livro-reportagem - Praca Roosevelt

108
Flor no asfalto A RESISTÊNCIA TEATRAL NA PRAÇA ROOSEVELT Camila Silveira

description

livro-reportagem - Praca Roosevelt

Transcript of livro-reportagem - Praca Roosevelt

Page 1: livro-reportagem - Praca Roosevelt

Flor no asfaltoA RESISTÊNCIA TEATRAL NA PRAÇA ROOSEVELT

Camila Silveira

Flo

r no a

sfa

lto>> A

RES

ISTÊ

NCIA

TEA

TRAL

NA P

RAÇA

RO

OSE

VEL

T

capa contracapa_lombada1.indd 3 11/9/10 8:37 PM

Page 2: livro-reportagem - Praca Roosevelt

capa contracapa_lombada1.indd 4 11/9/10 8:37 PM

Page 3: livro-reportagem - Praca Roosevelt

a resistência teatral na Praça roosevelt

Camila Silveira

Flor no asfalto

intro.indd 3 11/9/10 8:57 PM

Page 4: livro-reportagem - Praca Roosevelt

Silveira, Camila Flor no Asfalto: A resistência teatral na Praça Roosevelt / Camila Silveira. – 2010.

106 f. : Il.

Trabalho de Conclusão de curso (Bacharelado em Comunicação Social - Jornalismo) - Universidade Santo Amaro, São Paulo, 2010.

Orientação: Prof. Márcio Rodrigo

1.Praça Roosevelt 2. Espaços públicos urbanos 3.Geografia urbana. I. Título.

Foto de capaGabriel Oliveira

Montagem de capaFabiana Caruso

DiagramaçãoFabiana Caruso

RevisãoVicente Pereira

intro.indd 4 11/9/10 8:57 PM

Page 5: livro-reportagem - Praca Roosevelt

a resistência teatral na Praça roosevelt

Flor no asfalto

intro.indd 5 11/9/10 8:57 PM

Page 6: livro-reportagem - Praca Roosevelt

intro.indd 6 11/9/10 8:57 PM

Page 7: livro-reportagem - Praca Roosevelt

Friedrich Nietzsche

Eu reivindicaria como sendo propriedade e produto do homem toda a beleza, toda a nobreza que atribuímos às coisas reais ou imaginárias... ”

intro.indd 7 11/9/10 8:57 PM

Page 8: livro-reportagem - Praca Roosevelt

Capítulo IA “Antipraça Roosevelt”

Capítulo IIUm palco de militância>> Studio 184

Capítulo IIIEspaço de preservação> Antigo Cine Bijou>> Teatro do Ator

Capítulo IVUm palco visceral>> Os Satyros

Capítulo VCirco, Risos e Xícaras de Açúcar>> Chegam os Parlapatões

Capítulo VITeatro de montar>> Miniteatro entra em cena

Capítulo VIIEntre charutos, navalhas e memórias

> Barbearia do Seu Renato

16

3440485664

70

PARTE I

PARTE II

100

intro.indd 8 11/9/10 8:57 PM

Page 9: livro-reportagem - Praca Roosevelt

Capítulo VIIISímbolo underground>> Mário Bortolotto

Capítulo IXEspaço da Boemia>> Doca e Arlete

Capítulo XA Diva da Roosevelt>> Phedra De Córdoba

Capítulo XIFlor no Asfalto>> Floricultura Roosevelt

Capítulo XIIUma praça sem cidade>> A Roosevelt e o Poder Público

74808488

92

100PARTE III

Capítulo XIIIVisão Íntima e Subjetiva

intro.indd 9 11/9/10 8:57 PM

Page 10: livro-reportagem - Praca Roosevelt

intro.indd 10 11/9/10 8:58 PM

Page 11: livro-reportagem - Praca Roosevelt

11

O direito ao espaço público

intr

oduç

ão

Abrem-se as cortinas. No palco, uma praça. Talvez

quem a veja pela primeira vez com um olhar rápido

e desprevenido não consiga enxergá-la naquele local

aparentemente inóspito e frio. Isso acontece porque lá, naquele

pedaço do Centro da cidade de São Paulo, situado entre as

ruas da Consolação e Augusta, há uma praça às avessas. Um

espaço sem definição, estranho, mas que sempre deu abrigo a

encontros e desencontros de paulistanos. E quem decide parar e

olhar com a alma para esse lugar conseguirá ver os olhos carentes

de uma construção frágil, mas ao mesmo tempo forte, que resiste

à degeneração e à degradação há mais de 40 anos.

A Praça Roosevelt é a personagem principal desta história,

que começa no final do século XVIII e acompanha a trajetória

da área central da maior metrópole brasileira. Assim como

o centro histórico da cidade de São Paulo, esse espaço urbano

nasceu, cresceu, produziu riquezas, agonizou, sucumbiu,

mas conseguiu manter-se vivo por meio de sua aura artística.

Sim, desde a década de 1950, essa praça demonstra

uma grande propensão para as artes e luta para conservar

sua vocação e brilhar no cerne do turbilhão de atos que

emanam de uma grande metrópole.

intro.indd 11 11/9/10 8:58 PM

Page 12: livro-reportagem - Praca Roosevelt

12

Entretanto, entre os anos 1970 e 1990, a região se transformou

em um cenário de marginalidade e degradação. Os restaurantes,

as famosas casas noturnas e a boêmia cederam lugar ao tráfico

e à prostituição.

Contudo, a partir dos anos 2000, por meio de uma inusitada

e persistente ocupação de grupos teatrais, a Roosevelt ganhou vida

novamente e se converteu num lugar de rara vitalidade artística.

Depois de um período obscuro, a região voltou a ser uma referência

para a cultura paulistana.

Hoje, existem ali, vizinhos da prostituição, rodeados pelo

tráfico e misturados aos moradores de rua, diversos grupos cênicos

se apresentando em variados horários, em cinco salas de teatro.

Além disso, há bares que garantem uma agitada vida noturna.

A área que abriga a construção da Roosevelt, no entanto, ainda

é um espaço problemático, pois não possui manutenção pública,

como segurança, iluminação e limpeza. O acesso ao local ainda

é difícil, e o complexo é considerado desordenado, inseguro

e até desagradável para muitos.

Construída em 1970, a Praça Roosevelt ainda não passou

pelo processo de revitalização urbana prometido pela Prefeitura de

São Paulo, sendo que o projeto está no papel há mais de dez anos.

Introdução

Trecho inicial da Avenida Radial Leste-Oeste, que passa por baixo da Praça Roosevelt

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

intro.indd 12 11/9/10 8:58 PM

Page 13: livro-reportagem - Praca Roosevelt

Inaugurada na década de 1970, atualmente, a enorme construção de concreto que caracteriza a Roosevelt serve somente de passagem para alguns pedestres

Assim, por meio de uma abordagem histórica e da crônica

da trajetória de personagens que fazem parte desse processo de

recuperação da praça e da visão inerte de integrantes do governo,

este livro mostra a história dessa pequena, mas simbólica parte do

coração paulistano. Cada personagem que aparecerá nestas páginas

contribuiu com a luz de seu ofício para a recuperação e transformação

de um espaço público. Essas pessoas mostram que a iniciativa da

sociedade, muitas vezes, é mais eficiente do que a pública para

modificar o ambiente urbano.

Para que o leitor obtenha uma compreensão ampliada de todo o

contexto que envolve a Praça Roosevelt, o livro está dividido em três

partes. A primeira visa uma abordagem histórica que abrange desde o

plano de construção do local até o panorama atual da região, já que

para retratar com profundidade esse cenário é necessário mergulhar no

passado recente e recompor os episódios marcantes do lugar.

Já a segunda parte relata a trajetória da recuperação da área,

que começou no final dos anos 1990, por meio dos personagens

que protagonizaram essa história, o que dá ao texto um caráter

humanístico e de proximidade ao cotidiano da praça. Por fim, há

uma reflexão pessoal e uma análise feita a partir das experiências

vividas durante a produção deste trabalho.

Assim, na primeira parte, portanto, é possível se situar historicamente

e, portanto, conhecer todos os processos que antecederam a

construção da praça, seu projeto arquitetônico e os grupos sociais

que posteriormente ocuparam o local. Esse mergulho histórico é

importante para que o universo atual da área seja compreendido de

maneira plena e, dessa forma, exista uma orientação em relação aos

acontecimentos que determinaram o percurso do local.

Nessa primeira parte, as vocações religiosa, boêmia e cultural da

região são destrinchadas. A época áurea da Roosevelt e as pessoas

que marcaram esse período glorioso também ganham destaque.

A chegada da degradação e os momentos obscuros pelos quais a

praça passou também são expostos nesse capítulo inicial, assim como

os fatos que ganharam repercussão pública ao longo dos últimos anos.

O renascimento com a ocupação teatral e a revitalização inusitada

que aconteceu sem ajuda governamental são igualmente abordados nas

páginas a seguir, que integram a primeira parte desta obra jornalística.

13

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

intro.indd 13 11/9/10 8:58 PM

Page 14: livro-reportagem - Praca Roosevelt

14intro.indd 14 11/9/10 8:58 PM

Page 15: livro-reportagem - Praca Roosevelt

15

Com o passar dos anos, o “edifício-praça” ganhou diversas pichações dos skatistas que frequentam o local

Já na segunda parte, foram escolhidos alguns dos personagens

que simbolizam essa reestruturação criativa, inesperada e ousada que

aconteceu de forma espontânea. Assim, é retratada a trajetória de

cada espaço teatral que foi inaugurado na praça desde o final da

década de 1990 até os anos 2000.

Além do percurso dos grupos, há relatos de artistas que

protagonizaram essa história de resistência e transformação.

Dessa forma, Dulce Muniz, do Studio 184; Gabriel Catellani,

proprietário do Teatro do Ator; Rodolfo García Vázquez e Ivam

Cabral, fundadores dos Satyros, Raul Barreto e Hugo Possolo,

dos Parlapatões, e Kleber Montanheiro, diretor do Miniteatro,

ganham voz nessa parte da obra. Também são mostradas as relações

que pessoas símbolos da praça mantêm com o local, como o barbeiro

Seu Renato, o dramaturgo Mário Botolotto; os proprietários do

bar Papo, Pinga e Petisco; a atriz transexual Phedra De Córdoba

e o dono da floricultura mais antiga da região.

Para encerrar esses capítulos, há um confronto entre a realidade da

Roosevelt e a visão dos órgãos públicos responsáveis pela manutenção

e pelo projeto de requalificação urbana da área.

Por fim, a última parte traz um relato pessoal sobre o que foi

visto, percebido e sentido ao longo da produção deste trabalho. Há

também opiniões da autora sobre a Praça Roosevelt e os caminhos

que ela deve seguir para voltar a ser, definitivamente, um espaço

absolutamente revitalizado na cidade de São Paulo.

Como diz Henri Lefebvre na obra “O Direito à Cidade”

(2004), somente a prática social poderia mudar a realidade,

retomando o reino do uso para além do valor de troca e, assim,

promover a realização da vida urbana. “Mudariam a realidade se

entrassem para a prática social: direito ao trabalho, à instrução, à

educação, à saúde, aos lazeres, à vida (...) Entre esses direitos em

formação figura o direito à cidade (não à cidade arcaica, mas à vida

urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas,

aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e

inteiro desses momentos e locais, etc.) A proclamação e a realização

da vida urbana como reino do uso”.

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

intro.indd 15 11/9/10 8:58 PM

Page 16: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo01.indd 16 11/9/10 8:39 PM

Page 17: livro-reportagem - Praca Roosevelt

17

Ao contrário do que aconteceu nos países de colonização

espanhola, nos quais a configuração urbana obedeceu

a um traçado geométrico no formato de um tabuleiro de xadrez

ou damas – o chamado plano dameado –, a construção

das cidades brasileiras se deu de forma irregular e sem planejamento,

refletindo as formas da Portugal medieval. Enquanto os espanhóis

eram regidos por um plano regular, em que as ruas se entrecruzavam

em torno de uma praça central, os portugueses não seguiam

um plano exato, o que gerou um crescimento desorganizado

das cidades formadas durante a colonização lusitana.

Contudo, no Brasil, as praças sempre exerceram um papel importante

no desenvolvimento urbanístico e humano de cada cidade. Apesar

de não seguir uma regra geométrica, o centro original de qualquer

povoado é sempre caracterizado por uma praça. A trajetória de

urbanização de uma metrópole passa por esse espaço público, que

guarda a história dos processos de expansão de uma região e indica

a direção de seu crescimento. Nos núcleos coloniais do Brasil, as

praças concentravam todos os edifícios administrativos e cívicos, como

a câmara, a cadeia e a casa da redenção.

A Antipraça Roosevelt”“ ca

pítu

lo I

Sem a devida manutenção pública, a Roosevelt tornou-se uma verdadeira “antipraça”, onde não é possível desfrutar a convivência urbanaFO

TO: G

ABRI

EL O

LIVEI

RA

PARTE I

miolo01.indd 17 11/9/10 8:39 PM

Page 18: livro-reportagem - Praca Roosevelt

18 A "Antipraça Roosevelt"

Escadaria de acesso à Rua Nestor Pestana, onde está localizado o Teatro Cultura Artística

Repleta de rachaduras e infiltrações, parte superior do pentágono demonstra a decadência da construção da praça

FOTO

S: G

ABRI

EL O

LIVEI

RA

miolo01.indd 18 11/9/10 8:40 PM

Page 19: livro-reportagem - Praca Roosevelt

19

Além de ser o marco inicial de um povoado, as praças fazem parte

das relações cotidianas dos habitantes e carregam vários significados.

Elas sempre foram o palco dos principais acontecimentos políticos,

econômicos, culturais e, principalmente, dos fatos prosaicos que

marcam a vida das pessoas. Por isso, uma praça sempre reflete o

“espaço do vivido”, onde acontecem os encontros espontâneos, sem

regras estabelecidas.

Segundo Henri Lefebvre, esse espaço reflete a “colonização do

cotidiano”, ou seja, a incorporação do tempo de não-trabalho ao

mundo da mercadoria, mediada pelas relações sociais. O autor

discorre sobre esse conceito na obra “Do Rural ao Urbano” (1973).

“A rua arranca as pessoas do isolamento e da insociabilidade. Teatro

espontâneo, terreno de jogos sem regras precisas, e por isto mais

interessantes, lugar de encontros e solicitudes múltiplas – materiais,

culturais, espirituais, a rua resulta indispensável”, afirma.

Ao longo da história da cidade São Paulo, a população também

se apropriou desse local público para construir a própria trajetória e

se afastar do isolamento social. Marco inicial paulistano, o Pátio do

Colégio é, na verdade, uma praça que remonta à origem da cidade.

Da mesma forma, a construção e o desenvolvimento da

Praça Roosevelt refletem o crescimento urbano de São Paulo.

Sua inauguração aconteceu em 25 de janeiro de 1970, dia do

aniversário de 416 anos da cidade, e contou com a presença

do então presidente Emílio Garrastazu Médici, o militar que

assumiu a Presidência da República após o afastamento definitivo

do presidente Costa e Silva. Assim, o nascimento da Roosevelt

acontece em plena ditadura militar, o que afetou profundamente

sua essência e seus propósitos políticos.

O seu plano de construção foi anunciado em 1967, e indicava a

recuperação da região da Igreja da Consolação – que fica no entorno

da área – a criação de um estacionamento subterrâneo, um mercado

distrital1 no subsolo, um centro esportivo e uma galeria para exposições.

Em 1945, poucos edifícios rodeavam a Roosevelt, que se caracterizava por um enorme espaço vazio

Na década de 1960, a região ganha um enorme estacionamento para abrigar os carros pertencentes aos trabalhadores do Centro

Imagem área da Roosevelt feita em 1970, quando foi inaugurada para ocupar os espaços remanescentes do sistema viário

FOTO

S: A

CERV

O E

MU

RB

1: Ponto tradicional e antigo de uma cidade.

miolo01.indd 19 11/9/10 8:40 PM

Page 20: livro-reportagem - Praca Roosevelt

20miolo01.indd 20 11/9/10 8:40 PM

Page 21: livro-reportagem - Praca Roosevelt

21

Vocação religiosa> A Praça Roosevelt e a Igreja da Consolação

A ideia de construir uma praça naquele local tinha relação

direta com a história da igreja e com a expansão do

cristianismo. No final do século XVIII, quando foi criada, a

Igreja da Consolação era o ponto de referência dos religiosos, que

se reuniam no local antes de viajar para a feira de gado de Sorocaba

ou para os engenhos de cana-de-açúcar de Itu, rotas que eram

percorridas frequentemente pelos tropeiros.

A região da igreja abrigava diversos festejos, como a lavagem

da imagem de São João Batista, que era imersa em um tanque de

abastecimento da população local, instalada na chácara de Dona

Veridiana e Martinho Prado2, uma das mais importantes da

cidade, onde hoje é a Rua Nestor Pestana.

Devido à exigência dos devotos, a Igreja passou por uma reforma

em 1840 e, ao mesmo tempo, alguns terrenos que circundavam o local

foram desapropriados para construção de ruas. Em 1870, a capela

ganhou a categoria de freguesia e, por isso, passou a realizar registros

civis. A partir dessa época, o bairro sofreu rápidas transformações.

Em 1892, Dona Veridiana mandou construir na sua propriedade

um velódromo, uma pista para disputas do ciclismo que refletia o

estilo de vida da burguesia europeia da época. Um campo de futebol

foi construído no local em 1886. Em 1889, a proprietária mudou-se

para um palacete em Santa Cecília, bairro residencial de alta renda

que abrigava a aristocracia paulistana. Na sua chácara passou a

funcionar o Seminário das Educandas.

O velódromo foi destruído em 1915, para dar lugar a Rua

Florisbela (atual Nestor Pestana). Nessa época, São Paulo já era

a capital financeira e comercial do ciclo do café, o que motivara um

acelerado crescimento populacional e urbano da cidade.

Por causa das constantes transformações promovidas pelo

desenvolvimento, a prefeitura paulistana solicitou providências em

relação ao esgoto que corria da chácara Martinho Prado até o

riacho que abastecia a região. Como as obras sanitárias seriam

muito onerosas, o proprietário decidiu doar o terreno. O espaço

remanescente das doações e desapropriações se torna então o local

onde seria construída a Praça Roosevelt.

Ponto de referência dos religiosos no século XVIII, a Igreja da Consolação é o grande símbolo católico da regiãoFO

TO: G

ABRI

EL O

LIVEI

RA

2: Conhecida como chácara Vila Maria, a mansão de D. Veridiana Valeria da Silva Prado, filha do barão de Iguape, foi um dos locais preferidos dos intelectuais e da elite paulistana para seus encontros e discussões. O local abrigou o refinado São Paulo Clube e, posteriormente, tendo o clube encerrado suas atividades em 2008, quando foi incorporado pelo Iate Clube de Santos, que passou a ocupar o espaço.

miolo01.indd 21 11/9/10 8:40 PM

Page 22: livro-reportagem - Praca Roosevelt

22

Modelo rodoviarista

No final dos anos 1930, há uma mudança no padrão

de crescimento da cidade, que foi fortemente influenciada

pela substituição do transporte sobre trilhos (trens e bondes) pelo

modelo regido por veículos automotores. A chegada Ford (1919)

e da General Motors (1925) fez com que o automóvel passasse

a fazer parte do cotidiano das pessoas. Com as novas demandas

de circulação, um sistema viário começa a ser implementado.

A consolidação efetiva do Plano de Avenidas na cidade

de São Paulo aconteceu na gestão do prefeito Prestes Maia

(1938-1945). O plano contemplava a construção de grandes vias,

como Nove de Julho, 23 de Maio e Radial Leste, definindo

a estrutura urbana básica da cidade.

Para que a construção das avenidas fosse viabilizada, vários córregos

e rios foram canalizados e se transformaram em galerias subterrâneas,

cujos leitos davam lugar às avenidas.

Devido a essa nova realidade, entre 1950 e 1960, a Igreja

da Consolação foi cercada por um enorme calçadão asfaltado,

onde, durante a semana, ficavam estacionados mais de 700 carros

pertencentes aos trabalhadores do Centro. Os espaços públicos

da cidade se converteram em estacionamentos para atender a grande

demanda de veículos. Foi nesse momento que paisagem bucólica

que caracterizava aquela região deu lugar a uma enorme estrutura

de concreto, que simbolizava a modernização de São Paulo. Lá

passou a existir uma estrutura de “praça-edifício” que pretendia

expressar na sua forma arquitetônica de caráter monumental o

progresso econômico e tecnológico do auge da ditadura militar e do

milagre econômico brasileiro (1968-1973).

No final da década de 1960, a área localizada atrás da Igreja

da Consolação ganhou um enorme vão, uma abertura que nivelava

o fluxo da vias que faziam conexão entre as regiões leste e oeste

da cidade. A proposta inicial da Praça Roosevelt surge do espaço

remanescente das obras do sistema viário que ocuparam a região.

A "Antipraça Roosevelt"

FOTO

S: AC

ERVO

EM

URB

Praça dos Pombos, um dos principais pontos de encontro da região, na época da inauguração

Imagem aérea do local na época da inauguração

Nos anos 1950, ainda não havia nenhuma construção “brutalista” na região

Em 1970, no auge do regime militar, a arquitetura da Roosevelt simbolizava “modernidade e progresso”

Na época da inauguração, em 1970, a Praça dos Pombos, outra estrutura da Roosevelt, abrigava um pombal, um lago, alguns bancos e muita vegetação

miolo01.indd 22 11/9/10 8:40 PM

Page 23: livro-reportagem - Praca Roosevelt

23

O projeto de construção da Praça foi arbitrado pelo governo

municipal no de Plano de Avenidas; contudo, não atendia as

reais demandas dos moradores da região central. O plano foi

aprovado em 1968 e as etapas da construção foram amplamente

noticiadas pela imprensa, pois demonstravam um investimento

fruto da modernidade e do progresso, segundo expressava o

depoimento do próprio prefeito no jornal Estado de S. Paulo de

4 de outubro de 1967:

“Dentro de alguns anos, quem visitar São Paulo, depois de um

período de ausência, não mais reconhecerá a cidade. Como sucedeu

no Rio de Janeiro, depois do desmonte do Morro do Castelo. A

paisagem aqui será totalmente diferente e para que isso aconteça,

o plano de urbanização da Praça Roosevelt muito contribuirá;

representa um impulso de progresso como pouco tivemos iguais”.

O complexo viário e a própria Roosevelt foram resultados do

modelo de desenvolvimento automotivo, e foram construídos em pleno

regime militar, época em que os arquitetos pregavam a racionalização

e a funcionalidade do espaço. Por isso, a Praça Roosevelt simbolizava

modernidade e eficiência, e sua concepção foi elogiada pela grande

maioria dos veículos de imprensa e pelos políticos.FO

TOS:

ACE

RVO

EM

URB

Em 1970, o entorno na praça já era um ponto de referencia artístico-cultural para os paulistanos

Imagem área da Roosevelt em 1970, quando foi inaugurada

miolo01.indd 23 11/9/10 8:40 PM

Page 24: livro-reportagem - Praca Roosevelt

24

Bem-vindos à Roosevelt

A inauguração da Praça Roosevelt aconteceu

em 25 de janeiro de 1970, durante

a administração municipal de Paulo Maluf.

De acordo com depoimentos de integrantes

da equipe do projeto concedidos à Folha de

S. Paulo em 1978, “a praça foi inaugurada ainda

inacabada e com os seus usos e funções bastante

modificados de um modo aleatório e palpiteiro”.

Na época, houve uma alteração do projeto inicial,

já que o paisagismo e os equipamentos de lazer que

constavam no primeiro momento foram abolidos.

Ao contrário do que previa a proposta original,

foram instalados um supermercado, um conjunto

de quadras esportivas e uma pista de patinação

solicitada por um grupo de praticantes deste esporte.

As modificações foram realizadas de maneira

arbitrária e eram manifestações do autoritarismo

da ditadura militar. Os anseios da população não

foram atendidos e não houve nenhum tipo de consulta

popular antes da implementação das mudanças.

Tanto o complexo viário como a própria praça

são produtos dos modelos de desenvolvimento

automotivo que ia ao encontro dos anseios

do militares que estavam no poder. Assim,

apesar de terem sido apontadas como exemplo

de modernidade e progresso, as alterações

do projeto e as mudanças nos equipamentos

de uso não correspondiam às reais necessidades

da população. Essas reformulações também

reafirmavam o controle estatal sobre o espaço público

e reprimiam usos mais criativos de equipamentos

destinados à utilização da população.

Escadaria atual da Roosevelt traz diversas pichações dos usuários da praça

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo01.indd 24 11/9/10 8:40 PM

Page 25: livro-reportagem - Praca Roosevelt

25

Vocação cultural

Mesmo com a transformação da paisagem, que ostentava o

progresso da cidade e demonstrava o poder autoritário do

Estado, a Praça Roosevelt sempre resistiu e manteve o seu caráter

artístico. À revelia das ações da administração municipal, a Roosevelt

e seu entorno passaram a ser uma referência da vida artística da cidade

de São Paulo.

Um dos primeiros grandes símbolos culturais da região foi o Teatro

Cultura Artística, que era um ponto de encontro da classe artística e

dos apreciadores do teatro. Construído entre os anos 1947 e 1950,

no terreno do antigo velódromo de São Paulo, na atual Rua Nestor

Pestana, o espaço recebia importantes concertos musicais, apresentações

teatrais nacionais e internacionais. Heitor Villa-Lobos e Camargo

Guarneri, dois dos maiores maestros e compositores brasileiros, eram os

responsáveis pela grande maioria dos concertos.

Entre os atores nacionais que passaram por lá, há nomes como Jaime

Costa, Paulo Autran, Tonia Carrero, Cacilda Becker, Jardel Filho,

Sérgio Cardoso, Procópio, Bibi Ferreira, Walmor Chagas, Odete

Lara, Dercy Gonçalves, Irina Greco, Odete Lara, Armando Bogus,

Maria Della Costa, Antonio Fagundes, Marco Nanini, Fernanda

Montenegro, Marília Pera, Karin Rodrigues, entre muitos outros.

miolo01.indd 25 11/9/10 8:40 PM

Page 26: livro-reportagem - Praca Roosevelt

26

Hoje, o Teatro Cultura Artística encontra-se desativado devido

ao incêndio que atingiu o local no dia 17 de agosto de 2008.

Com o desastre, o teatro sofreu grandes danos e perdeu grande

parte de seu patrimônio físico, como a sala Esther Mesquita, a

aparelhagem técnica de iluminação, os palcos, a plateia, além de

todos os camarins. Atualmente, o espaço está sendo reconstruído

para ser reerguido no mesmo local onde, por 58 anos, foi palco de

uma agitada vida musical e teatral.

A proximidade da Roosevelt com o Teatro de Arena também

aprofundou a identidade do entorno praça como ponto de encontro

de artistas. Fundado em 1953, na Rua Doutor Teodoro Baíma, o

teatro era sede de um dos mais importantes grupos teatrais brasileiros

das décadas de 50 e 60. Com uma proposta revolucionária e de

engajamento político e social, o Teatro de Arena reuniu artistas

importantes, como Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri,

Oduvaldo Vianna Filho, Milton Gonçalves, Vera Gertel, Flávio

Migliaccio, Floramy Pinheiro e Riva Nimitz.

Segundo o crítico Sábato Magaldi, no livro “Um Palco Brasileiro:

o Arena de São Paulo”, "O Teatro de Arena de São Paulo evoca,

de imediato,  o abrasileiramento do nosso palco, pela imposição

do autor nacional (...) A sede do Arena tornou-se, então, a casa

do autor brasileiro”.

Além de ser o cerne de uma vida teatral pulsante, em 1963 o

entorno da Roosevelt passou a ser também o lugar dos apaixonados

pela Sétima Arte, pois nesse ano foi inaugurado o Cine Bijou,

um dos mais importantes cinemas de arte da cidade de São Paulo.

Lá eram exibidos filmes de arte críticos e independentes e, por

isso, o local atraía uma juventude intelectualizada, interessada nos

movimentos artísticos da cidade. Durante a ditadura militar, era um

dos cenários obrigatórios da esquerda paulistana e se caracterizava

como o ambiente de resistência artística. Em 1986, uma das salas

virou o Cineclube Oscarito, que também se transformou em um

símbolo da efervescência cultural da época.

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo01.indd 26 11/9/10 8:40 PM

Page 27: livro-reportagem - Praca Roosevelt

27

O lugar da boemia paulistana

Além da vida cultural efervescente, a partir da década de 1960,

a Praça Roosevelt passou a nutrir um caráter boêmio proporcionado

pelos famosos bares e casas noturnas que circundavam a região. A boate

Cave, que funcionou na Avenida da Consolação já perto da Martins

Fontes, entre 1960 e 1974, era um dos redutos de artistas da Jovem

Guarda. “A Cave foi o baluarte da noite paulistana. Quando Roberto

Carlos chegou do Rio de Janeiro, passou a frequentar a casa. Ele deve

à boate esse sucesso como artista”, conta Esdras Vassalo, 77 anos,

conhecido como Doca, que foi proprietário da Cave e da casa noturna

Ton Ton Macoute, instalada na Rua Nestor Pestana na mesma época.

“A Cave era mais popular e o Ton Ton atraia um público elitizado.

A primeira fechou porque o dono pediu o prédio. O Ton Ton persistiu por

mais algum tempo, mas o juizado de menores fechou a casa porque encontrou

o filho do governador por lá, e ele era menor de idade. Depois, quando

abriu, o movimento caiu muito”, lembra Doca, que hoje é proprietário do bar

Papo, Pinga e Petisco, onde em 1960 existia o Djalma’s, um bar de música

brasileira. “Foi no Djalma’s que Elis Regina fez seu primeiro show na cidade

de São Paulo”, conta Doca para reafirmar a importância do local.

Poltronas da sala de teatro do Studio 184, inaugurado em 1996 no local que abrigou o Cine Teatro Oscarito, símbolo da efervescência cultural dos anos 1980

Patrícia Vilela, protagonista da peça “Safo”, que estreou em 2009 no Espaço dos Satyros com texto de Ivam Cabral

Lustre antigo da entrada de um dos edifícios situado no entorno praça

FOTO

: LA

ERTE

KÉS

SIMO

S/D

IVU

LGAÇ

ÃO

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo01.indd 27 11/9/10 8:40 PM

Page 28: livro-reportagem - Praca Roosevelt

28

A região que circundava a Praça Roosevelt também foi um

reduto da bossa nova na década de 60. Um dos principais

pontos dos amantes daquele novo jeito de fazer música era a boate

e restaurante A Baiúca, instalada na Rua Martinho Prado,

ao lado da Roosevelt, onde hoje há o supermercado Extra. A casa

era uma espécie de piano bar, em que era comum assistir a shows

de Johnny Alf e Dick Farney, por exemplo. O Zimbo Trio, um dos

grupos mais representativos da bossa paulistana, surgiu na Baiúca.

“Era uma época muito boa. A Baiúca vivia lotada. A praça

era bonita, não havia violência e nem sujeira”, lembra José Renato

Romano, 66 anos, que montou uma barbearia ao lado da casa,

em 1968, para atender os clientes do local.

A boate Stardust e o bar Chicote, redutos da juventude alternativa

paulistana, completavam o cenário notívago, musical e boêmio

da efervescente Praça Roosevelt da década 60.

Skatistas paulistanos fazem parte da principal tribo que utiliza a construção do “edifício-praça”

miolo01.indd 28 11/9/10 8:40 PM

Page 29: livro-reportagem - Praca Roosevelt

29

A decadência

Desde sua inauguração até os dias de hoje, a Praça Roosevelt

passou por diversas transformações e adaptações para

conter a ocupação dos moradores de rua, a prostituição e o tráfico

de entorpecentes, uma vez que o espaço nunca atendeu de maneira

satisfatória a população. Em meados dos anos 70, com a inauguração

do prédio de concreto então chamado de Praça Roosevelt, a área

começou a afastar grupos sociais que faziam daquele lugar uma

referência da cultura e da boêmia paulistana. O escritor Ignácio

de Loyola Brandão, que morou na região de 1960 a 1970,

presenciou essas mudanças, conforme recorda nas páginas do jornal

Estado de S. Paulo de 16 de maio de 1995:

“Quando ela começou a ser reformada, não se sabia bem o que

seria a produto final. Trabalharam dia e noite, para desespero

de nós moradores, que não conseguíamos dormir com o barulho.

As obras terminaram no começo dos anos 70 e nada mais foi como

antes, a urbanização matou o lado sentimental da Praça Roosevelt.

Ela decaiu, acompanhando o processo que atingiu o Centro.”

Para muitos, as pichações que dominam as paredes de concreto são os grandes símbolos da degradação do local

FOTO

S: G

ABRI

EL O

LIVEI

RA

miolo01.indd 29 11/9/10 8:40 PM

Page 30: livro-reportagem - Praca Roosevelt

30

Como a elite começou a migrar para outras regiões, os proprietários

dos estabelecimentos voltados para o lazer das camadas mais altas

da sociedade também deixaram o Centro. Em contrapartida,

o local passou a ser frequentado por uma população de menor poder

aquisitivo. Com isso, ao longo do tempo, a praça passou a ser palco

de marginalidade e degradação.

Nos anos 1980, a situação ficou ainda mais insustentável. Como

o espaço passou a ser visitado pela população economicamente

excluída, iniciou-se um processo contínuo de destruição, que deu

origem a um espaço fragmentado, indefinido e esquecido pelos

governantes, propício ao tráfico de drogas e à marginalidade.

De acordo com a Empresa Municipal de Urbanização, atual

São Paulo Urbanismo (Emurb), responsável pela reurbanização

de áreas em processo de transformação ou em vias de deterioração,

entre elas, a Praça Roosevelt, a rejeição à praça, o não entendimento

do espaço público construído, a falta de verde, a overdose

de área construída e a dificuldade de administração transformaram

o local em um ambiente problemático.

Para reverter esse quadro de deterioração da Roosevelt, em meados

dos anos 1990, a Emurb lançou uma proposta de intervenção

governamental que envolvia um conjunto de ações, como a demolição

da estrutura de concreto, o fechamento do buraco que existe junto

ao início da Rua Augusta e a implantação de um novo paisagismo.

O início da reforma foi adiado várias vezes, e ainda não aconteceu.

No dia 24 de julho de 2010, quase 20 anos depois, a prefeitura de

São Paulo publicou no Diário Oficial os detalhes da licitação pública

para execução da obra. Segundo o documento, a reforma deve durar

dois anos e tem custo estimado de R$ 37 milhões. Enquanto nada

O excesso de concreto, a falta da verde e o não-entendimento da construção são alguns dos motivos que levaram a praça à decadência

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo01.indd 30 11/9/10 8:40 PM

Page 31: livro-reportagem - Praca Roosevelt

31

for feito, a enorme estrutura de concreto impedirá

o uso pleno de todas as potencialidades que aquele

espaço público poderia oferecer à população.

Porém, é importante ressaltar que o processo

de desvalorização urbana da Roosevelt não provocou

o esvaziamento do local, que foi apenas tomado

por uma parcela da sociedade de menor poder

de escolha.

Desde sua origem, a Praça Roosevelt concentra

algumas características que persistem até os dias

de hoje, fato que atesta o caráter simbólico do

local. Desde a época dos tropeiros, é um ponto de

passagem para aqueles que transitam ou frequentam

as redondezas da Igreja da Consolação. Antes

palco da devoção dos peregrinos, hoje o local é

ponto de encontro para os praticantes de skate,

que utilizam a área para fazer manobras radicais.

O espaço também serve como uma “parada” para

os estudantes do Colégio Caetano de Campos3,

como também era para os alunos do Colégio

Visconde de Porto Seguro4 na década de 1960.

Assim, a Praça Roosevelt sempre foi um

centro de práticas sociais, e, apesar de ter

vivido um período obscuro artisticamente entre

as décadas de 80 e 90, esse espaço nunca perdeu o

seu magnetismo cultural e seu simbolismo artístico.

As pichações refletem usos não-programados da estrutura de concreto que caracteriza a área

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

3: Localizada na Rua João Guimarães Rosa, 111, a Escola Normal Caetano de Campos foi fundada em 16 de março de 1846. Ela funcionava no prédio anexo à Catedral da Sé velha e foi transferida para a Praça da República para o edifício projetado por Antônio Francisco de Paula Sousa e Ramos de Azevedo, inaugurado em 1894, onde atualmente está instalada a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Hoje, denomina-se Escola Estadual Caetano de Campos e funciona na Praça Roosevelt, no prédio antes pertencente ao Colégio Visconde de Porto Seguro. Foram ex-alunos Sérgio Buarque de Holanda, Francisco Matarazzo, Mário de Andrade, entre outros grandes nomes.

4: O Colégio Visconde de Porto Seguro (ex-Deutsche Schule, ou "Escola Alemã", em português, e ex-Ginásio Brasileiro-Alemão, frequent-emente chamada de Porto Seguro) é uma tradicional escola particular de São Paulo. Foi fundada em 1878, em um prédio alugado na Rua Florêncio de Abreu, no centro de São Paulo. Em 1913 a escola mudou-se para seu próprio prédio na Rua Olinda, atual Praça Roosevelt, num prédio hoje ocupado pela Escola Estadual Caetano de Campos. Em 1974, a escola mudou-se para sua atual localização, no Morumbi, com a entrada principal na Rua Clementinne Brenne.

miolo01.indd 31 11/9/10 8:40 PM

Page 32: livro-reportagem - Praca Roosevelt

32

O renascimento

A partir do final dos anos 1990, o teatro da Praça Roosevelt

passou a ganhar novos personagens que devolveram vida

àquele combalido ambiente, que havia se transformado em um reduto

de traficantes, pequenos marginais, garotos de programa e prostitutas.

Por meio de uma inusitada e persistente ocupação de grupos teatrais,

a Roosevelt converteu-se num lugar de rara vitalidade artística.

O primeiro espaço teatral a se instalar no local foi o Studio 184,

em 1996, comandado pela diretora e atriz Dulce Muniz.

A chegada de grupos teatrais deu um novo significado à Roosevelt. “Kabarett”, de Kleber Montanheiro, é um dos espetáculos que estreou no Miniteatro em 2009

FOTO

: DIV

ULG

AÇÃO

miolo01.indd 32 11/9/10 8:40 PM

Page 33: livro-reportagem - Praca Roosevelt

33

Atraído pela possibilidade de uma revitalização

da região e pela ideia de formação de um polo cultural,

o diretor teatral Gabriel Catellani incorporou o espaço

do antigo Cine Bijou à sua escola de artes cênicas

– a Recriarte –, em 1999.

Em 2000, a Cia. de Teatro Os Satyros adquiriu

o espaço onde funcionava um antigo hotel de travestis.

Como o grupo já possuía certa visibilidade na cena teatral,

em pouco tempo a companhia criou ali um movimento

cultural que deu mais visibilidade à área. Então, a

Roosevelt passou a ser frequentada por artistas, jornalistas,

intelectuais, escritores. Com esse novo movimento, o tráfico

e a prostituição se afastaram da praça. Já alguns travestis

e transexuais foram incorporados às produções satyrianas.

De olho nesse burburinho teatral, em 2006, o premiado

e estabelecido grupo Parlapatões inaugurou o Espaço

Parlapatões, com bar e sala de teatro, completando o

atual circuito cultural da Roosevelt.

Outras companhias também foram atraídas pela nova aura

da praça, como a Cia. Teatro X, que iniciou as atividades

por lá em 2002. Porém, em 2005, o grupo deixou o

imóvel e os Satyros assumiram o espaço, inaugurando o

Satyros 2.

Por fim, em 2009, a Cia. da Revista, dirigida por

Kleber Montanheiro, abriu suas portas com o Miniteatro.

Hoje, funcionam na praça cinco teatros, além de quatro

bares e uma livraria, o que garante uma agitada vida noturna

e demonstra um exercício de cidadania inspirador para

a revitalização e reorganização social  de outras  regiões

devastadas da cidade de São Paulo, espaços onde o poder

público, a exemplo da Roosevelt, não consegue desenvolver

e implementar ações eficazes de urbanismo consoantes

com as necessidades complexas de uma metrópole

do tamanho de São Paulo.

A atriz transexual Phedra De Córdoba em “Stranger – Estranho?”, uma das produções dos Satyros que ficou em cartaz em 2009

FOTO

: WAL

TER

ANTU

NES

/ D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo01.indd 33 11/9/10 8:40 PM

Page 34: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo02.indd 34 11/9/10 8:41 PM

Page 35: livro-reportagem - Praca Roosevelt

35

PARTE II

Um palco de militância>> Studio 184

capí

tulo

II

Até conseguir ganhar vida novamente e retomar a sua

humanidade, a Roosevelt foi palco de muitas histórias

protagonizadas por personagens marcantes que fizeram

e fazem a praça ser até hoje um lugar de resistência artística

e cultural. A recuperação do local, depois de um período de

decadência e descaso público, será contada a partir de agora

por meio da trajetória desses personagens que protagonizaram

as transformações ocorridas nos últimos anos.

Fundadora do Studio 184, a atriz e diretora Dulce Muniz foi a primeira a se instalar na praçaFO

TO: G

ABRI

EL O

LIVEI

RA

miolo02.indd 35 11/9/10 8:41 PM

Page 36: livro-reportagem - Praca Roosevelt

36

Dulce Muniz em cena

“Um dia eu ainda vou trabalhar no Teatro de Arena”. Era esta

frase que Dulce Muniz dizia quando, aos 18 anos, vinha para São

Paulo e passava pela Rua da Consolação, onde ficava o palco do

Arena. Nascida em São Joaquim da Barra, um pequeno município

no interior paulista, Dulce demonstrou desde menina uma forte

inclinação ao teatro e ao engajamento político. Seu pai era operário

e espírita em uma cidade extremamente católica. Por causa da religião

da família, a menina era motivo de chacota entre os colegas da escola

e os vizinhos. Sua mãe era dona de casa e criava cinco filhos.

Como a família era grande e os recursos eram escassos, Dulce teve que

trabalhar desde cedo para ajudar em casa. Para fugir da dura realidade,

incentivada por um professor da escola onde estudava, lia muitos clássicos

da literatura mundial. Todo esse contexto de vida fez com que ela

almejasse uma sociedade mais igualitária e um governo mais justo.

Em 1964, ano da tomada do poder do País pelos militares, Dulce

tinha apenas 16 anos, mas a pouca idade não a impediu de se filiar a

uma corrente de resistência política que se formava em São Joaquim

da Barra e de lutar pelo fim da ditadura.

Ao completar 18 anos, Dulce já podia viajar sem os pais. “Eu vinha

para São Paulo e assistia a peças teatrais. Vi o ‘Rei da Vela’, do José

Celso Martinez Corrêa, ‘Morte e Vida Severina’, enfim, muitas

montagens de cunho político”, conta. “Quando eu pegava o ônibus,

passava pelo Centro e descia em frente à Sala São Paulo. De um lado,

via o Teatro de Arena, e do outro, via a Igreja e a Praça Roosevelt.

Então, a Roosevelt sempre fez parte da minha vida”, continua.

Em 1968, quando completou 20 anos de idade, Dulce veio para

ficar. O Brasil se encontrava em pleno regime militar. Foi quando

ela começou a fazer o curso do Teatro de Arena e atuar em grupos

alternativos de teatro. “Entrei para um grupo de teatro semi-amador

que ensaiava em um casarão habitado por mendigos. Alugamos o

espaço e nós mesmos fizemos a reforma. Na mesma época, comecei

a fazer parte de uma organização trotskista, o Partido Operário

Revolucionário Trotskista”, lembra.

Quando se casou, em 1969, passou a morar na Rua Teodoro

Baima, próxima ao Teatro de Arena e na frente da Roosevelt.

“Nessa época, havia muita efervescência naquela região. O Cine

Bijou exibia muitos filmes de arte. Do outro lado, havia a Rua

Maria Antonia, que era um ponto de resistência estudantil. Na

Rua Sete de Abril, havia o Cine Coral, que também exibia

filmes de arte. A Biblioteca Mário de Andrade era outro ponto

de muita atividade cultural e política. A Galeria Metrópole, na

Avenida São Luís, também era um lugar de encontro de artistas.

Studio 184miolo02.indd 36 11/9/10 8:41 PM

Page 37: livro-reportagem - Praca Roosevelt

37

Na Roosevelt, havia uma loja de móveis contemporâneos, que era

de um militante de esquerda. Enfim, havia todo um movimento

nessa região e eu era uma frequentadora assídua da área”, relata.

Sob o governo Médici, Dulce foi presa política e ficou 15 dias no

Departamento de Ordem Política e Social (Dops). “Não cheguei

a ser torturada fisicamente. Um companheiro de luta que estava

conosco apanhou muito e morreu. Por isso nos soltaram. Jogaram

o corpo por uma janela, dizendo que ele havia ingerido veneno,

porque era operário químico. Mas era mentira”, narra.

Nessa época, Dulce já tinha feito o curso do Arena e trabalhava

como atriz profissional com o dramaturgo Augusto Boal. A partir de

então, a atriz nunca mais deixou o teatro e a luta política. “Sempre vivi de

teatro, por isso que prezo tanto o ofício de interpretar. Apresentei durante

muitos anos um programa para crianças na TV Cultura chamado

‘Bambalalão’. Cheguei a fazer uma novela na TV Bandeirantes, fiz

algumas coisas na TV Globo, mas a TV não é uma arte, é uma

indústria. O teatro por sua origem é essencialmente artístico”.

Na década de 90, Dulce passa a morar na Avenida São Luís.

“Eu fazia compras no supermercado da Roosevelt praticamente todos

os dias. Então, vi que estavam fazendo o Teatro de Câmara lá,

que começou a funcionar em 1994. Quando ele foi inaugurado,

me convidaram para dirigir uma peça no espaço”. Além de atriz, diretora e dramaturga, Dulce chegou a fazer parte de uma organização trotskista, o Partido Operário Revolucionário Trotskista, durante a ditadura militar

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo02.indd 37 11/9/10 8:41 PM

Page 38: livro-reportagem - Praca Roosevelt

38 Studio 184

Mas manter um espaço de teatro no Brasil não é uma tarefa fácil.

Devido a dificuldades financeiras, o estabelecimento teria que ser

entregue aos proprietários. Foi então que Dulce Muniz, com ajuda

do autor teatral Dema Francisco e do ator Roberto Ascar, que

ensaiavam no espaço nessa época, resolveu assumir as negociações,

reformar o local e reinaugurá-lo com o nome de Studio 184.

“Fizemos a reforma e reinauguramos em fevereiro de 1996 com banda,

padre, coral de vozes e champanhe. Demos início ao nosso projeto de

preservar a memória, promover debates, fazer leituras de peças e usar o

espaço para a comunidade. De lá para cá, temos lutado muito. Tanto

que nosso último projeto fomentado chama-se ‘E a Luta Continua’”.

Quando Dulce montou o Studio 184, a Roosevelt estava no

auge da degradação. “Havia traficantes, drogados, prostituição,

enfim, todo tipo de desventura e de sofrimento humano. Existia

uma barreira humana que ia da esquina até o final da rua. Não

era possível passar por lá. Nós tivemos que fazer lavagem na praça,

trabalhos com as crianças e com os moradores de rua”.

Com a força de sua arte, Dulce deu início ao processo de

revitalização de um local totalmente abandonado pelos poderes

governamentais. O Studio 184 foi a primeira faísca de um movimento

de resgate e recuperação de um ponto simbólico da cidade de São

Paulo. “O trabalho artístico tem a função de transformar o mundo.

E também tem um papel que considero terapêutico. Então, as

pessoas começaram novamente a frequentar a Roosevelt”, diz a atriz.

Como o Studio 184 foi o primeiro teatro a chegar naquela verdadeira

“terra de ninguém”, Dulce resolveu receber com flores aqueles que

também decidiam se aventurar por aquelas bandas e apostar na região

com algum tipo de empreendimento. “Logo depois, chegou o Gabriel

Catellani, com o Teatro do Ator. Depois vieram os Satyros, os

Parlapatões, e cada um passou a contribuir com seu trabalho. Sempre

que posso, reafirmo que essa recuperação da Roosevelt não é obra de

um grupo solitário”, assegura. “A manutenção da qualidade calçada

que rodeia a praça, onde estão os teatros e os bares, e a luta pela

demolição da ‘praça-edifício’ são obras coletivas. Até o vendedor de

frutas e a moça que vende quinquilharias na calçada serviram para

mudar a praça. O fato de eles estarem ali significa que alguma

humanidade estava sendo preservada”, completa.

Montagem infanto-juvenil “Dia de Brinquedo, Poesia a Gente Inventa!”, estreou em 2007 e foi estrelada por Zenaide Paludo, Dulce Muniz e Felipe Lopes

FOTO

: LEN

ISE P

INH

EIRO

/DIV

ULG

AÇÃO

FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo02.indd 38 11/9/10 8:41 PM

Page 39: livro-reportagem - Praca Roosevelt

39

Para atriz e diretora teatral, a Roosevelt ainda não está completamente

revitalizada e continua decadente. “A praça em si está como sempre

esteve: frequentada por gente que vive no maior sofrimento humano.

Infelizmente, o poder público foi negligente e omisso. A calçada, bem

ou mal, sempre foi mais ou menos assim. Claro que nunca houve

tantos teatros. Hoje, todo mundo sabe que na calçada existe uma vida

artístico-cultural. Isso é muito importante”.

Atualmente, Dulce luta para que a reforma da Praça Roosevelt

aconteça e para que retirem a construção estranha que foi colocada

no local. “Para mim, basta que esse lugar vire uma praça e que de

fato eu veja o outro lado. E que removam esse entulho autoritário.

A Praça Roosevelt era um local de muita agitação. Antes, a gente

podia ver o outro lado. Eu não tinha medo de passar por lá”.

Como forma de manter a vocação artístico-cultural da Roosevelt,

Dulce desenvolve diversos projetos artísticos e políticos que atraem

jovens da esquerda, militantes de movimentos sociais da cidade, grupos

teatrais e o público em geral que passa pela praça. Entre os trabalhos

desenvolvidos no Studio 184, há apresentações de peças infantis, shows

e o projeto “Feminino na Dramaturgia”, com leituras de textos inéditos

escritos e dirigidos por mulheres. O espaço também abriga o Cine

Bijou – Cinema e Memória, que tem como proposta preservar a

memória política da luta contra a repressão, simbolizada pelo próprio

Cine Bijou, e reunir diferentes gerações de militantes. Nas palavras

de Dulce, “o lutar é contínuo. A democracia é conflitante, não

há consenso. Sempre há diferenças e as individualidades têm que

respeitadas. O que não pode haver é desigualdade”.

Fachada do Studio 184, inaugurado em 1996 na Roosevelt

miolo02.indd 39 11/9/10 8:41 PM

Page 40: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo03.indd 40 11/9/10 8:42 PM

Page 41: livro-reportagem - Praca Roosevelt

41

Espaço de preservação Antigo Cine Bijou >> Teatro do Ator

capí

tulo

III

Com o início das atividades do Studio 184, outros grupos

teatrais e profissionais da classe artística começaram a olhar

para a Roosevelt com olhos de “redescoberta”. Em 1998, o professor

e diretor teatral Gabriel Catellani, fundador da escola de arte

Recriarte, decidiu incorporar o espaço do antigo Cine Bijou para

preservar a memória e recuperar a importância histórica do local,

inaugurando o Cine Teatro Recriarte Bijou. A ideia de Catellani

era reconstituir e transformar o ponto em um cineteatro de arte, sem

exterminar as antigas referências e o encanto do Bijou.

“Quando nós incorporamos o prédio do Cine Bijou, tiramos

a placa e as letras do cinema, e até hoje as guardamos carinhosamente.

Nós trouxemos o projecionista do próprio Bijou, fizemos um

apanhado histórico e recondicionamos a estrutura a fim de manter

a originalidade do lugar. O projetor, as poltronas, o gesso e a tela

de projeção foram aproveitados. Fizemos apenas algumas adaptações

para atender as necessidades do teatro”, conta Catellani.

Fachada do Teatro do Ator, instalado onde era o antigo Cine BijouFO

TO: C

AMILA

SILV

EIRA

miolo03.indd 41 11/9/10 8:42 PM

Page 42: livro-reportagem - Praca Roosevelt

42

Inaugurado na década de 1960, o Cine Bijou marcou a história

do Centro da Cidade de São Paulo. O espaço foi lançado sem

grandes pretensões por um casal que percebeu que os grandes cinemas

do Centro tinham muito público. Com a expectativa de abrir um

negócio semelhante, eles montaram toda a estrutura para exibição

das películas, mas, na hora de comprar os filmes, notaram que esse

tipo de negócio era só para grandes exibidoras. Com os recursos

disponíveis, era somente possível adquirir as produções mais baratas,

que não eram muito procuradas. Mas o que eles não sabiam é que

esses filmes, na verdade, eram obras dos grandes mestres do cinema,

como Ingmar Bergman e Luchino Visconti.

“Quando eles começaram a projetar esses longas-metragens,

aconteceu uma verdadeira revolução, pois aquela região já tinha

uma vocação artística. A partir daí, o Bijou virou um grande ponto

de encontro. Na ditadura militar, esse cinema também teve um

papel muito importante”, lembra Catellani que estabeleceu uma

forte amizade com o casal fundador do Bijou. “Sempre tive um

absoluto carinho e afeto pelos idealizadores do Cine Bijou, Dona

Ing e Sr. Francisco. Eles são pessoas extremamente queridas e o que

nós vivemos nesses anos é impagável”, diz.

Catellani, que chegou a ser embaixador cultural do Brasil na Europa

pelo Rotary Internacional na década de 1980, conhecia a importante

história do Cine Bijou. Como ele precisava de um espaço para

apresentações das montagens da escola e tinha um grande apreço por

aquele pedacinho da Roosevelt, decidiu investir no espaço e incorporá-

lo ao Recriarte, sem desrespeitar as características históricas do ambiente.

“O teatro foi o primeiro braço da escola. Quando nós fomos pra

Praça Roosevelt, em 1999, as pessoas diziam que era uma loucura

e que aquilo nunca iria dar certo, mas eu tinha um grande trunfo

nas mãos. Quando voltei da Europa, passei a morar no Centro, na

Rua da Consolação com a Avenida Ipiranga, e vi que a região não

era tão horrorosa e perigosa como diziam. Havia uma multiplicidade

gigantesca de pessoas e também tinha o descaso da própria prefeitura,

mas não desanimei por isso”, relata. “Percebi que o local já tinha um

bom estacionamento, era próximo de tudo, e, se nós criássemos um

vínculo com a região, poderia dar certo”, completa.

Segundo Catellani, no primeiro ano de funcionamento do Cine

Teatro Recriarte Bijou, 20 mil pessoas assistiram a filmes e peças ali.

O espaço foi reinaugurado com cinco espetáculos, e o ator Paulo

Autran cortou a fita de inauguração. “Ele assistiu ao primeiro

espetáculo da casa, que foi ‘O Sr. dos Girassóis’ e, em seguida,

deu um depoimento maravilhoso sobre a sua carreira”, lembra.

Depois de um ano de funcionamento, os custos de manutenção

começaram a ficar altos, e não era mais possível manter o cinema.

Teatro do Ator

FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo03.indd 42 11/9/10 8:42 PM

Page 43: livro-reportagem - Praca Roosevelt

43

“Tentamos todo tipo de patrocínio, apoio de

empresas, anúncios em sites, mas não tivemos

resultados. Então, achei que teríamos que fechar

mesmo”. Mas Catellani conseguiu uma parceria

com o portal Zip Net, que estava no auge no

fim da década de 90. Em 2000, com a nova

negociação, o espaço ganhou novas forças e

passou a se chamar Zip Net Bijou.

Contudo, a parceria também não foi muito

duradoura. Logo após a assinatura do contrato,

a Zip Net foi vendida para o portal UOL,

que só manteve a contratação para cumprir o que

já havia sido previamente combinado, já que o

negócio não interessava para a empresa.

Mesmo com as dificuldades, Catellani

decidiu manter o local somente com os projetos

e espetáculos da escola e, assim, dar seguimento

ao seu projeto de formação de público. Com

novo nome, o Teatro do Ator se estabeleceu

definitivamente na Roosevelt.

Com o estabelecimento definitivo do Teatro

do Ator, já eram duas casas de teatro na praça

e, com isso, a realidade do entorno começou a

mudar. Assim, alguns grupos teatrais começaram

a se interessar pela região para mostrar o seu

trabalho e construir um polo cultural por lá.

Em 2000, a companhia teatral curitibana

Os Satyros se instalou na Roosevelt.

“A partir daí, foi surgindo uma aura em torno

da praça que começou a amplificar tudo o que

nós fazíamos ali. Isso acabou trazendo depois

Os Parlapatões, que viram o movimento

melhorar. Tudo isso fomentou um pensamento

na área, e que hoje já é uma realidade”, declara.FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

Além de peças do circuito teatral, projetos e espetáculos da escola Recriarte são apresentados no Teatro do Ator

miolo03.indd 43 11/9/10 8:42 PM

Page 44: livro-reportagem - Praca Roosevelt

444444

Placa colocada na porta do Teatro do Ator para homenagear os proprietários do Cine Bijou

FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo03.indd 44 11/9/10 8:42 PM

Page 45: livro-reportagem - Praca Roosevelt

45

A esperada reforma

Assim como os demais administradores de estabelecimentos

da Praça Roosevelt, Catellani também sempre almejou a

concretização da reforma prometida pelos órgãos governamentais,

porém o diretor tem receio do que poderá acontecer com os teatros

durante as obras. “A reforma da praça é necessária, mas vai ser

muito difícil. Serão dois anos e nós não sabemos o que acontecerá

com os teatros e com o comércio local. Estamos buscando um

consenso para que a gente consiga sobreviver nesse período”.

Segundo ele, a relação com os outros grupos de teatro que estão

na praça é boa, mas falta diálogo, pois as propostas de cada um,

em princípio, são muito diferenciadas. “Levou um tempo para

que as pessoas percebessem que as diferenças são complementares.

Cada um segue um determinado caminho teatral e tem sua própria

trajetória, além de uma forma particular de conduzir o trabalho.

Mas o importante é ser o mais transparente possível e conviver com

as diferenças. Nós temos que nos unir cada vez mais para que

as coisas aconteçam”, defende. “Temos consciência de que, quando

fomos para a praça, levamos uma luz, que é única. Os outros

estabelecimentos também iluminam a proposta”, completa.

Para ele, a ida dos teatros à Roosevelt deu um grande impulso à

reforma. “Aquela região já é um marco zero, tanto que qualquer

tipo de movimento começa no Centro. Ali é um epicentro de

pensamentos. No entanto, os teatros com certeza ajudaram. Só não

chegaram mais grupos lá porque está tudo sucateado. Você olha

para a praça e vê um escombro. Quando isso mudar, a situação vai

melhorar ainda mais”, diz acreditar.

De acordo com o administrador do Teatro do Ator, outro

problema que prejudica a Roosevelt é a relação entre as residências e

os bares, que ainda é muito precária. “Creio que tem que existir um

pensamento comum mais elaborado. O movimento artístico ainda é

muito pequeno. É muito mais agito do que resposta. A arte fica um

pouco para trás”, sugere.

Catellani afirma que o teatro pode revitalizar um espaço público,

desde que exista uma política cultural aplicada à proposta.

“Há muito dinheiro jogado fora. Há projetos maravilhosos, como

o da Escola SP de Teatro. Todavia, se você for mais fundo, descobre

que há vários interesses, e o que menos interessa é o povo, apesar

de parecer que é para o povo”, denuncia.

Placa colocada na porta do Teatro do Ator para homenagear os proprietários do Cine Bijou

miolo03.indd 45 11/9/10 8:42 PM

Page 46: livro-reportagem - Praca Roosevelt

46

No dia 25 de novembro de 2009, o jornal Folha de S. Paulo

divulgou que a manutenção anual da escola consumirá R$ 8

milhões, liberados pela secretaria e geridos pela organização social de

cultura (OSC) e pela Associação Amigos das Oficinas Culturais

do Estado de São Paulo. Esse valor é superior do que o governo

estadual destinou, em 2009, a seus principais projetos teatrais,

já que as quantias investidas no Programa de Ação Cultural

(ProAC), na campanha "Vá ao Teatro", no Festival Nacional

de Teatro Infantil de Salto (noroeste de SP) e nos braços teatrais

do Circuito Cultural Paulista e da Virada Cultural Paulista

somam R$ 7,1 milhões.

O projeto da Escola SP de Teatro suscita questionamentos

não só de Catellani, mas também de outros membros da classe

teatral, uma vez que, em 2005, após tomar conhecimento

do trabalho de formação de técnicos mantido pelo grupo

Os Satyros no Jardim Pantanal (leste) e da existência de um prédio

abandonado na Roosevelt, o então prefeito José Serra sugeriu que

a trupe pensasse numa iniciativa semelhante para o local. Desde

então, Satyros e Parlapatões passaram a responder pelos cargos

de direção e coordenação da escola. "Apresentei a ideia à comissão

de teatro da pasta e propus parceria a uma OS (organização social),

que topou”, respondeu o então secretário de Estado da Cultura,

João Sayad, na ocasião ao jornal Folha de S. Paulo.

Segundo Catellani, a escolha dos cargos de direção

da escola é obscura e não houve nenhuma consulta a outros

profissionais da área.

Teatro do Ator

FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo03.indd 46 11/9/10 8:42 PM

Page 47: livro-reportagem - Praca Roosevelt

47

Nova realidade

Para se adaptar às transformações da Roosevelt, Catellani

pretende ampliar os cursos oferecidos no Teatro do Ator e criar

um polo de formação no local. “E sentir que existe uma função no

espaço, além do que nós fazemos como arte. Uma função como

elemento transformador de um polo social”.

Cartazes das peças apresentadas no espaço em agosto de 2010

miolo03.indd 47 11/9/10 8:42 PM

Page 48: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo04.indd 48 11/9/10 8:43 PM

Page 49: livro-reportagem - Praca Roosevelt

49

Um palco visceral>> Os Satyros

capí

tulo

IV

Inaugurado em 2002, o Espaço dos Satyros Dois é reflexo do crescimento dos projetos assinados pela companhia teatral

Como Catellani almejava, a Roosevelt começou a se tornar

um verdadeiro polo cultural depois do início das atividades

do Teatro do Ator. Contudo, as transformações mais fortes

só começaram a ser notadas quando o terceiro grupo teatral instalou-

se na praça. Em 2000, uma companhia que passou quase dez

anos fora do País voltou para o Brasil e passou a apresentar alguns

trabalhos em Curitiba. Porém, eles almejavam entrar novamente

no circuito paulistano, como aconteceu em 1989, quando

Os Satyros nasceram. Rodolfo García Vázquez e Ivam Cabral,

os fundadores do grupo, foram para Europa em 1992 em busca

de novas experiências artísticas, mas sempre tiveram em mente voltar

para a capital paulista. Eles desejavam um espaço para apresentar

suas peças, que tinham um caráter ousado, transgressor e visceral.

Em junho de 1999, chegaram oficialmente a São Paulo para

buscar esse lugar. Mas não era qualquer bairro que os interessava.

Eles tinham uma fixação em encontrar um espaço no Centro

paulistano. “Estávamos de acordo sobre isso, era decidido: ‘vamos

trabalhar na zona central de São Paulo’. Não era uma questão

financeira, porque nesse momento até dinheiro a gente tinha. Não

estaria fora das possibilidades abrir um espaço na Vila Madalena,

por exemplo. Mas não era nosso tesão ir para lá”, diz Ivam Cabral

no livro “Os Satyros: um palco visceral”.

Segundo Rodolfo Gárcia Vázquez, eles deram preferência

à Roosevelt por ser um local muito central, que cruza os eixos

principais da cidade. “Apesar de ser degradado, a gente tinha

esperança que desse certo. Nós demos um prazo de cinco anos para

se estabelecer em São Paulo. No final do segundo ano, a gente

já via uma transformação muito evidente”, afirma Vázquez.FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo04.indd 49 11/9/10 8:43 PM

Page 50: livro-reportagem - Praca Roosevelt

50

Primeiras dificuldades

Em agosto de 2000, Vázquez encontrou uma sala na Roosevelt.

“Parecia um restaurante, com um salão no fundo. Estava vazio,

o aluguel era muito barato, e ficava num lugar superdeteriorado.

Estava todo detonado, piso de terra, sem paredes, sem instalação

elétrica, sem nada”, conta.

Além das dificuldades físicas do estabelecimento, o grupo enfrentou

muitos problemas com o entorno por causa da criminalidade. “A

praça era muito escura. As luzes da rua estavam todas queimadas

porque os traficantes jogavam pedras. Só havia um bar de garotos

de programa, outro de travestis e mais um de prostitutas. O prédio

que alugamos estava abandonado e tinha sido um hotel de travestis.

Ele havia sido invadido e se transformado em um inferninho de

prostituição. A praça era muito perigosa”, lembra Vázquez.

Além das dificuldades físicas do estabelecimento, o grupo enfrentou

muitos problemas com o entorno por causa da criminalidade. “A

praça era muito escura. As luzes da rua estavam todas queimadas

porque os traficantes jogavam pedras. Só havia um bar de garotos

de programa, outro de travestis e mais um de prostitutas. O prédio

que alugamos estava abandonado e tinha sido um hotel de travestis.

Ele havia sido invadido e se transformado em um inferninho

de prostituição. A praça era muito perigosa”, lembra Vázquez.

Então, a reforma na parte de baixo do prédio começou a ser feita

com o dinheiro dos próprios artistas. Fazia 20 anos que ninguém

usava o lugar. Foi preciso construir uma estrutura completa. Foram

seis meses de obras. Durante esse processo, o carro do engenheiro foi

arrombado e assaltado na frente do teatro.

Em 1º de dezembro de 2000, foi inaugurado o Espaço dos

Satyros com a peça “Retábulo da Avareza, Luxúria e Morte – Pacto

de Sangue”, texto de Ramón del Valle-Inclán. A estreia ganhou um

espaço na imprensa, porém a situação era pior do que imaginavam.

Muitos críticos teatrais se recusavam a assistir ao trabalho do grupo por

causa da localização da sala e falavam isso aos diretores da companhia.

“Nós começamos a usar a calçada da Rua Martinho Prado.

Os traficantes deixavam o pó embaixo de uma tampa de bueiro

na calçada. Quando o nosso público chegava, eles abriam o bueiro

e começavam a mexer nas drogas. Nós pedimos para que eles

mudassem de lugar. Então, começaram as ameaças. Eles sentavam

em uma mureta em frente ao espaço e ficavam encarando. Recebemos

uma intimidação por telefone de que haveria um banho de sangue

no teatro porque estávamos atrapalhando o tráfico”, relata o diretor.

Os Satyros

Atriz Andressa Cabral em cena da peça “Justine”, última parte da “Trilogia Libertina dos Satyros”, formada por “A Filosofia na Alcova" e "Os 120 Dias de Sodoma” FO

TO: T

HIA

GO

VEN

TURA

/DIV

ULG

AÇÃO

miolo04.indd 50 11/9/10 8:43 PM

Page 51: livro-reportagem - Praca Roosevelt

51

Apesar da montagem de estreia contar com atores fazendo personagens femininos

e atrizes interpretando papeis masculinos, as travestis também não simpatizavam com

o grupo. Certo dia, a elegante travesti cubana Phedra De Córdoba passou pela

porta e os fundadores do espaço a convidaram para entrar e assistir ao espetáculo. Ela

se emocionou muito com o que viu e apresentou os artistas para as outras amigas. Phedra

abriu as portas para que os Satyros entrassem em contato com outro universo de referência.

“A partir daí, algumas travestis começaram a trabalhar no grupo. Alguns michês também

começaram a participar das peças. Aos poucos, nós passamos a incorporar a comunidade

local. E aí os preços dos imóveis subiram muito. A região começou a ficar mais segura.

As travestis que moravam nos apartamentos foram deixando a praça, porque elas não

tinham mais condições de bancar”, relata.

Com essas primeiras mudanças, aos poucos, o público voltou a frequentar a Roosevelt.

“Começamos a abrir o teatro em vários horários, além do fim de semana. Na época,

o teatro em São Paulo acontecia só aos finais de semana. A gente começou a fazer teatro

às terças e quartas-feiras”.

Em 2002, a companhia assumiu o espaço onde estava o Teatro X e inauguraram

o Satyros Dois. O movimento foi crescendo cada vez mais e, com isso, a Roosevelt

voltou a ter visibilidade e atrair pessoas. Os espectadores também passaram a abarrotar

a praça nas Satyrianas, projeto que a companhia promove anualmente, no qual realiza,

durante 78 horas ininterruptas, espetáculos, palestras e performances, que se estendem

do crepúsculo de quinta-feira até a meia-noite de domingo.FOTO

: TH

IAG

O V

ENTU

RA/D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo04.indd 51 11/9/10 8:44 PM

Page 52: livro-reportagem - Praca Roosevelt

52

Contato com o poder

Um momento memorável da trajetória do grupo na Roosevelt

foi em 2005, quando realizaram uma performance acerca

do livro “O Mistério das Bolas de Gude”, do colunista Gilberto

Dimenstein, da Folha de S. Paulo. O espetáculo integrava

a programação da Virada Cultural, evento da Prefeitura de

São Paulo que mantém atividades culturais em diversos pontos

da cidade durante 24 horas de um fim de semana em maio. Porém,

essa apresentação reuniu um público inusitado: o então prefeito José

Serra, o secretário municipal de cultura, Carlos Calil, o subprefeito

da Sé, Andrea Matarazzo e outras personalidades. Naquela

madrugada, o ex-prefeito e seu séquito puderam ver de perto

a sensual dança de Phedra, a diva underground da Roosevelt.

Cena do espetáculo “Justine”, que estreou em 2010 no Espaço dos Satyros

Atriz Cléo De Páris em cena de "Liz", do grupo teatral Satyros

FOTO

S, D

A ES

QU

ERD

A PA

RA A

DIR

EITA

: TH

IAG

O V

ENTU

RA/D

IVU

LGAÇ

ÃO; M

ARCE

LO M

AFFE

I/DIV

ULG

AÇÃO

FOTO

: MAR

CELO

MAF

FEI/D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo04.indd 52 11/9/10 8:44 PM

Page 53: livro-reportagem - Praca Roosevelt

53

Escrita pelo dramaturgo cubano Reinaldo Montero e dirigida por Rodolfo García Vázquez, “Liz” estreou em 2009 para comemorar os 20 anos da Companhia de Teatro Os Satyros

Presença magnética

Ao longo desses anos de permanência na praça, os Satyros marcaram

a região com outras montagens e apresentações antológicas, como

“Transex” (2004), “A Vida na Praça Roosevelt” (2005),

“Os 120 dias de Sodoma” (2006), “Filosofia na Alcova” (2008),

“Justine” (2009), entre outras. E, assim, tornaram-se referência

do teatro paulista e deram nova vida àquele pedaço do Centro,

sem nenhuma ajuda governamental.

“Sempre foi um movimento próprio dos teatros. Nunca houve uma

intercessão direta da prefeitura”, assegura Vázquez. Segundo ele,

a companhia também não foi consultada sobre o projeto de reforma.

Para o diretor, a praça conseguiu se reestabelecer sem ajuda do poder

público, e, hoje, o que atrapalha a vida teatral e noturna da Roosevelt

é a vizinhança. “Acho que a gente tinha que poder colocar as mesas

novamente na calçada e trabalhar com mais tranquilidade. Falta tirar

alguns vizinhos chatos da praça, porque eles estão causando problemas

para nós. Eles nos perseguem, nos acusam de tráfico de drogas, abrem

ações contra nós. São coisas que não precisavam acontecer”, reclama.

miolo04.indd 53 11/9/10 8:44 PM

Page 54: livro-reportagem - Praca Roosevelt

54 Os Satyros

Segundo Rodolfo, isso acontece porque os preços dos imóveis

subiram muito e, com isso, um novo tipo de morador, com mais poder

aquisitivo, foi para lá. “Há oito anos, um apartamento lá valia R$ 32

mil. Hoje, vale R$ 200 mil. Houve uma valorização muito grande

em pouco tempo”, informa.

No final de 2010, a região promete ficar ainda mais movimentada,

já que em novembro será inaugurada a sede definitiva da SP Escola de

Teatro, que também funcionará na Roosevelt. Enquanto as obras não

ficam prontas, a instituição mantém-se no Brás, região central de São

Paulo. “A escola vai transformar ainda mais o espaço. São 11 andares

e 1200 alunos por ano. Vai ser uma loucura”, garante.

Dessa forma, a cada dia que passa, o local busca novas formas

de sobreviver e atrai cidadãos ligados aos mais diversos tipos

de manifestações teatrais, transformando-se em um dos palcos

principais dos acontecimentos pertinentes ao universo das artes cênicas.

E os Satyros, com toda a sua força artística, foi uma das partes

fundamentais para transformar a praça em um teatro a céu aberto.

Atores Cléo De Páris e Fábio Penna em cena de “Liz”

Atriz Patrícia Vilela em cena da peça “Safo”, que estreou em 2009 no Espaço dos Satyros com texto de Ivam Cabral

FOTO

S, D

A ES

QU

ERD

A PE

LA D

IREI

TA: L

AERT

E KÉ

SSIM

OS/

DIV

ULG

AÇÃO

; MAR

CELO

MAF

FEI/D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo04.indd 54 11/9/10 8:44 PM

Page 55: livro-reportagem - Praca Roosevelt

555555miolo04.indd 55 11/9/10 8:44 PM

Page 56: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo05.indd 56 11/9/10 8:45 PM

Page 57: livro-reportagem - Praca Roosevelt

57

Circo, Risos e Xícaras de Açúcar>> Chegam os Parlapatões

capí

tulo

V

Parlapatões na comédia "O Papa e a Bruxa", que traz texto do dramaturgo italiano Dario Fo e direção de Hugo Possolo

Em 2005, o panorama da Praça Roosevelt já era bem diferente

daquele que os Satyros encontraram quando chegaram

lá, em 2000. Já não havia mais prostituição e nem tráfico

de drogas. Além disso, com o movimento noturno gerado pelas

peças e bares, a área foi tomada por atores, dramaturgos, diretores,

espectadores e boêmios. Mas ainda faltava algo para completar

o quadro artístico: uma pitada de circo.

Atraídos pelo burburinho cultural da praça, o grupo teatral

Parlapatões, conhecido por unir números circenses ao teatro de rua,

também decidiu inaugurar sua sede na Roosevelt. Em 11 de setembro

de 2006, Hugo Possolo, Raul Barretto, Henrique Stroeter

e Claudinei Brandão, membros pertencentes à linha de frente

da companhia, iniciaram as atividades no Espaço Parlapatões.

O local conta com uma sala de espetáculos de 96 lugares, além

do Café Excêntrico, uma bar espaçoso que também traz um pequeno

palco para apresentações de montagens menores.FOTO

: LU

IZ D

ORO

NET

O/D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo05.indd 57 11/9/10 8:45 PM

Page 58: livro-reportagem - Praca Roosevelt

58

A coincidência da inauguração com a fatídica data de aniversário

da queda das Torres Gêmeas em Nova York foi mero acaso,

mas é claro que os circenses não deixaram isso passar em branco.

Para estrear no espaço com o humor que sempre acompanhou

os “parlapas”, como são carinhosamente chamados pela classe

artística, “aviões parlapatônicos” sobrevoaram os céus da Roosevelt

e marcaram a abertura do local. Na data, “os palhaços” também

foram recebidos pelos integrantes dos Satyros com xícaras de açúcar,

a fim de celebrar a nova vizinhança.

“O panorama quando nós chegamos já era bem melhor

porque já existia todo um trabalho anterior, mas com certeza

nós potencializamos tudo isso. Nós trouxemos outro tipo

de público. Sempre tivemos uma ótima relação com Os Satyros

e já participávamos das Satyrianas e dos eventos realizados

na praça”, conta o ator parlapatão Raul Barreto.

E foi justamente em uma das Satyrianas que os Parlapatões decidiram

se instalar na praça. “Durante o evento, nós apresentaríamos uma

cena de um espetáculo de rua. Na época, estávamos procurando um

espaço para o grupo e vimos um imóvel vazio que ia ao encontro do

que queríamos há algum tempo. Já existia uma grande frequência da

classe artística por lá. Quando chegamos, o trabalho de revitalização

já havia sido iniciado. Nós só potencializamos o processo”, afirma.

A chegada do grupo à praça, além de consolidar o movimento

de recuperação, contribuiu para trazer uma nova linguagem artística

ao local. Na porta de vidro do espaço, é possível ver o símbolo do

grupo: um chapéu-coco virado para cima, contendo um tijolo e uma

flor. Essa marca demonstra o lema dos Parlapatões, que difere dos

outros teatros da praça. Como o grupo tem base no teatro de rua, os

atores sempre passaram o chapéu para garantir o sustento. Já o tijolo

simboliza o trabalho, enquanto a flor remete à poesia.

Parlapatões

Raul Barretto em cena de “Parlapatões Clássicos do Circo”, que estreou em 2007

“A Noite dos Palhaços Mudos”, espetáculo com a Cia. La Mínima, que ficou em cartaz no Espaço dos Parlapatões em 2008

FOTO

: LU

IZ D

ORO

NET

O/D

IVU

LGAÇ

ÃO

FOTO

S: LU

IZ D

ORO

NET

O/D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo05.indd 58 11/9/10 8:45 PM

Page 59: livro-reportagem - Praca Roosevelt

59

Com irreverência, humor e tradição circense, a presença

da companhia deu um ar de leveza à praça e criou um novo tipo

de interação com o entorno.

“O trabalho que nós realizamos hoje dialoga de diversas formas com

o que está ao nosso redor. O primeiro ponto é a ocupação. Quando

o teatro fecha, é possível ver o que é realmente a praça. É um vazio,

um marasmo, um perigo. Então, a manutenção se deve, sobretudo,

a um ato de cidadania representado pela população frequentando e

tomando posse de um lugar que é dela. Não somos nós que obrigamos

a vinda das pessoas. Colocamos as peças em cartaz e mantemos o café

cultural, que é onde as pessoas ficam depois das atrações”, diz.

De acordo com Barreto, o bar por si só não teria alcançado

o grande movimento se não fossem as montagens teatrais. “Grande

parte da agitação do bar se deve à frequência dos espectadores

do teatro”, assegura.

Segundo ele, quando há uma produção que não está com

um público muito bom, fatalmente, o movimento do bar é afetado.

“É lógico que há clientes que nem sempre vão ao teatro, sobretudo

pessoas que chegam mais tarde na praça, embora o melhor horário

da nossa programação seja à meia-noite nas sextas e sábados.

Sempre há casa cheia nesses horários. A praça tem uma vocação

noturna inegável”, avalia.

Na peça “O Papa e a Bruxa”, o Papa sofre de um problema de coluna, que o faz caminhar todo torto e com pânico de receber milhares de crianças terceiro-mundistas na Praça São Pedro

miolo05.indd 59 11/9/10 8:45 PM

Page 60: livro-reportagem - Praca Roosevelt

60

Tiros no dramaturgo

Apesar de ter ajudado a dissociar a área do binômio

tráfico de drogas e prostituição e, com isso, recuperar

a vida noturna e afastar a violência, o Espaço Parlapatões foi

atingido por um acontecimento brutal na madrugada de 05 de

dezembro de 2009.

Naquela ocasião, a Roosevelt já estava vazia. Eram 5 horas

da madrugada. Por causa do Programa de Silêncio Urbano

(PSIU) da Prefeitura de São Paulo, que determina que os bares

e restaurantes fechem as portas após 1 hora da manhã, caso não

tenham isolamento acústico. O Espaço Parlapatões estava com

as portas fechadas, porém ainda existiam clientes dentro do local.

Hélio Pottes, Hugo Possolo e Raul Barretto durante o espetáculo “Parlapatões Clássicos do Circo”

FOTO

: LU

IZ D

ORO

NET

O/D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo05.indd 60 11/9/10 8:45 PM

Page 61: livro-reportagem - Praca Roosevelt

61

Quando a atriz Fernanda D’Umbra entrou no bar para ver

seus amigos, quatro homens armados a acompanharam. Depois

de uma discussão, um deles atirou no músico Carlos Carcarah e

deu três tiros no dramaturgo Mário Bortolotto, assíduo personagem

da praça. Felizmente, Bortolotto conseguiu se recuperar e hoje já

frequenta novamente o espaço. Ele também já ficou em cartaz no

Espaço Parlapatões depois do ocorrido.

“Depois do incidente com o Bortolotto nada mudou. Inicialmente,

ficamos preocupados e achamos que poderia afetar o movimento,

pois o noticiário foi muito intenso. Foi uma notícia negativa que

acabou atraindo um olhar para a praça sob esse ângulo da violência,

que até então nunca havia acontecido”.

Como o assalto aconteceu no final do ano, as peças já estavam

em fase de encerramento. Quando as atividades reiniciaram no ano

seguinte, a movimentação do local voltou normalmente. “De certa

forma, a memória do brasileiro é muito curta para essas coisas. Ele

se lembra do fato, mas não fica tão presente no imaginário. De

uma forma maléfica, o espaço acabou ficando conhecido por isso.

Felizmente, o desfecho foi positivo. Se tivesse tido outro final, a

história do lugar também seria outra. Ficaria uma mácula muito

forte”, garante Raul Barreto. “O fato do Bortotto também fez com

que os olhares se voltassem para a praça. O teatro foi alvo de uma

violência, as pessoas se solidarizaram com isso e passaram a exigir

do poder público uma contrapartida de reformar esse espaço. Isso

catalisou um processo de transformação”, completa.

Para Barreto, uma região só é segura enquanto há pessoas que a

frequentam. No momento em que o público vai embora, ela passa

a ser insegura. “Eu tenho mais medo da Roosevelt durante o dia do

que à noite. A praça precisa voltar a ser ocupada. É um problema

geral da população de São Paulo. As praças, de alguns anos para

cá, deixaram de ser um lugar de encontro e se transformaram em um

lugar de passagem apenas. Não é mais um espaço de convívio. A

gente quer que a Roosevelt seja um lugar de encontro. Durante o

dia, há um ermo. Enquanto as calçadas estão cheias, não há casos

de violência, qualquer que seja o horário”.

O ator conta que a fatalidade ocorreu em uma época em que

a Lei do Silêncio estava vigorando com muita força e que todos

os estabelecimentos estavam sendo ameaçados com multas pesadas.

“Todo mundo recolhia as mesas das calçadas. Nós nunca tivemos

mesas na parte de fora e mantínhamos o bar aberto mesmo nessas

condições. No dia do incidente, era o único local aberto naquele

horário, e os meninos entraram justamente por isso. Se os vizinhos

estivessem ocupando a calçada, eles não entrariam. O convívio social

harmônico afasta a criminalidade”, diz.

miolo05.indd 61 11/9/10 8:45 PM

Page 62: livro-reportagem - Praca Roosevelt

62 Parlapatões

Bar do Espaço Parlapatões é um ponto de encontro de jovens, artistas, intelectuais, escritores, jornalistas

Transformação do espaço público

Segundo Barreto, sempre vão existir problemas, pois não é possível atender a todos.

“É difícil conseguir unanimidade e agradar todas as minorias, e não apenas uma

maioria. A área deveria atender os skatistas, por exemplo, que fazem parte de uma tribo

que já frequenta o local. Deveria existir um espaço para eles. Como há essa vocação

teatral, deveria haver um espaço público de teatro, como já prevê o projeto”, sugere.

Para ele, cabe ao grupo cuidar do espaço privado da companhia e não

há interesse de envolvimento político com possíveis mudanças. “A nossa vontade

é imperativa no que diz respeito à proposta estética do espaço. No ambiente

público, o ideal é que consiga atingir o cidadão de uma forma mais ampla. Sempre

alguns ficarão insatisfeitos, porque o público contempla uma grande diversidade

de opiniões e anseios”, opina.

Mas, mesmo perante todas as dificuldades, os “parlapas” conseguiram construir

um lugar do riso na Roosevelt e contribuíram ainda mais para humanização desse

ambiente urbano do centro de São Paulo, imprimindo sua marca na modificação

do contexto destrutivo em que o local estava inserido. Pode-se dizer, portanto,

que, com a inauguração do Espaço Parlapatões, o teatro se consagrou como

um ponto de concentração da boemia artística, resgatando a aura que havia

sido perdida depois dos anos 1980. FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo05.indd 62 11/9/10 8:45 PM

Page 63: livro-reportagem - Praca Roosevelt

63miolo05.indd 63 11/9/10 8:45 PM

Page 64: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo06.indd 64 11/9/10 8:46 PM

Page 65: livro-reportagem - Praca Roosevelt

65

Teatro de montar >>Miniteatro entra em cena ca

pítu

lo V

I

Entrada do Miniteatro, que abriu suas portas em 2009, no número 108 da Praça Roosevelt

Assim como os Parlapatões, o diretor teatral Kleber

Montanheiro sempre trabalhou com uma proposta estética

peculiar, que combina entretenimento e crítica social. À frente dos

trabalhos do grupo Cia. da Revista desde 1995, Montanheiro

também queria ter um espaço próprio para apresentar projetos

autorais, realizar pesquisas e armazenar o acervo da trupe –

um lugar que buscasse mostrar somente o que é essencial na relação

entre palco e plateia, além de cumprir a função de discutir ideias

e expor conceitos da companhia.

Como o nome já sugere, o grupo desenvolve um trabalho de revisão

do Teatro de Revista5. “Esse gênero durou 100 anos no Brasil,

desde 1859 até 1964. Existe um material muito rico desse período

que ficou sem registro, e os artistas passavam em revista o que estava

acontecendo. Com a decadência do movimento, o estilo tornou-se

o que conhecemos hoje, retratando um monte de mulheres de maiô

descendo escadas. Transformou-se meramente em entretenimento,

sem compromisso com conteúdo. Com a nossa proposta, estamos

revisando o que está acontecendo lá fora também. Podemos

usar plumas na cabeça da mesma forma, como entretenimento.

Como Brecht dizia, não adianta fazer teatro político sem entreter

o público, mas deve-se prestar atenção no momento de entrar com

a crítica. É o que a gente procura fazer por aqui”, explica.

FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

5: A Revista foi um gênero teatral do século XIX e XX, de gosto marcadamente popular, que teve importância na história das artes cênicas tanto no Brasil como em Portugal. Esse estilo tinha como características a apresentação de números musicais, o apelo à sensualidade e a comédia leve com críticas sociais e políticas. O Teatro de Revista no Brasil contou com produções de companhias renomadas, como as de Walter Pinto e Carlos Machado. O gênero foi responsável pela revelação de inúmeros talentos no cenário cultural, como a cantora luso-brasileira Carmem Miranda, sua irmã Aurora, além das chamadas vedetes que fizeram imenso sucesso, como Wilza Carla, Dercy Gonçalves, Elvira Pagã, entre outras. Dorival Caymmi, Assis Valente e Noel Rosa também fizeram parte da Revista.

miolo06.indd 65 11/9/10 8:46 PM

Page 66: livro-reportagem - Praca Roosevelt

66

O ator e diretor Kleber Montanheiro em cena de “Kabarett”

No clima dos cabarés dos anos 40, o musical faz uma releitura do famoso gênero alemão

miolo06.indd 66 11/9/10 8:46 PM

Page 67: livro-reportagem - Praca Roosevelt

67

Em 02 de janeiro de 2009, Montanheiro passou pela Roosevelt

e viu uma placa de “aluga-se” em um dos estabelecimentos. “Nós

já estávamos de olho na praça porque a região tinha a ver com nosso

trabalho de pesquisa, que não tem objetivo único comercial, o que

nos possibilita fazer coisas diferenciadas”, conta.

Aquele espaço disponível materializou-se como uma

oportunidade inusitada de concretização do objetivo do grupo.

Tudo parecia ser uma agradável surpresa do destino, porém,

havia um problema: o espaço era muito pequeno. Ali funcionava

um bar e o local não tinha estrutura para receber um público

maior do que 30 pessoas. Contudo, a capacidade de criação

artística do diretor não deixou a chance escapar. Com criatividade,

ele conseguiu aproveitar todas as possibilidades da casa e, assim,

criou um verdadeiro “teatro de montar”.

“Não mexemos muito na estrutura. Construímos um camarim

com banheiros para os atores, colocamos sistema de ar-condicionado,

cortinado antirruído e cadeiras com estofamentos para proporcionar

conforto ao nosso público. Também temos um espaço onde

produzimos e armazenamos nosso acervo. Além disso, fizemos

algumas adaptações para atender ao público com deficiência”, relata.

Assim, em 13 de abril de 2009, a Roosevelt ganhou mais uma sala:

o Miniteatro. A sede do grupo foi inaugurada com os espetáculos

"Bem Aventurados os Anjos que Dormem" e "A Odisseia

de Arlequino", ambos com dramaturgia de Marília Toledo e direção

de Kleber Montanheiro. Quem entrava no espaço, na ocasião,

se impressionava com o aproveitamento criativo de cada canto daquele

estabelecimento. Montanheiro havia desenvolvido o conceito de espaço

múltiplo, com a ideia de compor o lugar de maneira única, como

se fosse um Lego, o que foi refletido no próprio logotipo do Miniteatro.

“No andar de baixo, colocamos alguns cubos de madeira, por

exemplo, que podem virar arquibancada, lounges, mesinhas, enfim,

o que for necessário”, afirma.

Cena de “Kabarett”, estrelada pela Companhia da Revista

FOTO

S: M

ARCI

O D

IAS/

DIV

ULG

AÇÃO

miolo06.indd 67 11/9/10 8:46 PM

Page 68: livro-reportagem - Praca Roosevelt

68

Hoje, teatro tem capacidade para 50 espectadores. O espaço

também conta com um bar, que pode receber até 30 pessoas.

Assim como os vizinhos Satyros, que possui a chamada “Trilogia

Libertina”, o repertório do grupo traz uma trilogia chamada

“Clássicos para Menores”, formada pelas montagens “Doente

Imaginário”, “Sonho de Uma Noite de Verão” e “A Odisseia de

Arlequino”. A companhia também apresenta os espetáculos “Bem

Aventurados os Anjos que Dormem” e “Kabarett”.

Os projetos da Cia. Da Revista são sustentados por meio

de subsídios governamentais, como as leis federais de incentivo

à cultura. Em 2009, eles conseguiram o Programa de Ação

Cultural (ProAC) e o a Lei de Fomento à Cultura. Um bar

também foi montado na sede para auxiliar nas despesas do espaço.

Para Montanheiro, apesar da convivência entre os grupos ser positiva,

ainda não existe uma troca artística, o que poderá acontecer com

o tempo e com o aprofundamento de identidades. “Não temos projetos

conjuntos, mas quando acontece algum evento, todos participam, não

só os teatros, mas é um movimento mais coletivo”, diz.

O diretor teatral conta que a segurança da área, desde que

as companhias instalaram-se por lá, nunca foi ruim devido

ao movimento gerado pela sociedade. “O que aconteceu com

o Mário Bortolotto foi algo muito pontual que poderia ter acontecido

em qualquer outro lugar. Existem moradores de rua na praça, mas

nós conhecemos a maioria deles. Tudo depende de como é a relação

estabelecida com o entorno. Não adianta achar que o que acontece

na parte de dentro do teatro é deferente da realidade da Roosevelt.

A única diferença é que existe uma porta”, afirma.

Segundo ele, um dos projetos de pesquisa da trupe é pesquisar

a questão do público e do privado. Tendo em vista esta proposta,

a Cia da Revista chegou a fazer uma cena no Miniteatro, na qual

o público ficava dentro do teatro e os atores, quando passavam pela

moldura da porta, transformavam-se nos transeuntes da praça, como

se eles entrassem em uma tela de cinema.

“Durante a performance, aconteceram cenas do lado de fora,

assim como alguns moradores da rua entraram no Miniteatro

e se manifestaram. Então, concluímos que é necessário

absorver de alguma maneira o que está acontecendo no externo.

Lá fora é real”, defende.

Miniteatromiolo06.indd 68 11/9/10 8:46 PM

Page 69: livro-reportagem - Praca Roosevelt

69

“Kabarett” traz a sensualidade dos cabarés da Berlim dos anos 1940

De acordo com o diretor, o grupo enxerga a influência do

teatro no processo de revitalização da praça como um movimento

político, não no sentido partidário, de poder, mas de consciência

em saber onde você se insere em uma sociedade e o que você

pode fazer por ela, seja artisticamente ou de outras formas.

“O papel da arte, aparentemente, é entreter, mas ela ensina,

critica, denuncia, aponta caminhos diferentes, e isso é ser cidadão.

Existe um pensamento artístico que inclui a cidade, o cidadão,

o poder, a educação e todas as esferas sociais. Esse pensamento

faz parte da nossa formação e do ofício que escolhemos para

trabalhar”, orgulha-se.

Com essa vocação transformadora e uma proposta

contemporânea que visa o íntimo, o essencial, o mínimo necessário

para a compreensão dramatúrgica por parte dos espectadores,

o Miniteatro foi saudado como mais um símbolo do teatro

alternativo da Roosevelt. Com sua luz carregada de humor

e crítica, o espaço multiuso contribuiu para a recuperação da

auto-estima de um endereço que estava fadado à degradação

e ao descaso antes da ocupação dos artistas.

FOTO

: MAR

CIO

DIA

S/D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo06.indd 69 11/9/10 8:46 PM

Page 70: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo07.indd 70 11/9/10 8:47 PM

Page 71: livro-reportagem - Praca Roosevelt

71

Entre charutos, navalhas e memórias >>Barbearia do Seu Renato

capí

tulo

VII

Seu Renato Orbetelli entre as cadeiras de couro preto da sua barbearia

Apesar de o movimento teatral ter sido creditado como

o grande fator da revitalização cultural da Roosevelt,

há outros personagens importantes que participaram dessa trajetória

de resistência e transformação urbana. O comerciante Renato

Orbetelli, por exemplo, dono da barbearia Diplomata, instalada

no número 240 da praça desde 1968, integra o elenco principal

da construção dessa história.

Seu Renato, como todos o chamam por lá, nasceu em 1947, em

São Bernardo, no ABC paulista. Aos cinco anos, mudou-se para

o bairro do Ipiranga, na capital. Na adolescência, sua segunda

casa era a Praça Roosevelt, que ainda nem havia passado pela

inauguração oficial. Naquela época, ele era caixa do restaurante

e bar A Baiúca, um dos ícones boêmios da região.

Aos 20 anos, ele mudou de ofício e deixou o bar, mas não deixou

a praça. Passou a trabalhar como assistente na barbearia e charutaria

do Sr. Vitorino, que ficava ao lado da Baiúca.

“Quando a praça foi inaugurada, em 1970, eu estava presente.

Era tudo muito bonito. As floriculturas funcionavam 24 horas

e o supermercado também. Quando casei, no ano seguinte à

inauguração, passei a morar na região da Roosevelt e fiquei lá por

dez anos. Na época em que os meus filhos eram pequenos, os levava

para brincar na praça. Era muito tranquilo e chique”, lembra.FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo07.indd 71 11/9/10 8:47 PM

Page 72: livro-reportagem - Praca Roosevelt

72 Barbearia do Seu Renato

Em 1976, depois de nove anos de trabalho na

barbearia, ele conseguiu juntar recursos e comprar

o estabelecimento, pois Vitorino não podia mais

mantê-lo. Depois de assumir o posto de “barbeiro

oficial”, o jovem se dedicou ao negócio e construiu

um verdadeiro “patrimônio histórico”, já que o local

tornou-se uma referência para a região.

Assim, com o passar dos anos, a barbearia

e charutaria tornou-se um dos grandes pontos

simbólicos da Roosevelt. Personalidades como os

apresentadores Bolinha e Chacrinha, o comediante

Chico Anysio, os atores Armando Bógus e

Otávio Augusto, o cantor Nelson Ned, o ex-

futebolista Arturzinho, o instrumentista Rubinho

Barsotti, o cantor Cauby Peixoto aparavam a

barba e os cabelos com o requisitado Seu Renato.

Contudo, nos anos 1980, a marginalidade

começou a devastar a região e, com isso, os

comerciantes, aos poucos, abandonaram a área.

“Infelizmente, por mais ou menos 20 anos, a praça

ficou abandonada. Eu não gosto nem de falar sobre

isso. Todos os estabelecimentos foram fechando: a

Baiúca, a padaria que funcionava onde hoje está o

Espaço Parlapatões, o cabeleireiro Jacques Janine,

que ficava no final da rua, e uma doceria chamada

Vendôme. Só restou a minha barbearia”, conta.

Segundo ele, a partir de 1990, a deterioração da

área começou a se intensificar ainda mais e a Roosevelt

ficou totalmente abandonada. “Abriu um bar

chamado Corsário, frequentado só por garotos de

programa, o que acabou afastando muitos clientes

da barbearia. Começou a haver muita droga e

prostituição. A região virou um inferno. Nunca fui

assaltado à mão armada, mas meu estabelecimento

chegou a ser invadido três vezes nessa época. Durante

a madrugada, arrombavam a porta e entravam pelos

fundos”, relata.

O comerciante diz que, com a chegada dos teatros,

a praça melhorou muito e voltou a ser frequentada

por artistas e intelectuais. Com a retomada do

movimento, a região ficou mais valorizada e os

imóveis ficaram mais disputados, aumentando de

preço. “Eu já tive propostas para vender o meu

negócio, mas não quero sair daqui”, garante.

Charutos, cigarros e tabacos são vendidos na parte da frente barbearia e charutaria Diplomat, que tem tradição desde 1968

FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo07.indd 72 11/9/10 8:47 PM

Page 73: livro-reportagem - Praca Roosevelt

73

Aos finais de semana, Seu Renato fica até as 23h na charutaria para atender os clientes que frequentam os bares e teatros da praça

Durante esse período em que Seu Renato

resistiu e manteve seu comércio aberto, lutou

muito pela recuperação da Roosevelt. Com uma

força saudosista, participou da Ação Local e das

reuniões promovidas com a Prefeitura para discutir

a requalificação urbana da área. “É preciso fazer

com que a praça em si seja útil e usada pela

sociedade. Seria interessante promover feiras,

exposições e eventos para atrair pessoas, como

acontecia antigamente. Na década de 1970,

a construção era rodeada por estabelecimentos,

como livraria, pinacoteca, biblioteca, bulevar,

restaurante e correio”, afirma.

Contudo, de acordo com o barbeiro, antes da

abertura de mais comércios na Roosevelt, é preciso

que haja um acordo harmônico com os moradores

locais, pois existem muitas desavenças por causa

do barulho que insurge da vida noturna. “Há

moradores novos na região que reclamam das casas

de teatro e dos bares, mas falo pra eles que a praça

na década de 1990 era terrível. Eles nem viriam

morar aqui, porque não poderiam colocar o nariz

para fora da porta”, assegura. “O comércio gera

movimento e evita violência”, completa.

Proprietário do estabelecimento mais antigo

da Roosevelt, Seu Renato é a memória viva

do local e, por isso, é conhecido por todos que

frequentam aquele ambiente. Por amor a sua

barbearia e ao contexto em que está inserido,

nunca deixou a região.

Depois da chegada dos teatros, os negócios

melhoram e, aos finais de semana, passou a ser

possível manter a tabacaria, que fica na parte da

frente do salão, aberta até 23 horas. Assim, o

barbeiro foi e é mais um elemento importante na

retomada da humanidade da Praça Roosevelt,

uma vez que seu estabelecimento alcançou um

valor histórico indiscutível para a área. Entre

cabelos, barbas, charutos e conversas, Seu Renato

construiu um espaço da memória que resistiu

à degradação e auxiliou a reconstruir a vocação

humanística da região.

FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo07.indd 73 11/9/10 8:47 PM

Page 74: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo08.indd 74 11/9/10 8:49 PM

Page 75: livro-reportagem - Praca Roosevelt

75

Símbolo underground >> Mário Bortolotto

capí

tulo

VIII

Assíduo frequentador da Roosevelt, o ator e dramaturgo londrino Mário Bortolotto é um dos símbolos da área

Enquanto Seu Renato simboliza o lado prosaico da Roosevelt,

o dramaturgo Mário Bortolotto, figura constante na região,

representa o aspecto alternativo e marginal da praça. Além de

escrever peças teatrais, Bortolotto atua e dirige espetáculos que trazem

um estilo calcado nas histórias em quadrinhos, no blues, no rock, na

linguagem suburbana e no universo beatnik6. Nascido em Londrina, em 1962, chegou a estudar em seminário

católico, mas desde a adolescência demonstrava vocação para as artes

e literatura. Em 1996, Bortolotto foi para São Paulo com seu grupo

Cemitério de Automóveis, fundado em 1982, em sua cidade natal.

Depois de participar de inúmeros festivais de teatro pelo Brasil,

o artista ganhou o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de

Arte (APCA) pelo conjunto da sua obra e o Prêmio Shell de

melhor autor pela peça “Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet”,

ambos em 2000.

Praticamente todas as obras escritas pelo dramaturgo já foram

publicadas, o que resultou em quatro livros: “Seis Peças de Mário

Bortolotto - Volume I”, “Seis Peças de Mário Bortolotto - Volume

II”, “Sete Peças de Mário Bortolotto Volume III” e “Doze Peças de

Mário Bortolotto - Volume IV”.

Ele também chegou a produzir o livro de poesia “Para os inocentes

que ficaram em casa”, além dos romances “Mamãe Não Voltou

do Supermercado” e “Bagana na Chuva”. Uma coletânea de textos

foi lançada, em 2006, com o título “Atire no Dramaturgo”, que

gerou em um blog homônimo. O livro de poemas “Um Bom

Lugar Para Morrer”, por sua vez, chegou ao público em 2010.

FOTO

: REN

ATO

PARA

DA

6: Representado por escritores como Jack Kerouac e Joyce Johnson, Beatnik foi um movimento sociocultural que se iniciou no fim dos anos 1950 e no começo dos anos 1960, depois da II Guerra Mundial, com o intuito de apregoar um estilo de vida antimaterialista, longe dos padrões consumistas. Em 1948, Kerouac introduziu o termo “Geração Beat”, que caracterizava o submundo de juventude anticonformista de Nova Iorque daquela época. O adjetivo "beat" fazia parte do calão do submundo, onde Kerouac procurava inspiração.

miolo08.indd 75 11/9/10 8:49 PM

Page 76: livro-reportagem - Praca Roosevelt

76 Mário Bortolotto

Desde que passou a morar na capital paulista, Bortolotto

escolheu a região central para viver e, consequentemente, por causa

da proximidade geográfica e da identificação artística, começou

a frequentar a Praça Roosevelt. “Eu conheci a praça antes dessa

revitalização teatral inusitada. Acho que as melhores coisas que

acontecem não contam com ajuda governamental. Surgem a partir

da iniciativa privada, e o caso da Roosevelt foi assim”, diz. “Na

verdade, era um lugar meio difícil. Era complicado passar por lá

e conviver ali, porque era barra pesada. Os Satyros tiveram uma

atitude heroica em abrir um teatro lá e fazer um trabalho pioneiro.

Fiquei muito satisfeito porque também comecei a frequentar mais a

praça a partir de então. Assim que os Satyros inauguraram o teatro,

nós sentimos que algo bacana aconteceria para a área e aconteceu

mesmo”, conta o dramaturgo.

Quem passa pela calçada da Rua Martinho Prado aos finais de

semana, frequentemente, pode se deparar com Bortolotto sentado na

guia bebendo cerveja e conversando com amigos da classe artística.

Por ter esse grande envolvimento com a região, depois da chegada dos

Satyros, ele chegou a pensar em abrir um teatro na Roosevelt, porém

não teve condições financeiras devido à valorização imobiliária. “Sou

um cara que bebia nos botecos daquele lugar e, por isso, comecei a

fazer teatro por ali também”, afirma. “Conheço todo mundo e todo

mundo me conhece porque moro lá perto, na Rua Avanhandava.

Conheço as pessoas que moram lá, que trabalham por lá, vou muito

à livraria HQ Mix, que vende quadrinhos bacanas, assisto a peças

com meus amigos também”.

Fernanda D'Umbra e Bortolotto em cena de “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet”, que estreou no Espaço Parlapatões em 2008

Banda Saco de Ratos, composta por Mário Bortolotto (vocal), Fabio Brum (guitarra), Marcelo Watanabe (guitarra), Fábio Pagotto (baixo) e Rick Vecchione (bateria)

“Música Para Ninar Dinossauros”: espetáculo do dramaturgo Bortolotto estreou em 2010, depois do assalto sofrido por ele no fim de 2009

miolo08.indd 76 11/9/10 8:49 PM

Page 77: livro-reportagem - Praca Roosevelt

77

Fernanda D'Umbra e Bortolotto em cena de “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet”, que estreou no Espaço Parlapatões em 2008

Banda Saco de Ratos, composta por Mário Bortolotto (vocal), Fabio Brum (guitarra), Marcelo Watanabe (guitarra), Fábio Pagotto (baixo) e Rick Vecchione (bateria)

“Música Para Ninar Dinossauros”: espetáculo do dramaturgo Bortolotto estreou em 2010, depois do assalto sofrido por ele no fim de 2009

Cartaz do lançamento de “Um Bom Lugar Pra Morrer”, livro de poesias de Bortolotto

Contudo, para ele, a praça era mais divertida e tinha um ar

mais alternativo quando não abrigava tanto burburinho. “Agora

existem muitas pessoas que vão para aquele lugar só por causa do

agito. Acho isso um saco. Não tenho muita paciência. Hoje,

frequento bem menos do que antes, e continuo porque é perto da

minha casa”, diz.

Segundo Bortolotto, apesar de atrair um público boêmio e

intelectualizado, há muitas pessoas que frequentam a Roosevelt por

modismo e não entendem qual é o sentido da produção artística

daquela região. “Existe muita gente que caiu de ‘paraquedas’ e

não sabe o que está fazendo por lá. Às vezes, alguns vão para

praça porque é um lugar que saiu no jornal. Quando vira ponto de

playboy, já não interessa mais para mim. Tem um público novo que

vai para conhecer e não gosta, pois talvez não esteja preparado para

receber uma peça mais difícil, que tenha outro tipo de linguagem”.

Para ele, a Roosevelt é um lugar que resiste com muitas

dificuldades em um contexto repleto de adversidades e, por isso,

tem que manter o ar marginal, transgressor. Assim, a produção

teatral que emana daquelas salas não pode ser absorvida pela

cultura de massa. “O público mais conservador que vai lá tem que

estranhar o lugar. Não pode se adaptar. Se está se adaptando,

é porque alguma coisa está errada”, defende.

FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

FOTO

S: D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo08.indd 77 11/9/10 8:49 PM

Page 78: livro-reportagem - Praca Roosevelt

78

Botolotto diz que faltam casas de rock ‘n roll na Roosevelt. Além

disso, acredita que a praça em si deveria abrigar lojas, floriculturas,

livrarias e cafés, funcionando 24 horas. “Deveria haver um polo

cultural mesmo. Não adianta colocar somente alguns banquinhos

para as pessoas sentarem e arvorezinhas para ficar bonitinho”, opina.

Em relação à segurança, ele afirma que é preciso ter um esquema

mais efetivo e que de fato funcione. “Quanto mais pessoas frequentam

a praça, mais problemas acontecem. Automaticamente, a segurança

deve ser reforçada”, diz.Entretanto, para ele, a praça está perdendo

o espírito underground e, com a reforma, pode deixar seu propósito

alternativo. “Sou um cara idealista, romântico. Acredito no teatro

não-convencional, distante do padrão comercial.

Com a melhoria da praça, muitos comerciantes vão querer abrir

bares por lá só para ganhar grana. Abrir restaurantes e cobrar tudo

muito caro. Isso me afasta. Hoje, as peças que são feitas por na

Roosevelt estão mais comerciais e acho que vão ficar mais ainda.

Isso me assusta um pouco, porque já existe muita gente fazendo

teatro para esse tipo de público. A gente podia fazer alguma coisa

diferente”, lamenta.

Mário Bortolottomiolo08.indd 78 11/9/10 8:49 PM

Page 79: livro-reportagem - Praca Roosevelt

79

Tiros no dramaturgo

Depois do incidente ocorrido no Espaço Parlapatões, em que

Bortolotto e seu amigo músico Carlos Carcarah foram

baleados depois de uma discussão, o dramaturgo garante que não

ficaram traumas e que já frequenta o local normalmente. “Só me sinto

incomodado quando abaixam as portas e o público fica lá dentro. Foi

isso que aconteceu naquela noite. Se as mesas pudessem ficar do lado

de fora, nada teria acontecido”, diz.

Na madrugada do assalto, o dramaturgo levou três tiros, sendo que

um atingiu a coluna e outro passou perto do coração. Felizmente, não

teve sequelas graves, já que só ficou com fortes dores no braço, e continuou

com a sua produção artística. Em abril de 2010, quatro meses depois do

incidente, estreou no mesmo espaço onde fora baleado a peça “Música

Para Ninar Dinossauros”, que, segundo resenha publicada no jornal

O Estado de S. Paulo em 23 de abril de 2010, "representa muito

melhor o seu universo", tendo como tema as reminiscências da

adolescência de três quarentões.

Para Bortolotto, o teatro não deve ter um propósito pré-determinado

e deve ser fruto de um anseio lúdico e prazeroso. “Teatro não tem que

ter papel nenhum. Você tem que fazer teatro porque gosta desse jogo,

de contar histórias, porque quer se divertir. Pode ser que tenha um

papel, mas eu nem quero saber qual é”, brinca.

Com seu jeito gauche de estar no mundo, Bortolotto foi fundamental

na retomada do espírito boêmio e underground da Roosevelt, e, cada vez

que senta na calçada daquele entorno, reafirma que lá há um reduto da

resistência artística e humana. Desse modo, já é considerado um ícone

do movimento espontâneo de revitalização da praça. Tiros não foram

capazes de deter a praça e nem o dramaturgo.FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

Bortolotto na Coletivo Galeria, em Pinheiros, antes da apresentação de sua banda Saco de Ratos

miolo08.indd 79 11/9/10 8:49 PM

Page 80: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo09.indd 80 11/9/10 8:49 PM

Page 81: livro-reportagem - Praca Roosevelt

81

Espaço da Boemia>>Doca e Arlete

capí

tulo

IX

Seu Doca na frente do bar Papo, Pinga e Petisco (PPP), onde nos anos 1960 existia a casa Djalma’s

Hoje, Bortolotto já é uma das figuras mais representativas da

boemia da Roosevelt, entretanto, essa vocação da praça à

vida noturna é antiga e foi despertada nos anos 1970, por meio da

presença de diversos bares e boates que circundavam a região.

O dramaturgo é só mais uma manifestação dessa herança notívaga

que pode ser vista por quem frequenta os arredores da área à noite.

O que muitos não sabem é que, em um dos bares da calçada da Rua

Martinho Prado, há um casal que pertenceu à juventude boemia de

anos atrás, e ainda hoje mantém acesa a vida noturna do local.

Desde 1997, Esdras Vassalo, conhecido como Doca, e Arlete

Vassalo são administradores do espaço que abriga o Papo, Pinga e

Petisco, o famoso “PPP”, um dos botecos mais charmosos da praça.

Contudo, a relação do casal com a Roosevelt é bem mais antiga.

Como foi mencionado no primeiro capítulo deste livro, Doca foi

proprietário de duas boates famosas da década de 1970, localizadas

no entorno da praça: o Ton Ton Macoute e a Cave.

As casas noturnas fizeram sucesso até aproximadamente 1974.

Neste ano, Doca teve seu primeiro filho com Arlete, com quem

casara em 1970. “Meu filho aprendeu a andar na parte de cima

do pentágono da praça. Depois, estudou no Colégio Caetano de

Campos. No início, era muito bom. A área havia sido arborizada.

Muita gente passeava por lá”, conta o comerciante. FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo09.indd 81 11/9/10 8:49 PM

Page 82: livro-reportagem - Praca Roosevelt

82 Doca e Arlete

Depois de marcar a noite paulistana com duas das principais casas

noturnas da cidade, Doca resolveu desfrutar melhor do convívio com

sua família e se afastou do agito desse tipo de negócio. Porém, em

1997, resolveu novamente abrir um comércio com sua esposa. Como

a Roosevelt sempre fez parte da vida do casal, nada melhor do que

apostar novamente naquele local. A praça estava no auge da fase

de degradação, entretanto, eles tinham esperança em uma possível

reforma que já havia sido anunciada pela Prefeitura.

Então, Doca e Arlete alugaram o ponto que abrigou o Djalma’s,

onde, em 1964, a cantora Elis Regina fez seu primeiro show

paulistano. No início, apostaram em uma loja de antiguidades, mas

que não durou muito tempo. Para não perder o negócio, decidiram

investir em uma casa de pizzas em pedaços, mas também não deu

certo e gerou 11 meses de prejuízo, pois a região estava abandonada.

“Quando chegamos, a praça estava completamente vazia. Não

passava mais ninguém por lá”, lembra Arlete.

Porém, no final da década de 1990, a situação começou a mudar.

Com a chegada dos teatros, a Roosevelt ganhou novos ares. “Quando

ainda havia a pizzaria, os atores do Satyros vinham todos para cá. Mas

como deu muitos gastos, resolvemos abrir um bar, pois não tínhamos

nada a perder. Então, aproveitamos tudo da loja de antiguidades

na decoração. Hoje, a boutique ainda funciona bem pequenininha.

Resolvemos diminuir a loja e aumentar o bar”, afirma a esposa.

Segundo Doca, os teatros movimentaram a área e ajudaram a

recuperar a região. “Mas não quer dizer que o mérito seja somente

deles, pois quem enfrentou o pão que o diabo amassou fomos nós.

Hoje, temos luz na calçada e segurança nos finais de semana. Esta

iluminação que existe hoje foi a Ação Local que conseguiu, quando

eu era o vice-presidente. Os marginais chegaram a roubar todos os

refletores e a fiação. Isso foi fruto da falta de segurança, sendo que

nós estamos no quintal da Guarda Civil Metropolitana (GCM)

e da Polícia Militar”, protesta.

De acordo com Arlete, apesar de a movimentação noturna ter

aumentado, o público ainda não frequenta a Roosevelt durante

o período diurno. “De dia, a praça ainda está morta. Não tem

circulação de pessoas. Abro o bar às 18 horas, mas a gente percebe

que é o mesmo movimento fraco que havia em 1997.

A comerciante diz que ainda existem muitos problemas e descaso

público. “Falta segurança, limpeza, higiene. O caminhão da Prefeitura

lava a praça todo dia, mas não adianta. Os moradores de rua defecam

e fica um cheiro muito ruim. Há muitos ratos também. Além disso,

quando chove, tem muito vazamento. Então fica uma lagoa”, reclama.

Nos anos 1970, Doca também foi proprietário da boate Cave, na Rua da Consolação, conhecida por abrigar artistas da Jovem Guarda

FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo09.indd 82 11/9/10 8:49 PM

Page 83: livro-reportagem - Praca Roosevelt

83

Repleto de objetos antigos e com uma espécie de sebo nos fundos, com vinis, livros, o PPP é um dos botecos mais frequentados da Roosevelt

Durante a sua trajetória, o estabelecimento nunca sofreu assalto à mão

armada, mas já arrombaram a casa e levaram o caixa. “Quando houve o

acidente com o Bortolotto, nós tivemos um policiamento de mais ou menos

dois meses. No primeiro mês, os policiais ficavam 24 horas. Agora, é

raro aparecer um carro da polícia para esses lados”, comenta.

Para Arlete, a situação precária é resultado da falta de interesse dos

órgãos governamentais. “Os políticos só prometem e não fazem nada.

É uma grande ignorância da parte das autoridades. A Roosevelt é

um ponto importante. Não entendo porque abandonaram tanto

esse lugar. Alguma coisa está errada”, lamenta.

Atualmente, o Papo, Pinga e Petisco já conquistou os

frequentadores da região e tem um público próprio. “Mesmo

quando os teatros estão de férias, temos a clientela que conquistamos

ao longo dos anos. Lógico que os teatros também favorecem. Entre

uma peça e outra, as pessoas saem e comem alguma coisa”, diz.

Dessa forma, o casal ainda contribui com o agito noturno da

Roosevelt, fazendo com que dramaturgos, artistas, espectadores e

boêmios possam circular pela praça tranquilamente, como na época

em que existiam a Cave e o Ton Ton. FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo09.indd 83 11/9/10 8:49 PM

Page 84: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo10.indd 84 11/9/10 8:51 PM

Page 85: livro-reportagem - Praca Roosevelt

85

A Diva da Roosevelt>>Phedra De Córdoba

capí

tulo

X

A atriz transexual cubana Phedra De Córdoba em cena de “Stranger - Estranho?”, sob a direção de Rodolfo García Vázquez

Se Doca e Arlete representam a história da vida noturna da

Roosevelt, a transexual cubana Phedra De Córdoba já se consagrou

como a estrela da praça, e sua persona exprime a inclinação dionisíaca

do local. Assim como o casal que hoje é proprietário do Papo, Pinga

e Petisco, Phedra sempre participou ativamente da agitação notívaga da

região, sempre brilhando em cima dos palcos, sob a luz de holofotes.

A atriz, cantora e bailarina nasceu em Havana, em 1940, como

Rodolfo Acebal. Aos 13 anos, época em que estudava na escola

Rosalía de Castro, já se destacava nos bailados flamencos e chegou a

integrar a trupe da famosa bailarina espanhola Lola Flores. Durante a

adolescência, em busca do estrelato, Phedra chegou a fazer programas

de calouros nas emissoras televisivas cubanas, teatro amador e muitos

testes em companhias teatrais renomadas. “Sou muito ambiciosa.

Queria ser estrela. Mas não foi fácil. Tive que começar por baixo.

Não me davam papéis principais, só de corista”, lembra.

Em 1954, com o nome artístico Felipe de Córdoba, a artista

conquistou um papel de destaque em uma companhia de dança

na qual tinha sido corista. No espetáculo, fazia a dança da ópera

“Carmem”, de Georges Bizet, como solista. A partir de então,

começou a viajar com o grupo pelo mundo.

Depois de fazer turnê pela Venezuela e pelo México, a companhia

foi aos Estados Unidos. Ainda menor de idade e sem visto,

ao final da temporada, Phedra não quis voltar para Havana

e decidiu tentar a carreira em Miami. “Perdi a passagem de volta

e fiquei por lá. Tinha um pouquinho de dinheiro para me manter,

mas não foi fácil conseguir trabalho, pois não falava inglês. Depois

de várias tentativas, fiz um teste e comecei a cantar e dançar em uma

boate. Fiquei quatro meses por lá”, conta. FOTO

: WAL

TER

ANTU

NES

/ D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo10.indd 85 11/9/10 8:51 PM

Page 86: livro-reportagem - Praca Roosevelt

86 Phedra de Córdoba

Por meio de muita audácia e talento, ela conheceu um empresário

que a levou para Nova Iorque, onde fez shows de cabaré. Mas,

como era menor de idade e estava ilegal no país, teve que deixar

os Estados Unidos e ir para Porto Rico, onde protagonizou um

número de rumba. Quando o contrato terminou, voltou para

Cuba e para sua antiga companhia espanhola, porém, não deixou

a estrada e o anseio pelo sucesso. Fez apresentações na Costa Rica,

Panamá, Peru, Chile, Nicarágua, Bolívia e Argentina. Na terra

de Evita Péron, no ano de 1957, subiu ao palco ao lado das cantoras

brasileiras Dalva de Oliveira e Ângela Maria.

Nessa época, Phedra tinha um namorado brasileiro que trabalhava

na embaixada do Brasil na Argentina. Além de profundo

admirador do trabalho da amada, o rapaz era amigo de Walter

Pinto, um dos maiores produtores artísticos da época. “Esse rapaz

era meu fã incondicional e falava que Walter tinha que me ver.

Quando o empresário viu meu espetáculo, adorou. Eu estava com

17 anos. Em 1958, um produtor me trouxe para o Brasil”, relata.

Quando Phedra chegou ao Teatro Recreio, no Rio de Janeiro,

já havia um quadro pronto para ela. Em 1959, depois de trabalhar

no Rio como vedete por quatro meses, foi para São Paulo. Foi então

que a artista conheceu a região na Roosevelt.

“Nessa época, onde hoje é o Espaço dos Satyros, existia um

restaurante que eu frequentava, chamado Spadoni. Do outro lado da

Igreja da Consolação, na Rua Major Sertório, havia a boate da famosa

cafetina Laura, a La Licorne. Trabalhei lá e na Chicote, outra casa

noturna da Laura. Os shows aconteciam de terça a domingo”, conta.

Con ustedes, Phedra De Córdoba!

Em 1967, decidiu assumir de vez a personalidade feminina e

começou a tomar hormônios. “Nunca tive voz grossa e fisionomia

masculina. Comecei o tratamento e fiz um pouco de terapia, mas já me

sentia mulher. Passei a me chamar Phedra De Córdoba. Estreei como

Phedra no Teatro Rival com Costinha”, diz.

Passaram-se os anos e a vedete cubana queria conquistar o mundo.

Foi para a Espanha, Argentina, Uruguai como Phedra. Quando

voltou ao Brasil, era o auge da ditadura militar e, além de ser

transexual, ainda não tinha documentação brasileira. “Eu viajava o

Brasil inteiro para que a Polícia Federal não me pegasse, pois poderia

ser presa ou deportada. Fui muito audaz e conquistadora”, afirma.

Durante a encenação de “Stranger”, que ficou em cartaz em 2009, Phedra cantava músicas em castelhano

FOTO

: WAL

TER

ANTU

NES

/ D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo10.indd 86 11/9/10 8:51 PM

Page 87: livro-reportagem - Praca Roosevelt

87

A argentina e Danilo Dainezi durante o musical “Stranger-Estranho?”

Em 2000, Phedra conheceu os Satyros. Na ocasião, a cubana

morava na Rua Avanhandava, perto da Roosevelt, e passava todo

dia por lá para ir ao metrô República. “Só atravessava a praça de dia,

porque de noite era puro tráfico. Quando começou a decadência,

depois da década de 1970, as pessoas começaram a se mudar para os

Jardins. Então, prostitutas, cafetões e traficantes passaram a morar

na região”, lembra.

Na época, os diretores dos Satyros, Ivam Cabral e Rodolfo

García Vázquez, estavam reformando o local onde seria o espaço

da companhia e sempre viam a elegante senhora passar por lá. “Eu

chamava a atenção deles, pois sempre fui muito chique. Um belo dia,

em 2000, eu estava passando na frente do Satyros e Ivam me pegou

pelo braço. Ele me convidou para conhecer o teatro e para fazer a peça

‘Retábulo da Avareza, Luxúria e Morte com eles’”, diz.

Mas na época, Phedra estava com viagem marcada para fazer

shows e televisão em Brasília. Em 2001, voltou para São Paulo e

entrou para os Satyros. “Meu primeiro personagem foi Agostin,

em ‘Filosofia na Alcova’, do (Marquês de) Sade. A partir daí,

fiz praticamente todas as peças da companhia: ‘Vestido de Noiva’,

‘Kaspar’, ‘Transex’, ‘Inocência’, ‘Divinas Palavras’, ‘A Vida na

Praça Roosevelt’ e muitas outras”.

Segundo ela, depois da primeira peça feita pelos Satyros, muitos

atores saíram no elenco, porque ficaram com medo da praça. “O lugar

era uma ‘boca de lobo’. As pessoas tinham pavor daqui”, relata.

Hoje, a situação da região é diferente, mas, de acordo com

Phedra, há moradores que não aprovam o trabalho de revitalização

feito pelos teatros. “Há uma senhora moradora, por exemplo, que

sempre que pode levanta guerra contra nós. Sempre que ela vê

uma mesa na calçada, liga para a polícia. Fala que fazemos muito

barulho e inventa histórias. Até fez um abaixo-assinado contra as

casas teatrais”, diz.

Mesmo perante as adversidades, a Roosevelt e seus personagens

resistem e mantêm a propensão histórica da praça para a vida

artística, noturna e boêmia. Com todo seu glamour, a transexual

cubana faz parte dessa trajetória de luta e atrai mais luzes, brilhos

e paetês para essa parte do centro de São Paulo. Hoje, conhecida

por todos que frequentam o espaço, ela é considerada a grande

estrela da praça. “Eu me tornei uma pessoa significativa dos Satyros

e da área, pois participei de toda luta. Os próprios jornalistas me

transformaram em um ícone da área, na diva da Praça Roosevelt”,

afirma. Assim, sem dúvida, Phedra é uma das grandes personagens

desse grande espetáculo que é a história da região. FOTO

: WAL

TER

ANTU

NES

/ D

IVU

LGAÇ

ÃO

miolo10.indd 87 11/9/10 8:51 PM

Page 88: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo11.indd 88 11/9/10 8:51 PM

Page 89: livro-reportagem - Praca Roosevelt

89

Flor no asfalto >>Floricultura Roosevelt

capí

tulo

XI

Inaugurada em 1994, a Floricultura Roosevelt é uma das mais tradicionais da região

Apesar de a trajetória da Roosevelt ter

sido marcada pela presença constante

das figuras noturnas, boemias e artísticas, há

personagens que fazem parte de grupos sociais

diferentes, cuja importância reivindica seu lugar

neste livro. É o caso de Agnaldo José dos

Santos, proprietário da Floricultura Roosevelt,

que se instalou na praça em 1994. Entre

pichações, vazamentos e rachaduras, nasceram

flores que conferiram vida e humanidade ao local.

Um trecho do poema “A Flor e a Náusea”,

do livro “A Rosa do Povo” (1945), de Carlos

Drummond de Andrade, metaforiza de maneira

simbólica a importância dessa presença por lá: FOTO

: Cam

Ila S

IlveI

ra

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

miolo11.indd 89 11/9/10 8:51 PM

Page 90: livro-reportagem - Praca Roosevelt

90 Floricultura roosevelt

Em uma analogia, este poema pode ilustrar o significado da

floricultura mais antiga do local, que ganhou vida sobre a construção

de concreto da praça, demonstrando a degradação da área, já que foi

transformada em um espaço totalmente abandonado pelos poderes

públicos. Mas, mesmo perante a um ambiente totalmente devastado

pelo descaso e pela marginalidade, Santos decidiu apostar naquele

lugar e abrir uma floricultura, comércio que é um dos grandes

símbolos das praças tradicionais brasileiras.

“Nós investimos no defeito da Roosevelt. Hoje, a praça não

está muito bonita, mas quando chegamos a situação era bem pior.

Era uma fase crítica. As pessoas olhavam e falavam: ‘Precisamos

fazer alguma coisa para este lugar’. Nós investimos na floricultura

independentemente disso, porque acreditamos que um lugar é bom

ou ruim de acordo com o que fazemos dele”, afirma o comerciante.

Para ele, a praça nunca apresentou perigo, já que Santos nunca

enfrentou problemas com assalto ou com a vizinhança. “Convivemos

muito bem com todos. O que precisa mudar é o aspecto visual. Além

disso, é preciso modificar a questão cultural das pessoas, no sentido do

uso do espaço público, caso contrário, acredito que não vai melhorar”.

Santos afirma que o espaço público só não se degrada quando

a sociedade se apropria dele. Nesse sentido, a própria população

fiscaliza e faz a manutenção do local. “Quando há ocupação,

naturalmente, a frequência melhora. Na Roosevelt, a falta de uso

gerou a desocupação. Isso atrai pessoas marginalizadas socialmente.

Hoje, a sociedade discrimina onde há esse tipo de gente”, diz.

Na época em que o comerciante abriu a floricultura, a situação

da praça era muito precária. “Foi uma oportunidade da ocasião.

O local era feio, ruim e mal frequentado. Agora, a gente está

contente com o projeto de reforma, mas se o espaço não for bem

aproveitado, vai continuar ocioso e logo vai se degradar”, alerta.

Ele conta que, ainda hoje, a área de construção da praça em si

é frequentada por poucas pessoas. “Alguns andam de skate, mas

poucos a utilizam de fato. Esse comportamento reflete o perfil dos

moradores região. A faixa etária é alta e há poucas famílias nos

apartamentos. Não se vê crianças andando por aqui”, relata.

Para Santos, a chegada dos teatros modificou o entorno da

Roosevelt e contribuiu para dar vitalidade cultural à região.

Contudo, a praça em si não sofreu muitas transformações. “A área

onde a floricultura está instalada não melhorou com a abertura das

casas teatrais, mas para a rua foi muito bom, porque as pessoas vão

aos teatros. O teatro é muito importante para a região, que já tem

um histórico cultural interessante. Mas a praça não é nivelada com

a rua. Está em um plano mais alto. Muitas pessoas que vão assistir

aos espetáculos nunca subiram lá”, diz. FOTO

: Cam

Ila S

IlveI

ra

O simpático quiosque de flores está situado dentro do pátio da praça

miolo11.indd 90 11/9/10 8:51 PM

Page 91: livro-reportagem - Praca Roosevelt

91

De acordo com o comerciante, para mudar essa realidade é

necessário haver mais atrativos para a população, já que o espaço da

praça não é uma passagem natural de pedestres. “As pessoas não

precisam passar por lá, por isso a Roosevelt fica vazia. Se não há

atrativos, muita gente não vem à praça”.

Na opinião do comerciante, os paulistanos não têm a cultura

de ficar em praças. Sendo assim, os órgãos governamentais devem

pensar em alternativas para que o uso desse tipo de espaço público de

fato aconteça, evitando que existam locais abandonados pelo desuso.

“Banquinho para sentar já é uma coisa ultrapassada. Tem que haver

cada vez mais comércio”, sugere.

De acordo com Santos, a reforma do local gera muitos assuntos e

opiniões sobre a região e atrai muitas pessoas. “Não acho o projeto

bom e nem ruim. Acho interessante a mídia que ele desperta. E isso

vai fazer com que as pessoas venham para cá. O que vai dar valor

para a praça é a frequência”, diz.

Hoje, a floricultura de Santos funciona de segunda a segunda,

das 8h às 20h. Com isso, o comércio ajuda a movimentar a área e

a transformar, com flores e persistência, o panorama de degradação

e abando que assolou a Roosevelt a partir da década de 1970. Esse

comércio já se tornou um símbolo da área e é responsável por conferir

beleza e vitalidade ao local.

miolo11.indd 91 11/9/10 8:52 PM

Page 92: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo12.indd 92 11/9/10 8:53 PM

Page 93: livro-reportagem - Praca Roosevelt

93

Uma praça sem cidade >>A Roosevelt e o poder público ca

pítu

lo X

II

Praça dos Pombos é ponto de encontro de moradores da região

A militância de Dulce Muniz, a resistência do Cine Bijou,

a visceralidade dos Satyros, o humor dos Parlapatões,

as múltiplas possibilidades do Miniteatro, as lembranças do barbeiro

Renato, o espírito maldito de Mário Bortolotto, a perseverança de Seu

Doca e Dona Arlete, o glamour de Phedra e as flores de Agnaldo

contribuíram para recuperar a vitalidade da Praça Roosevelt e torná-la

novamente um ponto de referência da cultura paulistana. Assim, uma

organização inusitada de diversos segmentos da sociedade fez com que

um lugar degradado ganhasse novas perspectivas e retomasse a sua

antiga visibilidade. Desse modo, a vida social pôde insurgir reclamando

seu lugar no ambiente público.

A construção que abriga a praça, entretanto, ainda é um espaço

problemático, pois não possui manutenção pública, segurança, iluminação

ou limpeza. Por isso, o acesso ao local ainda é difícil e o complexo é

considerado desordenado, inseguro e até mesmo desagradável para muitos. FOTO

: CAM

ILA S

ILVEI

RA

miolo12.indd 93 11/9/10 8:53 PM

Page 94: livro-reportagem - Praca Roosevelt

94 A Roosevelt e o poder público

O entorno, de certa forma, tornou-se novamente um reduto

de atividades artísticas e culturais. Contudo, a Roosevelt aguarda

uma reforma há mais de dez anos e, até outubro de 2010, não

havia passado pelo processo de revitalização urbana prometido

pela Prefeitura de São Paulo. De acordo com a Subprefeitura da

Sé, nada mais impede o início das obras planejadas pela Empresa

Municipal de Urbanização (Emurb). O projeto de requalificação

do espaço urbano da Praça Roosevelt foi concluído em 2008 e prevê

o investimento de US$ 18.915.532,15.

Segundo Gilberto José Loureiro, chefe da assessoria técnica de

revitalização do Centro de São Paulo, a demora para que algo seja

feito é normal devido às questões burocráticas que envolvem o trâmite

das negociações. “O processo de reforma é demorado. É preciso

montar um edital e publicá-lo. As empresas interessadas apresentam

projetos. Essas propostas vão para audiência pública e são analisadas

por órgãos da sociedade. Depois, abre-se uma licitação. Não há

como acelerar o processo, pois ninguém pode ser beneficiado”, diz.

Além de ser responsável por fiscalizar o andamento das obras,

a prefeitura tem que garantir a manutenção do local depois de

reformado. Para tanto, criou o projeto “Zeladoria de Praças”,

por meio de uma parceria entre as secretarias municipais de

Desenvolvimento Econômico e do Trabalho, Verde e do Meio

Ambiente e Coordenadoria das Subprefeituras.

Esse projeto foi iniciado em 2008, na gestão do prefeito Gilberto

Kassab. De acordo com a proposta inicial, esses zeladores serão

responsáveis pela manutenção das áreas verdes. Essas pessoas são

trabalhadores desempregados e moradores do entorno das praças

e das áreas selecionadas para cuidar de limpeza e manutenção

cotidiana da vegetação desses espaços públicos. A princípio, cada

zelador cuida de uma área de cerca de cinco mil metros quadrados,

ficando responsável pela limpeza, por pequenos reparos, pela poda e

rega da vegetação e até pelo aprimoramento paisagístico.

“Não temos funcionários suficientes para manter todos os espaços.

Como existem vários moradores em situação de risco na cidade

de São Paulo, aproveitamos essas pessoas que querem trabalhar.

Eles ganham um salário mínimo para fazer o curso de zelador de

praça. Depois, eles trabalham para cuidar das áreas verdes de 105

praças”, explica Loureiro. FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

Rampa situada no meio do pentágono é utilizada por skatistas que frequentam a área

miolo12.indd 94 11/9/10 8:53 PM

Page 95: livro-reportagem - Praca Roosevelt

95

Ocupação teatral

Para Loureiro, o movimento dos teatros em prol da região deve servir de

exemplo para outros pontos de São Paulo, já que os órgãos públicos

não conseguem dar conta de todos os problemas urbanos. “A população é

parceira da prefeitura. Houve uma mobilização de alguns setores da sociedade

civil que se instalaram na Roosevelt para dar movimento à área. Prostituição

e drogas acontecem nas zonas degradadas da cidade. Antigamente, eram

nos portos”, diz.

Segundo Claudio Teodoro, arquiteto da Empresa Municipal de

Urbanização (Emurb), que participou da elaboração do projeto de reforma da

Praça Roosevelt, desde a década de 1970, quando o “edifício” foi inaugurado,

já era preciso reformá-lo, pois desde o início começaram a surgir problemas de

manutenção, como falta de segurança e limpeza. Em 1979, foi publicada uma

reportagem no jornal Folha de S. Paulo que dizia que a praça estava morta. Em

1980, começou a briga para ver quem gerenciaria o espaço, se seria a prefeitura

ou a Emurb. Em 1985, o então prefeito Jânio Quadros mandou pintar a

praça de verde, porque reclamavam que era muito árida e que tinha poucas

áreas arborizadas. Em 1986, começou a briga com o supermercado Pão de

Açúcar, que se instalou sobre uma construção pública. Em 2000, iniciaram-se

todos os projetos para revitalizar o espaço. E em 2006, finalmente, a empresa

de alimentos desocupou o prédio e deixou a praça.

miolo12.indd 95 11/9/10 8:53 PM

Page 96: livro-reportagem - Praca Roosevelt

96

“Onde há mistura de público e privado, não dá certo, por mais

que exista uma concessão para que isso funcione. Havia o Pão

de Açúcar, por exemplo, que ficou lá por muitos anos. Com o

tempo, a degradação começa a piorar e não dá para saber quem deve

gerenciar o local, se é a prefeitura ou o poder privado. Então, vira

uma terra de ninguém”, explica Teodoro.

Por isso, a Emurb propôs a retirada de todos os equipamentos

privados que existiam ali, só mantendo as floriculturas, que já

constituem um comércio tradicional do local. “Então, decidimos

derrubar toda a construção, aumentar a área verde e manter os dois

níveis de estacionamento. Serão conservadas as sedes da Guarda

Civil Metropolitana, a Polícia Militar e as floriculturas. Ainda

não sabemos como ficarão alocadas, mas já está definido que não

existirá nenhuma construção na praça, somente o espaço público”,

afirma o arquiteto.

A Roosevelt e o poder público

FOTO

S: C

AMILA

SILV

EIRA

Ao lado dos teatros e bares, o chaveiro é um dos estabelecimentos que fazem parte do entorno da Roosevelt

miolo12.indd 96 11/9/10 8:53 PM

Page 97: livro-reportagem - Praca Roosevelt

97

Teodoro explica que a edificação da Roosevelt não foi um erro

urbanístico, mas uma manifestação do estilo arquitetônico brutalista

que estava sendo utilizado na época, com excesso de concreto7.

“Não se pode dizer que a praça não deu certo. No início, era

um grande espaço da boemia, havia restaurantes e cinemas. Com o

tempo, a degradação começou a acontecer. Se não há manutenção,

a deterioração acontece”, diz.

Segundo o arquiteto, desde 2000, as diretrizes do projeto de

reforma são praticamente as mesmas e já se pede a demolição de toda

área construída. Ao longo dos anos, cogitou-se dar outro uso para

o estacionamento e a incluir de novos equipamentos no local, mas a

ideia de retirar as construções e fechar a tampa do pentágono sempre

existiu. “Chegamos à conclusão que o melhor a fazer é deixar a área

livre. O conceito de praça já é esse. Não poder haver construções

que não sejam de uso institucional. Definiu-se que é necessário

deixar somente a praça e aumentar a arborização. A vida será dada

pelo próprio entorno, como já acontece hoje”, garante o arquiteto.

Para elaboração da versão final, houve encontros com a população,

com outras secretarias e com diversos órgãos da sociedade, para,

assim, atender as necessidades da maioria.

Segundo a Emurb (atual São Paulo Urbanismo), as obras de

requalificação urbana da região serão executadas pela Secretaria de

Infra-Estrutura Urbana e Obras (Siurb). Os trabalhos devem

levar aproximadamente dois anos para a conclusão e têm um custo

de R$ 36,8 milhões, sendo que 85% será financiado pelo Banco

Interamericano de Desenvolvimento (BID).

De acordo com o projeto de requalificação urbana, voltarão a operar,

recuperados, os dois subsolos do estacionamento, com 640 vagas.

Novas instalações, com 1.700m², edificadas em subsolo, abrigarão os

contingentes da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar.

No nível principal da praça, serão plantadas 216 árvores de espécies

nativas, instaladas 137 luminárias e construídos novos conjuntos de

escadas e rampas dentro dos parâmetros da acessibilidade.

A proposta também prevê a demolição do pentágono e de seus

anexos. Assim, haverá a integração dos dois lados da praça,

representados pelas ruas Martinho Prado e Guimarães Rosa. Da

feição original, serão preservadas apenas as estruturas da Via de

Ligação Leste-Oeste e dos dois subsolos de estacionamento.

Livraria e Papelaria Universal, instalada no número 92 da praça

Extra Supermercado, localizado no prédio que abrigava o restaurante e bar A Baiúca na década de 1950

7: A arquitetura brutalista surgiu depois da Segunda Guerra Mundial e perdurou até o final da década de 1970. As obras incluídas nesse estilo arquitetônico caracterizam-se principalmente pela a utilização do concreto armado deixado aparente, técnica que passou a ser empregada com mais frequência na arquitetura civil daquela época.

miolo12.indd 97 11/9/10 8:54 PM

Page 98: livro-reportagem - Praca Roosevelt

98

A área resultante das demolições receberá os seguintes recursos:

percurso arborizado, que cortará a praça e articulará a Esplanada

Consolação (um sistema de rampas e escadas projetadas dentro

das normas de acessibilidade que abre o interior da praça para

a Rua da Consolação) com a Esplanada Augusta; quiosques

para as floriculturas, serviço tradicional da praça, articulados por

um pergolado que também abrigará bancos e outros elementos

de mobiliário urbano; playground; espaço exclusivo para cães;

sanitários públicos, e área verde e permeável ampliada.

De acordo com Teodoro, mesmo depois da população local ter

sido ouvida, a reforma não agrada a todos frequentadores do local.

“Na Roosevelt, há vários atores. O pessoal do teatro, a Ação

Local e o Viva o Centro. Cada um tem suas vontades. O valor

da praça foi licitado em quase R$ 37 milhões. Muitos são contra

gastar todo esse dinheiro lá”, declara.

Na opinião de Teodoro, um dos maiores problemas do local

é a degradação, e não a desocupação. “A praça estava ocupada

com o Pão de Açúcar e havia a deterioração do mesmo jeito. A

questão é como ela está sendo usada e gerenciada. A partir do

momento em que um novo equipamento é entregue, o próprio

entorno começa a tomar conta do espaço”, diz.

Assim, segundo ele, para evitar a degradação, é necessária uma

parceria entre o público e o privado. Ele também afirma que

a aprovação da reforma não tem nada a ver com a chegada dos

teatros. “O projeto existe há dez anos. Não foi impulsionado

por nada. Há um processo natural. Não é o que sai na imprensa

que dá o andamento das propostas. Até melhor que não seja

assim, porque senão acontecem coisas impensadas e imediatistas,

feitas somente para atender uma demanda jornalística ou política.

As coisas para a cidade têm que ser mais pensadas”, opina.

Segundo o vereador José Police Neto, do PSDB,

que foi relator da revisão do Plano Diretor Estratégico

da capital em 2009, para entender a formação da metrópole,

é preciso afastar a visão paternalista de que somente onde

o poder público coloca a mão é que as coisas acontecem.

“A cidade nasce de um ambiente em que o setor público não

fez uma intervenção, de uma lógica de aglomeração, e não

de uma vontade governamental”, afirma.

A Roosevelt e o poder público

Imagens do entorno da Praça Roosevelt

miolo12.indd 98 11/9/10 8:54 PM

Page 99: livro-reportagem - Praca Roosevelt

99

A região central de São Paulo surgiu de uma intervenção pública

que não deu certo – o Elevado Costa e Silva, conhecido popularmente

como Minhocão. Antes desse viaduto, as regiões mais nobres da

cidade ficavam no Centro. Com essa construção, houve a formação

de um novo polo comercial, além do empobrecimento da região,

que se refletiu também na degradação do entorno da Roosevelt.

“A primeira obra da praça, em 1970, já era uma tentativa de resgatar

a área. Deu certo durante um curto tempo, mas, rapidamente,

o monumento se degenerou”, diz o vereador.

De acordo com Neto, como as edificações que rodeavam a região

estavam destruídas e abandonadas, foi possível existir manifestações

culturais e artísticas com baixo impacto à vizinhança. “Foi o momento

adequado para florescer um processo de reurbanização mais inteligente

do que se alguém do setor público tivesse planejado a ocupação da

Roosevelt por grupos teatrais. Talvez, se o governo definisse quem seria

o ator que se revelaria na Roosevelt não seria o da área cultural”, reflete.

Para ele, as obras dos órgãos governamentais são complementares

à ação da sociedade, e não somente consequências. “O que foi feito

nesses últimos anos pelas companhias de teatro e pelos comerciantes

é o que todos deveriam fazer. Agora, aqueles que se instalaram

no momento em que o tecido urbano não os beneficiava podem

exigir do setor público uma participação ativa no desenho físico do

local”, declara.

Dessa forma, Neto afirma que o processo de reurbanização

e de revitalização é feito pela população. Complementarmente,

o poder público realiza as intervenções que garantem, às pessoas

que se instalaram ali, o que é necessário para ter qualidade

de vida e nos negócios. Para que isso aconteça, é necessária

a ousadia comercial de setores organizados. Quem se instalou

na Roosevelt apostou na melhora do local e nas possibilidades que

a região poderia oferecer. Merece, portanto, um retorno à altura

de sua ousadia urbanística e crença na região. FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo12.indd 99 11/9/10 8:54 PM

Page 100: livro-reportagem - Praca Roosevelt

miolo13.indd 100 11/9/10 8:55 PM

Page 101: livro-reportagem - Praca Roosevelt

101

PARTE III

Visão íntima e subjetiva

capí

tulo

XIII

Cada um dos personagens que ganharam voz nestas páginas,

assim como o vereador Neto sugere, apostaram de diferentes

formas nessa grande flor no asfalto que é a Roosevelt e, assim, criaram

um novo ambiente nessa região até então esquecida do Centro de

São Paulo. Para sustentar sonhos, paixões, comércios e vidas, eles

reinventaram uma praça e deram um novo sentido a um espaço.

Se há alguma “lição” que pode ser transmitida por essas pessoas é a

de que as diferenças de ideologias e concepções de mundo devem ser

transpostas em prol de um projeto coletivo maior para cidade: a recuperação

de uma parte degradada e abandonada pelos poderes públicos.

De uma forma inusitada e espontânea, a arte unificou grupos, dirigindo-

se para um novo sentido, o de garantir o direito à cidade e à vida urbana.

Dessa forma, o teatro serviu como balizador de diferentes ambições na

recuperação de um local de prestígio histórico. Assim, essa expressão

artística emergiu como um apelo para que personagens da sociedade

insurgissem reclamando o seu lugar no espaço público, reivindicando um

retorno para o coração da cidade, como acontecia nos anos 1950 e 1960,

quando a vida cultural e boêmia pulsava na Roosevelt.FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo13.indd 101 11/9/10 8:55 PM

Page 102: livro-reportagem - Praca Roosevelt

102 Visão íntima e subjetiva

Como uma exigência e uma transgressão à inércia governamental,

a arte e a cultura metamorfosearam o caos da Roosevelt e fizeram com que

pessoas se apropriassem, por meio de seus ofícios, de um local deteriorado.

De forma exemplar, artistas e comerciantes apostaram na decomposição

de um lugar, dando-lhe um novo sentido. Entretanto, enquanto

o entorno ganhou vida e não se rendeu a uma resignação passiva,

a construção que abriga a praça em si continua destruída e desamparada.

Nada foi recuperado naquele monumento insólito que simboliza

a região. Há anos, o “edifício-praça” espera um alento dos poderes

públicos e aguarda uma utilização apropriada e em sintonia com o que a

cerca. Entre escombros, rachaduras, infiltrações e pichações, há um espaço

que almeja entrar em harmonia com a vocação humanística ao seu redor.

Ao mesmo tempo, há moradores insatisfeitos com o novo panorama

que circunda a Roosevelt. Alguns reclamam do barulho e, por serem

locatários de imóveis na região, não aprovam a valorização imobiliária

que aconteceu com a chegada dos teatros.

Nesse sentido, é necessário que órgãos governamentais sejam

impulsionados pela força de revitalização que emana do teatro para que

a área ganhe um uso efetivo e beneficie todos os seus frequentadores.

Assim, além de áreas verdes e bancos, a Praça Roosevelt tem que

contar com ambientes de interação artística, como teatros, palcos e locais

de exposições, além de comércios ligados a esses grupos, como cafés

e livrarias. Os skatistas também não podem ser esquecidos, já que fazem

parte do grupo que mais utiliza esse equipamento público e que, de certa

forma, garantiu a humanidade do local. As reivindicações dos moradores

também devem ser atendidas pelas iniciativas públicas. FOTO

: GAB

RIEL

OLIV

EIRA

miolo13.indd 102 11/9/10 8:55 PM

Page 103: livro-reportagem - Praca Roosevelt

103

Portanto, independentemente da realização de reformas, a sociedade tem que

lutar para o espaço público ganhe suas melhores potencialidades e seja mantido

de forma adequada por e para todos. A arte, sem dúvida, aguça a percepção

da realidade e faz com que a população se mobilize para que o direto à cidade

seja garantindo. Por isso, as manifestações teatrais foram tão eficientes para, até

certo ponto, revitalizar a região da Roosevelt e atrair novos olhares para lá.

Como a temática deste livro não possibilita uma síntese acabada e absoluta,

nada melhor do que finalizar com um poema de Calos Drummond de

Andrade, do livro Alguma Poesia (1930), que, além de pertencer ao universo

das artes, sugere a união de todos para transformar o presente, e o mundo que

nos circunda, de forma atemporal.

miolo13.indd 103 11/9/10 8:55 PM

Page 104: livro-reportagem - Praca Roosevelt

104104104miolo13.indd 104 11/9/10 8:55 PM

Page 105: livro-reportagem - Praca Roosevelt

105

Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco.Também não cantarei o mundo futuro.Estou preso à vida e olho meus companheiros.Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.Entre eles, considero a enorme realidade.O presente é tão grande, não nos afastemos.Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafi ns.O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,a vida presente.

““

Mãos dadas

miolo13.indd 105 11/9/10 8:55 PM

Page 106: livro-reportagem - Praca Roosevelt

106

AKERMAN, Marco; GARIBE, Roberto; GASPAR, Ricardo.

Espaço urbano e inclusão social: a gestão pública na cidade

de São Paulo (2001-2004). São Paulo: Fundação Perseu Abramo

em co-edição com o Instituto São Paulo de Políticas Públicas, 2006.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. São Paulo: Record, 2001.

BELO, Eduardo. Livro-reportagem. São Paulo: Contexto, 2006.

BOURDIEU, Pierre . A miséria do mundo. 5.ed. São Paulo: Vozes, 2003.

FANI, Ana; OLIVEIRA, Carlos. O espaço urbano: Novos escritos

sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004.

FERREIRA, Jair C. Maturano. Praça Roosevelt: possibilidades e limites de uso do

espaço público. 2009. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas USP. São Paulo.

GUZIK, Alberto. Os Satyros, um palco visceral. São Paulo:

Imprensa Oficial, 2006 (Coleção Aplauso).

HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública.

2. ed. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2003.

JUNIOR, José S. de Almeida. Cartografia política dos lugares

teatrais da cidade de São Paulo - 1999 a 2004. 2007. 232 p.

Tese (Doutorado) Escola de Comunicações e Artes. São Paulo.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias.

São Paulo: Centauro, 2001 (1968).

 

LIMA, Edvaldo P. O Que é Livro-Reportagem. São Paulo: Brasiliense, 1993.

69 p. (Coleção Primeiros Passos).

  

ROLNIK, Raquel. Folha explica São Paulo. São Paulo: Publifolha, 2003. 88 p.

VILLA, Marco Antonio. Breve história do estado de São Paulo. São

Paulo: IMESP, 2009.

Bibliografia

miolo13.indd 106 11/9/10 8:55 PM

Page 107: livro-reportagem - Praca Roosevelt

capa contracapa_lombada1.indd 6 11/9/10 8:37 PM

Page 108: livro-reportagem - Praca Roosevelt

Depois de passar por um período obscuro de degradação e descaso público, a Praça Roosevelt, localizada na região central paulistana, recuperou sua histórica áurea artística e se converteu em um ponto de rara vitalidade cultural. Com a chegada de diversos grupos teatrais a partir do início deste século, o panorama daquele lugar abandonado sofreu profundas transformações. Como uma grande flor no coração de São Paulo, a Roosevelt resiste à deterioração e as produções artísticas que emanam de lá conferem beleza à região. Atualmente,

existem no local, vizinhos da prostituição e misturados aos moradores de rua, diversas salas de teatro. Além disso, há uma livraria e alguns bares que garantem uma agitada vida noturna. O livro aborda essa revitalização inusitada que aconteceu na área por meio da iniciativa de setores artísticos da sociedade. Por meio dos relatos de alguns dos personagens que protagonizaram essa história, a obra também analisa os bastidores do projeto de reforma da praça e a trajetória de renovação urbana desse ponto da metrópole.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma fl or ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma fl or nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma fl or (...)

Carlos Drummond de Andrade

Flo

r no a

sfa

lto>> A

RES

ISTÊ

NCIA

TEA

TRAL

NA P

RAÇA

RO

OSE

VEL

T

capa contracapa_lombada1.indd 1 11/9/10 8:37 PM