Livro Reconciliação e Terapia

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    CICLO DE CONFERNCIAS 2011

    SEMINRIO DA BOA NOVA50 ANOS AO SERVIO DA FORMAO MISSIONRIA

    3. CONFERENCIA:

    Reconciliao

    e TerapiaORADOR.

    Prof. Dr. Joo de Deus Costa Jorge, UCP- Porto

    SEMINRIO DA BOA NOVA - RUA DA BOA NOVA, N 533

    4405-535-VALADARES - T. 227 151 250

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    ndice

    1. Reconciliao e Terapia..3.

    2. Reconciliao e Penitencia (Exortao Ps-sinodal).6.

    3. Programa das conferncias.60.

    Organizao:

    Seminrio da Boa Nova Valadares

    Rua da Boa Nova, 533

    4406-535-VALADARES

    Colaborao:

    Grupo Missionrio de Valadares

    Grupo Missionrio de Vilar de Paraso

    Grupo Bblico do Seminrio da Boa Nova

    Grupo coral do Seminrio da Boa Nova

    Coordenador:

    Eugnio Perregil

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    CICLO DE CONFERNCIAS 2011

    Seminrio da Boa Nova

    Reconciliao e Terapia

    Confrontar-se com as nossas prprias limitaes, sentir a fraqueza da nossa

    realidade, afirmar a nossa necessidade de perdo e reconciliao, entendida numa

    cultura narcisista actual, como uma ameaa conservao da nossa auto estima.

    negar a ideia do homem omnipotente, ilimitado e absoluto.

    O evidente enfraquecimento da conscincia de pecado coloca em crise toda

    uma srie de relaes: do homem com Deus, consigo mesmo, com o prprio mundo

    de limitaes e fraquezas, com o prprio ambiente, com a prpria histria, sntese do

    bem e do mal, com Deus. O pecado, quando no reconhecido e integrado, pode

    impedir e obscurecer a percepo do bem.

    A Reconciliao, numa perspectiva psicolgica, um complexo processopsicodinmico de integrao do mal, profundamente radicado na nossa existncia,

    que passa pelas seguintes fases:

    1. Identificao e reconhecimento do mal como parte de ns.

    a tomada de conscincia daquilo que somos, que significa descobrir a nossa

    real identidade como se manifesta no complexo articular-se do viver quotidiano.

    Normalmente temos a pretenso de eliminar o mal ou ignor-lo atravs do nosso

    narcisismo, recriminando ou projectando aquilo que est em ns. Ou ento

    enveredamos pela anulao da conscincia da culpa ou por uma culpa destrutiva que

    termina no escrpulo. Da a necessidade de um exame de conscincia para indagar

    sobre as motivaes e as intenes do nosso agir; para descorir o que temos na

    mente e no corao; para integrar as nossas fraquezas e fracassos.

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    2. A experincia do perdo

    O processo integrador do mal passa agora pela experincia do perdo que nos

    reconcilia dentro e fora de ns. verdade que no creditamos ou acreditamos pouco

    em quem se arrepende, no porque desconfiamos dele pessoalmente, mas sobretudo

    porque cremos pouco na lgica do perdo, na possibilidade de arrependimento, de

    nos sentirmos reconciliados connosco, com a vida, com os outros, com Deus, como

    se o homem pudesse viver sem misericrdia e pretendesse estabelecer relaes

    consigo e com os outros sobre uma base rgida de justia.

    No caminho da integrao do mal, o perdo representa a descoberta de um

    amor que vai alm do nosso mrito.

    A concepo reducionista da confisso entend-la como instrumento

    ocasional ou de emergncia, com uma funo mais ou menos automtica de

    eliminao ou cancelamento da culpa. A experincia do perdo reconcilia o homem

    consigo mesmo, a sua imagem ideal com a sua imagem actual; reconcilia o homem

    com Deus, autor da nossa paz interior; reconcilia o homem com a vida, na alegria de

    viver, na integrao do bem e na gratuidade. O nosso instinto de domnio, de violncia

    e a necessidade de estima impedem a experincia de perdo. Mas s a fora doperdo pode mudar o homem e a histria.

    3. Transformao - transfigurao.

    Esta uma nova dimenso da vida em que o mal sofre uma transformao e

    entra numa integrao plena. Transformar o mal identific-lo concretamente na

    prpria pessoa, sem o negar ou aceitar com fatalismo, nem projectar para os outros;

    dar-lhe um significado; torn-lo ocasio de bem para melhor conhecimento e

    aceitao de si e dos outros.

    O mal-estar do homem contemporneo, as constantes desintegraes e

    divises da sua personalidade, os conflitos interiores e com os outros, as constantes

    ameaas de paz, os fracassos, as situaes de luto e depresses, a insatisfao e

    ansiedade, leva-nos a afirmar que o ser humano tem necessidade de viver a

    experincia da reconciliao. Uma necessidade tanto mais sentida quanto mais

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    profunda a conscincia do pecado. Sentir a necessidade da reconciliao tornar-

    se consciente do fluxo do Amor e da Misericrdia de Deus. No sacramento da

    reconciliao e do perdo, Deus no apaga simplesmente as nossas culpas mas

    manifesta a sua fora criadora. O ser humano entrega-se novamente ao regao

    materno de Deus para ser recriado.

    A terapia da humanidade construir uma cultura da reconciliao.

    Valadares, 24 de Maro de 2011 J. Costa Jorge

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    EXORTAO APOSTLICAPS- SINODAL

    RECONCILIATIO ET PAENITENTIA

    DE SUA SANTIDADEJOO PAULO II

    AO EPISCOPADO,AO CLERO E AOS FIIS

    SOBRE A

    RECONCILIAO E A PENITNCIANA MISSO DA IGREJA HOJE

    INTRODUO

    ORIGEM E SIGNIFICADO DO DOCUMENTO1. Falar de Reconciliao e Penitncia, para os homens e mulheres do nosso tempo, convid-los a reencontrar, traduzidas na sua linguagem, as prprias palavras com que onosso Salvador e Mestre Jesus Cristo quis iniciar a sua pregao: Convertei-vos e

    acreditai no Evangelho, (1) ou seja, acolhei o anncio jubiloso do amor, da adopo comofilhos de Deus e, consequentemente, da fraternidade.

    Porque que a Igreja prope de novo este tema e este convite?

    A nsia de conhecer melhor e de compreender o homem de hoje e o mundocontemporneo, de lhe decifrar o enigma e desvendar o seu mistrio, de discernir osfermentos de bem ou de mal que nele se agitam, leva muitos, de h um certo tempo a estaparte, a fixar no mesmo homem e neste mundo um olhar interrogativo. o olhar dohistoriador e do socilogo, do filsofo e do telogo, do psiclogo e do humanista, do poetae do mstico; e , sobretudo, o olhar preocupado, se bem que carregado de esperana, dopastor.

    Um tal olhar revela-se, de modo exemplar, em cada uma das pginas da importanteConstituio pastoral do Conclio Vaticano II Gaudium et Spessobre a Igreja no mundocontemporneo, particularmente na sua ampla e perspicaz introduo. Esse olhar revela-se, de igual modo, em alguns Documentos emanados da sabedoria e da caridade pastoraldos meus venerveis Predecessores, cujos luminosos pontificados ficaram marcados peloacontecimento histrico e proftico que foi esse Conclio Ecumnico.

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    Como os outros olhares, tambm o olhar do pastor descobre, infelizmente, entre diversascaractersticas do mundo e da humanidade do nosso tempo, a existncia de numerosas,profundas e dolorosas divises.

    Um mundo despedaado

    2. Estas divises manifestam-se nas relaes entre as pessoas e entre os grupos, comotambm ao nvel das colectividades mais amplas: Naes contra Naes, e blocos depases contrapostos, numa rdua busca de hegemonia. Na raiz das rupturas no difcilidentificar conflitos que, em vez de serem resolvidos mediante o dilogo, se agudizam noconfronto e na oposio.

    Ao indagar sobre os elementos geradores de diviso, observadores atentos apontam osmais variados: desde a crescente disparidade entre grupos, classes sociais e pases, aosantagonismos ideolgicos, nem por sombras extintos; desde a contraposio dosinteresses econmicos s polarizaes polticas; desde as divergncias tribais sdiscriminaes por motivos scio-religiosos. De resto, algumas realidades, bem vista detodos, constituem como que o rosto lastimoso da diviso, de que so fruto e de queacentuam a gravidade, com irrefutvel realismo. Podem recordar-se, entre tantos outrosdolorosos fenmenos sociais do nosso tempo:

    o espezinhar dos direitos fundamentais da pessoa humana, sendo o primeiro entreeles o direito vida e a uma digna qualidade de vida; e isso apresenta-se maisescandaloso, na medida em que coexiste com uma retrica, nunca antes conhecida,sobre os mesmos direitos;

    as insdias e as presses contra a liberdade dos indivduos e das colectividades,sem excluir a liberdade de manter, professar e praticar a prpria f, que mesmodas mais atingidas e ameaadas;

    as vrias formas de discriminao: racial, cultural, religiosa, etc.; a violncia e o terrorismo; o uso da tortura e as formas injustas e ilegtimas de represso; a acumulao de armas convencionais ou atmicas, a corrida aos armamentos, com

    despesas blicas que poderiam servir para aliviar a misria imerecida de povossocial e economicamente em condies deprimentes;

    a distribuio inqua dos recursos do mundo e dos bens da civilizao, que atinge oseu cmulo num tipo de organizao social, por fora da qual a distncia entre as

    condies humanas dos ricos e dos pobres aumenta cada vez mais. (2) A potnciaavassaladora desta diviso faz do mundo em que vivemos um mundo

    despedaado, (3) at mesmo nos seus fundamentos.

    Por outro lado, uma vez que a Igreja, sem se identificar como mundo, nem ser do mundo,est inserida no mundo e est em dilogo como mundo, (4) no para admirar que senotem na sua prpria estrutura repercusses e sinais da diviso que dilacera a sociedadehumana. Para alm das cises entre as Comunidades crists que de h sculos acontristam, a Igreja experimenta hoje no seu seio, aqui e alm, divises entre as suasprprias componentes, causadas pela diversidade de pontos de vista e de escolhas, no

    campo doutrinal e pastoral. (5) Tambm estas divises podem, por vezes, parecerirremediveis.

    Por mais impressionantes que se apresentem tais laceraes primeira vista, s

    observando-as em profundidade se consegue individuar a sua raiz: esta encontra-senuma feridano ntimo do homem. luz da f chamamos-lhe pecado, comeando

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    pelo pecado original, que cada um traz consigo desde o nascimento, como uma heranarecebida dos primeiros pais, at aos pecados que cada um comete, abusando da prprialiberdade.

    Nostalgia de reconciliao

    3. E, no entanto, o mesmo olhar indagador, se suficientemente perspicaz, captar no seioda diviso um desejo inconfundvel, da parte dos homens de boa vontade e dosverdadeiros cristos, de recompor as fracturas, de cicatrizar as laceraes e de instaurar, atodos os nveis, uma unidade essencial. Este desejo comporta, em muitos casos, umaverdadeira nostalgia de reconciliao, mesmo quando no usada tal palavra.

    Para alguns, trata-se como que de uma utopia, a qual poderia tornar-se a alavanca idealpara uma verdadeira transformao da sociedade; para outros, apresenta-se, ao contrrio,como o objecto de uma rdua conquista e, portanto, uma meta a atingir, atravs de umsrio empenhamento de reflexo e de aco. Em qualquer caso, a aspirao a umareconciliao sincera e consistente , sem sombra de dvida, um mbil fundamental danossa sociedade, como que reflexo de um irreprimvel desejo de paz; e -o tovigorosamente por mais paradoxal que parea quanto mais perigosos so os prpriosfactores de diviso.

    A reconciliao, todavia, no poder ser menos profunda do que se apresenta a diviso. Anostalgia da reconciliao e a prpria reconciliao sero plenas e eficazes, na medida emque atingirem para a curar aquela dilacerao primordial, que a raiz de todas asoutras, ou ou seja, o pecado.

    A viso do Snodo

    4. Portanto, todas as instituies ou organizaes, que se destinam ao servio do homeme interessadas em salv-lo nas suas dimenses fundamentais, ho-de volver um olhar

    penetrante para a reconciliao, para aprofundar o seu significado e todo o seu alcance etirar da as necessrias consequncias para a aco.

    A um olhar assim no podia eximir-se a Igreja de Jesus Cristo. Com dedicao de Me einteligncia de Mestra, ela, solcita e atenta, aplica-se em captar na sociedade, com ossinais da diviso, tambm aqueles outros no menos eloquentes e significativos da buscade uma reconciliao. A Igreja sabe, de facto, que lhe foi dada, especialmente a ela, apossibilidade e lhe est confiada a misso de tornar conhecido o sentido verdadeiro,profundamente religioso, e as dimenses integrais da reconciliao, contribuindo assim, js com isso, para esclarecer os termos essenciais da questo da unidade e da paz.

    Os meus Predecessores no cessaram de pregar a reconciliao e de convidar a p-la em

    prtica a humanidade inteira, bem como cada sector e cada parcela da comunidadehumana que viam dilacerada e dividida. (6) E eu prprio, por um impulso interior, queobedecia ao mesmo tempo estou certo disso inspirao do Alto e aos apelos dahumanidade, em dois momentos diversos, ambos solenes e bem importantes, quis pr emfoco a tema da reconciliao: em primeiro lugar, convocando a VI Assembleia Geral doSnodo dos Bispos; e, em segundo lugar, fazendo dele o ponto central do Ano Jubilar,proclamado para celebrar o 1950 aniversrio da Redeno. (7) E quando houve dedesignar um tema para o Snodo encontrei-me plenamente de acordo com o que tinha sidosugerido por muitos dos meus Irmos no Episcopado, ou seja, quanto ao to fecundo tema

    de reconciliao, em estreita ligao com o da penitncia. (8)

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    O termo e o prprio conceito de penitnciaso bastante complexos. Se a relacionarmoscom ametnoia, a que se referem os Sinpticos, a penitncia significa ento antima mudana do coraosob o influxo da Palavra de Deus e na perspectiva do

    Reino. (9) Mas penitnciaquer dizer tambmmudar de vida, em coerncia com a mudanado corao; e, neste sentido, o fazer penitnciacompleta-se com o produzir frutos

    condignos de arrependimento: (10) a existncia toda que se torna penitncial, aplicadanuma contnua caminhada em tenso para o que melhor. Fazer penitncia, no entanto,s ser algo de autntico e eficaz se se traduzir em actos e gestos de penitncia. Nestesentido, penitnciasignifica, no vocabulrio cristo teolgico e espiritual, aascese, isto ,o esforo concreto e quotidianodo homem, amparado pela graa de Deus, por perder a

    prpria vida, por Cristo, como nico modo de a ganhar: (11) esforo por se despojar

    dohomem velhoe revestir-se do novo; (12) por superar em si mesmo o que carnal, para

    que prevalea o que espiritual; (13) e esforo por se elevar continuamente das coisas

    de c de baixopara as l do alto, onde est Cristo. (14) A penitncia, portanto,

    a converso que passa do corao as obrase, por conseguinte, vida todado cristo.Em cada um destes significados, a penitnciaanda intimamente ligada coma reconciliao, uma vez que reconciliar-se com Deus, consigo mesmo e com os outrospressupe que se supera a ruptura radical, que o pecado; ora isto s se realiza atravsda transformao interior ou converso, que frutifica na vida mediante os actos depenitncia.

    O documento-base do Snodo (chamado tambm Lineamenta= Esboo), preparado scom a finalidade de apresentar o tema, acentuando alguns dos seus aspectosfundamentais, permitiu as Comunidades eclesiais, que existem pelo mundo, reflectirdurante quase dois anos, sobre estes aspectos de uma questo qual a da converso

    e da reconciliao que interessa a todos; e, alm disso, de a ela ir buscar um renovadodinamismo para a vida e para o apostolado cristo. A reflexo foi mais aprofundada depois,na preparao imediata para os trabalhos sinodais, graas aoDocumento detrabalho(Instrumentum laboris), enviado a seu tempo aos Bispos e aos seuscolaboradores. E, por fim, durante um ms inteiro, os Padres sinodais, assistidos por todosaqueles que foram chamados para a Assembleia propriamente dita, com grande sentido deresponsabilidade trataram do mesmo tema e dos problemas, numerosos e variados, comele conexos. Do debate, do estudo em comum e da assdua e cuidadosa indagaopromanou um amplo e precioso tesouro, que as Propostas(Propositiones) finaisresumem na sua essncia.

    A viso do Snodo no ignora os actos de reconciliao (alguns dos quais passam quaseinobservados na sua verificao quotidiana) que, embora em graus diversos, servem paraacabar com as muitas tenses, para superar os muitos conflitos e para vencer aspequenas e grandes divises, restabelecendo a unidade. A preocupao principal doSnodo, porm, era a de encontrar, no mago destes actos dispersos, a raiz escondida,uma reconciliao fontal, por assim dizer, operante no corao e na conscincia dohomem.

    O carisma e, simultaneamente, a originalidade da Igreja, no que respeita reconciliao,qualquer que seja o nvel em que deva ser posta em prtica, residem no facto de a mesmaIgreja ir sempre buscar a sua origem quela reconciliao fontal. Em virtude da sua missoessencial, a Igreja sente-se, de facto, no dever de chegar at as raizes da laceraoprimordial do pecado, para a operar o saneamento e restabelecer como que uma

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    reconciliao, tambm ela primordial, que seja o princpio eficaz de toda a verdadeirareconciliao. Foi isto que a Igreja teve em vista e props, mediante o Snodo.

    Desta reconciliao nos fala a Sagrada Escritura, convidando-nos a fazer todos os

    esforos para alcan-la; (15) mas diz-nos, por outro lado, que ela , primeiro que tudo, um

    dom misericordioso de Deus ao homem. (16) A histria da Salvao a salvao de todaa humanidade, como a de cada homem, em qualquer momento a histria admirvelde uma reconciliao: aquela reconciliao pela qual Deus, que Pai, no Sangue e naCruz do Seu Filho feito homem, reconciliou consigo o mundo, fazendo nascer assim unanova famlia de reconciliados.

    A reconciliao torna-se necessria porque se deu a ruptura do pecado, da qual derivaramtodas as outras formas de ruptura no ntimo do homem e sua volta. A reconciliao,portanto, para ser total exige necessariamente a libertao do pecado, rejeitado nas suasrazes mais profundas. Por isso, h uma estreita ligao interna, queune conversoe reconciliao: impossvel dissociar as duas realidades, ou falar de uma

    sem falar da outra.O Snodo falou, ao mesmo tempo, da reconciliao de toda a famlia humana e daconverso do corao de cada pessoa, do seu regresso a Deus, querendo confirmar eproclamar que a unio entre os homens no se poder realizar sem a mudana interior decada um. A converso pessoal o caminho necessrio para a concrdia entre as

    pessoas. (17) Quando a Igreja anuncia a boa nova da reconciliao ou se prope torn-larealidade atravs dos Sacramentos, desempenha um verdadeiro papel proftico,denunciando os males do homem na sua nascente contaminada indicando a raiz dasdivises e infundindo a esperana de poder superar as tenses e os conflitos, para chegar fraternidade, concrdia e paz, em todos os nveis e em todas as camadas da

    sociedade humana. Ela transforma uma condio histrica de dio e de violncia numacivilizao de amor; ela proporciona a todos o princpio evanglico e sacramental daquelareconciliao fontal, da qual brotam todos os outros gestos ou actos de reconciliao,mesmo a nvel social. desta reconciliao, fruto da converso, que trata a presenteExortao Apostlica.

    Com efeito, como j aconteceu depois das trs precedentes Assembleias sinodais,tambm desta vez os prprios Padres quiseram deixar nas mos do Bispo de Roma,Pastor universal da Igreja e Chefe do Colgio episcopal, na sua qualidade de Presidentedo Snodo, as concluses do prprio trabalho. Aceitei, como grave e grato dever do meuministrio, a tarefa de colher na imensa riqueza do Snodo para apresentar ao Povo deDeus, qual fruto do mesmo Snodo, uma mensagem doutrinal e pastoral sobre o temada penitncia e da reconciliao. Tratarei, pois, na primeira parte, da Igreja no desempenhoda sua misso reconciliadora e na actividade de converso dos coraes, pelo abraorenovado entre o homem e Deus, entre o homem e o seu irmo e entre o homem e tudo oque foi criado; na segunda parte, ser indicada a causa radical de todas as dilaceraes oudivises entre os homens e, antes de mais, em relao com Deus: o pecado; por fim,apontarei aqueles meios que permitem Igreja promover e suscitar a plena reconciliaodos homens com Deus e, consequentamente, dos homens entre si.

    O Documento que agora confio aos filhos da Igreja, bem como a todos aqueles que,crentes ou no, olham a mesma Igreja com interesse e nimo sincero, pretende ser aresposta que se impe a tudo aquilo que o Snodo me pediu. Entretanto, ele tambm

    fao questo de o declarar, para satisfazer a um imperativo de verdade e de justia obrado mesmo Snodo. O contedo destas pginas, de facto, dele proveniente: da sua

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    preparao remota ou prxima, do Documento de trabalho, das intervenes na SalaSinodal, nas reunies de grupo(circuli minores) e, sobretudo, das sessenta etrs Propostas(Propositiones): encontra-se aqui o fruto do trabalho conjunto dosPadres, entre os quais no faltavam os representantes das Igrejas Orientais, cujopatrimnio teolgico, espiritual e litrgico to rico e venervel, tambm pelo que respeita

    matria que aqui nos interessa. Alm disso, o Conselho da Secretaria do Snodo, emduas importantes sesses, avaliou os resultados e as orientaes da Assembleia sinodal,logo que esta terminou, ps em evidncia a dinmica dasreferidas Propostas(Propositiones) e traou as linhas julgadas mais idneas, para aestrutura do presente Documento. Estou grato a todos aqueles que realizaram estetrabalho, enquanto, fiel minha misso, quero aqui transmitir aquilo que, no tesourodoutrinal e pastoral do Snodo, me parece providencial para a vida de tantos homens,nesta hora, a um tempo magnfica e difcil, da histria.

    Convm faz-lo e afigura-se algo especialmente significativo enquanto est aindaviva a recordao do Ano Santo, todo ele vivido sob o signo da penitncia, converso e

    reconciliao. Que esta minha Exortao, confiada aos Irmos no Episcopado e aos seuscolaboradores Presbteros e Diconos, aos Religiosos e Religiosas, a todos os Fiis e aoshomens e mulheres de conscincia recta, possa constituir no apenas um instrumento depurificao, de enriquecimento e aprofundamento da prpria f pessoal, mas tambm umfermento capaz de estimular no corao do mundo, a paz e a fraternidade, a esperana e aalegria, valores que brotam do Evangelho acolhido, meditado e vivido, dia a dia, olhandopara o exemplo de Maria, Me de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual aprouve a Deusreconciliar consigo todas as coisas. (18)

    PRIMEIRA PARTE

    CONVERSO E RECONCILIAO:TAREFA E COMPROMISSO DA IGREJA

    CAPTULO PRIMEIRO

    UMA PARBOLA DA RECONCILIAO

    5. Ao iniciar esta Exortao Apostlica, vem-me mente aquela pgina extraordinria de

    So Lucas, que j procurei ilustrar num Documento precedente. (19) Refiro-me parbola

    do filho prdigo.(20)

    Do irmo que se tinha perdido...

    Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao Pai: "Pai, d-me a parte da heranaque me compete", conta Jesus ao apresentar as dramticas vicissitudes daquele jovem: aaventurosa partida da casa paterna, a dissipao de todos os seus bens numa vidadissoluta e vazia, os dias tenebrosos da distncia e da fome e, pior ainda, da dignidadeperdida, da humilhao e da vergonha; e, por fim, a nostalgia da prpria casa, a coragemde regressar e o acolhimento do pai. Este, certamente, no tinha esquecido o filho; aocontrrio, conservara intactos o afecto e a estima para com ele. E assim, esperara-o

    sempre; e agora abraa-o, enquanto inicia a grande festa do regresso daquele que estavamorto e voltou vida, se tinha perdido e foi encontrado.

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    O homem, cada um dos homens este filho prdigo: fascinado pela tentao de seseparar do Pai para viver de modo independente a prpria existncia; cado na tentao;desiludido do nada que, como miragem, o tinha deslumbrado; sozinho, desonrado eexplorado no momento em que tenta construir um mundo s para si; atormentado, mesmono mais profundo da prpria misria, pelo desejo de voltar comunho com o Pai. Como o

    pai da parbola, Deus fica espreita do regresso do filho, abraa-o sua chegada e pe amesa para o banquete do novo encontro, com que se festeja a reconciliao.

    O que nesta parbola sobressai mais o acolhimento festivo e amoroso do pai ao filho queregressa: imagem da misericrdia de Deus sempre pronto a perdoar. Assentemos desde jnisto: a reconciliao principalmente um dom do Pai celeste.

    ...ao irmo que ficara em casa

    6. Mas a parbola faz entrar em cena tambm o irmo mais velho, que recusa ocupar oseu lugar no banquete. Reprocha ao irmo mais novo os seus extravios e ao pai oacolhimento que lhe dispensou, enquanto a ele, morigerado e trabalhador, fiel ao pai e casa, nunca foi permitido diz ele fazer uma festa com os amigos. Sinal de que nocompreende a bondade do pai. Enquanto este irmo, demasiado seguro de si mesmo edos prprios mritos, ciumento e desdenhoso, cheio de azedume e de raiva, no seconverteu e se reconciliou com o pai e com o irmo, o banquete ainda no era, no sentidopleno, a festa do encontro e do convvio recuperado.

    O homem cada um dos homens tambm este irmo mais velho. O egosmo torna-ociumento, endurece-lhe o corao, cega-o e leva-o a fechar-se aos outros e a Deus. Abenignidade e a misericrdia do pai irritam-no e incomodam-no; a felicidade do irmo

    reencontrado tem um sabor amargo para ele. (21) Tambm sob este aspecto ele precisa dese converter para se reconciliar.

    A parbola do filho prdigo , antes de mais, a histria inefvel do grande amor de um Pai Deus que oferece ao filho, que a Ele retorna, o dom da reconciliao plena. E aoevocar, na figura do irmo mais velho, o egosmo que divide os irmos entre si, ela torna-se tambm a histria da famlia humana: mostra a nossa situao e indica o caminho apercorrer. O filho prdigo, com a sua nsia de converso, de regresso aos braos do pai ede perdo, representa aqueles que pressentem no fundo da prpria conscincia a nostalgiade uma reconciliao a todos os nveis e sem reserva, e tm a intuio, com ntimacerteza, de que ela s ser possvel, se derivar de uma primeira e fundamentalreconciliao: aquela reconciliao que leva o homem da distncia amizade filial comDeus, do qual reconhece a misericrdia infinita. Lida, porm, na perspectiva do outro filho,a parbola retrata a situao da famlia humana dividida pelos egosmos, pe em evidncia

    a dificuldade em secundar o desejo e a nostalgia de uma s famlia reconciliada e unida; e,por conseguinte, apela para a necessidade de uma profunda transformao dos coraes,pela redescoberta da misericrdia do Pai e pela vitria sobre a incompreenso e ahostilidade entre irmos.

    luz desta inesgotvel parbola da misericrdia que apaga o pecado, a Igreja, acolhendoo apelo que nela est contido, compreende a sua misso de empenhar-se, seguindo aspegadas do Senhor, pela converso dos coraes e pela reconciliao dos homens comDeus e entre si, duas realidades que esto intimamente conexas.

    CAPTULO SEGUNDO

    NAS FONTES DA RECONCILIAO luz de Cristo Reconciliador

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    7. Como se deduz da parbola do filho prdigo, a reconciliao um dom de Deuseuma iniciativa sua. Mas a nossa f ensina-nos que esta iniciativa se concretiza no mistriode Cristo redentor e reconciliador, que liberta o homem do pecado sob todas as suasformas. O prprio So Paulo no hesita em resumir em tal tarefa e funo a incomparvelmisso de Jesus de Nazar, Verbo e Filho de Deus feito homem.

    Tambm ns podemos partir deste mistrio central da economia da salvaoe ponto-chave da cristologia do Apstolo. Se, de facto, sendo ns inimigos, fomos reconciliadoscom Deus, mediante a morte do Seu Filho escreve ele aos Romanos muito mais,agora que estamos reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E no s isto; mastambm nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual, agora,

    obtivemos a reconciliao. (22) Sendo assim, uma vez que Deus nos reconciliou consigopor meio de Cristo Paulo sente-se inspirado a exortar os cristos de Corinto: Reconciliai-

    vos com Deus.(23)

    De tal misso reconciliadora mediante a morte na Cruz, falava noutros termos o

    evangelista Joo, ao observar que Cristo devia morrer para que fossem reconduzidos unidade os filhos de Deus que andavam dispersos. (24)

    So Paulo permite-nos, ainda, alargar a nossa viso da obra de Cristo a dimensescsmicas, quando escreve que n'Ele o Pai reconciliou consigo todas as criaturas, as do

    cu e as da terra. (25)Pode dizer-se de Cristo Redentor, justamente, que no tempo da ira

    foi feito reconciliao, (26) e que, se Ele a nossa paz, (27) tambm a nossareconciliao.

    com toda a razo que a sua paixo e morte, sacramentalmente renovadas na Eucaristia,so chamadas pela Liturgia sacrifcio de reconciliao: (28) reconciliao com Deus e

    com os irmos, dado que o prprio Jesus ensina que a reconciliao fraterna deve realizar-se antes do sacrifcio. (29)

    A partir destas e de outras significativas passagens do Novo Testamento, legitimo,portanto, fazer convergir as reflexes sobre todo o mistrio de Cristo, em torno da suamisso de Reconciliador. H que proclamar, portanto, mais uma vez, a f da Igreja no actoredentor de Cristo, no mistrio pascal da sua morte e ressurreio, enquanto causa dareconciliao do homem, no seu duplo aspecto de libertao do pecado e de comunho degraa com Deus.

    E exactamente perante o quadro doloroso das divises e das dificuldades dareconciliao entre os homens, convido a olhar para o mistrio da Cruz(mysteriumCrucis), como para o drama mais alto, no qual Cristo conhece e sofre profundamente odrama da diviso do homem em relao a Deus, ao ponto de clamar com o Salmista: Meu

    Deus, meu Deus, porque me abandonaste?; (30) e realiza ao mesmo tempo a nossareconciliao. O olhar fixo no mistrio do Glgota deve fazer-nos recordar sempreaquela dimensovertical da diviso e da reconciliao, que diz respeito relaohomem-Deus, e que, numa viso de f, prevalece sempre sobre a dimensohorizontal,isto , sobre a realidade da diviso e sobre a necessidade da reconciliao entre oshomens. Sabemos, de facto, que tal reconciliao entre os homens no e no pode serseno o fruto do acto redentor de Cristo, morto e ressuscitado para destroar o reino dopecado, restabelecer a aliana com Deus e abater assim o muro de separao, (31) que o

    pecado tinha erguido entre os homens.

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    A Igreja reconciliadora

    8. Mas como dizia So Leo Magno, ao falar, da paixo de Cristo tudo aquilo que oFilho de Deus fez e ensinou para a reconciliao do mundo, ns no o conhecemossomente pela histria das suas aces passadas, mas sentimo-lo, tambm, na eficcia do

    que Ele realiza no presente.(32)

    Sentimos a reconciliao, operada na sua humanidade,na eficcia dos sagrados mistrios celebrados pela sua Igreja, pela qual Ele se entregou asi mesmo, constituindo-a sinal e, conjuntamente, instrumento de salvao. isto queafirma So Paulo, ao escrever que Deus deu aos Apstolos de Cristo uma participao nasua obra reconciliadora. Deus - diz ele - confiou-nos o ministrio da reconciliao ... aspalavras da reconciliao. (33)

    Nas mos e na boca dos Apstolos, seus mensageiros, o Pai deps misericordiosamenteumministrio de reconciliao, que eles exercem de maneira singular, em virtude do poderde agir in persona Christi. Mas tambm a toda a comunidade dos fiis, inteira estruturada Igreja, confiada a mensagem da reconciliao, ou seja, a obrigao de fazer todo o

    possvel para testemunhar a reconciliao e para a actuar no mundo.Pode dizer-se que tambm o Conclio Vaticano II, ao definir a Igreja como sacramento ousinal e instrumento da ntima unio com Deus e da unidade de todo o gnero humano, eao indicar como sua funo prpria a de obter a plena unidade em Cristo para os

    homens, hoje mais intimamente ligados por vrios vnculos, (34) reconhecia que amesma Igreja deve tender, sobretudo, para reconduzir os homens plena reconciliao.

    Em ntima conexo com a misso de Cristo, a misso da Igreja, assaz rica e complexa,pode, portanto, resumir-se na tarefa, central para ela, da reconciliao do homem: comDeus, consigo mesmo, com os irmos e com toda a criao; e isto de maneirapermanente, porque como j disse uma outra vez a Igreja , por sua natureza,

    sempre reconciliadora. (35)

    A Igreja reconciliadora, na medida em que proclama a mensagem da reconciliao, comosempre fez na sua histria, desde o Conclio apostlico de Jerusalm (36) at ao ltimoSnodo dos Bispos e ao recente Jubileu da Redeno. A originalidade desta proclamaoest no facto de que, para a Igreja, a reconciliaoest estreitamente ligada conversodo corao: esta a via necessria para o entendimento entre os seres humanos.

    A Igreja reconciliadora, ainda, na medida em que mostra ao homem os caminhos e lheoferece os meios para a referida reconciliao em quatro dimenses. Os caminhos soexactamente os da converso do corao e da vitria sobre o pecado, seja ele o egosmo

    ou a injustia, a prepotncia ou a explorao de outrem, o apego aos bens materiais ou abusca desenfreada do prazer. Os meios so os da fiel e amorosa escuta da Palavra deDeus, da orao pessoal e comunitria e, sobretudo, dos Sacramentos, verdadeiros sinaise instrumentos de reconciliao, entre os quais sobressai, precisamente sob este aspecto,aquele a que, com razo, costumamos chamar o Sacramento da Reconciliao ou daPenitncia, ao qual voltarei em seguida.

    A Igreja reconciliada

    9. O meu venervel Predecessor Paulo VI teve o mrito de esclarecer que, para serevangelizadora, a Igreja deve comear por se mostrar ela prpria evangelizada, isto ,aberta ao anncio pleno e integral da Boa Nova de Jesus Cristo, para a escutar e pr em

    prtica. (37) Tambm eu, coligindo num documento orgnico as reflexes da IV Assembleia

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    Geral do Snodo, falei de uma Igreja que se catequiza na medida em que faz

    catequese. (38)

    No hesito agora em retomar, aqui neste ponto, o paralelismo, porquanto ele se aplica aotema que estou a tratar, para afirmar que a Igreja, para ser reconciliadora, deve comear

    por ser uma Igreja reconciliada. Nesta expresso simples e linear est subjacente aconvico de que a Igreja, para anunciar e propr de modo cada vez mais eficaz ao mundoa reconciliao, deve tornar-se cada vez mais uma comunidade (ainda que fosse opequeno rebanho dos primeiros tempos) de discpulos de Cristo, unidos no empenho emse converterem continuamente ao Senhor e em viverem como homens novos no esprito ena prtica da reconciliao.

    Perante os nossos contemporneos, to sensveis prova dos testemunhos concretos devida, a Igreja chamada a dar o exemplo da reconciliao, antes de mais no seu interior; epara isto, todos devemos esforar-nos por apaziguar os nimos, moderar as tenses,superar as divises, sanar as feridas eventualmente infligidas entre irmos, quando seagudiza o contraste entre opes no campo do opinvel, e procurar de preferncia estarunidos naquilo que essencial para a f e a vida crist, segundo a antiga mxima: Indubiis libertas, in necessariis unitas, in omnibus caritas(liberdade naquilo que duvidoso,unidade no que necessrio e caridade em todas as coisas).

    segundo este mesmo critrio, que a Igreja deve actuar tambm no que se refere suadimenso ecumnica. De facto, para ser inteiramente reconciliada, a Igreja sabe que deveprosseguir na busca da unidade entre aqueles que se prezam de chamar-se cristos, masse encontram separados entre si, mesmo como Igrejas ou Comunhes, e da Igreja deRoma. Esta procura uma unidade que, para ser fruto e expresso de verdadeirareconciliao, no quer seja fundamentada nem na dissimulao dos aspectos quedividem, nem em compromissos to fceis quanto superficiais e frgeis. A unidade deve

    ser o resultado de uma verdadeira converso de todos, do perdo recproco, do dilogoteolgico e das relaes fraternais, da orao e da plena docilidade aco do EspritoSanto, que tambmEsprito de reconciliao.

    Por fim, a Igreja, para poder dizer-se plenamente reconciliada, sente o dever de se aplicarcada vez mais em levar o Evangelho a todos os povos, promovendo o dilogo da

    salvao (39)com aqueles vastos sectores da humanidade que, no mundocontemporneo, no compartilham a sua f e que, devido a um crescente secularismo, atmesmo se mantm distantes dela e lhe opem uma indiferena fria, quando no ahostilizam e perseguem. A Igreja sente o dever de repetir a todos com So Paulo:

    Reconciliai-vos com Deus. (40)

    Em qualquer caso, a Igreja promove uma reconciliao na verdade, pois sabe bem queno so possveis nem a reconciliao nem a unidade, fora ou contra a verdade.

    CAPTULO TERCEIRO

    A INICIATIVA DE DEUSE O MINISTRIO DA IGREJA

    10. Comunidade reconciliada e reconciliadora, a Igreja no pode esquecer que na origemdo seu dom e da sua misso de reconciliao se encontra a iniciativa, cheia de amor

    compassivo e de misericrdia, daquele Deus que amor (41) e que por amor criou oshomens: (42) criou-os, com o fim de viverem em amizade com Ele e em comunho entre si.

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    A reconciliao vem de Deus

    Deus fiel ao seu desgnio eterno mesmo quando o homem, induzido pelo Maligno (43) earrastado pelo seu orgulho, abusa da liberdade que lhe foi dada para amar e procurargenerosamente o bem, recusando a obedincia ao seu Senhor e Pai; mesmo quando o

    homem, em vez de responder com amor ao amor de Deus, se ope a Ele como a um seurival, iludindo-se e presumindo das suas foras, com a consequente ruptura das relaescom Aquele que o criou. No obstante esta prevaricao do homem, Deus permanece fielno amor. A narrao do jardim do den leva-nos, certamente, a meditar sobre asconsequncias funestas da rejeio do Pai, que se traduz na desordem interna do homeme na ruptura da harmonia entre o homem e a mulher e entre irmo e irmo. (44) Tambm significativa a parbola evanglica dos dois filhos que se afastam do pai, de maneiradiversa, cavando um abismo entre si. A recusa do amor de Deus e dos seus dons de amorest sempre na raiz das divises da humanidade.

    Mas ns sabemos que Deus, rico em misericrdia (45) tal como o pai da parbola, no

    fecha o corao a nenhum dos seus filhos. Espera-os, procura-os, vai alcan-losprecisamente no ponto em que a recusa da comunho os aprisiona no isolamento e nadiviso e chama-os a reunirem-se volta da sua mesa, na alegria da festa do perdo e dareconciliao.

    Esta iniciativa de Deus concretiza-se e manifesta-se no acto redentor de Cristo, que seirradia no mundo mediante o ministrio da Igreja.

    De acordo com a nossa f, de facto, o Verbo de Deus fez-se carne e veio habitar a terra

    dos homens, entrou na histria do mundo, assumindo-a e recapitulando-a em si. (46) Ele

    revelou-nos que Deus amor e deu-nos o mandamento novo (47) do amor,

    comunicando-nos, ao mesmo tempo, a certeza de que o caminho do amor est aberto atodos os homens, de tal modo que no vo o esforo para instaurar a fraternidade

    universal. (48) Vencendo, com a sua morte na Cruz, o mal e a fora do pecado, pela suaobedincia cheia de amor trouxe a salvao a todos e tornou-se para todosreconciliao. N'Ele, Deus reconciliou o homem consigo.

    A Igreja, continuando o anncio de reconciliao que Cristo apregoou nas aldeias da

    Galileia e de toda a Palestina, (49) no cessa de convidar a humanidade inteira aconverter-se e a acreditar na Boa Nova; ela fala em nome de Cristo, fazendo seu o apelodo Apstolo Paulo, que j recordmos: Ns somos ... embaixadores ao servio de Cristo,como se Deus exortasse por nosso intermdio. Suplicamo-vos, pois, em nome de Cristo:

    Reconciliai-vos com Deus. (50)

    Quem aceita este apelo entra na economia da reconciliao e faz a experincia da verdadecontida naquele outro anncio de So Paulo, segundo o qual Cristo a nossa paz, eleque fez de dois povos um s, destruindo o muro de separao, isto , de inimizade queconstitua a barreira (...) estabelecendo a paz para reconciliar uns e outros com

    Deus. (51) Embora este texto diga directamente respeito superao da diviso religiosaentre Israel, como povo eleito do Antigo Testamento, e os outros povos, todos chamados afazer parte da Nova Aliana, ele contm, todavia, a afirmao da nova universalidadeespiritual, querida por Deus e por Ele realizada, mediante o sacrifcio do seu Filho, o Verbofeito homem, sem limites nem excluses de qualquer gnero, para todos aqueles que se

    convertem e acreditam em Cristo. Todos, portanto, somos chamados a usufruir dos frutos

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    desta reconciliao querida por Deus: todos e cada um dos homens, todos e cada um dospovos.

    A Igreja, grande sacramento de reconciliao

    11. A Igreja tem a misso de anunciar esta reconciliao e de ser o seu sacramento no

    mundo. A Igreja sacramento, isto , sinal e instrumento de reconciliao, por diversosttulos, de valor diferente, mas todos convergentes para a obteno daquilo que a iniciativadivina de misericrdia quer conceder aos homens.

    -o, acima de tudo, pela sua prpria existncia de comunidade reconciliada, quetestemunha e representa no mundo a obra de Cristo.

    -o, depois, pelo seu servio de guardi e intrprete da Sagrada Escritura, que Boa Novade reconciliao, na medida em que faz conhecer de gerao em gerao o desgnio deamor de Deus e indica a cada um as vias da reconciliao universal em Cristo.

    -o, por fim, pelos sete Sacramentos que, de um modo peculiar a cada um deles,

    perfazem a Igreja.(52)

    Efectivamente, uma vez que comemoram e renovam o mistrioda Pscoa de Cristo, todos os Sacramentos so fonte de vida para a Igreja e, nas mosdela, instrumento de converso a Deus e de reconciliao dos homens.

    Outros caminhos de reconciliao

    12. A misso reconciliadora prpria de toda a Igreja, mesmo e sobretudo daquela j foiadmitida plena participao da glria divina, com a Virgem Maria e com os Anjos e osSantos, os quais contemplam e adoram o Deus trs vezes santo. Igreja do Cu, Igreja daTerra e Igreja do Purgatrio esto misteriosamente unidas nesta cooperao com Cristopara reconciliar o mundo com Deus.

    A primeira via desta aco salvadora a orao. Sem dvida a Virgem Santssima, Me de

    Cristo e da Igreja, (53) e os Santos, que j chegaram ao termo da caminhada terrena e posse da glria de Deus, sustentam, com a sua intercesso, os seus irmos peregrinos nomundo, no empenho de converso, de f, de recuperao aps cada queda, de actividadepara fazer crescer a comunho e a paz na Igreja e no mundo. no mistrio da Comunhodos Santos, que a reconciliao universal actuada na sua forma mais profunda e maisfrutuosa para a salvao de todos.

    H, depois, uma outra via: a da pregao. Discpula do nico Mestre Jesus Cristo, a Igreja,por sua vez como Me e Mestra, no se cansa de propor aos homens a reconciliao eno hesita em denunciar a maldade do pecado, em proclamar a necessidade daconverso, em convidar e em pedir aos homens que se deixem reconciliar. Na realidade,

    essa a sua misso proftica no mundo de hoje, como no de ontem: a mesma missodo seu Mestre e Cabea, Jesus. Como ele, a Igreja h-de realizar sempre tal misso comsentimentos de amor misericordioso e levar a todos as palavras do perdo e o convite esperana, que vm da Cruz.

    H ainda a via, tantas vezes difcil e rdua, da aco pastoral para trazer cada um doshomens sejam eles quem forem e onde quer que se encontrem ao caminho, porvezes longo, do retorno ao Pai na comunho com todos os irmos.

    H, por fim, a via do testemunho, quase sempre silencioso, que nasce duma duplaconscincia da Igreja: a de ser em si indefectivelmente santa, (54) mas ao mesmo tempo

    necessitada de continuar a purificar-se, dia a dia, at que Cristo a faa comparecer nasua presena, gloriosa, sem mancha nem ruga, dado que, por causa dos nossos

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    pecados, por vezes o seu rosto resplandece menos aos olhos de quem a v. (55) Estetestemunho no pode deixar de assumir duas manifestaes fundamentais: ser sinaldaquela caridade universal que Jesus Cristo deixou como herana aos seus seguidores,como prova da pertena ao seu Reino; e traduzir-se em factos sempre novos de conversoe de reconciliao no interior e no exterior da Igreja, com a superao das tenses, com operdo recproco e com o crescimento no esprito de fraternidade e de paz, que tem de serpropagado no mundo inteiro. Percorrendo esta via a Igreja poder actuar validamente parafazer com que nasa aquilo a que o meu Predecessor Paulo VI chamava a civilizao doamor.

    SEGUNDA PARTE

    O AMOR MAIOR DO QUE O PECADO

    O drama do homem

    13. Como escreve o Apstolo So Joo se dissermos que no temos pecado, enganamo-nos a ns prprios e a verdade no est em ns. Se confessarmos os nossos pecados, Ele

    que fiel e justo perdoar-nos- os pecados. (56) Estas palavras inspiradas, escritas nosalvores da Igreja, introduzem melhor do que qualquer outra expresso humana a reflexosobre o pecado, que est intimamente relacionada com o discurso sobre a reconciliao.Elas apreendem o problema do pecado no seu horizonte antropolgico, enquanto parteintegrante da verdade acerca do homem, mas inserem-no imediatamente no horizontedivino, no qual o pecado confrontado com a verdade do amor de Deus, justo, generoso efiel, que se manifesta sobretudo pelo perdo e pela redeno. Por isso, o prprio So Jooescreve pouco depois que se (o nosso corao) de alguma coisa nos acusa, Deus

    maior do que o nosso corao. (57)

    Reconhecer o prpro pecado, ou melhor indo mais ao fundo na considerao daprpria personalidade reconhecer-se pecador, capaz de pecar e de ser induzido aopecado, o princpio indispensvel do retorno a Deus. a experincia exemplar de David,que depois de ter feito o mal aos olhos do Senhor, repreendido pelo profeta

    Natan, (58) exclama: Reconheo a minha culpa, o meu pecado est sempre diante demim. Pequei contra Vs, s contra Vs; pratiquei aquilo que mal aos vossos

    olhos. (59) De resto, Jesus pe na boca e no corao do filho prdigo aquelas palavras

    significativas: Pai, pequei contra o Cu e contra ti. (60)

    Na realidade, reconciliar-se com Deus supe e inclui o apartar-se com lucidez edeterminao do pecado, no qual se caiu. Supe e inclui, portanto, o fazer penitnciano

    sentido mais pleno do termo: arrepender-se, manifestar o arrependimento, assumir aatitude concreta do arrependido, que a de quem se coloca no caminho do regresso aoPai. Isto uma lei geral, que cada um deve seguir na situao particular em que seencontra. A exposio sobre o pecado e a converso, de facto, no pode ser desenvolvidasomente em termos abstractos.

    Na condio concreta do homem pecador, em que no pode haver converso semreconhecimento do prprio pecado, o ministrio de reconciliao da Igreja intervm, emqualquer hiptese, com uma finalidade claramente penitencial, isto , para levar o homemao conhecimento de si, segundo a expresso de Santa Catarina de Sena, (61) aodesapego do mal, ao restabelecimento da amizade com Deus, reordenao interior e

    nova converso eclesial. Acrescente-se que, para alm do mbito da Igreja e dos fiis, a

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    mensagem e o ministrio da penitncia so dirigidos a todos os homens, uma vez que

    todos tm necessidade de converso e de reconciliao. (62)

    Para exercitar adequadamente tal ministrio penitencial, ser tambm necessrio avaliar,

    com os olhos iluminados (63) pela f, as consequncias do pecado, que so motivo de

    diviso e de ruptura, no s no interior de cada homem, mas tambm nos vrios crculosem que ele vive: familiar, ambiencial, profissional e social, como tantas vezes se podeverificar pela experincia, em confirmao da pgina bblica referente cidade de Babel e

    sua torre. (64) Tendo a inteno de construir aquilo que devia ser, a um tempo, smbolo efoco de unidade, aqueles homens encontraram-se mais dispersos do que antes,confundidos na linguagem, divididos entre si e incapazes de consenso e de convergncia.

    Porque falhou o ambicioso projecto? Porque se afadigaram em vo os

    construtores? (65) Porque os homens tinham colocado como sinal e garantia da desejadaunidade unicamente uma obra das suas mos, esquecidos da aco do Senhor.Calcularam apenas com a dimenso horizontal do trabalho e da vida social, descurando a

    dimenso vertical, pela qual se teriam encontrado radicados em Deus, seu Criador eSenhor, e voltados na direco dele como fim ltimo do seu caminho.

    Ora, pode dizer-se que o drama do homem de hoje, como o do homem de todos ostempos, consiste precisamente no seu carcter bablico.

    CAPTULO PRIMEIRO

    O MISTRIO DO PECADO

    14. Se lermos a pgina bblica da cidade e da torre de Babel luz da novidade evanglicae a confrontarmos com a outra pgina da queda dos primeiros pais, podemos tirar daelementos preciosos para uma tomada de conscincia do mistrio do pecado. Esta

    expresso, na qual se repercute o que So Paulo escreve acerca do mistrio dainiquidade(66) tem em vista fazer-nos perceber o que se esconde de obscuro e deinexplicvel no pecado. Este, sem dvida, obra da liberdade do homem; mas por dentroda realidade desta experincia humana agem factores, pelos quais ela se situa para almdo humano, na zona limite onde a conscincia, a vontade e a sensibilidade do homemesto em contacto com foras obscuras que, segundo So Paulo, agem no mundo at ao

    ponto de quase o senhorearem. (67)

    A desobedincia a Deus

    Da narrao bblica relativa construo da torre de Babel emerge um primeiro elemento,

    que nos ajuda a compreender o pecado: os homens pretenderam edificar uma cidade,reunir-se numa estrutura social, ser fortes e poderosos sem Deus, se bem que, talvez,

    no contra Deus. (68) Neste sentido, a narrao do primeiro pecado no den e a narraode Babel, no obstante as diferenas notveis, de contedo e de forma, tm um ponto deconvergncia: em ambas nos encontramos diante de uma excluso de Deus, pelaoposio frontal a um mandamento seu, por uma atitude de rivalidade em relao a Ele,

    pela ilusria pretenso de ser como Ele. (69) Na narrao de Babel a excluso deDeusno aparece tanto num tom de contraste com Deus, mas como esquecimento eindiferena em relao a ele, como se e o mesmo Deus no merecesse nenhum interesseno mbito dos desgnios empreendedores e associativos do homem. Mas em ambos os

    casos a relao com Deus cortada com violncia. No caso do den aparece com toda asua gravidade e dramaticidade aquilo que constitui a essncia mais ntima e mais obscura

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    do pecado: a desobedincia a Deus, sua lei, norma moral que ele deu ao homem,gravando-lha no corao e confirmando-a e aperfeioando-a com a revelao.

    Excluso de Deus, ruptura com Deus, desobedincia a Deus: isto o que tem sido, aolongo de toda a histria humana, e continua a ser, sob formas diversas, o pecado, quepode chegar at negaode Deus e da sua existncia: o fenmeno chamado atesmo.

    Desobedinciado homem, que com um acto da sua liberdade no reconhece osenhorio de Deus sobre a sua vida, pelo menos naquele momento determinado em queviola a sua lei.

    A diviso entre os irmos

    15. Nas narraes bblicas acima recordadas a ruptura com Deus desembocadramaticamente na diviso entre os irmos.

    Na descrio do primeiro pecado, a ruptura com Jav espedaou, ao mesmo tempo, ofio da amizade que unia a famlia humana; tanto assim que as pginas do Gnesisque seseguem nos mostram o homem e a mulher, como que a apontarem com o dedo acusadorum contra o outro; (70)depois o irmo que, hostil ao irmo, acaba por tirar-lhe a vida. (71)

    Segundo a narrao dos factos de Babel, a consequncia do pecado a desagregao dafamlia humana, que j comeara com o primeiro pecado e agora chega ao extremo na suaforma social.

    Quem quiser indagar sobre o mistrio do pecado no pode deixar de considerar estaconcatenao de causa e efeito. Como ruptura com Deus, o pecado o acto dedesobedincia de uma criatura que, pelo menos implicitamente, enjeita Aquele do qualproveio e que a mantm em vida; , portanto, um acto suicida.

    E dado que com o pecado o homem se recusa a submeter-se a Deus, tambm se

    transtorna o seu equilbrio interior; e, precisamente no seu ntimo, irrompem contradies econflitos. Assim dilacerado, o homem produz, quase inevitavelmente, uma lacerao notecido das suas relaes com os outros homens e com o mundo criado. uma lei e umfacto objectivo, que tm confirmao em muitos momentos da psicologia humana e da vidaespiritual, como alis na realidade da vida social, onde fcil observar as repercusses eos sinais da desordem interior.

    O mistrio do pecado formado por esta dupla ferida, que o pecador abre no seu prprioseio e na relao com o prximo. Por isso, pode falar-se de pecado pessoale social: todoo pecado sob um aspecto pessoal, e todo o pecado sob um outro aspecto social,enquanto e porque tem tambm consequncias sociais.

    Pecado pessoal e pecado social16. O pecado, no sentido prprio e verdadeiro, sempre um acto da pessoa, porque umacto de um homem, individualmente considerado, e no propriamente de um grupo ou deuma comunidade. Este homem pode ser condicionado, pressionado, impelido pornumerosos e ponderosos factores externos, como tambm pode estar sujeito a tendncias,taras e hbitos relacionados com a sua condio pessoal. Em no poucos casos, taisfactores externos e internos podem atenuar, em maior ou menor grau, a sua liberdade e,consequentemente, a sua responsabilidade e culpabilidade. No entanto, uma verdade def, tambm confirmada pela nossa experincia e pela nossa razo, que a pessoa humana livre. E no se pode ignorar esta verdade, para descarregar em realidades externas as

    estruturas, os sistemas, os outros - o pecado de cada um. Alm do mais, isso seriaobliterar a dignidade e a liberdade de pessoa, que se revelam se bem que negativa e

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    desastrosamente tambm nessa responsabilidade do pecado cometido. Por isso, emtodos e em cada um dos homens, no h nada to pessoal e intransfervel como o mritoda virtude ou a responsabilidade da culpa.

    Como acto da pessoa, o pecado tem as suas primeiras e mais importantes consequnciasno prprio pecador; ou seja, na relao dele com Deus, que o prprio fundamento davida humana; e tambm no seu esprito, enfraquecendo-lhe a vontade e obscurecendo-lhea inteligncia.

    Chegados a este ponto, devemos perguntar-nos: a que realidade se referiam os que, napreparao do Snodo e no decorrer dos trabalhos sinodais, mencionaram no poucasvezes o pecado social?A realidade que est subjacente a tal expresso e conceito faz comestes tenham, na verdade, diversos significados.

    Falar de pecado socialquer dizer, primeiro que tudo, reconhecer que, em virtude de umasolidariedade humana to misteriosa e imperceptvel quanto real e concreta, o pecado decada um se repercute, de algum modo, sobre os outros. Est nisto uma outra facetadaquela solidariedade que, a nvel religioso, se desenvolve no profundo e magnficomistrio da Comunho dos Santos, graas qual se pode dizer que cada alma que seeleva, eleva o mundo. (72) A esta lei da elevaocorresponde, infelizmente, a lei dadescida, de tal modo que se pode falar de uma comunho no pecado, em razo da qualuma alma que se rebaixa pelo pecado arrasta consigo a Igreja, e, de certa maneira, omundo inteiro. Por outras palavras no h nenhum pecado, mesmo o mais ntimo esecreto, o mais estritamente individual, que diga respeito exclusivamente quele que ocomete. Todo o pecado se repercute, com maior ou menor veemncia, com maior oumenor dano, em toda a estrutura eclesial e em toda a famlia humana. Segundo estaprimeira acepo, a cada pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o carcter depecado social.

    H certos pecados, no entanto, que constituem, pelo seu prprio objecto, uma agressodirecta ao prximo e mais exactamente, com base na linguagem evanglica aoirmo. Estes so uma ofensa a Deus, porque ofendem o prximo. A tais pecados costumadar-se a qualificao de sociais; e esta a segunda acepo do termo. Neste sentido, socialo pecado contra o amor do prximo, que tanto mais grave na Lei de Cristo,

    porquanto est em jogo o segundo mandamento, que semelhante ao primeiro. (73) igualmente socialtodo o pecado cometido contra a justia, quer nas relaes de pessoa apessoa, quer nas da pessoa com a comunidade, quer, ainda, nas da comunidade com apessoa. socialtodo o pecado contra os direitos da pessoa humana, a comear pelodireito vida, incluindo a do nascituro, ou contra a integridade fsica de algum; todo o

    pecado contra a liberdade de outrem, especialmente contra a suprema liberdade de crerem Deus e de o adorar; todo o pecado contra a dignidade e a honra do prximo. socialtodo o pecado contra o bem comum e contra as suas exigncias, em toda a amplaesfera dos direitos e dos deveres dos cidados. Pode ser socialtanto o pecado decomisso como o de omisso: da parte dos dirigentes polticos, econmicos e sindicais,por exemplo, que, embora podendo, no se empenhem com sabedoria no melhoramentoou na transformao da sociedade, segundo as exigncias e as possibilidades domomento histrico; como tambm da parte dos trabalhadores, que faltem aos seus deveresde presena e de colaborao, para que as empresas possam continuar a proporcionar obem-estar a eles prprios, as suas famlias e inteira sociedade.

    A terceira acepo de pecado socialdiz respeito as relaes entre as vrias comunidadeshumanas. Estas relaes nem sempre esto em sintonia com a desgnio de Deus, que

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    17. Mas h no mistrio do pecado uma outra dimenso, sobre a qual a inteligncia dohomem, nunca deixou de meditar: a da sua gravidade. um problema inevitvel, ao qual aconscincia crist nunca se esquivou de dar uma resposta: porqu e em que medidaopecado grave na ofensa que faz a Deus e na sua repercusso sobre o homem? A Igrejatem uma doutrina prpria a propsito disto e reafirma-a nos seus elementos essenciais,

    sabendo embora que nem sempre fcil, no concreto das situaes, fazer delimitaesntidas de fronteiras.

    J no Antigo Testamento e para numerosos pecados os cometidos com

    deliberao, (76) as vrias formas de impureza, (76) de idolatria, (77) de culto dos falsos

    deuses (78) se declarava que o ru devia ser eliminado do seu povo, o que podia

    significar mesmo ser condenado morte. (79) A estes contrapunham-se outros pecados,

    sobretudo os cometidos por ignorncia, que eram perdoados mediante um sacrifcio. (80)

    Com referncia tambm a esses textos, a Igreja, j h sculos, fala constantemente empecadomortale pecado venial. Mas esta distino e estes termos recebem luz sobretudo

    do Novo Testamento, no qual se encontram muitos textos que enumeram e reprovam, comexpresses enrgicas, os pecados particularmente merecedores de condenao, (81) alm

    e na continuidade da confirmao dos do Declogo feita pelo prprio Jesus. (82) Quereriareferir-me aqui, especialmente, a duas pginas significativas e impressionantes.

    Numa passagem da sua primeira Carta, So Joo fala de um pecado que leva morte(prs thnaton) em contraposio a outro pecado que no leva morte(m prs

    thnaton). (83) No conceito de morte, aqui, como bvio, subentende-se espiritual: trata-seda perda da verdadeira vida ou vida eterna, que, para So Joo, o conhecimento do

    Pai e do Filho (84) e a comunho e a intimidade com eles. O pecado que leva

    morteparece ser, nesta passagem, a negao do Filho,(85) ou o culto de falsasdivindades. (86) Seja como for, com essa distino de conceitos, So Joo parece quereracentuar a incomensurvel gravidade daquilo que a essncia do pecado, a recusa deDeus, actuada sobretudo na apostasiae na idolatria; ou seja, no repdio da f na verdaderevelada e na equiparao a Deus de certas realidades criadas, erigindo-as em dolos oufalsos deuses. (87)Mas o Apstolo, nessa mesma pgina, quer tambm pr em evidncia acerteza que provm para o cristo do facto de ser nascido de Deus pela vinda do Filho:h nele uma fora que o preserva da queda no pecado; Deus guarda-o e o Maligno no otoca. No caso de pecar por fraqueza ou ignorncia, subsiste nele a esperana daremisso, tambm pelo apoio que lhe advm da orao feita em conjunto pelos irmos.

    Noutra pgina do Novo Testamento, no Evangelho de So Mateus, (88) o prprio Jesus faladuma blasfmia contra o Esprito Santo, que irremissvel, porque, nas suasmanifestaes, ela aparece como uma obstinada recusa de converso ao amor do Pai dasmisericrdias.

    Trata-se, claro, de expresses extremas e radicais: rejeio de Deus, rejeio da sua

    graa e, portanto, oposio ao prprio princpio da salvao, (89) pela qual o homemparece fechar voluntariamente a si mesmo o caminho da remisso. H que ter esperana,porm, que bem poucos queiram obstinar-se at ao fim nesta atitude de rebelio ou at dedesafio a Deus, o qual, alis, no seu amor misericordioso maior do que o nosso corao,

    como nos ensina ainda So Joo. (90)Deus pode, de facto, vencer todas as nossasresistncias psicolgicas e espirituais, de tal modo que como escreve Santo Toms de

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    Aquino no h que desesperar da salvao de ningum nesta vida, consideradas a

    omnipotncia e a misericrdia de Deus. (91)

    Mas, diante do problema do embate de uma vontade rebelde com Deus infinitamente justo,no se pode deixar de nutrir sentimentos de salutar temor e tremor, como sugere So

    Paulo; (92)e o aviso de Jesus sobre o pecado que no remissvel confirma a existnciade culpas que podem trazer para o pecador, como pena, a morte eterna.

    luz destes e de outros textos da Sagrada Escritura, os doutores e telogos, os mestresespirituais e os pastores de almas distinguiram os pecados em mortaise veniais. SantoAgostinho, entre outros, fala de letaliaou mortifera crimina, opondo-os

    a venialia, leviaou quotidiana. (93) O significado que ele atribui a estes qualificativosinfluir posteriormente no Magistrio da Igreja. Depois dele seria Santo Toms de Aquino aformular, nos termos mais claros que foi possvel, a doutrina que se tornou constante naIgreja.

    Na definio e distino dos pecados mortaise veniais, no podia estar ausente paraSanto Toms e para a Teologia do pecado que nele se foi inspirar, a referncia bblica e,portanto, o conceito da morte espiritual. Segundo o Doutor Anglico, para viverespiritualmente, o homem deve permanecer em comunho com o princpio supremo davida, que Deus, enquanto fim ltimo de todo o seu ser e do seu agir. Ora o pecado umadesordem perpetrada pelo homem contra este princpio vital. E quando, por meio dopecado, a alma provoca uma desordem que vai at separao do fim ltimo Deus ao qual se encontra ligada pela caridade, ento h pecado mortal; de outro modo, todas asvezes que a desordem fica aqum da separao de Deus, ento o pecado

    venial. (94) Por esta razo, o pecado venial no priva da graa santificante, da amizadecom Deus, da caridade, nem, por conseguinte, da bem-aventurana eterna; ao passo que

    tal privao exactamente consequncia do pecado mortal.Considerando o pecado, ademais, sob o aspecto da penaque implica, Santo Toms comoutros doutores, chama mortalao pecado que, se no for remido, faz contrair uma penaeterna; venial, ao pecado que merece uma simples pena temporal (quer dizer, parcial eexpivel na terra ou no Purgatrio).

    Se se atender, depois, matria do pecado, as ideias de morte, de ruptura radical comDeus, sumo bem, de desvio do caminho que leva a Deus ou de interrupo da caminhadaem direco a ele (tudo modos de definir o pecado mortal) conjugam-se com a ideia dagravidade do contedo objectivo; por isso, o pecado graveidentifica-se praticamente, nadoutrina e na aco pastoral da Igreja, com o pecado mortal.

    Atingimos aqui o ncleo do ensino tradicional da Igreja, recordado muitas vezes e comvigor no decorrer do recente Snodo. Este, de facto, no s reafirmou tudo aquilo que foiproclamado no Conclio de Trento sobre a existncia e a natureza dos

    pecados mortaise veniais, (95) mas quis ainda lembrar que pecado mortalaquele quetem por objecto uma matria grave e que, conjuntamente, cometido com plenaadvertncia e consentimento deliberado. E impe-se acrescentar como se fez tambmno mesmo Snodo que alguns pecados, quanto sua matria,sointrinsecamentegraves e mortais. Quer dizer, h determinados actos que, por si mesmos eem si mesmos, independentemente das circunstncias, so sempre gravemente ilcitos,por motivo do seu objecto. Esses actos, se forem praticados com suficiente advertncia e

    liberdade, so sempre culpa grave. (96)

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    Esta doutrina, fundamentada no Declogo e na pregao do Antigo Testamento e retomadanokrigmados Apstolos, e que faz parte do mais antigo ensino que a Igreja tem vindo arepetir at hoje, tem uma comprovao cabal na experincia humana de todos os tempos.O homem sabe bem, por experincia, que na caminhada da f e da justia, que o leva aoconhecimento e ao amor de Deus nesta vida e perfeita unio com ele na eternidade,

    pode parar ou distrair-se, sem abandonar, no entanto, o rumo de Deus: neste caso hefectivamente pecado venial. Este, porm, no dever ser atenuado, como se,automaticamente, se tratasse de algo que pudesse ser transcurado ou de um pecado depouca monta.

    Sucede tambm que o homem igualmente sabe, por dolorosa experincia, que com umacto consciente e livre da sua vontade pode inverter a marcha, caminhar no sentido oposto vontade de Deus e, desse modo, afastar-se dele (aversio a Deo), recusando a comunhode amor com ele, afastando-se do princpio de vida que ele , e escolhendo, por issomesmo, a morte.

    Com toda a tradio da Igreja, chamamos pecado mortala este acto pelo qual um homem,

    com liberdade e advertncia, rejeita Deus, a sua lei, a aliana de amor que Deus lheprope, preferindo voltar-se para si mesmo, para qualquer realidade criada e finita, paraalgo contrrio ao querer divino (conversio ad creaturam). Isto pode acontecer de mododirecto e formal, como nos pecados de idolatria, apostasia e atesmo; ou de modoequivalente, como em todas as desobedincias aos mandamentos de Deus em matriagrave. O homem sente que esta desobedincia a Deus corta a ligao com o seu princpiovital: um pecado mortal, ou seja, um acto que ofende gravemente a Deus e acaba por sevoltar contra o prprio homem, com uma fora obscura e potente de destruio.

    Durante a Assembleia sinodal foi proposta por alguns Padres uma distino tripartida entreos pecados, que haveriam de passar a ser classificados com veniais, gravese mortais. A

    tripartio poderia pr em realce o facto de que entre os pecados graves existe umagradao. Mas permanece sempre verdadeiro que a distino essencial e decisiva a queexiste entre pecados que destroem a caridade e pecados que no matam a vidasobrenatural: entre a vida e a morte no h lugar para um meio termo.

    De igual modo, h-de evitar-se reduzir o pecado mortal a um acto de opo fundamentalcontra Deus como hoje em dia se costuma dizer entendendo com isso um desprezoexplcito e formal de Deus e do prximo. D-se, efectivamente, o pecado mortal tambmquando o homem, sabendo e querendo, por qualquer motivo escolhe alguma coisagravemente desordenada. Com efeito, numa escolha assim j est includo um desprezodo preceito divino, uma rejeio do amor de Deus para com a humanidade e para com todaa criao: o homem afasta-se a si prprio de Deus e perde a caridade. A orientaofundamental pode, pois, ser radicalmente modificada por actos particulares. Podem, semdvida, verificar-se situaes muito complexas e obscuras sob o ponto de vista psicolgico,que influem na imputabilidade subjectiva do pecador. Mas da considerao da esferapsicolgica no se pode passar para a constituio de uma categoria teolgica, como precisamente a da opo fundamental, entendendo-a de tal modo que, no planoobjectivo, mudasse ou pusesse em dvida a concepo tradicional do pecado mortal.

    Se bem que sejam de apreciar todas as tentativas sinceras e prudentes de esclarecer omistrio psicolgico e teolgico do pecado, a Igreja tem no entanto o dever de recordar atodos os estudiosos desta matria: a necessidade, por um lado, de serem fiis Palavrade Deus, que nos elucida tambm sobre o pecado; e, por outro, o risco que se corre de

    contribuir para atenuar ainda mais, no mundo contemporneo, o sentido do pecado.

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    Perda do sentido do pecado

    18. A partir do Evangelho lido na comunho eclesial, a conscincia crist adquiriu, nodecurso das geraes, uma fina sensibilidade e uma perspicaz percepo dos fermentosde morteque esto contidos no pecado; sensibilidade e capacidade de percepo, tambmpara individuar tais fermentos nas mil formas assumidas pelo pecado, nos mil carizes comque ele se apresenta. a isto que se costuma chamar o sentido do pecado.

    Este sentido tem a sua raiz na conscincia moral do homem e como que o seutermmetro. Anda ligado ao sentido de Deus, uma vez que deriva da conscincia darelao que o homem tem com o mesmo Deus, como seu Criador, Senhor e Pai. E assimcomo no se pode apagar completamente o sentido de Deus nem extinguir a conscincia,tambm no se dissipa nunca inteiramente o sentido do pecado.

    Entretanto, no raro no decurso da histria, por perodos mais ou menos longos e sob oinfluxo de mltiplos factores, acontece ficar gravemente obscurecida a conscincia moralem muitos homens. Temos ns uma ideia justa da conscincia? - perguntava eu h doisanos num colquio com os fiis - No vive o homem contemporneo sob a ameaa de umeclipse da conscincia, de uma deformao da conscincia e de um entorpecimento ouduma "anestesia" das conscincias?. (97)Demasiados sinais indicam que no nosso tempoexiste tal eclipse, tanto mais inquietante quanto esta conscincia, definida pelo Conclio

    como o ncleo mais secreto e o sacrrio do homem, (98) anda estreitamente ligada liberdadedo homem (...). Por isso, a conscincia, com relevncia principal, est na base

    da dignidade interior do homem e ao mesmo tempo, da sua relao com Deus. (99) inevitvel, portanto, que nesta situao fique obnubilado tambm o sentido do pecado, oqual est intimamente ligado conscincia moral, procura da verdade e vontade defazer um uso responsvel da liberdade. Conjuntamente com a conscincia, fica tambm

    obscurecido o sentido de Deus, e ento, perdido este decisivo ponto de referncia interior,desaparece o sentido do pecado. Foi este o motivo por que o meu Predecessor Pio XII,com palavras que se tornaram quase proverbiais, pde declarar um dia que o pecado do

    sculo a perda do sentido do pecado. (100)

    Porqu este fenmeno no nosso tempo? Uma vista de olhos de algumas componentes dacultura contempornea pode ajudar-nos a compreender a atenuao progressiva dosentido do pecado, exactamente por causa da crise da conscincia e do sentido de Deus,acima realada.

    O secularismo, que, pela sua prpria natureza e definio, um movimento de ideias ede costumes, o qual propugna um humanismo que abstrai de Deus totalmente,

    concentrado s no culto do empreender e do produzir e arrastado pela embriaguez doconsumo e do prazer, sem preocupaes com o perigo de perder a prpria alma, nopode deixar de minar o sentido do pecado. Reduzir-se- este ltimo, quando muito, quiloque ofende o homem. Mas precisamente aqui que se impe a amarga experincia a quej aludia na minha primeira Encclica; ou seja, que o homem pode construir um mundo sem

    Deus, mas esse mundo acabar por voltar-se contra o mesmo homem. (101) Na realidade,Deus a origem e o fim supremo do homem e este leva consigo um grmendivino. (102) Por isso, a realidade de Deus, que desvenda e ilumina o mistrio do homem. intil, pois, esperar que ganhe consistncia um sentido do pecado, no que respeita aohomem e aos valores humanos, quando falta o sentido da ofensa cometida contra Deus,

    isto , o verdadeiro sentido do pecado.

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    Desvanece-se este sentido do pecado na sociedade contempornea tambm pelosequvocos em que se cai ao apreender certos resultados das cincias humanas. Com basenalgumas afirmaes da psicologia, a preocupao de no tachar algum como culpadonem pr freio liberdade leva a nunca reconhecer uma falta. Por indevida extrapolaodos critrios da cincia sociolgica acaba-se como j aludi por descarregar sobre a

    sociedade todas as culpas, de que o indivduo declarado inocente. E uma certaantropologia cultural, por seu lado, fora de aumentar os condicionamentos e influxosambientais e histricos, alis inegveis, que agem sobre o homem, limita-lhe tanto aresponsabilidade que no lhe reconhece j a capacidade de fazer verdadeiros actoshumanos e, por consequncia, a possibilidade de pecar.

    O sentido do pecado decai facilmente, ainda, sob a influncia de uma tica que deriva dumcerto relativismo historicista. Pode tratar-se da tica que relativiza a norma moral, negandoo seu valor absoluto e incondicionado e negando, por consequncia, que possam existiractos intrinsecamente ilcitos, independentemente das circunstncias em que sorealizados pelo sujeito. Trata-se de uma verdadeira reviravolta e derrocada dos valores

    morais; e o problema no tanto de ignorncia da tica crist, mas sobretudo dosentido dos fundamentos e critrios das atitudes morais. (103) O efeito desta reviravoltatica sempre tambm o de mitigar a tal ponto a noo de pecado, que se acaba quasepor afirmar que o pecado existe, mas no se sabe quem o comete.

    Esvai-se, por fim, o sentido do pecado quando como pode acontecer no ensino aosjovens, nas comunicaes de massa e na prpria educao famliar esse sentido dopecado erroneamente identificado com o sentimento morboso da culpa ou com a simplestransgresso das normas e preceitos legais.

    A perda do sentido do pecado, portanto, uma forma ou um fruto da negao de Deus:no s da negao atesta, mas tambm da negao secularista. Se o pecado a

    interrupo da relao filial com Deus para levar a prpria existncia fora da obedincia aele devida, ento pecar no s negar Deus; pecar tambm viver como se ele noexistisse, bani-lo do prprio quotidiano. Um modelo de sociedade mutilado oudesequilibrado num ou noutro sentido, como frequentemente veiculado pelos meios decomunicao, favorece bastante a progressiva perda do sentido do pecado. Em talsituao, o ofuscamento ou a debilitao do sentido do pecado resulta: seja da recusa dequalquer referncia ao transcendente, em nome da aspirao autonomia pessoal; sejada sujeio a modelos ticos impostos pelo consenso e costume generalizado, mesmoquando so condenados pela conscincia individual; seja das dramticas condies scio-econmicas, que oprimem grande parte da humanidade, causando a tendncia para severem erros e culpas apenas no mbito do social; seja, por fim e sobretudo, doobscurecimento da ideia da paternidade de Deus e do seu domnio sobre a vida dohomem.

    At mesmo no campo do pensamento e da vida eclesial, algumas tendncias favoreceminevitavelmente o declnio do sentido do pecado. Alguns, por exemplo, tendem a substituirposies exageradas do passado por outros exageros; assim, da atitude de ver o pecadoem toda a parte, passa-se a no o vislumbrar em lado nenhum; da demasiada acentuaodo temor das penas eternas, pregao dum amor de Deus, que excluiria toda e qualquerpena merecida pelo pecado; da severidade no esforo para corrigir as conscinciaserrneas, a um pretenso respeito pela conscincia, at suprimir o dever de dizer averdade. E por que no acrescentar que a confusocriada na conscincia de muitos fiis

    pelas divergncias de opinies e de ensinamentos na teologia, na pregao, na catequesee na direco espiritual, acerca de questes graves e delicadas da moral crist, acaba por

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    fazer diminuir, quase at sua extino, o verdadeiro sentido do pecado? E no podemdeixar-se em silncio alguns defeitos na prtica da Penitncia sacramental: tal atendncia a ofuscar o significado eclesial do pecado e da converso, reduzindo-os a factosmeramente individuais, ou vice-versa, a anular o valor pessoal do bem e do mal paraconsiderar nestes exclusivamente a dimenso comunitria; tal tambm o perigo, que

    nunca foi totalmente esconjurado, do ritualismo rotineiro, que tira ao Sacramento o seusignificado pleno e a sua eficcia formativa.

    Restabelecer o justo sentido do pecado a primeira forma de combater a grave criseespiritual que impende sobre o homem do nosso tempo. Mas o sentido do pecado s serestabelecer com uma chamada a ateno clara para os inderrogveis princpios de razoe de f, que a doutrina moral da Igreja sempre sustentou.

    lcito esperar que, sobretudo no mundo cristo eclesial, reaflore um salutar sentido dopecado. A isso levaro uma boa catequese, iluminada pela teologia bblica da Aliana, aescuta atenta e o acolhimento confiante do Magistrio da Igreja, que no cessa deproporcionar luz as conscincias, e uma prtica cada vez mais cuidada do Sacramento da

    Penitncia.CAPTULO SEGUNDO

    MYSTERIUM PIETATIS

    19. Para conhecer o pecado, era necessrio fixarmos o olhar na sua natureza, tal como arevelao da economia da Salvao no-la deu a conhecer: ele o mistrio dainiquidade(mysterium iniquitatis). Mas nesta economia o pecado no protagonistanem, menos ainda, vencedor. Contrasta, antes, como antagonista, com um outro princpiooperante, que usando uma bela e sugestiva expresso de So Paulo podemoschamar o mistrioou sacramento da piedade(mysterium, ou sacramentum pietatis). O

    pecado do homem seria vencedor e, por fim, destruidor, e o desgnio salvfico de Deusficaria incompleto ou mesmo vencido, se este mistrio da piedadeno se tivesse inseridono dinamismo da histria para vencer o pecado do homem.

    Encontramos esta expresso numa das Cartas Pastoraisde So Paulo, a primeira aTimteo. Aparece a, repentina, como por uma inspirao impetuosa! O Apstolo, naverdade, consagrara em precedncia longos pargrafos da sua mensagem ao discpulopredilecto, para explicar o significado da organizao da comunidade (litrgica e, ligada aesta, hierrquica); falara depois do papel dos chefes da comunidade, para se referir emseguida ao comportamento do prprio Timteo na Igreja do Deus vivo, coluna esustentculo da verdade. E depois, no final da passagem, evoca quase ex abrupto, mascom intuito profundo, aquilo que d significado a tudo o que escrevera: grande, sem

    dvida, o mistrio da piedade....(104)

    Sem trair minimamente o sentido literal do texto, podemos alargar esta magnfica intuioteolgica do Apstolo a uma viso mais completa do papel que a verdade por eleanunciada tem na economia da Salvao. verdadeiramente grande repitamos com omesmo Apstolo o mistrio da piedade, porque vence o pecado.

    Mas o que , na concepo paulina, esta piedade?

    o prprio Cristo

    20. profundamente significativo que, para apresentar este mistrio da piedade, So

    Paulo transcreva simplesmente, sem estabelecer uma ligao gramatical com o texto

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    precedente, (105) trs linhas de um Hino cristolgico, que segundo a opinio deautorizados estudiosos era usado nas comunidades helnico-crists.

    Com as palavras desse Hino, densas de contedo teolgico e ricas de nobre beleza, essescristos do sculo primeiro professavam a sua f no mistrio de Cristo, pelo qual

    Ele se manifestou na realidade da carne humana e foi pelo Esprito Santoconstitudo como o Justo, que se oferece pelos injustos;

    Ele apereceu aos Anjos, tornado maior que eles, e foi pregado aos povos, comoportador de salvao;

    Ele foi acreditado no mundo, como enviado do Pai, e pelo mesmo Pai assumido no

    cu, como Senhor. (106) O mistrio ou sacramento da piedade, portanto, o prprio mistrio de Cristo, E,

    numa sntese bem densa, ele o mistrio da Encarnao e da Redeno, da plenaPscoa de Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria: mistrio da sua paixo e morte,da sua ressurreio e glorificao. O que So Paulo, ao referir as frases do Hino,

    quis recordar foi que este mistrio o recndito princpio vitalque faz da Igreja acasa de Deus, a coluna e o fundamento da verdade. E na peugada do ensinopaulino, ns podemos afirmar que este mesmo mistrio da infinita piedade de Deuspara connosco capaz de penetrar at as razes escondidas da nossa iniquidade,para suscitar na alma um movimento de converso, para redimi-la, e faz-la de velaem direco reconciliao.

    Referindo-se sem dvida a este mistrio, tambm So Joo, com a sua linguagemcaracterstica, que diversa da de So Paulo, pde escrever que aquele que nasceu de

    Deus, no peca: o Filho de Deus salva-o e o Maligno no o toca. (107) Nesta afirmaojoanina h uma indicao de esperana, fundada sobre as promessas divinas: o cristo

    recebeu a garantia e as foras necessrias para no pecar. No se trata, pois, de umaimpecabilidade adquirida por virtude prpria e, menos ainda, nsita no homem, comopensavam os Gnsticos. um resultado da aco de Deus. Para no pecar, o cristodispe do conhecimento de Deus, recorda So Joo nesta passagem. Mas, pouco antes,j tinha escrito: Todo o que nasceu de Deus no comete pecado, porque habita nele umasemente divina. (108) Se por esta semente de Deus entendermos como propemalguns comentadores Jesus, o Filho de Deus, ento podemos dizer que para no pecar ou para libertar-se do pecado o cristo dispe da presena em si do prprio Cristo edo mistrio de Cristo, que mistrio de piedade.

    O esforo do cristo

    21. Mas h no mistrio da piedadeum outro aspecto: piedade de Deuspara com ocristo h-de corresponder a piedade do cristopara com Deus. Nesta segunda acepo,a piedade (eusbeia) significa exactamente o comportamento do cristo, que piedadepaterna de Deus corresponde com a sua piedade filial.

    Tambm neste sentido podemos afirmar com So Paulo que grande o mistrio dapiedade; e ainda, que esta piedade, qual fora de converso e de reconciliao, combatea iniquidade e o pecado. Neste caso, ainda, os aspectos essenciais do mistrio de Cristoso objecto da piedade, enquanto o cristo acolhe o mistrio, o contempla e a ele vaibuscar a fora espiritual necessria para modelar a sua vida segundo o Evangelho.Tambm aqui se deve dizer que quem nasceu de Deus no comete pecado; mas a

    expresso tem sentido imperativo: sustentado pelo mistrio e pelos mistrios deCristo, como por uma nascente interior de energia espiritual, o cristo avisado para no

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    pecar e, mais ainda, recebe o mandamento de no pecar: h-de comportar-se dignamente

    na casa de Deus, que a Igreja do Deus vivo, (109) sendo como um filho de Deus.

    Para una vida reconciliada

    22. Assim a Palavra da Escritura, ao revelar-nos o mistrio da piedade, abre a inteligncia

    humana para a converso e para a reconciliao, entendidas no como abstraces, mascomo valores cristos concretos a conquistar no dia a dia.

    Insidiados pela perda do sentido do pecado, tentados, algumas vezes, pela iluso bempouco crist de impecabilidade, tambm os homens de hoje precisam de ouvir de novo,como dirigida a cada um deles, pessoalmente, a advertncia de So Joo: Se dissermosque no temos pecado, enganamo-nos a ns mesmos e a verdade no est em

    ns; (110) e mais ainda, que todo o mundo jaz sob o jugo do Maligno. (111) Cada um,pois, convidado pela voz da Verdade divina a ler realisticamente na prpria conscincia e

    a confessar que foi gerado na iniquidade, como dizemos no SalmoMiserere. (112)

    Ameaados pelo medo e pelo desespero, os homens de hoje podem, no entanto, sentir-seconsolados pela promessa divina, que os abre esperana da plena reconciliao.

    O mistrio da piedade, da parte de Deus, a misericrdia de que o Senhor e nosso Pai

    repito-o mais uma vez infinitamente rico. (113) Como disse na Encclica dedicada ao

    tema da misericrdia divina, (114) esta um amor mais poderoso do que o pecado, maisforte do que a morte. Quando nos damos conta de que o amor que Deus nos dispensa nose detm diante do nosso pecado, no retrocede diante das nossas ofensas, mas se tornaainda mais solcito e generoso; quando nos apercebemos de que este amor chegou acausar a paixo e a morte do Verbo feito carne, que aceitou remir-nos pagando com o seuSangue, ento prorrompemos em reconhecimento: Sim, o Senhor rico em

    misericrdia, e dizemos mesmo: O Senhor misericrdia.O mistrio da piedade o caminho aberto pela misericrdia divina vida reconciliada.

    TERCEIRA PARTE

    A PASTORAL DA PENITNCIAE DA RECONCILIAO

    Promoo da penitncia e da reconciliao

    23. Suscitar no corao do homem a converso e a penitncia e proporcionar-lhe o dom dareconciliao a misso conatural da Igreja, como continuadora da obra redentora do seudivino Fundador. Trata-se de uma misso que no ser cumprida s com algumasafirmaes tericas e com a proposta de um ideal tico no acompanhado por energiasoperativas; mas est destinada a expressar-se em funes ministeriais bem precisas, emordem prtica concreta da penitncia e da reconciliao.

    A este ministrio, fundado e iluminado pelos princpios de f acima ilustrados, orientadopara objectivos precisos e apoiado em meios adequados, podemos dar o nome de pastoralda penitncia e da reconciliao. O seu ponto de partida a convico da Igreja, de que ohomem, a quem se destinam todas as formas de pastoral, mas principalmente a pastoral

    da penitncia e da reconciliao, o homem marcado pelo pecado, retratado no exemplosignificativo do rei David. Repreendido pelo profeta Natan, David aceita olhar de frente as

  • 8/7/2019 Livro Reconciliao e Terapia

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    suas prprias torpezas, confessando: Pequei contra o Senhor. (115) E proclama:

    Reconheo os meus pecados, tenho sempre diante de mim as minhas culpas. (116) Mastambm suplica: Purificai-me, Senhor, e ficarei limpo; lavai-me e ficarei mais branco doque a neve; (117) e recebe a resposta da misericrdia divina: O Senhor perdoou o teu

    pecado, no morrers. (118)

    A Igreja encontra-se, pois, diante do homem de todo um mundo humano ferido pelopecado e por ele atingido naquilo que tem de mais ntimo, na profundidade do seu ser;mas, ao mesmo tempo, movido interiormente por um incontvel desejo de libertao dopecado e tambm, especialmente se for cristo, consciente de que o mistrio da piedade,Cristo Senhor, j est a actuar nele e no mundo com a fora da Redeno.

    A funo reconciliadora da Igreja deve desenvolver-se, pois, segundo aquele nexo ntimoque cnjunge estreitamente o perdo e a remisso dos pecados de cada homem com areconciliao plena e fundamental da humanidade, que foi realizada pela Redeno. Estenexo leva-nos a compreender que, sendo o pecado o princpio activo da diviso diviso

    entre o homem e o Criador, diviso no corao e no ser do homem, diviso entre osindivduos e entre os grupos humanos, diviso entre o homem e a natureza criada porDeus s a converso do pecado capaz de operar uma reconciliao profunda eduradoura onde quer que a diviso tenha penetrado.

    No necessrio repetir tudo o que j disse a respeito da importncia deste ministrio da

    reconciliao(119) e da correspondente pastoral que o pe em prtica na conscincia e navida da Igreja. Esta, de facto, falharia num aspecto essencial do seu ser e deixaria porrealizar uma sua funo inabdicvel, se no apregoasse, com clareza e firmeza, a tempo e

    fora de tempo, a palavra da reconciliao (120) e no proporcionasse ao mundo o domda reconciliao. Mas, convm repeti-lo, a importncia do servio eclesial da reconciliaoestende-se para alm das fronteiras visveis da Igreja, ao mundo inteiro.

    Falar de pastoral da penitncia e da reconciliao, portanto, equivale a referir-se aoconjunto das tarefas de que a Igreja est incumbida, a todos os nveis, para a promoo deuma e outra. Mais concretamente, falar desta pastoral significa recordar todas asactividades prticas, mediante as quais a Igreja, em todas e cada uma das suascomponentes Pastores e fiis, a todos os nveis e em todos os campos e com todosos meios sua disposio palavra e aco, ensino e orao procura levar oshomens, individualmente ou em grupo, verdadeira penitncia e introduzi-los assim nocaminho da plena reconciliao.

    Os Padres do Snodo, como representantes dos seus Irmos Bispos, guias do povo quelhes est confiado, debruaram-se sobre esta pastoral nos seus elementos mais prticos econcretos. E para mim motivo de alegria fazer-me eco deles, associando-me as suasinquietudes e esperanas, acolhendo os frutos dos seus esforos de procura eexperincias e encorajando-os nos seus planos