Livro. Que Acenda a Primeira Pedra. Ecos Da Cracolândia de Belo Horizonte - Autor. Luiz Guilherme...

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Este livro é resultado do trabalho de conclusão de cursoelaborado como requisito parcial para a obtenção do graude Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Toda a apuração do conteúdo histórico foi embasada nasrefefências citadas ao nal desta obra.

 Janeiro de 2016

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O qu a mmóra ama, ca tro. T amo com a mmóra, mprcívl. 

 Adélia Prado

Para Yasmin.

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Copyright © Crivo Editorial, 03.2016

...Que Acenda a Primeira Pedra – Ecos da Cracolândia de Belo

Horizonte. © Luiz Guilherme de Almeida, 03.2016

Edição : Haley Caldas, Lucas Maroca de Castro e Rodrigo Cordeiro

Projeto Gráco: Haley Caldas e Jaison Jadson Franklin

Capa: Haley Caldas

Reisão: Amanda Bruno de Melo

 Almeida, Luiz Guilherme de.

... Que acenda a primeira pedra : ecos da Cracolândia de BeloHorizonte / Luiz Guilherme de Almeida ; revisão: Amanda Bruno de

Melo ; projeto gráfco: Haley Caldas Martins Barbosa, Jaison Jadson

Franklin. – Belo Horizonte : Universo & Cidade, 03/2016.

192 p.

Originalmente apresentado como o resultado do Trabalho de

Conclusão de Curso (TCC), elaborado como requisito parcial para

a obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, com

habilitação em jornalismo, pela Universidade Federal de Minas

Gerais, em 2015.

ISBN: 978-85-66019-27-8

1. Política social. 2. Problemas sociais – Belo Horizonte (MG). 3.

Projetos sociais – Brasil. 4. Drogas – Aspectos Sociais. 5. Crack

(Droga) – Belo Horizonte (MG). I. Melo, Amanda Bruno de. II.

Barbosa, Haley Caldas Martins. III. Franklin, Jaison Jadson. IV.

Título.

 A447q

CDD: 361.1CDU: 304(81)

Crio Editorial Rua Fernandes Tourinho, 602, sala 502

30.112-000 - Funcionários - BH - MG [email protected]/crivoeditorial

“Revisado segundo o novo Acordo Ortográfco da Língua Portuguesa (De-

creto Legislativo n°54, de 1995)”

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Sumário

PREFÁCIO 7

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO 1 - ANTES DA CRACOLÂNDIA: UMBAIRRO E MUITA HISTÓRIADe Poeirópolis a Lagoinha 25Mudanças, mudanças, mudanças… 29“Tutti Buona Gente!” 31Modernismo, J.K. e o bairro no embriãoda metrópole 34Do córrego ao concreto: nasce o IAPI 40Enm, Metrópole! A boêmia ao estilo Lagoinha 46Um complexo inimigo 51Lagoinha hoje: cracolândia, memória e futuro 53

CAPÍTULO 2 - ENTRANDO SEM BATERRaspa da canela do diabo 57Sorvete sabor c… 60 Adílson tem fome de quê? 64O pedreiro que não sabe reconstruir… 67

Uma razão especial 72

CAPÍTULO 3 - COM OS DOIS PÉS LÁ DENTRO:PRAZER, CRACOLÂNDIA...Bem-vindo ao inferno onde a pedra não para 75Um coração pulsando 78Cara a cara com a realidade 81 Aqui, o Buraco é mais embaixo. E Quente. 84 Aviões sem asas 86Propósitos distintos, caminhos convergentes 89O camarote VIP 91

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O turno da madruga 93 Todo nal é recomeço (?) 97

CAPÍTULO 4 - ECOS…Uma miss sem faixa 101avião que não sai do chão, voa? 104O velho e novo amor... 108“Ser ou não ser, eis a questão” 111Nome do pai: Cracolândia 114

Não é justo para quem? 118O nó na garganta… 121...pouco como um rei ou muito como um Zé? 125 À espera da primavera 128

CAPÍTULO 5 - CONHECENDO O INIMIGO… e então se fez o crack 133 Terra à vista: pedra chega ao Brasil e emBelo Horizonte 138Perl brasileiro: quem são os usuários de crack? 141Fenômeno “Cracolândia” 149

CAPÍTULO 6 - HÁ QUEM VENÇA

Maratona de uma vida 151Falta a de Deus… 155Enquanto o pão não chega... 160Há quem vença 166

GRATIDÃO 181

BIBLIOGRAFIA 184

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PREFÁCIO

No livro-reportagem ...  Qu acda a prmra pdra – cosda cracolâda d Blo Horzot , Luiz Guilherme de Almeidanos convida a deixar de lado o olhar indiferente, com oqual olhamos cotidianamente as pessoas que consomemcrack, e a percorrer junto com ele os lugares onde elaspassam parte do dia ou da noite, alguns até parte da vida.

É um convite a parar e a escutar suas histórias, a se deixarafetar, como o fez o autor, pela existência de quem viveno mundo do crack.

 Tanto nas andanças pelo bairro da Lagoinha – doseu passado boêmio a convivência presente com umacracolândia – como nas paradas para ouvir as histórias deusuários de crack e de moradores, Luiz Guilherme nosmostra o quanto uma rica narrativa jornalística vem deum jornalismo disposto efetivamente a escutar as pessoas.De um jornalismo e de jornalistas que se deixam tocarpela presença e experiência do outro, que são capazes decompreensão mais do que de revelação e julgamento. Foiadotando tal postura que o autor conseguiu tecer, compoderosa escrita, uma narrativa densa e tocante sobreusuários de crack e sobre a cracolândia de Belo Horizonte.

... Qu acda a prmra pdra  (...) é um trabalho impregnadopela coragem, rigor e sensibilidade do seu autor. Coragem

para encarar um tema tão difícil e delicado, em funçãodos dramas humanos envolvidos. Rigor na pesquisa eapuração, o que vai na contracorrente de um jornalismo

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tradicional cada vez mais acomodado, preguiçoso, distantedas pessoas, dos seus problemas reais e das questõescoletivas que os revestem. Sensibilidade no tratamento

do tema, na atenção, escuta e respeito às pessoas e suashistórias. É assim que um assunto mal tratado ou tratadode forma inadequada, supercial, na prática jornalísticacotidiana, encontra em Luiz Guilherme uma abordagemsensível, típica de um repórter disposto a abrir-se paraescutar e compreender o outro.

Com esses ingredientes de um trabalho jornalístico dealta qualidade – apuração exaustiva e rigorosa, respeitono tratamento do tema e das pessoas envolvidas, e apotência da sua escrita -, Luiz Guilherme tece umanarrativa sobre a cracolândia e os usuários de crack que

também nos afeta e emociona profundamente. Como nãoadmirar a solidariedade de dona Adélia, proprietária deuma sorveteria encravada na cracolândia, em “Sorvt saborc...” ? E a sinceridade desconcertante de Davi, em “Ser ounão ser, eis a questão”? E a persistência da jovem Érica,que cotidianamente vai até a cracolândia buscar a mãe,

usuária de crack, em “ A spra da prmavra ”? Como não sesensibilizar com a amarga história de amor de Ronaldo, em“O vlho ovo amor...” ? Como não chorar ante a deniçãode vida, de felicidade e de futuro do menino Robinho, em“O ó a gargata...” ?

Impossível não se afetar por esse livro e não se deixar

tocar por essas histórias. Impossível segurar as lágrimasao ler algumas delas ou não sentir, como o autor, um nóna garganta. É um livro que nos provoca, nos convoca,

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nos emociona, nos marca. Impossível voltar a olhar umacracolândia ou usuários de crack com o mesmo olhar deantes. Impossível olhá-los de novo sem lembrar do livro de

Luiz Guilherme e sem ouvir os ecos das histórias reunidasem ... Qu acda a prmra pdra  (...).

O livro é um documento importante para Belo Horizonte,um presente de Luiz Guilherme para a cidade, para o bairroda Lagoinha e para as pessoas que entregaram ao autor

suas histórias. É um presente também para quem admirauma bela narrativa jornalística e acredita que o jornalismopode, com relatos assim, cumprir um importante papel nasociedade.

 Terezinha SilvaProfessora colaboradora do Departamento de

Comunicação da UFMG

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INTRODUÇÃO

O Pão Nosso de cada dia…

I.

Os dois tambores cinzas já estão a postos. Acostumadosa transportar leite, ali eles cumprem uma função deresponsabilidade um pouco maior. Comportam 50 litroscada e são preenchidos até o gargalo, quase transbordando.Não se pode desperdiçar um espacinho que seja.Certamente fará falta. As grossas tampas pretas fazemo trabalho de selar o conteúdo e manter a temperaturafervendo, enquanto são necessários, pelo menos, quatrobraços dispostos para arrastá-los até o interior da kombi.O peso de cada um corresponde proporcionalmente aoda função que cumpre; algo difícil de ser carregado, fardopesado, mas que a duras penas, chega lá. Dentro deles, umatemperada saborosíssima: caridade, afeto, respeito, amparo,

esperança, nutrição, esforço, dignidade, amor, empatia….

E claro: sopa da boa.

É quinta-feira, dia de sopão na cracolândia. Todos jásabem que quando cai a noite o ritual se altera um pouco.Mesmo que por alguns minutos, os cachimbos dão umapausa pra que as mãos se ocupem com outros objetos.Não é o único dia em que alimentos são distribuídos pela

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região, mas é sem dúvidas o mais intenso. Os diversosprojetos sociais que atuam na empreitada de distribuiralimentos à população de rua da capital mineira fazem

das quintas-feiras uma verdadeira congregação ecumênica.Espíritas, católicos, evangélicos, ateus, estão todos ali emprol do mesmo objetivo: alentar o corpo e a alma daquelesque carecem. Sem fanatismos religiosos ou demagogia. A missão estabelece que não há espaço para interessespróprios de igrejas, centros e ans, mas somente para o

interesse coletivo. É chegada a hora de trabalhar.

 Antes….

O projeto - Pão Nosso - abre suas portas e sua história.Fundado há 14 anos, tem liação na força de vontade e nanecessidade. Em 2011, a cúpula da Paróquia Santa Catarina

Labouré entendia que os limites do bairro Dona Clara,onde está situada, não poderiam ser seu único campo deatuação. O crescimento da população de rua seguia emritmo alarmante e a intensicação do consumo de drogasna capital preocupava o inquieto Padre Fernando. Naquelaépoca, a paróquia trabalhava apenas localmente, mas o

pároco via no trabalho social uma alternativa de auxílioao quadro que se agravava em Belo Horizonte. Carregavaconsigo um histórico de êxito, já que havia implantadoum projeto parecido quando morava em Governador Valadares. O projeto nasceu, então, da mobilização detoda a paróquia, que propunha uma fórmula já conhecida

de atuação, mas que nunca esgotaria sua função social: adistribuição de alimentos.

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O início foi atribulado. Ao comprarem a ideia do projeto,as pessoas vinculadas à paróquia começaram a se organizarpara atuar. O saldo de voluntários foi positivo, mas as

ações ainda eram incipientes. Cerca de 70 voluntáriosapareceram, mas sem o comprometimento que os planosde ação exigiam. Era preciso organizar os voluntários eotimizar a proposta. Imbuído nas outras atividades daparóquia, Padre Fernando não seria capaz de coordenartotalmente o projeto e precisava contar com alguém para

o posto. Foi quando a história de Afonso Ferreira cruzoudenitivamente com a do Pão Nosso.

Desde então, Afonso é o coordenador de atividades doprojeto. É um senhor baixinho, com cabelos crespose grisalhos, de fala e passos mansos. Dono de sorrisos

tão receptivos quanto a sua personalidade, não dispensauma camisa polo rigorosamente para dentro dos jeans,“ pra passar srdad ”. Católico fervoroso, foi funcionáriopúblico a vida inteira e recusou-se a descansar depoisde aposentado. Sentia a necessidade de se empenhar emoutra coisa, algo “como um chamado”. Seu trabalho ali é

imensurável. É responsável por todas as etapas do projeto,principalmente as de organização logística, administraçãonanceira e executiva. Tudo ali tem um pouco do seu suor,apesar da modéstia que ele mesmo atribui ao seu papel.Ele conta que ao longo dos anos o projeto teve seus altose baixos, e que no momento vive na linha tênue entre a

estabilidade e os prejuízos nanceiros, mas sem que desistirtorne-se uma opção. “ A mha fução aqu é muto mas qucoordar, sso qualqur um fara. É ão dxar d mara algumaqu sso aqu morra ”.

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 A sopa quentinha que chega aos moradores de rua eaos usuários da cracolândia passa por processos longos,desconhecidos para a grande maioria. Tudo começa nos

contatos de Afonso para que doações e negociações sejamconcluídas semanalmente. São inúmeros os fornecedoresde alimentos: sacolões, supermercados, padarias,frigorícos e pessoas comuns. Muito daquilo que é sobejopara comercialização nesses estabelecimentos chega atéa paróquia em forma de doações. São peças de carne,

frutas, legumes e verduras que seriam descartadas, masque ali dentro encontram um destino melhor. O contatocom revendedores de utensílios descartáveis tambémé constante, em vista da quantidade necessária para adistribuição dos alimentos. “ A gt cota com mutas pssoasamgas, qu doam um pouco d dhro, tmpo ou os própros

almtos. São parcros d aos a o, qu ajudam a matr umacausa vva. Sm ss auxílo dls, sra vávl cotuar.”

 Afonso controla toda a parte nanceira com a ajuda deuma pequena equipe. De seu escritório, nos fundos daparóquia, ele faz telefonemas, autoriza pagamentos,

coordena o uxo de caixa e segue angariando outras fontesde renda para o projeto. Tudo é feito de maneira muitosimples, utilizando cadernos e livros para a contabilidade,mesclados com alguns raros cliques num computador.Estima-se que, mensalmente, pelo menos R$ 4.000,00reais sejam gastos com todo o projeto. O dispêndio cobre

os custos de aquisição dos alimentos, pagamento de contase manutenção da estrutura na paróquia, entre outros. Aarrecadação é feita através de doações, comercialização

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do artesanato produzido pela comunidade e eventoscomemorativos. Afonso faz um verdadeiro malabarismonanceiro para manter tudo funcionando. “ É tudo smpr

muto a cota. Um mês sobra cm, duztos, quato o outro a gt prcsa arrcadar mas. Smpr o lmt. O qu mporta é darcota cotuar ”.

 Ao menos de um gasto ali ele está isento: mão de obra. Todo o trabalho é feito por voluntários. Atualmente são

30 pessoas empenhadas no projeto, que atuam em diversasfrentes. Enquanto Afonso trabalha com uma equipereduzida na coordenação, outra, composta apenas pormulheres, trabalha na cozinha. Elas são as responsáveispor todas as etapas de preparação da sopa. São cerca dedez senhoras já aposentadas, algumas ali com mais de

55 anos, que passam suas tardes de quarta e quinta-feiratrabalhando. Chegam cedo para lavar, picar, descascar erefogar tudo.

O comando ca por conta de Alaíde. Uma senhora de“60 poucos aos ão rvlados, para matr a smpata! ” comdisposição adolescente. Enquanto conta causos, ela

prepara e prova a sopa constantemente. Nada sai dali dedentro sem seu aval. Ela e as companheiras debruçam-sesobre dois caldeirões enormes num incessante trabalhode mistura e preparação da refeição que dura pouco maisde três horas. O calor na cozinha impecavelmente limpa ébruto, apesar das janelas e dos ventiladores por todos os

lados. A qualidade da sopa é ímpar, indiscutível. A broade fubá com café da chegada abre espaço para uma tigelanada modesta, mas cativantemente saborosa.

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Nada tira dessas senhoras a alegria contagiante quecaracteriza o ambiente. Estão ali entre amigas. Proseiamsobre as famílias, suas vidas e as das mais de 400 pessoas

que alimentarão em breve com seu esforço. O afeto quededicam à preparação da sopa é certamente o temperomais saboroso da mistura. Insubstituível, é justamenteele que move igualmente as outras pessoas no projeto,como faxineiras e os responsáveis pela triagem dos pães efrutas que serão distribuídos. “Fazmos muto pouco ada ” é

a frase que mais se ouve ali dentro. Nenhuma cara cansadaou reclamações por canto algum. Já trabalho e empatiatransbordam.

Depois de horas na preparação, a sopa é colocada nosdois tambores cinzas que são arrastados para a Kombi do

projeto. Junto a eles, garrafas d´água, frutas e pães. Umaequipe de cinco pessoas é responsável pela distribuiçãonas ruas. Com o veículo estocado e todos os voluntáriosjá presentes, é dada a hora de partir. Os destinos serão os viadutos do Complexo da Lagoinha e a cracolândia.

II.

 Todo o processo de distribuição segue uma rotina jáestabelecida. Duas pessoas servem a sopa, enquantooutra a entrega junto com os pães para a la indianaque se forma no local. Mais atrás, no porta-malas, outra

pessoa tem a tarefa de repassar a água e as frutas. A quintapessoa atua como coringa, ajudando em todas as funções,caso necessário. Os que são alimentados já conhecem o

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esquema e antes mesmo da chegada da kombi já formamum esboço de la. Não há confusão, apesar da quantidadede gente. Cada cabeça tem direito a receber uma unidade de

cada item oferecido. Caso ainda sintam vontade, poderãorepetir a sopa quantas vezes quiserem. Depois de poucomais de uma hora embaixo do viaduto Senegal, a kombiparte para a cracolândia.

 Ali o funcionamento muda um pouco. Já é noite e o local

morbidamente iluminado exige cuidados. Apesar de muitosjá esperarem a presença do projeto, é comum que usuáriose o próprio movimento do tráco se assustem com achegada de um grupo de pessoas num carro. A subidaentão é feita com cautela, sem aceleração, deixando claroque a Kombi não oferece perigo a ninguém ali. Estacionada

na margem direita da rua, bem em meio aos usuários, adistribuição recomeça. Na cracolândia não se forma umala exatamente, mas sim pequenas aglomerações que vãochegando aos poucos e rapidamente tomam conta da cena.

 A procura pela água é enorme. Sedentos, muitos usuárioschegam a preterir a sopa e procuram logo as garranhas

que ainda restaram. As pupilas arregaladas dão o tomdaquela noite: movimento intenso. Os que têm fomerecebem seus potes e se sentam por ali mesmo na calçadaou ao redor da Kombi. Enquanto alguns falam bastante,outros estão visivelmente experienciando o auge da noia.Mal conseguem falar, muito menos estabelecer qualquer

contato. São homens e mulheres que mais parecem zumbis,tamanha é a sua desconexão com a realidade. Alguns delesprecisam ter as mãos amparadas ao receber os alimentos

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para que não os deixem cair logo em seguida. Outros nãoconseguem nem agradecer ou formular algo. Combalidos,recebem a refeição e seguem na direção oposta, sumindo

de vista outra vez.

 As mulheres têm preferência de chegada, enquanto oshomens costumeiramente pegam um número maiorde pães e frutas. A distribuição dura até o último fareloou gota ndarem, sem exceção. Durante o processo, o

tempo parece congelar. São tantos fatos simultâneos aserem captados pelos sentidos que quem está ali presenteraramente se preocupa em acompanhar o relógio. Acâmera é lenta e muita coisa é paradoxal ao extremo. Cenassurreais da degradação humana acontecem ao mesmotempo em que episódios de companheirismo chamam a

atenção. Enquanto alguns usuários estão tão fracos para selevantarem e buscarem o alimento, outros se preocupamem pegar um pouco e cuidadosamente depositar ao ladodeles, que uma hora ou outra recuperarão os sentidos eterão fome. Tudo isso se desenrola em meio ao lixo e aointenso consumo de crack. Algumas pessoas tomam a

sopa enquanto fumam pedra. Algumas das pessoas que trabalham para o tráco tambémse aproximam e tomam a sopa. São discretíssimos.Costumam acenar com a cabeça em agradecimento enada mais. Por imposição do trabalho ou não, recebem osalimentos e voltam ao posto no alto da rua José Bonifácio,

onde observam e coordenam o movimento noturno. Alguns moradores de rua que cam pela outra banda doComplexo da Lagoinha também passam pelo local. Nem

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todo mundo está ali pra fumar crack, mas a presença deleé sentida por todos.

É comum que outros projetos sociais façam o mesmo trajeto.Enquanto a sopa do Pão Nosso vai sendo distribuída, umgrupo evangélico sobe a rua de carro, cumprimentandoos presentes. “Vjo qu aqu tá bm srvdo! ”, grita alguém dedentro da van, que parte em direção a outro ponto. Essacomunhão de apoio vindo das diferentes crenças é algo

bastante peculiar na cracolândia. Enquanto alguns gruposoptam por uma aproximação religiosa, com atendimentoindividualizado, outros preferem única e exclusivamentea distribuição de alimentos, sem que haja algum tipo depregação. Contudo, o fato em comum que os conectamé sempre o mais importante. Estão todos ali trabalhando.

Sem distinção, sem lavagem cerebral religiosa ou algoparecido. Não estão ali para arrebanhar éis e gostam queisso que bastante claro.

Quando os alimentos chegam ao m, todos os que quiseramcomer já estão fartos e se dispersaram. Puderam comere repetir, tamanho o reforço que a refeição proporciona.

 Alguns usuários guardam as doações para outro momento,já que o crack muitas vezes lhes rouba a fome imediata. A equipe do projeto faz uma última checagem entre eles,perguntando quem comeu ou não. Só ca de estômago vazio quem quiser.

O saldo da noite é comemorado. Mais de 100 litros de sopaforam ofertados, somados aos 400 pães, quilos de frutas e

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garrafas d´água. Tudo isso em pouco mais de três horas. A sensação da equipe do projeto é de mais uma noite desucesso, mais um trabalho bem-feito, sem sobressaltos.

Sentem-se visivelmente graticados por estarem ali. Abraçam-se, fazem uma oração simples em agradecimentopela noite de trabalho e partem de volta à paróquia. De lá, voltarão para suas casas, onde aguardarão pelas próximassemanas de trabalho.

Para aqueles que cam na cracolândia, a noite continua. A pedra não para.

III.

 Já são 14 anos de trabalho e empenho constantes para apopulação de rua de Belo Horizonte. Ininterruptas quartase quintas-feiras se passaram e muitas outras ainda estãopor vir. Equipes e pessoas entraram e saíram ao longo dotempo, mas deixaram um pouco dos seus legados a cadanoite. Em retorno, receberam muito como seres humanos.

O impacto que esse projeto causa jamais conseguirá serquanticado ou qualicado. Mereceria um livro por si só,ao menos.

O Catolicismo acredita que, dentre outros tantospredicados, Catarina Labouré tenha se santicado graçasà sua dedicação à caridade e ao altruísmo para com os

pobres nas ruas francesas do século XIX. “S obsrvarmosbm as pquas cosas, farmos bm as grads ” era o seu grandelema.

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O que une o projeto Pão Nosso aos tantos outros queatuam nas ruas e na cracolândia de Belo Horizonteé justamente esse olhar. O da empatia e da caridade

ao próximo. Buscam trabalhar num propósito linear,que tenha por onde começar e chegar, com extremaseriedade e dedicação. Da pequena ação à grande. Dasprimeiras 10 sopas às 400 por noite. Desde seu início,diagnosticou-se a carência por programas que pudessematender à população de rua belo-horizontina de forma

digna, caridosa, empática, livre de qualquer interesse oupré-julgamento que a sociedade viesse impor. Fossemusuários de crack, mendigos ou prostitutas, a intençãosempre foi a de acolher e desenvolver um trabalho queoferecesse momentos de dignidade a um segmento ocultoda população, constantemente marginalizado e visto como

pragas sociais.

Dos pequenos aos grandes detalhes, os caminhosdesses projetos que se cruzam são longos e tortuosos. As diculdades até aqui foram e ainda são imensas, detodos os tipos. Uma delas é a falta de reconhecimento

pelo trabalho executado. Outra, a baixa adesão daquelesque poderiam fazer muito mais, mesmo que partindo depequenas ações. Grande parte da população não faz ideiado que acontece embaixo dos viadutos, nas vielas escurasdo baixo Centro ou na Cracolândia. Quem são esses loucosque usam drogas ou moram nas ruas? Por qual razão não

param? Quem são essas outras que perdem seu tempoalimentando desconhecidos pelas noites?

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 As respostas para essas perguntas nunca farão total sentidoou talvez nem existam de fato. Entretanto, caso elastivessem que partir de algum lugar, este certamente exigiria

imersão como principal combustível à compreensãoda coisa como um todo. Assim como foi o projeto PãoNosso para a realização deste trabalho que agora vocêlê. O projeto abriu caminhos, como um trampolim parao mergulho profundo que a temática exige do jornalistadisposto a abordá-la. O acompanhamento próximo, loco,

permitiu que toda uma rede de contatos fosse construída eque os mais diversos personagens – alguns deles contidosaqui, neste trabalho – desabrochassem ao alcance dosolhos, permitindo que suas histórias fossem contadas. Elessão a verdadeira história, essa escrita em páginas da vidareal.

Só é possível chegar a algum lugar tendo passado poroutros ao longo do percurso. As observações e conversasque culminaram na história acima cumprem esta lógica. Toda a produção a seguir só foi possível devido àspossibilidades abertas pelo acompanhamento do projeto.Foi dessa forma que a imersão se tornou possível.

Convido você a (re)fazer esse percurso comigo. Assimcomo foi para mim, espero que essa realidade seja umainstigante e desaadora porta de entrada a partir da qualembarcar e conhecer um pouco do submundo do crackem Belo Horizonte. Quando surgiu, de onde veio, como

se deu a construção dos cenários históricos, como é aCracolândia e quem são algumas das pessoas afetadasdireta e indiretamente por pequenas lascas de pedra tãodevastadoras.

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Enquanto tivermos receio de mergulhar no desconhecido,nunca veremos nada de novo. Continuaremos a ver sóaquilo que todos já viram…

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CAPÍTULO 1

 ANTES DA CRACOLÂNDIA:Um BAIRRO E mUITA HISTÓRIA 

DE POEIRÓPOLIS A LAGOINHA 

O bairro Lagoinha carrega consigo um peso histórico dosmais relevantes na construção identitária de Belo Horizonte.Como um intrigante personagem em uma trama, abrigaem seu passado a constante dualidade entre o bem e omal, o bom e o ruim, o gozo ou a tristeza, diculdadesou vantagens. Guarda pra si e aora, ao mesmo tempo,

histórias potentes dos diversos personagens que deixaramsua marca no local, em tempos longínquos do atual,quando a vida seguia um ritmo menos acelerado, maisromantizado até. A Lagoinha oferece àquele que o adentraa característica peculiar de se auto explicar; sua históriaajuda a compreender a da capital mineira e se confunde

com ela, desde os áureos tempos de uma sociedade jásepultada, guardando pra si alguns segredos adormecidos.Para conhecer boa parte de sua essência é preciso adentrá-lo de cabeça, partir do marco zero, sem meias histórias….

O ano é 1897 e a então - Porópols  - apelido jocoso dadoà capital – é solenemente inaugurada a 12 de dezembro,

com o nome de Cdad d Mas . A mesma poeira quecaracterizava a então recém-nascida Belo Horizontetrouxe consigo da distante Europa a ideia de construir uma

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cidade planejada. Naquela época, a prática de construçõese reformulações urbanas pelo poder público era o carro-chefe do desenvolvimento urbano, e visava adequar as

cidades a um modelo pré-elaborado. Queriam uma capitaldiferente das demais do país até então: planejada, pensada,estruturada. Tais grandes transformações no sítio de BeloHorizonte eram justicadas pela ideia de modernização,melhoramento da infraestrutura e da própria estética dacidade, que tinha Ouro Preto – então capital – como

modelo mais próximo do moderno. Munidos do discursoe conceito desenvolvimentista, o poder público confere ànova Belo Horizonte seu marco zero.

O provinciano Curral Dl R  cede espaço para a construçãoda capital do estado. O lugar foi escolhido em parte peloseu potencial de expansão territorial, clima e cursos d´águanascidos ao pé da Serra do Curral que abasteceriam apopulação. Através da Comissão Construtora da NovaCapital, instalada em 1894, o antigo arraial recebe oplanejamento de uma cidade moderna, com largas avenidas,boa infraestrutura, mas que nascia com um problema deberço, algo então ignorado: carecia de uma identidade em

completude. É bem verdade que existia vida anterior aosesboços de mapas, avenidas e traçados de área urbana danova capital. E como havia. Na área suburbana - fora doslimites da Avenida do Contorno, que demarcava o cinturãourbano - as águas de um pequeno córrego promovidoa lagoa, fora dos limites da Avenida 17 de Dezembro

no traçado original da cidade, não deixavam mentir.Oportunamente batizado de Lagoinha e inaugurado emconjunto com Belo Horizonte, o bairro já respirava.

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Cravado entre as colônias agrícolas Carlos Prates, Américo Werneck e uma pedreira, o agora ocialmente batizadobairro da Lagoinha compunha a 6ª Seção Suburbana de

Belo Horizonte, assim delimitado pela primeira PlantaGeral da Cidade de Minas. No traçado original da cidade,estava localizado na área suburbana e correspondia auma pequena vila que se formara e ganhara corpo nasproximidades do córrego de leito raso, uma vez que emdeterminado ponto suas águas empoçavam, formando

uma pequena lagoa. A região recebia ocupações antesmesmo da inauguração ocial, contribuindo para oprimeiro e ainda incipiente recenseamento demográco danova capital, que estimava cerca de 13.500 habitantes atéentão.

Belo Horizonte tinha a missão de aproximar as dispersas vilas existentes que se desenvolveram pelos arredores dacidade, com o intuito de urbanizar de maneira eciente eigualitária cada seção e seus novos bairros. As ocupaçõespelo bairro da Lagoinha eram irregulares e desorganizadas.Como a área original do bairro correspondia a uma

considerável porção de território, as famílias que migravampara o local iam se assentando de maneira desordenada.Com um espaço tão grande, as famílias iam ocupandoporções de terra distantes entre si, sem levarem em conta anoção de bairro que passara a existir com o seccionamentofeito pelo planejamento da capital. Dentro do próprio

bairro existiam distâncias importantes entre as casasconstruídas e as vilas assentadas, aspecto também visto emoutros bairros que se formavam por toda a capital. Para

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a população de um antigo arraial, desprender-se do seucaráter bucólico e se acostumar com as denominações,os limites e o tal progresso não seria algo de assimilação

imediata.

Durante a primeira década do novo século, as notícias danova capital percorriam o estado inteiro. Não fazia tantotempo assim que o Brasil deixara de ser um Império parase tornar República e os ventos de mudanças ganhavam as

Minas Gerais com a mesma força das elites regionais quejá se formavam, naqueles que seriam passos importantespara a consolidação das oligarquias do estado e de suaforça política republicana, concomitante à força paulista,que também se destacava. Sendo o estado mais populosoaté então e com maior número de representantes na

Câmara dos Deputados, Minas Gerais despontava comforça e importância nesses primeiros anos de Repúblicatanto no aspecto político quanto no econômico, sendo ogrande produtor de leite do país e o segundo principal polocafeeiro, atrás apenas de São Paulo. Naquela época, ambasas produções e tudo aquilo relacionado a elas ditavam os

rumos econômicos e políticos da recente República.

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mUDANÇAS, mUDANÇAS, mUDANÇAS…

Belo Horizonte – agora nome ocial, desde 1901 –pegava carona no momento importante do estado etambém dava passos por si própria. Passado o primeiromomento da inauguração e adequação à vida na novacapital, era preciso seguir em frente e encarar um processo

de urbanização que, por mais que fosse planejadopreviamente, necessitaria de muito trabalho por parte detodos aqueles que agora optavam pela cidade como destinopassageiro ou permanente. A prefeitura seguia investindoem infraestrutura urbana, como o calçamento de ruas,construção de redes integradas de esgoto, abastecimento

de água nos bairros, bem como em outras preocupaçõesestruturais que eram naturais de uma cidade recém-inaugurada.

Por trás da obrigação em atender as necessidades básicasde uma crescente população, os governos municipal e

estadual acreditavam que tais investimentos estimulariama imigração e povoamento da capital, além de incentivarcomércios e indústrias a apostarem no local como um polode expansão em potencial. A apuração histórica trouxe àtona que a importância dada a essa fase de estruturaçãourbana era tanta que a Prefeitura se viu obrigada a contrairum empréstimo considerável, com intuito de dar sequênciaàs obras tidas como inadiáveis naquele momento.

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 A Lagoinha testemunhou de perto algumas dessasmudanças. Não muito diferente de outros bairrossuburbanos, encarava seus primeiros anos com diculdades

estruturais que aos poucos foram sendo direcionadas. Emuma capital planejada por setores, viu serem priorizadas asmelhorias por toda a faixa central urbana em detrimentodos bairros que mais apresentavam problemas. Viu chegariluminação e transporte apenas em 1909. Em posiçãoestratégica para o acesso à região periférica, por estar entre

a zona rural e a urbana, a Lagoinha recebeu a estaçãoferroviária que servia como plataforma de desembarquepara os produtos que chegavam e abasteciam a capital. Ainda em 1910, com a inauguração do ramal férreo queligava Belo Horizonte a Divinópolis, surgem os primeirosestabelecimentos comerciais no bairro, oferecendo

produtos alimentícios, vestuário e artigos de primeiranecessidade. Rapidamente, a gleba agrícola que existia nacapital da pré-inauguração tornou-se a região suburbanamais populosa de Belo Horizonte. A Lagoinha pintavacomo expoente de uma cidade que crescia de fora paradentro, da periferia para o centro, e não o contrário, como

previa o planejamento original da capital.

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“TUTTi BUOnA GenTe!” 

Em meio a toda essa efervescência, a Lagoinha ganhavacorpo e identidade. Belo Horizonte não se ergueusozinha. Imigrantes de diversas cidades de Minas Geraise os italianos vindos de outros estados formaram partedo operariado envolvido na construção da capital eenxergaram na Lagoinha a possibilidade de assentamento

e início de vida numa nova cidade. Portugueses, turcose espanhóis também chegaram ao bairro sob as mesmascircunstâncias, estabelecendo-se como os primeiroshabitantes permanentes do lugar.

O bairro começava então a incorporar alguns aspectos queo caracterizariam ao longo da história de Belo Horizonte. A proximidade da Lagoinha com o Centro e com a linhade trem fez com que um expressivo número de pessoasfosse se acomodando nas pensões das redondezas e, aopasso que a cidade e sua mixórdia cultural se expandiam,o bairro tornava-se uma área boêmia, dotada de bares,cabarés, restaurantes e de uma vida noturna agitada. Aindasim, era o bairro do proletariado, que passou a abrigar, aospoucos, os imigrantes que chegavam à capital em busca deoportunidades nas indústrias, bem como os remanescentesda construção da cidade e suas famílias. Naquela primeiradécada, era possível contabilizar mais de 25 famílias deimigrantes na Lagoinha, como os Marchetti, Gramiscelli, Abramo, Abuid, Vaz de Melo, Bonome, Scotelaro, Vanucci,Brandão, Barreto, Scarpelli, Rocco, Pirolli, Campolina, Varela, Andrade, Lapertosa, Trotta, Nappo, Silveira,

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Carabetti, Scalabrini, Diniz, Thibau e muitos outros quexaram residência no bairro.

 As famílias italianas tinham uma relação especial com aLagoinha naquele início de século. Muito do caráter ítalo-brasileiro de parte da população belo-horizontina deve-se àchegada e xação dessas primeiras famílias na região. Eramcalabreses, bolonheses, napolitanos, sicilianos, corsos,genoveses, veroneses, venezianos, que, como mesmodizem, eram “tutt buoa gt ” - todos boa gente - ajudandoa construir o espírito alegre e, mais tarde, boêmio, que aLagoinha viria a ostentar. A Rua Itapecerica era pontocerto de encontro dos italianos no bairro, que se reuniamali para ler os jornais vindos da pátria. Ainda na mesmarua cava o bazar do velho Ugo, que comercializava tudoquanto era objeto usado. Na porta de sua loja cava deresguardo uma cadela tão velha quanto ele, nomeadaironicamente de - Suamã  - e que passava as tardes catandopulgas e espanando moscas das feridas. A cada cuspida do velho italiano, Suamã   latia alto, assustando os corajososfrequentadores da loja de bugigangas.

 Já o bar de Afonso Trota, na mesma Itapecerica, semprefoi propriedade italiana: começou com a família Vanucci epassou para os Pazzini até ser adquirido pelos Trota. Serviacomo ponto de reunião dos velhos italianos viciadosno jogo dos Três Sete – o Passatella – que colocava emdisputa generosas quantidades de cerveja. O ganhador

era realmente obrigado a beber sozinho o que ganhasse,sendo inúmeras as ocasiões em que o felizardo levantava-se e ia vomitar toda a cerveja para depois continuar a jogar

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e a beber. Logo na entrada da Pedreira Prado Lopes as várias famílias italianas eram comandadas pelos Colatti,famosos por reunirem os amigos todos os domingos para

uma farta macarronada que tinha até lista de espera. Em volta da mesa estavam sempre os Nardi, os Colatti, osFranco, os Ferroni, os Ricchi e os Schiaretti. Tudo regadoa muita cerveja pendurada no Bar do Leza, um gigantescocomerciante com aparência de Buda e que viria a sertorcedor renomado do antigo Palestra Itália, hoje Cruzeiro.

 Ao longo dessa primeira fase, a Lagoinha promoveu,mesmo que involuntariamente, o fortalecimento de umarede de sociabilidade e satisfação de seus moradores atéentão ímpares em relação aos que outros bairros da capitaldemonstravam. Pertencer ao bairro era motivo de afeto,de ligação com suas raízes, de estar em comunhão com

o que a nova capital propunha. Ao mesmo tempo emque o espaço urbano de Belo Horizonte se consolidava,a Lagoinha já representava algo maior que um simplesbairro. O caráter popular do bairro ajudou a reforçar aimagem de uma cidade híbrida, que contava com culturase valores distintos.

 Tanto Belo Horizonte quanta a Lagoinha se apoiavamnesse traço identitário para se distinguirem de outrascapitais, de outros bairros. Ao nal da 1ª Guerra Mundial,a capital mineira já contava com cerca de 54.000 habitantes,sendo a região noroeste, onde se situa a Lagoinha, a

mais populosa. Novos desaos e signicativas mudançasurbanas e sociais viriam à tona com o progresso emergenteda época, afetando a vida na capital bruscamente. O bairroainda tinha muito o que viver, ver e caminhar…

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mODERNISmO, J.K. E O BAIRRO NOEmBRIÃO DA mETRÓPOLE

Em 1920, Belo Horizonte estimava ter 55.000 habitantesem suas zonas urbanas e rurais. Os reexos da criseque assolou boa parte do mundo devido à PrimeiraGuerra eram sentidos na economia do município, queenfrentava um verdadeiro arrocho dos cofres públicos.

O dinheiro internacional que permitiu ao poder públicodar prosseguimento aos investimentos em infraestruturaurbana virou polpudas promissórias dos empréstimoscontraídos nos primeiros anos de capital. A populaçãocrescia em ritmo exponencial, algo inesperado peloplanejamento original, que calculara uma população

máxima de 200.000 habitantes até metade do século.Pouco mais de vinte anos de capital se passaram e mais deum quarto dessa estimativa já havia sido superada.

Diante desse cenário, a contínua necessidade deinvestimentos em infraestrutura urbana a longo prazofuncionava também como chamariz para que cada vezmais as indústrias escolhessem a nova capital como localde estabelecimento. O dinheiro trazido e movimentadopor essas indústrias seria de suma importância nessesprimeiros anos de cidade, pois, como descrito, o cenárioeconômico do município não era dos mais calmos. Eracomum, desde então, indústrias forasteiras optarem porse estabelecerem em Belo Horizonte mediante vantagensrecebidas, como a diminuição na carga de impostos a queeram submetidas, tudo para que pudessem chegar e car

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de vez, investindo no local. Essas alternativas permitiramque a prefeitura continuasse a arrecadar de alguma formae, a partir daí, muitas escolas e os primeiros hospitais

saíram do papel, atendendo assim uma população cada diamais diversicada.

Outra opção encontrada pela prefeitura era bastantenatural. Com uma vasta porção territorial em mãos, ogoverno enxergou na comercialização de lotes e seções de

terra uma atividade lucrativa e que atendia mais de umanecessidade ao mesmo tempo. Ao comercializar porçõesde terras em áreas suburbanas, a prefeitura conseguiaengordar seu caixa arrecadando sobre um produto natural,ao passo que expandia e populava novas regiões. Para seter uma ideia, ao nal da década de 1920, quase 50 novas

subdivisões haviam sido aprovadas, contabilizando maisde 1.100 quarteirões e novos e expressivos 14.900 lotes.

Os espaços recém-populados teoricamente sairiamganhando, já que passavam agora a serem atendidos poruma prefeitura, que deveria oferecer serviços básicoscomo iluminação pública, transporte e calçamento das

 vias. A lógica era simples: mais terra, mais gente, mais mãode obra disponível, mais indústrias e comércio buscandoserem atendidos… A prefeitura só não contava comum fenômeno inesperado: as subdivisões dos grandesterrenos não seguiam uma legislação coesa naquela época,permitindo aos proprietários dessas terras a criação de

 vilas distantes das áreas já urbanizadas. A cidade entãose dispersava, ao contrário de se aproximar do Centro

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da capital. Era o preço a ser pago para o aumento doperímetro urbano.

 A Lagoinha seguia inserida na mesma lógica. Agora umdos primeiros bairros residenciais a receber numeração nascasas e nomenclatura das ruas, cada vez mais se consolidavacomo o principal bairro suburbano de Belo Horizonte e via seus limites serem expandidos tanto territorialmentequanto nanceiramente. Muitas das famílias operárias que

lá já se encontravam xas puderam comprar seus lotes einvestir em outros ali mesmo, As antigas colônias agrícolaseram comercializadas por valores inferiores aos lotessituados nas regiões mais centrais, o que facilitou a vidade inúmeros imigrantes que haviam chegado sem nadaao bairro. O caráter de bairro popular se fortalecia a cada

dia. A população de baixa renda via com naturalidade essadesmiticação das áreas urbanas centrais, entendendo que,nas zonas suburbanas como a Lagoinha, seria muito maisexequível o sonho de ter um canto próprio e que fossecompatível com suas possibilidades.

Entretanto, nem tudo caminhava reto. Muitas pessoas

que chegavam à capital em busca de trabalho buscavampouso nas imediações do bairro, devido à sua proximidadecom o Centro e as pequenas fábricas. Com sua populaçãocrescendo consideravelmente, a Lagoinha passou a abrigaralém dos trabalhadores da construção civil, muitas pessoasdesempregadas. Esse aumento populacional não seguia

em ritmo proporcional ao dos investimentos feitos nobairro, o que passou a gerar novos problemas estruturais. A Lagoinha, bem como outros bairros mais antigos, teria

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que esperar. Um caso curioso foi quando a capital, emoutubro de 1920, recebeu o então rei da Bélgica, AlbertoI. Com o intuito de passar a melhor das impressões em

um canteiro de obras a céu aberto, a cidade passou porum processo de maquiagem acelerado. A Lagoinha assistiuapenas algumas de suas ruas principais consertadas, assimcomo os imóveis de sua fachada fronteiriça com o Centropintados em tempo recorde. Melhorias que não atendiama comunidade do bairro como um todo.

 A população se via, então, obrigada a adentrar novosrumos e arregaçar as próprias mangas. Muitos dessesnovos moradores que chegavam ao bairro, desempregadose sem residência xa, apostaram na ocupação dos lotes naPedreira Prado Lopes, região vizinha à Lagoinha. Iniciava-

se aí um processo de favelização que perduraria anos e dataaté os dias de hoje, transformando a Pedreira num dosmaiores complexos de favelas no contexto socioculturalde Belo Horizonte.

Entre 1930 e 1940 a população da capital atingiu amarca de 214.000 habitantes. O Modernismo chegara

de vez à cidade, podendo ser visto nos traços culturais earquitetônicos espalhados pelas ruas e novas construções. A era do concreto armado, da cidade industrial e do verticalismo chegava para mudar de vez a cara de BeloHorizonte, que deixava aos poucos de ser estigmatizadaapenas pelas funções administrativas do estado para dar

os primeiros passos em sua consolidação como o principalpolo político, econômico e cultural de Minas Gerais.

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 A cidade passava por um vigoroso e natural processode modernização. As construções de novas avenidasproporcionaram uma maior convergência do centro

com a periferia urbanizada. Comércio e indústriatambém caminhavam adiante em expansão e as primeirascasas bancárias mineiras tornaram-se realidade. Umjovem e ambicioso Juscelino Kubitschek fazia da suaadministração progressista a grande responsável pelo saltode desenvolvimento e transformação da cidade naqueles

anos. Sob seu comando, diversos estudos e propostasforam elaborados para atender aos problemas causadospelo crescimento pelos quais a capital passara desde a suainauguração. Era notório que Belo Horizonte começava a viver um clima diferente, a sentir seu primeiro gostinho decidade importante, de cidade grande.

 A evolução urbana e social da Lagoinha seguia seu curso.Cravada estrategicamente no caminho da expansão dasregiões leste e noroeste, em especial da Gameleira eda Pampulha, era o grande corredor de passagem parabairros afastados como Santo André, Bonm, São João

Batista, Cachoeirinha e Caiçara. Em 1933 é inauguradoo Aeroporto da Pampulha, com toda a pompa, porser o primeiro da capital. Estando no caminho da novarota urbana, a Lagoinha recebeu melhorias nas vias detransporte, como o calçamento da antiga - Estrada Velhada Pampulha - que cortava o bairro e seguia em direção

à nova atração da cidade. Emergia aí, aliado ao frenéticocrescimento da cidade, a pedra fundamental para o iníciodo declínio do bairro nos anos que viriam.

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 A questão da mobilidade urbana em Belo Horizontejá era problemática desde seus primórdios e, devido àsua localização, a Lagoinha sofreria bastante com as

consequências disso. Pagaria um preço alto por estartão próxima à zona central da cidade. A região que hojeconhecemos por Pampulha era até então bastante atrasadacom relação a outras porções da cidade no quesitourbanização e era vista pela prefeitura com grande potencialturístico e de lazer para a população, carente de tais espaços

naquela época. Através da construção do Aeroporto, dabarragem e do represamento do Rio Pampulha, na gestãode Otacílio Negrão de Lima, a hoje valorizada regiãoentrou denitivamente no mapa da capital em importânciaurbana.

Com todo esse progresso em pauta, a Lagoinhatestemunhou de perto a abertura de novas avenidas comoa Presidente Antônio Carlos e Pedro II, importantes viasde acesso que passaram a integrar o Centro da cidade a vários núcleos populacionais da zona suburbana. Recebeutambém o Hospital Público de Pronto Socorro Odilon

Behrens em 1941, quando JK seguia realizando suasérie de empreendimentos na modernização da capital.Esses novos elementos inseridos no cotidiano do bairrotrariam um uxo maior de pessoas, trânsito e importânciageográca à Lagoinha.

 

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DO CÓRREGO AO CONCRETO:NASCE O IAPI

a Lagoinha daria então sua guinada denitiva na história dacapital. Considerado um bairro velho, com muitos casarõesdas primeiras décadas do século ainda de pé e funcionandocomo imóveis e comércio, o bairro convivia com um poucode dois mundos. Era prezado pela proximidade com o

Centro da cidade, mas passara a ser visto com outros olhospela sociedade belo-horizontina quanto àquilo que mais ocaracterizava: ser um bairro do povo, popular. A regiãocentral recebia uma gama de melhorias e investimentospúblicos em seu aspecto urbano, embasados na concepçãode uma cidade moderna, limpa e organizada, palatável aos

olhos da burguesia. Já o bairro operário não teria a mesmasorte no quesito infraestrutura e benfeitorias.

Com 40 anos de existência, a Lagoinha encontrava-seatrasada estruturalmente, afastada dos investimentos ede fatos novos. Seu oásis continuaria sendo o caráter

multicultural, com as famílias de imigrantes cada vezmais assentadas por lá, além dos migrantes que haviamconstruído patrimônio e não pretendiam sair dali. Provadisso era o carinhoso apelido de “Cantinho da Itália” querecebia de alguns saudosistas daquela época. Contudo, oburaco era um pouco mais embaixo.

O aspecto popular que agradava outrora a sociedade belo-horizontina era agora visto com doses de repúdio. A capital vivia dias pulsantes com JK no governo. O “Prefeito

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Furacão” não media esforços para colocar em prática todaa sua veia modernista e ambiciosa que culminaria anosdepois na construção de Brasília. Sua administração era

marcada pelas políticas urbanas expansionistas, traduzindona arquitetura moderna o tal apreço pelo futuro, algo queromperia com os padrões do passado ainda presentesna capital, pra que essa fosse vista como exemplo doamanhã. Eram os primeiros acenos de metrópole que BeloHorizonte daria.

 A sociedade da capital vibrava como nunca com os ventosdo modernismo, com os cinemas do Centro e as novasuniversidades que traziam intelectuais de todo canto dopaís, como Olavo Bilac, Antônio Vilas Boas e CarlosDrummond de Andrade. Denitivamente respirava-se

uma nova época, pautada no desenvolvimento urbanoe cultural. Tudo aquilo visto como antigo, popularesco,passara então a ser tratado com indiferença, perdera seu valor. A Lagoinha já carregava o fardo da fama e a realidadede ser vista como um bairro degradado, da boemia, doproletariado, da marginalidade e prostituição. Passou a ser

isolado, destratado, sinônimo de “ povão”. A proximidadecom o Cemitério do Bonm também dava uma força no jáinstaurado preconceito ao bairro.

Entretanto, o fator que reforçaria todo esse perl do localestava por vir.

 A questão habitacional em Belo Horizonte começava apreocupar. Ao nal da década de 1930 a população dacapital batia a expressiva marca de 214.000 habitantes,

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bem ou mal alocados dentro do espaço urbano. Em suma,a grande maioria dessa população já se caracterizava porser de trabalhadores e operários que migravam de outros

lugares em busca de emprego nas novas indústrias quese instalavam na capital. Pegando carona num momentode industrialização a nível nacional e municipal semprecedentes, Belo Horizonte passaria, em apenas umadécada, de 480 estabelecimentos industriais em 1936 para1.228 em 1946, caracterizando um crescimento real de

154% dos estabelecimentos e 710% do valor da produção,como informava o Instituto de Aposentadoria e Pensãodos Industriários (IAPI).

 Tal crescimento vertiginoso já era motivo de preocupaçãonos gabinetes da prefeitura, agora com um problema

ardiloso em mãos: como acomodar e prover condiçõesbásicas de moradia para essa porção do operariado? Aconcessão de lotes já se provara um método arriscado,uma vez que, como visto anteriormente, acabava por criarbolsões periféricos muito afastados da cidade, dicultandotodo um investimento de infraestrutura e ans, sem

falar nas brechas de legislação que acabavam sempre porfavorecer alguém em detrimento de outros.

Edições do jornal O estado d Mas   à época relatavamum Juscelino que se questionava. Segundo a coberturafeita naquele período, ele entendia como poucos que eraimpraticável investir tanto dinheiro na construção de um

polo turístico como a Pampulha, destinado à burguesiada capital, sem prover iniciativa alguma de caráter social

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para um problema emergente. Era preciso agir e pensar emalternativas que fossem viáveis aos cofres públicos.

Em uma visita do então presidente Getúlio Vargas àcapital no nal de 1938, nasce um plano que já vinha sendocolocado em prática em outros pontos do país. Ambos ospolíticos acreditavam que garimpar novas soluções para aquestão habitacional a nível municipal e nacional seria umasaída para o quadro, além de continuar com a toada dos

passos modernistas que tanto a nação e quanto a cidade viviam. Os conceitos de racionalização dos métodosde construção e otimização do espaço urbano foramabraçados como pilares do inédito projeto de grandesunidades habitacionais.

 A tacada seria inovadora, ambiciosa. Apostar em moradias

populares parecia algo natural, mas não seria tão simples.Investimentos precisariam ser feitos e acordos rmados.Pretendia-se gastar pouco para resolver uma questãoaguda. Em 29 de novembro de 1940, o contrato assinadopor Prefeitura Municipal, Instituto de Aposentadoria ePensão dos Industriários (IAPI) e Companhia Auxiliar de

Serviços de Administração (CASA) ocializava no papelo nascimento do - Conjunto de Habitações PopularesIapi - .

Projetado pelos engenheiros Plínio Catanhede, WhiteLírio da Silva, José Barreto de Andrade e Antônio Neves, o

empreendimento seguiria uma divisão de responsabilidades. À prefeitura cabia a cessão de um terreno com aproximados70.000m², capaz de abrigar o número mínimo de 3.000

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pessoas entre operários, imigrantes e população de baixarenda, além da urbanização da área, com o provimentode redes e serviços de esgoto, água, transporte, telefonia e

eletricidade. Ao IAPI coube o nanciamento e scalizaçãode toda a obra, enquanto a CASA herdou o anteprojeto e,o projeto executivo, bem como sua execução e scalização.O local escolhido foi a Lagoinha, aos pés da Pedreira PradoLopes – que já manifestava seu processo de favelização – edelimitado pelas avenidas Pedro I, José Bonifácio, Antônio

Carlos e as ruas Araribá e José Bonifácio. Arrojado, oprojeto contava com algumas áreas verdes, uma praça delazer dentro do conjunto e até uma igreja, oferecendo àfutura população algo até ali incomum para suas condições.

Os nove prédios formavam 11 blocos verticais em formato

de U, que totalizavam 928 apartamentos, sendo alguns jámobiliados, e cerca de dez lojas que atenderiam a populaçãodo conjunto e do bairro com produtos básicos e alimentos. A idealização e construção do IAPI, enm, tornava-se umcapítulo relevante na solução dos problemas de habitaçãosocial na cidade.

O concreto começou a subir na Lagoinha em 1944,e, mesmo incompleto, o conjunto foi inauguradoocialmente por duas vezes, em 1º de maio nos anos de1947 e 1948. Inúmeros atrasos no andamento das obraspostergaram a entrega nal do conjunto, fazendo com queos primeiros moradores só entrassem em suas casas em

1951. Sua inauguração repercutiu no país como o modeloconcreto de solução dos problemas habitacionais nosgrandes centros urbanos, além de somar ao currículo de

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 JK mais uma intervenção urbana modernista, traço que oacompanharia até sua a morte, em 1976.

Por m, o IAPI abria suas portas para receber todauma gama estraticada da população proletária de BeloHorizonte, mantendo viva, assim, as raízes de bairropopular que já caracterizavam a Lagoinha. Despercebidopropositalmente – ou não – aos olhos da época, é curiosonotar como toda a ideologia progressista, de cunho

social, “modro” e urbano que embasava a construção doConjunto IAPI serviria também como subterfúgio para asdesigualdades sociais já notórias da jovem capital mineira.

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ENFIm, mETRÓPOLE! A BOmIA AO ESTILA LAGOINHA 

 A partir da década de 1950, Belo Horizonte entrava de vez em sua fase de metropolização. Os mais de 350.000habitantes da cidade viviam um processo de adensamentoda zona urbana central, fenômeno incentivado pela verticalização feroz que marcaria época na infraestrutura

da capital. As primeiras edicações passariam a serdemolidas para a construção de edifícios residenciais,algo visto com insatisfação por partes da sociedade belo-horizontina, já acostumada com o centro urbano servindoexclusivamente para comércio e serviços. Contudo,essa mescla assentava-se legalmente no Regulamento de

Construções elaborado pelo poder municipal anos antes,que permitia a verticalização apenas na área central dacidade. Estava inaugurada, então, a especulação imobiliáriana capital, especialmente nessa determinada área. Aconstrução de edifícios residenciais, como a do Conjunto Archangelo Maletta, em 1957, e a do Conjunto JK, tornou-

se o investimento do momento. Toda essa verticalizaçãoalteraria de vez a paisagem da região central da capital,traço notado até os dias atuais.

Na Lagoinha, a vida também seguia vibrante. Com o IAPIentregue e sua ocupação acontecendo ao longo dos anos, obairro vivia novamente dias de ebulição. O hibridismo dosseus traços de ocupação permanecia vivo e cada vez maisacentuado com a chegada dos novos moradores, tanto

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ao novo conjunto quanto à Pedreira Prado Lopes, quetambém já se manifestava como importante bolsão urbanoda cidade. Gente diferente, que trazia culturas e valores

igualmente distintos, mantinha intacta a característica dobairro de aglutinar todo tipo de manifestação social àquelaépoca.

 A vida da Lagoinha experimentava anos fecundos emtodos os aspectos, consolidando o bairro como o centro da

boêmia na capital. A multiplicação dos bares, restaurantes epensões contribuía para que a vida noturna da Lagoinha sedestacasse, o que lhe rendia a alcunha de “Lapa Mineira”,em alusão ao famoso bairro da boemia carioca. A Praça Vaz de Melo era parada obrigatória para todos que desciamaté a Lagoinha em busca da intensa vida noturna que o

bairro oferecia. Hoje situada logo abaixo do Viaduto Lesteda Lagoinha, a praça consistia em um quarteirão inteiroentre a ferrovia e a Avenida Antônio Carlos e funcionavacomo ponto de partida e chegada ao bairro, uma vez queera a única parada de ônibus para todos os bairros e vilasque separavam a Pampulha do Centro da cidade. Para

muitos, era simplesmente “Praça da Lagoinha”, já que onome ocial soava muito formal para os ares ali respirados.

Os cabarés e redutos do samba atraíam todo tipo de genteao bairro. Artistas decadentes e novatos dividiam ali osmesmos espaços em busca do público, el à boêmia quepedia passagem. A sede do Fluminense – um dos primeiros

clubes sociais de Belo Horizonte - dominava a sociedade daLagoinha. Ao redor do clube, à direita da Praça, a Lagoinhaoferecia à malandragem as ruas Mauá, Paquequer e Bonm,

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o reduto da prostituição no bairro. Havia o Automar, comsuas mulheres caras; ao lado estava o 245, mais adianteo 433, depois o 590 e o 600: as “casas de pasto”, como

a malandragem chamava os prostíbulos naquela época.Os malandros, trajando garbosos paletós de linho branco,calças de casimira, sapatos brilhosos e camisas abertas nopeito, carregavam suntuosas correntes de ouro e aavamsuas navalhas para qualquer eventualidade. Não pararoubar ou agredir gratuitamente, mas sim para defender

território ou as prostitutas que exploravam.

Eram tempos de paz, mas com casos de violência.Presa entre a Pedreira, o Buraco Quente, o Concórdiae o Bonm, entre outros bairros, a Lagoinha tinha seusmomentos de local litigioso. Turmas da região e bairros

adjacentes queriam deter algum comando no pedaço,sendo corriqueiras as brigas e invasões. Representandoa Lagoinha nas páginas policiais daquela época, Paulo Alemão, Cabecinha e Nêga Duduca compunham a turmaque começava a se formar no IAPI a partir de 1961almejando o controle do bairro. Eram nomes conhecidos

do folclore belo-horizontino.Os botecos eram incontáveis. Ainda na Praça Vaz de Melocava o do Fausto, com sua freguesia quase toda compostade italianos que não arredavam pé. Curiosamente,naquele tempo cada boteco tinha a sua freguesia xa. Obar do Coelho cava do lado direito de quem vai para a

Pampulha, bem no coração da praça. Quando de passagempela capital, cantores famosos como Nelson Gonçalveseram devidamente servidos no Coelho que, por 500 réis,

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oferecia um PF já famoso na cidade. Quem ousasse nãocomer tudo era xingado pessoalmente pelo proprietário.

Pela madrugada as opções seguiam atendendo a todos osgostos: o Angu do Jesuíno, a sobremesa do Seu João doCreme, os salgados do Bar do Didi e o cardápio rápidodo Marito, uma espécie local de fast-food, formavam ainnidade de lugares na Lagoinha a serem desbravadospara encher a pança e se embebedar. Cena cotidiana era

 ver alguém caído na calçada ou vomitando no meio-o,misturado ao cheiro ardido de amoníaco que recendia dochão.

 Ao topo da Padara nossa   cava a sede do Terrestre, oLeão da Lagoinha. Sempre fardando sua camisa vermelhosangue, o clube de futebol do bairro contava com uma

torcida vibrante quando jogava no campo do Pitangui.Cebola, Blagê, Ireno; Pedrinho, Jonas e Sinval; Neném,Nelson, Lima, Timóteo e Tonho; saber de cor essa escalaçãoera motivo de orgulho no bairro. Os cinemas São Geraldoe Paissandu – onde hoje é erguido o Restaurante Popularde BH – também marcaram época na Lagoinha, trazendo

ao bairro os lmes do momento, além de proporcionar umponto de encontro para os enamorados passarem as tardese noites em clima de romance.

 Toda essa tradição de bairro boêmio permaneceu comomarca de representação no imaginário coletivo da capital.

 A Lagoinha viveu intensamente seus anos de cidadedentro de uma outra cidade, tamanho foi seu auge na vidasocial belo-horizontina. A derrocada começaria de forma

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um tanto cruel. Movida pelas necessidades urbanas de umametrópole em expansão, a demolição da Praça Vaz de Melo,em 1981, enterraria na memória da cidade uma Lagoinha

pulsante, que respirava por si mesma, para promover aimplantação do metrô de superfície – o complexo viárioque ligaria os extremos da capital e a expansão da Av. Antônio Carlos. Todo o bairro seria modicado diantedas diversas demolições planejadas. Golpeado bem em seucoração, o bairro entraria em processo de franca decadência

e deterioramento que perdura até hoje. A Lagoinha nuncamais seria a mesma.

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Um COmPLExO INImIGO

 As intervenções urbanas de grande porte começaram naLagoinha com a construção do Terminal Rodoviário eo túnel Presidente Tancredo Neves, na década de 1970. Anos depois, as demolições de outros espaços do bairropara a construção do – Complexo Viário da Lagoinha –marcaram de vez a sorte do bairro. O conjunto de vias,

elevados, viadutos e túnel foi construído na faixa sul daregião da Lagoinha no espaço anteriormente ocupadopela Praça Vaz de Melo. Foi idealizado em quatro viadutosque interligariam o Centro e as regiões Leste e Oeste às Avenidas Cristiano Machado, Antônio Carlos e PedroII.

 Ao longo dos anos, o rápido crescimento da cidade fezcom que o sistema viário no Complexo necessitasse cada vez mais de intervenções. Em busca de soluções quepudessem otimizar o trânsito na região, outras inúmerasintervenções foram implementadas, como a construçãode uma trincheira na altura da Praça do Peixe, outro viaduto de ligação entre as Avenidas Pedro II, CristianoMachado e Antônio Carlos, além do alargamento das viasda última. Foi e ainda é assim, sob constantes ameaças dasintervenções viárias e do distanciamento implicado porelas, que a Lagoinha passou as últimas décadas. Diantede tanto impacto, o bairro sofreu um processo lento egradativo de esvaziamento, sendo sua deterioração visívele impactante. Para quem o conheceu em outras épocas,

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hoje o bairro vive de um passado no qual não se orgulhatanto, assim como do seu presente. A Lagoinha da boemiaainda se faz presente na memória de quem a viveu, mas,

para tantos outros, ela foi sepultado lá atrás.

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LAGOINHA HOJE: CRACOLÂNDIA,mEmÓRIA E FUTURO

 Atualmente, a Lagoinha padece. Os anos de intensastransformações em seus tecidos urbano e socialdesencadearam o processo de degradação que o bairroevidencia hoje. Suas construções, muitas tombadas comopatrimônio da cidade, sofrem com a ação do tempo e o

abandono. Outras permanecem fechadas, sem qualquerfunção social aparente. O mau estado de preservação deinúmeras construções e ruas evidencia a descaracterizaçãoque o bairro vem sofrendo desde a segunda metade doséculo passado. O IAPI permanece ali, mas entre asrevitalizações e o intenso tráfego à sua porta também sofre

com o desgaste. Todo esse cenário de empobrecimentoremete à ideia de marginalidade e abandono com a qualo bairro passou a ser estigmatizado. Entre aquilo queainda pulsa, nota-se um grande número de ferros-velhosnas redondezas, o que em tese contribui ainda mais à jáempobrecida imagem que o local adquiriu.

Muitos moradores se queixam da violência que assolaa região. Historicamente próxima às favelas PedreiraPrado Lopes e Vila Senhor dos Passos – antiga BuracoQuente – a Lagoinha se vê às voltas com repetidos casosde criminalidade, corroborados pelo discurso arraigadona mídia que reforça o cenário de abandono em que obairro se encontra. Tais favelas compõem uma importanterota do tráco de drogas na capital, expondo o bairro a

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conitos entre gangues e até mesmo a casos de violência econfrontamento policial. O local convive também com umelevado número de pessoas em situação de rua, aspecto

citado por muitos moradores como o grande responsávelpela chancela de bairro tido como marginalizado pelorestante da cidade. E é justamente nesse cenário, entre aproximidade com o tráco de drogas oriundo das favelasa seu redor e o aumento vertiginoso de moradores de ruaem suas vias, que a Lagoinha enfrenta hoje as maiores

pedras em seu caminho: as de crack.

 A pecha de – Cracolâda d Blo Horzot   – infelizmentenão foi atribuída gratuitamente ao bairro. Hoje, muito docotidiano é ditado pelo intenso movimento de pessoas quefazem de todo o seu espaço o principal ponto de tráco

e consumo de crack em toda a capital. Ali o movimentoé frenético a qualquer hora do dia, faça sol ou chuva; aCracolândia na Lagoinha funciona nas 24 horas diárias.Concentrados principalmente nas ruas Itapecerica, JoséBonifácio, Araribá, Popular e ao redor – e até mesmodentro – do IAPI, os usuários de crack tomam conta das

calçadas, reviram o lixo e constroem barracos precários nasimediações, dispondo de qualquer material encontrado alimesmo. Outros espaços como os casarões abandonados,os lotes de casas demolidas, praças, construções e áreasdebaixo dos viadutos também servem como cenário paraque as práticas do tráco e consumo da droga ocorram a

céu aberto, livremente, sem qualquer intervenção do poderpúblico.

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É diante desse quadro que a Lagoinha sobrevive hoje.Caracterizado no imaginário da cidade como o bairro daboemia, dos operários, do IAPI, das obras para o complexo

 viário, ele assiste de perto ao enfoque dado pela opiniãopública à sociedade belo-horizontina: o da criminalidade,do tráco de drogas, da Cracolâda .

É pertinente e ao mesmo tempo incômodo reetir sobrea situação do bairro atualmente. Ele detém o poder de

transitar na contraposição de um passado célebre – ligadoao aspecto popular e mesmo à má fama – ao quadro atual:um bairro marcado pela degradação urbana e social deseu espaço e memória, seja pela ação do tempo ou pelosreexos dos problemas que a sociedade brasileira vivecomo um todo, como o fenômeno social das cracolândias.

Quem perde com isso quase que exclusivamente é aLagoinha.

 Assim como foi pensada, à época de sua ocupação, paraabranger toda uma população empobrecida, a mácula seperpetua, agora com retoques contemporâneos. Saíram decena a boemia e a prostituição, dando lugar à criminalidade

e outras chagas sociais. É importante pontuar que ospróprios moradores da Lagoinha compartilham dessanoção de que o estigma permanece e ganha ares de não termais reparo. Porém, eles alimentam o louvável sentimentode pertencimento e de afetividade com o bairro em quecresceram ou com o qual detêm laços de alguma forma,

tornando-se testemunhas oculares de tudo que ele setornou.

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Hoje os problemas da Lagoinha são outros. Seusquestionamentos também. Eles desaam a sociedade belo-horizontina a responder a questões aitivas. Quais são as

soluções? O que fazer para a Lagoinha? Como agir? Qualo futuro do bairro, de seus moradores e sua memória?E a situação atual? Tão velha quanto a própria cidade àqual pertence, a impressão que ca é de que a Lagoinhafoi sendo engolida, remetida a um canto cada vez menor,sendo ceifada lentamente daquilo que sempre teve e ainda

tem, mesmo que ocultada: vida própria.

Em meio a um passado histórico e a um presente de caosinstaurado pelo surgimento de uma cracolândia, tais vidasmerecem alguma forma de luz, de espaço, de se fazeremouvidas. Esta produção tentará, humildemente, oferecer

um pouco disso.

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CAPÍTULO 2

ENTRANDO SEm BATER 

RASPA DA CANELA DO DIABO

É novato de Cracolândia aquele que não conhece Pretão.

No topo dos seus quase dois metros de altura, é um rostotão peculiar pra aqueles que frequentam o lugar quantoo próprio vai e vem de viciados entre as vielas. Seuinseparável carrinho de supermercado onde leva “tudoqu possu ” é metáfora móbil de uma vida marcada pelasconstantes trocas de cenários que seu dono já viveu. Minas,

Bahia, Goiás…. Pretão é transeunte da própria existência,sempre com os pés descalços, já que sapatos número 47são mais difíceis de achar de graça que “ pdra o chão”. Suapresença física é marcante. Se morasse na Savassi ou emoutro local menos caótico, certamente diriam que nãosai de uma dessas academias para manter a forma. Como

mora nas ruas da capital, é só mais um negão alto, forte,pobre, sujo, que poderia ser segurança em qualquer portade boate devido ao tamanho, mas ganha mesmo a vidacatando reciclados e revendendo-os.

Pretão é Valdecir no R.G., soteropolitano de nascença e

com um sotaque inconfundível. A voz grave de radialistada madrugada exige certa adaptação aos ouvidosdesacostumados para captar e não perder nada de sua fala.

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Só de Cracolândia são sete anos, mas de crack já inteiramdez. Apesar de não ter pouso xo, ali se sente em casa.Íntimo da maioria, em especial das mulheres, é apontado

como um vigilante delas e por elas. Não que despenda seutempo exclusivamente à vigilância do sexo oposto, masclaramente parece gostar de manter a ordem e cultivar orespeito pelas meninas por ali, seja numa prosa mais longaou na breve checagem do “tá tudo bm aí, a? ”. Deve lheagradar a alcunha de sentinela. Pequenos mimos fazem

parte do pacto implícito estabelecido entre ele e elas, sendocorriqueiro ver algumas pegando quantidade maior de pãoou sopa e deixando num canto separado, à espera do donoque não tem hora para aparecer na madrugada.

Quando aparece, além do vidro de pimenta que carrega

para incrementar as refeições que consegue, traz tambémuma história nova. Curioso é a reticência em contar aprópria história. “Pra quê? Sou como qualqur um dsssmorto-vvo qu cê tá vdo largado aí. Tho ada dmas pracotar ão, sou guém d mportat.”. Já nas alheias não vêproblema. Relata com tristeza aos colegas de vício ainda

desinformados que a – Doidinha – tinha sido assassinadamais cedo na Rua Itapecerica, uns 100 metros do localonde estavam. Algumas pessoas em volta lamentam anotícia, enquanto outras já emendam categoricamenteque o destino da garota conhecida deles seria esse mesmo.O tráco costuma cobrar caro pelas dívidas. Pretão traz

detalhes do fato com apuração invejável, mas não tevecoragem de ver a cena. “Sou macho, mas tm umas covardasqu um aguto m vr ”. Esfaqueada, Doidinha ainda fora

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decapitada e teve a cabeça colocada ao lado do corpo,dentro do próprio carrinho de recicláveis.

Nesse dia de vigília ele chegou tarde. Perdeu uma das suas,mais uma. Antes de seguir caminho e ver as outras gurias,dá o motivo pelo qual não larga o crack.

“Fala pra todo mudo aí o tal do su lvro qu sso aqu ó –apotado uma pdra d crack – é a raspa da cala do dabo. Odêmo ão dxa.”

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SORvETE SABOR C…

 A sorveteria de Dona Adélia é quase um oásis num diade sol escaldante. A temperatura beira a casa dos 31° ea quinta subida da Rua José Bonifácio tornou-se umaatividade física e tanto. É um puxadinho modesto, noprimeiro andar da casa, feito dentro da antiga garagem domarido que hoje já não tem nem mais carro. Um tapume

cuidadosamente pintado de branco foi colocado na lateraldireita e pronto, estava feita a divisória. Tudo bastantesimples. Três mesinhas de plástico, poucas cadeiras, balcãode madeira, geladeira, pia e um pequeno freezer. Nocardápio, oito sabores de picolés e sorvetes, sendo o deleite condensado o mais sosticado. Serve açaí também,

para deleite de um certo narrador. Nada alcoólico, apenaságua e refrigerantes comuns. É dali que ela tira um extrapra completar a renda da casa, estudar a lha e ajudar omarido. Tudo isso bem no meio de uma cracolândia.

 Adélia é uma senhora dos olhos verdes, pele branca ecabelos ainda escuros. Sua baixa estatura dá a impressão deser uma daquelas doninhas interioranas, mas faz questão deressaltar que “ão é tão vlha ”. Perguntada sobre a idade, saipela tangente com um riso fácil e da maneira mais clássica:“ vê lá s homm prguta a dad d uma dama?! ”. Vive hámuitos anos ali, desde que se casou com o primeiro e úniconamorado. Dentro da pequena sorveteria, entretanto,ninguém além dela. Com o sol que fazia, era de se esperarao menos um movimento maior. Anal, quem não curtesorvete num dia tórrido, boa gente não é.

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É que aquilo ali já foi melhor. Hoje, o pouco que entrajá vira muito. Cravado no meio da Cracolândia, oestabelecimento de Dona Adélia padece do mesmo mal

que todos os outros comércios e casas ali. A localização epopulação indesejadas fazem com que muito do movimentocomercial migre para outras áreas próximas. “Os clts scomodam d tr qu passar o mo dos craquros pra vr aqu. e qum ão ra? iflzmt u ão tho como lvar a sorvtra pra outro cato, do cotráro u fara. Mha cltla é um ou outro

amgo, moradors qu já tão acostumados a ss fro aí a portaqu você tá vdo”. Ela dá de frente para o muro traseiro doIAPI, local de uxo intenso de usuários 24 horas por dia.Do balcão assistimos a um início de confusão entre duasmulheres, que por algum motivo, certamente envolvendopedra, começavam a puxar os cabelos uma da outra. “ É

todo da sso aí. Tm da qu é por, qu ls rolam rua abaxo. emoutros cam mas calmos, fumam scoram por aí msmo, smcomodar os moradors ”.

Com sabor de nostalgia, Dona Adélia recorda temposem que aquilo ali era diferente. A rua era mais tranquila,

os usuários não haviam tomado conta ainda. Criou oprimeiro lho entre aquelas calçadas, enquanto ela e omarido construíam a casa aos poucos. “ não ram tmposmas fács. Mas crtamt, mos loucos. Atgamt a gt saía voltava pra casa a ot traqulamt, msmo morado os pésda Pdrra. Hoj ão. eu ão tho coragm d botar o pé pra fora

d casa sozha quado ca a ot. Mu mardo arrsca, dz qucom l ão mxm. M procupo msmo é com a ma, qu adastuda volta tard.”

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 À medida que o crack foi se espalhando pela capital e adistribuição da Pedreira retomando território, tudo mudou. A Cracolândia tomou conta, expandiu-se, ncou raízes

às portas da casa de Dona Adélia. Contudo, nunca foraincomodada mais gravemente. A todo momento algumusuário entra e pede pra que ela faça o favor de enchergarrafas d´água. Alguns já são velhos de casa, ela nem seimporta. Aliás, seu estabelecimento é um dos poucos, pranão dizer o único, que ainda oferece água para eles. Não que

ela não saiba dizer não. “Vja, u tho um trabalho daado qué carm m chamado pra chr garraha. Os botcos aí botamls pra corrr. eu m tato. S vm algum muto louco, causado,u boto pra fora. Mas ormalmt u cdo. Apsar d ão cocordarcom a vda qu ls lvam, u tho pa. Pa d psar a mã, a famíla dls. Pa dls msmos, qu ão xrgam o fro qu

traram sm volta. e como s ga água pra alguém ssa vda?! ”.

 Testemunha ocular do organismo vivo que é a Cracolândia, Adélia já não se surpreende com mais nada. São tantos oscasos que ca difícil para ela escolher o mais impactante.Mas sabe que não gosta dos que envolvem roubo.

Na Cracolândia é assim: não se rouba lá dentro. Paraisso, existe o mundo lá fora. As regras são implícitas eessa é uma das principais para se sobreviver e convivernormalmente. Roubar ou incomodar morador então,nem pensar. Essa vem lá de cima do morro, do tráco.Quem a viola geralmente não volta pra contar qual foi a

punição. Mesmo assim, Adélia já viu os próprios usuáriosse roubando, fossem cachimbos, pertences ou tretas depedra mesmo. “ els rsolvm tr s. Mas quado ca mas

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 problmátco os mos qu trabalham aí botam uma moral. É quls cam tão alhos a tudo qu prdm a oção. É trst, ão gostod vr gt apahado”.

Mesmo com os vizinhos indesejados à sua porta, Dona Adélia diz que é feliz ali. Sente-se sob uma redoma de vidroque a isola de tudo que rola lá fora, mas que não a impedede ver e vivenciar uma cracolândia. É uma ilha serena nomeio de um mar em constante tormenta. Não pretende

se mudar dali. “Daqu só pro caxão. Lvat mha cashacom muto sacrfíco, ão abrra mão dla só porqu o fro smudou pra cá. Dzr qu gosto dssa raldad sra mtra, masls scolhram o camho das pdras dls, tão tão pors qu u. eu scolh o mu qu é car. no mudo tm spaço pra todos ”.

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 ADÍLSON TEm FOmE DE qU?

“Graças a Dus, ssas pdras d hoj plo mos dxa batr a fom. Atgamt, ra os das d stômago o lso”.

Se existe alguma vantagem que o vício traz hoje, para um Adílson com 14 anos de pedra, é que, pelo menos, ele voltoua sentir fome. Aos 31 anos de idade, ele tem certeza queessa é uma daquelas pequenas vitórias que alguns usuáriosde crack obtêm em meio a tanta coisa negativa que oscercam ali. Sentir fome é algo incomum pras pessoas queabusam do vício. Na Cracolândia, no auge da oa , tomacontornos de dom, sendo pouquíssimos ali os corposagraciados com o tal. O efeito do crack no organismo dousuário inibe o apetite ao longo do tempo, o que faz comque adquira o conhecido aspecto físico esquelético devidoà falta de nutrientes e alimentação, mesmo que mínima.

 Adílson se sente privilegiado. Anal, mesmo com os 14anos de vício, hoje é capaz de fumar o dia todo e mesmoassim sentir fome. Motivo de orgulho, sabe que nem

sempre foi assim. Costumava passar uma semana inteira vivendo de água, pedra e isqueiro, sem saber descrevercomo se aguentava todo dia diante da fraqueza física. Nanoite fria de abril, o copinho de sopa dividindo espaço nasmãos com um cachimbo ainda quente é sinônimo literal desobrevivência naquele lugar.

Conversar com Adílson é uma experiência interessante. Articulado, fala a língua da rua e tem uma objetividade em

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seu discurso que impressiona. Perguntou, respondeu. Nãotem vergonha do vício, das coisas que faz pra mantê-lo,muito menos de ngir o que não é. “Sou vcado msmo. Gosto

d fumar pdra, s o mal qu ssa mrda faz. Mas é mha sa acto d bom grado. não dou trabalho pra guém aqu, façomha atvdad sozho é assm qu va sr smpr ”. Funcionacomo um mantra para ele essa coisa de ser independente. Tanto que se orgulha de fabricar os próprios cachimbosque utiliza, raramente compra de outros usuários. Pelo

contrário, diz que tira um troco vendendo os que produzali na Cracolândia ou troca por mais pedra. Pacientementeexplica como é a produção, que, segundo ele, precisaacontecer quando não está fumando. Dessa forma acreditaser mais produtivo e criativo, além de não tremer tanto.Exibe um curioso modelo feito com peças internas de

um computador encontrado no lixo. Tem as iniciais A.S incrustadas na lateral direita indicando posse. É seucachimbo favorito. “ não vdo, m troco. ess aqu fo mu prmro a Cracolâda. É como s foss da famíla ”.

Uma quinta-feira intensa para ele. Arredonda que já vai

para sua lasca de pedra número 20 no dia. Nas suas contas,isso dá de 15 a 20 gramas de crack por dia, número bastantealto, cartel digno dos usuários mais pesados. Parar? Semchance. “ Qu ada. Ada tm corr al o Ctro pra fazr,smpr tm us studats voltado pra casa aqulas ruas do baxoCtro. não curto roubar ão, mas fazr o quê? Tm qu cotuar

a atvdad, parcro...”.

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Logo que termina a sopa é interpelado por Neguinho,parceiro de Cracolândia. O rapaz chega apressado, játomou sua sopa faz uns minutos e parece irritado com

 Adílson perdendo tempo com a prosa. “Cês vão casar ou ssarsha ão trma ão? Aglza aí, Adílso. Porra! ”. Juntos seajudam, compartilham pedras, funcionam como sentinelaum do outro naquilo ali. As histórias vivenciadas juntosdevem ser inumeráveis, mas terão de esperar um próximoencontro. Adílson dá uma gargalhada animada, se despede

com um aperto de mão rme e pede que ore por ele.

Posso incluir os estudantes do baixo Centro na precetambém?

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O PEDREIRO qUE NÃO SABERECONSTRUIR…

Cercada por ironias. É assim a lida diária na cracolândia.

Como alguém acostumado a criar, reconstruir e levantarcoisas do absoluto nada se veria tão incapaz de fazer omesmo com a própria vida?

Laudinei tem a resposta na palma da mão esquerda. Na dadireita, o cachimbo.

 Aos 29 anos recém-completados, o mestre de obras deCoronel Fabriciano perambula pela Cracolândia comseu corpo magrelo quase como um fantasma. Ninguém

o vê ali em seu canto debaixo das escadas que levam àEstação Lagoinha, em meio ao emaranhado do lixo e das vidas desconexas umas das outras, ao mesmo tempo emque ligadas pela pedra em comum. Laudinei é só mais um.Loiro, rosto anado, chinelo de dedo, bermuda e camisajá puídas. Naquela quinta-feira de março ele entrou na la

da sopa pedindo um agasalho para cortar o frio da noitechuvosa e recebeu a negativa. Saiu como se nunca tivesseexistido.

Mas existe.

Fuma crack desde os 14 anos de idade, quando ainda

morava no interior do estado. Foi apresentado à drogapelas “más compahas mt fraca ”, mesmo vindo de umafamília dita como unida e religiosa. É o caçula entre duas

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Mas não foi sempre assim. Prossionalmente, Laudineié mestre de obras e pedreiro de acabamento. Brada comorgulho que é dos bons e que seu serviço é de qualidade.

Cita uma lanchonete na Savassi que reformou quasesozinho e hoje é ponto movimentado no bairro. Naquelaépoca, ganhava R$ 250,00 por dia e mantinha uma vidafuncional; Maria havia chegado, estava há dois anos longedo crack e com o casamento caminhando bem. Juntavadinheiro para o maior sonho da vida: um veículo Citroën.

Em mais uma dessas ironias da Cracolândia, o objetivoque deveria ser o ponto de mudança positiva em sua vidatornou-se o da atual derrocada. Com menos de um ano,acidentou-se, perdeu o carro, ganhou enormes dívidascom as prestações. Estourou cartões de crédito, pediusocorro às irmãs, resistiu como pode. Desesperado, acabou

fraquejando como tantos outros. Desde então, abraçou o vício hibernado e não largou mais.

 Já são três anos fumando uma média de 12 pedras por dia.O roteiro é simples: descola R$ 10,00 logo cedo, sobe aPedreira e compra o que dá. Por esse valor, adquire uma

pedra equivalente ao tamanho de uma unha do polegar.Dessa pedra, vai lascando pequenas outras que serãoconsumidas ao longo do dia. “Tm da qu fumo três duma vz, pá pum! Alguma cosa pra ocupar a mt. Tm outros qu fumomas dvagar pos co muto dprssvo, daí a oa bat rrado”. Oque sente ao fumar? Já não importa. “ nm s dscrvr mas,

apas votad d acdr a próxma pdra ”.Nesse ritmo, deve 120 reais aos tracantes da favela, dívidasessas geralmente pagas com sangue ou vida. Garante que

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sobe lá quando quer e não tem medo, mas seus olhosclaramente dizem o contrário. O cachimbo volta a estalarsem qualquer discrição. Depois de alimentado, a minúscula

lasca que sobrou é a última da noite, “ pra fchar o da dcão”. A resina que raspará do bojo do cachimbo carápra manhã que viria.“Prcso comçar o da! ”. É tudo muitorápido. Pedra no cachimbo, brasa de cigarro por cima, duasou três tragadas e pronto. O cheiro de borracha queimadacaracterístico do crack sobe rapidamente, assim como

seus efeitos. Laudinei dá uma golada violenta na garrafad’água, permanece imóvel por alguns segundos e volta aconversar, sem se importar com um rato que insistia emrondar seus poucos pertences.

 Viagem de mais uma tragada ou da vida? Talvez de ambas.

Laudinei faz de tudo pra conseguir sustentar o vício. Sepoucos minutos atrás não roubava, agora já o faz, até emcondições cinematográcas. “ estv uma casa spírta otm.V uma chav d carro largada uma msa ão rsst, já bolum plao. Ach o maldto plo alarm, drg us 20 mutos o troux até a Pdrra. Vd por 10 g d pdra, o qu um dá

mas qu 200 ras. eu ão tava oado a hora.” Os 10g decrack correspondem a uma pedra de tamanho equivalenteao do dedo indicador. Numa cracolândia, as proporçõeszombam da realidade. Um carro equivale a 10g ou 200reais. Míseros seis ou sete centímetros de pedra.

Entretanto, nem tudo é noia. É genuína a saudade que

Laudinei sente da esposa e dos lhos. As lágrimas e a falaentristecida podem parecer apenas mais um momento em

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que a onda do crack fala mais alto para alguns, mas não éo caso. Parece sentir vergonha de contar a própria história,pois ela o machuca profundamente.

Laudinei pede ajuda e se diz preparado para largar ocrack, mas que não conseguirá sozinho. Sabe lidar com asdiculdades que a dependência impõe, mas “tm a mt fraca ” e uma “trrívl paxão por rcar ”. Mas não adiantaapenas ser internado; trabalhar e mandar dinheiro para a

esposa e os lhos é vital. O problema é que comunidadesde recuperação nesses moldes têm suas vagas disputadas,sendo que muitas optam pela inserção no trabalhoremunerado somente após um longo tratamento dedesintoxicação e evolução considerável do quadro dedependência. Laudinei sabe que seu tempo está se

esgotando. Reconstruir a própria vida não parece tão fácilquanto levantar uma bela fachada da famosa lanchoneteda Savassi.

Pede um abraço, bem como desculpas pelo choro edesabafo. Agradece. Sobe em direção à Pedreira mais uma vez.

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UmA RAzÃO ESPECIAL

Marcelo chega no local de distribuição da sopa causando.É uma dessas pessoas extrovertidas, que falam de tudo enada ao mesmo tempo com qualquer um que puxe papo.Era maio e naquele entardecer de terça-feira chegou aosberros. “Colé pssoal! Chgu quro sopa qutha, h.Caprcha aí! ”

Não aparenta ter mais do que 30 anos, mas o tempo dámostras de que vem sendo bruto com ele. Fisicamenteforte, o corpanzil negro carrega algumas cicatrizes nosombros, braços e pernas. Vai saber o que as originou. Seusorriso banguelo pode chocar num primeiro momento,mas se repete tanto que o costume vem logo e o detalhe vira marca registrada, até mesmo cativante. Cortava um vento frio naquela noite, mas talvez por falta de opçãono seu guarda-roupa inexistente, vestia uma regata dessascavadas, bermuda e chinelão de dedo, com um indefectívelboné do Atlético-MG.

Recebida a sopa, vai prum canto prosear com outraspessoas, sempre agitado, mas tudo dentro do normal. Numpasse de mágica, quase como prevendo qualquer interação,estica a mão e se apresenta. “ Mha graça é Marclo, parcro! Qual a sua? Frmão aí? Ó, tô aqu pla sopa, mas cosdro mutoo trabalho d vocês também.”

Explico pra ele que o trabalho ali tá longe de ser meu.Enquanto devoramos um potinho de sopa juntos, contaque mora em um abrigo da cidade, mas que lá as pessoas

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são “ lhas da puta ” pois roubam seus pertences se não carem estado de alerta constante. Numa simpatia incomumpara o local, Marcelo conversa com a voz arrastada e meio

que embaralhando as palavras, como se todas tivessem quesair da sua boca ao mesmo tempo. Um companheiro quetestemunhava a cena rasga o rumo da conversa em meioa gargalhadas: “ ess aí tá loucão, m cosgu falar drto! Já fumou tudo qu poda vo matar a larca aqu! ”.

Marcelo intervém e conta que gosta apenas de maconha,mas que de vez em quando fuma crack por um motivobastante especial: “Dou us pgas só quado quro fazr orga! Adoro uma putara, rapá! Tm das qu u cato umas lathas prumtroco, alugo um quarto d motl o Ctro, fumo umas três pdras lvo umas amgas pra lá. Só flcdad a ot tra, cê tm qu vr!

 e dá-lh pdra. eu fucoo fto máqua com pdra a cabça.Tm go qu ão cosgu m sar do chão, mas u co rmão sm problma.”. Gaba-se distribuindo mais uma vez o simpáticosorriso banguela.

 Verdade ou não, Marcelo é peculiar. Mescla toda a suaextroversão com a fala arrastada, num contraste que faz

sua personalidade causar dúvidas de como ela realmenteé. Talvez seja justamente essa confusão de traços numhomem só, mas ele pouco se importa com isso. É umusuário de crack às avessas: fuma pouco e apenas parafazer sexo, diz ele. Algo até então raro, uma vez que alibido das pessoas decresce consideravelmente enquanto

sob o efeito da pedra, segundo estudos médicos acerca doassunto. Quando seria a próxima vez que Marcelo se verianessa situação? A fala embolada some e de prontidão, já

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se afastando da rodinha, se despede. “Hoj! Vou só trmarssa sopa aqu tô cado lá pro Ctro. Quro vr ssas mas msgurarm d bucho cho pdra a mt….”

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CAPÍTULO 3

COm OS DOIS PÉS LÁ DENTRO:PRAzER, CRACOLÂNDIA...

BEm-vINDO AO INFERNO ONDE APEDRA NÃO PARA 

 A primeira cracolândia de Belo Horizonte estende-se por um complexo de vielas localizadas ao longodo bairro Lagoinha e da Pedreira Prado Lopes, locaisimportantíssimos para a história da capital mineira, como vimos nos capítulos iniciais. Um emaranhado de becos

que adentram a favela, escorrem pelos lados do bairroe desembocam por uma faixa considerável da Avenida Antônio Carlos, desde a estaçãa Lagoinha do metrô até aaltura do Hospital Belo Horizonte. A boca miúda dá contade que ela surgiu nos anos 2000, quando o comércio decrack voltou a se intensicar nos arredores da Pedreira.

Contudo, relatos de personagens que já frequentaramo local remetem a anos anteriores. Assim, não é seguroprecisar com exatidão o seu nascimento.

É impossível mensurar o tamanho exato do territóriodo crack nessa região, mas tem-se a clara noção de que éextenso. Durante toda a apuração de campo deste livro,uma segunda cracolândia já começava a se formar na alturado cruzamento das avenidas Antônio Carlos e Bernardo

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 Vasconcelos. Ainda na Lagoinha, algumas ruas são maismovimentadas que outras, pois funcionam como ponto de venda e de consumo da pedra, além do intenso tráfego

de carros e pedestres que utilizam as vias para ganharacesso a algum canto do bairro. Em outros becos, ondea maioria das pessoas passa horas sentadas nas calçadasou simplesmente dormindo, concentram-se apenas asatividades de consumo. As ruas mais ermas do complexo daCracolândia abrigam pessoas e seus barracos improvisados

com qualquer tipo de material disponível. Nesses locaisalguns usuários xam residência, mesmo que por curtosperíodos de tempo. É o que eles chamam ironicamente de“hotel”. Entretanto, é no entorno do Conjunto IAPI que ocoração da Cracolândia pulsa. Ali, a pedra de fato não para.

Simbolicamente, a Cracolândia começa na rua Itapecerica,situada na saída da passarela da estação de metrô Lagoinha.Simbolicamente porque, como dito anteriormente, ospontos de consumo de crack acontecem em qualquercanto mais abandonado do Complexo da Lagoinha.Entretanto, a rua margeia a Praça Vaz de Melo e ganha

norte ao cortar em direção ao interior do bairro. Por alia presença de usuários já é comum, mas em númerosmenores. Eles se espalham pelas calçadas ou se abrigamembaixo dos viadutos e da passarela; qualquer canto maisafastado vale. Estudantes de uma universidade próximautilizam o mesmo espaço para chegarem ao outro lado da

 Avenida Antônio Carlos. O marco zero da Cracolândia deBH se mistura como uma rua qualquer, com o trânsito deusuários e não usuários acontecendo a qualquer hora do

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dia. A rua também é marcada pela alta concentração deestabelecimentos que compram sucata e material reciclável,o que acaba atraindo um uxo considerável de gente ao

local. O consumo de crack ocorre livremente, sem que aspessoas se sintam intimidadas por isso.

Do outro lado da Antônio Carlos, próximo à universidade,os lotes vagos servem como ponto de encontro eaglomeração para alguns usuários que geralmente optam

por car do lado menos movimentado da região. Em meioà vegetação alta e aos tapumes das obras da prefeitura elesencontram um lugar calmo para sentar e compartilharcachimbos. O clima é despretensioso já que, a despeitodo frenesi de veículos na avenida, as ruas daquele ladosão mais vazias e tranquilas. Quase não há pessoas indo

e vindo como na outra margem, seja por evitarem o localou por qualquer outro motivo. É como se o tempo aliparasse e somente o ritmo do crack ditasse as ações. Apartir dali, por toda a extensão de ambas as faixas lateraisda avenida até o Mercado da Lagoinha, o que se vê sãopessoas espalhadas entre os canteiros, perambulando pelos

 viadutos ou simplesmente caminhando sem rumo certo.Em comum, a inquietante ssura pela próxima pedra.

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Um CORAÇÃO PULSANDO

Localização: coração da Cracolândia. A Rua José Bonifácioforma esquina com uma das pistas da Antônio Carlose sobe em direção ao IAPI, circundando o conjuntopor toda a sua parte traseira cercada por um muro alto,monocromaticamente cinza, sem vida. São cerca de 300metros de extensão, sendo também a rua frontal do

Hospital Odilon Behrens e porta de acesso à PedreiraPrado Lopes. O cenário é assustador. Indiferentementedo dia ou da hora, homens, mulheres, jovens, velhos,crianças, pretos, brancos, todo o tipo de gente se misturanas calçadas, entre sacos de lixo a céu aberto, se enandoentre cada vão dos carros estacionados ou recostados ao

longo do muro. Para quem sobe a rua, o lado direito é olado do consumo, onde os usuários circulam livrementee se acomodam para fumar crack. Do lado esquerdo,as moradias, botecos e mercearias que ainda resistem àdesolação. Nesse lado é incomum ver alguém consumindo:lei de cracolândia. Em respeito aos moradores e donos dos

imóveis, eles não mexem com o outro lado da rua, apenasem interações normais, ou quando vão atrás do – avão - mais próximo para comprar pedra. O sobe e desce depessoas é intenso, mas elas não se misturam. Quem é docrack permanece na sua banda; moradores e transeuntesna outra.

Por toda a extensão da Rua José Bonifácio não se encontrabarracos improvisados. Nessa área o uxo exige que

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as calçadas estejam livres para as atividades do crack.Levantar um barraco ali seria sinônimo de se apropriar deum espaço que não é seu, mas de todos os usuários. Alguns

até arriscam deixar seus poucos pertences num canto ouadaptar um resto de sofá aqui e ali, mas quase sempreesses são consumidos pela cracolândia de alguma forma. Viram lixo ou até mesmo carvão. Contudo, é comum ver moradores de rua dormindo no local, espalhadosnos cantos onde o uxo estiver mais calmo naquele

momento. Alguns se arriscam deitando debaixo dos carrosestacionados, abraçados aos seus pertences, evitando quesejam roubados enquanto aproveitam as raras horas desono de que o crack permite desfrutar. Encostados nosmuros, outros tantos formam rodas de fumo de duração variada. Alguns aparentam pertencer a um grupo familiar e

passam bons minutos ali, entre uma pipada e outra. Outrosse formam repentinamente e assim também se dissolvem:tudo vai depender do quanto de pedra cada um vai colocarna roda.

Quem mora do outro lado assiste a tudo numa espécie

de camarote infeliz. Privados da liberdade que tinhamem outros tempos, sentem-se obrigadas a conviver comuma realidade que não escolheram, ao contrário, foi-lhes imposta. Bem na porta de suas casas e comércios sedeparam com estranhos de toda parte da cidade, algunscom mais de 24 horas no local, outros com anos. É comum

ouvi-los dizer o quanto se sentem privados de simplespráticas como abrir a porta à noite, ou simplesmentecaminhar com segurança ali. Mesmo assim, o discurso

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é quase unânime quando indagados se têm interesse dese mudarem dali: não. Já estão acostumados, nasceramna Lagoinha, não abrem mão daquilo ali. Para quem está

de fora é difícil compreender, mas necessário respeitar.É sentimento de pertencimento, difícil de ser explicado. Todos nós sentimos algo semelhante com relação a algumlugar neste mundo. O deles acaba por ser ali, em meio auma cracolândia. Essa coexistência entre os usuários dedroga e os habitantes se dá de forma curiosamente pacíca,

apesar das insatisfações existentes. Como dito, um gruporespeita os limites do outro naquele microcontexto eambos seguem o jogo. Seja qual for o lado da rua a quepertençam, estão mais que calejados com aquilo ali.

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CARA A CARA COm A REALIDADE

Numa cracolândia, as coisas tendem a ser bastanteefêmeras. A transitoriedade das histórias, dos personagense dos episódios dá ao local a conotação singular de um frak show trágico. Tudo ali, se observado cuidadosamente,é passível de linhas e mais linhas de anotações, áudiosextensos, descrições profundas. É preciso escolher um

recorte. São tantos elementos em um só cenário que osolhos desacostumados se perdem em meio ao uxo e atudo o que rola simultaneamente.

Enquanto um grupo fuma num canto, duas mulheres seagridem a ponto de se cortarem, tudo por um pedaço dematerial que servirá para a confecção do novo cachimbo.Mais adiante, pessoas literalmente rolam entre os sacos delixo em busca de lascas de crack imaginárias, experienciandoo auge da noia. Em outro ponto, um homem desce deum carro desses modelos novos, de roupa social, sapatoslimpos e aparência contrastante com a sujeira do local para,sem qualquer cerimônia, dividir um cachimbo com rostosconhecidos por ele que já se encontram na atividade, comose o aguardassem. É impossível focar numa só coisa queacontece ali, variado é o cardápio da degradação humanasimultânea. E isso tudo em apenas um dia, porque noseguinte serão novas histórias, novos personagens, novosepisódios… O set de lmagem é a vida real e para muitos

ali na cracolândia, ser protagonista da própria vida já nãoé tarefa exequível.

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O perl de quem frequenta o local não foge muito à tristerealidade traçada na pesquisa da Fiocruz que veremosadiante. Em ampla maioria são moradores de rua que

fazem do crack o subterfúgio mais barato – e eciente – que encontram para aplacar a própria miséria humana.O nível de mendicância é alto. Muitas dessas pessoas sealimentam quando algum tipo de doação chega até elas.Quando muito, comem do próprio lixo. As relaçõesestabelecidas ali são perenes. Envoltos num vício que os

equaliza, os frequentadores de uma cracolândia constroemas relações entre si baseados na premissa da pedra: estãotodos ali pelo mesmo motivo e m. Isso não quer dizer,contudo, que relações de amizade e colaboração nãopossam existir pelos cantos do lugar. É comum vê-loscompartilhando algum alimento entre os mais chegados,

bem como os convidando para o próximo cachimbo ou,por vezes, dividindo um pouco da água que possuem,matando a sede implacável que vem com o crack. Dessespequenos episódios, se formam rodas de prosa, nasquais compartilham histórias, misérias e quase nenhumaperspectiva.

É difícil também estabelecer uma relação constante comaqueles que não estão literalmente envolvidos no crack.Foram inúmeras as vezes em que o contato previamenteestabelecido com os moradores fora completamente“esquecido” por eles. O que em um dia era uma fonte

de informações valiosas sobre o cotidiano do lugar, nooutro era um mero “não me recordo de conversarmos”.Se foi por arrependimento dos relatos, medo ou qualquer

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outro motivo, a resposta nunca me foi conclusiva. Fatoé que tudo ali é muito oito ou oitenta em se tratandodos diferentes comportamentos observados. Seja de

moradores, trabalhadores, usuários… Não há como julgá-los. Se o ditado diz que “cada cabeça é uma sentença”, paratal julgamento seria necessário entrar no âmago daquelasque compõem o lugar: seus motivos, medos, reclamações,alegrias, planos. Uma quimera.

 A impressão, ao conviver a fundo com uma realidadetão desconectada da vigente no dito “mundo real” é ade sempre absorver apenas fragmentos de um todo. Pormais que inúmeras pessoas tenham cedido seu tempo esuas histórias, elas nunca eram completas, pois suas vidassempre estavam demarcadas pelo antes e depois do crack,

seja ele fumado ou simplesmente vivido à sua porta. Essesrecortes temporais causados pela pedra jamais poderãosimbolizar tudo que as pessoas numa cracolândia são.

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 AqUI, O BURACO É mAIS EmBAIxO.E qUENTE.

Bem no topo da Rua José Bonifácio ca a entrada para o“Buraco Qut ”. O local é o principal acesso à Pedreira,Prado Lopes bem na esquina com a Rua Araribá que,subindo, dá acesso ao território da Pedreira, enquanto que,descendo, contorna o lado esquerdo do Conjunto IAPI

até desembocar na Avenida Antônio Carlos lá embaixo, jáde cara com a atual estação de ônibus de mesmo nome. A Rua Araribá é o local mais crítico da cracolândia. Seudiferencial em relação à José Bonifácio é a visibilidade quea rua dá para quem passa pela Antônio Carlos, tornandoessa porção da Cracolândia a mais exposta ao restante da

cidade. Para quem desce a rua, o lado esquerdo é compostopor diversos botecos vazios de fraca iluminação e fortecheiro de fritura, de aspecto depressivo, comungandoda sombriedade que o restante do local exala. Algumaspequenas mercearias, farmácia, salões e lojas ainda tentamsobreviver, mas pagam o preço da localização ingrata.

Os clientes são escassos, restritos apenas à população dobairro que não se importa em transitar ali.

Do lado direito, o muro do Conjunto IAPI continuaservindo de recosto para os usuários. Pela calçada, muitosdeles consomem a droga, vendem, dormem, conversam,fazem praticamente de tudo. A quantidade deles ali é,por vezes, maior que na rua de cima. Na Rua Araribá, ocenário é depressivo. Há sujeira por todo canto, entre lixo,sobras de construção, pedaços carcomidos de móveis e

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muito mais. Moradores que simplesmente sobem a ruaprocuram não cruzar olhares com os diversos pontos deconsumo da pedra, demonstrando um nível particular de

inserção naquele caos. São pessoas que vivem na regiãoe não possuem outra opção de acesso que não seja a ruamais movimentada da Cracolândia. Dessa forma, nãoabdicam de caminhar passivamente em meio aos usuários,por vezes levando crianças, compras, seguindo suas vidasnormalmente. Apesar da constante impressão de serem

observados pelos olheiros, ao menos externamente omedo não transparece nos semblantes e cotidianos daspessoas ali. Já estão acostumadas, naturalmente inseridas,tão arraigadas quanto os próprios usuários no modusoprad  da Cracolândia.

Usuários não se retraem por motivo algum. Naquela porçãodo urbano, o espaço é deles. E quem passa ou olha para láassim o faz por pura vontade própria. O território é todotomado pelo crack. Homens e mulheres se acomodam nosespaços disponíveis de calçada e consomem tranquiloso seu ouro bege, experienciando o auge da debilidade

física e psicológica que os efeitos da droga proporcionam,fazendo gestos desconexos ou mantendo conversas semsentido. Outros simplesmente vagam. Feito zumbis, osolhos arregalados temperam um pouco de angústia, oa  e perdição, sem foco algum. Alguns, inconscientementeou não, optam por se entregar por inteiro e acabam pelo

chão imundo do local, em meio ao lixo, cachorros de ruae carros. O trânsito, apesar de reduzido em comparação aoutros pontos do bairro, não intimida muito as pessoas ali.

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 AvIES SEm ASAS

Por toda a extensão das ruas Araribá, Popular e JoséBonifácio é possível testemunhar a presença dos aviões.Essas pessoas contratadas pelo tráco são encarregadaspelo reabastecimento e comercialização da pedra. Trabalham em turnos variados, assim como os olheiros,estes responsáveis pelo monitoramento, vigilância e

sistema de alarme para o tráco. Qualquer situação oupresença suspeita passa pelos olhares atentos desses caras.Conhecem quem é quem ali como a palma da mão. Nãohá cracolândia que funcione harmoniosamente sem ointermédio desses dois postos. O avião geralmente começano ramo quando jovem, instigado pela possibilidade de

ascensão rápida e dinheiro fácil. Contudo, alguns entrampara o tráco já adultos, o que, segundo alguns delescorresponde à preferência dos tracantes locais Os adultoslidam melhor com o dinheiro que circula, respeitam maisfacilmente a hierarquia que existe dentro de uma rede detráco, além da maior discrição com que são capazes de

trabalhar. Um autêntico “plano de carreira”.Os aviões mais velhos concentram-se num boteco logona entrada do Buraco Quente, enquanto os outros camem pontos estratégicos do território. A pessoa que quiserpedra precisa entrar em contato com algum deles. Se é umnovato no lugar, é geralmente apresentado aos aviões porum usuário mais calejado à custa de uns tragos futuros.Outros detêm o privilégio de subir até a boca sozinhos.

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Caso contrário, já existe uma relação estritamentecomercial entre as partes. Avião e viciado não se misturam:mais uma regra de cracolândia. São raros os casos em que

os próprios aviões consomem crack. Há de se lembrar queestão ali a trabalho e somente gozando de muito respeitoe complacência dos chefes das bocas que outra substânciaalém da maconha poderá ser consumida em turno detrabalho. Eles também não permitem que se roube nasimediações da favela e da Cracolândia. É mantendo esse

tipo de ordem que os negócios uem e todo o mundosai contente. Ou, pelo menos, vivo. Eles recebem ospedidos dos usuários, coletam a grana e sobem até asbocas fornecedoras. Em pouco tempo retornam com aquantidade de pedra a ser distribuída. Esse ciclo se repeteostensivamente, 24 horas por dia.

O perl de um avião na Cracolândia de BH exigeindiferença, mas também certo jogo de cintura. Éticado empregador: é proibido demonstrar qualquer tipo deintimidade com os usuários, especialmente os mais pobres.Eles estão ali a todo momento, envolvidos pela droga,

fumando de cinco em cinco reais. O lucro com eles écerto, logo, não interessa criar qualquer tipo de vínculo,pois sempre voltarão. Já os outros tipos de compradoresexigem um método peculiar.

Surpresa ou não, existem pessoas que sobem à Cracolândiade carro. Não é só o isqueiro do morador de rua que

queima pedra na cidade. Se os usuários mais pobres têmo privilégio de praticamente morarem onde a droga brota,

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os mais abastados, ironicamente, precisam deslocar-se doluxo ao lixo para sustentarem o vício. Num dia normal,é comum testemunhar pessoas em carros chegarem até a

entrada e, discretamente, iniciarem uma comunicação porgestos com os aviões que a essa altura já se pronticaram.Quando motorizado, somente quem é autorizado ouconhecido na Pedreira Prado Lopes é que pode subir, semexceção. Como esses são poucos, é aí que entram os aviões.Feito um primeiro contato e averiguação à distância, o

motorista acena discretamente quanto quer. Rapidamente,o avião retruca conrmando a quantidade e o valor totalcom as mãos, numa espécie de mímica já decorada portodos os envolvidos. Dado o sinal positivo do comprador,o avião vai até a boca, busca a pedra e entrega em mãospela janela do carro, tudo monitorado pelos olheiros

espalhados em pontos estratégicos. O crack exige umcomércio tácito: simples, direto, objetivo.

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PROPÓSITOS DISTINTOS,CAmINHOS CONvERGENTES

Como uma simbiose, IAPI e Cracolândia se confundemem alguns momentos. Os muros do conjunto, que emtese funcionariam como isolamento natural entre umlocal e outro, praticamente ganham vida. Todo o coraçãoda Cracolândia é delimitado por eles, que servem de

abrigo natural para os usuários consumirem suas pedrase comporem aquele cenário. Os usuários têm o costumede saltá-los, mesmo durante o dia, para fumarem nosbarrancos que circundam o interior do conjunto. O localproporciona maior privacidade para o consumo, mesmoque ela, em contrapartida, arrancada dos moradores.

Curiosa é a forma com que esses muros atuam, tais quaiselementos físicos que convergem duas realidades distintasnuma só. São sinônimos práticos de uma droga queinvade os muros da sociedade. Servem de metáforas paratraduzir uma epidemia social cada vez mais manifestadaem nossa sociedade e que recusamos a encarar da forma

mais sensata: como caso de saúde pública. Nossos muros,sejam eles sociais, de classe, preconceitos, quaisquer quesejam, já não separam, não resguardam, não distinguemuma realidade que tentamos ocultar. Pelo contrário, elestrazem à tona, elevam, potencializam, permitem o acessopara que vejamos a olhos nus a desolação que aporta com

o crack em nossa era.

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Dentro do IAPI os usuários tendem a respeitar um poucomais o espaço comum. Mesmo que o trânsito seja livre pelasquadras do conjunto, não é regular que as pessoas utilizem

o interior do local como ponto de consumo, apenas osbarrancos laterais anteriormente citados. Entretanto, valeressaltar a curiosa relação que os moradores da Pedreiratêm com o espaço do IAPI. Compostos por rapazesem sua maioria, alguns grupos descem da favela até ointerior do conjunto, utilizando a espaçosa pracinha ali

existente como local de resenha e encontro. Costumamjogar futebol nas quadras do lugar em meio aos poucosresidentes que animam uma pelada. Ali também fumamum baseado sempre que possível, sem incomodar ouserem incomodados. Uma relação serena entre moradoresdo IAPI e PPL impera, fruto de uma rotina já engendrada

no contexto deles. Bem como a da Cracolândia ao lado.

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O CAmAROTE vIP

Quase ao nal da Rua Araribá, antes de chegar na AntônioCarlos, um lote de frente para avenida marca a últimaartéria do coração da Cracolândia. Entre a Rua Populare Araribá, o terreno baldio com pouco mais de 100 m²traduz pra quem passa pela via de acesso a verdadeiraimagem da Cracolândia belo-horizontina. Fica entre o

Conjunto IAPI e um galpão pintado em amarelo berrante,atualmente uma distribuidora de bebidas. Entre osfrequentadores do local, corre o boato de que, muito embreve, o misterioso proprietário derrubará e cercará tudoaquilo ali. O camarote estaria, então com os dias contados. Até lá, as já fragilizadas cercas de arame ao redor do

terreno não acuam quem quer que seja. Os buracos feitosnelas reforçam o processo de apropriação que o consumode crack exerce no local. Através deles, usuários ganhamacesso ao interior do terreno e fazem dali uma espécie deárea VIP. Para entrar e permanecer ali, é preciso que umdos moradores dos vários barracos improvisados permita.

O número das precárias moradias varia de acordo coma época de observação. Durante alguns meses, cerca dedez barracos foram construídos no local, com tapumes,tábuas, lonas, cavaletes de propaganda política, uma gamade material inndável. Todos eles eram ancorados nascercas que delimitam o espaço, funcionando praticamente

como uma parede para os abrigos. Casais com algumascrianças residem ali, naquele que pode ser consideradocomo o único assentamento da Cracolândia.

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Em meio à vegetação crescente, terra e entulho, osocupantes do lote fazem dali um espaço mais privativo,mesmo que suas misérias sangrem expostas a céu aberto

para toda uma população que transita pela avenida eassiste à cena. Naquele quadrado, poucas pessoas entrampara consumir crack, apenas as que contam com o avaldos moradores. Apoiados no que sobrou de um muro defrente para a Antônio Carlos, os seletos frequentadorescompartilham baforadas e histórias de vida, comumente

ligadas pelo vício. Ao sair, o uxo frenético da Araribá estálogo ao lado, recusando-se a parar por um minuto que seja.

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que distribuem alimentos para a população de rua. Sãodiversos segmentos das igrejas católicas, evangélicas,centros espíritas e pessoas comuns que saem no período

da noite para prestar solidariedade e oferecer um pouco deconforto ao pessoal. A concentração na região favoreceaqueles que buscam alimentos e também o crack.

O cenário noturno assemelha-se com o visto durante odia, mas com uma concentração bem maior de pessoas.

Em algumas noites, las são formadas para a compra docrack diretamente na boca, uma vez que nesse períodoa atuação dos aviões ainda existe, mas tende a diminuir.Mesmo assim, um número de guras do tráco é notório. Já em terreno da Pedreira, algumas bocas organizam osusuários em grupos para que não haja confusão, muito

menos tormento aos moradores. É permitido comprarpedra a um pequeno grupo por vez, enquanto outroespera a sua lá embaixo. Já acostumados com o desenrolardaquilo, os usuários respeitam toda uma hierarquia e fazema coisa uir naturalmente, apesar da agitação costumeirapelo consumo da pedra.

Em meio à penumbra da noite e dos escassos postesde iluminação do lugar, as luzes que são vistas vêm dosisqueiros e cachimbos que trabalham incessantementeao longo da madrugada. Em todo canto da cracolândiaé possível vê-las, singularizando uma pessoa diferente,uma outra história desconhecida. São como vaga-lumes

em meio à escuridão, piscando hora sim, hora não. Sãopessoas de carne e osso vistas como meros pontos de luzno meio do breu. Quem sabe não seja assim que preferem

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serem vistas? Sem rosto, sem nome, somente pontosdesconhecidos de luz, como todos os outros ali.

Há pouco silêncio na noite da Cracolândia. A todomomento as conversas mais loucas, nos tons mais agudosrasgam qualquer traço de quietude que ouse se aprochegar.Por vezes a histeria toma conta, quando um carro surgede algum lugar, geralmente as Kombis dos projetossociais. Nessa hora, aqueles que sentem alguma fome

ou sede se agitam para pegar um pouco de pão, sopa ouágua oferecidos. Em noites normais, a Cracolândia é umaautêntica Torre de Babel. As pessoas de todos os lugaresconversam sobre tudo e qualquer coisa em todos os cantos.Mesmo com o consumo aumentando, as pessoas tendema conversar mais também. Formam grupos de conversa

entre elas, sem muito critério. Ao se misturar entre elesé possível escutar nas rodas as experiências do dia quetiveram, o que testemunharam pelas ruas, o que zeram. Algumas falam abertamente do passado com outraspessoas que acabaram de conhecer, enquanto outras sóescutam, seja pela xação da noia ou porque são bons

ouvintes mesmo. Enquanto durante o dia o clima parecede alerta e atividade constante, a Cracolândia noturna gozade uma paz até então impensável. Mesmo com muitaspessoas conversando, vagando aleatoriamente em buscade pedra ou com seus velhos e barulhentos carrinhos desupermercado arranhando o asfalto esburacado, a noite na

cracolândia segue um ritmo próprio, desde que não sejaincomodada.

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É que tudo ali é muito tácito. As pessoas que frequentamuma Cracolândia raramente são novatas nesse mundo.Estamos falando de gente que vive diariamente o mesmo

contexto por anos a o. Elas estão cansadas de sabercomo funciona tudo aquilo e como precisam procederpra que tudo permaneça harmoniosamente funcional.E conseguem. Salvo algumas discussões, pequenasbrigas aqui e ali e gente surtando nos efeitos da pedra, aCracolândia tem tanto alguns ritos diversicados quanto

sua própria paz. E assim eles abraçam mais um dia que jáestá prestes a nascer…

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TODO FINAL É RECOmEÇO (?)

Do coração da Cracolândia até as imediações do HospitalBelo Horizonte, o que se vê são focos desencontrados deusuários que se espalham pelos canteiros gramados dos viadutos Senegal e Congo. Outros lotes vagos tambémservem de concentração para essas pessoas, agora emmenor número. Já pra dentro dos bairros, os pontos de

consumo são incalculáveis, muitos até imperceptíveis,uma vez que não seguem rotina e demarcação denidacomo na Cracolândia. Devem-se considerar, também,outros pontos que transpassam o hospital. Seria egoístae delimitador traçar um território denitivo, engessado.Existe um coração, suas artérias, suas veias. Talvez essa seja

a metáfora de representação territorial mais condizentecom a Cracolândia de BH.

 A Cracolândia é organismo vivo. Ela transita, não se aquieta,está em constante mudança, mesmo que com os mesmospersonagens envolvidos em sua trama. Seus espaços são tão voláteis quanto os efeitos da própria pedra que a batiza. Otempo ali passa tão devagar para quem não consome crackque muitas vezes tem-se certeza de que o relógio mentedescaradamente. Durante esse lapso temporal, o misto desensações brota como convite a reexões mais profundassobre o que somos, o que queremos e o que fazemos denossas vidas. Ela proporciona àqueles que a exploram depeito aberto uma real e quase palpável dimensão da angústiahumana; da desolação, da falta de perspectiva. Seu cheiro

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e gosto – que de fato possui, podem acreditar – remetemduramente à completa falência da dignidade humana.

Ninguém é feliz numa Cracolândia. Não pode existirfelicidade num lugar onde tudo perece, queima, vira lixoou perde a identidade. Onde as pessoas morrem pordentro e por fora na mesma velocidade aterrorizante.Não há um pingo de esperança nos sorrisos que, mesmoinebriados, não convencem totalmente serem sinceros. O

crack e tudo o que vem com ele são sim pedaços de uminferno na terra. É apenas gastando sola de sapato numadas muitas cracolândias espalhadas pelo país, colocandoa bunda na mesma calçada que os – crackros  - e ouvindosuas vozes, seus demônios, sentindo suas idiossincrasiasna pele que podemos dizer com todas as letras: não há

o menor traço de felicidade no inferno. Nem o crackmais poderoso é capaz de oferecer a certeza de felicidadepermanente aos usuários que se afundam nesse inferno. Omais triste é saber que eles mesmos sabem disso. Nada dotestemunhado parece ser real, contudo, dolorosamente é.

São existências execradas de seres humanos que

lamentavelmente perderam no jogo da vida. Por escolhaspróprias ou não, caíram de cara no fundo do poço. Semesmo assim não são vistos como dignos de recuperaçãoe esperança por uma sociedade doente como a nossa, queao menos sejam dignos de amparo. Dignos de empatia.Os pré-julgamentos ganham tônica quando as próprias

histórias dessas pessoas valem menos do que a pedraque elas fumam. Julgamos sumariamente sem qualquer

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conhecimento de causa, sem conhecer as razões de estaremali. Julgamos, única e exclusivamente, pelo ato de julgar,que tanto nos apraz.

 e aqul qu uca julgou por julgar, qu atr - ou acda - a prmra pdra…

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CAPÍTULO 4

ECOS…

UmA MiSS  SEm FAIxA 

Em maio, Bruna completou dois anos de idas e vindas à

Cracolândia. Dois anos de uma realidade impensável para aentão jovem de 18 anos que morava com os pais no bairroCamargos, divisa entre os municípios de Belo Horizontee Contagem. Naquela época, a vida era branda. A famílianunca foi rica, longe disso. Mas não faltava comida, teto,amigos, namoros, tudo como manda o manual da vidapacata para uma jovem adulta. Uma bela adulta. Hojeprestes a completar 22, apesar do preço abusivo que ocrack cobra diariamente da sua beleza e corpo, não restamdúvidas de que sempre foi uma mulher muito bonita.

Saía com os amigos para festas, especialmente para osforrós, recordados com a dose de saudade exata para não

serem apagados da memória. Num desses, conheceu umhomem mais velho, à época com 32 anos, que a atraiuno minuto em que a chamou pra dançar. Parecia bem de vida, vestia-se bem, português em dia, aparência boa, armisterioso, seria um boto-cor-de-rosa em chão mineiro? A dança virou um namoro intenso entre os dois e, mesmo

com os pais não aprovando a diferença de idade, preferiamalguém mais velho para a lha do que qualquer um dosrapazotes sem juízo do bairro. Nos primeiros meses saíam

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juntos sempre e para Bruna o sentimento só aumentava,assim como a conança.

Uma festa em Belo Horizonte marcaria para sempre sua vida. O namorado abriu o jogo e assumiu que fumavacrack há um tempo, mas que ao contrário dos “oas daTV ”, levava uma vida normal. De fato, trabalhava como vendedor e com esforço tocava um curso na faculdade,como tantas outras pessoas. Um viciado funcional,

também como tantos outros entre nós. Nunca dera umdeslize, já que fumava aos nais de semana em casa, longeda namorada. “ naqul sábado, l sstu tato pra qu uxprmtass fumass juto qu ão rsst. M assustou a dad cara, mas u tava muto a dl, jovm, apaxoadha, trouxa.Fomos pra casa dl fum crack a prmra vz a vda ”.

Sábados como aquele tornaram-se constantes para ocasal, agora juntos no vício. Bruna passou a gostar cada vez mais. Em sua cabeça, essa sensação diferente comalguém em quem conava valeria a pena o risco. Passarammeses assim, vivendo uma versão entorpecida de Bonniee Clyde, sem que a família percebesse nada. Até que, ao

retornar de uma viagem, o namorado decidiu terminaro relacionamento alegando falta de tempo e sentimento.O baque foi forte e deu início à derrocada de Bruna.Depressiva, passou a car cada vez mais isolada, emcasa, consumindo crack escondida enquanto os pais nãoestavam. “ eu fu dscdo uma ladra sm volta. Comc a fumar

todo da pra squcr das cosas, do lho da puta qu m aprstoua pdra prcpalmt. Pgava com algus cohcdos, mas acab

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 prcsado vr a cracolâda quado ão tham. Fo aí qu cohco sgudo fro da mha vda ”.

 Voltando mais cedo do trabalho, seu pai a surpreendeuno ato. Chucro, não pensou duas vezes antes da sova e acolocou para a fora de casa, dizendo que “não botaria ospés ali outra vez se continuasse a fumar essa merda”. Amãe nada poderia fazer. Desnorteada e fragilizada, Brunase entregou completamente ao vício. “Sto muta saudads

da mha mã, muta msmo. S qu la já vo aqu m procurar,m scod pra ão m vr ssa stuação. Do mu pa, huma ”.

Faz dois anos que perambula pelo Complexo da Lagoinhae mudou bastante sua personalidade desde os temposdos forrós. “ não sou d log a msma pssoa. Dsgrac mhavda. Olha o mu stado, cara! Vamo vr até od sso va dar ”.

Não gosta de falar sobre como consegue sustentar o vícionanceiramente. Apesar de sujos, os cabelos castanhosaté os ombros ostentam um anelado bonito, desses queparecem pequenas molas. Usa um singelo arco brancopra domar o volume dos cachos. No rosto carregaolhos igualmente amendoados, um poder de penetração

instigante, desaando qualquer um que os cruzam a mantero olhar inalterável, enquanto o corpo tem a magreza que asmodelos de passarela tanto buscam. Garante que não vemdo crack e sim do “lado da mã ” na família.

“O pssoal até brca aqu qu u sou a Mss Cracolâda! Hahaha!

Vê s pod! ”

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 AvIÃO qUE NÃO SAI DO 

CHÃO, vOA?

Cléber não tem asas, mas voa. Aliás, sempre quis voar.

Na gíria do tráco, - aião - é a pessoa delegada às funçõesde revenda e distribuição da droga nas esquinas e entradasda favela. Fazem o meio-campo entre tracante e clientela,

sem que o primeiro tenha que colocar o pé na pista. O - apor – por sua vez, é o olheiro responsável por monitorare alertar sobre qualquer movimento suspeito na entradadas favelas – e evaporar assim que o detecta. O avião estáuma escala acima dele na hierarquia do tráco. Precisaganhar a conança do tracante ou gerente da boca, seja

através do trabalho diário, da troca de favores ou mesmopor pequenos testes, crimes na maioria das vezes. Uma vez efetivado, receberá uma área especíca de trabalhoe, em parceria com outros aviões, será responsável porcomercializar as drogas e ser o elo necessário entre clientes,mercadoria e fonte.

Pelo menos na região da Cracolândia, é proibido aos aviõesconsumirem qualquer coisa além de baseados enquantotrabalham. Ordens superiores. Não recebem tanto pelotrabalho, uma vez que tudo depende do uxo de entradada grana. Se vendem mais, ganham mais. Se vendempouco, lucram pouco. Alguns aviões gostam de receber o

“dolado”, a forma de pagamento que consiste numa parteem dinheiro, outra em droga. Contudo, o pagamento queatrai os rapazes interessados na função é outro. Como num

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plano de carreira ambicioso, os aviões sabem que começarpor baixo, ali na pista, dá visibilidade. Destacar-se e serpromovido na hierarquia do tráco é o que todos eles

querem, pra quem sabe, lá na frente, comandarem onde jáforam comandados. Receber em respeito vale tanto quantoem reais quando se começa na base da pirâmide.

Cléber é avião do tráco na Pedreira Prado Lopes há doisanos. Aos 15, começou como vapor ajudando um amigo,

sem nunca esconder de ninguém que aguardava pelaoportunidade de iniciação. Em menos de quatro meses,evaporando muito melhor que os outros, subiu para avião.Inquieto, o sotaque carregado de gírias e de entonaçãocaracterística dos diálogos no tráco demonstra um talentodistinto para a função que exerce. Sem enrolação, sempre

objetivo, fala como se estivesse concluindo uma venda acada pergunta. “Prgutou, rspodu, pá pum! ”.

“ eu smpr qus trabalhar aqu, zé. V mha vda tra amolcadha comçar a ralar aqu, gahar um troco, subr a vda.Usar us pao ovo, tr mu dhro, ouro o pscoço, sar com os parcros. estudado u uca vou cosgur sso aqu u m sto

m casa. Pssoal m rspta plo corr qu u faço. Sado daqu ucurto mha vda, como tm qu sr msmo. É só ão vaclar ”.

 Aos dezessete anos, é um rapaz como tantos outros por aí.Bermuda, chinelão, boné, camisa atual do Messi. No peito,uma corrente de prata dessas pesadas, contrastante com

seu biotipo magrelo. Transita pela Cracolândia com totalliberdade, mas “sm dar sparro”. “O avão bom é aqul qu ca a dl, qu psa lv, fraga? Va até os caras, scuta o qu ls

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qurm, pga a graa, trga o produto dspacha o sujto. Marcaum pouco um outro poto, dsc pra outro, tudo a suav, smdrama. Os cara qu compram já t cohc, sab sua cara. Chgam

sm vaclar também pra ão chamar mas atção. Qum ão é vstoão é lmbrado.”

Enquanto fuma um cigarro sentado na calçada, doishomens se aproximam. São usuários de crack já veteranosna região, conhecidos por Cléber. A transação é rápida,

sem oreios, como manda a regra.“Vê quatro d cco aí ”, ordena um dos homens, tirando umanota de vinte toda amassada do bolso.

“ Marca aí ”, responde Cléber se levantando em direção àentrada do beco.

De dentro de uma mochila, tira uma pochete onde guardaas pedras de crack. Com uma destreza incrível, pega amercadoria numa fração de segundos e já retorna. Dáuma conferida olhando pros dois lados, nada consta. Numaperto de mão que serve muito mais pra repassar a drogasem chamar atenção do que como indício de amizade,conclui a venda. Sem despedidas, “obrgados ”, “volt smpr ”nem nada. Toda a cena não dura mais que dois, trêsminutos. E ela se repete incontáveis vezes ao longo do diae da noite.

Cléber não se lembra direito do pai. Das suas histórias,

sim. Bêbado, agredia sua mãe constantemente na frentedele e dos outros três irmãos. Até que, já maior sicamentee cansado psicologicamente, o mais velho decidiu que era

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hora de fazer alguma coisa. Numa dessas noites, quandoo pai estava prestes a dar início à rotina de surras, deu-lhe um chute tão violento no rosto que o mesmo foi a

nocaute. Foi arrastado para a rua e escutou do lhomais velho e dos vizinhos que, se voltasse ali, morreria.Nunca mais foi visto. Pela mãe, “só rspto”. Discerne comnaturalidade sobre o que faz para viver e o que ela gostariaque ele zesse, num plano distante. Sabe que, no fundo,o coração da mãe desaprova totalmente a vida que leva,

porém prefere seguir adiante, pois “a atvdad u cosgo gahar pra ajudar m casa m susttar ”. E não conseguiria omesmo em um trabalho qualquer? “ não. nos outros u ão fara o qu gosto, ão sra rsptado muto mos a tr a chacd crscr como aqu. Um da chgo lá o topo, tá lgado? ”.

Com certo tempo trabalhando na Cracolândia, já perdeu ascontas de quanta coisa louca viu por ali. Cara engravatadocomprando, tiro para o alto, brigas, sangue, até morte. Játeve que sair no braço e chamar reforço do beco quandoum cliente quis lhe passar a perna. Viu a polícia fazer umcatado de usuários e por vezes nem fazer nada nas rondas.

Garante que nunca teve problema com eles, mas sente quecertamente seu rosto já é conhecido. “ É só ão dar sparro,zé. eu ão dolo (cosom) ada durat o corr, tão tô smprlmpo. Cê vu qu tm lugar pras parada carm guardadas todahora tm outro avão qu pga a graa com a gt sob la pro céu(rpassa pro grt da boca, log dal). Gralmt u faço ssa

 fução, mas agora tão dado chac pros outros molqus aí. Muom já tá lá com os caras, sdo fto. É cotuar a luta aqumbaxo qu uma hora a gt voa mas alto.”

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O vELHO E NOvO AmOR...

Essa é uma história de amor.

Esguio como tantos ali, Ronaldo sobe e desce com ouxo numa calma que combina com aquela noite. Mesmosem conhecer tanta gente na Cracolândia ainda, parecepertencer ao lugar, sem se intimidar com os faróis dospoucos carros que sobem a Rua Itapecerica e cismam emlançar luz àquela escuridão de almas. Não carrega nadaconsigo, apenas o RG no bolso esquerdo, já puído pelaconstante fricção no único par de jeans que possui. Depoisde um dia agitado entre becos e pedras, escolhe um canto vazio no passeio para sentar e tar o nada, literalmente.Mesmo sem a obrigação de observar coisa alguma ali, seusolhos permanecem abertos, imóveis, claramente distantes.Cumprem muito mais a função de sentinela de um corpomagrelo do que de janela da mente. Parece faltar-lhesalguma coisa.

 Já se vão três semanas desde que Ronaldo, de 19 anos,

saiu de sua casa em Santa Luzia. Desde então, não fezcontato com parentes ou amigos, por pura vergonha de voltar atrás e ser questionado sobre os motivos que olevaram a escolher tal caminho. Enquanto muitos largam oconvívio social familiar devido à força bruta que o vício docrack impõe, Ronaldo o fez por amor. Sim, amor. Carolina

passara a andar com um pessoal diferente no últimomês de março. Já não atendia ao telefone com a mesmafrequência de outrora, até que cessou de vez. Ele tinha

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 virado dinheiro. Quando chegava a noite, não dava maisas caras no bairro, só retornando na manhã seguinte, meiosuja, desnorteada, vagando em direção à sua casa, uns dois

ou três barracos antes de chegar ao Ronaldo. Preocupado,o namorado achou que era algum tipo de traição e jamaisaceitaria isso. Decidiu seguir Carolina, disposto a esclarecertamanha mudança e ausência. Duas horas depois, passadaa ira inicial da namorada ao vê-lo subindo a rua atrás dela,estavam sentados na mesma calçada em que Ronaldo

ta o nada na noite de hoje, prontos para compartilhar aprimeira pedra de crack juntos.

Ronaldo nunca foi santo, é bem verdade. Alerta que fumavaum baseado aqui e ali com o pessoal do bairro, dava o canonas biroscas e ainda tinha a cara de pau de voltar no outro

dia. “ Mha cabça smpr fo mo fraca. Smpr m dxavaucar plas pssoas pra tr a aprovação dlas. Hoj tô aqu ”. Ao descobrir que a namorada já se encontrava entregueao vício naquela noite, decidiu que não a deixaria sozinha,nem que fosse pra entrar no mesmo balaio. Fizeram umpacto de experimentar juntos e, caso Ronaldo não curtisse,

tomariam o rumo de casa e ajeitariam a vida outra vez.Curtiu mais até que a própria namorada. Voltaram paracasa apenas para buscar um relógio que Ronaldo tinha,dispostos a car juntos e sem olhar para trás, ver aonde a vida os levaria.

 Às vezes, o tal do amor é torto. “ A Carola é o grad amor

da mha vda. Mas o foda é qu la sumu logo a prmra smaaqu a gt fugu. Smpr fo quta msmo. Dss qu a o Ctrodscolar uma graa sumu. Já rvr lá ada. Aqu o pssoal

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 fala qu la arrumou um doz (tracat) pra la, mas u duvdo.Tho spraça dla voltar pra cá. Só tho vrgoha d voltar probarro pra ttar dscobrr, vr um lxo d gt mha famíla

ão mrc. Só fal qu fu mbora. Caralho, la m dxou uma puta hraça ”.

De fato. Depois do pacto de iniciação e uma vez viciado,Ronaldo percebeu o tamanho do problema. A vergonhade voltar para casa contrasta com a naturalidade em que

conta sua história ímpar. Foi até a Cracolândia por amore lá permanece com o mesmo intacto, seja pela moça oupelas pedras. “Olha cara, u aprd a curtr o crack muto rápdo, fo uma loucura. Agora ão tô com votad d parar, até porqutô sprado la voltar. Até lá u vou cado aqu, durmo ploCtro, s sobrvvr sso aí. Tm da qu pso s ra mlhor la

tr m traído do qu m trazdo pra cá, mas crtza qu sso é a oa falado.” 

 Ainda que amarga, essa é uma história de amor.

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“SER OU NÃO SER, EIS A qUESTÃO”

“ A por cosa ssa vda d cão é fazr algo qu ão é você d vrdad. eu sou oado, mas vado uca fu. Só qu tv us das aí quu ão dscol fácl a graa. Daí u faço us programas msmo...”

O que Davi fala é verdade. Caso não seja, ele tem umahabilidade ímpar para convencer as pessoas com suaspalavras. Aos 24 anos de idade – que mais parecem 34sicamente – conta sua história com naturalidade, semempacar na timidez, como se tivesse ensaiado por diaso conteúdo da prosa. Fala rme, veemente, gesticulandomuito com a mão direita, enquanto a esquerda seguraum latão de cerveja. Está visivelmente alterado. “ A pdra faz u falar dmas, cê dsculpa u qualqur cosa aí ”. Essa é aquarta vez que sobe a Rua Araribá atrás de pedra naqueledia. Não anda tão sujo quanto algumas outras pessoas ali,mas certamente apreciaria um banho. Os olhos negros,profundos nas órbitas são fruto de “dos das tros o ar! ”.Sem descanso, vem consumindo crack há mais de trêsanos, num ritmo que assusta a ele mesmo.

Naquela semana, ele fugiu às suas convicções. Se foi aprimeira vez, não se sabe. Segunda, terceira? Muito menos. A última? Certamente não. Fato é que, sem conseguir agrana para manter o vício naqueles dias, aceitou o convitepra um rápido programa. Foi convidado por outro homem

que o vira pela primeira vez na Praça Rio Branco e nãose intimidara em propor o esquema. “D cara u rjt, é! Maluco vadão, carca, vo pra cma d mm com papo mol u já

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mad a ral: sou drogado, só qu ão m sujto a qualqur cosaão! Mas st qu l voltara dpos ”.

Uma semana depois ele voltou mesmo. Davi não haviaconseguido levantar mais que dez reais naqueles dias. Maldaria para duas pedras e um lanche qualquer. “Roubar u ãocurto”. O tal homem careca voltou ao mesmo lugar ondeabordara Davi na semana anterior. Dessa vez, a propostabalançou o rapaz: 30 reais, discrição, jogo rápido. “ el dss

qu u ra muto boto qu tha gostado d mm. Dva tr us40, 50 aos, bcha vlha msmo. Falou qu trabalhava qu podam ajudar a sar dss lxo. eu só scut. Já tava mas puto qutudo, só qura mha graa comprar um pga. Tm cosa qu vocêsó va faz, um psa muto as cosquêcas ”.

Combinaram rapidamente o local: um motel qualquer ali

nas imediações da rodoviária mesmo, que fosse discretoe limpo. Davi se recusa a entrar em detalhes, mas diz veemente que foi “o macho da hstóra ”. Meia hora depois,desceu as escadas e ganhou a rua outra vez. Precisavarespirar ar fresco. Faria isso enquanto caminhava emdireção à Cracolândia. Desde aquele dia não viu o homem

careca outra vez. “ Mas crtza qu l volta. esss cara tmdhro qur avtura. eu quro mu troco, pacêca ”.

O que impressiona e faz com que suas palavras pareçamcríveis é a naturalidade com que discorre sobre o episódio.Eu estava ali para contar uma história, mas fui tragado pela

dele. Muitos usuários de crack aumentam fatos em seusrelatos, chegam claramente a inventar outros. Mas a pontode criar uma aventura homossexual, ainda mais se dizendo

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hétero, era a primeira vez que eu testemunhava. Para Davi,falar daquilo era somente uma etapa a ser contada sobrecomo obteve a grana para as pedras que estava fumando

naquela semana. O fato de ter feito um programa comoutro homem não o incomodava.

Davi é um homem moreno de traços fortes, olhosprofundos, fala rme. O cabelo moicano demonstra que,quando tem oportunidade, gosta de se cuidar minimamente.

“ Msmo ssa mséra aqu a gt tm qu vvr, é. Tm um pssoal qu vm cortar o cablo da galra d graça u pço ls pradarm um jto o mu smpr qu possívl. Tamo a rua, mas um cudo”. No braço direito carrega uma tatuagem de traçosamadores. “Vrgía. É o om da mha mã, qu já morru. Sla tvss vva u ão tava ssa mrda qu tô hoj ”.

 Apesar do episódio, Davi não se considera gay. Garante quenão sente nenhum tipo de atração por homens. Faz questãode reforçar isso. Para ele, o ocorrido foi simplesmente amaneira com que sorte e oportunidade se ofereceram a elenaquele dia. “ na hora ão st ada. Fz o qu tha qu fazr,l m pagou pra sso. Mas dzr qu u curt, um curt ão. Odo

 fazr qualqur cosa qu ão é d mm. Mas vda qu sgu. nãosao por aí cotado, mas também assumo o qu faço”.

E faria outra vez, pelos mesmos motivos? “Ua, tudo dpd,é cara. S u tvr prcsado, posso psar a hora al rsolvr. eu só ão faço o papl d mulhr. Vda d rua é assm msmo, tm

muta lógca ão. Qu s foda ”.

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NOmE DO PAI: CRACOLÂNDIA 

 A barriga não mente: Val está grávida. Outra vez.

 Val é apelido pra Valéria. Retrato vivo do caos que o crackcausa na vida das pessoas. Aos 26 anos essa é a sua terceiragravidez. Em pelo menos duas delas, consumiu crackregularmente ao longo das gestações. Sua aparência passaa sensação de que é bem mais velha; arquétipo magrelo,maçãs do rosto no osso, tenta domar sem sucesso odescabelo com uma touca de lã sob o sol senegalêsdaquela tarde. Os efeitos da pedra fazem com que elaesteja extremamente agitada, andando de um lado parao outro rapidamente, como se estivesse enfurecida comalguma coisa. Dá trabalho para acompanhá-la. Fala demais,fala tudo, fala qualquer coisa. Fala até o que sente, quandoconsegue se abrir de verdade.

 Valéria é mineira mesmo, de Sete Lagoas. Saiu da cidadeenrabichada num caso que já era fadado ao fracasso. Aos16 anos se apaixonou por um homem 20 anos mais velho

que dizia o quanto mudar para BH melhoraria suas vidas. Val já estava grávida do primeiro lho e sua família nãoaceitava a situação. Decidiu fugir com o namorado paraa capital e tentar a sorte, que nunca chegou. Logo após onascimento do lho, foi abandonada. Havia sofrido muitocom as brigas e agressões durante os nove meses. Naquele

dia, acordou na casa simples em que morava e o homemhavia saído sem deixar qualquer vestígio. Nunca mais o viu, apesar de ter sido informada anos depois que fora para

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a Bahia. Sozinha e com um lho, não teve coragem de voltar para casa e se perdeu no mundo. Perdeu tambéma guarda do bebê, que foi para um abrigo. “Fo pra um

orfaato. Dzm qu uma famíla vagélca cou com l. Fo mlhorassm ”. Abandonada, conheceu o crack nas ruas. É o seucompanheiro mais duradouro, pra não dizer o mais el.

Sim, porque desde então foi incapaz de se estabelecercom outro homem. Pelo contrário. Viu na prostituição a

possibilidade de conseguir dinheiro pra viver e manter o vício. Não pensou duas vezes e passou a fazer programas.O primeiro foi logo que se entregou de vez ao crack, paradesde então perder as contas de quantas vezes fez. “ eumor us dos aos a casa dum tracat aí, com outras duasmas. A gt m tha ada com l ão, ra só pro sxo

msmo. el abrgava ós, dava pdra a gt dava sxo pra l osamgos. Mlhor qu car a rua. Foda ra tomar porrada drto...”.

 Tudo contado numa naturalidade intrigante. Não parece seincomodar com as incontáveis vezes em que foi agredidapor homens na rua. Conversando com ela é impossível nãose questionar se lá no fundo do peito não se sente abusada,

tamanha a languidez que as lembranças trazem. Tudo eramotivo para os abusos. Alguns caras se recusam a pagarprograma com uma “oada ”. Outros faziam por cretinicemesmo, batem por prazer. Num episódio, Val teve oscabelos cortados com uma faca, tudo porque reclamou dabrutalidade com que o cliente estava conduzindo o sexo.

“ eu uca tv mdo d morrr ão, mas ssa vda louca dxa a gt assustada. Tm cara lho da puta m qualqur cato pra tbatr por ada ”.

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Hoje tem desenvolvido seu faro contra clientesproblemáticos. Evita outros usuários de crack ao máximo,“ porqu oado ca louco fácl dmas ”. Já com os bêbados,

apesar do asco que diz sentir, se arrisca, pois “d bêbadodá pra arracar mas dhro, uma crvja ou um lach por aí ”.Conta também com alguns clientes xos, geralmentemoradores de rua, “qualqur um ”. Cobra de acordo coma cara do cliente. Raramente mais que R$10. Aceita pedracomo pagamento também. Quando tem preservativo na

roda, usa. Quando não, o detalhe não impede o programa.Quanto aos locais de trabalho, Val é itinerante. Passaa maior parte do tempo nos arredores da Cracolândia,“ porqu aqu tm lugar d sobra pra fazr o programa o pssoal jám cohc. Qualqur cato mas vazo dá ”.

Devido à natureza dos programas que faz, Val já engravidououtras duas vezes. Está no sexto mês de gestação daterceira gravidez. Nas duas últimas, não soube identicarquem eram os pais das crianças. Também nunca fez umpré-natal. O barrigão já saliente empurra para cima a blusasurrada que usa, cando ainda mais evidente. Seja qual

for o contexto, a inegável beleza da gura de uma mulhergrávida é sempre cativante. O corpo mirrado parece quenão vai dar conta de mais um parto, mas Val diz que se sentebem no momento, sem dores ou complicações. Fumoucrack por todo esse tempo, só que agora em quantidadesbem menores. “ É qu mu stado assusta os caras, é! Qum va

qurr fazr programa com uma grávda? Ada aparc us aí, massm tata graa u compro mos pdra ”.

O segundo lho nasceu com problemas respiratórios

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NÃO É JUSTO PARA qUEm?

“O d smpr, Doa Adéla! Hoj pod caprchar a graola ”.

 A maneira decidida com que irrompe na sorveteria e faz seupedido em alto e bom som contrasta com a personalidadede Raul. Consegue pedir seu açaí de toda tarde sem sequestionar muito, decidido. Por outro lado, não consegueagir da mesma forma com o seu dilema mais profundo.Não sabe se gosta ou desgosta, se aceita ou não. É umhomem indeciso.

Dos seus 24 anos de idade, 14 foram correndo pelo asfaltobatido do Conjunto IAPI. Mudou-se com os pais aindajovem para o primeiro imóvel próprio da família. Época

boa para ser criança, quando brincar na rua valia maisque tablets e celulares nas mãos. Boa parte da sua infânciateve os muros do local como cenário de fundo. Foi ali queaprendeu a se equilibrar em uma moto, era ali que jogavabola, se escondia e até namorava. Em alguns aspectos, ostempos não mudaram tanto. “Dsd qu u m tdo por

 gt o iAPi é assm. Plo mos o toro dl ”.

Raul vive um conito interno. Não sabe se gosta ou sese incomoda com tudo aquilo que o rodeia. A palavra“acostumado” é presença constante em sua fala, dandoindícios de que mais engole goela abaixo do que

compreende. É que seu apego emocional com o local éreal, diante de tudo o que viveu ali. Vai do saudosismoao contentamento em segundos, passando por momentos

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de tristeza e insatisfação. Lembra com felicidade de tantosepisódios passados, mas rapidamente volta a ancorar-se naatual realidade adulta que costuma lhe causar indignação.

Internamente, lida com duas frentes de batalha: a dasmemórias dos tempos bons de infância e a da incômodatragédia social que virou o seu local favorito. Não consegueescolher de que lado car.

“ eu crsc sso aqu. ess lugar faz part da mha vda, do mu

carátr. eu ão quro m mudar daqu. Mas a stuação do jto qutá m rvolta sm. Porqu guém faz ada a rspto? Tomaramosso spaço, traram o osso cojuto sm prmssão. Hoj tmosqu os acostumar com uma raldad qu ão compactuamos. Masm mudar, ão prtdo. É mas mu do qu dls ”.

Raul se preocupa com o que a sociedade pensa do local.

 A imagem perpetuada pelos discursos da mídia e dasociedade em geral, para ele, não condiz com a real opiniãodaqueles que mais deveriam ser ouvidos: os própriosmoradores. É quando seu conito interno aora mais uma vez, ao prospectar a situação no que seria o olhar de outraspessoas para o local.

“ eu tdo qu as pssoas xrgum o iAPi como um lugar rum.Talvz u zss o msmo s morass m outro cato da cdad. Musamgos são mo rtcts m aparcr aqu. Tr uma cracolâdacomo vzha é muto grato! Só qu las cofudm ss cáro dotoro com o qu tá al dtro, tr os prédos. São famílas com

aos d hstóra, pacatas, qu ão colaboraram m ada pra qu astuação chgass a ss poto, plo cotráro. São tão aftados quato

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u…Cohço gt qu tm vrgoha d dzr qu mora aqu porcausa dsso. não é justo”.

 Apesar dos problemas em aceitar, Raul leva uma vidanormal, assim como tantos outros moradores vizinhosde uma cracolândia. Durante o dia, ele reitera que apesardo movimento de usuários, é tranquilo andar pelas ruasdo bairro. Quem é morador sabe da rotina no local e játem seu rosto conhecido, o que lhe garante passe livre

sem ser incomodado. Ele só evita a Rua Araribá, ondeparticularmente não se sente confortável com as pessoaslargadas nas calçadas. Nessa hora nota-se que seu incômodoé mais por pena do que pela tal insatisfação anterior.

“ M sto vaddo sm, como morador. Mas ão arrdo pé. no alvocê acostuma, cada macaco o su galho...”

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O NÓ NA GARGANTA…

Essa foi sem dúvidas uma das mais difíceis de ser coletada. Junho de 2015, noite fria na Cracolândia. Seu rosto jáera familiar das minhas andanças noturnas pelo Centro.Fosse voltando para casa ou no meu ponto de ônibuspróximo à rodoviária, era gurinha carimbada no álbum damadrugada belo-horizontina. Pelo menos no das minhas.

Nunca havíamos nos falado anteriormente, nem mesmocruzado olhares. Da parte dele, eu não existia até aqueleexato momento. Da minha, já o observara solto na noite,sempre me intrigando. Perambulava pelo Centro, orasozinho, ora com outros caras. Nunca sabia para onde ia.Como poderia estar ali, tão tarde? Será que tinha família,

mãe ao menos? E para ir embora, como fazia? No minutoseguinte eu já me distraía e o perdia de vista.

Robinho é Robson, um garoto negro, de cabelo crespo eque usa um boné de aba reta bem surrado. É extremamentearredio; extrair qualquer coisa dele requer paciência de Jó,

com doses de obstinação. O farrapo que se tornou suacamisa deixa amostra uma parte da barriga, enquanto abermuda mal para presa na cintura. Resolve o problemafazendo de cinto um pedaço qualquer de o. Seu par dechinelos é de numeração tão inferior ao tamanho de seuspés que os dedos tocam o chão constantemente. É o únicopar que tem. 13 anos de idade. Nem tem o jeito daquelesmolecotes precoces, troncudinhos, espichados. É criançamesmo. Magrelo, baixinho. Cara e corpo conrmam o quea mente observadora recusa acreditar.

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Mora nas ruas, sob o céu das noites de BH. Na verdade,tem pai e um barraco no Aglomerado da Serra, lá pro altoda Avenida Afonso Pena. A mãe morreu quando era bebê.

Morreu não, foi assassinada. Sua inexistente relação coma gura paterna faz com que ele mesmo se considere ummenino de rua, tamanho o abandono que sofre. Largou aescola na quarta série e nunca mais pegou num caderno.Passa dias seguidos sem voltar para casa, preferindo asincertezas da cidade ao abuso certo em casa. “ Ah, mu pa

bb dmas m bat. Sou homm, apahar a cara ão dá. Tmda qu qura qu l tvss morrdo mha mã cado”.

Garante que não frequenta a Cracolândia todos os dias. Ali é chamado de “mor ”. Para quem sobe a rua e o vêmisturado aos usuários adultos, os olhos custam a desviar.

Como uma criança vai parar numa cracolândia? Com amesma facilidade de gente grande. Conhecem o crack, sãodominadas pelo vício e não pensam duas vezes em carpor ali. Robinho reluta, mas conta quando conheceu ocrack. Fumou um baseado misturado com farelo da pedra.O mesclado bateu tanto que ele voltou na boca para pegar

mais e então descobrir que tinha crack no meio. Levoumeio a meio: um pouco de maconha, outro tanto de pedra.Depois de um tempo só voltava para buscar a segunda. Aprendeu a fumar com a própria rua.

 A vida tem uma dívida pesada com Robinho. Ofereceu opior dos mundos para um menino sem qualquer estrutura.

 Teve e tem a infância tão roubada que conversando pareceum adulto. O papo é de adulto, as gírias são de adulto,até o ritmo da voz não condiz com sua idade. É gingado,

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meio que malandro, sempre parecendo desconado e coma fala picada. Não tem perspectivas de futuro porque nemoportunidade lhe foi concedida para elas serem criadas.

 Tudo lhe foi tirado: inocência, respeito, afeto, infância,futuro.

“ eu ão curto, mas roubo sm. Al prto da rodovára smpr dáum movmto mlhor, umas ta trouxa ou us vaclão d cartra obolso d trás. Mas roubo só pra comr fumar msmo, só pra sso”.

 Ali no uxo ele tem um talento. Enquanto a meninada nasua idade sonha em provar seu talento correndo atrás debola, ele é engenhoso com as mãos. Talento ingrato. Juntauma sucata aqui e outra ali para confeccionar pequenoscachimbos cobiçados entre os usuários. Os dedos miúdossão propícios para catar e burilar os materiais que utiliza.

Não usa ferramenta alguma, só a criatividade mesmo.Quando quer ou precisa, senta na rua mesmo e faz umcachimbo em pouco tempo. O que ele utiliza hoje é feitode um pedaço tubular oco de antena, acoplado a umapequena peça interna de computador em formato de bojo. Vende cada um por mixaria ou permuta. “[…] O dhro

m val o trampo qu é pra fazr ss trm. Faço troco m pdramsmo, mas fácl. Ou tão como. Gosto d coxha...”.

Robinho é um garoto que, dolorosamente, simboliza adegradação que a droga causa. Todas as suas perspectivaslhe foram arrancadas. É a tradução mais que literal do

termo “menino de rua”. Ele é a própria rua. Até aquelemomento, tudo na sua vida havia tomado caminhoserrados, dolorosos. Talvez nunca tenha tido a chance

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de experienciar momentos felizes dada a realidade deabandono com a qual convive desde que se entende porgente. Confunde em sua cabeça de criança aquilo que de

fato é feliz com o que é triste. “Flcdad pra mm, zé, é podradar a rua aí, lvr, fumar, trombar com o pssoal. Quro largarão, já acostum […] futuro u m pso. Só car vvo msmo játá valdo. A vda é sso aí! ”.

Não, Robinho. Não é.

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...POUCO COmO Um REI OU mUITOCOmO Um zÉ?

“Só ão bota o om d vrdad, são dá trta, zé! ”

Nem foi bem num tom de ameaça. Foi mais um pedidomesmo, daqueles que de tão sem jeito tomam outra formaquando ganham o mundo. A oportunidade era única: ouvir

da fonte, o outro lado da moeda. Condição mais que aceita. Tim perdeu as contas de quanta coisa louca já viu naCracolândia. Tá mais que acostumado a todo tipo desituação, apesar de aparentar pouca idade. “24, bota aí! ”.Boto. No braço direto, um pedaço de plástico lmeenrolado protege a tatuagem mais recente. Duas mãos

em posição de oração, ambas com uma ferida nas costasque parecem gotejar sangue, segurando um crucixo. A féexiste nos lugares mais inóspitos para alguns. Para Tim,muito mais. “ essa atvdad toda aqu é só por Dus, tá lgado. São tvr fchado com l a gt roda fácl ss mudo”.

Desde os 13 anos Tim já manjava do riscado. É lho daPedreira, nascido e criado ali, com orgulho. Nem semprefoi fácil. Aliás, parece que nunca foi. Perdeu a mãe cedo,fato sobre o qual evita se delongar. Restou um pai alcoólatrae abusivo, que tornava a vida dele e dos dois irmãos aindamais amarga. “Pra ão car apahado do vlho m mtr o

louco fazdo cagada, u vva fora d casa. não tm jto, é a vdad favlado. isso aqu é a mha scola.”. Vida dura, de barracoem madeirite até melhorar um pouco. Escola nem pensar.

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“ Aprd a lr, scrvr fazr cota, tá bom. O rsto a vdasa ”. Curtia seu baseado como qualquer outro jovemali, mas sempre que fazia seu corre cava se questionando

como alguns daqueles caras apareciam sempre com umabermuda nova ou camisa de time europeu diferente.Queria aquilo pra si. E é da vontade que nasce a ação.

Entrou para o tráco como avião. Sempre fora maisextrovertido que os outros garotos, além de ter bom trânsito

entre as bocas. Não causava problema, seu potencial era visto. Percorria todo o complexo na atividade, levando etrazendo droga. Na disposição, resolvia qualquer problemaque surgisse e estivesse em sua alçada. Quando se aventuroua resolver um que não estava, se deu bem. Num períodode poucos negócios para a boca, aceitou desbravar outros

pontos da cidade atrás de novos compradores. O risco eragrande, não teria todo o suporte que o esquema na favelaproporcionava. Em uma semana, duplicou suas vendas.Porque no tráco é assim: é como qualquer outro ramode comércio. Se não está entrando grana, alguma coisaestá errada. Se está faltando gente comprando, é preciso

oferecer algo novo e ir atrás de mais cliente. Funcionaassim para uma sorveteria, supermercado ou para umtracante.

“ ess é o camho do pobr qu tm ambção. O tráco. Qurasr mas qu avão lut por sso”. Foi promovido a olheiro,função que desempenhou por um tempo. Passou a atuar

como um verdadeiro coringa na boca. Cumpria todas asfunções que eram necessárias, a mando superior. Trabalhouna produção, receptação, fez de tudo. Continuou fazendo

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seu nome, entregando o serviço de acordo. Era só pingara oportunidade para o próximo salto. Ela veio quando umdos gerentes da boca foi preso. Foi nomeado pessoalmente

pelo dono como novo gerente. “ Aqul da fo louco! Sabada rsposa qu tava pgado o ombro, mas ra o qu u smprqus. Fazr dhro, tr uma vda mlhor. Tava casado d sr umguém a vda ”.

 As responsabilidades de um gerente de boca são muitas.

 Antes de tudo, ele é o encarregado por responderdiretamente ao dono do local, o verdadeiro tracante. “issoaí ão sa, zé. não posso abrr a boca pra falar ada ão”. Prestacontas detalhadas do funcionamento do negócio: uxo decaixa, quanto sai, quanto sobra, quanto dá para investirna própria boca. Paga e coordena todos os funcionários,

atribui atividades, esquemas de logística. Diz que tira umdinheiro decente pra sustentar a família: esposa e duaslhas pequenas.

Se quer ser dono da boca? “ Aí cê m fod, rmão! Dxa ssoquto, tô fazdo o mu aqu tá valdo….”

“Cara, ão m sto mal fazdo ss trampo ão. essa galra aícompra droga porqu gosta, porqu qur. É o mu góco, comoqualqur outro, tá lgado? Alguém tm qu fazr. eu msmo m poho a boca ssa mrda d pdra, puta cosa do dmôo sso aí. Jáv gt lambdo o chão atrás dsso, apahado, morrdo, vddoa alma. Mas s u m sto mal? não msmo. Tô a atvdad tato

quato ls, é a l do mas fort qu mpra….Cê já ouvu ‘VdaLoka’’ do Racoas, é? É aqula hstóra: ssa vda aqu, cê qurvvr pouco como um r ou muto, como um Zé? ”

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 À ESPERA DA PRImAvERA 

Na mitologia grega, Deméter é a deusa das estações do ano.Uma das doze divindades do Olimpo, lha de Cronos e Rea,foi possuída pelo irmão Zeus, rei dos deuses, com quem teveuma lha, Perséfone. A grande tristeza de sua vida ocorrequando a lha é raptada por Hades, deus do inferno e dosmortos, com quem se casa. Mãe desolada, percorreu os

quatro cantos do mundo à procura de sua primogênita, semtrégua para se alimentar, beber ou descansar, até descobrirque ela já estava aprisionada nas profundezas.

 Tentou resgatá-la inúmeras vezes das mãos de Hades, atéque decidiu abster-se das tarefas agrícolas enquanto a lhanão lhe fosse restituída. Os campos tornaram-se inférteise a sobrevivência dos seres humanos estava em risco.Comovido, Zeus nalmente resolveu intervir, ordenando aHades que libertasse Perséfone. O astuto rei dos mortosconcordou, mas queria, de alguma forma, forçar sua amadaa retornar sempre ao inferno. Ofereceu-lhe saborosos grãoscomo alívio para o dilema que viviam. Havia apenas umdetalhe. De acordo com a mitologia, aquele que provaqualquer coisa no reino das profundezas, nunca mais estarálivre de lá, estando permanentemente preso a ele. Seu planofuncionara. Então, cou decidido que Perséfone passaria a viver parte do ano com a mãe Deméter na Terra e a outraparte com Hades, presa no inferno. Enquanto está como marido, é puro inverno. Já em companhia da mãe, é aprimavera que chega para germinar as plantações e orecero mundo.

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 A Cracolândia também tem lá sua mitologia, mas compapéis trocados. Érica está há um ano tentando tirar a mãe,Marisa, daquela que é sua versão particular de inferno.

Um ano em que idas e vindas à Cracolândia tornaram-serotineiras, a ponto de não se assustar mais com muito doque vê ali. Um fardo pesado para uma jovem de 25 anosseguindo as pegadas da mãe usuária de crack.

Érica está acostumada com os porres da mãe desde nova.

 Alcoólatra, Marisa foi abandonada pelo marido com a fílhaainda pequena e, desamparada, não conseguiu lidar como peso do mundo. Criou-a aos trancos e barrancos, comextremas diculdades, entre surras e cachaças. Moram numbarracão “lá pra dtro” da Pedreira. A proximidade com oescape do crack atraiu de vez a mulher que, entre outros

predicados enumerados pela lha, “é cozhra d mão chaquado qur ”. Sempre conviveram com a Cracolândia aosseus pés, mas nem em seus planos mais destruidores elasimaginariam que se afundariam no lamaçal do vício. Éricaconta que a mãe conheceu a pedra por interesse próprio,quando o álcool já não era suciente. “ ela smpr bbu

dmas, muto. A vda tra fo ssa dculdad com la, porqué tmosa, fraca da cabça msmo. Smpr parcu qu u sou amã dla ão o cotráro […] Dva tá tão louca qu actouxprmtar ssa mrda d algum vagabudo. Agora tá aí, sso aíqu você tá vdo”.

Era noite e ventava frio. Marisa não avistara a lha ainda.

Do alto da rua, Érica aponta para uma mulher escoradano muro lateral da Rua Araribá e identica a mãe. É umamulher magrela e baixinha, que de longe até lembra uma

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adolescente pelo tamanho. Apesar de estar no meio douxo, não parece suja. Veste uma camiseta curta na barriga,além de uma calça legging preta. A touca listrada em azul e

branco serve para esconder os cabelos crespos da fumaça eda sujeira. Está acompanhada de outras três pessoas numarodinha, onde conversam e consomem crack. Não se notanela alteração ou qualquer tipo de euforia; simplesmenteestá ali.

“ A mha mssão aqu é vr buscar la. Quado la dmora prachgar m casa, já mago qu tá aqu mbaxo. Daí u vho,marco um tmpo vou até lá chamar. Tm das qu la colabora, jáva vdo mha cara a rua sob. eu até prro, porqu daí ãotho qu r lá o mo dls. Mas tm outros qu u prcso chamarumas duas vzs pra la vr, daí é foda […] eu vjo como la tá

a gt sob jutas lá pra casa. ela ão é d car louca ão. ela só fuma msmo, sm sparro. Mas fuma, é, qu dfrça faz? ”.

 A princípio, o conformismo com que Érica encara suarealidade inquieta um pouco. Claramente ela não abandonaa mãe, mas parece não se incomodar tanto com algo tãoingrato como o que vive. Ter a mãe ali, em meio a um

cenário de extrema consternação e ruína humana, não épara qualquer um. Por que não arrancá-la dali? Se Érica émais mãe de Marisa do que o contrário, porque não proibi-la a todo custo de pôr os pés naquele local? Ou quem sabeprocurar ajuda? Há parentes que chegam até a acorrentaros entes em casa pra mantê-los longe do vício…

“Cara, é a maor trstza da mha vda, cê pod tr crtza dsso.Tato é qu u tô aqu drto, chorado, buscado mha mã o

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mo do fro. Mas é foda! ela é muto tmosa, fraquja msmo. A gt já casou d brgar, u cas d pdr pra la parar….Por la, por mm, mas ada. Smpr acaba batdo uma ssura

la pra voltar pra pdra. É uma dsgraça sso, porqu la fucoaormalmt com ou sm a maldta! […] Como u prcso tocar amha vda ssa é uma scolha dla, o qu m rsta é ao mos fazrsso daqu. É o qu la m prmt fazr o momto”.

Foi um tapa na minha cara. Geralmente, quando nos

dispomos a mitigar alguma coisa, é preciso que haja aomenos uma contrapartida da parte mais afetada. Um doslados precisa ceder. No caso delas, esse estágio da coisaainda parece distante.

 Ainda bem que nem tudo é inferno. O vício da mãe, apesarde vício, é um tanto controlado. Marisa trabalha como

cozinheira numa lanchonete no Centro da cidade, ondeninguém imagina o que ela faz antes de chegar em casa.Deixa pra beber e fumar depois do expediente, o que podeser considerado “mos por ”. “ Apsar d tudo, la é uma boamã. Quado la tá sóbra, é supr d boa, m parc qu mx comssas cosas. Somos amgas. ela arruma a casa, faz comda, tm

vda ormal (….) A gt é pobr, é, tão ão tm luxo. Mas lám casa a gt batalha, sobrvv. Só qu agora tm ssa droga pracausar mas problma, já ão bastava a cachaçada. O pssoal já avu aí, pga mal, mas la ão s mporta com sso. É o qu a pdra faz, é ”.

Érica apaga o cigarro e parte em direção à mãe. Não querser acompanhada. Agradece por lhe ter sido ouvidos e pedeque seus nomes verdadeiros sejam alterados. É possível

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 ver que naquela noite a mãe vai colaborar. Antes que Éricase aproximasse do grupo em que estava, Marisa é avisadapor um rapaz de que tem visita. Levanta-se e despede-se

rapidamente dos demais, enquanto sobe alguns metros darua ao encontro da lha. Dão as mãos e retomam a subida,conversando cabisbaixas. Tudo muito naturalmente,se é que algo pode ser considerado natural em meio aodoloroso surrealismo que a cena proporciona. Érica acenabrevemente com a cabeça, sem que a mãe perceba, como

que se despedindo. Alguns minutos depois, somem lá noalto da Araribá.

 Assim como Perséfone, Marisa em algum momento cedeu eexperimentou sua versão de grão que atualmente a aprisionano inferno. Enquanto está entregue à Cracolândia, é puro

inverno. Quando é resgatada pela lha, a quase Deméter, épossível sentir uma brisa de primavera se aproximando…

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CAPÍTULO 5

CONHECENDO O INImIGO

… E ENTÃO SE FEz O CRACK 

Considerada como a droga “suja”, o crack é o arquétipo

daquilo tido socialmente como dejeto. Tudo relacionadoa ele assume automaticamente essa forma, esse discurso,mesmo que mentalmente. Existe uma relação um tantomaternal entre o crack e a cocaína, esta um alcaloideextraído das folhas da planta de coca (  erylthroxylum coca  ). Até tornar-se crack, a cocaína passa por diversas etapas:

depois de colhidas, as folhas são expostas e secadas aosol por determinado período a m de serem moídas erenadas.

O resultado desse processo é misturado a aditivos comoácido sulfúrico, cal, querosene, gasolina e até mesmoágua de bateria. A solução pastosa é então prensada e

comprimida até formar-se uma massa extremamenteconcentrada de cloridrato de cocaína, batizada de pastabase. É a partir dela que as pedras de crack ganham vida,através de um engenhoso processo de reno no qualadiciona-se o bicarbonato de sódio, criando uma mesclaem pó. Para ganhar cara de pedra, a liga é feita com a adição

do éter, ácido clorídrico ou acetona ao pó, que, comonovo composto, passa por uma etapa de aquecimento edecantação, na qual as substâncias líquidas e sólidas são

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separadas. O resfriamento da porção sólida gera a pedra decrack, concentrando e potencializando os princípios ativosda cocaína.

 Trabalhoso, o processo chega ao m com a obtenção depedras que, quando quebrada, variam de tamanho semqualquer tipo de padronização, mas sim de acordo com osinteresses de distribuição e venda. O crack tem cor brancaou amarelada, oriunda da mescla dos produtos químicos

agressivos e se assemelha muito com um plástico duro,mas quebradiço, com densidade ligeiramente superior àparana. Não afunda em água e curiosamente apresentatraços de uma camada impermeável, impedindo que essese dissolva facilmente. A pureza do crack é relativa, haja vista que depende de todo o investimento feito – ou não –

na produção da pedra. De qualquer maneira, os princípiosativos são os mesmos e aparecem potencializados numapedra pura ou em outra de menor custo de produção.

O consumo do crack é feito por processo inalatório. Aforma injetável da droga normalmente não é consumidae, segundo estudos na área, não produz o mesmo efeito

desejado. Para o consumo, são utilizados famososcachimbos como os dos usuários com os quais conversamospara esta reportagem. Esses cachimbos são feitos de todotipo de material a disposição, sendo o principal o alumínio,material ainda mais agressivo ao organismo devido à suaexcessiva toxicidade. Usuários como o garoto Robinho

preferem qualquer tipo de sucata na confecção do utensílio.Com o tempo, os cachimbos acumulam em seus bojosa chamada “merla”, uma espécie de borra resinada que,

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quando aquecida e moldada em forma de pedra, torna-seobjeto de desejo de muitos usuários, a “pedra das pedras”,uma vez que concentra um alto número de resquícios

ali depositados por pedras fumadas anteriormente. Écomum também que pequenos fragmentos da pedra sejammisturados ao tabaco (pitilho) ou à maconha (mesclado).Os usuários utilizam um isqueiro, geralmente de chamaalta, ou as brasas de um cigarro qualquer para acenderema pedra de crack. A combustão é imediata, devido ao

caráter volátil da droga. O nome “crack” em inglês vemjustamente desse momento de combustão da pedra, já queo ruído feito é semelhante ao de algo estalando.

 Ao passar do estado sólido para o vapor em umatemperatura relativamente baixa – 95 ºC – os vapores de

cocaína no crack são liberados e absorvidos pelos pulmõesimediatamente, entrando na corrente sanguínea e atingindoo cérebro numa média de 10 segundos. Nesse momento,o crack força o cérebro a liberar no organismo uma altaquantidade de dopamina, neurotransmissor diretamenteresponsável por funções como o controle dos movimentos,

o aprendizado, o humor, as emoções, a cognição e amemória. A duração dos efeitos é limitadíssima – por voltade 5 a 10 minutos – engatilhando no usuário a constantebusca por uma nova onda, conforme testemunhamos noscasos de Marisa, Laudinei e Bruna, entre outros nestetrabalho.

Desenvolve-se aí o primeiro dos muitos fatores que levamas pessoas posteriormente a um quadro de dependência dadroga. A droga produz uma sensação intensa de euforia,

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prazer, descolamento com a realidade, agressividade,poder e autoconança, além de reduzir drasticamente anecessidade de sono e alimentação. Também é bastante

comum que os usuários sintam sede exacerbada aolongo do consumo, à medida que os efeitos da fumaçaimplicam na desidratação do indivíduo. Em curto prazo,o efeito termina causando episódios de disforia e ssuraaguda, depressão severa, paranoia, hostilidade e insônia.Fisicamente, os efeitos do crack no corpo englobam

a destruição das células cerebrais, acentuado risco deacidente vascular cerebral (AVC), queimaduras nos dedos,face e lábios, problemas respiratórios e contaminação poralumínio e outras substâncias nocivas. Já em longo prazo,além dos quadros de tolerância e dependência agravados,o indivíduo apresenta acentuada perda de peso (o que

ocasiona, em muitos casos, uma magreza esquelética),diminuição do interesse sexual e infertilidade, decadênciadentária, parcos cuidados com a aparência física e higienepessoal, problemas cardíacos, respiratórios, neurológicos,mentais – constantes alucinações, paranoia – gástricos einfecciosos. Na Cracolândia, os relatos de Bruna e Val

serviram para ilustrar melhor esse quadro cotidiano.

 A venda do crack não detém mistérios. Em média, umapedra de tamanho padrão – algo como a cabeça de umpolegar – é vendida a R$ 5,00, entre pequenas variaçõesde preço. Já os chamados “farelos”, literalmente lascas em

tamanho reduzido de pedra, são vendidos por qualquer valor, mas giram em torno de R$1,00 a R$ 2,00 dependendoda boca de fumo, quantidade e qualidade. Atualmente, na

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Cracolândia de Belo Horizonte os preços são praticadosseguindo a mesma lógica, conforme relatos apurados entreos usuários e os próprios revendedores do tráco.

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TERRA À vISTA: PEDRA CHEGA AOBRASIL E Em BELO HORIzONTE

O nal da década de 1980 é tido como o marco zero dachegada do crack ao Brasil. Sua porta de entrada é São Paulo. A droga vinha sendo consumida nas comunidades pobresdo Harlm  e Brookly , bairros de Nova Iorque, nos EstadosUnidos, e romperia fronteiras rapidamente. Relatos policiais

da época denotavam a presença da nova droga sendoconsumida nas periferias paulistanas e que rapidamente sealastrariam pelas ruas da região central da capital, a pontode pequenas comunidades de consumo serem formadasnas vielas e casarões abandonados. A natureza da drogatornou-a rapidamente a preferência da população em

situação de miséria e sua popularização dava-se de maneiradescontrolada, apoiada na justicativa de “mercado” quesempre manteve o crack como uma droga de baixíssimocusto e fácil acesso, aspectos atrativos para a maioria dosdependentes. Nessa fase inaugural da droga, era comum a“venda casada” por parte dos tracantes: qualquer outra

substância só seria comercializada se o comprador levassequantidades complementares de crack, numa tentativa deforçar a comercialização do novo produto, bem como a suapopularização. Na década de 1990, quando o crack já estavapresente na capital paulista, as publicações jornalísticaspassaram a cobrir mais enfaticamente os problemas

relacionados à droga nas páginas de jornais e reportagens,cunhando, gradativamente, o termo “cracolândia” para sereferir às concentrações de usuários num mesmo espaço,

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mais precisamente no bairro da Luz. A partir dessa portade entrada e concentração, a consolidação tanto doconsumo quanto do tráco do crack e sua expansão para

outros centros do país foi questão de tempo.

Belo Horizonte abriria suas portas à pedra emboaba nametade da década de 1990. O tráco de drogas na capitalmineira consistia de cocaína e maconha, o que abria um vasto campo para a popularização do crack, novidade

absoluta até então. Vindas de São Paulo, as primeirasremessas da pedra eram comercializadas pela quadrilhacheada pela família Peixoto, na Pedreira Prado Lopes,bairro Lagoinha, que com o tempo adquiriu o kow-how  do processo de produção, passando a produzir, revendere controlar toda a droga encontrada na capital daquela

época. A Pedreira já adquirira ao longo dos anos a cara demarginalidade tradicional, imersa nas histórias dospersonagens e dos malandros que marcaram épocana boêmia local. A chegada do crack dava-se numperíodo conituoso entre os diversos grupos e forças

que disputavam a liderança do local, o que acabava porfavorecer o surgimento de inúmeros pontos de tráco. E,como diz a lei da rua, od há droga, há gt . A proliferaçãodas bocas de fumo pela favela na Lagoinha proporcionava,gradativamente, a aglomeração dos novos dependentesque encontravam na região o espaço ideal para o consumo

constante e indiscriminado do crack. Em um bairro jámarginalizado pela sociedade e aos pés de uma favela,quem se importaria com as pessoas que aos poucos foram

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se aglomerando? A droga facilmente comprada ali nãocarecia nem de mais alguns passos para ser consumidaem local seguro, sem que qualquer impedimento fosse

imposto pelo poder público, moradores e nem mesmopelos tracantes. A disseminação do tráco de crackencontrava, então, o seu porto seguro. Consolidava-se oalicerce para o nascimento da primeira cracolândia de BeloHorizonte: a Cracolâda da Lagoha .

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PERFIL BRASILEIRO: qUEm SÃO OSUSUÁRIOS DE CRACK?

 A denição de um perl para o usuário de crack no Brasilfoi sempre algo difícil de estabelecer. As inúmeras variantesque deveriam ser levadas em conta nunca foram aglutinadasnuma só pesquisa por parte do Estado, acostumado aanalisar pequenas amostras e replicar os resultados como

 verdade única na caracterização dessa população. Até que,alarmado com o avanço do consumo e comercializaçãoda droga em território brasileiro, o Governo Federal,através da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas(Senad), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz(Fiocruz), desenvolveu uma das maiores pesquisas sobre

crack já realizadas em todo o mundo. O caráter inéditodesse levantamento pretendia esclarecer a fundo todas as variantes possíveis e necessárias para se traçar um perldo usuário da droga no país. Os resultados desse massivo volume de informações levantadas trariam, enm, indíciosmais concretos e relevantes acerca da epidemia social em

que se converteram o crack e as cracolândias.

Englobando as 26 capitais e o Distrito Federal, noveregiões metropolitanas e municípios de médio e pequenoporte, foram ouvidas para o estudo da Fundação OswaldoCruz 33 mil pessoas em todo o país, entre março edezembro de 2012, a m de se chegar a uma amostracomplexa e representativa do perl de usuário. O estudoapontou um total de 370 mil usuários de crack e drogas

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similares – cocaína fumada (pasta base, merla e oxi) – nascapitais brasileiras, atingindo 35% do total de consumidoresde drogas ilícitas, com a exceção da maconha, no país. Isso

mesmo. 370 mil pessoas consomem alguma forma de crackno Brasil e esse número certamente não estacionou aí. Aalarmante porcentagem de 35% trouxe à tona o fato de queo crack poderá, gradativamente, assumir o posto de drogamais consumida no país nos próximos anos se não houverações ecazes.

Se em números absolutos por si só a escalada do crackno país já choca, quando mergulhamos no âmbito da vulnerabilidade social da questão, o contexto é ainda maisprofundo. O levantamento nacional apurou que, entre os370 mil usuários de crack e/ou similares estimados, tem-se

que cerca de 14% são menores de idade, o que representaaproximadamente 50 mil crianças e adolescentes que fazemuso regular dessa substância nas capitais do país. A maiorparte deles (56%) está concentrada nas capitais do Nordeste,onde foram estimados 28 mil menores nessa situação.Impressiona ainda mais quando consideramos a utilização da

denição “uso regular” como sendo o uso de droga por pelomenos 25 dias nos últimos 6 meses, conforme a denição daOrganização Pan-americana de Saúde (OPAS). A situaçãopiora ainda mais quando observamos que não se trata de25 vezes, mas sim dias, tendo em vista que os usuários decrack fazem uso da substância de forma repetida, num curto

espaço de tempo, no contexto de um mesmo dia.No Brasil, os usuários de crack são, majoritariamente,adultos jovens com idade média de 30 anos – em especial

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entre 18 a 26 anos –, o que também não ofuscou o altonúmero de usuários que passam dos 40-50 anos de idade.São predominantemente do sexo masculino – 78,7%

-, enquanto 80% se declaram como “não brancos” –pretos e pardos. Outro ponto relevante no perl dousuário é o reforço da tese de afrouxamento dos laçosfamiliares que advém com a dependência da pedra, sendoque 61% dos usuários declararam ser solteiros. No quetange a escolaridade dessas pessoas, observou-se a baixa

frequência de usuários que frequentaram e/ou concluíramo Ensino Médio – 57% cursaram entre a 4ª e 8ª série doFundamental, enquanto menos de 20% o Médio – além dabaixíssima proporção de usuários com Ensino Superior,cota inferior a 3% da amostragem. Essa estatísticafoi amplamente constatada ao longo das incursões na

Cracolândia belo-horizontina, já que grande parte daspessoas entrevistadas havia abandonado a escola em algummomento. No entanto, vale observar que muitos usuáriostambém declararam ter estado em algum momento naescola, reforçando assim a importância de programas deprevenção em âmbito escolar desde os níveis iniciais de

escolarização e a necessidade de atuarem tanto para manteressas populações nas escolas, de modo que obtenham umaformação adequada, quanto para aumentar a capacidadedas escolas de lidar com uma população às voltas comproblemas psicossociais relevantes.

Demogracamente, de acordo com o estudo, a distribuiçãodos usuários de crack no Brasil também traz dadosimportantes. Ao contrário do que dita a percepção geral,

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o Nordeste concentra a maior parte dos usuários, comaproximadamente 150 mil usuários de crack, cerca de 40%do total de pessoas que fazem uso regular da droga em

todas as capitais do país. Alguns especialistas apontamque um fator importante para isso seria o IDH (Índicede Desenvolvimento Humano) mais baixo da regiãona comparação nacional. Na Região Norte estima-se 35mil usuários, enquanto na Sul, 37 mil. A fatia que cabeao Sudeste chega a aproximadamente 148 mil usuários de

crack espalhados entre capitais e municípios de maior porte,destacando-se São Paulo e Rio de Janeiro como os grandescentros da pedra. O ponto em comum que aglutina todasas regiões do país é justamente o da localização em queo consumo de crack se dá: são irrelevantes as diferençasregionais levantadas quanto aos locais de consumo do

crack e/ou similares. Cerca de 80% dos usuários a utilizaem espaços públicos, de interação e circulação de pessoas,ou em locais possíveis de serem visualizados, visitados etransitados normalmente, por não se tratarem de espaçosprivados. Diagnostica-se, então, o principal fator que levaao surgimento das cracolândias por todo o país.

Sobre a situação de moradia dos usuários, é curioso observarduas fatias importantes e a desmiticação – ou ao menos aamenização – de uma delas. Tido como a droga da rua, ocrack tem 40% de seus usuários em situação de rua. Essecontingente expressivo não necessariamente mora nas ruas

de maneira permanente, mas passa a maioria do seu tempoali. Por outro lado, cerca de 38% dos usuários alegaramter moradia xa, entre apartamentos, casa própria ou da

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família. Essa expressiva porcentagem chama a atenção dasociedade para o fato de que já não cabe mais caracterizarsumariamente o perl dos usuários de crack como sendo

apenas moradores de rua. Agora, o crack já possui CEP eendereços xos. A droga dos mendigos agora também édroga telhada.

 A forma mais comum de obtenção de dinheiro relatadapelos usuários para o sustento do vício abrange o trabalho

esporádico ou autônomo, com cerca de 65% dos usuários. A mendicância é a segunda fonte de renda para 12,8% deles,próximos aos 11,27% obtidos por meio de empréstimose/ou presentes. Outra vez desmiticando o senso comum,que associa quase que congenitamente uma coisa a outra, asatividades ilícitas, como o tráco de drogas e furtos/roubos

e ans, foram relatadas por uma minoria dos usuáriosentrevistados, 6,4% e 9,0%, respectivamente, como sendoa principal fonte de nanciamento da dependência. Já atroca de sexo por crack e dinheiro foi relatada por 7,5%dos usuários, porção considerada alarmante diante dasconsequências oriundas dessa prática. Quando comparada

à população geral, onde a proporção de prossionaisdo sexo é inferior a 1% (PCAP, 2008), constata-se que aprática do sexo comercial é uma fonte relevante de rendanessa população, mas distante de ser a única.

No perl epidemiológico, mais números que assustam. A prevalência do HIV e da hepatite C (HCV) entre as

doenças mais constatadas nessa população trazem à tonaa urgência do assunto passar a ser tratado como crise desaúde pública e não policial. Mediante o teste rápido feito

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a partir do aceite dos usuários, constatou-se que, entreas mulheres, 8,17% são portadoras do HIV, enquanto aprevalência entre os homens foi de 4,01%. Comparados

com a população brasileira, os usuários de crackentrevistados nessa pesquisa apresentaram prevalência deHIV cerca de 8 vezes maior do que a da população geral(5,0% vs. 0,6%). Já em relação ao vírus da hepatite C, asmulheres representam 2,23% dos infectados e os homens2,75%.

 Aliás, tanto o perl quanto os números relacionados àsmulheres merecem um sombrio destaque. Os resultadosmostram que 21,32% dos usuários no país são dogênero feminino, sendo que a proporção de mulheresconsumidoras nas capitais é maior do que nos demais

municípios (23,55% x 16,59%). Na faixa entre 18 e 24 anos,as mulheres representam 37,41% dos consumidores, contra29,67% dos homens, aspecto até então desconhecido eigualmente assustador. Mais e mais jovens mulheres entramem contato com o crack no país sem que políticas públicasespecícas sejam direcionadas a essa parcela da população.

Cerca de 55% de todas as entrevistadas armaram tambémter praticado sexo ou feito algum trabalho sexual em trocade dinheiro para comprar a droga – contra 38% entreos homens, somadas aos 40,04% das entrevistadas quesofreram violência sexual nos últimos 12 meses. Estamosnos referindo à quase etade  da população feminina

consumidora da droga no país sofrendo algum tipo de violência sexual e/ou física. Durante o estudo, cerca de10% das mulheres relataram estar grávidas no momento da

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entrevista, sendo que mais da metade das usuárias já haviaengravidado ao menos uma vez desde que iniciou o usodo crack. Esse número torna-se ainda mais preocupante

quando consideramos as consequências destruidorasgeradas pelo consumo do crack durante a gestação nodesenvolvimento neurológico e intelectual dos fetos e daspróprias mães.

Por m, conrmou-se que mais da metade dos usuários

no Brasil seguem um padrão de consumo diário decrack, embora o consumo por dia sofra uma frequênciabastante variável. O número médio de pedras usadas porusuário nas capitais é de 16 por dia, enquanto nos demaismunicípios esse número diminui para 11 pedras ao dia.Essa frequência elevada nas capitais pode ser justicada,

entre tantos outros fatores, pela inserção dos usuários emcenas de maior porte com, por exemplo, 200 pessoas, umaconcentração “digna” de cracolândia. Estima-se que omínimo de circulação e consumo numa dessas zonas deaglomeração seja de 3.200 pedras/dia, ou mesmo 3.200pedras/turno, considerando que a circulação dos usuários

é diferente em cada turno (dia, tarde, noite, madrugada).Nas capitais, o tempo médio de uso do crack por um usuáriofoi de 91 meses (aproximadamente oito anos), enquantonos demais municípios este tempo chegou a 59 meses(cinco anos). O estudo sugere que o uso da droga vemse interiorizando mais recentemente, além de contradizer

o discurso comumente imputado de que os usuários decrack teriam sobrevida necessariamente inferior a três anos

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de consumo. Estão adquirindo resistência suciente paraprolongar os anos de vida e de consumo, esta é a verdade.

 Todas essas faces acima obtidas para o perl dos usuáriosde crack evidenciam a completa derrota do poder públicoem conter o avanço do crack nos segmentos maisdebilitados da população brasileira. Talvez o principalaspecto que os números levantados não sejam capazesde traduzir é o fato de que a ampla maioria dessas

pessoas embrenhadas no crack e nas suas cracolândiasesteja ali por uma forte necessidade de pertencimento.Marginalizados, abandonados socialmente de todas asformas, os frequentadores de uma cracolândia encontramali um território de aceitação, dentro de uma realidade jáalternativa à vigente ou, ao menos, diferente. Absortos

nesses locais, constroem identidades, laços, impõeme seguem regras e hierarquias, sendo o crack o liameprincipal de todas as relações encrustadas ali. Assim, ascracolândias passam a funcionar para esses indivíduos,cujo breve perl tratamos aqui de esboçar, como a únicarealidade disponível para viverem, uma vez que todos ali a

compartilham à sua maneira. Metaforicamente, a permutase faz pertinente: nós parecemos não nos importar comaquela realidade, marginalizada, a menos que passe a nosincomodar; enquanto eles não se importam com a nossa.

Não há perl nem números que dão conta de explicar oumensurar com exatidão tal experiência. Só os que a vivem

na própria pele, talvez, sejam capazes de esboçá-la.

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FENmENO “CRACOLÂNDIA”

 Todo lixo é em potencial venenoso – oupelo menos, denido como lixo, estádestinado a ser contagioso e perturbador daordem adequada das coisas. Se reciclar nãoé mais lucrativo, e suas chances (ao menosno ambiente atual) não são mais realistas, a

maneira certa de lidar com o lixo é acelerara “biodegradação” e decomposição, aomesmo tempo isolando-o, do modomais seguro possível, do hábitat humanocomum (Bauman, 2005:108).

Recortes da versão mineira de cracolândia já lhe foiapresentada, mas ainda é fundamental que entendamos umpouco mais sobre o fenômeno que recebe esse nome. Épreciso ter em mente que uma cracolândia é muito mais doque a rasa concepção de um mero aglomerado de pessoas

dispostas ali para o consumo do crack. É mais do que odiscurso por vezes exagerado, insensível e impessoal queé engendrado ou reforçado no imaginário social pelosmeios de comunicação acerca do crack, de seus usuários ede suas representações coletivas. Tal prática contribui paraa constante representação dos usuários de crack como

 violentos e degradados, além da disseminação de repúdioe medo entre a população que passa a enxergar através deum único ponto de vista.

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Como arma Bruck (2013), somos constantementealimentados pelas imagens das cracolândias como umdepósito de indivíduos de aspecto asqueroso, misturados

ao lixo, sendo o verdadeiro lixo. Opta-se pelo enfoque nasnarrativas de apelo emocional que acabam por concentrar,exclusivamente, a atenção da sociedade apenas noproblema, desviando o debate em prol das soluções, haja vista a dimensão que tal fenômeno detém nos aspectossocioeconômicos, político, jurídico, clínico e cultural.

Existe sim a espetacularização da desgraça do crack e desuas cracolândias, é bem verdade. Entretanto, o que temosali são seres humanos num completo estado de degradaçãosocial, moral, física e psicológica. Independente do discursoescolhido e disseminado, seja por quem for, é preciso quelevemos esse “porém” sempre em consideração.

 Alguns fatores em comum são observados em todasas formações de cracolândia pelo país. Um dos maisproeminentes é o esvaziamento demográco quecaracteriza os espaços urbanos que se tornaramcracolândias. São espaços geralmente localizados em áreas

empobrecidas, que anteriormente tiveram seu auge deurbanização e que hoje vivem os reexos das mudançassociais que acompanham as cidades. Essas áreas sãomarcadas por traços de abandono ou proximidade comtráco de drogas, o que facilita toda uma rede de consumodo crack naquela redondeza, por questões de logística com

a distribuição da droga. É bastante comum que essas áreasde esvaziamento demográco sejam ocupadas por pessoasem situação de rua, que encontram ali um espaço para xar

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moradia, mesmo que nas condições mais precárias.

Contudo, é num paradoxo do aspecto social que o

fenômeno das cracolândias chama mais atenção. Essesespaços seguem a lógica existente na história humana depotenciais refúgios, territórios que abrigam os excessosmarginalizados de insumo humano quase que como umaterro sanitário. Colocados longe dos olhos da sociedade,passam a ser invisíveis, irreconhecíveis, ignorados. Por

outro lado, é através dessa materialidade do consumode crack que esse e tantos outros fenômenos envolvidossão trazidos à luz no espectro social, que se esforça em vão para mantê-los ocultados, afastados da discussão. Ocrack torna público tudo aquilo que queima. Através dele,tantos descartes da sociedade são vistos, denunciados.

Como arma Dias (2012), é também através do cracke de suas cracolândias que falamos dos modos de vidapauperizados, das ruas como moradas, dos diversoslaços sociais interrompidos, da degradação humana, docotidiano de sobrevivência e dependência química, entretantos outros aspectos que vêm à tona com o estalar das

pedras no cachimbo. Irônico por si só, podemos entenderuma cracolândia, então, como esse lugar de pessoasmarginalizada, um aterro de descartáveis do sistema, masque peculiarmente, são necessárias para a manutenção,existência e constante representação do mesmo.

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CAPÍTULO 6

HÁ qUEm vENÇA 

mARATONA DE UmA vIDA 

O apelido condiz com a cena. Esperando ser atendido

na la do Sopão, Ferinha olha desconado para todosos lados, como se estivesse à espreita de algo ou alguém. Ainda calado, alterna a observação das pessoas à suafrente com olhares rápidos no relógio no punho esquerdo,indicando certa impaciência. Por que a pressa? Ali na laé só mais um em meio aos mendigos, usuários de crack e

transeuntes, mas, mesmo assim, sente que todos os olhosestão a tá-lo. Seria o costume adquirido nos vinte anosmorando pelas ruas de Belo Horizonte ou mero acaso daocasião? Mais que ferocidade e paciência, o que ele sempreteve foi determinação.

Ferinha é Charles Marcos Gomes, belo-horizontino de

42 anos, sendo vinte desses vividos nas ruas da capital.Entre idas e vindas, conhece como poucos a lida diáriadas madrugadas por todos os cantos do Complexo daLagoinha, onde ca a Cracolândia. Passou a infância todaali, a poucos metros de onde hoje toma tranquilamente suasopa, já em mãos. Onde hoje se encontra a área cercada

por tapumes e material de construção entre os viadutos doComplexo era a antiga “Graminha”, local de concentraçãodos meninos de rua de BH há quase trinta anos. Órfão

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de mãe aos nove anos, nunca conheceu o pai. O restanteda família era desestruturado e as ruas acabaram virandorefúgio pro garoto que não via então alternativa. Foi ali

que Ferinha viu a vida passar, entre brincadeiras, peladase batidas policiais. Numa dessas, por um mal entendido,acabou recolhido pela antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Tinha 14 anos.

“ naqula época u prambulava com a mada pla cdad, mas

u uca partcp d um roubo, posso t jurar! nuca m agradoua vda d baddo. eu morava a rua porqu ão tha outra opçãomsmo. Daí uma cofusão dssas d rua, acabaram m lvado”.

Dos 14 aos 21 anos a vida na FEBEM, por pior quefosse, tirou-o das ruas e seus caminhos complicados.“Serviu como lição, dei um tempo das ruas”. Ao sair,

ainda desestruturado na família e sem muita perspectivade reinserção, voltou às ruas, mas com outra mentalidade.Com diculdades, descolou um emprego de ofce-boy naSecretaria Municipal de Esportes e lá descobriu aquilo quemudaria sua vida pra sempre: a corrida. Participou de umaespécie de olimpíada dos servidores, onde se saiu tão bem

que nunca mais parou. Mesmo em situação de rua, Ferinhanunca desanimou em treinar e seguir adiante, ostentandocom orgulho as histórias de suas vitórias e participaçõesem corridas prossionais e amadoras. “Corr a Maratoa dSão Paulo a São Slvstr, também a Ma Maratoa do Ro.Vaj pra lugars como Vtóra, Poços d Caldas Dvópols,

tudo pra corrr... Smpr qu cosgo apoo pra m scrvr u tto, já gah város prêmos até dhro”.

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Desde então, sua vida mudou radicalmente. Continuoumorando na rua por um tempo, em abrigos, trabalhandocomo coletor de recicláveis, mas queria mais. Credita a

disciplina necessária para sair da antiga situação como agrande lição que o esporte lhe trouxe. Dedicado a mudar,juntou dinheiro suciente para alugar um pequenobarracão no bairro Floresta, Região Leste da cidade. Seusmaiores troféus? Nunca ter usado drogas e convencidoo lho de seis anos a morarem juntos na nova casa.

“Frquto a Cracolâda por dos motvos. O prmro é qu avda tra, dsd quado mor a rua, vha aqu a rgão tomarsopa m almtar. não parara agora pos é algo d qu uca marrpdr. e tho mutos amgos as ruas ada, smpr a gts vê bat um papo. Mas voltar pra cá, uca mas! ”

 A vida humilde que leva hoje tem sido muito melhor doque nos tempos de Graminha. Trabalha como faxineiroem dois condomínios no bairro onde mora, além de fazerbicos como ajudante de pedreiro e jardineiro. Conhecidona região, recebe doações de cestas básicas e roupas para elee o lho. Compartilham almoços no Restaurante Popular,

além da determinação por uma vida melhor. Pretendeterminar o ensino fundamental algum dia, motivado pelascobranças do lho, já que “só s lr, ão s scrvr ”. Comoisso é possível? Difícil mesmo é duvidar de um cara desses.“ A vda m sou com muto custo qu la ão é uma corrda dvlocdad, mas sm d rsstêca ”.

É assim, correndo, trabalhando ou visitando a Cracolândiaque ele leva a vida. Seja diante dos obstáculos ou nas pistas,sua vocação é mesmo não car parado.

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FALTA A DE DEUS…

 Toda segunda-feira Paulo tem um encontro marcado coma Cracolândia. Gosta de pontualidade, sempre aparece por volta das 19h para marcar lugar. Geralmente num cantinhomais afastado, longe do uxo, onde a movimentação émais intensa. Dali observa o movimento entre os usuários,raramente abre a boca para falar alguma coisa. Só quando

algum conhecido se aproxima é que se dá ao trabalhode interromper a mansidão. Chegou de banho tomado,cheirando a sabonete e com os cabelos brancos ainda meioúmidos cuidadosamente penteados para trás. Nenhumo de barba, rosto liso, moreno, calejado. É um senhorbaixinho, magrelo, de estrutura física meio frágil. Ao

contrário de muitos ali, suas roupas estão limpas, camisapara dentro da bermuda sursta, tênis numa brancuraimpecável. Destoa num cenário caracterizado pela sujeirae pelo desleixo.

Em mais um dos muitos encontros que já teve e ainda temcom a cracolândia, pouco se altera no roteiro que ele segue.Depois de muito olhar para os lados, observar cada rostocom cuidado, pela primeira vez ele sobe e desce a Rua JoséBonifácio como se estivesse à espera de algo ou alguém.Hoje seus encontros com a Cracolândia são estritamentepessoais, bem como sua ligação com o chão daquele lugar.Segunda-feira é dia de sopa e ele está ali exclusivamentepara isso. Apenas. Para fumar pedra, não mais. Foi-se otempo. Há um ditado urbano que diz: o pobr sa d dtro da

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 favla, mas a favla ão sa d dtro do pobr. E da Cracolândia?No caso de Paulo, também não.

São 11 anos limpo, sem ter colocado uma pedra na mão.Hoje, com 46, a saúde talvez não seja tão complacentecom os abusos de outros tempos. Foi viciado em crack dos16 aos 35 anos, entre idas e vindas, de cachimbos a latas.Conhece como poucos todo o asfalto do Complexo daLagoinha e da Cracolândia. Já dormiu ali, morou, comeu

do lixo, até trabalhou. Fazia intermédio entre novatos dolocal com os tracantes, colocando-os em contato para quese virassem sozinhos depois. Viu aquilo ali ser derrubadoe levantado, nascer do nada incontáveis vezes. Em seusanos de crack, topava qualquer parada e não anava praquem quer que fosse. Sempre acompanhado de uma faca,

peça que segundo ele “já trouxe salvação e perdição”.Costumava beber muito para roubar. E roubar muito paramanter o vício. Era comum se descontrolar. Alcoólatra e viciado em crack, no auge dos efeitos de tudo isso junto.Cansou de arrumar confusão com outros usuários e deagredir as mulheres, a ponto de se tornar uma persona non

grata em plena Cracolândia. Conseguiu tal proeza. A única certeza que temos sobre a tal da sorte é que elasempre mudará, para bem ou mal. Ironicamente numasegunda-feira de 1997, Paulo saía de um bar acompanhadopor uma mulher. Passaram a tarde inteira bebendo efumando pedras de crack como em outro dia qualquer. Foi

abordado por outro homem que dizia ser o companheirodela e queria satisfações do porquê estar andando comsua mulher. Paulo deu de ombros. Momentos depois,

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sentiu um chute forte nas costas, o suciente para cairno chão violentamente. Nas frações de segundos em quepermaneceu ali deitado, tomou a decisão que mudaria sua

 vida pra sempre. Levantou-se rapidamente já com a faca namão esquerda e acertou o peito do sujeito em cheio. Tevetempo para desferir outro golpe no tórax e constatar queaquele ali já não viveria mais. Largou faca e mulher pra tráse correu. Correu a esmo. Só correu. Vinte minutos depoisestava no chão outra vez, agora já dominado pela polícia

que fora acionada por testemunhas do crime. “ M lmbrodo bafo do políca o mu pscoço, dzdo qu u a m fodr muto plo qu tha acabado d fazr. Al ra matar ou morrr u uca fu muto pact ão. não m arrpdo, ra l ou u. Só fu marrpdr lá o pavlhão, aí sm ”.

Foram 11 anos de pena por homicídio doloso, cumpridosem regime fechado na Penitenciária Nelson Hungria. Ládentro viu de tudo: estupro, violência, doença, podridão,armas, drogas. Crack. Teve inúmeras chances de continuarcom seu vício dentro da prisão, mas acabou optando pelooposto, por se afastar. “Os prmros mss u cava a ssura.

 estava cado louco por star prso, ão podr fumar. Lá até qutha, mas ão qura fazr dívda, qura m afastar um pouco...Cada sa também. Sgur mha oda, rsolv parar d fumar,ão qura morrr aqula mrda. Acho qu fo a mlhor scolha ”.

Durante todo o tempo em que esteve preso, Paulo pôdecontar nos dedos das mãos as vezes em que teve alguma

 visita. Tem dois lhos e alguns parentes espalhados pelomundo, mas desde os tempos da loucura do crack já nãodetinha laços mais fortes com eles. Após algumas visitas

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iniciais, a frequência foi diminuindo até que se extinguiramde vez, algo a que ele não se atém muito. “ eu uca fu umbom pa, um bom famlar. Smpr z cosas rradas, z mhas

scolhas m dstac d todos pra afudar um mudo m quu ra mas flz. não culpo hum dls por ão m procurarmmas, ão ofrc ada d bom m troca pra qu pudss os matr por prto”.

Saiu em 2008 e desde então tenta atribuir à sua vida o

adjetivo de normal. Não tem conseguido emprego em áreaalguma, o que atribui exclusivamente à sua cha criminal.Recentemente tirou a nova carteira de identidade e agoracorre atrás de trabalho. Garante que sabe fazer de tudo enem quer muito, “apas saláro mímo pra alugar um quarto comr ”. Vive alternando períodos nos abrigos da capital:

quando expira a estadia máxima, tenta vaga em outro,seguindo o ciclo. Para se manter, faz bicos e cata latinhasdurante o dia, o que lhe rende o mínimo para subsistir. Nãodispensa andar asseado agora, um dos poucos traumas quediz trazer da prisão. Faz questão de raticar que não bebe,não fuma nem cheira nada.“Droga uca mas. Dsd qu tr

sa da cada u ão fumo pdra m quro. Aqulo lá acabou commha vda hoj u tô aqu pagado o prço. não prcso mas ”.

Curiosamente, está na Cracolândia toda segunda-feira. Vaiali para jantar a sopa que os projetos sociais oferecem.Depois que come, conversa brevemente com um ou outroe vai embora para o abrigo, em silêncio. Talvez pensando

em tudo pelo que já passou na vida. “ ess lugar aqu m trazlmbraças d um tmpo qu prd a vda ão volta mas. Muscolgas até prgutam como é qu u ada volto aqu. eu volto. É

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bom ão squcr as cosas rus qu s faz a vda, pra vr s a gtaprd alguma cosa com las martlado a cabça ”.

“Pro futuro u quro é paz. Tr mu cato trabalhar hostamt. não quro luxo hum, só um lugar pra dormr comr. Quromorrr m paz. D vz m quado a políca m para a rua puxamlá, vê qu já cumpr mha pa d 121¹, ada costa. na justçados homs u já cumpr mha pa. Agora falta a d Dus. essa, amgo, u, você todo mudo va tr qu acrtar um da…”.

PS: Algumas semanas após a primeira conversa e numrápido reencontro, Paulo contou que arranjara empregocomo estoquista num supermercado de BH. Era umasegunda-feira, no lugar de sempre.

¹. Artgo do Códgo Pal Braslro rfrt a homcído.

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ENqUANTO O PÃO NÃO CHEGA...

É m de tarde e a sirene da Escola Municipal Honorina

de Barros anuncia o término de mais um dia letivo. Amolecada sai das salas num alvoroço só e rapidamenteganha os portões do local, louca pra aproveitar o querestou do dia ainda ensolarado. Algumas funcionáriastentam conter o agito para que ninguém se machuque, maso esforço é em vão. Tão logo conquistam a área externa, as

crianças passam a ocupar a pracinha que dá acesso a todosos outros pontos do Conjunto IAPI. Naquele momento,são legitimamente donas dos próprios narizes!

 A cena é cotidiana. A escola funciona cravada no coraçãodo IAPI e atende a população da região há mais de 40 anos.Incontáveis gerações passaram por aquelas salas, sendo amaioria composta pelos lhos dos moradores tanto doconjunto quanto da Pedreira Prado Lopes. A algazarrada meninada nem dá bola para o calor que faz. Algunsalunos mais velhos aproveitam a cobiçada liberdade vindacom a sirene para se reunirem nas mesinhas de cimentoda praça. Ali batem papo entre eles, enquanto outros nãodesgrudam dos celulares. Alguns casaizinhos aproveitampara, enm, namorar um pouco.

Sentado numa mesinha distante de toda aquela ebuliçãojovial, um senhor contempla tranquilamente as cenas. Osorriso no canto dos lábios entrega logo de cara um pouco

da sua personalidade afável.

Seu Gil é morador do IAPI há 50 anos ininterruptos. Teve

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o privilégio de ver um pouco de tudo por aquelas bandas. Testemunhou as inúmeras obras viárias da região e o entrae sai de gente se mudando para os prédios do conjunto.

Estabeleceu-se como história viva do local.

Não é pra menos. Somado ao meio século de vida no IAPIestão outros 30 anos que o tornam um octagenário derespeito, em todos os aspectos. A começar pela saúde detouro que diz ter. “ nss corpo aqu ão tm um rmédo, mu

 lho. Tô com 80 aos ão tomo ada, pra doça huma. D vzm quado uma cosha pra grp, mas ada do qu você tambémão tom. Aí já é qurr dmas do vlho! ”.

Gil realmente aparenta estar bem. Os ralos cabelos brancosnão escondem o fardo do tempo, mas lhe conferem certocharme quando coadjuvados pelos olhos claros. É alto

para os padrões da terceira idade, com braços e pernaslongas, desenvolvidos no distante tempo em que serviuao exército. A voz grave e rouca complementa o típicosemblante de avô: boina na cabeça, rosto enrugadinho,lentidão nos movimentos, uma meticulosa camisa xadrez vermelha de anela e simpatia cativantemente espontânea.

Naquela tarde ensolarada, como em todas as outras, estavasentado esperando o padeiro. “eu compro pão a mão d ummo há 10 aos, m posso dzr qu l é mo mas! Mas hojl tá atrasado, daado. Crtza qu du alguma cosa a bccltadl. Mas ão tm problma ão. A camhada até aqu é boa, prcso dla pra matr a carcaça atva”.

Se hoje caminha despretensiosamente pelo conjunto,antigamente Seu Gil tinha pouco tempo para isso. Foi

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funcionário público e proprietário de uma casa lotérica,combinando a dupla jornada de trabalho para manteresposa e os sete lhos, todos criados dentro do IAPI. “ eu

sou do tmpo m qu os bods cortavam sso aqu tudo. Cortava Atôo Carlos, Lagoha, iAPi, tudo. Mha vda ra adar praPampulha, Cachorha, uma corrra d cma pra baxo. Acho quão é muto dfrt do qu vocês jovs vvm hoj também, ão é?[...] eu cr todos ls aqu o iAPi. isso aqu smpr fo d paz,sm cofusão. O pssoal da favla uca comodou. Hoj ao rdor

tá mudado, mas ada é da paz. Plo mos comgo ão mxm ”.O passar dos anos trouxe ao IAPI muitos fatos novos. Oprogresso natural da cidade era acompanhado de pertopor Gil e sua família. Viram a Lagoinha de antigamenteperder sua cara aos poucos, mas não suas lembranças.

“O barro smpr fo agtado. Atgamt o pssoal frqutavamas plo qu a ot tha pra ofrcr. era mulhrada, botco, arapazada da cdad vha m pso msmo curtr a vda. Mas tudocom traquldad. Pra você vr, ão tha m ladrão! Só sss d galha msmo. Smpr vv aqu a traquldad….a maora das pssoas qu moram aqu, dsd atgamt, são mas humlds. não

dra pobr, mas mas smpls msmo. isso tudo ajudou muto acovvêca do cojuto, porqu smpr fo todo mudo gual ao outro,guém mlhor qu guém. isso u vjo até hoj acotcdo”.

De fato, a tranquilidade parece imperar tanto ali dentro doconjunto quanto para Seu Gil. Enquanto a criançada aindase faz presente na praça, calmamente ele discorre sobreas tantas memórias de um passado contente. Orgulha-sede ter visto os primeiros gols de Tostão de camarote. O

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jogador fora morador ilustre do conjunto quando aindajovem. “ Jogava dmas! Cas d vr l batdo bola aqu aquadra os camphos do barro. era tão mrrado qu a gt

susptava qu ão a dar m ada. Du o qu du. Sort do ossoCruzro!”. Estabeleceu também uma relação de amizadecom os vira-latas que circulam pelo local “já almt todosls aí. Só ão falam mu om porqu ão sabm português! ”.

Para Seu Gil, o fato de uma cracolândia funcionar a todo

 vapor bem ao lado do seu querido lugar não afeta muito.Daí já não sei se é por causa da resignação com que a velhice premia aqueles que já viram de tudo na vida, ouse é apenas sua inabalável personalidade como escudodiante do caos ao seu redor. Talvez ambos. De maneirainesperada, Seu Gil conversa com propriedade sobre uma

realidade que, mesmo próxima sicamente, não era de seesperar que estivesse tão fundamentada em suas opiniões.Mostrou-se conhecedor da droga, de seus efeitos sobre ocorpo e da vida daqueles que a consomem.

“Olha, vou t sr scro, lho. ess pssoal a Cracolâda aí ãom comoda ão. els ão mxm com guém além dls msmos!

 eu como morador smpr covv bm com o pssoal da Pdrra com ssa cofusão aí. Fazr o quê? eu ão tho como rsolvr ss problma […] Mas é fato: atgamt ão ra assm ão! Quadom mud pra cá, ada dsso ra assm. não tha droga m gtcosumdo assm dbaxo do sol. Lá a Pdrra ra cosa dls,mas aqu ao rdor do iAPi ão ra assm. Macoha xst m todo

cato, mas ss crack é cosa d amrcao. Chgou d lá pra dstrura vda d tata gt aqu…Vja qu mutos dls m prcsamdsso. Us têm pa mã, ls ão mrcm sso. Já ouv caso d gt

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com pca d lho pra crar furada ssa pdra ”.

Ele reconhece a fama atribuída ao local ao longo dos anos,

mas prefere não se comover. Privilegiado, conhece napele a cara do lugar. São 50 anos de conjunto, tempo maissólido que a própria história da pedra no bairro. Sabe quetanto a Lagoinha quanto o IAPI representam algo muitomaior que o cenário crônico que se formou ali. Pelo menosnaquela tarde e com o auxílio de alguém que representava a

história viva do lugar, atestou-se que o IAPI e sua históriasempre foram nichos de tranquilidade e boa gente, aocontrário do que muitos podem pensar.

 Viúvo há 14 anos, Seu Gil é só saudades da esposa. Recusa-se a cozinhar, porque “ada chga aos pés do qu la faza ”.Durante a semana, contorna esse misto de recusa e saudade

com os fartos marmitex de uma vizinha cozinheira. Já aosdomingos, uma das lhas o apanha para passar o dia emfamília, almoçar e ver os netos. “ É o qu mas m dá algra d fazr atualmt ”. Os lhos que moram no exterior insistempara que tope visitá-los. Mas, para conhecer Roma ouBerlim, Seu Gil teria que vencer o seu maior medo na vida:

 viajar de avião. E o da morte? “ ela qu vha. não dgo qu aspro, mas quado chgar, srá mha últma compahra ”.

O padeiro já havia passado e os dois pães de batata paraa merenda da tarde estavam garantidos. Já o café, não secoaria sozinho… Antes de ir, a galhofa e o inconfundível

sotaque mineiro na fala raticam a maneira como escolheuencarar a vida, a velhice, as saudades, a fama do IAPI e a vizinha cracolândia: inabalável.

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“Ua, m mudar daqu?! Ah, pso sm, lho. Morto! Atravssadoa rua m mudado pra uma cova o Bom! ”.

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HÁ qUEm vENÇA 

I.

 Vai começar mais uma reunião.

O assoalho taqueado da ampla sala emana um lustreimpecável, como se acabasse de receber uma generosa

mão de verniz. As janelas escancaradas permitem que atodo momento uma brisa adentre conante de que é bemquista ali, sobre o que não pairam dúvidas. Nem mesmo abreve chuviscada de verão da hora anterior fora capaz deaplacar o calor daquela tarde. Mulheres, jovens e senhoras,caminham de um canto ao outro da sala, ajeitando

detalhes aqui e ali, trazendo jarras com água, enquantooutras insistem na limpeza do que já era puro esmero. Umcharmoso exemplar da Bíblia é colocado sobre a mesa,cuidadosamente aberto e marcado em  João 16:30-33. Doparapeito ainda é possível tocar a copa verdinha de umaárvore, cravada no simpático quarteirão da Rua Rio de

 Janeiro, bem no coração do Centro de Belo Horizonte.

Coração, ali, é vocábulo que transcende a própria semântica. A reunião semanal do grupo - Coração de ãe contra ocrack  - está prestes a começar e uma senhora quer falar…

O intuito do grupo é simples: apoio familiar mútuo.

Funcionando sob a chancela da Igreja Batista, écoordenado por um grupo de mulheres que compartilha

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o mesmo drama na vida. Seus lhos foram ou ainda sãousuários de crack ou outras drogas na região metropolitanade Belo Horizonte. A grande maioria ali é composta por

mães que não conseguiram suportar sozinhas a pesadabarra que o vício do ente querido impõe. Movidas pelacoragem, optaram por não denhar passivamente juntocom os lhos. Através da rede de conexões proporcionadapela igreja, conseguiram se organizar, inicialmente, pararodas de conversa, verdadeiros desabafos. A partir daí,

outras mães, tomando conhecimento do grupo de apoio,resolveram somar forças. Hoje, formam um grupoconsolidado.

 Ali ninguém sofre mais que ninguém. Estão todas nomesmo patamar de envolvimento, o que elas chamam

constantemente de codependência. O termo faz todosentido na realidade que vivenciam, já que advém da áreada saúde e é usado para se referir a pessoas fortementeligadas emocionalmente a outras com séria dependênciafísica e/ou psicológica de uma substância ou com umcomportamento problemático e destrutivo. O que elasbuscam é justamente mitigar os efeitos dessa codependênciaem suas vidas, ao passo que se preparam psicologicamentepara a difícil tarefa de enfrentar o vício com os lhos.

 A dinâmica do grupo é fundamental para que essesobjetivos sejam alcançados. Semanalmente elas seencontram e discutem temas relacionados aos lhos e à

codependência. Sentam-se em um círculo, atentas umas àsoutras a todo instante, para que haja sempre a chance de se

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olharem nos olhos em comunhão. Dessa forma se amparammutuamente. Há um forte senso de empatia no ar. Umapor vez, cada mulher tem sua hora de falar e desabafar.

Elas fogem do tema ou voltam a ele, não importa muitoa sequência. É tudo parte de um processo catártico quecompartilham naquelas poucas horas. Contam seus dramase experiências pessoais como forma de aliviar o fardo quecarregam muitas vezes sozinhas. Numa espécie de simbiose,trocam exemplos, dores e opiniões que consigam alentar os

corações umas das outras. Tudo isso bem acompanhadaspor duas psicólogas que voluntariamente prestam serviçosao grupo. Elas acabam herdando o papel de mediadorasnas conversas, mas claramente não se importam. Estão alipra isso. Prestam um apoio inédito para essas mulheres,algumas tão abaladas, envergonhadas e humildes que mal

conseguem levantar a cabeça para falar.

 Também compartilham avanços e focam em si mesmas.É comum o desfrute de alguns minutinhos para trocaremgurinhas acerca dos temas relacionados ao universofeminino. Vira e mexe trazem lanches preparados em casa

ou se ausentam por alguns minutos, para então retornaremem seguida com um saboroso café passado na hora. Noentanto, o compromisso rmado ali é sério. Os laçoscriados entre elas precisam ser fortes o bastante paraajudá-las a seguirem adiante. Ou ao menos tentarem. Nãose emocionar e empatizar com suas histórias de coragem é

quase impossível.

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II.

O dia é de sorte. Vindilina vai falar. Lili, se preferir.

Quem a vê toda empetecada, dona de longos cabelos negros,não consegue imaginar o quanto a vida já lhe testou. Oesmalte vermelho nos dedos combina com a intensidade dasua presença. A baixa estatura não impede que se imponha.Faz-se notada pelo poder da própria fala. É uma daquelas

pessoas em que o olhar alheio capta instintivamente aexistência de um algo a mais que traz consigo. Se de fato asáureas existem, a dela transcende ao primeiro olhar e avisa:carrego algo de diferente.

 A rotina de hoje será diferente. Ao invés dos depoimentosconjuntos, apenas um. Estão todas ali para escutar o que Lilitem a dizer. Paira na roda um acordo implícito de atençãoincondicional.

Há 52 anos, o dia 25 de dezembro trazia bem mais que o Natal.Nascia Lili em uma família simples, porém estruturada. Arigidez do pai e do irmão vinha do cotidiano policial de suas

prossões, reverberando em como as coisas funcionavamdentro de casa. A mãe era a responsável por adoçar umpouco o caldo do lar. A disciplina a que era exposta causavaimpacto numa jovem que cresceu querendo sempre mais.Mais ação, aventura, experiências, liberdade. “ eu smpr fu pra frt msmo”.

 Toda a dureza das imposições não combinava com seuespírito de bicho solto no mundo. As brigas eram comuns,apesar de existir todo um carinho, à sua maneira, entre pai

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e lha. Foi com a primeira gravidez não planejada que oprimeiro abalo verdadeiro aconteceu, aos 15 anos.

 Até aquele momento, Lili vivia uma vida como a de muitosadolescentes de hoje. Experimentava o mundo. A gravideznuma casa rígida lhe trouxe implicações não almejadas,mas que teriam que ser encaradas de frente. Foi obrigadaa trabalhar assim que teve o lho por imposição paterna,que via naquilo uma espécie de corrigenda ao rumo torto

tomado pela lha. A fase difícil oferecia o contexto praque a imatura Vindilina estreitasse elos fortes com algumasrotas de fuga. Cigarro, maconha e álcool passaram a fazerparte da sua vida intensamente aos 18 anos. A vontade ea curiosidade de ir além trouxe a cocaína, aos 27. Aos 30,chegava ao crack com tudo.

O ponto de partida foi na Rua Pouso Alegre, nasimediações do bairro Lagoinha. Entre os anos de 1992 e93, o local começava a despontar como ponto de consumoda droga na cidade, para futuramente tomar cara e nomede Cracolândia. Lili já não se sentia satisfeita com os efeitosda cocaína e numa dessas noites foi convidada a sair do

boteco em que estava para ir a um barraco na PedreiraPrado Lopes. Lá, seu fornecedor iria lhe “mostrar umanovidade”. Com sua predisposição à dependência aliada àcuriosidade, não pensou duas vezes antes de experimentarpela primeira vez a pedra. “ não tha oção do tato qu mhavda a mudar daqul sgudo m dat. A ssação fo muto

louca, fo tão tso qu ão cosgo dscrvr. eu ão cosguam r mbora do barraco. Fqu um da tro lá ”. Naquelesprimeiros dias de contato, aprendeu todo o processo de

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extração da droga. A cocaína saía de cena para a entradadenitiva do crack.

 A velocidade do vício foi arrebatadora. Dali em diante, Vindilina se entregou por inteiro à droga. Abandonou oemprego e começava a dar os primeiros indícios do abusopara a família. A droga, que antes era consumida apenasna rua, migrou para dentro de casa. Adquiriu o hábitode aguardar que todos da casa saíssem para fazer uso e

depois de alguns meses, nem isso mais. Seu quarto erainstransponível: foi sua primeira cracolândia. Começou ase envolver cada dia mais com pessoas da droga. A amizadecom tracantes – a ponto de levá-los a locais da cidadeonde conseguiriam escoar a droga que traziam de SãoPaulo – lhe rendia porções generosas de crack, agravando

sua dependência. Tinha verdadeiro fascínio em produzircachimbos para uso próprio.

Era inevitável que sua família rapidamente notassetamanha mudança de comportamento. Como podia umamulher feita, mãe e empregada, largar tudo e minguar?Desaparecer por dias de casa e voltar imunda, debilitada,

sem dinheiro? E as coisas que sumiam, onde estavam,quem levara?

“Chgou um momto qu u ão pud mas scodr. Quado mcasa, u fumava dtro do quarto. Quado a rua, ra m qualqurlugar. eu pass a abrgar usuáros a mha casa, lá vrou cato d

 fumo. eu va a agústa o olhar da mha famíla, mas mha cabçaão cosgua procssar qu ss sofrmto todo ra xclusvamt por mha causa. As mhas açõs ão ram psadas, é como s

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uma força oculta tomass cota d você cotrolass tudo qu faz.Com sso u mapulava mha famíla, mta dmas, causava procupação abalava as moçõs dls. O crack t rouba tudo, até

ssa capacdad d dscrmto do mudo...”.

O vício não se sustentaria sozinho. Lili partiu então paraaquele que considera o período mais abominável de suadependência. Aos 35 anos, mãe e viciada, passou a seprostituir. Naquela época, sua cabeça funcionava de forma

obtusa. Acreditava que essa seria a “úca saída ” e que nãoprejudicaria ninguém senão a ela mesma. “O mu objtvo racosgur dhro para comprar crack. era a forma qu u va fola qu u m agarr. Cada ctavo qu u cosgua a lá, comprava pdra, fumava voltava a m vdr ”. Frequentou estradas,barracos na Pedreira, inúmeros postos de gasolina e lotes

abandonados por toda a cidade. Idas e vindas à regiãoque viria a se tornar a Cracolândia. As relações sexuaiseram muitas vezes consumadas sem preservativos. Perdeucompanheiras por causa do vírus HIV. Já não capitula ototal das vezes em que foi agredida e abusada. Ao todo,foram mais de oito anos afundada na prostituição.

Durante o período em que esteve no auge do vício, Lilicometeu inúmeros erros. Para ela, o principal deles foi odistanciamento que impôs ao lho. Sua completa ausênciana relação entre eles abriu brechas enormes. Verdadeiraschagas que dicilmente seriam curadas. Revoltado como mundo, o exemplo da mãe chegaria até ele de forma

tortuosa. Aos 12 anos, Paulo entra de cabeça nas drogase criminalidade. Questionando o lho sobre as máscompanhias, Lili ouviu que “ão ra xmplo, já qu como uma

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vcada a cobrar d outro vcado alguma cosa d bom? ”. Numatentativa atrasada de recuperar o lho que ia se perdendo,enfrentou a mira de um revólver numa briga, herdando

uma bala alojada na perna até hoje. A relação entre mãee lho era confusa, mas positiva. Em 2006, ele acabariasendo preso e se entregando ao crack na cadeia.

Sua degradação chegava, enm, num estágio chave. Mesmoainda imersa no crack, Vindilina começava aos poucos

a compreender melhor o ponto em que havia chegado.Começou a interpretar muito daquilo que tinha visto aolongo dos anos de abuso como sinais que lhe convidavamà reexão, algo solenemente ignorado por tanto tempo.Precisou roubar, se prostituir, mentir, ver o lho tornar-se viciado e preso, tudo isso para sentir-se tocada a olhar

pra si mesma e querer mudar? Não seria tão simples. Ascontrapartidas seriam muitas e pesadas.

 A noite de 19 de novembro de 2006 reservava algomarcante para Lili. Envolvida em mais uma confusãoenquanto consumia crack, acabou sendo presa e levada àdelegacia do bairro Lagoinha. Lá foi acareada e chada,

suspeitavam que estivesse envolvida exclusivamente com otráco, não apenas como consumidora. Passou por mausbocados lá dentro. Ao puxarem seu nome no sistema,chegaram até o de seu lho, ainda preso. Ao longo detoda a noite foi questionada e precisou comprovar queera “apenas” usuária. Num momento em que foi deixada

sozinha, um dos policiais de plantão aconselhou-a a largartoda aquela vida que estava levando. “Sozha você ucava cosgur msmo, mas ão dxa d procurar ajuda. Só assm

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alguma cosa mudara. Qum sab dpos dsso ão podra ajudarsu lho? ”.

Dentro dela, algo se incutiu. Os últimos meses haviam sidobrutos, com o consumo de crack atingindo quantidadesabusivas até para uma viciada já calejada. Estava enmse cansando de viver fora de casa, se vendendo, longe depoder ajudar o lho. Internamente, a fagulha de algumacoisa acendia, mas ela ainda não sabia dar vazão a isso.

Irrequieto, o destino decidiu dar uma força. Um de seuslhos acabara de passar no vestibular e, em meio ao embatecontra o vício, o respingo de felicidade alentava. “ eu dssa l qu ra pura flcdad pra uma mã vr tal coqusta. estavamuto orgulhosa plo mu lho. el rspodu qu um da strao msmo orgulho d mm também. Aqulo mxu dmas comgo a

mudar d vda.”. Envergonhada perante a família, decidiuabrir o jogo numa carta que seria lida no almoço de Natal.Mesmo com as mãos trêmulas e os olhos tomados pelaslágrimas, conseguiu redigir um verdadeiro pedido desocorro. As palavras eram diretas: queria largar o crack,mas não conseguiria sozinha. Clamava pela ajuda deles,

então.Não foi fácil. O primeiro contato para a recuperação foiatravés de grupos de apoio, nos quais as pessoas se abriame partilhavam seus fantasmas em comum no vício. Osdesabafos traziam benefícios, mas a própria consciênciaseguia como a grande inimiga. “ era um coto tro. estava

al, ttado, mas um dabho a mha orlha cava stgado,m prgutado s u tha msmo qu m xpor o mo d tatoshoms, xpor mha vda daqula mara. Tha das qu u a

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 pra lá, mas a cabça ada tava o crack. Fcava doda pra trmar r fumar pdra ”.

 A primeira internação veio em 2007, na casa de recuperação – Noemi - , em Contagem/MG. Sob os cuidados das“anjas” Dona Deusa e Dirlene, Lili foi acolhida comose fosse uma lha. Passou pelos primeiros estágios detratamento, que focavam no descanso mental e físicodo internado. Aproximou-se da religião evangélica, fator

determinante para sua recuperação futura. Foram novemeses de internação, entre altos e baixos. O medo depermanecer como usuária e acabar outra vez na rua lhecausava pânico e servia de combustível pra que continuasseresiliente em sua recuperação. Ao mesmo tempo, sentialá no fundo que poderia fraquejar. Enquanto estava lá

dentro, perdeu o irmão brutalmente assassinado, tambémpor envolvimento com o crack. Foi liberada.

 A segunda internação veio no começo de 2008. Lili nãoresistira mais que seis meses após o primeiro tratamento,tendo uma forte recaída. Um relacionamento abusivo fezcom que as portas do inferno se abrissem outra vez em sua

 vida. O retorno do crack e dos velhos hábitos das mentirase manipulações na família acabaram por forçá-la a tomaruma decisão drástica. A segunda internação aconteceriade qualquer maneira e duraria por tempo indeterminado. Vindilina não sairia do tratamento enquanto não estivesse100% capaz de se livrar do vício. A decisão se provaria

a mais acertada até então. “ Mas o tratamto pra dpdtquímco é tro! equato u stvr vva, u tra qu m tratar.Só qu daqula vz, u ralmt qura car lmpa ”.

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O dia 30 de março de 2008 marcaria a última vez que Vindilina visitou a Cracolândia. Desde então, segue limpa.Com uma força de vontade até então desconhecida para

ela mesma, conseguiu chegar lá. Enm, dias mais amenos.

O ano de 2010 tinha tudo para trazer mais um pouco dealegria em sua vida. O lho acabara de sair da cadeia apósquatro anos e ela tinha conseguido avanços inigualáveisem seu tratamento. Estava sóbria, reintegrada ao convívio

familiar e nalmente cuidando de si mesma como hámuito tempo não fazia. Só que a batalha agora seria emoutra frente. Numa desas ironias trágicas da vida, Paulodeixava na prisão quatro anos de vida, mas trazia consigoum antigo conhecido da mãe. Saiu de lá livre em corpo,mas ainda mais preso ao mesmo crack que destruiu a

própria mãe anteriormente. Lili lutou com o lho ao longode um ano inteiro. As conversas emocionadas não surtiamefeito. A religião muito menos. Nem o reencontro com aesposa e as duas lhas foram capazes de trazê-lo de voltaao convívio social.

Em 2011, o internado teria que ser Paulo. Caberia à mãe

a dolorosa tarefa de refazer o caminho que trilhara anosatrás, mas sem a certeza de que o êxito seria o mesmo. Acodependência que impõs aos familiares em seu tempo de vício foi, enm, sentida na própria carne.

O lho não teve a mesma obstinação da mãe… Depois

de apenas quatro meses em seu processo de recuperação,quando ainda passava por exames, Paulo desistiu dotratamento. O pânico de passar mais tempo trancaado o

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aigia a ponto de minar sua força de vontade. Urgia porrecuperar o tempo perdido na prisão de qualquer maneira.E para isso não queria abrir mão das drogas.

Lili era a inquietação em pessoa naquele 4 de abril de 2011.Passou o dia todo fazendo suas coisas, mas com a cabeçadistante. Estava aita. Paulo estava atrasado para umcompromisso que tinham juntos e apesar de todos os seusproblemas, nunca fora disso. A falta de notícias durante

todo o dia fazia com que ela imaginasse coisas absurdas.Mas havia de ser só um atraso mesmo. Eram dias difíceisapós a desistência do tratamento. O lho permanecia no vício enquanto tentava retomar a vida, mas claramente nãohavia encontrado a fórmula exata pra isso, se é que elaalgum dia existiu.

 Às 21h, o telefone de Lili rompeu o silêncio da sala. Com ocoração apertado, atendeu ao primeiro toque, prontamente.Não queria acreditar na voz do outro lado da linha. Era seuoutro lho ligando para dizer que, aos 29 anos, Paulo haviamorrido. Assassinado com três tiros no bairro Nazaré,próximo de casa, numa confusão de droga. Foi socorrido

ainda com vida pelo irmão mais novo, mas morreu acaminho do hospital enquanto tentava se comunicar. Odisparo fatal no pescoço impedia que qualquer som saísseda garganta. Partiu em silêncio.

“Fca a saudad. el dscasou d uma vda dfícl. A votad ra

d tr abraçado mas, tr dto mas vzs qu amava o mu lho.Prd aos da mha vda com uma droga podra tr fto mas

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 por l. Talvz por ssa dstâca, ssa ausêca, l tha buscado asdrogas. nuca vou sabr...”.

 A resiliência com que Lili relata esse episódio é comovente,corajosa. Talvez faltem palavras que explanem a realdimensão e força de sua história. Todos ali enxugamas lágrimas. Emocionados, compartilham um olhar decomiseração também em silêncio.

“ A mã quado tm um lho a stuação m qu l vva já spraqu sso possa acotcr a qualqur hora. A gt ão qur qu ssoacotça, prprarada uca stamos. Mas ada mas passado oqu u pass, já s sab dssa possbldad. não é fácl! Fo mutodoloroso prdr mu rmão dpos mu lho, ambos da msma forma plos msmos motvos… Foram scolhas ftas por ls. erradas,claro […] M rstou procurar ajuda. essas morts m fortalcram

a ajudar outras pssoas também. A partr daí u smpr dgo quDus lvou o mu lho, mas m du outros, qu stão pla rua afora,dbaxo dos vadutos, as casas abadoadas as própras mãs. não qus car amargurada trgu ão, rsolv camhar. essa éa mha mssão agora, passar adat tudo o qu u vv. eu smprdgo qu, a tora, u ão s ada da vda. Mas a prátca, ah!

Dssa u tdo dmas...”.

Foram 14 anos envolvida com o crack e já se vão outrossete livre dele. As perdas, irreparáveis. Hoje, Vindilinatermina o ensino médio e pretende ser assistente social.Leva a vida modestamente com a família e morre de

amores pelos netinhos, que ainda nem imaginam a históriada avó. O coração do pai amoleceu bastante após todosesses anos. Trocam “eu te amo” a todo momento, a forma

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que encontraram para compensarem o tempo perdido.Participa de grupos de apoio e trabalhos sociais ondeoferece seu depoimento e, através dele, auxilia usuários de

crack e suas mães a encararem de frente a página mais difícilde suas vidas. Realizou os pequenos sonhos. Conseguiu viajar de avião, conheceu o mar. Aprendeu a amar aspequenas coisas da vida. Ainda persegue os grandes...

“O stmto ao olhar pra trás é d arrpdmto plo tmpo

 prddo, plas scolhas ftas, plas prdas qu sofr. Ao msmotmpo, tto olhar com a spraça d ajudar outras pssoas por tudoqu vv. Cotar a mha hstóra mostrar pra ssas pssoas qustão afudadas qu há qum cosgu vcr. ess é o mu gradsoho motvação. Quro paz. Vjo também a crtza do amor dDus a mha vda, qu ão dsstu d mm hora huma. V

a mort, o crack, a prosttução, o vrdadro fro. Foram aosd uma xprêca dolorosa, mas qu m fz mudar crscr. Posso quro sr strumto. Tv a oportudad d rcomçar, o qutatos outros ão trão. Hoj, ado d cabça rguda, mostrado às pssoas qu m dram como morta qu u vc. Vc a droga, a talda cracolâda, a mort….À duras pas, mas vc. É assm qu

quro fchar mha hstóra…”.É inegável que venceu.

Em meio às despedidas, antes que alguém recolhesse oexemplar da Bíblia sobre a mesa, lia-se em João 16:30-33algo intrigantemente oportuno, apropriado para qualquer

que seja a crença – ou a ausência de uma – que move cadaum de nós.

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“[…] eu lhs dss todas ssas cosas para qu, por mo d mm,vocês tham paz. nss mudo todos passarão por atrbulaçõs. Mas coragm! eu vc o mudo [...] ”.

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GRATIDÃO

Este livro chega até as suas mãos graças a desconhecidos.Fui mero instrumento, canal disponível para que estas vozes pudessem ser ouvidas de alguma maneira. Diriaaté que fui o verdadeiro privilegiado nessa história toda.Foi graças às existências ocultas que fui capaz de darà luz uma ideia que mais parecia devaneio no princípio.

 Apesar da incômoda proximidade a que meus olhos eramobrigados a se acostumar quando passava pela Avenida Antônio Carlos, mergulhar em uma realidade tão sombriae devastadora como uma cracolândia e conseguir resgataralgo importante de lá soava um tanto utópico. Coisa parajornalistas consagrados, extremamente capazes. Tim

Lopes, Caco Barcellos, Daniela Arbex e tantos outrosconseguiriam com facilidade. Eu, talvez não.

Resolvi tentar, movido muito mais pelo sentimento deempatia do que pela certeza de sucesso na empreitada. ACracolândia dominava minha atenção. Passei por ela quaseque diariamente ao longo de quatro anos. Dedicados aela, foram dois. Sem falar das incontáveis vezes em quea ignorei antes da primeira investida. Fato é que não meconfortava pensar que as pessoas lá dentro seriam apenasaquele retrato da decadência humana que estamos cansadosde absorver dos jornais e da televisão. Queria sentir deperto que nelas existia algo além disso. Como ser humanoe jornalista sempre acreditei na força das histórias alheias,especialmente daquelas ocultas, as sofridas e relegadas, as

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mais íntimas. Escutá-las e conseguir trazê-las à tona coloca-me sempre em posição reexiva, na qual repenso o quantoainda faço pouco pelo meu semelhante. Faz também com

que eu me empatize e enxergue o quanto muitos dosnossos ditos dramas e diculdades são meros tropeçosdiante de situações humanas como as que testemunhei.Correr atrás de histórias assim seria então minha missão.Sendo jornalista consagrado ou não.

Dedico e agradeço integralmente a todas as pessoas naCracolândia – e em seu entorno – por terem conadoa mim suas histórias. Foram depoimentos, lágrimas,sorrisos, dramas, dores, encaradas, perguntas e repostas. À minha maneira, tentei de coração retribuí-las com estelivro. Escolhi 19, mas poderiam ter sido 20, 30… Material

para isso não faltou. Entre tantos outros motivos, citoque aquelas que chegaram ao texto nal foram escolhidaspelos impactos causados em mim, em uma tentativa dedemonstrar o quão diversicada pode ser uma cracolândia. Ter tido o privilégio de escutá-las é muito mais graticantee honroso do que todas essas páginas conseguiram

acomodar. Àquelas pessoas cuja história não contei aqui,igualada gratidão. Seria impossível e injusto enumerartodas. Sem essas pessoas, nada disso seria possível.

Elas é que são dignas do mérito. Elas são as verdadeirashistórias. E histórias devem ser sempre maiores e maisimportantes que os nomes dos jornalistas e autores que

as contam.

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 Agradeço à minha mãe, Jaciara, pelo encorajamento, pelossacrifícios, pelo companheirismo e por me ensinar sobreamor ao próximo ao longo de toda uma vida. Aos amigos

pela motivação constante. À Terezinha, pelo apoio edirecionamento ímpar desde o primeiro minuto de projeto. A Deus, pela oportunidade e lições aprendidas. A todosque me ajudaram de alguma forma, que acreditaram emmim e agora me dão a honra de sua leitura.

Não pretendi, com este livro, apresentar soluções para aepidemia do crack e das cracolândias no Brasil, nem menosfazer uma análise baseada em teorias que tentem explicaro motivo de tais tragédias sociais. Busco, simplesmente,narrar histórias de pessoas até então invisíveis. Servir-lhesde voz, já que seus ecos nem sempre são ouvidos. O fatoé que eles existem e estão por todos os lugares. Regulemosnossos ouvidos, então...

Por tudo isso, co com Eduardo Coutinho:

“ Às vzs ouço falar qu a busca das hstóras d vda dos outros éuma forma d os cohcrmos. eu, rtrospctvamt como smpr,

sto qu o qu m ajuda a falar com as pssoas é qu u ão thocrtza d qum u sou. Para o lm é bom, para a vda ão s. Justamt, acho qu u vou buscar um pouco da mha dtdado outro…escutar tdr as razõs dl, msmo qu ão lh dêrazão”.

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