Livro Reportagem - Maria Franca Pires - entre papéis e vozes

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entre papéis e vozes 1 MARIA FRANCA PIRES entre papéis e vozes

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Uma história de uma professora primária que passou sua vida a guardar coisas e fez de sua casa um museu sobre a cidade de Juazeiro, interior da Bahia. Seus papéis guardados e a memória de amigos e conhecidos ajudaram a compor este livro-reportagem-perfil apresentado como trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social / Jornalismo da UNEB. Uma homenagem à memória, à história e a Maria Franca Pires.

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Maria Franca Pires: entre papéis e vozesJuliana Pires Machado

OrientaçãoProfª. Ms. Odomaria Macedo

Projeto gráficoJane Aline Bastos

CapaLeônidas Vidal

Machado, Juliana Pires de Carvalho Rocha.Maria Franca Pires: entre papéis e vozes

Juazeiro/BA/ Juliana Pires de Carvalho Rocha Machado. Juazeiro, BA: 2009.Livro-reportagem

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) Universidade doEstado da Bahia, Curso de Comunicação Social com Habilitaçãoem Jornalismo Multimeios, 2009.Orientadora: Profª. Ms. Odomaria Rosa Bandeira Macedo

1. Biografização 2. Livro-reportagem 3. História 4. Memória.

93 páginas: 14 cm x 21 cm

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J uliana Pires Machado

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Se a realidade é opaca, existem zonas privi legiadas

sinais, indícios que permitem decifrá-la .

Carlo Ginzbu rg

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Prefácio 9

13 Apresentação

15 RASTROS Uma pessoa entre papéis e vozes

30 INDÍCIOS DE UMA PESQUISADORA Uma viagem nos registros da história que andava na cabeça do povo

42 PISTAS DE UMA PROFESSORA Entre memórias de uma história escolar

66 MARIA FRANCA PIRES Valente de Remanso - Lord de Juazeiro

78 Um caso de amor...

Agradecimentos 83 Bibliografia 85 Jornais 86 Revistas 87 Entrevistados 88

Créditos das fotografias 89 Os Cadernos de Maria 90

SUMÁRIO

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Quando minha mãe posoupara este que foi seu único retrato,

mal consentiu em ter as têmporas curvas.Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto

que uma doutrina dura fez contido... .

Seria um retrato tristese não visse em seus olhos um jardim.

Não daqui. Mas jardim .(Fotografia. In: O coração disparado, Adélia Prado)

Vivendo em Juazeiro, uma mulher Maria Franca Pires, que tinha aestranha mania de guardar coisas, criou um arquivo de tudo, a partir doqual temos percebido que se pode contar certa história dessa cidade.Convivi com ela por cerca de duas décadas (1970 - 1988) e, como issoaconteceu de maneira bem próxima, pensava que eu a conhecia.

Hoje, 20 (vinte) anos depois que Maria partiu, outra mulher - JulianaPires de Carvalho Rocha Machado, jovem estudante se fazendo jornalista,minha querida ex-aluna, embora ela ainda quase uma estrangeira no cicloda convivência juazeirense em que eu e Maria nos tornamos pessoas, essamoça me apresenta um retrato de Maria, que buscou nos referidosguardados.

Acompanhei Juliana na busca desse retrato e sei que o mesmo foiobtido através e entre tantas coisas percebidas do mencionado arquivo.Agora, devo confessar: Embora me veja naquele tempo de Maria e, obser-vando-me ali eu me considere, sempre, como amiga dela, parece querealmente eu não a conhecia, diante da pessoa dela, que vejo hoje com oretrato de Juliana.

Esse retrato de Maria Pires é o que se apresenta nesse livro -desenhado em palavras , como diz sua autora. Pelo seu olhar atento, pela

sensibilidade e astúcia do seu olhar, encontra-se aqui a configuração deuma pessoa no mundo do seu tempo como ela o constituiu. Na históriaque se conta com esse retrato o mundo de Maria parece fortemente encar-nado nela e ela naturalizada naquele mundo.

Assim, as histórias de Juazeiro e de Maria são percebidas e contadasde forma tão enlaçadas, que se embaraçam, aparentando, algumas vezes,serem partes de uma só história, como aquela que nos canta Luiz Gonzaga,

PREFÁCIO: CARTA AO AMANHÃ 1

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favor/Juazeiro, velho amigo ..../ Juazeiro, meu destino/ Tá ligadojunto ao teu/ No teu tronco/ tem dois nomes/ Ela mesma que escreveu ...Ai Juazeiro!

O livro resulta de um trabalho de extrema dedicação de Juliana auma pesquisa delicada, que teve início no segundo período de sua históriade estudante do curso de Jornalismo em multimeios, e desenvolveu-se emdois projetos - de iniciação científica e de monitoria de extensão. Com esselivro ela demonstra mais do que uma aptidão sua para o exercício profissionaldo jornalismo, como também uma invejável capacidade de investigação,essa concebida e realizada como um ato paciente e sensível de decifraçãodo universo empírico, de captação de significados e construção de sentidos.

Encontra-se nesse livro uma reportagem esclarecida sobre MariaPires e Juazeiro, que é, ao mesmo tempo e, também, - talvez, por issomesmo - uma reportagem sobre a história da cultura juazeirense entreos idos de 1934 até 1988, confeccionada com rigor e primor. Muitos aspectosdo modo de vida da sociedade evidenciam-se com essa reportagem, assimcomo uma parte representativa da dinâmica social naquele tempo: aeducação, a política, as práticas lúdicas e outras entram em cena, insi-nuando, em certa medida, como se conjugavam entre si e que valoresmorais contornavam esses aspectos.

Ressalta-se no trabalho apresentado a rica imaginação da autora nacomposição das cenas relacionadas na tessitura da narrativa e sua capaci-dade expressiva e criativa, como elementos decisivos da forma e conteúdodo texto construído para a reportagem. Vê-se uma escritura literária muitointeressante, de modo que a biografia de Maria Pires possibilita se sentirtambém a pulsação de uma cidade - do Juazeiro em que ela vivera - e per-ceber-se o ritmo da vida naquele contexto. Com isso, é possível secompreender o lugar que ela teve em meio a tudo aquilo.

Por meio de uma narração que transcorre fluida, do passado para opresente e vice-versa, vai se configurando o retrato de Maria por Juliana,ao contar as histórias a propósito do mesmo. Contudo, não se comprometea noção de temporalidade do que é referido ali, embora nada do que estádito se apresente ordenado numa linearidade cronológica.

A descrição dos fatos e situações ocorre com uma precisão de detalhestão esclarecedora que é como se Juliana tivesse testemunhado tudo aquilo.Tudo que está contado é feito em tons tão fortes e de forma tão dinâmicae viva que a leitura desse livro chega a comover: Em mim, afloraram cer-tas recordações, ao lembrar não só daquelas situações e pessoas referidasna história que Juliana conta, como também de outras histórias, pessoas,

de quem lembramos ao observar isso: Juazeiro, juazeiro/ Me responda,por

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cantando coisas de amor A minha gente sofrida esqueceu-seda dor ao ver a banda passar cantando coisas de amor .....

Sem dúvida, aconteceu mesmo uma viagem de Juliana ao universode Maria Pires.

A leitura desse livro-reportagem que Juliana oferece aos juazeirenses(nascidos ou não na cidade de Juazeiro, como foi o caso de Maria Pires a juazeirense mais juazeirense , como se encontrará contado nesse livro),

vem contribuir e, muito, para o conhecimento histórico de nós mesmos edessa cidade em que vivemos. A propósito disso, e além de tamanhacontribuição, a história do próprio livro nos sugere pensar sobre muitosoutros aspectos em relação à possibilidade e à importância desse tipo deconhecimento. A partir do fato de guardar coisas, marcante da história deMaria Pires, como essa é dada a conhecimento nessa reportagem, pode-se observar o processo de constituição da memória social e avaliar a forçae o papel que essa desempenha na experiência social e no sentido da mes-ma.

Na memória social estão implicados o esquecer e o lembrar que são,naturalmente, duas faculdades humanas que atuam decisivamente emnossa existência, seja no âmbito da vida privada ou no da vida pública eque, a depender de como acontecem ou do objeto em foco no esquecerou no lembrar, significam bem mais do que isso.

No jogo da vida social esquecer e ou lembrar são indicativos de umestado da arte do homem e da sua história como um fazer, pois, prati-camente, essa se opera mais pelo lembrar. Bem diz Carlos Drumond deAndrade no sábio poema:

INTIMAÇÃO

- Você deve calar urgentemente as lembranças bobocas de menino.

- Impossível. Eu conto o meu presente.

Com volúpia voltei a ser menino

(In: Esquecer para lembrar)

Também é pelo lembrar que se constrói o saber histórico. A históriacomo ciência consiste, efetivamente, em um lembrar. Assim, o esquecer setorna um problema para os homens e as sociedades, embora considerado,para muitos, sem maior importância, ainda.

O que se sabe de Juazeiro, município do estado da Bahia, às margensdo rio São Francisco, com mais de um século de história de cidade? Comose conta a história dessa cidade? Quem e o que aparece na história que se

situações e coisas, revivendo-as comigo mesma. Quando me dei conta, eujá cantava: Estava à toa na vida Meu amor me chamou Pra ver a bandapassar

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O que se vê e não se vê, atualmente? Como avaliar as mudanças quese observam na cultura e na participação dos juazeirenses entre os doismomentos históricos relacionados nessa história?

Juazeiro Bahia, 20 de março de 2009.

Odomaria Rosa Bandeira Macedo²

1 - O título desse prefácio é de autoria de Luis Osete Ribeiro Carvalho, a quem o peço emprestado. Porque esse foio título que denominou o texto de suporte de uma exposição de cartazes e outros materiais publicitários queintegram o arquivo de Maria Pires, que realizamos em 2007, na qual foi observado de forma bem evidente o agitocultural da década de 80 nessa cidade. Diante daquilo, Osete achou de conclamar a população juazeirense a pensarsobre o amanhã a partir do ele via no seu presente comparado àquela observação. Naquela exposição o referidotexto compunha-se na forma de uma carta em que figuras e acontecimentos do passado, que apareciam noscartazes e em outras peças de publicidade ganharam animação e conversavam sobre aqueles acontecimentos,deixando-nos uma mensagem sobre a necessidade de cuidar-se da memória, associando isso à diversidade decoisas que aconteciam nas datas ali registradas e à paradeira cultural do presente, sentida, segundo Osete, comoum traça que marcava a atualidade naquele momento.

2 - Professora adjunta da UNEB Departamento de Ciências Humanas Campus III. Mestra em Sociologia .Especialista em Antropologia.

conta de Juazeiro? Como relacionar tantos acontecimentos culturais quesão vistos no passado dessa cidade, segundo a história que se conta aqui.

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Era recém-chegada a Juazeiro. Pouco sabia sobre a cidadee sua história, apenas o que pescava no noticiário local. Eu che-gava em janeiro de 2005 para cursar a faculdade de JornalismoMultimeios na Universidade do Estado da Bahia. Maria FrancaPires já havia partido desde 1988, quando, na longínqua cidadede Irecê, Chapada Norte da Bahia, eu acabara de completar trêsanos de vida.

Meu encontro com Maria, mesmo distante no tempo, acon-teceu no final do ano de 2005, quando me inscrevi para concor-rer a uma vaga de monitoria de extensão no projeto intituladoO arquivo da profª Maria Franca Pires: memória e história cultural empesquisa na região de Juazeiro-BA , da UNEB, onde cursava, à época,o segundo período de Jornalismo.

Dentre uma lista de outros projetos relacionados à área decomunicação, acabei escolhendo este, mais por empatia pelaprofessora coordenadora de tal projeto, do que por qualqueroutro motivo. Sabia que queria uma experiência na área da pes-quisa acadêmica e isso bastava. Mas, confesso: não conhecianem de longe quem era a tal Maria Franca Pires, dona do arquivo,objeto da pesquisa.

Passei por uma seleção. Era preciso escrever um texto dizen-do da importância daquele estudo. Olhei meus concorrentesem volta, debruçados sobre suas folhas de ofício, a descreveremimportâncias e mais importâncias. Voltei-me para o lado e per-guntei à menina mais próxima, que já trabalhava como voluntárianaquele projeto:

- Hei, quem foi essa Maria mesmo!? Simples e objetiva, ela me disse que Maria Franca Pires

tinha sido professora em Juazeiro e, durante sua vida, pesquisoue guardou coisas sobre a história da cidade. Ah, pronto! Estava,então, explicada a importância do trabalho de pesquisa ao qual

APRESENTAÇÃO

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eu concorria a uma vaga de monitora, sem ao menos saberquem era a dona do arquivo, objeto da pesquisa.

Surgiu a oportunidade de realizar o trabalho como volun-tária, o que aceitei de pronto. Na primeira reunião da equipe,dispus-me a trabalhar com um dos cadernos manuscritos porMaria Franca Pires, a fim de registrar, em forma de inventário,o conteúdo do caderno. E foi o contato com esse caderno,cheio de sinais de um modo de ser, que foi me revelando umaMaria Franca Pires - que por vezes se multiplica e dividi-se,sendo várias. Tornando-a minha conhecida, comecei a decifrare compreender a pessoa através daqueles papéis e de seus escri-tos.

O fato é que, envolvi-me de tal modo que hoje, mais detrês anos depois, concluindo o curso de Jornalismo, Maria éminha amiga íntima e tenho a ousadia de biografá-la partindode seus cadernos, presentes no arquivo deixado por ela.

Por meio das coisas que Maria guardou, já conheço Juazeiro- cidade tão recente em meu caminho - melhor do que a minhacidade natal; sei de histórias e modos curiosíssimos de pessoase lugares dessa cidade; fiz muitas viagens em dias lá bem longeno tempo.

É essa viagem que conto nas linhas que se seguem. Nocaminho, vai-se configurando um perfil da pessoa Maria FrancaPires, a qual se MOSTRA e se esconde por entre os papéis e asvozes, nos quais a tenho encontrado.

Juliana Pires de CarvalhoRocha Machado

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Nem sabia que existia aquela sala ali, seguindo por um corredorao lado da biblioteca. Fomos levados para lá depois de escrever otexto sobre a importância da pesquisa, na seleção para monitoria doprojeto O arquivo da profª Maria Franca Pires: memória e história cultural empesquisa na região de Juazeiro-BA .

Ao abrir a porta, inevitável não se incomodar com o cheiro for-te de coisa antiga que veio logo invadir nossas narinas. Percorri oespaço com um olhar de susto e curiosidade. Espalhados sobre amesa grande e pelas cadeiras que ocupavam parte da sala, estavampapéis - muitos e indefiníveis de imediato.

Uma das concorrentes à monitoria de extensão desistiu logo,tinha renite alérgica e, ao primeiro contato com aqueles materiaisamarelados e desgastados pela ação do tempo, pôs-se a espirrar.

Depois de sermos apresentados ao arquivo pela professora coor-denadora do projeto - que nos falava enfática sobre o trabalho traba-lhoso que teríamos pela frente - pensei:

- Mas que figura essa Maria eim! Guardar tudo isso... Será pra quê?Qual era sua intenção? Quando começou a juntar essas coisas? Por queguardava objetos tão incomuns como sacos plásticos e embalagens? Eesse sobrenome Pires ? Ai ai ai... Só falta descobrir que somos parentes!

Na hora não percebi o que acontecia, mas daquelas interrogaçõesfirmou-se o laço que me prende até hoje ao mundo que é o arquivoda professora Maria Franca Pires.

RASTROSUm a pessoa entre papéis e vozes

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Seus guardados formam mesmo um museu de tudo . Tudoo que na época se referisse a Juazeiro, seu povo, e que chegou às mã-os, ouvidos e olhos atentos de Maria, está preservado em seu arquivode variadas formas: entre livros escritos sobre Juazeiro ou por juazei-renses; cartazes de eventos diversos promovidos na cidade e região;folhetos; calendários; envelopes; cartas; bilhetes; convites; programasde eventos; apostilas de pesquisas diversas, realizadas por ela e outraspessoas; certificados; flâmulas; biografias; poesias; fitas K7 comgravações de entrevistas, músicas, crônicas, programas de rádio,palestras, missas; documentos pessoais de pessoas várias - comocarteira de eleitor, passaporte e certificados escolares; jornais e revistas- locais, regionais, estaduais e nacionais; discursos; atas; cadernosmanuscritos, onde estão registradas desde entrevistas com perso-nagens da história de Juazeiro, aos caprichosos recortes de uma vidade professora primária; fotografias.

Um mundo , ou a tentativa de abarcá-lo para reter uma históriaescorregadia da cidade de Juazeiro, no fundo de seu baú imenso.

...Debruçamo-nos sobre as fotografias antigas presentes no

arquivo de Maria Franca Pires, pela emergência de realizarmos umaexposição com aquele material.

Um primeiro dado deteve minha atenção: não se encontrava,até então, nenhuma foto de Maria Franca Pires naquele acervo. Sódepois identificamos algumas imagens dela em matérias de jornaise revistas ali guardados, mas, dentre as fotografias do arquivo, nenhu-ma foto que retratasse Maria.

Ela, que se esforçara tanto para que a história da cidade deJuazeiro não se perdesse, deixou-se ficar fora daqueles guardados?

Contraditório, mas seguimos em frente....As fotografias guardadas por Maria Franca Pires falam. É só

parar um pouco e contemplar aquelas cenas, cenários, imagens, rou-pas, o semblante dos personagens. Elas são o retrato de um outrotempo, ou de outros tempos, diferentes entre si e distantes do hoje.

Falando, as fotografias dizem de uma cidade de Juazeiro emque - sendo escrita Joaseiro - os carnavais eram festejados emcarros alegóricos pesadamente puxados por cavalos nas ruas de

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areia, e as pessoas se fantasiavam com muita roupa. A avenida daorla fluvial da cidade era uma rua larga de mão dupla com árvoresque dividiam um lado e outro. A ponte erguia seu vão central - cha-mado Portão da Ponte - para a passagem dos vapores que paravamno porto e seguiam viagem. E muito antes disso, quando ainda aponte não existia, os paquetes bailavam soberanos levando e trazendogente e carga entre a baiana Juazeiro e a Petrolina pernambucana.

Na comparação do antes com o agora, impressionávamo-noscom as mudanças muito mais do que com as permanências e viráva-mos sempre as fotos, buscando informações que as contex-tualizassem, mas, em sua maioria, elas estavam sem data e sem no-me de lugares ou pessoas.

No entanto, em meio àquelas inúmeras fotografias soltas,algumas traziam manuscrito o nome Dinorah . Seguindo por esserastro ali deixado, fomos ao encontro de Dinorah Albernaz Pereirae Mello Silva, que convivera com Maria Pires e, por confiar em seuideal de preservar a história da cidade de Juazeiro - segundo ela mes-ma nos relatara -, doara-lhe grande parte das fotos do seu acervo defamília.

Aí, então, começa a se firmar uma rede de relações interco-nectadas, de papéis e vozes que se complementam, e, por sua força,dão corpo à pesquisa que busca compreender a pessoa e dar sentidoaos recortes de uma história, guardados por ela.

...Chegar à casa de dona Dinorah, situada no bairro Castelo Bran-

co, foi como uma viagem no tempo. A construção é típica daquelesdias tranqüilos de cidade pequena: os muros baixos que dão na cin-tura, portão igualmente baixo feito de barrinhas de ferro, por ondepassando a mão para o lado de dentro, facilmente alcançamos o fer-rolho, destravamos, e adentramos pelo jardim da frente anunciandonossa chegada.

- Dinorah! Ô de casa!Ela aparece à porta de vidro da sala já com os braços abertos e

sorrindo, acolhedora. Uma pequena grande senhora. Cabelinhosbrilhantes de tão brancos e lisos. Olhos vivos de um azul reluzente.Presenciamos ali, naquele recanto que é a casa de Dinorah, um dosprimeiros momentos mágicos nesse caminho de encontro com uma

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Maria, ali colocada com as lembranças: a oralidade e a memória dan-do vida às cenas até então congeladas nas fotografias.

Ao entrar pela sala, a viagem no tempo continuou: móveis antigose bem desenhados, feitos de uma madeira escura, cadeiras de balançoe fotos de família em quadros na parede.

Ela nos conta sua história de vida em um relato que impressionapela firmeza na citação de nomes, sobrenomes, parentescos e datas.Nascera no mesmo ano em que Maria, a 14 de julho de 1921. Formara-se professora pela Escola Rural do Colégio Nossa Senhora Auxi-liadora, um ano antes que ela, em 1938. Filha de Urânia AlbernazPereira e Mello e Mário Evangelista Pereira e Mello, e neta do influenteCoronel João Evangelista - aquele mesmo cujo nome está gravadonuma rua central da cidade de Juazeiro, popularmente conhecida co-mo Rua da 28 .

Dinorah tivera uma vida social movimentada: professora, can-tora, de uma família importante em Juazeiro. Participou ativamentede grande parte dos acontecimentos retratados nas fotos que motivoua nossa ida até ela - de carnavais a cursos, inaugurações e festas.

- Como Maria entrou em sua vida?- Maria Pires foi minha vizinha. Eu morava na rua da 28, mas

a minha casa tinha um portão pra a rua que Maria morava. E então,a gente se unia muito, andava muito juntas e em toda parte que Mariaestava eu também ia. E aí, num sabe, nós começamos a nos dar mui-to bem... Eu conheci o pai de Maria Pires, Clodoaldo, e conheci oavô, Trajano Bandeira. E sempre tudo que Maria Pires fazia eu estavapresente.

- E como era Maria Pires? Qual a sua impressão daquela pessoa?Que pessoa ela era?

- Muito dinâmica! Muito sincera! Quando ela gostava de umapessoa, ela gostava. Mas também, quando ela não gostava - falapausadamente em tom de alerta e continua.

- Serviçal! Ave Maria, uma pessoa precisar de Maria e ela nãoservir? Não. Ela servia! E com carinho, e com amizade ela se dedicavaàs pessoas que precisavam. Uma pessoa que sabia conduzir suasamizades.

- Por que você confiou suas coisas a ela? Por que você confiounela?

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- Sabe por quê? Porque Maria Pires era LOUCA por Juazeiro.E ela me dizia: - Dinorah, eu sou de Remanso, mas eu me considerojuazeirense, eu quero bem a sua terra e acho que ela também é mi-nha terra . Aí, eu confiei TUDO o que eu tinha a ela. Eu disse: -Pois Maria, eu vou passar meu legado pra você! . E aí, num sabe, eupassei TUDO, todas as minhas fotografias de família, dei tudo praMaria. Ave Maria! Onde ela sabia que tinha gente que soubesse dahistória de Juazeiro ela estava presente lá!

O contato com Dinorah trouxe o mundo de Maria Pires -antes distante, estático e sem vida - para bem perto de mim. Andarpor Juazeiro, inclusive passou a ser diferente. Olho, agora, para oslugares e me demoro mais, contemplando os aspectos físicos dacidade. Vou pensando: O que terá sido antes? . Os lugares agoraemanam histórias.

Além de identificar muitas pessoas que aparecem nas fotogra-fias - seus nomes, sobrenomes e parentescos - Dinorah contribuiuexpressivamente indicando outras fontes que nos contariam outrashistórias - ou a mesma história vista por outros olhos, sentida de ou-tro lugar.

- É bom vocês falarem com Lourdes Duarte, ela sabe TANTAcoisa de Maria Pires. Ela era a amiga mais chegada de Maria - esfregaos dedos indicadores, naquele gesto conhecido que indica a proxi-midade entre duas pessoas - Era ela e Terezinha, a primeira esposade doutor Dewilson. Eram as três, não se desligavam, eram as maisamigas - recomenda Dinorah.

...Aconchegados pelos sofás e cadeiras, a conversa rolou por horas,

interrompida só quando o estômago começou a roer provocadopelo cheiro de comida quente vindo da cozinha. Era o meio do dia,hora de voltar para casa, porém, ainda embebidos de história, tontosde vida.

...De Dinorah, voltamos às fotos e preenchemos muitas lacunas.

Outras tantas permaneceram. Mas a exposição Juazeiro Flashes deMemória do A cervo de Maria Franca Pires nos trouxe outras vozes rele-vantes, como a de Maria de Lourdes Duarte.

Esta se tornou nossa próxima fonte por três motivos: Lourdesfora indicada por Dinorah como amiga íntima de Maria Pires;

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algumas fotos do arquivo contêm seu nome ali manuscrito, como ode Dinorah; e durante a exposição de fotografias, diante de uma dasfotos, Lourdes questionara a data indicada na legenda da mesma, oque nos chamou a atenção para a necessidade de checar nossos dados,cruzando as diferentes informações coletadas, a fim de diminuir oucorrigir possíveis erros.

...Chegar à casa de Lourdes me trouxe a certeza de que a sensação

de viagem no tempo , experimentada lá na primeira entrevista comDinorah, repetiria-se ainda algumas muitas vezes.

Já na entrada, ainda na parte de fora da casa, contemplo a placafixada na parede: é uma homenagem à mãe de Lourdes. A casa -situada na rua 15 de novembro, próximo à praça popularmente conhe-cida como Praça do Boi - é histórica. A parede rosada com o contornodos azulejos sobressaindo; o portãozinho de ferro, entrecortado emformas de pequenos losangos, dá para a estreita área com cadeirasreceptivas às visitas - dali vê-se de um lado a sala e de outro a rua.Imagino, ligeiramentente, quantas prosas se fizeram naquele espaço,entre risos e casos, contratos e segredos.

Lourdes nascera na rua Visconde do Rio Branco, não naquelacasa, ao dia 26 de junho, no ano de 1917, quando Juazeiro assistia àinstalação da primeira Usina Elétrica. Na salinha de visita, localizadaà direita da entrada de sua casa, agora, ela lembra e nos conta de suavida, sempre muito ligada à paixão pela educação - primeiro comoaluna e depois como professora.

- Tive uma infância como a de toda criança aqui na cidade, comaqueles brinquedos daquele tempo que hoje a televisão termina revi-vendo - pula corda, chicotinho queimado, boneca de pano, esconde-esconde. Mas, eu sempre tive mania de brincar de professora!

Contou-nos com orgulho da sua época de estudante e dos certi-ficados de distinção que recebera.

- Fiz o primário aqui em Juazeiro com a professora OnorinaPursine de Almeida. Aí eu aprendi o b-a-bá. Era assim: primeiro li-vro, segundo livro, terceiro livro, quarto livro. Quando chegava noquarto livro era PROFUNDO! Era uma mistura de tudo. Depois -tinham poucas escolas públicas em Juazeiro - e eu consegui uma

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vaga na escola da professora Angélica Maltez, que vinha diretamentede Salvador para ensinar aqui. Quando ela passou um tempo delicença em Salvador, veio a professora Maria José Sant Ana parasubstituí-la. Uma PRETA de alma BRANCA, de caráter excelente!Foi pouco tempo mais valeu viu. Muito competente! Volta a profes-sora Angélica e eu terminei o curso primário. Como gostava muitode estudar, os certificados eram sempre de Distinção com Louvor ,Distinção com Louvor ! - conta Lourdes, orgulhosa de si mesma.

Para ingressar no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, Duarte- como era chamada pelas colegas por haver mais de uma Lourdesna classe - teve de repetir a quarta série primária.

- Eu me lembro que quando eu fui me matricular a freira meperguntou: - Você sabe francês? . E eu disse: - Não! . E elalamentou: - Se você soubesse francês, eu já passava de ano. Então,você vai repetir a quarta série, vai fazer a preparação .

Lourdes já havia passado dois anos sem estudar, por questõesfinanceiras. Com a ajuda de um tio que, tendo melhores condições,financiara seus estudos, ela pôde concluir o Curso Normal Rural noColégio Nossa Senhora Auxiliadora, formando-se professoraprimária em 1936.

- Na Escola Normal graças a Deus eu fui muito bem gratificada.De trinta e um a trinta e seis eu fiquei no Auxiliadora. Lá a genterecebia aquela formação completa. Formação religiosa, formaçãomoral... Muito exigente naquele tempo. Mas tudo o que a gente passoupor lá valeu a pena. Eu guardo minhas notas aí...

- Guarda ainda?- Botei no álbum de formatura e ficou, né!Nesse tempo, quando Lourdes estudara no Colégio das Freiras,

as notas eram publicadas no Jornal O Pharol, de Petrolina. O conceitomáximo da época para a avaliação do conhecimento adquirido pelosalunos era 100 (CEM).

- O Pharol publicava as notas aí as colegas falavam - Puxa,Duarte! . E eu ficava toda entusiasmada! Mas, eu estudava mesmo!Eu gostava e estudava!

- E como conheceu Maria Franca Pires? Como vocês seencontraram?

- Bom, o número de professoras era bem menor. Então, todo

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mundo tinha sua escola isolada - porque só existia grupo aquele dasEscolas Reunidas. Era escolinha aqui, escola acolá. E essa dificuldade,muitas vezes, força a gente a descobrir as coisas né. Então, a gente sejuntava, conversava, tentava se ajudar... Também já vinha de umarelação de família. Ninguém era de fora. Todas as professoras eramda cidade. A grande maioria estudou em Petrolina. Aí já vinha aquelelaço de lá do Colégio. Já tinha aquela história. Conversa isso, conversaaquilo... Maria Pires sempre teve belas idéias, muito criativa! - come-çou assim a descrever-nos Maria...

...Ainda quando digeríamos as informações do encontro com

Lourdes, eis que Antonila da França Cardoso aparece em Juazeiro.Seu nome estava listado como uma possível pessoa a ser entrevistada,já que realizara pesquisas com Maria Pires, em um certo período desua vida.

No entanto, não aparecia em nossa lista nos primeiros lugares,por ser uma das pessoas que, não residindo em Juazeiro, aguar-dávamos o soprar dos ventos do destino para que esses encontrosse realizassem. E, como se fez costume no caminho desse trabalho,os ventos do destino a trouxeram para cá, por ocasião de seuaniversário.

...Cabelos arrumados, maquiagem leve, trajando um vestido azul

vivo em perfeita harmonia com a decoração de seu partamentoaconchegante, no décimo andar do edifício Champs Elysées, orlafluvial da cidade - sofá e quadros azuis - Antonila delineia a Mariaque outrora conhecera, entre risos e reticências de sua memóriaempolgante e cheia de detalhes vivos. À vista da varanda, o Negod Água escuta a prosa e o rio não deixa de correr.

Começou nos falando de sua infância...- Eu vou começar da minha infância porque tem um aspecto

que foi marcante, que depois vai se encontrar com Maria Pires lá nafrente...

E contou-nos de uma época em que, em Juazeiro, havia umdivisor de águas entre católicos e não católicos - os protestantes.

Este pequeno grupo era então liderado pelo pai de Antonila, Antônio

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Cursino da França Cardoso. Na sala de aula aconteciam coisasabsurdas das quais ela se lembra com pesar.

- Na escola primária, os professores nos colocavam emevidência de uma maneira negativa: colocavam os filhos dos protes-tantes na frente, para que os filhos dos católicos uivassem e berrassem.Nós éramos os bodes, os desprezíveis que iam para o inferno.Conosco - referindo-se a ela e aos irmãos - isso não acontecia, porquemeu pai era um intelectual, uma autoridade na cidade e estava muitoatento a isso! Mas acontecia com as outras pessoas da igreja.

Antonila passou, então, a ter receio dos professores de um modogeral.

- Quando falava - Vai mudar de escola, vai pra a escola tal , eupensava assim - Será que aquela professora vai me colocar na frentepra me jogarem bola de papel, pra me vaiarem!? .

Assim, as longas férias escolares - que iam de junho a julho e dedezembro a março - se tornaram um refúgio para a menina Nila,como é chamada na intimidade.

- Pra mim, era o CÉU! Porque na fazenda só tínhamos nós, osfilhos dos caseiros, os filhos dos vaqueiros...tudo criança! Não tinhadivisor de águas nenhum.

- E como Maria Franca Pires entra nessa história?- Depois, quando eu já estava no Ginásio, Maria Pires mudou-

se para frente da minha casa. Então, fomos vizinhas de porta. MasMaria era uma pessoa de aparência DURA, empertigada, fisicamenteelegante. E aquela maneira de andar SOBERANA que ela tinha -Antonila sorri, divertindo-se ao lembrar - afugentava as pessoas. Eas pessoas diziam assim: - Essa filha de Clodoaldo é TÃO metida! .E ela não cumprimentava ninguém naquele pedaço da vizinhança.Ela chegava, entrava, saía... Ela era ela! E todo o tempo eu só ouviacomentários depreciativos: - É metida, e não fala com ninguém, eé rica, e num sei o quê... .

Só a partir de 1956, quando Antonila forma-se professora emJuazeiro, é que Maria passa a ser uma companhia constante em muitosmomentos.

- Nesse período, Maria passou a vir sentar no meu batentecomigo. Aquele calor aqui em Juazeiro...! Não tinha ar condicionado,

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nem ventilador, nem nada - também não tinha televisão - e a genteficava à noite, assim, sentadas na beira da calçada, chupando melancia,até uma hora, uma hora e meia, quando corria o vento da madrugadae a gente entrava pra dormir. Então, de repente, eu vi que não erabem como as pessoas falavam. Ela era engraçadíssima! Ela tinhamuito humor. Era uma personalidade... sui generis! Quando ela faleceu,eu li tudo que foi escrito a respeito e disse assim: - Mas ninguémdescreveu a Maria que eu conheci! .

A Maria que Antonila conheceu era assim......Certo dia, Antonila e Maria entraram no Baneb - o extinto Ban-

co do Estado da Bahia, que funcionava onde hoje é o Banco Bradesco,na avenida Carmela Dutra, orla da cidade. Foram descontar umcheque e, como na época não existia caixa eletrônico, então, a pessoalevava o cheque até o guichê e recebia o dinheiro.

Chegando ao guichê, o atendente pegou o cheque, olhou e disse:- É Maria FranÇa Pires... É FranÇa ou é FranCa?E ela disse:- FranÇa é Antonila! Eu sou FRANCA! Franca de desaforada

mesmo!O rapaz olhou para Maria com os olhos arregalados e Antonila

caiu na gargalhada, divertindo-se com a personalidade curta e gros-sa da amiga.

...- Ela era assim, uma pessoa franca! E se assumia assim! Maria

não usava eufemismos, essas figuras de linguagem pra adoçar, prasuavizar não. Ela dizia, como se diz hoje, na lata o que tinha queser dito. E essa foi uma das razões pelas quais eu a admirei logo, por-que eu vi que estava tratando com uma pessoa extremamente séria,responsável, muito sincera, que não tinha adulações, nem bajulações.Não tinha disfarces!

A Maria franca conquistou a amizade de Antonila, prin-cipalmente, por ser diferente da maioria das pessoas que, na Juazeirodaquela época, tinham mania de rotular tudo e todos: você é cató-lico , você é protestante , você é UDN (União DemocráticaNacional), você é PSD (Partido Social Democrático).

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- E conversando com Maria eu percebi que ela enxergavaJuazeiro como eu enxergava - sem partidarismo político! Ela queriaera o progresso de Juazeiro e as pessoas tinham mania de rotular agente. E como eu já vinha com a história do católico e do protestante,desde cedo, eu tomei horror a rótulo! Eu não permito que ninguémme ponha rótulo! E Maria tinha essa coisa também. Ela pensava noque poderia vir de bom pra Juazeiro e acreditava em cada prefeitoque se elegia, depois se decepcionava.

Maria Franca Pires tinha uma mania - lembra bem Antonila:escrevia MUITO e TUDO! Quando a amiga Nila estava lhe falandoqualquer coisa ela dizia: - Espera aí! . Aí levantava, pegava o cadernoe a caneta... Ela punha datas em tudo, escrevia tudo e reclamavamuito de Antonila porque não anotava essas coisas.

- Eu anotava o meu sentir e o meu pensar, mas coisas dacomunidade eu não anotava. Aí, quando eu contava alguma históriados vaqueiros da fazenda, por exemplo, ela dizia: - E anotou isso? .Eu dizia: - Não! . E ela insistia: - Mas tinha que ter escrito. Pois,então me conte . E aí Maria já ia pegar o caderno e anotava as coisasque eu contava!

Antonila revela que, à época, pensava: - Mas por que ela queresse negócio, essas histórias que não são nem verdadeiras nem nada? .Só posteriormente é que ela viria a entender o que são manifestaçõesfolclóricas, religiosas, populares...

- Maria sempre anotou tudo e eu não entendia, não via razão deser - lembra Antonila.

...Seguimos ao encontro de mais três personagens dessa história:

Maria Perpétua de Almeida Santos, prima de Maria Franca Pires;Expedito Gomes de Almeida, irmão de Perpétua e também primode Maria; e Thomázia Bonfim dos Santos Almeida, esposa deExpedito e uma das melhores amigas de Maria.

Saímos, pois, de um meio social e público das amigas e colegasde profissão, para encontrar um ambiente-família, íntimo e, talvezpor isso, mais resguardado, cheio de silêncios e segredos.

- Maria Pires nasceu no ano de 1921 no dia cinco de novembroe nossos pais casaram-se no dia doze de novembro do mesmo ano.

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É tanto que meu tio Coló não veio ao casamento, porque estava compoucos dias que ela tinha nascido - lembra Expedito.

Além do parentesco que os aproximava de Maria - primos porparte do pai dela, Clodoaldo Pires da Costa, que era irmão da mãe dePerpétua e Expedito, Adalgisa Beatriz de Almeida - eles morarammuito tempo vizinhos à prima.

- Nós moramos no bairro Santo Antônio e em 1936 nós viemosali pra rua Conselheiro Luis Viana, na casa número 33. Depois, nóspassamos pra casa em frente, número 120. Posteriormente, nósviemos pra casa 101, vizinha à casa de Maria Pires. Mas era umapessoa assim, não é porque seja parente não, mas era muitocompetente né! - contou-nos Expedito com sua voz mansa ememória privilegiada.

- E ela, morando ali vizinho à gente, os meninos que numfaziam as tarefas ela deixava lá em casa. Dizia: - Tia Gisa, eu voudeixar fulano aqui com a senhora . Doutor Pedro Filho, com quemeu fiz um tratamento agora, foi aluno dela. Aí Pedrinho, ficou muitolá em casa! E ela deixava lá porque não fazia as tarefas, né Ela trabalhouMUITO dando banca. Muito mesmo! - lembra Perpétua, entre risose embalos em sua cadeira de balanço.

A prima Perpétua se formou professora no Colégio Auxiliadorano dia 04 de dezembro de 1949, dez anos e um dia depois de Mariaser diplomada ali mesmo, naquela instituição de ensino. Começousua vida profissional lecionando dois anos em Paratinga, uma cidadepróxima a Bom Jesus da Lapa, e, logo após, retorna para sua cidadenatal, onde lecionou até se aposentar.

Trabalhou seis anos no Movimento de Educação de Base,promovido pela Diocese de Juazeiro, na época em que era bispoDom Tomaz Guilherme Murphy - que foi nomeado a 16 de outubrode 1962 o primeiro bispo daquela Diocese. O MEB funcionava emJuazeiro através das chamadas Escolas Radiofônicas , as aulas sendotransmitidas no período da noite, a partir das 18 horas pela RádioEmissora Rural de Petrolina.

Thomázia, sempre com os olhos brilhantes, conta de sua ami-zade com Maria.

- Minha mãe era muito amiga da mãe deles, de Expedito,Perpétua e tudo. E a gente era conhecido como se fossemos parentes

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né. E Maria Pires se tornou uma grande amiga minha. AmigaMESMO! Mesmo, mesmo. Amiga daquelas, de horas boas e dasoutras horas também. Tenho uma estima muito grande por ela.

Thomázia lembra que foi Maria Franca Pires quem praticamentenão deixou que morresse o festejo de Santo Antônio - uma tradiçãona casa da tia Adalgisa e seu esposo Antônio Gomes de Almeida.

- Quando minha madrinha Adalgisa morreu aí nós ficamos -Faz ou não faz o Santo Antônio? . Aí Maria disse: - Não, vamosprovidenciar pra fazer como sempre foi feito . E aí pronto! Ela medeu aquele estímulo e continuamos com o festejo que era tradicional.

- E como era Maria? Como você se lembra dela?- A primeira lembrança que eu tenho de Maria Pires é do

perfume! Nós morávamos ali na rua Conselheiro Luís Viana, ali aolado daquela caixa d água. E quando ela vinha de Remanso - nessetempo ela lecionava em Remanso - a gente já conhecia o perfumedela que era uma COISA assim! Eu meninota, não conhecia essesperfumes. E eu me lembro que um dia, ela tava pra Remanso e euestava dentro de casa, aí eu -Thomázia infla o peito de ar como queinspirando aquele perfume - - Ah, Maria Pires vem passando aqui! .E eu saí...Quando eu saí, já ia mesmo passando, dobrando a esquina.Aquele perfume dela era uma coisa MARAVILHOSA!

Nas andanças de Maria Pires por Juazeiro, entrevistando pessoase registrando em cadernos tudo o que ouvia, Thomázia foi suacompanhia fiel e testemunha da sua força.

- Talvez ela já devia ta sentindo alguma coisa, porque foi bemno final de sua vida e ela me pedia: - Vamos Thomázia, você vaicomigo? . Eu dizia: - Vou! . Aí a gente saía... Ela entrevistava,anotava tudo. Ela tinha aquela paciência de anotar tudo nos cadernos.Era um serviço lento que dependia de muita paciência. E a gente iaandando, não tinha carro nem nada. O pé dela inchado já. Foi quandodeixou de usar sapato alto. Mas ela rodava Juazeiro todinho. E euacompanhei! Ela adorava fazer esse trabalho! Ela fazia isso assimcom uma ânsia... e escrevia, escrevia, escrevia!

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As fo to grafias falam !Do Carnaval de

Juazeiro em 1914;

dos paquetesquebailavam

soberanos entreJo ase iro ePetrolina.

da avenidalarga e calma

da orlafluvial dacidade;

do Portão daPonte, erguendo-se

receptivo;

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O legado deDinorah Mello!À frente,regendo coral deprofessoras;

n o carn aval,uma das

primeirasmulheres a

co lo car aspern as de fo raem Juazeiro (a

primeiraagachada da esq.

p/ dir.);

e em um doscursospromovidospelaAssociaçãode Pais eMestres .

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Mês de Junho de 1988. A cidade se movimenta com asTrezenas de Santo Antônio, São João e São Pedro. Adivinhações,quadrilhas, fogueiras, canjicas, bolo de milho, licor de jenipapo,leitão assado, compadrios e parentescos firmados à beira calorosadas fogueiras.

Era um dia especial para a cidade de Juazeiro. Na entãoSecretaria de Atividades Sociais, as autoridades se reuniam parahomenagear a grande pesquisadora juazeirense Maria FrancaPires, na ocasião do lançamento do seu livro Juazeiro Bahia.

Mas, por que Maria, sendo natural da cidade de Remanso,fora referida pelo Jornal de Juazeiro como grande pesquisadoraJUAZEIRENSE , na matéria Mª Franca Pires - Patrimôniocultural de Juazeiro ? Porque ela recebeu o Título de CidadãJuazeirense já no fim de sua vida! Num episódio polêmico econtroverso.

Maria, sentada numa cadeira à frente, ouvia o falatório depraxe desse tipo de cerimônia: ela, que é um baú eterno das coi-sas brilhantes de Juazeiro , ela, que ensina a cada dia aos juazei-renses amarem sua própria terra , ela, que formou grandeshomens, que hoje são destaques inclusive a nível nacional .

A professora Graciosa Xavier Ramos Gomes, na época coor-denadora de educação do município, fazendo uso da palavra,externou:

Um a viagem nos registros da históriaque andava na cabeça do povo

INDÍCIOS DE UMA PESQUISADORA

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- Toda Juazeiro está em festa por receber tão brilhante presen-te para a educação! E tudo começou na década de 50 com osfamosos caderninhos de Maria Franca Pires, quando, à época, asprofessoras desconheciam até a palavra greve e tudo era feitocom muita dedicação e amor. E isto Maria soube ter muito bem!

Jorge Khoury, então prefeito de Juazeiro e ex-aluno de Maria,ressaltou:

- A Cartilha da professora Maria Franca Pires - referindo-se ao Livro Juazeiro Bahia - servirá tanto para as crianças comotambém para os adultos que desconhecem a verdadeira históriada cidade!

E Maria, sendo a última a falar, dentre outras queixas, reivin-dicou!

- Vamos ter vergonha na cara e valorizar o que é nosso!...Da mania de escrever tudo, datar tudo, pegar o caderno e a

caneta para registrar coisas que para muitas pessoas não faziamsentido de serem anotadas - como, certa vez, disse a amiga Antonilada França Cardoso - é que foram se amontoando os famososcaderninhos de Maria Pires .

Talvez ela sequer imaginasse, quando se debruçava em seusescritos, que, a partir deles, seria possível nesse futuro-presenterecontar parte da sua história de vida, para além, muito além dahistória da cidade de Juazeiro, que pude conhecer porque Mariase pôs a anotar, registrar, guardar, organizar e, porque não dizer,pôs-se a inventar.

Os 27 cadernos disponíveis no seu arquivo formam um mapade sua vida no período de 1957 a 1987: planos de aula, registrosde pesquisas, listas de compras, pautas de reuniões, rascunhos decartas e ofícios, planejamentos de eventos diversos, anotações decursos e estudos, contas matemáticas, frases, comentários,lembretes, poesias, letras de músicas, e histórias, muitas históriasque andavam na cabeça do povo .

Das histórias registradas nos cadernos de Maria Franca Pires,surgiram três livros: Lendas do V elho Chico (1987), Juazeiro Bahia(1988) e V ocê acredita em assombração? (1992).

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Num exemplar do livro Juazeiro Bahia dedicado às filhas desua amiga e prima distante Odomaria Macedo, Maria externa suaintenção e seu desejo de cuidar para que a história não se perdesse.Na contracapa ela, atenciosamente, manuscreveu:

Iaby e Kyse,A mem e divulguem a história da Bahia.

Um beijo da primaMaria Pires.

E porque amou e trabalhou sempre pela divulgação dahistória local - uma história que ela dizia andar na cabeça dopovo - é que Maria entrou para a história de Juazeiro.

...Em 1984, já como professora aposentada e funcionária do

Centro Social Urbano, Maria Franca Pires foi requisitada pelaPrefeitura de Juazeiro para fazer uma pesquisa com o propósitode instalar na cidade a Fundação Instituto Geográfico e Histórico.

- Mas eu comecei a minha pesquisa não em documentosescritos. Porque isso muita gente já fez e chegou até a publicarlivros. O que eu acho importante é registrar a história que vive nacabeça do povo!

Para Maria, a história que andava na cabeça do povo nãoestava registrada em livros, mas aconteceu.

- Toda história que aconteceu é importantíssima! Não existeuma história mais importante que outra. Nós já tivemos emJuazeiro festas impressionantes na época da disputa entre Apoloe 28 de setembro . Naquele tempo onde os recursos erammínimos, quando não existiam os artifícios de hoje, as pessoasconseguiam fazer coisas impressionantes: não existia cola tenaz,a goma era feita com tapioca; não existia cartolina, era apenas opapelão; não existia tule, quando se queria fazer nuvens, fazia-semesmo era com algodão. Então eu fico muito gratificada quandoconverso com as pessoas e elas colocam para mim essa história!

Na última entrevista que Maria Franca Pires cedeu para aimprensa local, ela revelou ao jornalista Marcelino Lourenço

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Ribeiro Neto, responsável pela seção de entrevistas do Jornal OBerro d Água:

- Eu já tive oportunidade de conversar com cento e tantaspessoas e procurei registrar tudo o que essas pessoas tinham ame contar, todos os tipos de história, porque eles são importantes.E essa pesquisa está em cadernos, arquivada em minha casa!

- E qual é o seu interesse? - instiga o jornalista curioso.- É um trabalho que gosto de fazer e me realizo fazendo-o.

Acho que Juazeiro, como todo lugar do mundo, tem perdidogrande parte de sua história por não arquivar todos osacontecimentos! Nesses anos todos que tenho vivido aqui emJuazeiro, o que é que tenho assistido? Destruição!

- E o que você vai fazer com tudo isso que pesquisou eguardou?

- E eu sei? Eu só sei que no dia em que eu morrer, podematé tirar uma grade dessas da janela, para ser mais fácil jogar tudoaí janela à fora e queimar. Porque o que tudo isso terá de sentidodepois que eu morrer? Para Juazeiro seria de muita importância.Mas, eu pergunto: a quem entregar?

...Parte do que Maria guardou durante toda uma vida de amor

a Juazeiro é agora objeto de estudo através de um projeto depesquisa desenvolvido no campus III da Universidade do Estadoda Bahia, em Juazeiro, com o objetivo maior de tornar o materialdo arquivo da professora Maria Franca Pires acessível àcomunidade, a partir da sistematização do acervo.

- Maria dizia assim: - Eu estou juntando e é para entregara Odomaria, que se formou em História! . Porque ela achavaque não tinha formatura na área, então, não podia escrever aquelahistória de Juazeiro - lembra Antonila da França Cardoso.

E assim foi feito!No início do ano de 2004, Odomaria Macedo, então

professora do Departamento de Ciências Humanas da UNEB,recebeu das mãos de uma das filhas do coração de Maria - MariaTereza - em caixas, sacos e pastas, os papéis de uma vida.

Só por isso, eu conheci Maria. Só por isso, conheci tão bemJuazeiro. Por isso, hoje, conto uma história que me encantou.

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...Mês adoradoO mês de janeiroQue em JuazeiroFaz tudo andarInebriados nesta alegriaQue noite e dia nos faz vibrar(Terno Ueianas Letra e Música de Edilberto Trigueiros)

Mês de Janeiro era tempo de Ternos em Juazeiro.Ternos?Sim.Versos cantados na porta das casas. Pessoas vestidas a caráter,

de acordo com o Terno; estandartes a postos. Era anunciada achegada:

Ô de casa, nobre genteEscutai o que diremos (bis)A partir do OrienteA chegada dos três Reis (bis)

O Terno Estrela do Oriente, com 60 moças e 65 rapazesformando quatro filas, saiu pela primeira vez no dia 08 de fevereirode 1930 da casa das organizadoras Alice e Arlinda Figueiredo narua Conselheiro Luis Viana, seguindo para a casa do Sr. ZequinhaBarbosa para comemoração de seu aniversário, na rua J.J. Seabra.

As moças trajando um vestido branco, modelo à vontade;sobre este, um bolero azul celeste de cetim brilhante, terminandona cintura com pontas redondas, aberto na frente sem abotoar;no bolero, do lado esquerdo, uma estrela com cauda, feita emcartolina e coberta com areia prateada. Sapato preto, meia brancacurta. Na cabeça, um diadema com uma estrela igual à do bolero.

Os rapazes vestindo uma roupa branca: camisa branca demangas compridas; gravata preta, fina ou de laço borboleta; nalapela do casaco, uma estrela igual à do bolero das moças.

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À frente, uma moça carregando o estandarte. Trajando umvestido azul celeste, longo e com uma manga modelo boca desino que ia até o cotovelo, tinha o decote alto. Na cintura, umafita larga, azul com laço; na cabeça, um diadema com estrela.

O estandarte, feito em cetim Macau, branco, tendo no altouma franja prateada e também, franja contornando a ponta doestandarte; esta franja, pregada com cordão azul celeste, terminanas pontas com um laço. O mastro do estandarte, pintado deprateado e a parte superior em forma de uma seta. No centro doestandarte, uma estrela grande, prateada. Escondida dentro delauma lâmpada de pilha.

Na frente do estandarte, os três Reis Magos, a pé.Chegando à porta de Zequinha, todos cantam e dançam os

versos feitos pelo compositor chamado Paraíso e a festança rolasolta.

Ó estrela que iluminaQue a todos nós fascinaQue a todos vêm salvarQueremos vê-la sempre bela e cintilanteDe Jesus a todo instanteSua fronte iluminar....Quem vê assim, tanto detalhe, pensa até que estive lá. Mas

sabe aquelas viagens na história e no tempo das quais já comenteilá atrás? Pois é. Nesta, de encontro aos Ternos, fui de carona emum caderno de capa quadriculada - em preto, amarelo e de fundobranco - que me levou para ver, ouvir, sentir e experimentar oscostumes de outrora.

Passeando pelas páginas limpas e organizadas desse cadernode Maria, conheci mais de quarenta Ternos que se apresentaramem Juazeiro, lá pro início do século XX. Os versos de suas canções,cada detalhe das roupas dos participantes, os estandartes maisvariados e criativos, a casa de onde saíram e em qual casa seapresentaram, quem organizou e quem participou.

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Estrela do Oriente, Cruz Vermelha, Ciganas, Sempre Viva,Falenas, Vivandeiras, Foliões, Estrelas em Grupo, Fuzileiros doAmor, Velhas Alegres, Caboclas, Barata, Aurora, Rosa da Noite,Peixinhos, Índios, Borboletas, Tirolezas, Garçonetes, Terno doAmor, Mamãe Sacode, Camponesas, Laranjeira, Gaúchos,Margaridas, Gondoleiros, Ueianas, Futuristas, Pescadores, GrupoPrimaveril, Espe-rança, Corações Unidos, Maria Antonieta, Filhosdo Amor, Boêmias, Rosas, Marinheiros, Flores, Andorinhas, Setado Amor, Manacás, Salôias, Orquídeas, Japonesas, São Salvador,Calouros.

Ah, e mais: casos engraçados acontecidos em alguns dessesmomentos.

Como certo dia, na apresentação de um Terno, uma dasparticipantes - jovem alegre, bonita e que se divertia em brincarcom os corações dos jovens - teve a idéia de passar uma tabocaem um jovem que também participava daquele Terno.

Mas, espera aí! ...passar uma taboca ... O que seria, naépoca, taboca ? Corro ao dicionário e lá está: 1. espécie debambu; 2. casa de pequeno negócio; 3. doce seco de aspectosemelhante a papel pardo. Imagino, logo, diante das três opções:a jovem alegre passando um bambu no jovem; passando umpequeno negócio no jovem; passando um doce seco no

jovem. Esta última seria a menos improvável das opções, diantedo sentido denotativo do termo taboca .

Não convencida, consulto a sabedoria popular e esta meexplica: passar uma taboca significava, à época, o mesmo quehoje quer dizer dar um fora !

Naquela época de vergonha à flor da pele, foi um Deus nosacuda! O coitado corou e apelou para as lágrimas. Mais tarde, ou-tro participante do Terno veio tirar a jovem para dançar e elarepetiu a mesma façanha. Porém, não foi feliz desta vez. O joven-zinho passou-lhe a mão na cara com vontade. A dona da casa, asorganizadoras e outras pessoas procuraram equilibrar o bom nívelde paz do ambiente.

...

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Noutro caderno conheço Alice Costa Figueiredo - uma dasprincipais organizadoras dos Ternos na cidade - numa conversaregistrada pelos traços firmes e minuciosos de Maria.

O caderno, como todos os outros, é pequeno, porém volu-moso. A capa é colorida e contém a imagem de filhotes decachorro dentro de um par de sapatos com flores ao lado. Na pri-meira página manuscrito em letras grandes, no centro, o título

INSTITUTO GEO GRÁFICO E HISTÓ RICO DEJUAZEIRO - BAHIA e as indicações De: 27 de fevereiro de1985, A: _________

(espaço em branco) - Maria Franca Pires -Cons. Luis Viana, 101 - Tel. 811 1984.

Os detalhes sobre a produção dos Ternos chegam a exaustão,desde descrição minuciosa do processo de confecção dos arcos eenfeites ao modo de organização da festa.

Para os arcos usavam vara de tamarindeiro. Raspavam eamarravam as pontas formando um U; deitavam no chão e colo-cavam pesos; depois de três dias, a vara estava seca com formadefinida em ponto de receber os enfeites.

Para os enfeites usavam papel de seda em várias cores, pape-lão, pó prateado, goma feita com tapioca, limão e sal paraconservar por uns três dias.

Todos os participantes dos Ternos, adultos ou crianças,pagavam uma taxa. Os rapazes pagavam cinco contos de réis, asmoças três contos de réis, os meninos pagavam dois contos deréis e as meninas um conto de réis. Quando três crianças de umamesma casa participavam do Terno, somente dois pagavam. Osorganizadores iam às casas buscar e deixar as crianças para osensaios.

O Jazz ou Orquestra que acompanhava o Terno, compunha-se dos seguintes instrumentos: trombone, clarinete, saxofone,piston e bateria. Os músicos eram pagos e só participavam doúltimo ensaio e no dia da apresentação. Quando o terno era decrianças, durava das 20 às 24 horas. O Jazz cobrava mais barato -40 ou 30 mil réis. Sendo de adultos, durava das 20 horas às 2 damadrugada. O Jazz cobrava de 50 a 80 mil réis. Zeca Viana,Laranjeira, Seo Né, Ariston, Militão, Zé Custódio, João Bodocó,

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Vadu Custódio, Alfredo, Pinheirinho, Quiabo, são alguns nomesde pessoas que tocavam no Jazz.

O Terno era apresentado em casas de família. Chegando àcasa, na porta da frente, entoava-se:

O senhor dono da casaSuas chaves são de ouroV enha nos abrir a portaQueremos ver seu tesouroV enha nos abrir a portaQueremos ver seu tesouro

Os organizadores propunham uma família para receber oTerno ou a própria família convidava. Quando o dono da casaconvidava o Terno, ele tinha que dar a comida e a bebida pra todaa gente.

O dono da casaÉ bom, ele dáGarrafa de vinhoDoce de araçá

Entoemos a vozA música e o somQue o dono da casaÉ franco ele é bom

Quando o organizador pedia para a família receber o Terno,ele arcava com a despesa de toda a comida, paga com dinheiroarrecadado.

Para o Jazz a comida só era servida depois da dança e constavade cachaça e conhaque, assado de porco, galinha assada, arroz efarofa. Num cantinho da página, como de costume, Maria registrauma peculiaridade sobre um dos músicos: O Sr. Zeca Vianadava uma despesa à parte porque só bebia leite .

Para os participantes do Terno com seus familiares e amigos,

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eram servidos licor de jenipapo, café preto com bolo, sequilhos epetas.

Para o Terno sair nas ruas, precisava de uma licença da Políciaque não era paga, mas dava total assistência na rua e na festa. Sedepois de todas as despesas pagas sobrasse algum dinheiro, esteera entregue ao pessoal da Polícia.

Tinha Terno só de homem, Terno só de mulher, Terno decrianças e Terno misturado - homem e mulher juntos.

...E esta é apenas uma das muitas viagens que se pode fazer

pela história de Juazeiro, embarcando nas páginas e mais páginasdos cadernos manuscritos por Maria Franca Pires.

Para se ter uma idéia, mapeando um único caderno que sefolheia, os números falam por si: nas suas 190 folhas, escritasfrente e verso e cantos mais estreitos, estão registradas 79entrevistas com 83 entrevistados, num apertado período de 3meses. Ela chegou a realizar até três entrevistas em um mesmodia!

A variedade de coisas pesquisadas vista de longe se delineiacomo um mosaico, uma colcha de retalhos, formando, assim, umgrande mapa da história cultural da cidade de Juazeiro e, talvez,da região.

Alfaiates - Parteiras - Futebol - Carnaval - Natal - Imprensa- Ternos - Reis de Boi - Congos - São João - Catatau - Judas -Festas - Serenatas - Assombração - Vapores - Lavadeiras - Alto-Falante - Rádio Juazeiro - Lampião - 1º Avião - Enchentes -Entrudo - Reforma da Igreja - Samba de Véio - Loucos - SemanaSanta - Jornais - Cantiga de Roda Bailes - Mãe d Água - Nêgod Água - Duendes - Jazz - Professoras Leigas - Filarmônicas -Teatro - Cinema - Batucadas - Passeio a Bordo - BrinquedosInfantis - Vapozeiros - Passeio na Rua d Apolo - Novenas -Rivalidade 28 X Apolo - Batismo - Pesca - Encantados do Rio -Times de Futebol - Blocos de Carnaval - Corridas de Cavalo - 1ªFábrica de Gelo, Picolé e Sorvete - Fábrica de Fubá de Milho -Funerária - Política - Marujada - Quermesses - Maestros -Naufrágios - Vivandeiras - Cruz Vermelha - Circo - 1ª Motorista- Vida a Bordo - Remédios Naturais.

UFA!

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É o registro da história que andava na cabeça do povo ,como Maria Franca Pires mesma costumava se referir à suapesquisa. Não estava escrita em livros de história - tão raroseram, na época, os que falassem de Juazeiro. Os poucos livrosdidáticos existentes vinham de Salvador e se limitavam a contaruma história da capital baiana.

- Mas como a gente tá em Juazeiro e vai estudar Salvador senem sabe Juazeiro?! - discutia Maria Pires com a amiga LourdesDuarte, ambas incomodadas com a situação.

- E aí ela criou aquele livrinho sobre Juazeiro, próprio daqui,mimeografado! - lembra Lourdes.

Nesse trabalho de conhecer e preservar Juazeiro, Mariaenvolveu, também, os seus alunos. Para incentivar-lhes a valorizaruma história que, por vezes, não vivenciaram, foram inúmerosos Questionários, Gincanas e Tômbolas, organizados pelaprofessora Maria Franca Pires.

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Maria Franca Pires.Com os cadernos ougravador em mãos(8), sempre pronta

para registrar ah is tó ria qu e an davan a cabe ça do po vo ,

fo i m u ito re qu is itadapela imprensa local

co m o fo n te deinformação ( 9 e 10 ) .

8

9

10

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- Minha alfabetizadora não me era muito agradável. A inda hoje,lembro-me da variedade de palmatórias, que enfeitavam sua mesa - recordaMaria Franca Pires em relato autobiográfico escrito no ano de1981 - Eu também, não era uma aluna muito desejada!

Os dias de castigo passados na alfabetização, de certo, mar-caram a vida de Maria. Difícil é entender como poderia ela seruma aluna não muito desejada !? Mas é fato que a imagem da

coleção de palmatórias ameaçadoras enfileiradas em cima da mesada mestra, perdurou em sua memória por toda a vida. Ali, nosbancos duros do B-A-BÁ, Maria conheceu o lado doloroso doque seria mais tarde uma de suas virtuosas qualidades como edu-cadora: a disciplina.

Nos idos do ano de 1930, quando aprendeu as primeiras le-tras, a prática disciplinadora do uso da palmatória era comum eperfeitamente aceitável por pais que viam na figura do professoro segundo pai , por isso, educar muitas vezes remetia-se a cas-

tigos e punições desse tipo.Mas a série seguinte traria à aluna, por ora assustada, o alívio

merecido.Com orgulho, Maria asseava-se cedo da manhã, já muito

clara em Juazeiro, e partia rumo à Rua Barão do Cotegipe. Ali

PISTAS DE UMA PROFESSORAEntre memórias de uma história escolar

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eram localizadas as Escolas Reunidas, onde, aos dez anos de idade,Maria cursou o 1º ano primário.

- Benção madrinha - estendia a mão à professora Maria JoséSant Ana.

- Deus a abençoe minha filha - a professora, e também suamadrinha de São João, correspondia carinhosamente, tomando-lhe a mão e beijando-a.

Foi num desses dias santos de 24 de junho que a meninaMaria escolheu Maria José para ser sua madrinha de São João.Como rezava a tradição, ela se abaixou e pegou um pau da foguei-ra, colocou-o em meio às duas, deram-se as mãos e, então, disse:

- São João dormiu, São João acordou. Boa noite minha ma-drinha que São João mandou.

A escolhida de Maria era uma preta boníssima e amiga ,que soube compensar os dias de castigo vividos na sua alfa-betização.

Cursa o 2º ano primário sob a instrução de Alzira Fernandesda Costa, numa escola estadual que funcionava na residência daprópria professora, localizada à Praça da Bandeira.

Daí, Maria ingressa no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora,onde vai concluir seus estudos em 1939, na vizinha cidadepernambucana de Petrolina, bem ali depois do rio.

- Meu pai entregou-me aos cuidados das irmãs Salesianas,não só para ter melhor aproveitamento nos estudos, como, princi-palmente, para receber uma boa orientação para a vida.

Clodoaldo, pai de Maria, sempre ocupado em constantesviagens de vapor, rio abaixo e rio acima como comandante daViação Baiana do São Francisco, decide pelo internato da filha,confortado pelo costume da época que dizia ser aquele recanto,ao cuidado das freiras, o melhor lugar para a formação da menina,órfã dos cuidados maternos desde os poucos nove anos de vida.

...Era o início do ano letivo de 1932. Maria trazia na maleta -

agarrada cuidadosa entre os dois pequeninos braços - umas poucasmudas de roupas. O barco pequeno - um paquete - sacolejante

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com o rebuliço da correnteza do Velho Chico, levava-a, agora,em remadas calmas, ao outro lado, à margem direita, à cidade tãoperto e tão distante que era Petrolina.

O pai ao lado, compartilhava de seu silêncio, olhava as águasque iam se perdendo no horizonte, ao longe. A menina de poucosonze anos ia, assim, fazendo-se forte.

Descer a bagagem no porto fluvial da cidade de pedra -como é conhecida Petrolina - pareceu fácil, mas a chegada emfrente ao casarão de muros altos, ao lado da Igreja Matriz, foidura. Os olhinhos arregalados da pequena Maria passearam poraquele lugar tão grande para a sua pequenez de criança e voltaram-se ao pai, inundados.

- É para o seu bem minha querida! - argumentou seu Coló,com voz trêmula, tomando a menina aos braços.

Maria apenas baixou a cabeça num ar de consentimento,porém misturado a uma irresistível birra infantil. Só anos maistarde ela entenderia aquele ato paternal de proteção e amor.

A entrada do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora estava cheiade famílias, de várias regiões vizinhas à cidade de Petrolina, quevinham deixar seus filhos aos cuidados das freiras Salesianas.Por motivos vários: meninas órfãs de mãe - como Maria -,qualidade em educação, excelência na formação religiosa, eprincipalmente, por que o Colégio firmou-se, por muito tempo,como a única opção de ensino regular nessas imediações do Valedo São Francisco, entre os estados da Bahia, Piauí e Pernambuco.

Depois de alguns soluços, Maria percebeu outros cho-ramingues à sua volta. Ela não estava só. Uma das irmãs querecepcionava os alunos novatos aproximou-se, agachou-se paraolhar nos olhos de Maria, acariciou os cachos castanho claros docabelo da menina - alvoroçados pelo vento ribeirinho - e beijou-lhe a testa.

- Seja bem-vinda ao nosso Colégio. Esta será sua nova casa.Por certo que sairá daqui uma honesta cidadã e boa cristã.

E dirigindo-se a Clodoaldo.

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- Vá tranqüilo pai. Nossa Senhora Auxiliadora olha por nós.Dali Maria foi levada pela irmã até seus aposentos. Um

quarto grande, com muitas camas enfileiradas e seus lençóis,impecavelmente esticados.

A capela ficava logo na entrada do casarão, onde eram feitasas orações da manhã. Ali, naquele lugar de devoção, podia-se vera imagem da Virgem Auxiliadora no centro do altar: um cajadona mão direita, o menino Jesus equilibrado à esquerda, pésdescalços; túnica rosada, um rosa clarinho com detalhes dourados;manto azul da cor do céu limpo, com delicadas flores tambémrosadas; a face calma e o olhar materno, acolhedor; uma coroaestonteante enfeitada de pedras azuis e vermelhas; o menino emseus braços abre os braços, fraterno e solidário.

Maria recebeu seu uniforme: uma saia azul marinhopregueada, blusa branca com mangas compridas, meias cor dapele que iam até o joelho, gravata azul marinho e sapato vulcabráspreto. Da entrega daquela farda obrigatória, ela ficara logosabendo que toda segunda-feira era dia de revisão: as alunasenfileiradas eram minuciosamente observadas pelas freiras quantoao comprimento das saias, estado das unhas, sobrancelhas, enfim.

Fora da sala de aula, havia pouca comunicação entre alunasinternas e externas. O enxoval das internas trazia o rigor do ensinodas freiras da época: um roupão para ser usado no banho, quedurava apenas três minutos e o chuveiro era desligado - era otempo suficiente para evitar o pecado.

Nas festas religiosas da cidade, o Colégio era presençaconstante. Nesses dias, adicionava-se ao uniforme uma boinaazul marinho e luvas brancas. As alunas, antes de saírem, deviamouvir os sermões das freiras para que não dessem atenção aospés raspados que ficavam ao lado nas calçadas - assim eram

chamados os rapazes que não tinham referência de nomes defamília ou de títulos e bens.

Os dias seriam longos à espera das férias, quando tomaria obarco de volta à margem esquerda daquele rio que a trouxera,mas que, generosamente, também a levava de volta ao carinho

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do pai, e por vezes, ao acalento dos avós, lá em seu berço, naantiga Remanso.

...Corria o ano de 1940. O governo de Getúlio Vargas criara o

salário mínimo em 1º de maio. O país entrava num processo deindustrialização, lento, mas já refletido na Constituição de 1937que dispunha sobre uma orientação político-educacional para omundo capitalista, sugerindo a preparação de um maior contin-gente de mão-de-obra para as novas atividades abertas pelomercado.

Na Bahia, a interventoria de Landulfo Alves acabara dedecretar a reforma no ensino normal baiano, dividindo-o emsecundário (cinco anos) e pedagógico (dois anos). No relatóriodas atividades da Secretaria de Educação, o professor Isaías Alvesconceituou que uma das características mais desfavoráveis docomportamento brasileiro era a excessiva liberdade depensamento e a falta de um sentido de disciplina lógica .

Para estabelecer um combate ideológico a essas falhas ,criou-se no curso pedagógico a disciplina História do Brasil e Edu-cação Cívica, definida como indispensável à formação de umaconsciência de unidade nacional. A propaganda e exaltação doEstado Novo foram, assim, estabelecidas em todas as escolas ecolégios.

O estado de Pernambuco, especialmente a interiorana cidadede Petrolina, vivia também o clima da nacionalização do ensino,com a exaltação do homem e das coisas brasileiras, um ideárioque aparece e acompanha o desenvolvimento de uma formaçãoeconômico-social capitalista. Mas, especificamente, via-se refletirna educação do sertão pernambucano era o fenômeno daruralização do ensino, representado pela colaboração da escolana tarefa de formar a mentalidade de acordo com a ideologia doBrasil-país-essencialmente-agrícola , operando, nesse sentido,

como um instrumento de fixação do homem no campo.É nesse contexto que Maria Franca Pires, formando-se

professora, em 03 de dezembro de 1939, vai desfrutar de sua

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primeira experiência como regente de classe primária ali mesmo,no conhecido Colégio onde passara oito anos de internato.

A convite da então Diretora do Colégio Nossa SenhoraAuxiliadora - Irmã Hortência - Maria ensina ali nos anos de 1940e 1941. Estes dois anos de atuação completaram seu curso deProfessora, pois o trabalho realizado era feito sob a fiscalizaçãode Ir. Maria de Lourdes Veloso, professora de Pedagogia,Metodologia e Psicologia, temperamento exigente e seguro.

- Desta experiência, transformei-me na professora que fui:cumpridora dos meus deveres. Sempre coloquei minhasobrigações acima de qualquer interesse. Sei, sem nenhumamodéstia, que fiz um excelente trabalho e contribui para aformação de muitas pessoas.

Maria segue, em 1943, para a cidade de Salvador. Vai prestarconcurso para o magistério primário. Fica na casa de uns amigosde seu pai Clodoaldo.

- Aprovada, achei que só deveria ser nomeada para Juazeiro,mas não conseguia.

A capital baiana vivia um período conturbado com acampanha do estado pela efetiva participação do Brasil na guerracontra o nazi-facismo.

Nessa época, era interventor o General Renato Onofre PintoAleixo, que se limitava a fazer presença de autoridade forte, quasesempre arbitrária, e deixava a administração do estado com osseus secretários. Foi castigado na Bahia por versos como:

Renato é nome de genteOnofre de santo éPinto é ave de penaA leixo! Que diabo é?

Enquanto aguardava a desejosa nomeação para lecionar emJuazeiro, Maria ocupou seu tempo, em Salvador, dedicando-se adar curso particular.

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Em 1945, fazia parte do grupo de professoras que iniciava aEscola do SENAI. A instituição instalada na capital baiana,funcionava no Barbalho, no prédio da Escola Técnica de Salvador.

Na revista mensal ilustrada A Capital, preservada no arquivode Maria Franca Pires, ela escreveu na capa:

Nesta revista tem meu retrato, como participante do grupo de Professoresfundadores da Escola do SENA I em Salvador - Ba, no dia 05/ 07/ 1945.

- Gostei da experiência de trabalho. Os alunos eram operá-rios na sua maioria.

Nos meses de março, abril e maio de 1947, Maria lecionouna Escola Abrigo dos Filhos do Povo, no bairro da Liberdade,que era dirigida pelo pai de Irmã Dulce, Dr. Augusto Lopes Pontes- segundo Maria um homem muito exigente .

Foi, então, nomeada como professora do estado para lecionarem Bom Jesus da Lapa. Lá, Maria leciona o segundo semestre doano de 1947, todo o ano de 1948 e 1949.

- Comecei minha vida de professora primária em Bom Jesusda Lapa. Foi uma experiência boa, bem distante de casa, da família,em um lugar que eu apenas conhecia de passagem.

De Bom Jesus da Lapa, Maria foi removida para Remanso.- Nessa remoção não fui muito feliz, justamente no ano de

1950, ano de eleições. Eu era uma grande admiradora de JuracyMagalhães e votei nele. E pelo fato de ter votado em Juracy e tersido transferida para Remanso por força política de Dr. Luis VianaFilho, fui perseguida pelo grupo do Partido Social Democráticoda época.

Por que foi perseguida?- Após as eleições estaduais de 1950, os políticos acharam

de cismar com todas as professoras que desejaram ver JuracyMagalhães, novamente, no governo da Bahia. Houve umverdadeiro rebu com as professoras que viviam semelhantesàs aves de arribação.

Assim aconteceu com Maria, estando em Remanso, sua terranatal. Teve uma primeira transferência para Sento-Sé, em 1951,não aceitou. Um Deputado Federal da UDN conseguiu a anulação

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da portaria que a transferira, e, através de outra portaria, Mariafoi reconduzida à cidade de Remanso.

Os políticos do PSD sentiram-se ofendidos e foramincansáveis na luta para a anulação da portaria que a reconduziuà cadeira de Remanso - eles tinham sido os autores da portariaque a transferira, antes, para Sento-Sé.

- Vinte e sete dias depois o Dr. Régis Pacheco, que tinhasido o concorrente de Juracy Magalhães e vencedor das eleições,transferiu a cadeira que eu ocupava em Remanso para a sede deJuazeiro, continuando sob minha regência.

Como são os políticos!? O que fizeram com a educação?!- Às vezes, paro e penso: por que, desde 1950, os políticos

passaram a utilizar as pobres professoras primárias comoinstrumento de demonstração de seu poder, da sua força políticaaos olhos míopes dos eleitores? Digo pobres professorasprimárias , porque professor primário é uma classe relegada aoseu próprio destino e quase em desuso, nos dias atuais. Elas, asprofessoras, não conseguem nem conscientizar os pais dos alunossobre as vantagens que eles poderão gozar se assumirem aresponsabilidade de orientar seus filhos em relação às obrigaçõesescolares; muito menos ter força para modificar suas opiniõessobre conceitos políticos. Senhores políticos procurem outra for-ma de aparecer diante do eleitorado. Há tanto o que fazer! - refleteMaria Franca Pires, tempos depois, já como professora aposentada,em autobiografia escrita no ano de 1981 e preservada em seuarquivo.

A consciência crítica da atuação de políticos e eleitores, unidaà sua característica de falar na lata , como certa vez a amigaAntonila indicara, renderam a Maria as perseguições de outrora,mas ela nunca deixou de dizer o que pensava.

- Os políticos são interessantes: acomodam tudo; o eleitor éque não é besta. Isto prova o pouco interesse que eles têm pelosetor de educação. E têm razão. As pessoas que sabem ler eassimilar o que lêem são PERIGOSÍSSIMAS! Ganhei com a

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fofoca política; vim para Juazeiro, meu sonho de toda uma vidade estudante. Muito obrigada senhores pessedistas daquelaépoca!

Assim Maria Franca Pires conseguiu seu grande sonho:ficar junto de seu pai, junto de sua família.

- E desde de 1951, todo o meu campo de trabalho foi aqui- conta Maria, referindo-se a Juazeiro.

É na cidade de Juazeiro que Maria vai ficar conhecida parasempre como a professora Maria Franca Pires . Mesmo depoisde se aposentar e exercer outras funções que não a de educadora,ainda assim, as matérias em jornais e revistas, e mesmo amemória das pessoas, falam da professora Maria Franca Pires .

...Naquele tempo, o nome das escolas era escolhido pelas

próprias professoras, assim como a sala e os móveis eramtambém elas quem providenciavam. As professoras prestavamconcurso e, ao serem nomeadas para trabalhar pelo Estado,ficavam encarregadas de toda a estruturação da escola.

- Eu que resolvesse meu problema. Era muito raro ogoverno dar algum apoio. Pagava x pro aluguel da casa. Vocêque fosse procurar sua sala de aula... Eu mesma a primeiravez... - E onde eu vou botar essa escola pelo amor de Deus? .Aí Deus me arranjou, me deu aquela que é esquina com a ruada 28. Tinha uma sala grande na frente. Comprei as carteirastodas. Feias! - lembra Lourdes Duarte.

A escola regida por Lourdes se chamava Padre Anchieta,localizada na esquina da rua da 28, numa casa azul. Ela contaque junto do salário das professoras já vinha o ticket referenteao valor para o pagamento do aluguel da sala.

- Não era doação não, como é que se chama? Esqueci otermozinho pra o aluguel da escola. Devia ser trinta reais,quarenta... Agora, tinha a fiscalização da delegada escolar! Elaia às escolas, via as coisas...

Maria escolheu para a sua escola o nome Artur de Sales ....

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E quem foi Artur de Sales? Qual o motivo da identificaçãoda professora do interior do estado com o poeta metro-politano - aparentemente distante?

A escolha de seu nome para a Escola de Maria não foi emvão. Afinal, Artur de Sales foi um poeta baiano que, apesar deesquecido pelos livros de literatura e história, é reconhecido nomeio acadêmico como o principal poeta baiano depois deCastro Alves.

Compositor dos famosos versos do Hino ao Senhor doBonfim, Artur de Sales morreu no ano de 1952 - período maisou menos compatível com a vinda de Maria Franca Pires paralecionar em Juazeiro e, portanto, com a fundação de sua escolaisolada. O nome da escola talvez tivesse, então, sido umahomenagem póstuma ao poeta.

Por certo que Maria chegou a ouvir estes versos na suaestadia em Salvador entre os anos de 1943 e 1947.

Glória a ti, neste dia de glória!Glória a ti, redentor que há cem anosNossos pais conduziste a vitóriaPelos mares e campos baianos

Pode ser também, que tenha tido contato com outrostantos escritos de Sales, afinal, ele escreveu sobre o mar, aslendas do recôncavo, as superstições dos pescadores , temasrecorrentes nas pesquisas feitas por Maria.

Mas o texto Bardo esquecido / Dor simbolista da jornalistaAndréia Santana, colhido no levantamento de informaçõessobre Artur de Sales, é mesmo um protesto bem atual contra ahistória que vai, aos poucos, pela mão do homem , virandopó. E contra isso, Maria já se indignava bem lá atrás, talvezquando guardara o primeiro número do almanaque de seu avôe cuidara para sua preservação.

Andréia Santana, usando as palavras como armas, rei-vindica pela lembrança de Artur de Sales que, sendo valorizada

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apenas entre acadêmicos e pesquisadores, vai se apagando namesma proporção em que os monumentos da história de vidado poeta viram pó.

A realeza da Escola Agrícola de São Bento das Lages, ondeo poeta foi bibliotecário desmorona. No município de São Fran-cisco do Conde, terceira vila fundada no recôncavo baiano, ondeSales viveu muitos anos com a mulher e os cinco filhos, restam,em sua memória, uma pracinha abandonada e a biblioteca da ci-dade, igualmente mal cuidada.

Em Salvador, onde nasceu e morou na velhice, nem isso.Nada na capital leva o nome de Artur de Sales, um dos membrosfundadores da Academia de Letras da Bahia, onde ocupou acadeira três.

É o sentimento de uma história que se perde...Contra o qual Maria lutou por toda uma vida. Guardando

coisas para que elas não sumissem, registrando histórias paraque elas não se perdessem no tempo, tomando conta de ummundo.

...A Escola Artur de Sales funcionava na casa mesmo de Maria

Franca Pires, na rua Conselheiro Luis Viana, em frente à casanúmero cento e vinte, onde morava, à época, Antonila da FrançaCardoso.

- Ela pegou metade da casa dela e resolveu fazer a escola,porque tinha essas histórias de se dizer - O aluguel mudou, aescola vai sair dali pra num sei onde . Aí então, ela resolveu: -Vou fazer minha escola na minha casa, que ninguém vai maisficar me mandando pra baixo e pra cima . E fez a escola nofundo da casa.

Dali, Antonila, a amiga e também vizinha de porta,presenciou momentos hilários de Maria como professora.

Certo dia, Antonila adentrou a casa da amiga para ver comotinha ficado a reforma e cumprimentá-la. Deparou-se com Marialevando a turma pela casa, como se fizesse uma excursão, echegara na parte principal, quando ela abria a porta do banheiroe dizia:

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- Aqui é o banheiro onde a professora toma banho, aqui ó ochuveiro! Aqui é onde a professora senta neste vaso pra fazer asnecessidades, aqui...

Antonila, espantada com aquela cena disse:- Meu Deus, o que quer dizer isso aí?! - e pôs-se a sorrir sem

acreditar no que via.Depois de mostrar a casa por inteiro - cozinha, quartos, sala

banheiro - Maria mandou os meninos de volta à sala de aula evoltou-se para recepcionar a amiga Nila que lhe observava àdistância e divertia-se.

- Diga, amiga! - cumprimentou Maria à visita da amiga.- Não, Maria, eu vim rapidinho aqui ver como ficou a escola.

Mas o que é isso? Os turistas na casa da professora! - indagouAntonila e pôs-se a sorrir.

E Maria tranqüilamente explicou:- Não. Essa é a turma nova. É que quando estou lá na escola,

eu não tenho onde guardar o material. O material é guardadoaqui em casa. Aí, quando eu digo assim ao aluno: - Vá lá emcasa e peça uma caixa de giz a Beré - referindo-se a Berenice,uma prima de Remanso que morou com ela por um tempo - Aí,quando o aluno volta, ele diz assim: - A casa da professora temum fogão, tem num sei que lá... . Aí, começa o ti, ti, ti da casa daprofessora. Então, pra num ter essa história de a casa daprofessora tem... , agora, quando começa uma turma nova, eumostro logo tudo da casa da professora.

E Maria levava os alunos pela casa, mostrando os cômodose suas coisas, e dizendo com aquele palavreado dela .

- A professora caga, mija, igual a todo mundo!...Muito exigente e rigorosa - como certa vez o internato no

Colégio das Freiras a fizera ser - Maria estava sempre atenta aosmínimos detalhes da formação de seus alunos.

- Caderno de menino tinha que ser aquela coisa. Gostavamuito de enfeitar as coisas com figuras, né. Recortava bem...Ensinava os meninos a recortar aquelas figuras, muito BEM

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pregadas. Fugiu uma linha do lugar: chega pra lá, chega pra cá!Letra, comportamento, maneira de sentar. Muito, muito, muitoexigente! - lembra Lourdes.

Parte da memória das aulas e instantes vividos por MariaFranca Pires na regência como professora primária ficou guardadaem seus cadernos. Num pequeno Diário de Classe , que resistiraao tempo, está materializada uma história que aconteceu entre asquatro paredes de sua sala de aula

Ali, nas páginas já um tanto amareladas e nas letrinhasdesenhadas com vagareza e cuidado pelos alunos, pude sentir osvestígios de um tempo.

Cada dia, um aluno registrou no pequeno diário, datado doano de 1957, como transcorrera a aula, acrescentando ao relatoum desenho caprichoso e curiosidades da rotina escolar, comono dia em que o aluno Carlos José Campelo Evangelista teve aliberdade de registrar:

A professora passou exercícios e tomou lição de ponto. Mandou fazerum álbum para entregar a nossas mães. Terminando de pregar as figurinhas,Carlos Morgan derrubou a carteira de José Milton e a professora deu umcocorote em Carlos Morgan e em mim quase que me mata de tapa .

... - Eu me lembro quando ela começou... Menina, ela era terrível!

- diz Antonila, com uma risada longa. E continua:- Ela dava uns esculachos nos alunos como se eles fossem

adultos. - Você não tem vergonha de vir pra escola com esse pésem lavar e num sei o que lá. Sua mãe é uma porca! Porque umamãe que tem um filho que vem pra escola desse jeito . Eu ficavahorrorizada! Com o tempo, ela adocicou!

- Ah, Maria Pires era uma professora muito competente,muito respeitada... - Perpétua sorri ao descrevê-la assim - Porque ela era enérgica! Num batia não! Mas a professora Maria Pi-res era respeitada!

No Diário de Classe , estão presentes o lado enérgico de castigar e exigir mas também aparece, naqueles relatosinfantis, o ambiente doce e aconchegante da escola e das aulas.

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Nos desenhos freqüentes, a Escola está normalmente retratadacom flores e a aparência de um espaço aprazível. Há, também,nos relatos, referências que indicam a dinamicidade das aulas,reconhecida pelos comentários de aprovação escritos pelos alunos.

Houve hoje na escola uma festa dos aniversariantes. Gostei muito,teve conto e poesia, as meninas compraram presente para a professora e tevecomida .

Hoje em minha escola fizemos um jogo sobre recordação de geografia;tinha o partido Brasil e Holanda. O que ganhou foi Holanda. A professoramandou trazer material para experiência de Ciências e marcou um ponto deHistória Pátria para o dia seguinte .

- Mas, ela, no começo, era braba mesmo. Eu via coisasincríveis! Mas, naquela época... As coisas são tão engraçadas...Hoje eu fico vendo... Se um pai fizer assim num filho - Antonilajunta os dedos polegar e indicador deixando entre eles umpequeno espaço -, os vizinhos vão pra delegacia e dão queixa.Naquele tempo a gente apanhava de cinto! - comenta Antonila,que assistia às cenas de camarote, de sua casa logo em frente.

Maria Emília Arapiraca foi aluna de Maria Pires e, depois,tornaram-se grandes amigas.

Estudando na Escola dos Artistas, certo dia, sua irmã Améliafoi substituir uma sua professora e, chegando lá, descobriu queMaria Emília não sabia fazer contas - de somar, dividir, multiplicarnem nada. Aí, então, procura-se uma professora!

- Aí foi que eu vim estudar na escola de Maria Pires noturno da manhã, porque era uma professora muito rígida ecompetente. E o aluno lá não tinha negócio de passar porque erabonitinho e era filho de doutor fulano não. Ela tratava o pobreigual ao outro da classe, lá todos eram iguais. Num tinha distinçãode jeito nenhum de aluno. Na casa dela eu era amiga, era tudo.Na escola, eu era uma aluna como qualquer outra. Num tinhanegócio de privilégio, num sei o quê.

Maria Emília revela que sempre foi uma aluna muito levada,por isso, talvez, lembra-se tão bem dos esculachos da professoraMaria Franca Pires!

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...Como numa certa manhã de agosto do ano de 1954. Os

alunos da Escola Artur de Sales já estavam acomodados em suascarteiras de dois lugares - Maria Emília sentava-se sempre aolado de seu colega Edílson - e a professora Maria Franca Piresregia sua aula como de costume.

De repente, o alto-falante fixado no poste da esquina vibrapedindo atenção: O Presidente Getúlio Vargas suicidou-se! .Anunciava.

Divulgada a sua morte, acontecida ao dia 24 de agosto, elaalcançou o país numa onda de consternação e protesto. Milharesde manifestantes choraram o presidente morto de forma trágica,prestando-lhe homenagens em comícios e passeatas queocuparam ruas e praças, exigindo respeito à democracia do país.

Em Juazeiro, a notícia chegou com atraso, sendo transmitidarepetidas vezes pela ZYN-21-Rádio Juazeiro e repercutida pelosserviços de alto-falantes espalhados pelas ruas. A cidade ficouperplexa diante do acontecimento trágico e a ordem era para que,em respeito e luto, as atividades fossem suspensas.

Rompendo o silêncio que se instaurou na sala de aula, aaluna Maria Emília, impulsivamente, vibrou:

- Graças a Deus! Só assim tem um feriado nessa escola!A professora Maria Franca Pires, ouvindo aquele comentário,

imediatamente voltou-se à aluna repreendendo sua atitude.- Que ignorância! É o presidente da república!E o sermão rendeu uma lição sobre patriotismo e respeito

aos símbolos nacionais que Maria Emília jamais esqueceria....- Menina, Maria caiu em mim dos cachorros abaixo! Mas a

gente queria era folga, porque Maria Pires tinha aquele horáriorígido. A aula se começasse sete e meia, a gente tinha que estar lásete e meia. E saía onze e meia. Era tudo certinho! Mas também,foi onde eu aprendi matemática e passei a gostar de matemáticafoi com ela - recorda Maria Emília.

...

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Ano de 1954. A Associação Comercial Industrial e Agrí-cola empossava nova diretoria; era organizado o I Salão de ArtesPlásticas de Juazeiro e Petrolina, representando um esforço dosabnegados amantes das artes; inaugurava-se à Rua Visconde doRio Branco, a Biblioteca do Círculo Operário; era anunciada aeletrificação da Estrada de Ferro Leste Brasileiro; a ZYN-21-Rádio Juazeiro organizava nova e atraente programação,adquirindo o speacker Alicio Gil Braz; o cantor Luís Gonzagarealizava espetáculo no Cine-Teatro São Francisco, sendo o showirradiado por aquela emissora de rádio local; realizava-se na capitalbaiana o II Congresso Estadual de Prefeitos, ao qual nãocompareceu nenhum representante de Juazeiro; a cidade sofriacom a deficiência no fornecimento de energia elétrica, agravadapelo alto custo do óleo diesel; eram fundados o Rotary Clube e oClube de Caçadores.

Nesses novos ares que pairavam sobre a cidade de Juazeiro,favorecendo a aglomeração de pessoas em torno dos mais diversosfins, surgia a Associação de Pais e Mestres que viria a funcionarna cidade por 20 anos, tendo, nesse tempo, Maria Franca Pirescomo presidente.

Fruto de um aprendizado que ela trouxe consigo desde aEscola Normal, e que primava pela idéia de que o relacionamentoescola-família era indispensável ao bom andamento dos trabalhosescolares e à formação da criança, a Associação de Pais e Mestresse tornou em 1954 - quando de sua fundação - uma oportunidadereal de pôr em prática esse ensinamento.

Em torno desse ideal, uniram-se a Maria Franca Pires asprofessoras mais expressivas da época. Terezinha FerreiraOliveira, Judith Leal Costa, Maria de Lourdes Duarte, OndinaFarias, Renilde Teixeira Luna, Guiomar Lustosa Rodrigues nãovacilaram em apoiá-la.

Naquele tempo, as instituições de ensino existentes emJuazeiro eram as Escolas Isoladas. Cada uma dessas professorastinha a sua escola e ali ensinava todas as matérias e todos os anosdo curso primário.

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- O que tivesse pra ensinar era uma professora só! As criançasdaquela rua freqüentavam a escola mais próxima. E, naquelegrupo, vinham meninos da classe média, vinham meninos pobrese vinham meninos totalmente carentes. Então, estes não tinhamdinheiro pra cadernos nem pra lápis. E aí Maria ia às casas emque as pessoas podiam mais e pedia: - Em vez de comprarum caderno pra seu filho, você manda dois, pois tem um alunoque não tem. Ou então, me dá quinhentos réis pra completar odo que não tem . E começou a fazer essa coisa - lembra Antonilasobre o início da Associação.

- Ela gostava mesmo de PEDIR! Esse negócio de doação.Eu dizia: - Vô nada Maria! . Aí ela se irritava: - Você é idiota!Você tá pedindo pra você? . Eu digo: - Eu não! . - Pois, então,chegue e peça. Deu, deu, num deu acabou a história . Ela diziacom aquela cara de pau dela - conta Lourdes, divertindo-se comas lembranças da amiga.

Depois da primeira reunião de contato com os pais, realizadano dia 30 de abril do ano de 1954, acontece a reunião de instalaçãoda Associação de Pais e Mestres, no dia 09 de maio do mesmoano. Com total aceitação da idéia pelos pais e professoras, a enti-dade foi instalada na cidade de Juazeiro naquele dia 09, emhomenagem ao Dia das Mães.

A Associação foi, então, formada por uma Diretoriacomposta de um Conselho Geral e um Conselho Auxiliar. OConselho Geral era formado de professoras e o Conselho Auxiliarde pais. Cada qual tinha presidente, vice-presidente, doissecretários, dois tesoureiros e três fiscais.

A primeira diretoria da Associação de Pais e Mestres deJuazeiro, aprovada em votação nos dias 13, 20 e 25 de abril de1954 foi composta: Presidente - Maria Franca Pires; Vice-presidente - Maria de Lourdes Duarte; 1ª Secretária - Celita DinaCunha; 2ª Secretária - Teresinha Ferreira; Tesoureira - RenildeTeixeira Luna; Conselho Fiscal - Maria Ondina Farias e GuiomarRodrigues Lustosa.

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De acordo com o estatuto publicado no Diário Oficial de09/ 05/ 1956, eram considerados sócios todos os pais dos alunose professoras que desejassem cooperar para o bem daAssociação , sendo divididos em duas categorias de sócios: osbeneméritos, que contribuíam, mensalmente, com importânciade Cr$ 5,00; e os auxiliares, que contribuíam com Cr$ 2,00 mensais.

Dentre as obrigações desses sócios estavam: o pagamentoda jóia - de Cr$ 10,00 para os beneméritos e de Cr$ 5,00 para osauxiliares; zelar pela assiduidade, pontualidade e asseio dos alunos,ajudando a escola na obra da educação; fazer a propaganda daAssociação na escola; e, dentre outras, comparecer às reuniões.

O estatuto da Associação de Pais e Mestres previa tambémque a realização de reuniões ordinárias se faria mensalmente eextraordinárias quantas vezes quanto neces-sárias.

A rt.6° - Em cada reunião será debatido um assunto sobre educação,higiene, etc., ficando a palestra a cargo de uma professora ou pessoaescolhida pelo Conselho Geral.

De início o trabalho era feito através de reuniões em cadasegundo domingo do mês, com pais de alunos que freqüentavamas escolas regidas pelas professoras fundadoras da organização.Era convidado um profissional para conversar com aqueles paissobre assunto de caráter educativo. Logo em seguida eramentregues os boletins com o resultado do aproveitamento dosalunos e os pais conversavam com os professores acerca dosseus filhos.

Maria Emília, que fora aluna de Maria Franca Pires no quartoano primário, lembra da exigência da professora e presidente daAssociação de Pais e Mestres para que os pais comparecessem àsreuniões.

- Todo mês tinha uma reunião de pais e mestres - porque elaqueria estar em contato com os pais dos alunos. Só sei que meupai não ia e não deixava minha mãe ir. Quando era na segunda-feira ela começava né: - Éh, é porque os pais não dão valor aos

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filhos. Tem um bocado aqui de cachorro sem dono . Menina,mas aquilo eu chorei! Pra me acabar.

Depois as reuniões passaram a se realizar em cada escola. Adiretoria da Associação reunia-se com as professoras, escolhiamjuntos um assunto e, cada qual, desenvolvia em sua escola.

Foram abordados temas como A maturidade dos pais , Osdefeitos dos pais , Castigos e recompensas , Ciúme infantil ,Espírito de família ou o que os filhos esperam do lar , O papel

da mãe no lar , Autoridade paterna , A educação religiosa integrao adolescente , Como preparar a criança e o jovem para oslazeres , Educação sexual , Como fazer do meu filho um bomestudante , A insolência do adolescente .

As palestras eram momentos de troca de experiênciaseducativas, através da análise da atuação dos pais e mestres nolar, na escola e na comunidade.

- Mas, era uma grande empreendedora, Maria! Não era deesperar pelo governo não. Ela queria uma coisa, ela fazia do jeitoque dava, com o material que tinha, com o apoio dos amigos, dopessoal da classe... Ela nunca ficou de braços cruzados esperandoque a atendessem! Era muito dinâmica e pé no chão! Não viviacom a cabeça na lua, sonhando com o impossível não lembraAntonila.

Como presidente da Associação de Pais e Mestres, MariaFranca Pires realizou vários cursos de promoção cultural erenovação do professorado, como: em junho de 1967 o Curso deOrganização familiar, com a professora Maria Junqueira Schimidt;em março de 1968 o Curso de Literatura Infantil, com a professoraCorina Maria Peixoto Ruiz; e em maio de 1968 o Curso deMatemática Moderna, com a professora Wanda Knüpfer.

Em relatório das atividades do ano de 1968, preservado emseu arquivo, Maria registrou:

Os cursos realizados deram à comunidade excelente ocasiãopara atualização de métodos e comprovaram o trabalho que aAssociação realiza a favor do bem comum .

A história do uso do mimeografo é um exemplo disso.

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...Houve um tempo em Juazeiro em que as provas eram feitas

à mão pelas professoras. Chegava-se antes, as questões eramescritas no quadro, depois é que se abria a sala para que os alunosentrassem, copiassem e respondessem. Todo esse processo eramuito demorado e cansativo.

- Não havia livros didáticos para os alunos. Isso, também,era muito difícil! Era tudo copiado. Professor chegava, dava aaula dele e a gente copiava tudo. Alguns professores ditavam: -Hoje nós vamos estudar... E todo mundo ta, ta, ta. E esperava

até que copiasse tudo - relata Antonila, entre os risos freqüentesprovocados pela lembrança.

- E Maria como presidente da Associação de Pais e Mes-tres mandou comprar... Como é que chamava Thomázia? -pergunta Perpétua.

- Mimeografo? - responde perguntado Thomázia.- É. Mimeografo! Aí, ela como presidente da Associação de

Pais e Mestres, ela mandou buscar o mimeografo em Salvador epassava as provas da gente. Aí, nós deixamos de ter o trabalho decopiar aquela prova TODA na mão! - lembra Perpétua.

Antonila recorda que, na época, não existia xerox, nem nadadisso. Era mimeógrafo. Era a álcool. E, às vezes, se pusesse álcooldemais dava uma borradeira roxa na mão.

- E ela começou a imprimir as provas pros alunos da escoladela. Foi quem primeiro imprimiu prova pra aluno! E as outrasescolas começaram a pedir e ela dizia assim: - Traga o papel .Mas o álcool era dela, o tempo era dela...

Chegou a um ponto em que Maria estava rodando papelde prova e também os pontos - o conteúdo das matérias queera dado pelos professores e aos quais se cha-mavam pontos- pra todas as escolas de Juazeiro.

- Começou aí a história de livro impresso. Mas, impresso demimeógrafo e era ela! E só dizia: - Tragam o papel! - revelaAntonila.

...

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Além da introdução do uso do duplicador a álcool no Setorde Educação da comunidade juazeirense - que se tornou um gran-de auxiliar da professora na época - e da promoção de reciclagemdo professorado, através de diversos cursos, a Associação de Paise Mestres de Juazeiro, durante seu período de atuação de 20 anos,foi responsável por obras importantes para a educação local. Acitar:

Divulgação das comemorações do Dia das Mães e Diados Pais nas escolas, para que esses dias fossem festejados emseu verdadeiro sentido; impressão de boletins, mapas de exames,folhas de matrículas, caderneta de notas para o professor;organização de uma Biblioteca Infantil; criação de Clube dosAmigos da Biblioteca Infantil, com a finalidade de angariar fundospara a aquisição de livros; promoção de festas para comemorardatas cívicas e angariar fundos para realizar determinadostrabalhos; construção de uma sede para a Associação de Pais eMestres na rua Cons. Luis Viana; organização do Bazar daAmizade, que constava de recolher o inútil, torná-lo útil e dar aquem precisasse; doação de material escolar aos alunos que neces-sitassem; realização de Curso para Noivos , seguindo a orien-tação do Padre José Gilberto Luna, com o desejo de formar nacomunidade, famílias equilibradas, conscientizadas das suasgrandes responsabilidades .

Assim, a Associação se fez atuante na comunidade da época(1954-1974), cumprindo seu ideal de buscar no relacionamentoescola-família a educação integral da criança no convívio no lar,na sala de aula e na comunidade, sendo reconhecida por Lei Muni-cipal (nº 649 de 11/ 09/ 1967) e Lei Estadual (nº 2.531 de 18/ 05/1968) como Utilidade Pública.

...Certa vez, já como professora aposentada, Maria refletiu

sobre sua vida na regência de classe e concluiu:- Realizei-me como professora primária. Gosto de olhar para

o passado e rever aqueles meninos, que me ajudaram nestarealização e, hoje minha alma vibra de entusiasmo ao vê-los

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adultos organizando suas vidas, cooperando no progresso dascomunidades onde vivem, como médicos, engenheiros, advo-gados, agrônomos, professoras, bancários, funcionários públicos,domésticas, freiras, principalmente, mães de família. Todosbrilhando como as estrelas do céu e me enchendo de alegria, nooutono da vida, através dos convites de formatura, de casamento,nos encontros públicos. Deus que os guie nas estradas tortuosasda vida...

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Memórias de uma Pro-fessora... Comemora-ção do 30º aniversáriode formatura em 03/12/1969 (11 e 12). Mariaindicada na Revista ACapital como partici-pante na fundação daEscola SENAI em 05/

07/1945 (13).

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Almoço dasprofessoras no

Clube Comercialem 36/07/1959 (14).O Diário de Classeda Escola Artur de

Sales de 1957,preservado no

arquivo de MariaPires (15).

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O trabalho naAssociação de Pais eMestres preservado

em fotos edocumentos

guardados no arquivode Maria.

Curso de LiteraturaInfantil com CorinaRuiz em 19 6 8 (16 e 17) ,Curso de OrganizaçãoFamiliar Maria Schimidtem 1967 (18 e 19 ) eCertificados (20 e 21).

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Certo dia, um jornalista indagou:- Maria, a partir de quando você começou a se interessar por

pesquisar a história de Juazeiro e por quais motivos?E ela respondeu, firme:- Eu, perguntando a mim mesma, não sei se houve algum

motivo para entregar-me a este trabalho da maneira que me entre-guei. E acho que se uma pessoa, por exemplo, disser, a partir deagora eu vou pesquisar a história de Juazeiro ou a história daterra onde eu nasci, ou a história de qualquer outro lugar e cole-cionar coisas, ela não vai durar nesse trabalho nem seis meses,porque essa coisa é muito complicada. Todo trabalho só temcontinuidade se estiver dentro da pessoa.

Começou pelas coisas do avô, Trajano Torres Bandeira: amáquina alemã, uma caixa de música, um gramofone, umalmanaque luso-brasileiro do século XIX, um almanaque lítero-comercial lançado em Juazeiro no ano de 1910.

- Eu andava por aí, mas, quando chegava em casa, sempreabria as gavetas para ver se ele (o almanaque) estava no mesmolugar. Então fui, desde menina, juntando essas coisas...

Assim, guardando coisas, Maria Franca Pires fez de sua casa- na Rua Conselheiro Luis Viana nº 101 - uma espécie de Museu.A casa ficou mesmo conhecida como o Museu de Juazeiro .

MARIA FRANCA PIRESValente de Remanso - Lord Juazeirense

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Ali, na esquina da Avenida Adolfo Viana com o fundo da rua da28, Maria guardava a história da cidade e pessoas sempre recorriamao local em busca de informações - estudantes e escritores, curio-sos e amigos, amantes da cidade.

- Jamais enfeitaria as minhas paredes com quadros de flores,com paisagens, essas coisas. Acho bonito, mas bem longe da minhacasa. Dou mais valor a quadros assim: fotografias de Juazeiro,que sirvam de documentos. Isso pra mim é que tem sentido.

Muitos lembram daquela casa-museu...- A casa dela era muito agradável! Porque ela colecionava

artesanato, tudo que era de Juazeiro, por exemplo: roupa devaqueiro. Ela tinha todos os elementos do vaqueiro ali, pregadosna parede. Ela tinha carranca, tinha num sei o quê. Aí cada umdesses objetos ela tinha muitos, uma variedade. Então a casa, deonde você entrava, todos os quartos, banheiro...

- Até no banheiro?! - interfiro espantada.- Todos os cômodos! A partiiiir..até no banheiro! Tudo ali

era cheio de decoração, era cheio de penduricalhos. Todo lugarque você entrasse tinha algum tipo de penduricalho, se não tivessevários. A casa era, digamos assim, um MUSEU. Era muitointeressante a casa dela!

Movimentando as mãos para mostrar onde as coisas erampenduradas, Antônio Carlos Coelho de Assis - Coelhão - revelasuas lembranças daquele lugar, onde, por vezes, estendeu as horasde trabalho como assessor de Maria no Departamento de Culturae Turismo de Juazeiro a agradá-veis reuniões e conversas na intimi-dade de sua casa-museu.

Marta Luz, que à época, lá pelos idos de 1977, figurava comoa secretária de Educação e Cultura do governo vigente - econvidara Maria para assumir o Departamento de Cultura eTurismo - vez ou outra era chamada a jantar ou almoçar naquelacasa singular. E ela jamais recusou tais convites.

- Sua casa era, realmente, um museu de baús, baús, baús;caixas, caixas, caixas; quadros, quadros, quadros; fotos, fotos, fotos;carrancas, carrancas, carrancas; santos , santos , santos .Eram quadros de familiares e ancestrais de Juazeiro. Das enchentes

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famosas do rio São Francisco inundando a cidade. Da belaEstação Ferroviária, hoje demolida. Eram carrancas velhas, car-rancas novas, carrancas feias, carrancas bonitas, carrancas feitasem Juazeiro, carrancas feitas acolá, bem longe. Eram santos dadevoção. Santos feitos a mão. Santos de madeira. Santos de gesso.Santos de todos os tipos...

Num desses almoços e jantares, em sua casaimpecavelmente limpa e asseada, enquanto conversam, Martalhe disse certa feita:

- Se alguém me perguntar onde é que você mora, eu direi:no museu da esquina, na rua atrás da 28.

Maria ria e comentava:- Você não estará fazendo mais que sua obrigação, sua fresca!...Daquela casa, não existe mais nenhuma referência concreta.

Ela foi demolida há mais ou menos dois anos. Quando tomamosconhecimento, a casa já estava vindo abaixo. Tivemos tempo,apenas, de fotografar seus destroços. Seu piso antigo, desenhadode formas geométricas em preto e branco ficou registrado pelanossa câmera denunciante. No seu lugar, foram construídosprédios de lojas comerciais.

...Marta Luz lembra de Maria com uma descrição primorosa.

Para ela, Maria fora a não juazeirense mais juazeirense queconhecera. Aproximaram-se tão logo Marta adquirira a RádioJuazeiro, lá pelos idos de 1970 ou 71.

- Maria se acercava de toda e qualquer manifestação culturalque surgisse na terra de seu coração, sem o mínimo preconceito,fosse qual fosse a manifestação, viesse de onde viesse. E, a bemda verdade, a Rádio Juazeiro se fez assim quando sob minhaliderança.

Posteriormente, a amizade entre as duas aprofundara-sequando, em 1977, Marta, assumindo a Secretaria Municipal deEducação e Cultura de Juazeiro, convidara Maria, por indicaçãodo então vice-prefeito Joseph Bandeira, para ser a coordenadorado Departamento de Cultura e Turismo daquela Secretaria.

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- Aí convivemos intensamente e, desde então, entre nósduas cresceu uma sadia e fértil amizade. Maria - assim eu a cha-mava sempre - era imensamente afetuosa. Sem amarguras, gos-tava de gostar das pessoas e dava considerável valor às mesmas.Chamavam-me atenção sua elegância, charme e bom gosto comque sempre se trajava. Maria era caprichosamente limpa echeirosa e estava sempre bem vestida. Da roupa do trabalho àda festa, era-lhe impecável o bom gosto, o cuidado em combinaresteti-camente as cores, os tecidos e adornos. Considerava umdesrespeito uma pessoa chegar perto de outra com mau cheiroou, mesmo, sem cheiro agradável de asseio e boa perfumaria.Impressionante como era asseada e recendia bem!

...Maria Franca Pires era prima do pai de Odomaria Rosa

Bandeira Macedo - Everton Bandeira. Mas não era uma primaíntima. Everton e Clodoaldo sim foram íntimos. Nessa época,Odomaria era ainda muito menina e lembra-se apenas de ouvirsua mãe contar.

- Por que meu pai era enfermeiro prático, então ele era quecurava metade do povo aqui. Na época, os médicos iam às casase papai era uma extensão do médico. Então o pai dela ficoumuito doente e ela era filha única, já não tinha mais mãe eminha mãe dizia - Ah, porque, quando Clodoaldo ficou doenteEverton ficava lá, ia lá todo dia . Tinha todo um cuidado assim,uma aproximação muito grande.

Odomaria cresceu sabendo desse parentesco com MariaFranca Pires a vida inteira e sabendo - pelos comentários queouvia dos adultos - que ela era professora. Uma professorasuper rigorosa!

- Inclusive minha mãe dizia - Filho meu nunca vai estudarcom Maria Pires, porque em filho meu só quem bate sou eu .E ela tinha a fama de botar os meninos de castigo e de bater.Mas ela era uma pessoa, assim, que chamava muita atenção e queandava na minha casa em alguns momentos.

Nesse meio tempo, entre a infância e a adolescência deOdomaria, a relação entre ela e Maria Pires se limitou às convenções

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de um parentesco e a uma idéia da professora rígida , sobre a qualapenas ouvia falar.

Aproximaram-se de fato, já muito depois, no ano de 1977,quando Odomaria estava formada em História e pós-graduada emAntropologia, pela Universidade Federal da Bahia.

- Neste meio tempo, Maria Pires foi chamada pra ser coor-denadora do Departamento de Cultura e Turismo da Prefeiturana gestão de Arnaldo Vieira e meu irmão era o vice-prefeito dele.Então ela convidou a mim e a Coelhão, para sermos comoassessores dela no trabalho com a cultura. E então a gente foi.

Nesse período que trabalharam juntas no Departamento deCultura, e posteriormente, com o nascimento das filhas Kizzy eIabi - filhas de Odomaria - entre projetos, crises e confissões,Maria Pires e Odomaria Macedo se tornaram amigas íntimas.

- Até nesse ponto de ser mais confidente uma da outra, co-mo mulher mesmo. Embora ela uma senhora da idade de minhamãe, mas, talvez, porque não fosse minha mãe - Odomaria sorri,divertindo-se -, a gente tinha uma abertura muito grande econversava muito sobre algumas particularidades oupeculiaridades que são mais de mulher.

Essa outra Maria que Odomaria passou a conhecer noconvívio do trabalho e da intimidade era, em suas palavras, umafigura . Não passava desapercebida em nenhum lugar, por queera uma mulher sempre muito arrumada, muito empertigada!

- Andava sempre de salto! Quando ela não estava de saltoalto, era como se ela tivesse, porque era sempre tão ereta, tãopescoço pra cima. Ela adorava batom! E só usava batom ver-melho! A maquiagem dela era praticamente essa, mas eram todosos dias! - lembra Odomaria e revela - Nunca me lembro de MariaPires sem batom. Batom vermelho!

Entre, os risos e por vezes gargalhadas provocados pelarememoração dos trejeitos de Maria Pires, Odomaria contadetalhes da vaidade e cuidado com a aparência que a amigademonstrava ter.

- Maria dizia: - Meu cabelo é ruim , e naquela época quemtinha cabelo ruim tratava dele com bobis. E ela vivia sempre com

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o cabelo arrumado, não sei que horas ela botava os bobis, porqueeu não me lembro dela de bobis, mas ela sempre tava com ocabelo arrumado! E ela sempre dizia: - Vixe Maria, o cabelo játa enrolando! . E quando chovia fazia brincadeira: - O cabelo jávai desmanchar. Num quero tomar esse chuvisco não, vaidesmanchar meu cabelo! .

E a descrição de Maria se estende aos acessórios e atitudes,de modo que chego a visualizá-la tal qual delineia a memória deOdó, como é chamada pelos amigos mais chegados.

- Gostava muito de usar colar! Uns colares de bolota, assim,que pareciam os colares de minha mãe. Ela tinha vários colaresde bolota e brincos também de bolota. Ela era uma pessoa quesempre estava bem vestida, bem arrumada. Era uma pessoa muitoaltiva sabe. Muito altiva! Parecia uma mulher imbatível, em tudo!Mas ela era uma pessoa também muito fácil de se envolver afeti-vamente com as outras pessoas.

E continua.- Maria Pires era de Remanso e ela fazia questão de dizer: -

Eu sou de Remanso, minha valentia é de Remanso! . Porquenaquele ABC do São Francisco, Remanso é chamado deRemanso da Valentia . E ela tinha a valentia de Remanso, mas

era uma PAIXÃO por Juazeiro!...A notícia soou nas ondas do rádio: Um grande lago seria

construído e inundaria tudo .No ano de 1972, o governo enviara pessoas às áreas que

seriam atingidas a fim de comunicar diretamente ao povo aconstrução da grande barragem e suas conseqüências. Pararepresar água e regularizar a produção de energia na UsinaHidrelétrica de Paulo Afonso, o lago da barragem de Sobradinhocobriria uma área de 4.214 quilômetros quadrados.

Assim, as cidades baianas de Remanso, Casa Nova, PilãoArcado e Sento Sé seriam invadidas pelas águas caudalosas doVelho rio Chico e mais de 70 mil pessoas, atingidas e expulsas deseus portos. As populações diretamente afetadas viviam um climade fim de mundo.

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...Num desses dias em que se reuniam e discutiam sobre a

vida, a cidade e tantas outras coisas, Antonila junto com MariaPires, Joseph Bandeira, Marta Luz e Laíse Luna - entre outraspessoas - conversavam sobre a maneira como iam se destruir asquatro cidades, sem haver um mutirão cultural.

E aí pensavam:- E a cultura dessas cidades vai submergir junto com a parte

física? E depois, o que se vai contar dessas cidades? E falavamde Atlântida - Vai sumir, aí um dia vão dizer que é mentira, quenunca existiu, vai se perder no tempo.

E, quando estavam devaneando em torno disso, filosofando,Antonila mostrou-se revoltada com o descaso dos administradorese disse:

- Eu não entendo porque é que o governo estadual nãomanda uma equipe de professores e de pesquisadores fazer umlevantamento nessas cidades e registrar isso!? Isso é um absurdo!

E Maria:- E porque você que está tão revoltada, não pega sua caneta

e seu caderno e vai fazer esse levantamento?Antonila, espantada com aquele negócio retrucou:- Eu?E Maria:- Sim! Seu irmão não tem um Jipe? Você não vive aí de Jipe

por esses interiores? Você tem máquina fotográfica e temgravador. Está esperando o quê pra fazer esse negócio? Você temobrigação de fazer isso Antonila, porque você tem capacidade!

E Antonila, então, muito obediente quando lhe dão ordensassim, nesse tom, concordou:

- Tá bom!E começou a fazer um levantamento de pesquisa que

posteriormente foi publicado em um livro com o nome NossoVale, seu Folclore Beira Rio , com histórias das manifestaçõesfolclóricas, religiosas, populares de Remanso, Sento Sé, PilãoArcado, Casa Nova, Petrolina, Santa Maria, Juazeiro, Maçaroca.

...

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Maria Franca Pires nasceu em Remanso, ao dia 5 de novem-bro de 1921. A casa onde nasceu era localizada na Fazenda Salinase foi construída por seu bisavô materno - José Dezidério da Silva,Major da Guarda Nacional e fazendeiro - por volta do ano de1886.

As portas foram compradas em Remanso e trazidas paraSalinas em burros. A madeira veio de Pilão Arcado em carro deboi: os caibros de pau d arco, as ripas de umburana de abelha e aslinhas de aroeira. As paredes externas tinham cerca de 60 cm delargura. Os pedreiros vieram de São Raimundo - Piauí. Omarceneiro foi o Sr. Antônio Lúcio, do lugarejo Maravilha,distante cerca de 10 quilômetros de Salinas.

Seu Dezidério gastara na construção 5 contos de réis,dinheiro adquirido vendendo gado em Feira de Santana a 20 milréis cada boi. O bisavô de Maria negociava também com tecidoscomprados em Feira de Santana.

...Toda essa descrição minuciosa da casa onde Maria nasceu,

ela própria deixou registrada, escrita a lápis apressadamente, numapágina de um de seus cadernos. Sob o título Minha Casa , estepedaço de sua história de vida - que inclusive acontecera numperíodo anterior ao seu próprio nascimento - venceu o tempo e,chegando até Maria, através de suas pesquisas e andanças, pôdechegar até o presente momento.

Tivesse Maria vivido na antiga Remanso e a memória dacidade, talvez, estaria agora resguardada entre seus papéis. Mas,distante de seu berço, ela se pôs a guardar Juazeiro.

Ao tempo em que se apaixonava pela cidade de sol de ouroe caatingas ressequidas, rio de prata e carrancas coloridas - comoreza o hino do centenário de Juazeiro - Maria sentia de longe aagonia de Remanso, sua terra natal, ameaçada de morte pelas á-guas do lago artificial de Sobradinho, que se projetava aos poucos,para inundar as cidades ribeirinhas.

Vindo muito cedo morar em Juazeiro, aos ligeiros dois anosde idade, Maria sempre voltava, ainda criança, para aquela cidade,para a sua casa na fazenda onde nasceu, em viagens de vapor, sob

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o cuidado e carinho dos pais Clodoaldo Pires Costa e CarlotaAngélica Pires.

- Tive uma infância tranqüila. Vim para Juazeiro, mas asviagens à fazenda onde nasci eram constantes, e lá vivi os diasmais felizes da minha infância. Nada pode ser comparado com aliberdade e a proteção da casa dos avós. Quando eu já era moçané, meu pai costumava me levar até Pirapora e de volta eu saltavaem Remanso, pra ali passar o resto das minhas férias com osmeus avós maternos.

A definição dos jeitos característicos do povo de um e dooutro lugar - Remanso e Juazeiro - foi sacramentada pela sabedoriapopular de uma toada cantada por remeiros e barqueiros que, emversos conhecidos por toda a extensão das beiras do Rio SãoFrancisco, reza:

Juazeiro da lordezaPetrolina dos missaisSantana dos CascaisCasa Nova da carestiaSento Sé da nobrezaRemanso da valentiaPilão Arcado da desgraçaXiquexique dos BundãoIcatu cachaça podreBarra só dá ladrãoMorporá casa de palhaBom Jardim da rica florUrubu da Santa CruzTriste do povo da LapaSe não fosse o bom JesusCarinhanha é bonitinhaMalhada também éPassa Manga e MorrinhoPaga imposto em JacaréJanuária carreira grandeCorrente meia carreiraBate o prego em Santa RitaPra cagar mole em BarreiraSão Francisco da ArreliaSão Romão das feiticeirasExtrema dos CabeludoPirapora é da poeira .

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A antiga cidade de Remanso, desde meados de 1975 estáinundada nas profundezas do Velho Chico. Mas o local onde foiconstruída a casa da família de Maria, por localizar-se distantedo rio, não foi atingido, e a construção permanece lá. Forapreservada não só a descrição minuciosa da casa, mas a própriaestrutura física daquele lugar que Maria, ao escrever sobre,guardou para que não se perdesse.

E do encontro, principalmente, com as duas cidades - Re-manso e Juazeiro - Maria Franca Pires construíra sua história devida e modelara-se como pessoa. A valentia, pois, de uma cidadee a lordeza de outra, um rio que por certo as une, e as separa,imbricaram-se nas dobras do dentro e do fora que constituírama Maria Franca Pires lembrada por olhos lacrimejantes, vozesexaltadas e gargalhadas desconcertantes.

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Maria era capricho sam en te lim pa e che iro sa. Es tava sem pre bem ves tida! Da ro upa do trabalho à dafe s ta, e ra-lhe im pecáve l o bo m go s to , o cu idado em

co m bin ar e s te ticam e n te as co res , o s tecido s e ado rn o s .Marta Luz

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An dava sem pre de salto ! Ado ravabato m e co lares de bo lo ta! Vivia

se m pre co m o cabe lo arrum ado ...Muito altiva! Parecia um a m ulherim batíve l e dizia sem pre : - Min ha

valen tia é de Rem an so ! .Odomaria Macedo

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Chego mais uma vez ao Campus III, da Universidade doEstado da Bahia. Venho em passos apressados, fugindo de umsol escaldante, que se intensifica pela escassa arborização dasruas. Passo pela guarita do Departamento de Ciências Humanaspara pegar a chave da sala do projeto O arquivo da profª Maria FrancaPires: memória e história cultural em pesquisa na região de Juazeiro BA .

Paro um pouco diante do espelho, no banheiro feminino.Ajeito os cabelos bagunçados e sigo na direção do Departamentode Tecnologia e Ciências Sociais, rumo ao Núcleo de Pesquisa eExtensão NUPE, do Departamento de Ciências Humanas. Passopela casa antiga, que agora abriga os mestrados do curso deAgronomia; pela biblioteca, nem sempre silenciosa; pela cantina,sempre movimentada e entro, enfim, no prédio espremido, ali,num canto: embaixo do auditório, em frente àquela cantina, aolado de um corredor de salas de aula, alojado no vão de umaescada.

Na entrada, passo os olhos rapidamente por um mural, alifixado, para me inteirar dos acontecimentos. Sigo pela direita echego à sala do projeto. Abro a porta azul da sala onde tenho idotantas vezes para me debruçar, de novo, sobre os vestígios de umtempo, guardados em caixas, escritos em livros, por entreanotações em cadernos, dentro de pastas, em fotos, jornais, revistas,

Um caso de am or...

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cartas, cartazes. É o arquivo de uma pessoa singular. Ela está ali:Maria Franca Pires.

Olho sua figura lembrada em três fotos fixadas no mural.Às vezes receptiva e acolhedora, sua imagem me conforta; outrasvezes, seu olhar parece vigiar minhas investigações, condenar mi-nhas inferências. De fato, sua presença é constante em tudo; seusmotivos, às vezes, claros; sua importância na história e cultura dacidade de Juazeiro, para mim, incontestável.

Seus cadernos - manuscritos em letras, às vezes desenhadas,às vezes garranchadas pela pressa - são pequenos, porém volu-mosos. No silêncio da sala de pesquisa, mais uma vez, eles mefalam ao pé do ouvido sobre várias Marias . Ao seguir os rastrosda pessoa que percebo deixados ali: vejo uma professora, capri-chosa e exigente; vejo uma pesquisadora, dedicada e incansável;vejo uma mãe, atenciosa e solicita; vejo uma aluna, disciplinadae organizada; vejo uma amiga, solidária e sincera; vejo umaadministradora, justa e competente; vejo uma investigadora,curiosa e persistente; vejo uma líder, disposta e atuante. Vejouma mulher, que tendo sido amorosa, delicada e vaidosa,mostrava-se tão feminina - bem ao gosto do seu tempo - mas,que, sendo, também, autônoma, voluntariosa e disposta,mostrava-se, valentemente, de um modo tão diferente do padrãode mulher àquele tempo. Esta é a pessoa que vejo, entre outras,muitas outras, que talvez outros olhares, que não o meu olhar jáviciado e astigmático, possam delinear.

Ao iniciar nesse trabalho, perguntava-me: - Será pra quêMaria guardara tudo isso? Qual era sua intenção? Quando come-çou a juntar essas coisas? Por que guardava objetos tão incomuns,como sacos plásticos e embalagens, até? E esse sobrenomePires ? Ai ai ai... Só falta descobrir que somos parentes!

Agora, penso que, se nem ela mesma soube dizer por quêpassou sua vida a guardar Juazeiro - como certa vez revelou a umjornalista curioso - eu não posso afirmar que foi por isto ouaquilo. Mas, diante do que me foi possível decifrar da pessoa queeu conheci, arrisco-me a dizer que isso ocorreu para ela como

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um presente de filha para Juazeiro, a cidade que a acolhera comomãe. Um presente de Dia das Mães.

A propósito do nosso sobrenome em comum, não descobri,ainda, se tenho ou não algum parentesco com Maria...

Em relato autobiográfico guardado entre os papéis do seuarquivo, uma das poucas coisas que se referem tão diretamente àMaria, ela confessou nas últimas linhas.

- Não consegui formar uma família, mas não acredito emsolidão. A saudade dos que já partiram para a eternidade e oamor que dedico aos que ainda estão perto de mim são suficientespara encher as horas, além da dedicação ao meu trabalho, cujoobjetivo é ajudar Juazeiro, esta terra querida, que tem me abrigadohá tantos anos! Apesar dos pesares, confio nos jovens e, ainda,espero ver Juazeiro uma cidade de cultura, uma cidade equilibrada,uma cidade onde ninguém seja uma célula morta, todos traba-lhando, dando à boa terra o que sabe, o que tem condição defazer!

Maria queria muito viver para chegar a ver Juazeiro umaterra de cultura , mas não se intimidava com a morte eminente.Durante quase um ano, lutou contra um câncer no pulmão. Nãoqueria que ninguém sentisse pena de seu estado grave de saúde,por isso, continuava a se arrumar e portar-se firme como outrora.

- A doença dela ela seriíssima, mas ela tinha GANA de viver!Ela num falava uma hora - Vou morrer! Num to passando bem! .Não! Aquela falta de ar, aquela coisa toda, mas toda hora levantavaa cabeça - lembra a amiga Lourdes Duarte.

Num trecho da oração fúnebre pronunciada pelo padre JoséGilberto de Luna, também amigo de Maria Pires, ficou registradaa sua força e amor pela vida.

O que perdemos com o seu desaparecimento, não foi apenas umamulher culta e operosa, não foi apenas uma animadora da vida de nossacomunidade, foi também e, sobretudo, um exemplo de como se pode morrersem se deixar vencer pela morte, um exemplo de como se pode vi-ver semmalbaratar um só instante da vida .

- Eu me lembro de uma piada dela... Num sei quem foi quechegou e disse - Ah, eu pensei que tivesse acontecido alguma

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coisa e você tivesse morrido . E Maria com seu ar desconcertante,disse: - E o senhor acha que quando eu morrer só vai aquilo osenhor viu? Aha! Eu quero é que meu enterro ABALE a cidade! .E foi mesmo! Foi, assim, MULTIDÃO! Sabe o que é MUL-TIDÃO! comenta Lourdes, ao se recordar do modo despojadocomo a amiga Maria fa-lava da própria morte.

...Soprava um vento seco e quente na manhã do dia cinco de

agosto naquele ano de 1988. Uma multidão de pessoas de todasas idades, semblantes tristes, aglomerava-se em torno da casa-museu da esquina, ocupando a avenida larga, para onde davamas janelas, e também a travessa estreita, para onde dava a porta deentrada da residência.

Era a despedida de Maria Franca Pires.A matéria de capa do Jornal de Juazeiro de 06 a 08 de agosto

do ano de 1988 anunciara à população: Morre Maria FrancaPires - Baluarte da nossa história .

Hoje, mais de 20 anos após a morte da não juazeirensemais juazeirense que se conhecera naquele tempo, encontrei acrônica de Joseph Bandeira, poeta e amigo de Maria, que, enlutadopela dor de sua perda, registrou aquele momento, escrevendo:

O caso de amor de Maria Pires e Juazeiro está terminado .Ouso, pois, contradizê-lo:O caso de amor de Maria Pires e Juazeiro, caro poeta, não

está terminado.

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AGRAD ECIMEN TOS

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O a rqu iv o d aprofes s ora Ma ria Fra n ca Pires : m em ória e h is tóriacu ltu ra l e m p e s qu is a n a re giã o d e J u a z e iro-B a

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Antologia: 80 anos do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora.

BANDEIRA, Joseph. Juazeiro Amor Paixão. Juazeiro, 1993.

CUNHA, João Fernandes da. Memória histórica de Juazeiro.

FIGUEIRÊDO, Maria Beatriz Braga. Viajando com o PAS pela história deRemanso. Juazeiro: UNEB / DCH III, 2004.

GONÇALVES, Esmeraldo Lopes. OPARA: formação histórica e social doSubmédio São Francisco. Juazeiro: [s.e.], 1997.

GUEIROS, José Alberto. Juracy Magalhães - O último tenente. Rio de Janeiro:Record, 1996.

LINS, Wilson. O médio São Francisco, uma sociedade de pastores guerreiros.São Paulo: Nacional, 1983.

LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO FARIA, Luciano Mendes de; VEIGA,Cynthia Greive (Orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:Autêntica, 2000. 2ª edição. 608p.

NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na primeira República 2 ed. Rio deJaneiro: DP&A, 2001.

RODRIGUES, José Roberto Gomes. Desenvolvimento sócio-cultural eeducação em Juazeiro/Ba (1832-1963). Atas do VII Congresso Lusobrasileirode História da Educação. Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências daEducação (Universidade do Porto), 2008.

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TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: Editora UNESP:Salvador-BA: EDUFBA, 2001.

BIBLIOGRAFIA

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Navegando no Vale Suplemento Especial do Jornal de Juazeiro Juazeiro, 26de outubro de 1985 Seção O Destaque da Semana p. 3.

O Berro d Água Ano I Nº 08 Juazeiro Bahia 20/08 a 20/09 de 1987 MatériaPrefeituráveis: a lista do Berro p. 09.

Juazeiro Suplemento Especial de A Tarde Salvador, 15 de julho de 1977 Matéria Turismo organizado é meta básica p. 20.

A Tarde Municípios Seção Cidades Salvador, 10 de outubro de 1986 -Matéria Criticada demolição de prédio para ser construído hospital p. 6.

Jornal de Juazeiro Capa Ano XV nº 978 Juazeiro 11/13 de junho de 1988 Matéria Mª Franca Pires Patrimônio Cultural de Juazeiro .

Jornal de Juazeiro Capa Ano XV nº 999 Juazeiro 06/08 de agosto de 1988 Matéria Morre Maria Franca Pires Baluarte da nossa História .

Jornais

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Fatos do Vale Setembro / Outubro de 1985 Nº 2 Matéria Juazeiro teráInstituto Geográfico Histórico p. 22 e 23.

Fatos do Vale Março / Agosto de 1987 Nº 10 Seção Personalidades deJuazeiro p. 37.

A Capital 1945 Matéria Está lançada na Bahia a semente do SENAI .

Juazeiro Banco do Nordeste do Brasil.

Juazeiro ano 100: terra e povo num cântico de amor Revista comemorativa doCentenário da Cidade.

Revistas

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Antonila da França Cardoso

Antônio Carlos Coelho de Assis

Dinorah Albernaz Pereira e Melo Silva

Expedito Gomes de Almeida

Maria Emília Duarte Arapiraca

Maria de Lourdes Duarte

Maria Perpétua de Almeida Santos

Marta Luz

Odomaria Rosa Bandeira Macedo

Thomázia Bonfim dos Santos Almeida

Entrevistados

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Créditos das Fotografias

1, 2, 4, 5, 6, 7, 15, 16, 17, 18, 19, 25 - Acervo do arquivo de Maria FrancaPires.

3 - Foto: Euvaldo Macedo. Acervo do Arquivo de Maria Franca Pires.

8, 10 - Revista Fatos do Vale - Setembro / outubro de 1985 - Nº 2 - MatériaJuazeiro terá Instituto Geográfico Histórico - p. 22 e 23. Acervo do Arquivo

de Maria Franca Pires.

9 - Acervo pessoal de Odomaria Macedo.

13 - Revista A Capital - 1945 - Matéria Está lançada na Bahia a semente doSENAI . Acervo do Arquivo de Maria Franca Pires.

11, 12, 14, 22, 23, 24 - Acervo pessoal de Maria Tereza Dewilson Oliveira.

26 - Juazeiro - Suplemento Especial do Jornal A Tarde - Salvador, 15 de julhode 1977 - Matéria Turismo organizado é meta básica - p. 20. Acervo doArquivo de Maria Franca Pires.

27 - Jornal O Berro D Água 20/10 a 20/11 de 1987 - Entrevista EstóriasJuazeirenses - Acervo do Arquivo de Maria Franca Pires.

28 - Jornal do Brasil - Caderno O turismo - 17/12/1986 - Matéria Passeio deGaiola pelo Velho Chico - Acervo do Arquivo de Maria Franca Pires.

29, 30 - Jornal de Juazeiro - Capa - Ano XV - nº 999 - Juazeiro 06/08 de agostode 1988 - Matéria Morre Maria Franca Pires - Baluarte da nossa História .

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CADERNO Nº 09

CADERNO Nº 10

CADERNO Nº 11

CADERNO Nº 12

CADERNO Nº 13

CADERNO Nº 14

CADERNO Nº 15

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Os ca d e rn o s d e Ma ria

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A Autora

Juliana Pires Machado chegou à cidade de Juazeiro em janeiro de2005. Veio de mudança de sua terra natal - Irecê-BA - para cursar

a faculdade de Jornalismo, um sonho de adolescência. Trouxeconsigo a mãe segurança necessária, o irmão sem o qual a mãenão viria, e sua cadela de estimação para ter de quem cuidar.

Trouxe, ainda, todos os seus poucos bens materiais, muitasbugigangas e bastantes lembranças.

Mesmo assim, tinha a impressão de que faltava algo...Os espaços pareciam vazios e sem significado.

Na faculdade, percebeu que não era a única estrangeira a chegarem uma cidade desconhecida, sem referências, sem porto. Buscandoconhecer seu novo lar, passou a fazer parte, ainda no segundo

período do curso, de um projeto de pesquisa e extensão intituladoO arquivo da professora Maria Franca Pires: memória e históriacultural em pesquisa na região de Juazeiro-BA. Assim, Julianapôde unir, nesse produto editorial que apresentou como Trabalhode Conclusão do Curso de Jornalismo Multimeios, a teoria e aprática, o ensino à pesquisa e à extensão universitária.

A paixão pelas palavras gravadas no papel, o compromisso com aapuração rigorosa, o respeito pelas fontes, o prazer de contar

uma história e a experimentação de uma linguagem literária, ficamcomo lições do Jornalismo que se quer seguir.

Contato: [email protected]