1940, como funcionária do Departamento de Estado norte-americano, mais especificamente do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, então dirigido pelo milionário Nelson Rockefeller. Este órgão foi criado pelo governo de Franklin Delano Roosevelt para garantir a solidariedade latino-ame-ricana em relação à causa liberal diante da expansão do nazi-facismo, ao mesmo tempo que criava uma área de reserva de mercado para os produtos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial.

Criado em 16 de agosto de 1940, inicialmente para garantir e ampliar as bases das relações comerciais entre as Américas, este ór-gão recebeu o nome de: Office of Commercial and Cultural Relations between the American Republics, passando a se chamar, a partir de 30 de julho de 1941, Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, e em 23 de março de 1941, já dirigido por Nelson Rockfeller, Office of Inter-American Affairs, tendo mantido esta denominação até o seu fechamento em 20 de maio de 1943. As mudanças de nome traduzem as redefinições em relação à forma como a política internacional norte-americana deveria se estabelecer com o restante das Américas, ampliando sua ação intervencionista para diferentes áreas além da estritamente comercial.

1 Sobre a doutrina do destino manifesto e a política moral norte-americana: DONO-GHUE, D. et al. A América em teoria. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.

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Independentemente do nome que assumia, este órgão tinha como função implementar a política de boa vizinhança norte-ame-ricana na América Latina, que consubstanciava uma solidariedade hemisférica definida, nos termos dos interesses norte-americanos. Aliás, como já vinha sendo feita a política externa dos Estados Unidos, para a América Latina, desde fins do século XIX, através de sucessi-vas posturas intervencionistas: da doutrina Monroe que apregoava a América para os americanos, seguida pelo Big Stick, até chegar ao pan-americanismo da Segunda Guerra Mundial, inaugurado por Franklin Delano Roosevelt a partir de 1933.

Na avaliação do historiador norte-americano Frederick Pike, a política de não-intervenção era o princípio da realpolitik de Franklin Delano Roosevelt, para o continente americano. Por um lado, pressio-nava seus antigos parceiros, dentre os quais a Inglaterra, a abandonar sua postura imperialista em prol de um mundo mais pacífico, no qual os interesses dos Estados Unidos pudessem ser garantidos; por outro, reconhecia a existência dos princípios políticos, econômicos, morais e culturais próprios à América Latina, sem impor o abandono destes em prol do, cada vez mais popular, american-way-of-life.

Na perspectiva do presidente norte-americano, a política de boa vontade levaria os latino-americanos a abraçarem naturalmente as causas americanas, defendidas pelos Estados Unidos. No entanto, como reforça Pike, “basic to FDR’s approach was the assumption that latins had a lot of growing to do before they could adjust do U.S culture” (PIKE, 1996, p. XI).

Em linhas gerais, a solidariedade hemisférica visava garantir a posição estratégica dos aliados no Cone Sul, a partir do avanço das forças do eixo no Pacífico. O ataque a Pearl Harbour, em 1941, foi funda-mental para deslanchar de maneira mais agressiva a colaboração entre os países americanos, obrigando muitos governantes, dentre os quais Getúlio Vargas, a uma definição política mais clara e cooperativa.

Em termos de estruturação, em todos os países da América Latina nos quais o CIAA abriu um escritório de representação, eram estabelecidas metas prioritárias de ação. No Brasil, as três metas eleitas foram: informação, saúde e alimentação. Estes três setores tinham funções definidas de penetração e convencimento ideológico através do controle dos meios de comunicação, do investimento in-tensivo em publicidade e fomento de uma estrutura assistencialista para a saúde e educação principalmente no Nordeste, em áreas onde seriam instaladas as bases norte-americanas.

Paralelamente, o CIAA, através de acordos com instituições cul-turais norte-americanas, como o Museu de Arte Moderna (MoMA) de

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Nova York, também sob a direção de Rockefeller, passa a fomentar o intercâmbio cultural por meio de diferentes modalidades de incentivo, tais como: bolsas de estudo para artistas latino-americanos irem aos Estados Unidos estudar, exposições arqueológicas, de pintura mo-derna, de arquitetura, além dos festivais de música latino-americana, todos realizados dentro do MoMA.2

Em agosto de 1940, Candido Portinari expôs seu trabalho no MoMA. Tal evento foi cercado de comentários sobre a compra dos quadros de Portinari por aquela instituição e reportagens sobre o Brasil, em todos os jornais norte-americanos. A aceitação da arte brasileira nos Estados Unidos integrava a estratégia política de valo-rização da nossa cultura. Valorizavam-se nas salas de exposição do MoMA as expressões culturais que apresentassem aos Estados Unidos um Brasil culto e moderno, em consonância com os projetos das fra-ções da classe dominante, detentoras do poder político e econômico. Enquanto isso, na Broadway Carmen Miranda brilhava em Streets of Paris, mas Carmen era uma face do Brasil que desagradava ao verniz cosmopolita da elite. No entanto, Carmen e Portinari eram o Brasil para os estadunidenses.

Neste sentido, a moeda cultural foi o investimento simbólico para a aproximação dos dois países. Uma forma de convencer os norte-americanos da amizade brasileira e, ao mesmo tempo, incentivar as autoridades brasileiras a escolher o lado certo na guerra.

Os articuladores da política externa norte-americana tinham certeza da expansão do nazismo no Brasil, a ponto de num relatório enviado a Rockefeller, Guest, funcionário oficial da política externa norte-americana para o Brasil, afirmar:

Eu considero que o Brasil é a mais importante e a mais perigosa de todas as Repúblicas do Sul e estou convencido que os ale-mães também pensam nisso. Todos os homens de seu governo são abertamente pró-nazi, com exceção do presidente Vargas e de Oswaldo Aranha (MOTA, 1995, p. 493).

Para Guest, Vargas jogava de forma oportunista e, se na hora H a vitória pendesse para o lado alemão, ele não teria dúvidas em aderir.

Guest chegou a contatar Décio de Moura, secretário particular de Oswaldo Aranha. E anota que o chefe de polícia era Filinto

2 Ver a documentação sobre as exposições e atividades do MOMA no Archives of American Art, seleção de clippings, microfilmes números AAA5069; AAA 5056; AAA 5093; AAA 5066.

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Muller, pró-nazi, e Lourival Fontes, “ministro da propaganda e um estudioso leitor de Goebbels”; além de Montero [sic, ou seja, Góis Monteiro], ministro de Exército que “também admira os alemães” (MOTA, 1995, p. 493).

Dentro da perspectiva de Rockefeller, o fundamental seria fo-mentar no Brasil, e no restante das Américas, a criação de canais cul-turais que permitissem o intercâmbio efetivo com os Estados Unidos. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi criado nos moldes do seu equivalente norte-americano, seguindo as determinações da ter-ceira reunião de consulta realizada nesta cidade, em 1940. De acordo com as negociações feitas entre a sra. Lucia Fonseca, representante brasileira, e Nelson Rockefeller, o Museu deveria coletar e adquirir obras de arte moderna, bem como de arte popular brasileira, além de investir no intercâmbio artístico entre os povos americanos. De acordo com o documento de criação do MAM, a instituição seria um dos pilares de defesa da civilização ameaçada, bem como da união das Américas (MOTA, 1995, p. 494).

O representante norte-americano para a criação do MAM foi justamente Misha Reznikoff, companheiro de Genevieve Naylor nas suas peregrinações pelo Brasil, e artista plástico de origem ucraniana que fez sucesso no Brasil, com seus “Monstros da Guerra”. Naylor, Reznikoff, seguidos por Orson Welles e Waldo Frank formam o lado intelectual e sensível do imperialismo sedutor, para usar a feliz expres-são de Pedro Tota (2000), que domina o Brasil nos anos 1940.

Foi neste contexto que os brasileiros aprenderam a substituir os sucos de frutas tropicais onipresentes à mesa por uma bebida de gosto estranho e artificial chamada Coca-cola. Começaram também a trocar sorvetes feitos em pequenas sorveterias por um sucedâneo industrial chamado kibon, produzido por uma companhia que se des-locara às pressas da Ásia por efeito da guerra. Aprenderam a mascar uma goma elástica chamada chiclet e incorporaram novas palavras que foram integradas à sua língua escrita. Passaram a ouvir o fox-trot, o jazz, o boogie-woogie entre outros ritmos e assistiam a mais filmes produzidos em Hollywood então. Passaram a voar nas asas da Panair (Pan-American), deixando para trás os “aeroplanos” da Lati e da Condor (MOURA, 1988, p. 7-12).

No entanto, as imagens de Naylor revelam um Brasil, aos olhos dos norte-americanos, que mistura essa cultura urbana internaciona-lizada com a outra, atávica das profundezas do sertão. Na sua viagem pelo Brasil une o litoral ao interior, numa síntese inusitada que até hoje causa estranhamento em quem olha. Qual é a mágica de Genevieve?

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os ingredientes da magia: traJetória de genevieve naylor

Ao longo das primeiras três décadas do século XX, a produção fotográfica norte-americana foi marcada por duas tendências – o came-ra work, de Alfred Stiglitz, tendência pictorialista; e o social work, de Louis Hine, a tendência de se operar com a câmera fotográfica como uma arma de denúncia social. Duas tendências que dividem o campo fotográfico em termos de postura política, mas que dialogam em ter-mos de linguagem e de exercícios estéticos (TRACHTENBERG, 1989). Dentro desse contexto, Genevieve Naylor define-se como fotógrafa.

Genevieve Hay Naylor nasceu em 2 de fevereiro de 1915, em Springfield, Massachussets. Seus pais, Emmett Hay Naylor, um promis-sor advogado de Boston, e Ruth Houston Cadwell, pertencente à elite local, separaram-se quando ela tinha somente 10 anos, em 1925.

Criada nos padrões da alta burguesia do Leste, desde cedo, como sua mãe, tentou romper com os padrões estabelecidos, estudando de-senho e pintura numa escola local, e apaixona-se pelo professor Misha Reznikoff. Em 1933, muda-se para Nova York seguindo o seu amor e o seu instinto artístico. Lá continua com seus estudos em pintura até que, em 1934, depois de assistir a uma exposição de fotografias que reunia nomes como Berenice Abott, Eugene Atget e Henri Cartier-Bresson, muda o seu foco de interesse, passando a dedicar-se à fotografia. Seu destino: a New School for Social Research, onde ninguém mais do que Berenice Abbott ensinava. Iniciava-se, então, uma amizade que só iria se interromper com a morte de Naylor em 1989.

Convivendo com Abott, Genevieve Naylor tem a oportunida-de de entrar em contato com os fotógrafos da Grande Depressão Norte-Americana organizados na Farm Security Administration e coordenados por Roy Stryker, e com os temas candentes da época: justiça social, integração racial, antifacismo e cultura de vanguarda. A fotografia urbana do nova-iorquino Weegee e as tomadas arriscadas de Robert Capa passaram a integrar o conjunto das suas preferências fotográficas. Misturando-se a estas influências sua formação nas artes plásticas, o resultado foi um olhar sensível aos temas sociais, mas também treinado na estética visual das formas plásticas, dos claros-escuros, das linhas e das composições.

Em 1937, quando tinha somente 22 anos, foi recomendada pela liga profissional de fotógrafos para integrar o Work Progress Adminis-tration (WPA), instituição governamental criada na época da Grande Depressão para abrigar o trabalho de artistas. No WPA, Naylor foto-

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grafa em diferentes cidades norte-americanas temas de caráter social, daí para o fotojornalismo é uma questão de tempo.

Nesta época, as revistas ilustradas eram as janelas para o mundo, a visualização do que se ouvia nas rádios. Exerciam uma forte influência na cultura urbana de então e eram um grande canal para a expressão fotográfica de profissionais de peso. Em 1939, já integrava a Associated Press como a primeira fotógrafa norte-americana a as-sumir função numa agência de notícias. Suas fotos passam a circular em importantes revistas internacionais, dentre as quais: Life, Time e Fortune. Aliás, foi nas páginas da Life que Vinícius de Moraes identifi-cou a habilidade de Naylor.

A sua projeção no fotojornalismo chamou a atenção de Rocke-feller – este sim, um caçador de talentos – para implementar o destino manifesto norte-americano, a unificação cultural das Américas. É interessante pensar como Naylor, jovem culta, bem-sucedida na sua profissão, integrada numa Nova York boêmia e vanguardista, fosse assumir de forma inquestionável a retórica da união das Américas, defendida pelas agências governamentais. Claro que a luta antifacista unia pontas distintas do pensamento liberal norte-americano, desde os intelectuais comprometidos com uma tendência mais socialista, como Aldo Frank, até Walt Disney, um digno representante da indústria cultural, e foi justamente este largo espectro ideológico que trans-formou a “invasão” cultural norte-americana em algo tão ambíguo quanto convincente.

No entanto, ao contrário do que apostava a geração de intelec-tuais, formada no ambiente do pluralismo cultural de Franz Boas, cuja referência máxima para a América Latina foi Waldo Frank, a união das Américas foi mais uma utopia. Os Estados Unidos ao final da Segunda Guerra Mundial, como aponta Frederick Pike, voltaram a sua trilha familiar, a perseguir o progresso pelo progresso, a sua tradicional intolerância em relação aos povos e culturas ditos “primitivos” por não deificarem os valores do individualismo burguês e crescimento econômico a qualquer custo (PIKE, 1992, p. 294).

É neste quadro contraditório que podemos entender o fato de Naylor, digna representante de uma tendência denominada concerned photographs,3 aceitar o trabalho de fotógrafa da Boa Vizinhança.3 Concerned photographs é o termo que designa a produção de imagens fotojornalís-

ticas, com forte apelo social, a partir dos anos 1930, com a criação das agências fotográficas compostas por fotógrafos independentes; dentre as mais famosas do século XX, está a Dephot, criada por Eric Solomom em 1930, a Magnum, criada por Roberty Capa, em 1947. Para uma informação resumida acesse: <http://www.comciencia.br/reportagens/memoria/12.shtml>.

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vivendo e fotografando, genevieve e misha no brasil

Naylor chega ao Brasil em outubro de 1940, onde para realizar seu trabalho de fotógrafa deve ter um salvo-conduto assinado pelo diretor geral do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, órgão censor e repressor das atividades culturais no Brasil. A morosidade da burocracia fez com que o passe necessário só fosse emitido em 1942, como se registra no documento acompanhado de sua foto:

A senhora Genevieve Naylor, de nacionalidade norte-americana, trabalhando para o Coordinator of Inter-American Affairs, está autorizada por este departamento a tirar fotografias de aspectos turísticos de nosso país. Rio de Janeiro, 7 de junho de 1942.”4

Vale apontar que a maioria das fotos de Naylor no Brasil foram feitas entre 1941 e 1942, que a fotógrafa retorna aos Estados Unidos em agosto de 1942, e a maioria do seu trabalho foi realizada sem este passe. No entanto, não foi somente esta a dificuldade encontrada por ela. Nas cartas que enviou à sua irmã reclamava da resistência por parte das autoridades tanto brasileiras quanto norte-americanas em registrar o que ela queria, além da falta de películas, por conta da guerra. Numa de suas cartas mencionou tal escassez: “Film is being rationed to everyone […] I don’t have the luxury of shooting anything I want. I have to be damn careful, and choose my images with great care and hope my exposures are correct.”5

Tanto o DIP quanto o CIAA contrataram fotógrafos para registrar imagens positivas do Brasil, como forma de propaganda nacional e internacional. Além de Naylor, mais dois fotógrafos norte-americanos estiveram no Brasil: G.E. Kidder Simth, especialista em fotografar ar-quitetura e responsável pelas fotografias do livro do arquiteto Philip L. Goodwinn, Brazil Builds, que também deu título à exposição do fotógrafo no MOMA, da qual as fotografias de Naylor foram o comple-mento (como veremos adiante); e Alan Fisher, integrante da divisão de Saúde Pública e Higiene do CIAA, que se concentrou nas condições médicas e instalações militares na região amazônica.6

4 A reprodução do documento pode ser encontrada no livro publicado por Robert Levine com a colaboração de seu filho Peter Reznikoff (LEVINE, Robert M. The bra-zilian photographs of Genevieve Naylor: 1940-1942. Durham: Duke University Press, 1998).

5 Carta, Genevieve Naylor para a sua irmã Cynthia, Rio de Janeiro, c. Dezembro 1941, cortesia Cynthia Gillipsie apud LEVINE, Robert M. The brazilian photographs of Genevieve Naylor: 1940-1942. Durham: Duke University Press, 1998. p. 2.

6 Suas imagens estão arquivadas no National Archives.

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Assim que chegou ao Rio, Naylor recebeu instruções claras do DIP sobre o que deveria fotografar. O documento indicava que a fotógrafa deveria valorizar alguns temas, dentre os quais: arquitetura moderna (principalmente prédios governamentais); casas dos bairros nobres, como Lagoa, Gávea e Ipanema; interior de casas importantes e elegantes, no bairro do Flamengo; os domingos de sol nas praias de Copacabana e Ipanema; as corridas de cavalo no Jockey Club; os veleiros e iates na baía de Guanabara; o comércio exclusivo da rua do Ouvidor e as obras de caridade da primeira-dama, dona Darcy Vargas.7

Instalados no Rio de Janeiro, o casal Naylor e Reznikoff passou a morar no Leme, bairro litorâneo, próximo a Copacabana, onde Naylor registrou boas imagens do cotidiano praieiro, de domingos de sol, num clima muito mais intimista de quem acaba se perdendo entre as próprias imagens, misturando-se com a população local.

Tal efeito foi percebido por Aníbal Machado, crítico e escritor carioca, que sobre Genevieve Naylor escreveu:

Via-a saindo pela madrugada ou à noite, indiferente às intem-péries, obstinada na realização de seu trabalho [...] Mais que a excelência técnica, o que é preciso louvar nos trabalhos de Miss Genevieve é o sentido sociológico com que ela utilizou a objetiva, revelando um espírito corajoso e sincero, e, não raras vezes, comovido diante da realidade brasileira [...] Os assuntos populares, humildes, os tais elementos essenciais que compõem a fisionomia do nosso povo são captados, pela fotógrafa da Boa Vizinhança. Mas sua maneira de fixar a realidade nada tem de monumental. Nada de cachoeiras, de edifícios monumentais, de paisagens idílicas. Sua visão poético-sarcástica por vezes evoca a arte sul-realista. Um país – O Brasil – captado então na sua força real: assim, no carnaval, a alegria é antes uma vibração convulsiva da tristeza que procura atordoar-se[...] Como se es-tivesse procurando o resumo etnográfico. Importante o olhar, a percepção das imagens simples, que permite a recuperação dos tempos históricos acomodados no cotidiano, mas que resgata a vida de cada um em sua profundidade e intensidade. Não raro surge uma imagem agônica, áspera porém silenciosa, sempre densa. Nada de cachoeiras[...]8

7 DIP, Divisão de Turismo, “Assuntos que devem ser fotografados no Rio de Janeiro”, c. 1941 cortesia de Peter Reznikoff.

8 Aníbal Machado, texto datilografado, encontrado entre os papéis de Genevieve Naylor, sob a guarda do seu filho Peter Reznikoff.

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O casal freqüentou o apartamento de Machado em Ipanema, ponto de encontro de jornalistas, críticos, poetas e músicos, um am-biente bem parecido com aquele que Misha e Genevieve freqüentavam em Nova York. A simpatia por Naylor e a admiração pelo seu trabalho, compartilhadas por Vinícius de Moraes e Aníbal Machado, estendiam-se aos trabalhos de Misha, que recebeu elogios por parte da crítica na exposição “Monstros da Guerra”, realizada no Museu Nacional de Belas Artes, no centro do Rio.

Por conta do contato estreito que estabeleceu com a intelectua-lidade carioca, o casal acabou por servir de ponte para os demais “embaixadores da boa vontade” que visitariam o Brasil. Dentre eles, o próprio Orson Welles, que, além de ter sido fotografado por Naylor na noite carioca, recebeu do casal Misha/Genevieve boas dicas de aonde ir, na cidade do Rio de Janeiro, para filmar seu documentário sobre o carnaval. Na correspondência com sua irmã, Genevieve se gaba do seu conhecimento sobre as “coisas” cariocas: “Welles knew the Avenida Rio Branco and the Avenida Beira Mar were the two major canaval parade routes, but he didn’t know in the Praça Onze a separate and almost exclusive Negro Canaval as staged.”

O próprio Vinícius de Moraes, cujo comentário sobre Naylor abre este estudo, foi um dos intelectuais brasileiros que freqüentaram o circuito carioca da boa vizinhança, cuja sociabilidade evidencia-se em uma outra de suas crônicas do período:

Ontem fui à Cinédia, a convite de Orson Welles, para vê-lo um pouco em ação. Anteontem o havia encontrado em Copacaba-na, e, como sempre acontece quando o encontro, toda a minha admiração e simpatia por ele se renovam. Discutimos, como também sempre acontece, numa roda onde se achavam entre outros amigos o pintor Misha e o escritor Aníbal Machado [...] e dessa discussão nasceu o convite. Apressei-me a ir, natural-mente. (A Manhã, 30 abr.1942)

Instalado no Rio, o casal realizou várias viagens pelo interior e para outras capitais brasileiras, dentre elas, São Paulo, Belo Hori-zonte, Recife, Maceió, Aracaju e Salvador. Em uma dessas viagens, particularmente mais extensa, iniciada em fevereiro de 1942, saiu do Rio diretamente para Belém do Pará, descendo pelo Nordeste e ini-ciando um trajeto pelo rio São Francisco, onde se dedicou a fotografar as pequenas e anônimas cidades do sertão. Em outra oportunidade, viajaram para as cidades barrocas de Minas e de Pirapora e retoma-ram o São Francisco de barco. Em uma carta endereçada aos “Dearest

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Amigos – Ruth e Caloca”, escrita em 1942, provavelmente durante essa viagem de barco (sob a guarda de seu filho Peter Reznikoff), Genevieve descreve as aventuras e desventuras do casal:

This Voyage is definitely not a trip from Pirapora [MG] to Jo-

azeiro; it’s one from this sand bank to the next. The first time

we’ve got stuck (five minutes after embarking) it was too pic-

turesque – those fine, strong, bronzed MEN, literally lifting us

off those unique sand formations – BUT after spending a day

knawing [sic] our nails, waiting for the next sand bank (with

a little energy trouble thrown in), we finally given over to God

and a lone bottle of genuine Gordon’s gin and agua tonica (tonic

water). The only trouble is there seems to be an unlimited supply

of agua tonica and a bottle of gin that just seems to evaporate,

God knows where.

Em outro trecho descreve as dificuldades de deixar o Rio, por conta dos passes para fotógrafas que deveriam ser emitidos pelo DIP:

That last day in Rio was a heller what with gathering last minute

letters of introduction and Lourival’s (I hear he is out on his

bunda [ass], Graças a Deus [Thank God]) card of permission to

take photos and the squeezing of the last minute elephants into

match-box suitcases, we finally got off in a terrific rush leaving

last minute telephone calls, etc., undone, only to have a first

class disaster smack us in the face half away to Bello Horizonte.

Misha and I had the last beds in the last car of the train and

were killing time and dirt having a drink in the restaurant car

when we stopped with a boom in some small station. The xixi

(pee) I had decided to take previously simply couldn’t wait, so

we wandred back to find the back end of our car folded up like

an accordion and the rear engine (put on as an aid) puffing and

steaming right in the middle of our beds. WELL, I lost ten kilos on

the spot because we have previously stored all our baggage in-

cluding my complete work (negatives) of a year and all of Misha’s

paintings in a small space in back of the beds and the engine

steaming and (as I thought) melting my negatives to a grease

spot and the dfp (son of a whore) conductor sayng “well, we will

leave the car here and you can get your things tomorrow”, and

another fdp calling us quinta columnas [traitors] (a year of my

negatives), so with a few ers on my part, and Misha’s gestures

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on the other, we got the baggage on safe and OK. After that, B.

H. was very tame, and Pirapora was a sleeping pill.

Durante o percurso, o casal enfrentou uma série de contratem-pos devido à ingerência do poder local durante o Estado Novo. Além da cobrança de taxas e exigência de salvo-conduto para fotografar eram exigidos em algumas localidades, a fotógrafa teve seu equipamento apreendido inúmera vezes, apesar do passe concedido por Lourival Fontes, chefe do DIP.

As imagens do Rio e das viagens que realizou pelo Brasil com-põem um mosaico em movimento. Um Brasil cuja cartografia afetiva revela a mistura, a polifonia das vozes que falam através das imagens de Naylor, numa intertextualidade que valoriza o poder da imagem nas suas múltiplas dimensões: poesia, publicidade, cinema e fotografia.

A poética visual de Naylor sintonizava com as referências esté-ticas encontradas no pluralismo cultural, próprio do ambiente inte-lectual e artístico de Nova York dos anos 1930. Entretanto, dialogava também com a pedagogia do olhar própria à política implementada pelo CIAA.

visualizando a américa latina

Relembrando as motivações que o levaram a iniciar sua carreira como latino-americanista, o historiador norte-americano Frederick Pike confidencia:

Born in 1926, I began in the early to mid-1930s to become a bit

aware of a few things going on in the world, in part listening

to the radio [...]. My favorite radio entertainment came from

western music programs of Stuart Hamblen, the broadcast

description of Joe Louis fights[...]and above all else FDR’s Fi-

reside Chats[...]Vaguely in the 1930s I became aware that FDR

had an interest in certain neighbors to the south called Latin

Americans, and that he had initiated a Good Neighbor program

through which he hoped to establish better relations between

them and us[...]that sounded like a decent enough idea. At the

time a lot of latin songs were in vogue[...]The Latins had begun

to intrigue me about as much as cowboys. By the end of 1930s,

moreover, the Latins took on an appeal the cowboys couldn’t

match. They were very sexy. Dolores del Rio and Carmen Mi-

randa provided all the proof that one needed. Obviously FDR

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was right in wating Americans to get closer to Latin Americans. (PIKE, 1996, p. xv)

O relato das lembranças de Pike revela, com simpatia e bom humor, como a fundação de um imaginário sobre a América Latina contou com dois ingredientes fundamentais: política e propaganda. O forte apelo político era encampado pelo próprio presidente Roosevelt, que apresentava os bons vizinhos latino-americanos nas suas conver-sas no rádio. Cabia aos meios de comunicação destacar o perfil, criar um tipo latino-americano, visualizar a América Latina através de um conjunto de representações que dialogassem com a cultura visual do período, fortemente marcada pela crescente hegemonia das imagens técnicas: o cinema e a fotografia.

Em relação ao cinema, o investimento mais evidente e de maior vulto foi feito pelo governo através de suas agências, dentre estas, o CIAA, em parceria com os grandes estúdios de Hollywood.9 Para-lelamente, a mídia comercial foi implementada pelo CIAA com um investimento significativo na produção de filmes de 16mm, voltado para a elaboração de uma imagem positiva das “outras repúblicas americanas”, como era denominada a América Latina na documentação oficial dentro dos próprios Estados Unidos.

A produção de curtas para distribuição não-comercial dentro dos Estados Unidos e na América Latina era apenas uma das muitas atividades da Motion Picture Divison (MPD). Criada como uma seção da Divisão de Comunicação, em outubro de 1940, a MPD foi entregue à direção de John Hay Whitney, que, além de amigo pessoal de Rocke-feller, pertencia ao meio cinematográfico, sendo um dos produtores de O vento levou. Além de assumir a direção da MPD, Whitney era vice-presidente do Museum of Modern Art de Nova York (MoMA),

9 Sobre a relação entre imagem cinematográfica e política da boa vizinhança ver: WoLL, Allen L. The latin image in american films. rev. Los Angeles: UCLA Latin American Center Publications, 1980; LOPEZ, Ana M. Are all Latins from Manhattan?: Hollywood, ethnography and cultural colonialism. In: ______. et al. Mediating two worlds: cinematic encounter in the Americas. London: Verso, 1993; MENDONÇA, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro: Record, 1999; MAUAD, Ana Maria. A América é aqui: um estudo sobre a influência cultural norte-america-na no cotidiano brasileiro (1930-1960). In: ToRREs, Sonia (Org.). Raízes e rumos: perspectivas interdisciplinares em estudos americanos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001. p. 134-146; MaUad, Ana Maria. As três Américas de Carmen Miranda: cultura política e cinema no contexto da política da boa vizinhança. Transit Circle: Revista Brasileira de Estudos Americanos, Rio de Janeiro, v. 1, Nova Série, p. 52-77, 2002; FREiRE-MEdEiRos, Bianca. Diplomacia em celulóide: Walt Disney e a política de boa vizinhança. Transit Circle: Revista Brasileira de Estudos Americanos, Rio de Janeiro, v. 3, Nova Série, p. 60-79, 2004; FREiRE-MEdEiRos, Bianca. The travelling city: U.S. Representations of Rio de Janeiro in Films, Travelogues and Schorlarly writing (1930s-1990s). Tese (Doutorado)-Binghamton University, State University of New York, New York, 2002.

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e presidente da biblioteca de filmes do MoMA. Seus serviços eram doados ao governo na base de um-dólar-por-ano.

Por conta dessa ligação, a biblioteca do MoMA, sob contrato com o CIAA, ficou encarregada de uma série de atividades associadas à distribuição dos filmes produzidos pelo CIAA, para fins não comer-ciais. Dentre estas, se destacam: organização de catálogo bem como a sua distribuição; dublagem para o português e para o castelhano dos filmes sobre os Estados Unidos; edição e incentivo à produção de filmes adequada ao quadro político.

Já como parte integrante da Divisão de Informação, depois que a de Comunicação foi extinta, a MPD era composta por um pessoal reduzido, sendo boa parte do trabalho realizada em parceria com a indústria cinematográfica. Tanto a produção de filmes comerciais como não-comerciais era gerenciada pela mesma direção que se dividia em dois escritórios, um em Washington e o outro em Nova York. O primeiro ficava encarregado de estabelecer as diretrizes políticas do setor e coordenar o relacionamento com as demais agências gover-namentais. O de Nova York já possuía atribuições executivas, sendo dividido em três seções:

Seção de produção e adaptação responsável pela seleção, du-1. blagem para o português e o castelhano e distribuição para a América Latina de material adequado produzido pelas demais agências governamentais, pela indústria cinematográfica e pela iniciativa privada em geral. Além disso, ficava ao encargo desta seção definir os temas, estruturar os roteiros e supervisionar a produção dos filmes de 16mm pelos produtores independentes dos Estados Unidos.Seção de cinejornais responsável pela inclusão semanal de as-2. suntos relevantes para as relações interamericanas no circuito de cinejornais comerciais produzidos pelas grandes companhias, dentro e fora dos Estados Unidos. Durante o ano de 1942, através de acordos com as principais agências de cinejornais dos Estados Unidos – Paramount, Pathe, Universal, Fox-Movitetone e News of the Day –, o CIAA conseguiu montar uma infra-estrutura de produ-ção e distribuição de cinejornais sobre a América Latina. Inclusive o primeiro projeto desta seção garantiu a cobertura completa da conferência Pan-americana, realizada no Rio de Janeiro, entre os dias 15 e 28 de janeiro de 1942.Seção de distribuição encarregada de organizar e supervisionar a 3. distribuição de filmes de 16mm em “outras repúblicas americanas” e averiguar se a embaixada norte-americana e os escritórios locais

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do CIAA possuíam equipamentos adequados para exibição e divul-gação gratuita do material. Esta seção era também encarregada de distribuir, dentro dos Estados Unidos, filmes de interesse para a política da boa vizinhança. No final do ano de 1943, cerca de 61 curtas, com temas ligados à guerra e às relações interamericanas, já haviam sido produzidos.

Na avaliação do CIAA, o grande investimento na produção de filmes estava vinculado à capacidade deste meio em atingir largas au-diências, principalmente, no caso da América Latina onde boa parte do público-alvo era analfabeta. Portanto, a educação visual fazia parte do projeto civilizatório com o qual os Estados Unidos se empenhava em alavancar a América Latina do seu patamar de desenvolvimento. Um dos investimentos, neste sentido, foi a organização de uma frota de 200 caminhões que percorriam as cidades do interior dos países da América Latina para chegar a pessoas que normalmente não iam ao cinema e, sendo assim, não eram atingidas pela propaganda do CIAA. No caso do Brasil, como aponta a documentação do CIAA, não foram enviados caminhões, somente 61 projetores de filmes de 16mm, o que indica uma possível parceria do CIAA e do governo brasileiro (RoWLand, 1946).

Em um pequeno catálogo intitulado The American Republics in Films: a List of 16 mm. motion films on South and Central America and where they can be secured, publicado pelo CIAA, a importância política dos recursos audiovisuais fica evidenciada:

Future world peace depends greatly on how well the peoples of the various nations know and understand each other. The Office of the Coordinator of Inter-American Affairs has been established by the United Sates Government to promote and accelerate such and understanding between the peoples in the republics of western hemisphere. One of the programs of the Coordinator’s office is devoted entirely to promoting in the United States the knowledge of the other American republics. Inter-American Centers have been established to coordinate and reinforce inter-American programs regionally, in both cultural and commercial aspects. Emphasis is laid on the showing of motion pictures since this particular medium is admittedly one of the most powerful and effective teaching tools. The Motion Picture Division is releasing many films in South and Central America designed to teach our neighbors to the South more about the United States. Likewise the Coordinator’s office is

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making available to audiences in the United States an increas-ing number of motion pictures delineating life, customs, tradi-tions, habits, education, science, and art in the other America republics. To this particular group films are the following pages devotes so that schools, clubs, churches and similar groups in the United States my know what motion picture are available and where they may be secured.10

A iniciativa apontava o caminho de mão dupla na produção visual oficial. Se por um lado, para nós, os latino-americanos, a peda-gogia do olhar estaria voltada para o reconhecimento da supremacia comercial e cultural dos Estados Unidos, a eles, seriam apresentadas a nossa beleza cultural e o nosso potencial para o progresso. O CIAA valorizava através das imagens a crença nos ideais da modernização técnica como progresso social, ao mesmo tempo que definia o lugar de cada país americano na geografia evolucionista das Américas. Não é sem propósito que, em toda a documentação oficial do período, a América Latina é referida pela expressão “demais Repúblicas Ameri-canas”.

Na quinta edição das Diretrizes e Sugestões para os Programas Interamericanos, também publicadas pelo CIAA desde 1940, mais uma vez reforça-se a necessidade de disponibilizar um conhecimento maior sobre a América Latina para o público interno dos Estados Unidos, pro-pondo-se uma estratégia que criasse um sentido de comunidade:

As a part of this process of working together, we in the US must come to know more about our neighbors to the south – their lives, their culture, their aspirations, and their role in the present war. [...] While approving wholeheartedly the idea of inter-American cooperation, groups and organizations throu-ghout the country have raised the question: “What, specifically, can we help?”

Como resposta a essa demanda, o CIAA preparou uma lista com 18 tópicos – que iam desde observar as datas cívicas latino-americanas até a organização de eventos científicos e culturais, passando pelo ensino dos idiomas português e espanhol –, para ser distribuída em centenas de cidades nos Estados Unidos. Cada um dos 18 tópicos foi tratado separadamente, e em todos eles havia um item associado ao uso de imagens técnicas, quer sejam em forma de slides para ilustrar conferências, exposições de fotografias, divulgação de

10 The Library of the Congress Serial Record, mar 24, 1944 (copy Govt. Source).

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revistas com imagens sobre a América Latina, quer sejam em forma de filmes documentários, produzidos pelos órgãos oficiais, dentre os quais destacavam-se: CIAA; Pan American Union, Office of Education, American Council on Education etc.

O quarto item trata especificamente do uso de audiovisual especificando a necessidade de se estimular a exibição de filmes e slides sobre a América Latina:

The field of visual education offers one of the most effective me-

ans of reaching the American public. Much of Latin America can

now be seen on the screen through a number of very interesting

films available through the CIAA and through other sources.

Na área de educação, os centros e grupos interessados em incentivar os programas de intercâmbio cultural entre as Américas investiram especificamente em: distribuir projetores para a exibição de filmes, publicizar o acesso a filmes e slides sobre a temática intera-mericana, encorajar o estabelecimento de cineclubes, criar um acervo de slides e incentivar sua utilização bem como a de filmes nas escolas, e finalmente apoiar o trabalho de fotógrafos e cinegrafistas amadores que já viajaram pela América Latina para exibir suas imagens.

Observa-se, nas sugestões dadas, um grande investimento na criação de uma comunidade imaginada (ANDERSON, 1991),11 que com-partilhasse de valores cívicos comuns e padrões de comportamento semelhantes. Neste sentido, a eleição das escolas, bibliotecas, rádios comunitárias, clubes, igreja – ou seja, instâncias definitivamente liga-das à forte tradição associativa dos Estados Unidos – foi fundamental para elaborar uma esfera social de ação coletiva em prol do ideal comum de interamericanismo.

Portanto, dentre os recursos para promover a integração entre as Américas, a imagem técnica foi fundamental, denotando o importan-te papel da cultura visual como forma de persuasão e de elaboração de conceitos e emoções. Através deste tipo de política, cria-se uma demanda por imagens, em que o papel de Naylor e dos demais fotó-grafos associados ao CIAA é completamente justificado.11 O sentido de compartilhamento de valores culturais estaria na raiz dos movimen-

tos nacionalistas oitocentistas, segundo o autor. Apesar de efetivamente a idéia de interamericanidade não coadunar com as propostas nacionalistas do contexto da política da boa vizinhança, o investimento simbólico apontado garantiria ao menos a possibilidade de um patamar cultural comum, a partir do qual as trocas políticas se efetivariam.

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um mosaico em movimento: as fotografias brasileiras de genevieve naylor

Naylor não tinha muitos recursos técnicos a sua disposição: somente uma Rolleiflex e uma Speed Graphic, e utilizava sempre luz natural, sem filmes muito rápidos. No entanto, contava com algo que ela destacou como especial: a boa vontade dos brasileiros. Numa de suas cartas, mencionou: “What helps is the absolute cooperation of the Brazilians. They are so natural in their demeanor, so giving and warm, that my camera just loves them.”

Fotografia era para Naylor uma forma de expressar seu encan-tamento pelo mundo que a rodeava. O frescor das suas fotografias provinha do fato de que ela estava vendo tudo pela primeira vez. Ao contrário das fotografias teatralizadas do DIP, tipicamente de propa-ganda política, suas fotos registraram como o cotidiano poderia ser extraordinário. Ela achava os brasileiros simples e abertos, fáceis de lidar. Para uma estrangeira com uma grande câmera, com roupas estranhas e sem muita habilidade para se comunicar com pessoas que, por sua vez, também não tinham muito contato com o exterior, o resultado foi surpreendente. As pessoas fotografadas por Naylor ora aceitavam a sua presença, sem que esta atrapalhasse o que estavam fazendo, ora assumiam uma cumplicidade com a câmera, encontrando em Naylor uma presença amigável.

Convencida de que a espontaneidade era a melhor base para construir uma imagem, Naylor tinha uma estratégia para consegui-la, como explica Peter Reznikoff:

Como forma de capturar um momento composto, embora es-pontâneo, ela sempre procurou quebrar os padrões estáticos, posados, altamente estilizados que prevaleciam nos anos 1920 e 1930. Para isso, ela integrou a sua experiência enquanto fotojornalista na Associated Press, as fotos de Dorothea Lan-ge, Cartier Bresson e o fervor artístico do realismo socialista e do impressionismo abstrato. Destilando o espírito dessas influências para criar um movimento consciente, um efeito de atualidade, ela teve que ser não apenas inventiva, mas esperta. Quando se deparou com Red Skelton, bêbado, para uma sessão de fotos para a revista Good Housekeeping, ela o colocou em frente à televisão, ligou o aparelho e pediu que ele reagisse ao

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2) que estava vendo. O resultado energizou o palhaço Red Skelton,

ao invés do bêbado Red Skelton.12

A estratégia de capturar a espontaneidade nas pessoas con-tribuiu para que as fotografias de Naylor celebrassem a força e a perseverança do povo, evitando enquadrá-los como exóticos. O olhar de encantamento que lançou para o Brasil, assim que chegou, não se perdeu ao longo dos quase três anos que permaneceu aqui. Suas viagens para o interior, juntamente com Misha, realimentaram essa impressão inicial a cada novidade que o Brasil lhe apresentava.

As peregrinações de Naylor pelo Brasil seguem o mesmo rumo de outros viajantes ávidos pelo registro do novo, do incomum e, muitas vezes, bizarro. O Brasil, desde a Abertura dos Portos em 1808 por D. João VI, teve sua paisagem redesenhada por riscadores que acompanhavam as expedições científicas, seguidos pelos fotógrafos paisagistas e, mais tarde, ao longo do século XX, por outros que bus-cavam o “resumo etnográfico” do país, apropriando-me da expressão de Aníbal Machado. Dentro dessa trilha, passaram Gotherot, Verger e o próprio Levi-Strauss. Para cada um, as mediações que alimentavam a sua visualidade eram diferentes, mas cada qual buscava a sua ma-neira uma síntese original do país. Genevieve Naylor também buscou recriar o que via a partir do que já tinha visto: o trânsito de pessoas por um país em crise, a afluência da sociedade de consumo de massa, as texturas do mundo fashion, enfim, os rostos e lugares com os quais compunha a sua linguagem fotográfica.

A presença da câmera era condição fundamental para a constru-ção da memória, do registro ou da evidência, a natureza da produção visual variaria segundo o seu objetivo, mas a marca da originalidade de Naylor estava inscrita na sua própria maneira de olhar, como evidencia-se numa carta para sua irmã :

My first striking visual sight was not the bustling energy of the

Copacabana beach or the boulevards and slums, but a solitary

young negro girl sitting cross-legged in the center of a street,

intensely focused on constructing a wooden flute. If there ever

was a moment to have my camera! Unfortunately, the Brazilian

authorities have confiscated my equipment while they scrutini-

ze my back ground to make sure I’m not some fifth-columnist

subversive!13

12 Catálogo da exposição Genevieve Naylor, Faces and Places in Brazil, Pinacoteca, nov. 1994. p.12.

13 Carta de Genevieve Naylor para Cynthia Gillipsie, RJ, sob a guarda Peter Reznikoff.

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Nas palavras da estudiosa Ana Lucia Gazolla,

[...] Naylor resiste à apresentação de uma visão homogênea do país e recusa os estereótipos fáceis do paternalismo e do exotismo latino-americano [...]. Suas fotos buscam retratar uma realidade contraditória, múltipla, diversa, da qual nenhu-ma síntese é possível: nelas contracenam o rural e o urbano, cosmopolitismo e religiosidade tradicional, riqueza e miséria, desenvolvimento e atraso, uma sociedade em transformação que levará ao desaparecimento de comunidades culturais pela hegemonia de uma cultura urbana cosmopolita e excludente. Naylor focaliza o caráter multirracial da população brasileira e capta em imagens carregadas de uma extraordinária percepção as imensas contradições do país, contrariando os desejos da ditadura de Vargas e as expectativas do CIAA [...] O país que retrata não é o das paisagens assépticas e deshistoricizadas, nem o do desenvolvimento e do progresso absolutos, mas sim o do contraponto, da decalagem, do processo de modernização que acentua desigualdades.14

A avaliação de Gazolla sintetiza o resultado conquistado por Naylor em suas andanças pelo Brasil. Uma leitura permeada pelo impacto que nos causa o conjunto da documentação fotográfica pro-duzida por Naylor, considerada pelos estudiosos do período como a mais completa coleção sobre o Brasil da época, devido à natureza variada de suas imagens.

De acordo com o brasilianista Robert Levine, no livro publica-do em 1998, mais de 1.350 fotografias sobreviveram ao tempo; desse conjunto, o autor publicou em seu livro, organizado com a colaboração de Peter Reznikoff, filho de Naylor, 101 imagens. Na seção Photographs and Prints da Biblioteca do Congresso Norte-Americano, encontra-se arquivado na rubrica Archives of Hispanic Culture um anexo de 225 fotografias sobre o Brasil pertencente ao CIAA. Deste conjunto, 187 são assinadas por Naylor, 10 seguem o mesmo estilo adotado pela fotógrafa, incluindo-se paisagens semelhantes, 24 são de Kidder Smith ou semelhantes ao seu tipo de fotografia, e as restantes seis imagens não foram identificadas.

Do grupo de fotos guardadas na Biblioteca do Congresso, 37 encontram-se também no livro, as demais seguem o mesmo padrão estético e temático, com uma única diferença: as imagens arquivadas 14 Trecho retirado do folder da exposição “Cenas do Brasil”. Gazzola, Ana Lucia, O

Olhar de uma Boa Vizinha: As fotos brasileiras de GN Folheto da Exposição: Cenas do Brasil, Genevie Naylor, fotografias.

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não foram editadas. Encontram-se fora do catálogo, numa espécie de miscelânea sobre a América Latina dos anos 1940, sem tratamento especial. Todas estão coladas num suporte de cartão, com tamanho padrão de 24 x 18 (horizontais e verticais), identificação numérica no verso, carimbo do State Department, órgão ao qual o CIAA estava subordinado, e identificação do lugar e da data, todas de 1941. Todas estão assinadas pela fotógrafa e do conjunto total somente nove não apresentavam identificação de data e local, as demais traziam uma breve legenda escrita em inglês, com a letra de Naylor. Acredito que o conjunto do trabalho de Naylor pode estar arquivado em diferentes lugares (além do material em posse do seu filho), juntamente com as demais imagens produzidas pelo CIAA.15

Para este artigo reuni num conjunto as fotos encontradas na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, as fotos publicadas no livro de Robert Levine e mais algumas encontradas no catálogo da exposição “Faces and Places in Brazil/Rostos e Lugares no Brasil”, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em novembro de 1994, sob a curadoria do filho de Naylor, Peter Reznikoff, somando-se um total de 264 fotos que analiso a seguir.

A chave de leitura da mensagem fotográfica elaborada pela fotógrafa na sua produção brasileira evidencia-se no título da sua exposição no MOMA, em 1943, “Faces and Places in Brazil”. A valori-zação de pessoas e lugares por onde andou vai fazer com que todas as demais opções técnicas e estéticas fiquem condicionadas por tal valorização. Vejamos como os quadros de significação visual se orga-nizam na mensagem composta pelo conjunto das fotografias.

a trama visual

As fotografias na sua absoluta maioria são grandes (máximo 24 x 20cm e mínimo 15 x 16), retangulares, verticais e instantâneas. Padrão adequado ao tipo de aparato técnico que a fotógrafa utilizava, uma Rol-leiflex e uma 4 x 5 Speed Graphic, além de se alinhar às suas diretrizes de espontaneidade e movimento.

A visualização das imagens segue o padrão característico das re-vistas ilustradas, cuja leitura se processa da direita para a esquerda (44%) e de forma nivelada ao plano do chão (50%). No entanto, a incidência de tomadas de cima para baixo (25,5%) e de baixo para cima (24,5%) indica 15 No National Archives existe uma coleção Nelson Rockefeller, além do material vi-

sual que foi produzido pelo CIAA: propaganda, material fílmico e cartazes resul-tantes de um concurso realizado em 1940, que envolveu vários concorrentes da América Latina. Sobre este material, ver em Archives of American Art, microfilmes contendo os clippings no MOMA, além dos próprios arquivos do órgão no National Archives.

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o diálogo entre as fotografias de Naylor e o cinema, principalmente com o jogo de câmera em Cidadão Kane, de Orson Welles. Em várias tomadas, o rosto suado pelo calor do samba ou os corpos sintonizados no ritmo do frevo ganhavam movimento próprio ao acontecimento que estava sendo registrado, apesar de a imagem ser fixa.

A distribuição de planos é fundamental para se avaliarem as re-lações entre o quadro e o fora de quadro, ou ainda, entre o conjunto de escolhas possíveis e as efetivamente realizadas. Neste sentido, quanto maior a profundidade de campo, definida pela abertura do diafragma, maior seria a capacidade de colocar planos no foco, ampliando-se a possibilidade de integrar a imagem a um conjunto significativo de in-formações. No caso da coleção analisada, a disposição dos planos foi a seguinte: 30% em um único plano, 46% com dois planos, 22% com três planos, e 2% com quatro planos.

Num primeiro momento, avalia-se que a fotógrafa optou por uma profundidade de campo menor (76% de fotos com plano único ou dois planos), apesar de a luminosidade tropical lhe permitir fechar mais o diafragma para conseguir um maior número de planos no foco. Sua op-ção por valorizar a relação entre as pessoas e os lugares predominou, evidenciada na escolha da maioria das fotos com dois planos.

Entretanto, nessa distribuição, em 62% das fotografias a paisagem junto com figuração foi objeto central, que valorizava a cena. Tal tendên-cia se reforça ao aliarmos a opção dos planos às de iluminação, contraste e distribuição dos elementos na foto. Neste sentido, a incidência de 68% de fotos (a soma das fotos de dois, três e quatro planos), associada a uma opção por contrastes marcados por linhas retas bem definidas, equilíbrio entre claros e escuros, e entre a parte inferior e superior do quadro, busca construir uma composição em que o conjunto é valorizado em consonância com suas partes, à maneira de um mosaico. É interes-sante perceber como a fotógrafa maneja bem suas escolhas técnicas e estéticas na produção de um sentido para o Brasil. Fotografa rostos sem desenraizá-los de seus lugares.

As fotografias de paisagem sem figuração não têm incidência, e as fotografias somente com figuração reúnem 33% das fotos e, em ge-ral, são todas com um único plano. O que evidencia que o objetivo da fotógrafa era criar uma imagem contextualizada, retratar as pessoas no seu espaço social, ainda que valorizasse as representações do corpo, devido a este alto índice de retratos.

John Pultz (1995, p. 7), em seu livro sobre a representação do corpo na fotografia, afirma: “Por mais de 150 anos a fotografia tem sido o mais difundido meio de comunicação visual, e contribui mais do que qualquer outra mídia para moldar as noções de corpo na sociedade

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contemporânea.” Este autor investiga como a representação fotográfi-ca do corpo molda e reflete questões óbvias como identidade pessoal, sexualidade, gênero e orientação social, mas também, poder, ideologia e política.

Refletindo sobre o período no qual Genevieve Naylor se insere, aponta:

fotografia nas décadas de 1930, 1940 e início de 1950 estava inti-

mamente conectada com a Grande Depressão, a Segunda Grande

Guerra e com os primeiros anos da Guerra Fria. Durante a primeira

metade desse período, o corpo na fotografia foi principalmente

retratado em termos de classe, raça e nacionalidade; somente

mais tarde, a temática de gênero voltaria a ser considerada

(PULTZ, 1995, p. 89).

A partir dessas considerações, orientei minha abordagem no sentido de definir a geografia social delimitada pelas fotos de Naylor, enfatizando o papel do retrato fotográfico na construção de uma alte-ridade social que busca dialogar com a condição humana dos sujeitos retratados.

A definição de retrato fotográfico não é tarefa fácil, ainda mais no contexto da produção documental ou do fotojornalismo. John Tagg, em seus estudos sobre representação fotográfica, afirma: “The portrait is [...] a sign whose purpose is both description of an individual and the inscription of social identity” (TAGG, 1988, p. 13). Seguindo tal idéia, Grahan Clarke afirma que os retratos são realmente elementos de inscrição social:

within the context (and associations) not just a face, but of a for-

mal study and representation of an individual presence. Like the

painting, a portrait photograph conferred individual status, and

advertised the presence of personality (CLARKE, 1997, p. 102).

Em linhas gerais, para a literatura sobre o retrato, o que realmente define o retrato na fotografia é o senso de individualidade e de diferença que a imagem expressa. Não basta enquadrar um rosto, ou uma pessoa, é necessário distingui-la das demais, da multidão, atribuir-lhe um valor que, ao mesmo tempo, a diferencia como um ser humano, a identifica como um sujeito social. Ao comentar as imagens do fotógrafo alemão August Sander, Grahan esclarece este duplo processo:

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Defined by their profession (or lack of one), they take their place in a dense hierarchy of meaning established through social diffe-rence and distinction. [...] The figure, in this sense, gains credence from relative position, for it exists in terms of its difference from, rather than similarity to other figures. The individual is always referred to a larger frame of social identity – not by name but by oc-cupation: a boxer, or accountant, lawyer, baker, cook, bricklayer, customs officer, and so on. Every detail in Sander portrait is of significance – everything means, but we need to probe the images for any hint of an internal and private self. This is a society on show – public space in which the self has meaning only in so far as it has access to that public forum. (CLARKE, 1997, p. 113)

As fotos de Sander, ao contrário das clássicas fotos de Walker Evans, para exemplificar com um grande nome da fotografia documental norte-americana da mesma época, mostram mais do que revelam uma face em qualquer contexto público. A diferença entre mostrar e revelar, ou entre fazer uma foto e tirar uma foto, implica a negociação, entre o fotógrafo e o fotografado, do valor atribuído à pose, implica um confronto de olhares, implica a construção de uma relação social diferente da que se estabelece entre a fotografia-denúncia e o retrato consentido.

O retrato pode ser só de rosto ou de corpo inteiro, quanto mais partes desse corpo ficarem expostas, tanto maior será a possibilidade de historicizá-lo. Todos os atributos relacionados ao corpo são, portanto, definidos historicamente através de práticas culturais e sociais concre-tas: indumentária, higiene, alimentação etc. Os retratos de Genevieve Naylor produzidos no Brasil traduzem o diálogo da fotógrafa com a pauta social do seu tempo, pois se orientam nos temas relacionados à classe, raça e geração. Tais considerações são confirmadas na avaliação dos tópicos relacionados aos espaços da figuração, geográfico e das vivências e experiências retratadas.

Os locais fotografados revelam as duas diretrizes que orientaram o trabalho da fotógrafa, ora como funcionária do CIAA, ora como uma profissional sensível e comprometida com as demandas sociais. Cerca de 41% das fotografias são do Rio de Janeiro, desse conjunto somente 15% são do subúrbio da cidade e 3,5% da zona rural do estado. De ou-tros estados, ainda dentro da pauta definida pelo Estado Novo, consta uma série de 15 fotografias tiradas em escolas de Belo Horizonte, cuja estética se aproxima daquela das fotografias produzidas pelo Ministério da Educação e Saúde de Vargas. Nestas, as crianças aparecem fazendo exercícios, formadas, estudando, alimentando-se, enfim, um culto à formação do cidadão brasileiro.

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O restante das imagens mostra os caminhos trilhados pela fotó-grafa nas suas viagens e as marcas que definiu como sendo relevantes para configurar a especificidade do Brasil. Desse conjunto, 12% são de fotografias de cidades do interior sem identificação específica de local, 11,5% são das cidades históricas de Minas Gerais – Ouro Preto e Congo-nhas do Campo, nas festividades da Semana Santa –, 15% são imagens de cidades ribeirinhas às margens do São Francisco, nas quais se busca a espontaneidade de um cotidiano marcado pela precariedade.

Os atributos da paisagem são objetos que qualificam as condições de vida de cada espaço. Neste sentido, o espaço urbano dos grandes centros está associado a objetos que denotam o consumo e a vida agitada das metrópoles: outdoors, prédios, entulhos, postes, calçadas, tapumes, fios, vitrines, toldos, estátuas, bondes, carros, trens etc. A zona rural recebe atributos próprios, tais como: casas de pau-a-pique, canoas, vegetação agreste, roupas estendidas ao sol, redes, utensílios de palha, numa economia que reforça o sentido de precariedade e a oposição interior e litoral, ou ainda, entre o Brasil urbano-industrial que teria condições para integrar o concerto das nações civilizadas e o Brasil agrário e latinfundiário, preso ao passado colonial a ser superado.

Na construção do espaço da figuração, o espaço coletivo teve maior incidência que o individual, o masculino destacou-se em relação ao feminino, o adulto, em relação ao infantil. Mesmo assim, a presença significativa de crianças, quer acompanhadas de adultos, quer sozinhas ou reunidas em grupo (34%), aponta para uma crescente preocupação com a condição infantil, já evidenciada na pauta do projeto da Farm Security Administration (FSA), e ainda hoje presente nas fotografias de documentação social de Sebastião Salgado, por exemplo.

Outro dado a ser considerado é a questão da raça. É evidente o interesse da fotógrafa pela situação do negro no Brasil, tanto que suas fotos não foram bem aceitas pelas autoridades sediadas na cidade do Rio de Janeiro. “Há muito mais no Brasil que sacolejos de negros, negros no carnaval, instituições religiosas e bricabraque”, disse o principal diri-gente do comitê carioca do CIAA ao recusar para exposição os trabalhos da fotógrafa norte-americana.16

É interessante notar que o debate racial no Brasil, nesta época, matiza seus contornos eugenistas pela valorização do nacional-popular e com ele da cultura negra, principalmente do carnaval. Com certeza, nas conversas que Genevieve Naylor travou com os intelectuais brasi-leiros, este tema entrou em pauta; talvez, em uma delas com Vinícius de Moraes, por exemplo, este poderia ter argumentado: “Nosso negro é um 16 Memorando da Divisão Brasileira do CIAA para Francis Alstock, Rio de Janeiro,

11.8.1942, Arquivos CIAA, National Archives, Washington apud MENDONÇA, Ana Rita. Carmem Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 89.

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valor excelente, e de grande expressão. Não há razão para escondê-lo, criando-se a impressão de que temos um preconceito que não cabe a nossa natureza de povo americano” (A Manhã, 30 abr. 1942).

As pessoas, seus rostos e corpos estão presentes em pratica-mente todas as fotografias de Naylor. Como seu princípio é o da espon-taneidade, daí o grande número de fotos instantâneas, a mise-en-scène da pose foi completamente definida pela valorização do movimento. Em 18% das fotos as pessoas posam para a fotógrafa, nas demais ela as retratou dançando, caminhando, trabalhando, tocando instrumentos, divertindo-se, seguindo a procissão, exercitando-se, jogando bola, tomando banho de mar, vivendo, enfim.

A construção da cotidianidade também marcou a variedade da pauta temática, que associada às opções de enquadramento acima apontadas possibilitou construir um quadro do Brasil que buscava incluir o máximo de aspectos da sua natureza diversa e contraditória. Do conjunto de fotografias, os temas variaram do retrato de Vargas, nas vitrines das lojas de retratos e nas paredes dos bares populares (três fotos), até as imagens do dia-a-dia da pequena cidade debruçada sobre o rio São Francisco (47 fotos), passando pela Princesinha do Mar e seus diversos contornos, do amanhecer com os pescadores ao entardecer com as garotas chics na frente do Copacabana Palace (19 fotos), pelos clubes exclusivos, culminando na apoteose carnavalesca (32 fotos). Sem deixar de mostrar o trabalho (20 fotos) e a educação (série produzida em uma escola em Belo Horizonte, com 16 fotos) como respostas necessárias à demanda oficial de imagens.

Os protocolos de visualidade definidos pelo CIAA deveriam ser compartilhados pelo conjunto de seus representantes nas suas viagens pelas “demais Repúblicas Americanas”. Logo depois de retornar de seu tour da boa vizinhança, Walt Disney produziu Alô, amigos (1943), um simpático desenho animado no qual se relatou em cores variadas e tons fortes o passeio dos desenhistas na busca da imagem ideal da América Latina. Para cada país buscou-se um equivalente, um seme-lhante, para dar sentido a esta comunidade imaginada que se busca-va forjar entre as Américas. Em cada país, também a alteridade era definida pela estética do pitoresco. As imagens de Disney perseguem o padrão da dicotomia que diferencia Nós dos Outros.

Comparando as fotografias produzidas por Genevieve Naylor com este padrão, evidenciam-se algumas semelhanças em respeito à diretriz imposta, mas, por outro lado, o que se descobre é um conjunto de imagens que apontam para uma certa porosidade dos processos hegemônicos. Onde se quer a homogeneidade do típico, Naylor traz

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a diversidade do que é próprio a cada lugar. Como comentava Aníbal Machado: “Nada de cachoeiras.”

a traJetória das imagens

Genevieve Naylor retorna aos Estados Unidos em agosto de 1942. Durante os meses de janeiro e fevereiro de 1943, 50 de suas fotografias sobre o Brasil foram exibidas na exposição chamada “Faces and Places in Brazil”. A imprensa norte-americana a anunciou como complemento à exposição “Brazil Builds”, organizada com as fotografias de Kidder Smith. Essas exposições viajaram pelos Estados Unidos, dentro do marco da aproximação entre os dois países.

FigURa 32 - chaMada paRa a EXposição dE naYLoR, acERVo pETER REZniKoF, Rio dE JanEiRo, 1942.

more about brazil

The Museum of Modern Art supplementing its big architectural exhibition, “Brazil Builds”, has installed in a narrow corridor gallery on the ground floor a show about fifty photographs by

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Genevieve Naylor, entitled “Faces and Places in Brazil”. This ex-cellent background material for the other show.

The camera work is clear, simple, direct and it reveals that Brazil has games and overcrowded trolleys, beautiful girls and puppet shows, festivals and school free lunches and that river vessels play an important part in the life of the interior. There are, fur-thermore, a number of interesting photographs of façades of buildings along streets conveying more than an impression of Spanish architectural tradition.

Miss Naylor worked in South America for the Coordinator of Inter-American Affairs from the Autumn of 1940 until last August. The exhibition will continue synchronously with “Brazil builds” until Feb. 28 – not march 7 as previously announced. Both shows will extensively circulate thereafter. (Edward Alden Jewell, New York Times, 27 jan. 1943)

Os comentários sobre as fotografias de Naylor apontam para a forma de recepção das imagens por parte do público norte-americano, evidenciando também o conteúdo de propaganda das imagens veicu-ladas. Dentre as 50 imagens exibidas, a que foi reproduzida em vários jornais mostrava o bonde de São Januário, em um subúrbio carioca, completamente lotado, reforçando a comunidade imaginada, entre as cidades brasileiras e norte-americanas:

Fares, Please – So you think Pittsburgh street car and buses are crowded? Here is a street car during the rush hour in Rio, Brazil, another country in which President Roosevelt stopped on his return from Casablanca. Picture is among an exhibit of 50 pho-tographs on Brazil currently in the New York Museum of Modern Art. (Sun Telegraph, 29 jan. 1943)Think you are crowded? If you are one of the persons complain-ing about the over crowding of street cars and buses, look at this photo of a street car in Rio de Janeiro. Aptly titled: “Rush Hour”, it is included in an exhibition of 50 photos by Genevieve Naylor on life and scenes in Brazil at NY MOMA. (Time & News, 3 fev. 1943)Rush Hour: a cozy ride on a streetcar going places in Brazilian Capital.

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Passengers jam-jacked into an open trolley in Rio de Janeiro, where they don’t seem to mind crowding as much as do our DSR riders. This picture is one of 50 photographs by Genevieve Naylor on exhibit at the NY MOMA. (New Era, 5 fev. 1943)

Entre 1943 e 1944, as fotografias de Naylor viajaram pelos Estados Unidos: Boston, Rochester, Colorado Springs, São Francisco e por toda a Costa Oeste, traçando um percurso em que as possibilidades de recepção eram orientadas por comentários como os acima apresentados. A idéia de uma identificação entre os dois países está na base da doutrina da boa vizinhança. Apesar das diferenças evidenciadas nas imagens, am-bos fazem parte da mesma cultura ocidental, e, se os norte-americanos sobreviveram à Grande Depressão, os brasileiros também conseguiriam se modernizar e integrar-se à comunidade democrática e liberal.

Na mesma época em que a exposição de Naylor viaja pelos Es-tados Unidos, o CIAA elabora seu relatório sobre as atividades no ano de 1943. Em compasso com as imagens que seguem o seu rumo país adentro, em consonância com as diretrizes de divulgação da imagem das “demais repúblicas americanas”, definidas pelo mesmo órgão, o relatório radiografa um país cujas potencialidades não podem passar despercebidas pelo governo dos Estados Unidos. Evidencia-se na leitura do relatório a presença contraditória dos dois Brasis apresentados por Naylor: o crescimento urbano e a potencialidade dos recursos naturais, em contraste com a estrutura agrária ultrapassada e obsoleta, aliada à total falta de infra-estrutura para o desenvolvimento industrial.

Não há evidências explícitas de que o CIAA tenha feito uso técnico das fotografias de Naylor, no entanto, a sintonia entre o aspecto descritivo das imagens e do relatório é impressionante. Em ambos, cada qual a sua maneira, estão caracterizadas as contradições que definiam o Brasil de então, apontando-se para o fato de que, além de representar modos de vida e marcas simbólicas, as fotografias apresentam evidências materiais que servem também para a construção de um discurso técnico.

Depois da sua exposição no MoMA de Nova York, as fotogra-fias de Naylor serviram para compor reportagens sobre as relações interamericanas no período. Uma delas, publicada na “Sunday Mirror Magazine Section”, do New York Sunday Mirror, em 18 de abril de 1943, intitula-se: “The Brotherhood of the Americas”. Nesta reportagem, a foto de Naylor, uma vista do calçadão da praia de Copacabana, na direção do bairro do Leme, enquadra, no primeiro plano, um padre de batina que está caminhando no calçadão e, logo atrás, uma jovem que está empurrando um carrinho de bebê, no segundo plano, a curva da praia com o morro do Leme ao fundo. A foto valoriza a cena com os seus

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personagens, pessoas comuns que estão caminhando em Copacabana num dia ensolarado qualquer.

FigURa 33 - iMagEM pUbLicada no new YOrk sundaY MirrOr, EM 18 dE abRiL dE 1943.

A legenda da foto esclarece a sua escolha pelo editor da seção:

On Pan American Day we pay honor to the oldest and most suc-cessful of sovereign governments on earth’ – From FDR’s message, April 14, 1942. That success is reflected in beauty and dignity of Rio’s majestic vista (above). – Photo by Genevieve Naylor, by permission of Museum of Modern Art.

Logo no início da reportagem, assinada por Nelson Rockefeller, identificado, entre parênteses, como o Coordinator of Inter-American Affairs, é celebrada a entrada do hemisfério na segunda década da polí-tica da boa vizinhança. Esta é definida como uma prova tangível de que nações livres e soberanas podem trabalhar juntas em prol de uma mesma causa, a proteção da liberdade, da dignidade e do bem-estar de seu povo, promovendo a paz com justiça e decência. As palavras de Rockefeller ganham materialidade através da fotografia escolhida: as opções de luz, definição dos claros e escuros, do foco, e da distribuição dos elementos na foto valorizam o conjunto da cena, permitindo uma leitura clara e direta da imagem. Ao mesmo tempo que as opções pelo sentido vertical e direcionamento das linhas de composição da direita para a esquerda sugerem estabilidade e equilíbrio, na valorização da cena em conjunto.

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Reforçando estas idéias está a figuração representada pela religião e pela família, bastiões da decência. Os diferentes usos da fotografia de Naylor revelam a capacidade polifônica da imagem fotográfica, bem como a estreita relação entre a imagem e o meio no qual ela está sendo veiculada na definição do sentido atribuído às imagens.

Não só as imagens de Naylor contribuíram para dar subsídios ao discurso oficial, mas também as dos demais fotógrafos e documen-taristas que atuaram aqui, no período da boa vizinhança, reforçando, com isso, o papel desempenhado pelas imagens técnicas na produção de sentido social.

conclusão

Depois da guerra, Naylor passa a trabalhar nas principais revistas de moda norte-americanas, dentre estas a Harper’s Bazaar, na qual tem como mentor Alexy Brodovich. Aos poucos, se especializa na modali-dade retrato, tornando-se fotógrafa de celebridades, dentre as quais, a primeira-dama norte-americana, Eleanor Roosevelt. Por toda a sua vida, Naylor manteve contato com a comunidade artística brasileira em Nova York, e com as referências de vocabulário que aprendeu no Brasil. Como relembra Peter Reznikoff:

My parents always spoke fondly of Brazil, and even spoke Por-tuguese to each other when they didn’t want my brother or I to know what they were saying to each other. It helped that in late 1950s and into the 1960s when the Bossa Nova movement was begin to take off the US, they hosted a lot of musicians who came here to record with Stan Getz, etc. They were very good friends with Stan, and in fact introduced Stan to Luiz Bonfa. Among the other musicians were usual cast of characters: Jobim, Gilberto [sic] and others.17

Apesar de ter trabalhado durante toda a sua vida como fotógrafa, somente nos anos 1990, graças a um empenho de seu filho Peter Rezni-koff, as imagens brasileiras de Genevieve Naylor, falecida em 1989, aos 74 anos de idade, ganharam notoriedade, permitindo que tivéssemos acesso a um olhar mais sensível, complexo e sofisticado no âmbito da política da boa vontade. Naylor foi capaz de ver para além dos estereó-tipos e das imagens pasteurizadas da época.

17 Entrevista por e-mail em 5 jan. 2004.

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caPítulo 11

o mundo como comunidade imaginada: diversidade cultural nas rePresentações

fotográficas de flávio damm e sebastião salgado

Na concepção do historiador inglês Benedict Anderson (1991), a imprensa capitalista desempenha um papel fundamental na elaboração da nação como comunidade imaginada da modernidade. Ampliar essa noção na contemporaneidade implica necessariamente compreender os elos de ligação entre o local e o global, entre nação e território.

O mundo como comunidade imaginada é um projeto que, se pensado de forma dicotômica, tanto pode desembocar numa utopia humanista de corte romântico, quanto na lógica perversa do capi-talismo avançado. Definir o lugar de fala dos sujeitos e a noção de engajamento social na mídia implica necessariamente superar tal dimensão dicotômica das análises tradicionais da cultura de massa, e investir na possibilidade da existência de projetos que busquem dar conta de um mundo complexo e diverso.

Compreende-se, assim, Flávio Damm e Sebastião Salgado como mediadores entre o mundo dos acontecimentos e o mundo das suas imagens, cujo resultado é uma síntese original, filtrada pelo saber-fazer do fotógrafo. As fotografias de ambos revelam uma narrativa da história do mundo contemporâneo, cuja marca central é a da diversidade cultural.

Entretanto, ao ocupar-se da narrativa histórica constituída pelo fotojornalismo, o historiador não pode colocar-se como mero espectador dos fatos passados, tomando tais imagens como janelas que se abrem aos acontecimentos. Ao contrário, há que se posicio-nar criticamente em relação às operações conceituais e práticas que envolvem a produção, circulação, consumo e agenciamento das fotografias pelos sujeitos envolvidos em tais operações: fotógrafos, editores, jornalistas, público etc. Enfim, ao tomar tais fotografias como imagens-monumento e imagens-documento, a análise historiográfica vai de encontro às memórias construídas sobre os acontecimentos, desmontando-as, desnaturalizando-as, apontando para o seu caráter de construção, comprometimento e subjetividade.

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do fotografia e diversidade cultural, aPontamentos Para uma reflexão

Na literatura das ciências sociais, no Brasil, a noção de diversida-de cultural está indefectivelmente associada às diferentes abordagens sobre identidade nacional, que, desde os meados do século XIX, vêm pontuando as abordagens sobre a constituição da cultura brasileira.

As reflexões de Renato Ortiz1 definem na exata medida os mar-cos que regulam o debate sobre diversidade cultural no Brasil. Entre as noções de raça, povos, classe se desenharam as abordagens do folclore, da mestiçagem, da luta de classes, cada qual a seu modo enfocando a relação do Brasil com seus Outros.

O tema da cultura brasileira e da identidade nacional é um anti-go debate que se trava no Brasil. [...] Os diferentes autores que têm abordado a questão concordam que seríamos diferentes de outros povos ou países, sejam europeus ou norte-americanos. Neste sentido, a crítica que os intelectuais do século XIX faziam à “cópia” das idéias da metrópole é ainda válida para os anos 1960, quando se busca diagnosticar a existência de uma cultura alienada, importada dos países centrais. Toda a identidade se define em relação a algo que lhe é exterior, ela é uma diferença. Poderíamos pensar sobre o porquê desta insistência em bus-carmos uma identidade que se contraponha ao estrangeiro. Creio que a resposta pode ser encontrada no fato de sermos um país do chamado terceiro mundo, o que significa dizer que a pergunta é uma imposição estrutural que se coloca a partir da posição dominada em que nos encontramos no sistema internacional. (ORTIZ, 1994a, p.7)

Seguindo a lógica do autor, em diferentes momentos, a noção de mosaico cultural foi apropriada por diferentes discursos em torno da definição do ser nacional. Assim, para os românticos e folcloristas, diversidade cultural foi a base para se projetar uma identidade nacional plural, fortemente marcada pelo mito do bom selvagem, incorporado na imaginária indigenista. Desse universo o negro estava excluído pela marca da escravidão. O pós-Abolição e o advento da multidão na cena pública republicana redefiniria a discursividade sobre a constituição 1 A obra do autor é vasta, destaco os trabalhos cuja coerência inspiraram minha

abordagem: oRTiZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo: Olho d’água, 1992; oRTiZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994a; ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988; oRTiZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994b.

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do “povo” brasileiro, numa miríade de abordagens nas quais nem a noção de povo era consenso.

Nas abordagens de esquerda, inspiradas no marxismo mais conservador, a diversidade cultural seria um recurso ideológico para dissimular o impacto da luta de classes na formação da consciência trabalhadora. Do lado oposto do espectro político, para as aborda-gens liberais de corte funcionalista, a diversidade cultural seria uma perspectiva de se projetar um Brasil cuja harmonia entre as raças criou a ilusão de um país sem preconceitos, uma verdadeira demo-cracia racial.

A abertura do regime político, nos anos 1980, trouxe para a cena pública novos movimentos sociais cuja ação associava-se à política das identidades. Tais movimentos operavam com a noção de diversidade cultural como uma plataforma de projeção social. Um princípio que se define nem de exclusão nem de inclusão social, mas pela constituição de um sentimento de pertencimento a uma comunidade de sentidos e práticas. Tal plataforma tem como corolário o estreitamento das relações entre diversidade e alteridade.

Flávio Damm e Sebastião Salgado são fotógrafos de gerações e tendências distintas, a união de ambos numa mesma análise tem como objetivo valorizar a variedade do olhar local sobre o global. Essa análise toma a fotografia como uma expressão visual baseada numa linguagem própria – a linguagem fotográfica. Assim, a fotografia é resultado de um jogo de expressão e conteúdo que envolve neces-sariamente três componentes: o autor, o texto propriamente dito e um leitor. Cada um destes três elementos integra o resultado final, à medida que todo o produto cultural envolve um locus de produção e um produtor que manipula técnicas e detêm saberes específicos à sua atividade; um leitor ou receptor, concebido como um sujeito transin-dividual, cujas respostas estão diretamente ligadas às programações sociais de comportamento do contexto histórico no qual se insere, e, por fim, um significado recebido socialmente como válido, resultante do trabalho de investimento de sentido.

Podemos agregar a essa análise a percepção temporal que de-fine a fotografia como um trabalho de memória. Ao fixar a imagem da experiência humana de diferentes maneiras, as fotografias se tornam substrato material das memórias do contemporâneo. No mundo do instantâneo e da precariedade, a possibilidade de reabilitar a noção do tempo como duração permite atribuir ao ato fotográfico uma di-mensão narrativa.

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do o mundo como comunidade imaginada em flávio damm

Flávio Damm, gaúcho, nascido em 1928, começa a trabalhar cedo como auxiliar de laboratório na Revista do Globo, e aos 20 anos publica um furo de reportagem. Na edição do dia 6 de novembro de 1948, da Revista do Globo (ano 19, no 470), em matéria intitulada “A longa viagem de volta”, com texto assinado pelo repórter Rubens Vidal, publica as primeiras fotos de Getúlio no seu retorno ao Catete. Essa reportagem lhe rendeu bons frutos, pois em 1949 ruma para o Rio de Janeiro e con-quista um posto de fotógrafo na revista O Cruzeiro, o principal veículo do fotojornalismo da época no Brasil. Trabalhou na revista por dez anos e, em 1959, ruma para uma bem-sucedida carreira solo.

As fotografias que integram esse artigo foram escolhidas pelo fotógrafo, em resposta a um pedido: “Preciso das fotos com o dese-nho do seu olhar sobre o mundo lá fora, o estrangeiro. Pode ser mais recente, mais antiga, escolha assim, das que você tem digitalizada, as que você mais gosta.”2

A essa seleção de imagens agreguei as fotografias produzidas no Brasil, com o intuito de demonstrar um argumento construído no cruzamento das fontes orais e visuais. Concebo o trabalho de Damm dentro da categoria do fotógrafo-flanner. Aquela figura benjaminiana que vaga pelas passagens, ruas, das mais largas avenidas às vias si-nuosas, usufruindo a cidade moderna pelo olhar. Sua narrativa visual se constrói de retalhos de um cotidiano transformado em memória, instantaneamente, pelo ato fotográfico. Uma captura perfeita em sin-tonia com a cultura visual que conforma o seu olhar – o fotojornalismo reelaborado pelo tempo da espera do acontecimento, que não se faz mais ao sabor da lógica dos fatos publicamente memoráveis, mas na sintonia do passo a passo de quem caminha pela cidade atento ao que é estranhamente familiar.

A série em tela é composta por 17 fotografias, todas elas voltadas para o cotidiano instantâneo, nas quais a duração temporal é definida pelas múltiplas existências do fotógrafo: como cidadão, transeunte, pedestre, viajante, turista, enfim, um homem comum. Em Damm tal como em Cartier-Bresson,

o instante advém como kairós – ocasião e oportunidade, para ele,

a configuração fugidia é estabelecida na fração de segundo de

uma correspondência – ela se apresenta em uma lógica temporal

que lhe é própria, em sua ocasião (LissoVsKY, 1999, p. 98).

2 Correspondência por e-mail em 12 out. 2006.

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FigURa 34 - FLáVio daMM, bahia, XaRéo, 1954.

FigURa 35 - FLáVio daMM, bahia, 1954.

FigURa 36 - FLáVio daMM, noVa YoRK, 1957.

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FigURa 37 – FLáVio daMM, noVa YoRK, 1958.

FigURa 38 – FLáVio daMM, bRasíLia, 1962.

FigURa 39 – FLáVio daMM, paRis, 1989.

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FigURa 40 – FLáVio daMM, oRLando, 1989.

FigURa 41 – FLáVio daMM, RoMa, 1989.

FigURa 42 – FLáVio daMM, VEnEZa, 1996.

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do FigURa 43 – FLaVio daMM, oRLando, 1989.

FigURa 44 – FLaVio daMM, RoMa, 1989.

FigURa 45 – FLaVio daMM, VEnEZa, 1996.

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FigURa 46 – FLáVio daMM, Espanha, 2001.

FigURa 47 – FLáVio daMM, Rio dE JanEiRo, 2001.

FigURa 48 – FLáVio daMM, Rio dE JanEiRo, 2002.

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Figura 49 – Flávio Damm, Portugal, 2002.

Figura 50 – Flávio Damm, Portugal, 2002.

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A série começa em 1954, com duas fotografias da Bahia. Nessa época, ainda atuando na revista O Cruzeiro, Damm era deslocado para diferentes estados do Brasil, a fim de acompanhar repórteres ou, muitas vezes, ele mesmo era encarregado de escrever sobre os assuntos que fotografava. Leva sempre consigo sua câmera portátil com a qual “fisga” nacos da realidade que o circunda. Nas imagens em questão: o trabalho e o namoro.

Na continuação, mais duas fotos dos anos 1950, ambas de Nova York, onde Damm morou seis meses como correspondente da revista. Em ambas, o detalhe recai sobre a ação infantil. Na primeira, o pretenso chute na cabeça da estátua que parece sucumbir ao golpe; na segunda, alheio à pressa da mãe, o bebê toma sua mamadeira calmamente.

Na seqüência, uma foto dos anos 1960. Em Brasília, recém-inaugurada capital brasileira, as duas freiras que estão caminhando inscrevem-se na imagem como complemento à geometria da paisagem – pontos, planos, retas e curvas.

A seguir, há três fotografias de 1989, em lugares diferentes: Paris, Orlando e Roma. As fotos na seqüência se orientam pela reação a uma cena pública. Na primeira, meninos da escola observam o casal que, num beijo, mistura os corpos; na segunda, a menina tapa os ouvidos aos acordes da banda; na terceira, a pose das freiras é, inesperada-mente, desfeita pela entrada da criança na cena. Em cada uma, um novo desfecho ao sabor da captura do instante.

Dos anos 1990 são as três fotos seguintes: duas da Itália e uma de Marrakesh. Na primeira, um indivíduo aproveita o descanso para ler o jornal, deitado numa gôndola ancorada no cais. O alinhamento das gôndolas ao longo das fachadas dos prédios à beira do canal orienta o leitor da imagem pelas vias sinuosas de Veneza. Na seqüên-cia, em ambas as imagens, os indivíduos ficam submersos em relação à monumentalidade da edificação. Portas e passagens delineiam os caminhos abertos e interditados ao fotógrafo-flanner, que ainda assim não perde a síntese visual pelo estranhamento do olhar: o músico e a pomba; a mulher de chador e a bicicleta.

Na seqüência das seis fotos produzidas a partir do ano 2000, o espaço ibero-americano se constrói como um mosaico de fragmentos de um cotidiano dissonante. A narrativa se constrói no contratempo da imagem: de um lado, o olhar surreal congela cenas inusitadas. Do flagrante surrealista do homem em Lisboa com seu guarda-chuva, uma imagem da imagem, ao encontro da irreverência carioca: em uma foto mendigo posa, alinhado à pose da manequim; na seguinte, tenta-se vestir a manequim que ganha inesperadas pernas humanas. O olhar atento perfila no instantâneo o que é estranhamente comum.

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do As três demais são narrativas de geração, imagens que se tra-duzem em cenas, uma trajetória geracional. O ancião e a criança, cena na qual se encontram as pontas de uma vida; o casal e os gatos num paralelo de existências; e a seqüência final das noivas, num cortejo de expectativas projetado pelas ruas da cidade. Em cada uma, um detalhe, uma pista, um indício, nos remete à teia narrativa que tece as múltiplas histórias do cotidiano.

Inscrevendo-se voluntariamente na tradição bressoniana, Damm, ao colocar na mesma mira a cabeça, o olho e o coração, se-gue as lições do mestre e transforma-se, ele mesmo, num caçador de imagens. Na reflexão de Lissovsky, tal relação ganha densidade analítica:

A mística em torno da fotografia fez dele o arqueiro-zen: em razão de seu sentido superior, visa, de olhos fechados, o instante, onde o fortuito encontra seu alvo. [...] Ao fazer-se de si a isca da imagem, o fotógrafo polariza o espaço. No curto circuito desta entrevisão, a configuração dá-se a ver como suspensão temporal entre dois equilíbrios que imediatamente antes distinguiam aquele que visa e o que é visado – e que voltarão, logo após, a restabelecer-se. (LISSOVSKY, 1999, p.102)

O acontecimento e sua arquitetura são a síntese de uma trama visual. O resultado da espera do fotógrafo que capturou o encontro fugidio entre o acontecimento e a geometria, “o aparelho fotográfico, diz Cartier-Bresson, é o mestre do instante, questiona e decide ao mesmo tempo” (LISSOVSKY, 1999, p. 96).

Assim, o mundo imaginado pelas fotografias de Damm tem como protagonista os anônimos, como ritmo, o cotidiano, e, como espaço, as cidades. Nesse mundo, a diversidade cultural é o substrato de seu mosaico surreal. Concebida tanto como identidade-mundo, como alteridade-mundo, essa diversidade revela-se em relação a sua experiência de detentor de um certo olhar, que da dimensão local se projeta para a global. Nessa operação, Damm transforma o mundo na sua aldeia, no seu bairro.

o mundo como comunidade imaginada em sebastião salgado

Sebastião Salgado pode ser incluído na lista dos fotógrafos do-cumentais mais significativos da atualidade. Seus diversos trabalhos sobre as mais distintas regiões do mundo trazem a marca de seu olhar,

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que integra o local ao global, através de temáticas que, na contramão

da globalização, aproximam regiões pelos sentimentos de desespe-

ro, abandono, tristeza e conflito. A guerra, o trabalho em condições

inumanas, os conflitos sociais, os movimentos entre fronteiras são o

substrato de belas e impactantes imagens que conseguem mobilizar e

indignar. São imagens/agentes de um processo de produção de sentido

que se firma em oposição aos discursos oficiais.

Ganhador de vários prêmios internacionais que evidenciam a

ampla circulação de suas imagens, Sebastião Salgado é considerado,

por muitos, um cidadão do mundo. Nascido, em 1944, na cidade de

Aimorés, no interior do estado de Minas Gerais, Sebastião Salgado

faz parte de uma geração de migrantes que saíram do interior em

busca de melhores condições de trabalho e formação nas cidades

que cresciam, nos idos anos 1950. Em 1969, por conta da perseguição

política da ditadura militar no Brasil, Sebastião Salgado e sua esposa

Lélia ficam proibidos de voltar ao Brasil, tendo seu retorno liberado

somente nos anos 1980, com a Lei da Anistia. Ao longo do período de

exílio, Salgado trocou a economia pela fotografia, tendo trabalhado

em agências de renome internacional, tais como, Sigma, Gamma e

Magnum, bem como em revistas de mesma projeção, dentre as quais,

a Newsweek, Paris Match e Stern.

Em vários momentos da sua trajetória, Sebastião Salgado é

chamado a refletir sobre o seu fazer fotográfico, e dessas reflexões se

depreende a sua forma de pensar fotograficamente:

Talvez minha formação de economista tenha me permitido

concentrar em uma área, pensar, analisar, me situar na corrente

histórica do que acontecia em determinado momento, me situar

na fotografia, ligar minha foto a esta evolução histórica e viajar

aí. Para mim não existem limites de trabalho porque acho que

a grande barreira que existe para os fotógrafos de reportagem

e documentais é intelectual. Se a gente tentar compreender a

sociedade e ligar a fotografia a isto, não há ponto de parada.

[...] O sensacional do trabalho da maioria dos fotógrafos deste

gênero é lembrar a quem está bem e vive bem que existe uma

grande parte da população que não vive direito. Não podemos

viver sentados num vulcão ou numa bomba atômica. Ele sabe

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do que a função do fotógrafo e do escritor é trabalhar como um

vetor ligando estes dois lados do problema. Quatro quintos

da população do país vivem mal e têm a necessidade de viver

melhor. Devemos mostrar a problemática a quem decida, a

quem é classe dominante, a quem produz toda a riqueza do

país, explicando que a única solução para a gente poder viver

junto é dividir um pouco.3

O depoimento de Salgado revela uma concepção própria do ato fotográfico. Não há que se montar a pose, evita-se a mise-en-scène pré-fabricada, no entanto, a imagem não é dada naturalmente, resulta sim de um investimento de trabalho sígnico. Ao olhar a história, avaliando seu processo, propondo-lhe chaves interpretativas, levantando ques-tões, posicionando-se como agente de sentido, o fotógrafo reelabora a linguagem fotográfica assumindo elementos de textos que a precedem, conseguindo com isso uma expressividade, perfeitamente entrosada com a textualidade da época, que se associa como mensagem sig-nificativa. Desta maneira, a apreciação e consumo de tais imagens estabelece-se em função da polifonia da qual são tributários.

Ao procurar fazer com que suas imagens provoquem uma reação, Sebastião Salgado permite que essas só ganhem um sentido pleno numa relação dialógica e intersubjetiva entre diferentes agentes sociais. Em outro depoimento endossa tal perspectiva, ao valorizar a noção de fenômeno fotográfico:

A minha visão é uma tentativa de pensar não mais em mo-

mentos decisivos, mas em fenômenos fotográficos, dos quais

o fotógrafo participa até chegar ao ápice deste fenômeno. Aí o

fotógrafo realmente conseguiu a fotografia mais forte, podendo

então abandonar o fenômeno e passar para o outro, vivendo

os fenômenos e não mais passar pela tangente.4

Assim, o argumento que construí para ler as fotos de Sebastião Salgado envolve a noção do fotógrafo-exilado. A experiência do exílio, do desterro, vivida pelo fotógrafo na sua trajetória o faz mudar de rumo e enveredar por experiências visuais ancoradas numa chave 3 SALGADO, Sebastião. O fotógrafo militante: Sebastião Salgado delineia auto-retra-

to em conferência na Bienal de Fotografia de Curitiba, matéria publicada no su-plemento. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 set. 1996. Idéias /Livros, p. 4. Sobre a biografia de Salgado ver também: <http://www.terra.com.br/ sebastiaosalgado/p1/p_ project_fs.html >.

4 Entrevista a Joaquim Paiva apud LissoVsKY, Mauricio. O refúgio do tempo no tempo do instantâneo. Lugar Comum, Rio de Janeiro, v. 8, p. 89-109, maio/ ago. 1999. p. 98.

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de leitura de matriz marxista, das ciências sociais e econômicas da década de 1960.

Sua formação fotográfica se processa dentro da cultura visual do fotojornalismo engajado das concerned photographs e fortemente comprometido com a transformação social e com a produção inde-pendente. Paralelamente, Salgado desenvolve uma abordagem visual das experiências sociais marcada por referências à imaginária da arte neoclássica, valorizando a luz, as tonalidades de cinza, o contraste nuançado entre as zonas de sombra e luz, todas opções plásticas inspiradas na iconografia religiosa, plena de referências bíblicas como a do Êxodo.

A noção de religiosidade que orienta a produção visual de Salgado confunde-se com as formas de expressão da cultura popular de diferentes partes do mundo que, mesmo em situações-limites, preservam a sua condição humana, aquilo que faz com que os sujeitos pertençam a uma comunidade imaginada global.

A fonte de consulta ideal para se avaliar a produção fotográfica de Salgado e sua relação com a noção de mundo como comunidade imaginada, segundo a concepção de diversidade cultural acima ex-posta, é o site oficial do fotógrafo: http://www.terra.com.br/sebastia-osalgado/index.htm, composto por seus projetos fotográficos e um conjunto de informações e reflexões a respeito do seu trabalho e dos temas tratados.

A primeira página do site abre-se com uma fotografia, escolhida dentre as imagens que lá estão. Essa imagem varia e, a cada momento que se abre a página, deparamo-nos com uma nova imagem. Nessa página inicial, também se pode escolher o idioma que orientará a leitura. Ao escolher o idioma, entramos na abertura da página, na qual dois projetos são apontados como caminhos para a navegação: Migration: Humanity in Transition, 1993-1999 e The Majority World, three photo essays, 1977-1992. Ambos os caminhos cobrem a trajetória do fotógrafo desde o seu início o que evidencia a sua preocupação constante em projetar imagens de um mundo em transformação na virada do milênio.

Os três ensaios que compõem o caminho The Majority World intitulam-se: Other Americas – 1977/1984 (19 fotos); Famine in Sahel – 1984/1985 (21 fotos); Workers – 1986/1992 (39 fotos). Juntos perfazem um total de 79 fotografias. A distribuição geográfica fica definida pelo próprio título, com exceção do terceiro ensaio, que inclui uma gama variada de localidades, inclusive países industrializados.

Os cinco ensaios que compõem o caminho Migration: Humani-ty in Transition, cobrindo o período entre 1993 e 1999, intitulam-se:

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do Refugees and migrants (20 fotos); Africa Adrift (17 fotos); Struggling for Land (21 fotos); Mega-cities (17 fotos); The Children (12 fotos). Juntos os cinco ensaios perfazem um total de 87 fotos. No conjunto, o site possui 166 fotografias de mais de 20 anos de trajetória.

Ao longo desse tempo, Sebastião Salgado construiu uma noção de região-mundo delimitada pela noção de igualdade da condição hu-mana na diversidade das culturas. O mapa, apresentado no seu site,5 fornece a dimensão clara da sua cartografia fotográfica: o Terceiro Mundo.

No entanto, o conceito de igualdade em Salgado afasta-se da ló-gica iluminista, da igualdade na cena pública, entendida como disputa pelo poder e acesso ao mundo do liberalismo ou do neoliberalismo. Ao contrário, por estar fortemente ancorado na tradição de esquerda engajada nas lutas do Terceiro Mundo, a igualdade que prega investe no sentido comunitário das práticas sociais e na capacidade de a cultura, na sua diversidade criativa, buscar caminhos próprios de autonomia.

Se o espaço fotográfico se define na delimitação das regiões de conflito, o tempo das imagens se pluraliza nos tempos da história. Nes-se sentido, são esclarecedoras as reflexões de Mauricio Lissosvky:

Para Salgado, o instante – a necessidade de seu advento – já está dado de antemão. A espera do fotógrafo é a contrapartida do amadurecimento do instante. Ele nutre-se – cresce e apare-ce – da própria expectação. A composição e o enquadramento “clássicos” de Salgado são parte indissociável deste instante que aguarda pelo fotógrafo. A evolução da forma não se dá ao acaso; ela amadurece, converge para o akme (culminância), que a composição expressa. Neste sentido, “curva de abordagem” postulada por Salgado é bastante precisa. Ela assinala uma convergência que é em última instância teleológica: a inscri-ção dos “fenômenos fotográficos” em uma história sagrada. (LISSOVSKY, 1999, p. 98)

O tempo como duração se revela tanto na espera do fotógrafo pelo fenômeno fotográfico, como pela sua noção de peregrinação. Se-bastião Salgado, no exílio, construiu uma trajetória que se inscreveu como um projeto de vida, compartilhado com as comunidades exiladas por diferentes motivos. Entretanto, se o tempo presente caracteriza-se pela precariedade, o futuro se lança num tempo de expectativa reve-

5 Cf. <http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado/images/maps/map01.jpg>.

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lado nas imagens-síntese das crianças. Retratos-link para situações concretas, mas também símbolos de esperança.6

No mesmo lugar, em tempos diferentes, o olhar atento do fotó-grafo flagra cenas nas quais os protagonistas desempenham os mes-mos papéis: a mãe e seu filho. No entanto, ambas são diametralmente diferentes, mesmo se pensarmos na gama de possibilidades interpre-tativas. Não cabe aqui “desvendar” sentidos ocultos, ou ainda buscar uma realidade oculta por detrás das imagens. Cabe, sim, apontar a capacidade da imagem fotográfica de narrar histórias e de ser um dos importantes substratos da nossa memória coletiva. No entanto, nunca é demais lembrar: as imagens não falam por si só, é necessário que as perguntas sejam feitas.7

6 Ver fotos de Sebastião Salgado no seguinte endereço eletrônico: <http://www.ter-ra.com.br/ sebastiaosalgado /el/e_children.html

7 Por questões de direito autoral não foi possível a publicação das imagens. Consul-tar o seguinte endereço eletrônico:<http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado/el/e05rus.html

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conclusão

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entre os temPos, a título de conclusão Precária

Recentemente a perda de uma tia querida me colocou, mais uma vez, diante do desafio da morte e da perda. Na noite anterior a sua mor-te, desci da última prateleira da estante do meu quarto um dos álbuns de fotografias da minha família. A primeira foto que saltou da página do álbum foi a dela, um retrato em que ela estava sorrindo, tirado há sete anos. A sua imagem presente na foto não era mais a imagem que eu tinha das minhas visitas recentes ao local onde estava internada, tampouco as imagens descritas por quem a havia visitado nos seus últimos dias, uma imagem sem vida, de quem morre aos poucos.

Em uma das noites seguintes a sua morte, sonhei com ela, mas não identifico a situação, somente o rosto que ficou estampado no meu inconsciente. A imagem desse rosto era a daquela fotografia do álbum. O rosto que se inscreveu na minha memória como imagem a ser lembrada foi aquele projetado pela fotografia como realidade precária, que se atualiza a cada vez que voltamos a olhá-la. A presença na foto supriu a ausência na morte, mas a falta, essa é irremediável.

Uma outra vivência, também familiar, me faz pensar sobre o quão próximo as fotografias estão das experiências de reconhecimento e pertencimento. Há alguns anos, voltando da casa de saúde com o meu filho mais jovem, me deparei com a seguinte cena: sua irmã e seu irmão mais velhos haviam descido os álbuns com as nossas fotogra-fias. Reconheciam em suas próprias imagens a semelhança do irmão que recém-chegava, ao mesmo tempo que garantiam o pertencimento àquela trama de eventos e experiências que as fotos identificavam como da nossa família. As fotografias deles próprios quando pequenos, também chegando da casa de saúde, tomando o primeiro banho, enfim, definindo-se como sujeitos pertencentes a uma comunidade de sentido, permitiram que eles reconhececem aquele Outro como igual. Assim, as narrativas visuais criam vínculos poderosos na vida e morte.

Em ambos os casos, a experiência de ver fotografias aponta para as marcas temporais que operam na sua ressignificação. Eu e a fotografia da minha tia: um tempo passado que se atualiza no momento da minha experiência de ver, ao revê-la, me revejo diferente daquela época, sinto o tempo como duração, o tempo como marca de diferen-ça. Apesar da potente presença do referente na imagem, ambos os sujeitos não existem mais, tanto eu quanto ela não existimos mais da mesma forma, na mesma medida. Meus filhos e o álbum de família: o

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tempo passado se estende ao presente como uma continuidade que define o crescimento de ambos. Sua presença no passado garante a sua permanência no presente e os projeta como sujeitos na expectativa do vir a ser futuro.

Como um caleidoscópio que refaz a sua figura a cada novo movi-mento, as marcas temporais redefinem a imagem, possibilitando novas formas de reconhecê-la, interpretá-la e possuí-la pelos próprios sujei-tos do olhar a cada nova experiência de ver. Assim, mesmo sem negar a realidade que a engendrou, a imagem fotográfica se ressiginifica a cada novo tempo e a cada nova forma de se apropriar do sujeito.

A noção da precariedade do realismo fotográfico foi se definindo na consciência do sujeito contemporâneo num duplo e contraditório movimento, bem caracterizado por Vilém Flusser, no trabalho clássico Filosofia da caixa preta (2002). De acordo com o filósofo, as imagens são instrumentos de orientação dos homens no mundo. Estes, ao as-sumirem sua consciência histórica com o desenvolvimento da escrita linear, sublimaram a capacidade das imagens de serem suportes de imaginação. A luta da escrita contra a imagem implica a oposição entre consciência histórica e consciência mágica, e a elaboração de uma noção de história calcada no princípio da racionalidade. No en-tanto, a experiência histórica dos sujeitos acaba por imbricar ambas as substâncias expressivas e a reservar à fotografia, ou às imagens técnicas de uma maneira geral, um espaço de possibilidade para se ultrapassar a crise do texto escrito (FLUSSER, 2002, p. 10-11).

Desde o século XIX, as imagens técnicas permitiram que a so-ciedade rompesse com a “textolatria”, no entanto, sua programação cada vez mais controlada determinou a própria objetificação do sujeito. A reificação e fetichização das imagens técnicas são o corolário do processo sujeição do sujeito/operador ao seu próprio dispositivo, a câmera. Assim, dentro da concepção de Flusser :

o surgimento de uma consciência crítica no mundo pós-indus-trial deve estar necessariamente associada ao processo de des-magicização da imagem, ou ainda, de um retorno à consciência histórica radical (FLUSSER, 2002, p. 58-59).

Simpatizante da teoria crítica da Escola de Frankfurt, Flusser defende a urgência de uma filosofia da fotografia que reinscreva o sujeito histórico no seu próprio devir:

[...] a filosofia da fotografia é necessária porque é reflexão sobre as possibilidades de viver livremente num mundo programado

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por aparelhos. Reflexão sobre o significado que o homem pode

dar a sua própria vida, onde tudo é acaso estúpido, rumo à

morte absurda. Assim vejo a tarefa da filosofia da fotografia:

apontar o caminho da liberdade.

Ou quem sabe da utopia, como lugar da possibilidade.O princípio da magia por oposição à emergência de uma

consciência histórica é também discutida por Nobert Elias, nas suas considerações sobre o tempo (ELIAS, 1998). Para o sociólogo alemão, as experiências sensórias de duração, distância, seqüencialização, extensão, profundidade, altura etc., codificadas em instrumentos de delimitação espaço-temporal, são resultado de um aprendizado social de longa duração, ou aquilo que ele denomina de habitus. A resultante desse aprendizado é acrescentar uma quinta dimensão às quatro existentes na relação espaço-temporal. Essa quinta dimensão é a consciência do aprendizado sobre o tempo como categoria social, bem como de seus resultados e produtos – conhecimento adquirido sobre a natureza e a elaboração de equipamentos para o seu controle. Esse processo é denominado por Elias de processo civilizatório.

O processo civilizatório vai definir o tempo para as sociedades desenvolvidas segundo três princípios inter-relacionados: o tem-po como símbolo, o tempo como instrumento de orientação e o tempo como controle social. Assim observa o autor:

[...] já não é apenas o devir quadridimensional como tal que se

torna visível, mas também, com ele, o caráter simbólico das

quatro dimensões, em seu papel de instrumentos de orientação

para os seres humanos capazes de operações de síntese [...].

O tempo, que só era apreendido, no patamar anterior, como

uma dimensão do universo físico, passa a ser apreendido, a

partir do momento em que a sociedade se integra como sujeito

do saber no campo da observação, como símbolo de origem

humana e, ainda por cima, sumamente adequado ao seu objeto.

O caráter de dimensão universal assumido pelo tempo é ape-

nas uma figuração simbólica do fato de que tudo o que existe

encontra-se no fluxo incessante dos acontecimentos. O tempo

traduz os esforços envidados pelos homens para se situarem

no interior desse fluxo, em que determinam posições, medem

durações de intervalos, velocidades de mudanças, etc. (ELIAS,

1998, p.31-32)

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Mesmo sem incluir a fotografia como um dos mecanismos de controle do tempo, creio que as considerações de Elias ajudam a pen-sar a dinâmica dos tempos que se inscrevem nas imagens técnicas, como expressões simbólicas de uma experiência civilizatória, como signos que suportam relações sociais. Assim se podem conceber os tempos de subjetivação na fotografia entre o que captura e o que é capturado, entre as partes de uma negociação para a realização da pose, entre o sujeito fotografado e o sujeito fotógrafo. O deslocamento temporal promovido pela compartimentação do dispositivo fotográfico transfere a espera inscrita na pose para a espera da captura do instante que definirá o flagrante (LISSOVSKY, 1999, 2003), possibilitando a trans-codificação de ações em cenas e, das pessoas, em personagens.

A consciência da pluralidade de tempos que orienta a produção fotográfica como experiência contemporânea talvez seja o caminho da sua abertura como espaço de possibilidade e de autonomia do sujeito histórico, de acordo com Flusser. Projetando a imagem instan-tânea como uma temporalidade histórica, é possível redimensionar o impacto do acontecimento na consciência do tempo presente e, pa-ralelamente, indagar sobre a dimensão simbólica da instantaneidade. Identificar a capacidade evocativa das fotografias nas suas dimensões de continuidade e de ruptura, própria dos trabalhos de memória, permite indagar sobre a noção de tempo interior como dimensão histórica. Reconhecer a capacidade narrativa da imagem fotográfica, veiculada pela esfera pública, principalmente pela imprensa e pelo Estado, como agenciadora de uma memória histórica, permite operar sobre as implicações históricas entre ideologia e imaginação social, e assim, como queria Elias, operar sobre o tempo em relação à imagem como uma categoria do saber.

A experiência fotográfica se orienta pelo regime de historici-dade da contemporaneidade, marcado pelas noções temporais de ruptura, multiplicidade, instantaneidade, precariedade, entre outras. Vale, por fim, ressaltar os desafios que a imagem fotográfica enfrenta hoje, desafiada pelo entesouramento institucional e pelo colecionis-mo predatório, que transforma a fotografia em relíquia, em fetiche, remagicizando sua imagem e lançando-a no universo do mercado das trocas nada simbólicas.

Contra a mercantilização do passado e sua conseqüente estetiza-ção se levantam atores sociais de diferentes campos do saber e do fazer artístico. Manifestos das associações de historiadores contra o roubo e a depredação do patrimônio histórico, subscrições contra a cobrança de somas abusivas para o uso acadêmico de imagens somam-se às expressões artísticas, como aquelas de Rosângela Rennó

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e Cristina Guerra, sensivelmente tratadas por Anateresa Fabris (2004) em suas identidades virtuais, na discussão sobre os usos do passado pelo presente, e na urgência de projetar o futuro da imagem técnica em um horizonte de possibilidades que seja plural e autônomo.

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TURAZZI, M.I. Poses e trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo (1839-1889). Rio de Janeiro: Rocco: Funarte, 1995.

VASQUEZ, Pedro. D. Pedro II e a fotografia no Brasil. Rio de Janeiro: Index, [19--].

. Fotógrafos pioneiros no Rio de Janeiro: Victor Frond, George Leuzinger, Marc Ferrez e Juan Gutierrez. v. 3: antologia foto-gráfica. Rio de Janeiro: Dazibao, 1990.

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VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: por uma antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994.

VERON, E. Ideologia, estrutura e comunicação. São Paulo: Cultrix: Edusp, 1976.

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VILCHES, Lorenzo. La lectura de la imagem: prensa, cine, tv. Barcelona: Paidós, 1992.

VOVELLE, Michel. Ideologia e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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Fontes Orais:Flávio Damm, entrevistas realizadas nos dias 24/04/2003, 15/05/2003 e 7/10/2003, no âmbito do projeto CNPq: Através da Imagem: História e memória do fotojornalismo no Brasil contemporâneo (CNPq 2002-2004), depositadas nos arquivos do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF.

Fontes Visuais:Revista do Globo, Porto Alegre, ano 19, n. 470, 6 nov. 1948. Disponível em: <http://www.ipct.pucrs.br/cgi-bin/letras/letras.cgi>. Acesso em: 22 maio 2006.

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Page 247: !Livro POSES

Coleção Biblioteca EdUFF

O cotidiano dos trabalhadores de Buenos Aires (1880-1920) Norberto Osvaldo Ferreras

Em busca da boa sociedade Selene Herculano

História do anarquismo no Brasil - V. 1 Rafael Borges Deminicis e Daniel Aarão Reis Filho (Orgs.).

O poder de domar do fraco: construção de autoridade e poder tutelar na política de povoamento do solo nacional Jair de Souza Ramos

Cruéis paisagens Ângela Maria Dias de Brito Gomes

Literalmente falando Solange Coelho Vereza

Percursos do olhar: comunicação, narrativa e memória Marialva Carlos Barbosa

Rotas atlânticas da diáspora africana: da baía do Benin ao Rio de Janeiro Mariza de Carvalho Soares (organizadora)

Terras lusas: a questão agrária em Portugal Márcia Maria Menendes Motta (Org.)

Experimentação animal – razões e emoções para uma ética Rita Leal Paixão e Fermin Roland Schrammm

O Corpo em conexão – Sistema Rio Aberto Laura Pozzana de Barros

De pedra e Bronze: Um estudo sobre monumentos O monumento a Benjamin Constant Valéria Salgueiro

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Este livro foi composto na fonte Garamond.Impresso na 4 Pontos Studio Gráfico,

em papel reciclato 90g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa) produzido em harmonia com o meio ambiente.

Esta edição foi impressa em agosto de 2008.Tiragem: 500 exemplares

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