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Samora Machel Historia de Uma Vida Dedicada ao Povo Moçambicano

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Samora Moisés Machel - História de Uma Vida Dedicada ao Povo Moçambicano

Samora Moisés Machel

História de Uma Vida Dedicada ao Povo Moçambicano

Samora Moisés Machel - História de Uma Vida Dedicada ao Povo Moçambicano

Ficha Técnica:Título: Samora Moisés Machel - História de Uma Vida Dedicada ao Povo MoçambicanoAutores: Fernando Dava, Alexandre António, Rosário Lemia, Arrissis Mudender, Marílio Wane, Célia Mazuze, Sónia Lopes, Dulámito Aminagi, Daniel LopesDirecção: Fernando DavaCoordenação: Hermínia Manuense, Arrissis Mudender, Célio TianeColaboração: Célio Tiane, António Macanja, Angélica João, Cândido Nhaquila, Edith Chongo, Alda Damas, Sérgio Manuel, Cremildo Bahule, Belchior CaniveteDesigner e Maquetização: Cândido NhaquilaEdição: ARPAC - Instituto de Investigação Sócio-CulturalImpressão e distribuição exclusiva: DINAMETiragem: 25.000Número de Registo: 7141/RLINLD/2011Colecção Embondeiro: Edição Especial

Maputo, 2013

Samora Moisés Machel - História de Uma Vida Dedicada ao Povo Moçambicano

ÍndiceAcrónimos........................................................................................ 6

Agradecimentos............................................................................... 8

Prefácio............................................................................................. 9

Introdução...................................................................................... 10

1. Chilembene: Berço de Samora Moisés Machel........................ 121.1. Das Origens do Nome à Evolução da Estrutura Política.... 121.2. A Espiritualidade em Chilembene...................................... 151.3. Os Símbolos de Resistência contra a Presença Colonial... 211.3.1. Mafurreira de Muxuvane................................................ 211.3.2. A Escola de Marrambadjane........................................... 221.4. As Marcas da Opressão e Discriminação Coloniais........... 261.4.1. Na Actividade Agrícola e Acesso à Habitação................ 261.4.2. Os Administradores e Sipaios na Repressão Colonial..... 271.4.3. A Cadeia e os Actos Desumanos...................................... 32

2. Samora Moisés Machel: Infância e Constituição da Família........................................................................................... 34

2.1. Nascimento e Infância de Samora Machel........................ 342.2. Formação Académica de Samora Machel......................... 372.3. Formação Profissional de Samora Machel........................ 422.4. Actividade Profissional de Samora Machel ...................... 452.5. Constituição da Família.................................................... 47

3. Samora Machel no Contexto do Nacionalismo e da Luta de Libertação Nacional............................................. 53

3.1. A Emergência do Nacionalismo em Moçambique............ 533.2. O Envolvimento de Samora Moisés Machel na Luta Clandestina........................................................................ 57

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3.3. A Viagem de Samora Machel a Dar-Es-Salaam e seu Ingresso na FRELIMO....................................................... 593.4. Samora Machel e a Abertura dos Campos de Kongwa e Nachingwea...................................................................... 703.5. Samora Machel e a Abertura da Frente do Niassa Oriental.................................................................. 753.6. Samora Machel como Chefe do Departamento de Defesa da FRELIMO......................................................... 773.7. Samora Machel na Presidência da FRELIMO ................. 81 3.8. A Acção Estratégica de Samora Machel no Estrangulamento da Operação Nó Górdio.............................843.9. O Acordo de Lusaka.......................................................... 88

4. Samora Machel na Preparação da Independência Nacional.. 984.1. Agradecimento aos Povos Tanzaniano e Zambiano.......... 984.2. Decurso da Marcha Triunfal do Rovuma ao Maputo...... 1034.3. A Reunião de Tofo e a Constituição da RPM................... 1114.4. A Proclamação da Independência Nacional..................... 1154.5. Investidura de Samora Machel........................................ 118

5. Samora Machel e as Perspectivas de Desenvolvimento de Moçambique.......................................................................... 121

5.1. Samora Machel: Unidade Nacional e Homem Novo........ 1225.2. Perspectivas de Samora Machel sobre a Educação e Cultura...........................................................1255.3. Perspectivas de Samora Machel em Relação à Saúde..... 1365.4. Visão de Samora Machel sobre Desenvolvimento Socio-Económico............................................................ 1405.5. Samora Machel e a Organização da Mulher Moçambicana................................................................... 1445.6. Samora Machel e a Organização Continuadores de Moçambique................................................................. 146

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6. Samora Machel no Contexto da Luta Diplomática da FRELIMO........................................................................... 149

6.1. Os Primeiros Contactos Diplomáticos da FRELIMO e o Lançamento da Insurreição Geral Armada................ 1496.2. A Política Diplomática de Samora Machel durante a Luta de Libertação Nacional.............................................1536.3. A Política Diplomática da FRELIMO e de Samora Machel após a Proclamação da Independência Nacional... 159

7. A Morte do Presidente Samora Moisés Machel..................... 168

8. Bibliografia............................................................................... 176

Lista de Entrevistados................................................................. 183

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Acrónimos

ANC – African National Congress BPP – Betchuana Peoples PartyCDSM – Centro de Documentação Samora MachelCOMECOM - Council for Mutual Economic Assistance CONSAS – Constellation of Southern African StatesCIO – Chief Information Officer/Serviços Secretos RodesianosCVR – Cockpit Voice RecorderCCM – Chama Cha MapinduziCNCD - Companhia Nacional de Canto e DançaCOREMO – Comité Revolucionário de MoçambiqueCOFI – Comando Operacional das Forças de Intervenção CPA – Congresso Pan-AfricanoCSP – Cuidados de Saúde PrimáriosDD – Departamento de DefesaDSD – Departamento de Defesa e SegurançaDS – Departamento de SegurançaDF – Destacamento FemininoEUA – Estados Unidos da AméricaFMI – Fundo Monetário InternacionalFRELIMO – Frente de Libertação de MoçambiqueHCM – Hospital Central de MaputoICAO – International Civil Aviation Organization/Organização Internacional da Aviação Civil MNR/RENAMO – Resistência Nacional MoçambicanaNESAM – Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de MoçambiqueMPLA – Movimento Popular de Libertação de AngolaOUA – Organização da Unidade AfricanaONU – Organização das Nações UnidasOMM – Organização da Mulher MoçambicanaOJM – Organização da Juventude MoçambicanaOTM – Organização dos Trabalhadores MoçambicanosPAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde

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PIDE/DGS – Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direcção Geral de SegurançaPRE – Programa de Reabilitação EconómicaRPM – República Popular de MoçambiqueRSA – República Sul Africana/ República da África do SulSADCC – Southern African Development Coordination ConferenceSADF – South African Defense ForcesSNS – Serviço Nacional de SaúdeSWAPO – South West African People OrganizationTANU – Tanganyika African National Union UDENAMO – União Democrática Nacional de MoçambiqueURSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas UNIP – United National Independent PartyVOFA – Voice of Free Africa /Voz da África LivreVOR – Very High Frequency Omnidirectional RangeZANU – Zimbabwe African National UnionZAPU – Zimbabwe African People’s UnionZANLA – Zimbabwe African National Liberation ArmyZIPRA – Zimbabwe People’s Revolutionary Army

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Agradecimentos

Os nossos agradecimentos vão para a Comunidade de Chilembene e família Machel, de forma particular, pela sua contribuição

e, sobretudo, predisposição incondicional no fornecimento de informações que fundamentaram esta obra. Para os combatentes da Luta de Libertação Nacional e demais entrevistados, vai o nosso reconhecimento pela colaboração na materialiazação deste desafio, de mostrar que Samora Moisés Machel era e é, de facto, um homem do povo.

Endereçamos, igualmente, o nosso maior apreço a todos aqueles que directamente e indirectamente deram o seu contributo para que esta obra fosse uma realidade.

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Prefácio

Samora Moisés Machel constitui um farol candente que inspira a todo o momento para as acções de desenvolvimento em Moçambique,

em África e no Mundo. Samora, desde cedo, compreendeu que vivia numa sociedade colonizada, de discriminação e de injustiça social. Mais do que isso, Samora reagiu e, de forma abnegada, entregou-se à luta para a mudança da ordem social e política que o rodeava.

Samora morreu pelo povo moçambicano, numa altura em que este dele mais precisava, porque o contexto político regional lhe era hostil e o relacionamento socio-económico de Moçambique com o Mundo estava em formatação.

A 19 de Outubro, Samora viajou a Zâmbia, numa missão de paz. Ele não mais voltou, para dar continuidade à materialização dos seus ideais de uma África livre e próspera. No entanto, ele legou-nos muitos ensinamentos dignos de serem eternizados, o que é propósito desta singela obra.

Desta forma, por ocasião do “Ano Samora Machel”, o Ministério da Cultura cumpre o seu dever de tornar perene a vida e obra de Samora Machel, entendida como um produto cultural por excelência.

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Introdução

No processo da luta pela libertação da terra e do povo moçambicano, desponta Samora Moisés Machel, como uma figura que, pela sua

dimensão e feitos, extravasa as fronteiras de Moçambique e de África. A sua trajectória confunde-se com a história libertária de Moçambique e da procura de prosperidade para a região austral de África. Desde cedo, Samora, imbuído de um sentimento humanista, de liberdade, igualdade e justiça, contestou a dominação estrangeira do seu povo. Samora, filho de Moçambique, homem do povo, juntamente com vários nacionalistas, lutou afincadamente pela libertação da sua pátria.

Durante o seu percurso, Samora Machel trabalhou de forma abnegada em prol dos moçambicanos, seja como enfermeiro, aplicando o seu saber na provisão de cuidados sanitários aos seus concidadãos; nacionalista e combatente, lutando pela causa do seu povo; e Presidente de Moçambique independente, semeando a prosperidade e o bem-estar social. Uma abordagem histórica sobre a sua vida e obra, afigura-se uma tarefa deveras emocionante, mas complexa, por um lado, devido à sua dimensão multifacetada e, por outro, pelo facto de muitos aspectos a si relacionados estarem ainda presentes na memória de vários actores sociais.

No entanto, uma resenha sobre a vida e obra de Samora Moisés Machel convida-nos ao entendimento do seu pensamento, assente na promoção do progresso e do desenvolvimento, tendo como pressuposto fundamental a busca da liberdade e da paz, tanto a nível interno como externo. Neste sentido, no pensamento samoriano

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subjazia a harmonia dos países da região e a solidariedade entre todos os povos do mundo.

Foi no quadro dos seus esforços de busca de paz para Moçambique e para a região, que o Presidente Samora Moisés Machel viria a perder a vida, vítima de um acidente de aviação. Esta tragédia punha fim a um percurso preenchido de sacrifícios, mas heróico, pois, dedicado à nobre causa de libertação do seu povo.

Este trabalho enquadra-se nas celebrações do Ano Samora Machel e visa um fim didáctico, com vista a fornecer alguns subsídios sobre o processo que norteou a libertação de Moçambique, e, especificamente, o percurso e feitos de Samora Moisés Machel.

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1. Chilembene: Berço de Samora Moisés Machel

1.1. Das Origens do Nome à Evolução da Estrutura Política

A origem do nome “Chilembene” é explicada a partir de várias versões. Uma delas sustenta que provém da dança mutxongolo,

cuja prática pressupõe o uso de chapéu (Chilembe) e outros ornamentos especiais. Desta forma, os residentes locais passaram a ser conotados com esta dança, surgindo daí o nome “Chilembene” para designar a região. Outra versão tem a ver com o facto de a região que originariamente se designou Chilembene ser circundada pelo rio Limpopo, sob forma de chapéu. Este local está situado na planície de Marrambadjane e dista cerca de 7 km da actual sede de Chilembene. As duas versões comungam o facto de terem no chapéu o centro da explicação da origem do nome.

No que concerne às origens do povoamento e estruturação do poder político em Chilembene e arredores, há evidências da presença de linhagens antigas, como os Nkuna, Bila, Xivambu e Macamo. Estas linhagens faziam parte de um vasto povo, conhecido por tsonga. Posteriormente, estabeleceram-se nesta região os Khosa, ladeando a lagoa de Mazimehlope. Existem algumas divergências entre alguns historiadores, como Ferrão (1909) e Nhancale (1997) a respeito das origens dos Khosa. Com efeito, Ferrão discorda das fontes orais sobre a sua origem na Zululândia, argumentando que se tal fosse verdade, não teria havido lutas aquando da fixação nguni na região, pois, ambos partilhavam uma origem comum. Apesar de aceitar esta comunhão das origens, Nhancale não partilha deste argumento. Justificando-se, salienta que a origem espacial comum não impede os conflitos políticos, sobretudo quando esta é marcada por tempos históricos distanciados.

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O nome mais divulgado sobre o clã Khosa é o de Magudzu Khosa. É deste nome que deriva a designação do distrito de Magude, na altura, mais conhecido por Khoseni, ou seja, terra dos Khosa. De referir que Khoseni não se restringia aos actuais limites geográficos do distrito de Magude, mas sim, estendia-se aos distritos de Chókwe e Macia. Aliás, toda a linhagem (apelido) Macia ou Macie era e continua sendo parte integrante dos Khosa.1

De facto, foi a partir de Khoseni que os Khosa se ramificaram, dando origem a muitas linhagens. Além dos Macie, figuram os Tchambale, Mavone, Xikhotane e Ripanga ou Lipanga2. Outro nome sonante do reinado dos Khosa é de Maguigwane Khosa, um descendente de Magudzu Khosa. Maguigwane, que parece ter sido cozinheiro do segundo Rei do Estado de Gaza, Muzila Nqumayo3, posteriormente, incorporado nas hostes guerreiras de Gaza, no reinado de Mudungaze Nqumayo (1884-1895), mais conhecido por Ngungunyane Nqumayo.

Os nguni fixaram-se no vale do Limpopo, por volta de 1821, suplantando o poder dos Khosa. Não parece correcto o entendimento de que eles teriam sido pacíficos no seu estabelecimento.4 Em nossa opinião, tiveram que recorrer ao seu entreposto cultural bélico, apesar das populações que subjugavam, não terem tradição guerreira. Neste aspecto, exceptua-se a resistência dos Makhambane, que teve como um dos líderes Chipenanyane Mondlane.5 Efectivamente, os nguni deixaram marcas indeléveis da sua natureza violenta, sobretudo na movimentação das suas capitais6, de Chayimite (1850)7 para Mussapa (1889)8 e daqui para Mandlakazi.

1 Dava, 1997.2 Pimentel, 1909. 3 Pelissier, 1988.4 Para mais detalhes vide Chilengue, 1995.5 Vide Liesegang, 1996.6 À semelhança do que aconteceu na última guerra vivida em Moçambique (1976-1992), muitas pessoas sentiam-se mais seguras passando as noites no mato do que no interior das suas casas. Liesegang, 1996. Temiam uma série de arbitrariedades, como a execução dos seus chefes de família. Aliás, na tradição oral fala-se do “Xingungunyane”, em alusão ao carácter agressivo dos nguni. Dava, 1995.7 Actual Posto Administrativo de Chayimite no Distrito de Chibuto, na Província de Gaza.8 Localizado no actual Distrito de Mussorize, na Província de Manica.

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Poucos estudos se referem às razões de fundo destas movimentações. As últimas movimentações tinham a ver com as dificuldades do poder central de controlar as receitas tributárias.9

Uma vez estabelecidos, os nguni criaram uma divisão administrativa do território e colocaram no poder figuras da sua confiança. A título de exemplo, para dirigir Chilembene foi designado Mpisse Nqumayo, enquanto para Magule, Madjole Nqumayo e, para Xai-Xai, Ntxayi-Ntxayi Dlamini10. O poder político em Chilembene mantém-se na linhagem Nqumayo. Depois de Mpisse Nqumayo, surgiram outros sucessores, entre eles, Nwamutxinga, Mehlo Maphe e Magudogude.

Santuário da linhagem Nqumayo, em Chilembene (antiga residência de Nwamutxinga Nqumayo). Foto de 2011. Fonte: ARPAC

Os nguni conseguiram criar um vasto Estado, tendo sido o rio Zambeze a fronteira Norte e o rio Incomáti, a fronteira Sul.

Isto demonstra que as actuais províncias de Sofala, Manica, Inhambane, Gaza e parte de Maputo, configuravam o Estado de Gaza. 9 Beach, citado por Liesegang, 1996.10 O nome do actual distrito e cidade de Xai-Xai, na província de Gaza, foi adoptado em homenagem a este governante nguni.

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O nome Gaza11 surgiu de Mukhatxuwa Mangua Gaza, bisavô do fundador do Estado de Gaza, Sochangane Nqumayo, igualmente, conhecido por Manukuse Nqumayo (1821-1858).

Depois do estabelecimento do poder colonial em Moçambique, Portugal manteve o nome de Gaza12, pelo facto de o Estado de Gaza ter constituído um dos maiores desafios à penetração colonial em Moçambique. Na óptica das autoridades coloniais, era importante mantê-lo como uma forma de prova ao Mundo que Portugal tinha conseguido conquistar um grande e temido império em África. Isto ocorria à luz das decisões da Conferência de Berlim, realizada em 1884/5, que preconizavam que os países que reclamavam poder relativamente a algumas possessões em África, deveriam provar o seu domínio sobre elas. Após a Independência Nacional, em 1975, o nome de Gaza constituiu um dos símbolos das lutas de resistência contra a ocupação colonial em Moçambique e passou a designar uma das províncias do Sul do país.

1.2. A Espiritualidade em Chilembene

O conceito de espírito trazido nesta abordagem fundamenta-se no facto de muitas pessoas acreditarem que a sua vida não depende, exclusivamente, da sua própria vontade. De acordo com a sua cosmovisão, comparticipam outros agentes, do tipo “mão invisível”, na linguagem dos economistas.

É este entendimento do mundo que explica, em larga medida, o culto religioso, o qual ganha diferentes dimensões sociais, conforme o antepassado venerado, pertença a uma comunidade mais universal ou restrita, que se acredita ser o guardião dos vivos e o garante do equilíbrio cosmológico.

11 Não encontramos uma ligação directa no uso da palavra “Gaza” para designar este Estado nguni e a Faixa de Gaza, no Médio Oriente. No entanto, parece que a inspiração bíblica para a adopção de “Gaza” tenha sido o denominador comum. Com efeito, do ponto de vista religioso, Gaza é mencionado em vários momentos, como Génesis 10, 19; Deuteronômio 2, 23; Josué 10, 41 e Juízes 6, 4. Enquanto isso, na história da Palestina constitui um dos reinos formados pelos “Povos do Mar”, particularmente pelos filisteus, que nos finais do II milénio antes de Cristo se fixaram ao longo do Mar Mediterrâneo. 12 Designado na altura Distrito Militar de Gaza através do decreto de 7 de Dezembro de 1895.

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A partir da primeira premissa encontra-se a figura de Deus Universal, cujo nome vária de acordo com a religião professada, como é o caso de Deus, em geral, veiculada pelos cristãos e, de Alá, pelos muçulmanos, perseguindo todos a mesma essência. Em Chilembene encontra-se, de facto, esta realidade. Do ponto de vista restrito, regista-se o predomínio da crença nos antepassados linhageiros e familiares, nomeadamente, a presença de espíritos Nguni e Ndau, associados às migrações na África Austral, no âmbito do m’fecane13 e mais tarde, às movimentações no seio do Império de Gaza.

Em Moçambique, enquanto a presença do espírito nguni se explica por factores externos, ou seja, o m’fecane, espírito ndau, agrega factores internos. Os reis do Estado de Gaza, ao fazerem as movimentações da sua capital, eram acompanhados de numerosas famílias ou indivíduos, os mabulundleya (os que abrem o caminho), para questões de segurança, transporte de produtos alimentícios entre outros aspectos. O surgimento dos espíritos ndau em famílias do Sul de Moçambique, e de Chilembene, em particular, explica-se pelo entrosamento entre as comunidades das actuais regiões Centro e Sul do país, aspecto que esta na génese da ocorrência de espíritos tsonga no Central.

O fenómeno kupfhuka (capacidade de vingança depois da morte), associado aos ndau, parece ser mais recente, estando relacionado com o mutchape, um processo de transmissão de poderes mágicos. Este fenómeno abrangeu as províncias de Manica, Inhambane, Gaza e Maputo, no qual era administrado um produto com estas capacidades vingativas.

O principal elo de ligação entre as famílias e os espíritos dos ancestrais é a figura do praticante da medicina tradicional, vulgo curandeiro, que tem sido objecto de diferentes e contraditórias interpretações, as quais assentam mais na falta de conhecimentos sólidos sobre a sua essência, aspecto agravado pelas leituras ocidentalizadas sobre a sua natureza.

13 O m’fecane é definido como um longo movimento de pessoas ou comunidades da Zululândia (na actual África do Sul) para Este e Nordeste da África Austral, motivado por factores combinados entre si, sobretudo os conflitos intestinais e calamidades naturais, levando à fixação de povos de origem Zulu, na Suazilândia, Zimbabwe e Moçambique.

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Alcinda Honwana, que realizou um estudo profundo sobre esta matéria, no Sul de Moçambique, traz uma contribuição valiosa, onde procura mostrar que estes espíritos são, de facto, venerados, em muitas famílias. Porém, em nome da civilização Ocidental, estes assuntos são tratados em segredo familiar, como se os mesmos não existissem, o que se resume em fazer a vida em dois mundos, ou seja, no conflito entre o tradicional e a modernidade.14

Aos espíritos nguni é associado o aparecimento de casas redondas, mais conhecidas por tindhumbha. Com efeito, as populações de influência pré-nguni, tanto em Chilembene, assim como em todo o vale do Limpopo, tinham habitações características, os mintsonga. Estas eram feitas espetando-se estacas no chão, formando uma estrutura cónica, cuja cobertura era de capim, as portas de caniço ou pequenas estacas finas entrelaçadas. Este tipo de casa ainda pode ser visto em Chilembene, no seio de famílias desprovidas de recursos para construírem outro tipo de habitação.

Imagens de ntsonga em Chilembene. Foto de 2011. Fonte ARPAC.

14 Honwana, 2002.

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Relativamente ao culto aos antepassados, estes eram realizados em determinadas espécies de árvores, assumindo a função de gandzelo, ou altar. Decorrente da invasão nguni e do domínio destes sobre os autóctones, o culto aos antepassados passou a ser realizado no interior das casas.

Conforme referimos, a presença nguni trouxe as tindhumba. Na construção destas casas, fazia-se primeiro o tecto, com estacas grandes e outras pequenas conhecidas por timbalelo. Depois de implantadas outras estacas no chão, como pilares, o tecto, xitlatleku, era colocado sobre estes pilares. As suas portas eram feitas de caniço, sendo, no entanto, resistentes.

Em cada família ou munti o número de casas dependia da quantidade de pessoas existentes bem como do género. Assim, era comum ver-se em cada munti, 3 a 4 casas, ou muito mais, em caso de famílias bastante numerosas. Em geral, estas últimas eram das elites locais, formadas a partir do poder político, os chefes tradicionais e seus colaboradores.

Em primeiro plano, o túmulo de Nwamutxinga Nqumayo, antiga representante do Estado de Gaza em Chilembene. Em segundo plano, um ndhumba onde se realizam as cerimónias comunitárias de evocação do espírito de Nwamutxinga

Nquamayo. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

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As populações de Chilembene, à semelhança de tantas outras no país, foram vítimas de discriminação religiosa, particularmente, por parte da Igreja Católica Romana. No fundo, a atitude tomada por esta Igreja prendia-se, até um determinado momento, cerca de 197015, com um visível apoio ao colonialismo português, uma espécie de aliança entre a “Cruz e a Espada”. Neste contexto, a Igreja empenhava-se na difusão dos valores culturais ocidentais, em detrimento dos africanos, aspectos que se estendiam, inclusivamente, à discriminação racial.

Esta discriminação assistia-se ao nível dos cultos religiosos, em que na Capela havia lugares reservados para os brancos e outros para os negros. Com efeito, os brancos tinham acesso ao interior da Capela, enquanto aos negros ou “pessoas de cor”16 tinha sido improvisado um alpendre, em frente à Capela, onde estes, de pé, tomavam parte nos cultos.

A primeira Capela da Igreja Católica em Chilembene. Na parte frontal deste edifício tinha sido improvisado um alpendre para os cristãos negros.

Foto de 2011. Fonte: ARPAC.15 Mais adiante ver-se-á uma aproximação desta Igreja aos movimentos de libertação em Moçambique, Angola, Guiné e Cabo Verde.16 Esta expressão era utilizada para suavizar o uso da palavra preto ou negro.

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Note-se, ainda, que a discriminação estendia-se até à morte. De facto, no Cemitério havia uma divisão, transparecendo os desafios da Igreja Católica em converter todos os cidadãos para a sua religião. Com efeito, o lado esquerdo do Cemitério estava somente reservado aos funerais dos católicos, enquanto o direito aos não-católicos e demais.

Esta atitude era reflexo das contradições existentes entre esta Igreja e as Protestantes, pois as últimas tinham maior aderência de crentes, sobretudo, os moçambicanos de raça negra. Estes conflitos iriam marcar Samora Machel, tendo, consequentemente criado certa aversão à Igreja Católica durante muitos anos, em virtude da sua natureza discriminatória.

Vista parcial do Cemitério de Chilembene. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

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1.3. Os Símbolos de Resistência contra a Presença Colonial

1.3.1. Mafurreira de Muxuvane

O estabelecimento do regime colonial em Moçambique, entre outros factores, ocorreu, como se referiu, à luz da materialização das decisões da Conferência de Berlim realizada em 1884/5. Neste contexto, realizaram-se campanhas de ocupação dirigidas por Mouzinho de Albuquerque. O alvo principal destas campanhas era Ngungunyane Nqumayo, na sua qualidade de Rei de Gaza.

Após uma tenaz resistência, o Rei foi preso a 28 de Dezembro de 1895, em Chayimite, transferido para a actual cidade de Maputo a 6 de Janeiro e, posteriormente, deportado para os Açores, onde viria a morrer em 1906. A sua prisão foi reivindicada com uma forte resistência, conhecida por Guerra de Mbuyiseni, que significava “Devolvam o Rei”. Esta resistência foi liderada por um comandante guerreiro do Estado de Gaza, Maguigwane Khosa.

A Guerra de Mbuyiseni contou com a participação de outras figuras, como Makhavanyane Machel, irmão de Malengani Machel, este último, avô de Samora Moisés Machel. De acordo com as fontes orais17, Maguigwane tinha a tradição de se reunir com o seu exército debaixo de uma mafurreira, em Muxuvane, que foi removida pelos portugueses pelo facto de esta simbolizar a resistência anti-colonial. No local, foi construído um estabelecimento comercial.

No entanto, Samora Machel, após o seu regresso triunfal da Luta Armada, reiterou a importância da mafurreira, visitando o local e contando insistentemente a história associada à mesma. Em 17 Fanuel Daniel Chambal, entrevista de 22/06/2011. Chilembene.

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reconhecimento aos feitos de Maguigwane, e na ausência da original, Samora Machel identificou uma outra que se encontrava há escassos metros do estabelecimento comercial, em reconstituição da mafurreira em causa.

Pela sua dimensão simbólica, a mafurreira de Muxuvane entrou na lista do património cultural de Chilembene, em particular, e de Moçambique, em geral.

Mafurreira de Muxuvane. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

1.3.2. A Escola de Marrambadjane

A Escola de Marrambadjane, que oficialmente se designava Escola Rudimentar nº 21 de Uamuchinga, foi construída em 1925. Entra nos anais da História de Moçambique pelo facto de ter sido o primeiro estabelecimento de ensino frequentado por Samora Moisés Machel, e

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ter sido também símbolo da discriminação religiosa18 e um esconderijo de panfletos durante a Luta de Libertação Nacional.

Impossibilitados de frequentar a escola oficial, porque esta era somente para os filhos dos brancos e assimilados, os irmãos Josefate e Samora, filhos de Mandhande Machel, um proeminente protestante de Chilembene, viram-se forçados a viver distantes dos seus progenitores. Foram acolhidos em casa de familiares, Solomone Magodine Tchambale e Amélia Nwantxingane, na planície de Marrambadjane, onde tiveram oportunidade de frequentar a escola local.

De uma forma geral, esta escola era frequentada por filhos de famílias negras não assimiladas, e ministrava-se o ensino rudimentar. Os alunos que concluíam este nível de ensino, iam para o Seminário São Paulo de Messano, na Macia e outros, emigravam para continuar os seus estudos na África do Sul.

Escola Primária de Marrambadjane (antiga Escola Rudimentar nº 21 de Uamuchinga) Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

18 Os aspectos da discriminação religiosa serão desenvolvidos no capítulo sobre a infância de Samora Machel.

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Durante a Luta de Libertação Nacional, a FRELIMO enviava emissários para vários pontos do país, tendo como objectivos mobilizar as populações relativamente ao significado da sua luta, recrutar guerrilheiros e, de uma maneira geral, avaliar a situação política do país. Numa das incursões pela região Sul, um guerrilheiro, Joel Guduane, mais conhecido por Maduna Xinana, passou por Chilembene.

Este posto administrativo estava sob forte vigilância do regime colonial, pois, tinha conhecimento do envolvimento directo dos filhos de Mandhande Machel na Luta Armada. Com efeito, quando as autoridades coloniais transferiram a sede do posto para o local junto à cadeia, fizeram-no em prejuízo da família Machel. Esta foi obrigada a retirar a sua residência deste local, tendo-se estabelecido num outro, todavia, não distante do sítio anterior, facto que aconteceu após a partida de Samora e Josefate para Dar-Es-Salaam.

Local para onde foi transferida a família Machel, vendo-se em primeiro plano a Casa-Museu Samora Machel,

erguida depois da Independência Nacional. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

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Esta proximidade tinha sido propositada. Prendia-se com um controlo cerrado sobre a família Machel, que era tida como bastião da FRELIMO em Chilembene. Atento a esta situação, quando Maduna Xinana chegou a Chilembene, com a ajuda do pastor Brawen Chambal e do professor António Djedje, foi esconder os panfletos na Escola de Marrambadjane.

Parte do tecto da Escola de Marrambadjane que serviu de esconderijo dos panfletos. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

Desta forma, a Escola de Marrambadjane viria a destacar-se não só por ter acolhido os irmãos Machel, enquanto lutadores pelo conhecimento científico, como inscrevia uma página de ouro na história da epopeia libertária da Nação moçambicana. Com efeito, os panfletos escondidos em Marrambadjane viriam a sufocar a estratégia da PIDE na perseguição e, sobretudo, na repressão das redes da luta clandestina no sul de Moçambique. Estes panfletos foram levados pelo Herói Nacional, Mateus Sansão Muthemba para a então cidade

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de Lourenço Marques. Nesta urbe, foram multiplicados e depois distribuídos nas cidades de João Belo e Inhambane.19

Os panfletos trazidos da Escola de Marrambadjane foram entregues a um grupo de jovens determinados em ver o seu solo pátrio livre da opressão e

dominação estrangeira.

Estes jovens, desafiando a PIDE, que propalava a mensagem segundo a qual conseguiu debelar as células da luta clandestina, colaram vários panfletos em diversos cantos da cidade de Maputo, a 24 de Dezembro de 1964. Entre esta mocidade lúcida em relação ao carácter desumano do colonialismo e ávida pela independência nacional, figuravam nomes como Ângelo Chichava, Armando Emílio Guebuza, Milagre Mazuze e Amós Mahandjane.

1.4. As Marcas da Opressão e Discriminação Coloniais

1.4.1. Na Actividade Agrícola e no Acesso à Habitação

Dentre as linhagens mais antigas de Chilembene, conforme referimos, figuram os Nkuna, Bila, Xivambu, Khosa e Machel. No domínio da actividade agrícola praticada por estas linhagens destaca-se a produção de cereais, como o xicombe (maxoeira). Aliás, a designação Bila, de acordo com a tradição oral, foi trazida pelos nguni, atribuindo-a às comunidades das terras de solos argilosos, por consumirem cervejas confeccionadas localmente. Reza a tradição que os nguni encontraram as comunidades locais a beberem “xinto”, um tipo de cerveja confeccionada tradicionalmente, tendo-lhes servido uma parte. Ao deliciaram-se do fermento da cerveja, assim exclamaram: “ndo bila, 19 Josefate Machel, entrevista de 10/10/2011. Cidade de Maputo.

Josefate Machel, Foto 2011. Fonte: ARPAC

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ndo bila!”20 Assim, passaram a designar vabila a estas comunidades.21

As inovações na estrutura agrícola de Chilembene explicam-se pelo incremento das migrações para as plantações e minas sul-africanas. Com efeito, alguns mineiros adquiriram juntas de bois, as quais, aplicadas na agricultura, melhoraram significativamente o rendimento das suas famílias e, de um modo geral, das comunidades. Além de Mandhande Machel, que trouxe charruas entre 1922 e 1926, o nome de Ngwanazi Nkambaku é apontado entre os promotores do desenvolvimento agrícola nesta região, por volta de 1919.22

Refira-se, no entanto, que as mudanças de fundo no sector agrícola de Chilembene ocorreram nos meados da década de cinquenta, com o estabelecimento do Colonato do Limpopo, um empreendimento dirigido pelo engenheiro português Trigo de Morais, que tinha como objectivo responder aos planos de fomento coloniais. A sua implementação implicou, tanto a reorganização da agricultura, como do povoamento local. Esta acção resultou na expropriação das terras dos camponeses. Com efeito, a partir dos anos 1950/52, as populações foram retiradas e obrigadas a estabelecer-se em zonas periféricas.

Encobrindo os reais objectivos políticos de Portugal, com o colonato, os quais se resumiam no incremento da economia da então metrópole, com o trabalho das suas colónias, António de Oliveira Salazar23 transmitia mensagens com cariz de salvação das populações locais, o que, na essência, era uma cartada ideológica. De facto, tentando mobilizar as comunidades para se aliarem ao seu projecto, mandou erguer um imponente monumento em Chilembene, exaltando o papel individual de cada cidadão nos programas de fomento. Neste monumento pode-se ler o seguinte:

- “A cada braço uma enxada, a cada família uma habitação, a cada boca o seu pão”.

20 Está a fermentar, está a fermentar!21 Dava, 1997.22 Joshuwa Tchambale, entrevista de 08/04/2011. Chilembene. 23 Então Primeiro-Ministro de Portugal.

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Parte do monumento erguido por António de Oliveira Salazar, em Chilembene, em 1957. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

Em termos práticos, as mensagens veiculadas estavam orientadas para a melhoria das condições de habitação, de trabalho e de vida. O pressuposto era de que a adesão ao projecto do colonato significava passar a viver numa casa melhorada, com energia eléctrica e água canalizada com pagamentos bonificados. Pelo facto de o projecto pressupor melhorias, algumas pessoas se viram forçadas a nele aderir, uma vez que não existiam outras alternativas fora do colonato. Esta adesão acabou consubstanciando-se num processo de assimilação.

Contrariamente ao que transparece em processos de assimilação, onde se assiste a decisões deliberadas de ascensão a um determinado estatuto social (colonial), em desfavor dos seus valores culturais, aqui a mobilização popular para a mudança de status, aos olhos de algumas

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pessoas era tida como inserindo aspectos benéficos. Neste sentido, a assimilação não foi, por si só, um processo de “reaccionarização24” das pessoas, pois, não obstante este estatuto, os assimilados não passaram a ser hostis aos seus concidadãos e interesses comunitários. Se isto aconteceu, então, avultam outros elementos de análise. A ideia subjacente traduz-se numa estratégia de sobrevivência, cujo objectivo era o acesso a uma boa qualidade de vida e aos valores nobres e universais de desenvolvimento.

Ao projecto de instalação do colonato, houve tentativas de resistência, pois, algumas pessoas permaneceram nas suas residências, desafiando as grandes máquinas que iam derrubando casas, árvores de grande porte e abrindo campos agrícolas. No entanto, mesmo estes, acabaram se rendendo ao impiedoso sistema colonial que se estruturava. Importa sublinhar que o critério de assimilação utilizado no acesso ao colonato não foi de todo rodeado de santidade. Continha elementos discriminatórios, entre eles, saber falar, ler e escrever a língua portuguesa, sabido que o sistema colonial jamais se tinha preocupado em prover os moçambicanos destas condições. Neste sentido, o urbanismo de Chilembene encerra uma história da agressividade da ocupação colonial do país. Para além destas marcas de agressão e de discriminação através da raça e do estatuto social forçado, existem outros aspectos, como a repressão e a consequente génese do espírito nacionalista.

1.4.2. Os Administradores e Sipaios na Repressão Colonial

O estabelecimento do sistema colonial em Chilembene, levou à criação de um posto administrativo, que funcionou nas actuais instalações da Empresa Electricidade de Moçambique (EDM). Antes, esta região estava sob um mesmo comando político-administrativo, fixado em Muxuvane, que era, igualmente, a sede do actual distrito de Bilene-Macia.

24 Entenda-se a sua transformação em reaccionários.

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Instalações onde funcionou a sede do Posto Administrativo de Chilembene. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

Dentre os administradores que passaram por este posto, figuram um tal Lino, seguido por Bunyane e Anitelangatona25. Os dois últimos nomes são alcunhas atribuídas pela população local, em alusão ao carácter ou comportamento de cada administrador. Por exemplo, Bunyane era bastante violento, sendo este nome conotado com o levantamento de poeiras, ou seja, ele só levantava “poeira”. Por sua vez, Anitelangatona, tinha como “especialização” a cobrança do imposto de palhota. Devido ao seu carácter violento, ele próprio dizia que tinha ido para aquele lugar, para cobrar impostos e não para receber justificações. Assim, ficou conhecido por este nome – Anitelangatona; “não vim para isso”, aqui subentendido por “ouvir justificações”.

25 Os nomes de registo dos administradores ainda carecem de um trabalho de arquivo. De um modo geral, as comunidades não conheciam os seus nomes completos, tendo usado mais alcunhas para o seu tratamento.

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Antiga residência do Administrador do Posto de Chilembene. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

A instalação da estrutura político-administrativa colonial implicou também o estabelecimento de uma força policial. Na hierarquia desta, figuravam na categoria inferior de agentes, os sipaios. Estes, para além de serem usados na aplicação de castigos corporais, tarefa que era realizada também por outros polícias, eram envolvidos no processo de colecta de impostos, patrulha dos bairros, entre outras actividades repressivas.

Um dos sipaios, que sobrevive na memória de alguns habitantes de Chilembene, é Chizelengane. Autêntico carrasco, andava a praticar distúrbios de posto em posto. Saindo da Macia, muitas vezes, viajou para Chilembene para aplicar castigos corporais.

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Um dirigente colonial com um grupo de sipaios à sua retaguarda.

1.4.3. A Cadeia e os Actos Desumanos

A cadeia foi construída no mesmo período da implantação do colonato, entre 1952/54, e encontrava-se junto à secretaria do posto administrativo e à residência do chefe do posto. O edifício possui uma estrutura arquitectónica do estilo ocidental, com ameias, aparentando castelos. Aliás, este modelo foi replicado em muitos locais do país.

A sua estrutura interna é constituída por cerca de seis compartimentos. As celas davam acesso a um grande salão de recepção de visitas. Este salão possuía um enorme portão, com capacidade para entrar um veículo ligeiro. Havia, igualmente, compartimentos externos situados nos cantos do edifício, cujas portas davam acesso directo ao salão grande. De acordo com alguns informantes, estes espaços constituíam celas disciplinares, e outros terão sido casas de banho ou mesmo arrumos.

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Antiga cadeia de Chilembene. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

Dentre os crimes que levavam à reclusão neste edifício, figuravam a falta de pagamento de imposto, a desobediência ao régulo, roubos e as tentativas ou obstrução do canal de irrigação, por cabritos e bois. Assim, os incriminados eram sujeitos a palmatórias, cujo número variava em função da natureza e peso do crime ou acusação.

A vida na cadeia era horrível, pois, os reclusos eram torturados com chicote e palmatória. Os castigos corporais eram feitos em público, em frente à secretaria do posto, porque eram supostamente intimidatórios. As torturas eram direccionadas, primeiro para as mãos, com o recurso à palmatória. Depois, com o uso do chicote, batia-se as nádegas até ficarem ensanguentadas. A seguir a isto, os considerados criminosos eram metidos em sacos com grandes quantidades de sal, sobre o qual pousavam as suas nádegas, como forma de aumentar as dores. Finalmente, eram introduzidos nas celas.26

26 Joshua Tchambale, entrevista de 05/08/2011. Chilembene.

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2. Samora Moisés Machel: Infância e Constituição da Família

2.1. Nascimento e Infância de Samora Machel

A linhagem paterna da família Machel faz parte dos antigos habitantes do vale do Limpopo, cujas origens estão ligadas aos diversos movimentos migratórios que tiveram lugar, sobretudo, ao longo dos últimos dois séculos. Este é o caso dos khosa e dos nguni provenientes da Zululândia, na actual África do Sul.

Actualmente, a linhagem Machel encontra-se espalhada por várias regiões da zona Sul de Moçambique, como Moamba, Magude, Manhiça, Maputo, Kalanga, Mapai, Chicualacuala, Chókwè, e, Kamassana, na África do Sul. De forma resumida, a árvore genealógica de Samora Machel pode ser estabelecida desde Matine, seguindo-se Xithlangi, Marimani, Khayihlano Maghayeye, Seye, Thethewayo, Tchaya ni Tihavu, Ntshovani (ou Chovani), Ngomani, Magurumbani, Manchiyani e Ntewani (Ntewana), Malengani, até Mandhande.27 Samora Moisés Machel nasceu a 29 de Setembro de 1933. Era filho de Moisés Mandhande Machel (ca. 1892-1984) e Gugiye Thema Dzimba (ca. 1900-1974).

27 Josefate Moisés Machel, entrevista de 16/09/2009. Cidade de Maputo.

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Mandhande Moisés Machel e Gugiye Thema Dzimba, pais de Samora Machel.

O nome foi-lhe atribuído por um homónimo, Samora Mukhavele, parente pelo lado materno e antigo soldado do exército português. Mukhavele combateu na zona do Rovuma, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e adoptou o nome Samora, mais tarde, em Tete. Refere-se que este era o nome de um oficial português, Pedro Llach Samora, de quem Mukhavele teria nutrido grande admiração.

Samora Mukhavele era uma referência entre as pessoas de Chilembene, figurando entre os intelectuais da zona. Provavelmente, devido a esta qualidade, por volta de 194028, foi apontado para ser entrevistado pelo jurista Gonçalves Costa, que estudava a história e costumes de Gaza. Deste modo, Mandhande Machel teria, igualmente, sido atraído por estas qualidades excepcionais, para atribuir o nome Samora ao seu filho. Parece testemunhar o nosso argumento, o facto de este nome ter sido atribuído por duas ocasiões aos filhos de Mandhande. A primeira vez foi dado a um dos filhos, que, para a tristeza da família, encontrou a morte logo depois do seu nascimento. A segunda, de forma insistente, àquele que viria a ser o primeiro Presidente de Moçambique independente.

Durante o período em que Samora Moisés Machel viveu em Chilembene, participava activamente nas actividades produtivas familiares, com destaque para a pastagem de gado e a produção agrícola, onde demonstrou habilidades excepcionais. A paixão e 28 Josefate Moisés Machel, entrevista citada.

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as habilidades de Samora provinham da sua educação familiar, especialmente do seu pai, um dos promotores do desenvolvimento agrícola em Chilembene e da sua mãe, que conhecia a tradição de trabalhar a terra, para dela extrair a riqueza.

O pai de Samora Machel crescera num contexto em que a vida económica era marcada pelo trabalho migratório nas plantações e minas sul-africanas. A partir dos recursos pecuniários e materiais adquiridos neste país, para além das novas tecnologias e relações produtivas, desenvolveu uma nova visão do mundo. Efectivamente, o trabalho migratório teve como um dos resultados a introdução de charruas para a tracção animal.

No que diz respeito à mãe de Samora, esta preocupava-se com a educação dos seus filhos, ministrando aspectos que julgava úteis para a sua vida adulta. Dentre os ensinamentos transmitidos figuram as façanhas do sistema colonial em relação aos quais os seus filhos deveriam estar atentos. Aliás, viu-se situação semelhante em Eduardo Mondlane, cuja mãe o aconselhou a estudar como forma de melhor conhecer o “feitiço dos brancos”. Esta conotação era em alusão à relevância do domínio da ciência e da técnica para o desenvolvimento das sociedades. Com efeito, Samora foi educado para saber criar gado, trabalhar a terra, utilizando a charrua trazida da África do Sul pelo seu pai e, ainda a se relacionar com outros jovens e os demais. Com estes ensinamentos, Samora adquiria autonomia de pensamento e de acção, com valores sublimes que depois se traduziriam em adestramento, coragem e disciplina. Na pastorícia, os rapazes de uma certa área, com o seu gado, saíam ao amanhecer, para as zonas de pasto. Ali encontravam, às vezes, outras manadas. Nos momentos de descanso do gado, organizavam-se rixas entre os rapazes da mesma zona para se identificar o mais forte. Por vezes, ocorriam também desafios entre os rapazes de áreas diferentes. Às vezes, estas “lutas” iniciavam com a confrontação entre os bois mais fortes das diferentes manadas. Chamava-se a isto de kuqheka (provocar ou atiçar) e mugayeyiso, ou seja, a própria luta com punhos e paus. Tanto os rapazes como as raparigas disputavam também a chamada ‘luta livre’, designada, localmente, ku-pfinyana.

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Numa entrevista à revista Tempo, Samora Machel recordou-se destes momentos, nos seguintes termos:

- “Ali quem não soubesse proteger-se como deve ser, apanhava uma pancada na cabeça. E quando isso tinha acontecido, podia-se ir para casa e mostrar a ferida aos pais. Não faziam nada (…) A luta podia começar desta maneira: podiam começar incitando os bois a lutar. Cada grupo incitaria o seu principal boi a lutar contra o mais forte do outro. Uma vez o boi derrotado, os rapazes avançavam e diziam: derrotaram os bois, pensam que também nos derrotaram a nós? (...) Os que fossem vencidos tinham de submeter-se (ku-khoza) e pagar o tributo ku-luva (…) com ovos, até galinhas roubadas em casa…”.29

Para se chegar aos pastos, passava-se por cursos de água. Numa das vezes, ocorreu um incidente que ficou memorável na sua mente e na dos seus irmãos. Enquanto atravessavam o rio Nhlampfungeni, Samora Machel atacou um crocodilo que tentava arrastar uma vaca para a água. O crocodilo desistiu e o bovino escapou com ferimentos, tendo-se curado posteriormente. Conta-se, ainda, que, demonstrando a sua coragem, Samora pegou e despedaçou uma cobra grande com as suas mãos.30

2.2. Formação Académica de Samora Machel

Samora Machel iniciou a sua educação formal em 1941, com cerca de oito anos de idade, na Escola nº 21 em Uamichine, onde fez a 2ª Classe, na região de Songuene.31 Em 1943, abandonou esta escola, por razões associadas ao clima de conflitualidade entre a Igreja Católica Romana e as Igrejas Protestantes. Segundo Josefate Machel, a saída do seu irmão Samora desta escola era justificada, pelo facto de seus pais serem seguidores da Igreja Protestante Metodista Livre. Um exemplo deste conflito pode ser visto na fixação de uma capela da Igreja Católica Romana junto à escola de Marrambadjane, que era frequentada maioritariamente por seguidores da doutrina protestante.29 Revista Tempo nº 837, de 26/10/1986.30 Liesegang, 2001.31 Romão Xinghemane Tchanque, entrevista de 05/08/2011. Chilembene.

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Capela da Igreja Católica junto à Escola de Marrambadjane. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

Em função dos acordos entre a Igreja Católica e o governo português, a Concordata e o Acordo Missionário, assinados em 1940, a responsabilidade da educação dos moçambicanos não assimilados passava a ser de exclusiva responsabilidade das confissões religiosas católico-romanas. Como resultado, acentuou-se a repressão aos protestantes.32 Foi em reacção contra esta medida que Abel Tchambale e Jonas Nkambaku introduziram a Compound Mission, uma corrente da religião protestante na região, onde Mandhande viria a ser baptizado e, contrair o seu matrimónio.33

É de destacar que o pai de Samora adquiriu o nome de Moisés aquando do baptismo. Este nome não terá sido escolhido ao acaso, pois, está envolto em alguma simbologia religiosa. De facto, na Bíblia Sagrada, Moisés liderou o povo judeu na sua saída do Egipto e, eventualmente, ele se considerava incumbido de uma missão semelhante, com vista à promoção do desenvolvimento económico-social, da educação e relações humanas eticamente guiadas, no quadro da sua família e comunidade.

32 A título de exemplo, em Chilembene, registaram-se perseguições aos crentes e pastores da Compound Mission, o que se saldou no desterro de alguns naturais da zona, nomeadamente, Jonas Nkambaku e Abel Tchambale, para Vilanculos e Matutuine, respectivamente. 33 Liesegang, 2001: 21.

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Samora permaneceu fora dos estabelecimentos de ensino durante algum tempo, no qual se dedicava à actividade agrícola e à pastorícia. Em 1946, Samora Machel regressou à escola, desta vez na Missão Católica São Paulo de Messano, fundada em 1901. A sua presença nesta Missão foi efémera, provavelmente, devido às duras condições a que os alunos eram submetidos.

Samora Machel, à direita, com um colega seu, na Missão de S. Paulo de Messano. Fonte: Sopa, 2001.

Por volta de 1950, a Missão era bastante grande, atraindo a atenção de muita gente, que a via como uma alternativa de formação técnico-cientifica para os seus educandos. O mérito deste centro educacional era a aliança que estabelecia entre os conhecimentos científicos e práticos, à busca de um saber fazer efectivo. No entanto, o seu demérito jazia em muitas fragilidades, como o excessivo rigor na passagem de uma classe para a outra. Como diz Eduardo Mondlane, a educação era uma forma de atrasar ou limitar os africanos no acesso ao conhecimento.

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De facto, apesar da magnitude da missão, o rácio aluno-professor era bastante elevado e incompatível, situação agravada pelo fraco nível de formação do corpo docente. A este respeito, Liesegang traz-nos este cenário, dos finais dos anos cinquenta:

- “A agricultura (…) Tem uma área superior a 30 hectares de terreno para a agricultura, em que se praticam várias culturas, sendo as principais a do arroz, amendoim e banana. Os alunos da sede e das escolas filiais tomam parte nos trabalhos agrícolas como ensino prático. O ensino na sede está confiado às irmãs religiosas [Franciscanas Hospitaleiras de Calais]. Dos 50 professores rudimentares, 42 são subsidiados directamente pelo Arcebispado. Destes, há: 3 diplomados, 4 com 4ª classe, 12 com 3a elementar, e os restantes, uns com o exame rudimentar e outros simplesmente catequistas (...) Em 1947-48, a Missão tinha mais de 9.000 alunos matriculados e apenas dois deles conseguiram passar no exame final da 4ª classe”.34

Missão S. Paulo de Messano. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

34 Liesegang, 2001:29.

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Devido a razões ainda pouco claras, Samora deixou esta missão, tendo voltado a ficar fora dos bancos escolares. Depois, foi reintegrado em Nwamutxinga, onde concluiu a 3ª Classe rudimentar, por sinal o nível de ensino mais elevado ministrado neste estabelecimento de ensino. Por este motivo, viu-se na missão de Messano a única saída para Samora continuar a estudar. Em 1949, concluiu a 3ª Classe elementar e, no ano seguinte, a 4ª Classe.

Importa frisar que pouco tempo antes da realização dos exames, Samora foi vítima de chantagem por parte dos dirigentes da Missão. Esta situação iria marcar de forma indelével a visão e, sobretudo, as suas atitudes no seu relacionamento com a Igreja Católica. Em 1983, recordando-se deste assunto, Samora Machel, revelou o seguinte:

- “Quando faltavam 15 dias para o exame da 4ª classe disseram-me: ou és baptizado ou abandonas a Missão. Foi o padre Romano (aquele que foi morto na Missão de São Roque no Benfica) que disse. As irmãs de caridade e ele vieram ter comigo e disseram: ou és baptizado, ou sais da Missão. Faltavam 15 dias para o exame e eu tinha metido os papéis. Era chantagem. Eu aceitei e fui baptizado e crismado. Deram-me muitas ofertas. Terços com a cara de São Francisco Xavier, etc. Ficaram satisfeitos, porque tinham ganho, tinham convertido um protestante. Isto foi em 1950”.35

Parte das instalações da Missão São Paulo de Messano.Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

35 Christie, 1996:32.

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A educação formal de Samora Machel termina com a 4ª Classe, entretanto, prosseguiu com explicações enquanto exercia actividades como enfermeiro em Lourenço Marques. Sobre este assunto, Albino Maheche, citado por Christie, fez o seguinte comentário:

- “Frequentámos a escola, tipo explicações, do Dr. Pires Moreira, que era um padre, depois (…) um colégio aqui na Malhangalene, era de pastores protestantes da Igreja Metodista, e depois frequentámos, também para fazer o 5º ano [que corresponde, grosso modo, à 9ª classe], a escola ‘Fernando Pessoa’ do Dr. Jaime Rebelo. Foi entre os anos de 1961, 1962 e 1963”.36

2.3. Formação Profissional de Samora Machel

Em 1950, com 17 anos de idade, Samora tinha concluído a 4ª Classe. Ao que parece, fez parte do grupo de três ou quatro alunos do seu ano, que concluiu a escola com aproveitamento positivo. Era o topo do que era normalmente a carreira escolar para os africanos no sistema colonial vigente na altura.

Após a conclusão deste nível, Samora pretendia continuar com os seus estudos no ensino secundário ou seguir para a Escola Técnica Sá da Bandeira (actual Escola Industrial 1º de Maio de Maputo). No entanto, os missionários de Messano queriam mandá-lo para o Seminário Menor de Magude. Simultaneamente, Samora estava na lista dos três alunos que o administrador distrital tinha escolhido para oficiais de Secretaria em Mabalane, no quadro do reforço do sistema administrativo colonial.37 No entanto, Samora Machel acabou seguindo para a carreira de enfermagem.

A sua formação nesta especialidade pode ser dividida em fases, sendo a primeira, a de estágio por 6 meses, em Xai-Xai, entre 1950 e 1951, onde, trabalhou na Delegacia de Saúde local. Foi a partir daqui onde concorreu, pela primeira vez, para o curso de enfermagem que era ministrado no Hospital Miguel Bombarda, em Lourenço Marques (actual Hospital Central de Maputo), não tendo sido admitido. 36 Idem. Estas informaçoes são partilhadas por Matias Mboa, companheiro de então, de Samora Machel, entrevistado por Fernando Dava e Arrissis Mudender, Agosto de 2011.37 Christie, 1996:32.

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Não conformado, concorreu novamente e, desta vez, foi aceite, tendo seguido ao Hospital Miguel Bombarda, onde funcionava o curso, com a duração de dois anos. No decorrer do curso, Samora Machel não conseguiu, na primeira tentativa, sair-se bem na cadeira de Medicina Prática, cujo exame era oral e de prática. Assim, somente no ano seguinte é que concluiu a formação, isto é, em 1954.

Nessa altura, segundo relatos do jornalista Marques Gastão, citado por Liesegang, o Hospital Miguel Bombarda funcionava com um pessoal constituído por “... 33 médicos, além do director, dois farmacêuticos, mais de uma centena de enfermeiros, auxiliares, etc., com um total de 438 trabalhadores, dispondo de 902 camas”.38 Esta unidade hospitalar respondia, essencialmente, pela assistência médica e sanitária aos habitantes de Lourenço Marques e, em menor escala, aos residentes dos bairros periféricos, nomeadamente, Chamanculo, Xinhambanine, Xiphamanine, Munhuana, Bairro Indígena, Maxaquene e Malhangalene.

No que se refere à máquina administrativa e repressiva colonial, esta era caracterizada por uma forma de funcionamento notavelmente autoritária e baseada numa discriminação racial visível. Neste sentido, quando os africanos entravam em conflito com europeus, sobretudo portugueses, corriam o risco de ser deportados para as plantações de São Tomé ou dentro do país, para trabalhos forçados.

Uma das estratégias de sobrevivência adoptada por alguns membros da comunidade africana era a conquista de padrinhos entre os brancos, aos quais podiam recorrer em caso de dificuldades. Estes padrinhos eram, geralmente, membros dos grupos chamados “liberais” e “comunistas”, onde despontavam médicos, banqueiros e advogados, que contestavam as atrocidades do regime colonial fascista.

Não obstante a prevalência desta realidade político-social, Samora Machel mostrava-se desinibido, não tolerando abusos que não fossem justificados. Em situações do género, reagia prontamente e de forma indómita. A sua agilidade física era suportada pelos exercícios que 38 Liesegang, 2001:35.

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efectuava com assiduidade. Aliás, ele praticava boxe, o que lhe valeu a alcunha de Jack Dempsey. A propósito das suas qualidades, Martinho Cossa, referiu:

- “Samora Machel sempre gostou de exercícios físicos, particularmente, brincadeiras de boxe, razão pela qual era respeitado e até mesmo, temido pelos outros rapazes. Os irmãos mais velhos e amigos confiavam nele em caso de agressão no pasto”.39

Enquanto estudante de enfermagem, Samora ocupava parte do seu tempo livre lendo jornais e informando-se sobre os desenvolvimentos políticos e sociais do mundo inteiro, particularmente, sobre a União Soviética.40

Samora Moisés Machel, em Lourenço Marques.Fonte: Sopa, 2001.

39 Martinho Paulo Cossa, entrevista de 22/06/2011. Chilembene. 40 Liesegang, 2001.

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2.4. Actividade Profissional de Samora Machel

Finda a formação, Samora Machel permaneceu cerca de um ano à espera de vaga, enquanto realizava alguns trabalhos no Hospital Miguel Bombarda, como praticante de enfermagem. Depois de admitido, foi promovido a ajudante de enfermeiro-auxiliar e colocado em Matutuíne. Devido à sua notável prestação na assistência sanitária aos seus concidadãos, Samora Machel seria destacado para a Ilha de Inhaca.

O Anuário do Ultramar Português de 1957, 1958 e 1959, descreve na rubrica “Saúde e Higiene”, no Posto Sanitário da Ilha de Inhaca, o enfermeiro Samora Machel, como estando a dedicar-se de forma abnegada no trabalho de prevenção e tratamento de diversas enfermidades que afligiam os membros daquela comunidade. No referido documento, lê-se o seguinte:

- “...o ‘enfermeiro indígena’ ‘Samora Moisés Machele’ batalha com uma epidemia de cólera ou disenteria, visitando as casas dos habitantes, tenta evitar conflitos com o chefe do Posto, um branco”.41

Samora Machel tratando um paciente, na Ilha de Inhaca. Fonte: Sopa, 2001.

41 Liesegang, 2001.

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Esta avaliação efectuada pelos agentes do regime colonial, permite concluir que a actividade de Samora Machel nesta matéria teve um alcance notável, se se atender ao facto de que as condições existentes em termos de equipamentos de trabalho e disponibilidade de medicamentos para fazer face a estas epidemias tropicais eram deficitárias. Como se pode depreender, o seu esforço em evitar desentendimentos com o chefe do Posto local visava permitir que ele continuasse com a sua actividade, de modo a garantir uma maior eficácia na sua intervenção.

Posto de Saúde de Inhaca, onde Samora Machel trabalhou.Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

Na Ilha de Inhaca, Samora Machel trabalhou três anos, findos os quais, pediu transferência para o Hospital Miguel Bombarda, com o objectivo de encontrar condições favoráveis para a prossecução dos seus estudos. Após a sua chegada, concorreu ao curso normal de enfermagem, antes reservado a brancos e assimilados. Devido às suas qualificações literárias, conseguiu participar num curso intensivo, de um ano, em 1961, tendo transitado nas provas escritas e reprovado no exame prático e oral.

Contudo, como já tivesse cursado enfermagem, Samora Machel continuou a trabalhar neste hospital, tendo passado por diversas enfermarias, com destaque para a 13ª, destinada a pacientes negros não assimilados. Nesta enfermaria, eram também realizadas investigações sobre malária.

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2.5. Constituição da Família

A constituição da família em Samora Machel pode ser enquadrada no seu contexto cultural. Esta importante decisão foi também influenciada pela sua integração no mercado do trabalho. De facto, a tradição moçambicana preconiza que, a uma certa idade, o rapaz deve constituir família, o que o integra no mundo adulto, passando assim a fazer parte dos órgãos de decisão da sua comunidade.

Quando estava na Ilha de Inhaca, Samora conheceu Sorita Tchaiakomo com quem manteve uma relação afectiva. Debruçando-se sobre esta relação, Sorita revelou que eles se conheceram, de facto, nesta ilha, quando ela se dedicava ao comércio informal no mercado local.

- “... Eu conheci Samora quando era vendedeira de matoritori, pão e badjia no mercado informal que fica junto do cais. Ao fim das actividades laborais e nas horas de lazer, ele gostava de passear por aqui. Mesmo quando ele foi trabalhar no Hospital Miguel Bombarda, o nosso relacionamento continuou, até a altura em que Samora foi a Tanzania”.42

Sorita Tchaiakomo. Foto de 2009. Fonte: ARPAC.

Da relação com Sorita nasceram quatro filhos, nomeadamente, Josceline, Edelson, Olívia e Ntewane. Quando Samora passou a trabalhar em Lourenço Marques, tinha deixado a família na Ilha de Inhaca, assistindo-a através de víveres e outros bens. Nesta cidade, 42 Sorita Tchaiakomo, entrevista de 9/10/2009. Ilha de Inhaca.

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residiu primeiramente numa casa arrendada no bairro da Mafalala. Entre 1962 e 1963, iniciou a construção da sua casa, no Xiphamanine, próximo ao bairro Indígena.

Casa onde Samora Machel viveu no Bairro da Mafalala. Foto de 2010. Fonte: ARPAC.

No período anterior à sua partida para Tanzania, Samora Machel conheceu Irene Buque, que fora colega na enfermaria do Hospital Miguel Bombarda. Desta relação nasceu Ornila Machel.

Irene Buque. Fonte: Sopa, 2001.

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Durante a Luta Armada, Samora Machel contraiu matrimónio com a combatente Josina Abiatar Muthemba, a 4 de Maio de 1969. O casamento decorreu no Centro Educacional de Tunduru, na Tanzania, sendo padrinhos dos nubentes Janet Mondlane e Aurélio Manave, por parte da noiva, e Marina Pachinuapa e Alberto Chipande, do noivo. Este enlace matrimonial foi celebrado por Uria Simango.

Cerimónia de casamento entre Samora e Josina.Fonte: CDSM.

Deste casamento, nasceu um único filho, homónimo de seu pai, isto é, Samora Machel Júnior, mais conhecido por Samito, que veio ao mundo no dia 23 de Novembro de 1969, na Tanzania. Porém, este enlace matrimonial teve uma existência relativamente efémera, tendo durado até 7 de Abril de 1971, altura em que Josina Machel perdeu a vida, vítima de doença.

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Posteriormente, Samora Machel contraiu matrimónio com Graça Simbine, acto realizado a 7 de Setembro de 1975. Debruçando-se sobre as circunstâncias em que se conheceram, Graça Simbine referiu que, antes da sua partida a Portugal, conhecia Samora Machel, no entanto, sem nenhuma aproximação ou afinidade. Foi quando ela se integrou nos esforços da luta de libertação que se aproximaram e, efectivamente, surgiu uma relação afectiva, que culminou com a celebração do matrimónio. Graça Simbine acrescentou ainda o seguinte:

- “Antes de ir para Portugal, eu conhecia Samora de vista. Quando fui fazer o treino político-militar, ele já era presidente da FRELIMO e eu apenas um soldado raso. Mas como eu tinha acabado de chegar da Europa, onde tinha estudado, feito uma faculdade, ele me procurou com o objectivo de entender o cenário de Portugal. Estava viúvo de Josina Machel havia quatro anos. Samora me fazia muitas perguntas, queria entender tudo e nós tivemos debates muito interessantes. Acho que foi ali que começámos a nos descobrir como pessoas. Eu estava ali falando com o meu presidente e ele com um soldado. Mas de soldado para presidente, no meio daquelas conversas repetidas, começou a surgir uma certa química. Assim nós nos aproximámos”.43

Foram padrinhos, por parte da noiva, Julius Nyerere e esposa, e do lado do noivo, a esposa de Kenneth Kaunda, que representou também o seu marido. A cerimónia de casamento ocorreu no palácio presidencial. Deste casamento, a família Machel teve dois filhos, nomeadamente, Josina e Malengani.

Efectuando uma breve leitura em torno do casamento presidencial, Gabriel Simbine destacou que este não obedeceu tanto aos padrões culturais tradicionais, nem à orientação religiosa. Tal situação era justitificada pela significativa mudança ideológica que se tinha observado no seio do movimento de libertação e das lideranças. Neste 43 Neves, In: seven.blogs.sap.pt. Acessado em 10/05/2011.

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sentido, Samora Machel, como Presidente do movimento, devia dar o exemplo sobre a linha ideológica correcta, realizando um casamento de carácter laico. Simbine referiu-se nos seguintes termos:

- “O casamento não envolveu cerimónias religiosas e tradicionais, como o lobolo, numa altura em que o Estado era laico, por um lado, e, por outro, revolucionário, baseado no desenvolvimento de um Homem Novo, despido de valores culturais tradicionais, subentendidos como arcaicos e retrógrados”.44

Cerimónia de casamento de Samora Machel e Graça Simbine.Fonte: CDSM.

Samora Machel deixou uma descendência composta por oito filhos e doze netos, nomeadamente, Khataza, Ziyaya, Carlos, Kai, Gugiye Kianga, Gugiye, Samora Terceiro, Malike, Zizile Graça, Fanone (Nzanji), João e Dione.

44 Gabriel Simbine, entrevisata de 23/05/2011. Cidade de Maputo.

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3. Samora Machel no Contexto do Nacionalismo e da Luta de Libertação Nacional

3.1. A Emergência do Nacionalismo em Moçambique

A emergência do nacionalismo moçambicano encontra a sua explicação na conjugação de factores internos e externos. No quadro interno, a administração colonial e todo o seu aparato de exploração, discriminação e de repressão conduziram ao surgimento de um sentimento de revolta, inicialmente, manifesto por via de imprensa e das artes e, posteriormente, pela criação de associações e movimentos independentistas. O contexto externo foi marcado pela eclosão e participação de alguns africanos na II Guerra Mundial, assim como pelas resoluções das Nações Unidas, conjugadas com as declarações da União Soviética e dos Estados Unidos da América sobre o direito à autodeterminação dos povos.

Quando se evoca o termo nacionalismo, normalmente, fica subentendida a ideia de autodeterminação nacional tanto do ponto de vista étnico como racial, sobretudo, se moldado por meio de uma percepção cultural, em que se destacam os elementos que formam uma identidade nacional. Alguns autores45, quando abordam o nacionalismo, veiculam a ideia de cidadania e da possibilidade ou não de associação com a democracia. No entanto, para Guibernau46, o nacionalismo pode ser definido como uma disposição em se formar uma comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilo de vida e têm vontade de decidir sobre o seu destino político comum.45 Bauman, 1990; Smelser, 1994; Habermas, 1996.46 Guibernau, 1997.

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Segundo Eduardo Mondlane47, o nacionalismo é “uma tomada de consciência por parte de indivíduos ou grupos de indivíduos numa nação ou de um desejo de desenvolver a força, a liberdade ou a prosperidade dessa nação”. A respeito do nacionalismo africano, Mondlane sublinhou que alguns aspectos específicos determinaram reacções diferentes, influenciadas pelas realidades económicas, sociais, culturais e políticas consoante o tipo de colonização (portuguesa, francesa e inglesa), dando lugar a teorias concorrentes como o pan-africanismo, personalidade africana, negritude e africanité.48

No quadro moçambicano, as acções nacionalistas tiveram como uma das primeiras formas de manifestação, os artigos de imprensa que denunciavam as arbitrariedades do regime colonial português e através de greves e revoltas contra a caderneta indígena, o chibalo, o imposto de palhota, a discriminação social, o serviço militar, a palmatória e o cavalo-marinho, as deportações para São Tomé e Príncipe e outros destinos de degredo. No entanto, ainda não tinha surgido entre os moçambicanos a consciência de unidade e de território moçambicano. Esta fase do nacionalismo foi designada por nativismo49, caracterizada por acções locais.

O carácter localizado das manifestações dos moçambicanos facilitava o trabalho da máquina repressiva colonial. Assim, o seu impacto reduziu-se a um sussurro que se desfazia segundo a distância do lugar dos acontecimentos.50 Em relação às condições para a emergência do nacionalismo em Moçambique, Eduardo Mondlane, então Presidente da FRELIMO, a 3 de Dezembro de 1964, em Dar-Es-Salaam, fez a seguinte declaração:

- “O nacionalismo moçambicano, como praticamente todo o nacionalismo africano, foi fruto directo do colonialismo europeu. A base mais característica da unidade nacional moçambicana é a experiência comum (em sofrer) do povo durante os últimos cem anos de controlo colonial português”.51

47 Mondlane, 1995. 48 Arnaut, 1964, citando, igualmente, Mondlane, 1995.49 Magaia, 2010.50 Magaia, 2010.51 Magaia, 2010:40.

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No período compreendido entre 1960 e 1964, vivia-se uma conjuntura sócio-política caracterizada pelo crescimento de focos de nacionalismo. Em reacção, a Polícia Internacional de Defesa de Estado (PIDE) intensificou as suas acções de perseguição e detenção de moçambicanos envolvidos na luta clandestina e, sobretudo, daqueles que contestavam abertamente a continuidade da vigência do sistema colonial.

O Massacre de Mueda, em Cabo Delgado, ocorrido a 16 de Junho de 1960; a visita de Eduardo Mondlane a Moçambique, em Fevereiro de 1961; e a fundação da FRELIMO, a 25 de Junho de 1962, em Dar-Es-Salaam, foram factos históricos cujo impacto teve seu eco no país inteiro. Samora Machel sentiu-se influenciado pela força destes ventos libertadores.

No contexto externo, o fim da 2ª Guerra Mundial, em 1945, abriu uma nova página na História da Humanidade. Esta foi caracterizada pelo surgimento de movimentos nacionalistas e progressistas na Ásia, América Latina e África. Estes movimentos tinham como objectivo fundamental a libertação dos seus povos e territórios do jugo imperialista. Contudo, devido ao carácter belicista destes regimes, alguns destes movimentos tiveram de recorrer à luta armada, como única alternativa para a materialização daquele objectivo.

Em África, a corrente libertadora começou a ter maior impacto na segunda metade da década de 50. Nessa altura, influenciados pelo movimento pan-africanista, proeminentes líderes africanos intensificaram as suas acções com vista a pôr fim à colonização dos seus países. Dentre estas figuras, destaca-se Kwame N’krumah, do Ghana; Jomo Kenyatta, do Quénia; Patrice Lumumba, do Congo; Gamal Abel Nasser, do Egipto; Julius Nyerere, da Tanzania e Leopold Senghor, do Senegal.52

Em 1959, com o apoio de Julius Nyerere, foi fundada a Tanganyika – Mozambique Makonde Union. No mesmo ano, na ilha de Zanzibar, foi criada a Zanzibar Mozambique Makonde and Makua Union ou Makonde and Makua Zanzibar Union. 52 Dove, 2008.

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Estas eram associações de ajuda mútua e de defesa dos interesses das comunidades, que agrupavam trabalhadores migrantes e refugiados oriundos de Moçambique. Na Rodésia do Sul, em 1960, e, na Niassalândia, em 1961, trabalhadores moçambicanos emigrados, igualmente, se juntaram em associações.53

As ideologias das independências africanas, nos anos cinquenta e sessenta do século passado, foram influenciadas pelo ideal do movimento pan-africanista. Estas ideologias eram unificantes, na medida em que os dirigentes nacionalistas deviam aceitar os limites territoriais impostos pelo colonialismo. Assim, deviam negar as diferenças em nome de uma unidade nacional fundada na experiência colonial comum a todos os territórios, em primeiro lugar, e em nome da unidade africana assente na unicidade do continente, em segundo. É por essa razão que se afirma que a África foi inventada pelos próprios africanos, com ideologias como a negritude de Senghor, a ujamaa de Julius Nyerere, a autenticidade de Mobutu, o humanismo de Kaunda, que tinham em comum uma representação da natureza do Homem e das sociedades africanas extrapolada do seu contexto histórico e político.54

Entretanto, estas premissas foram consolidadas no contexto do colonialismo português da época, através do sistema de trabalho forçado, a repressão da consciência nacional e a humilhação institucionalizada dos africanos.55 Efectivamente, esta realidade, conjugada com os desenvolvimentos políticos em África e no mundo, contribuiu para o desenvolvimento do pensamento nacionalista de Samora Moisés Machel, nos anos 50 e princípios de 60. Alguns eventos que serviram para atiçar esta consciência foram as lutas anti-coloniais no Vietname, Argélia, Congo assim como Angola. Foram estes acontecimentos que, conjugados com a conjuntura política interna, o conduziram a envolver-se na luta clandestina.53 Cabaço, 2010. 54 Magaia, 2010.55 Idem.

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3.2. O Envolvimento de Samora Moisés Machel na Luta Clandestina

Em 1951, quando Samora Machel entrou no Hospital Miguel Bombarda, o ambiente que encontrou era caracterizado por um tipo de segregação social, baseada na cor e na origem etno-linguística. No entanto, Samora já possuía um elevado grau de sociabilidade e um sentido de justiça apurado. Assim, ele tentava conviver com todas as pessoas, independentemente da sua cor e origem étnica.56

Neste contexto, Samora Machel conseguiu formar grupos para debates políticos. Assim, durante as noites, se concentravam para trocar impressões sobre os desenvolvimentos políticos nacionais e internacionais, que obtinham através da leitura de jornais e da escuta de certas emissões radiofónicas. Foi nessa altura que Samora participou numa reivindicação com vista ao reajustamento salarial dos praticantes de enfermagem. Em reacção, a polícia portuguesa perseguiu os enfermeiros, chegando a ameaçar com a detenção dos elementos mais destacados dessa reivindicação.57

O amadurecimento político-nacionalista de Samora Machel não foi condicionado somente pelas leituras e conversas que estabelecia com seus colegas. A presença de Eduardo Mondlane em Moçambique, em 1961, aspecto referido anteriormente, produziu um significativo impacto na consciência política de Samora Machel e de outros jovens contemporâneos.

Nesta época, a PIDE intensificou a sua vigilância, seguindo atentamente os passos das pessoas de quem desconfiava. A título de exemplo, em 1961, foram julgados cerca de 13 presos políticos e, como corolário, Samora Machel foi chamado para interrogatório pelo Comandante Segurado. Foi na sequência da instabilidade em que vivia, acossado permanentemente pela PIDE, que em tom de brincadeira Machel dizia: “não posso continuar com esta vida. Qualquer dia vou-me embora, vou para fora estudar e quando regressar vocês escrevam um bilhetinho a pedir: favor dar emprego ao rapaz”.58

56 Arquivo, nº 18.57 Idem. 58 Idem.

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No mesmo período, participou no lançamento de panfletos, contendo informação sobre a existência de partidos políticos em Nampula, Cabo Delgado e Niassa. Parte destes panfletos foram parar às mãos de alguns enfermeiros cujos nomes constavam dos dossiers da PIDE. Por isso, alguns destes foram presos.59

Samora Machel já era membro de uma célula da luta clandestina, composta, para além dele, por Matias Mboa e Simão Massango. Esta era denominada “Os Três Irmãos Africanos”. Apesar da discrição das suas acções, a PIDE, com o apoio dos seus colaboradores e informantes, farejava nele alguma tendência anti-colonialista.

Com efeito, João Ferreira, um enfermeiro de raça branca, em serviço no Hospital Miguel Bombarda e que simpatizava com as tendências nacionalistas, um dia visitou a “Enfermaria 13”, onde Samora trabalhava. De acordo com Ian Christie, numa das camas estava um paciente chamado Victor Hugo. Este informou ao Ferreira que pouco depois de entrar no hospital, tinha sido visitado e interrogado pela PIDE, que o confundira com Samora Machel.60 Em face desta revelação, Samora Machel não esperou que a PIDE voltasse de novo à sua procura. Assim, decidiu encetar a fuga, na companhia de Matias Mboa.

João Ferreira, no local onde informou a Samora que a PIDE estava à sua procura, a 4 de Março de 1963. Fonte: Sopa, 2001.

59 Arquivo, nº 18. 60 Christie, 1996.

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Contudo, a partida de Samora Machel para Dar-Es-Salaam foi adiada por algum tempo devido, por um lado, à necessidade de terminar a casa que estava a construir para a sua família. Por outro lado, Matias Mboa fora incorporado nas Forças Armadas do Exército Colonial. Neste sentido, enquanto Samora Machel terminava a habitação, Matias Mboa tentava desembaraçar-se deste exército. Para o efeito, Mboa fingiu padecer de tuberculose, tendo sido enviado ao Hospital Militar. Na sequência, Samora e a enfermeira Irene Buque, com ajuda de um médico amigo, conseguiram falsificar os resultados dos exames médicos, confirmando a inexistente tuberculose.61

Matias Mboa

3.3. A Viagem de Samora Machel a Dar-Es-Salaam e seu Ingresso na FRELIMO

A partida de Samora Machel à Tanzania ocorreu em 1963. De acordo com Mboa, eles reconheciam as dificuldades que existiam na hipótese de seguirem um itinerário Sul - Norte e entrar na Tanzania. Na altura, era extremamente difícil conseguir transporte para a região Norte, por via terrestre. Por outro lado, a Estrada Nacional, a chamada espinha dorsal das comunicações terrestres de Moçambique, era constituída por longos troços de trilhos e picadas que por vezes se embrenhavam 61 Matias Mboa, intervenção de 16/06/09. Escola Central do Partido FRELIMO.

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por matas densas. Igualmente, a via que, por volta de 1962 e 1963, tinha sido usada por alguns nacionalistas, a que saía de Lourenço Marques através da Linha Férrea do Limpopo, até Malvérnia (Chicualacuala) e desembocava na Rodésia, já se encontrava bastante obstruída pelas acções de vigilância realizadas pela PIDE, com o apoio dos regimes racistas da Rodésia do Sul e da África do Sul.62

Perante este cenário, consideraram a hipótese de uso da rota da Suazilândia. Mboa referiu que eles se lembraram do padre Matias Chicobo, que era seu padrinho, o qual, por sua vez lhes recomendara que entrassem em contacto com um outro padre, Moisés. Este último viria a comunicar-se com o padre Zefanias, em Zitundo, no actual Posto Administrativo, distrito de Matutuine. Já com base nestes contactos, o grupo partiu de Lourenço Marques às 4:30 horas do dia 4 de Março de 1963 e atravessou Catembe, passando por Zitundo, tendo como primeira meta, chegar à Suazilândia.

A colaboração dos representantes das congregações religiosas, sobretudo os padres católicos, pastores protestantes e irmandades muçulmanas, com os movimentos nacionalistas moçambicanos era, de facto, uma realidade.

A coberto da pregação da palavra divina, estas contribuíam para a disseminação de mensagens anti-colonialistas. No caso das irmandades muçulmanas, Bonate63 indicou que o recrutamento de jovens no Norte do país, para a causa nacionalista era conduzido durante uma banja, isto é, um acto público, acompanhado por um ritual, que proporcionava legitimidade ao processo. A respeito das missões, dois exemplos elucidam as considerações acima. Saute64, explicando o papel da Missão Anglicana de Messumba na contestação ao regime colonial, enfatizou que em defesa das comunidades, alguns missionários, entre moçambicanos

62 Apesar da condição precária deste itinerário devido à presença da PIDE e a colaboração com a Polícia Rodesiana, em finais de 1963, José Phahlane Moiane seguiu por ela até Tanzania. Isto é, a rota continuou a ser usada até este período, no entanto, as probabilidades de cair nas mãos da PIDE eram bastante maiores. Vide: Moiane, 2009. Também para um relato, de certo modo, mais pormenorizado sobre esta via, veja-se o mesmo autor. 63 Bonate, 2009.64 Saute, 2005.

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e estrangeiros, confrontaram-se com as acções de brutalidade perpetradas pela administração colonial. Neste processo, tanto no contexto religioso como político, acabaram fazendo as suas próprias agendas, dentro da Missão Anglicana. Outro exemplo é o do Pastor anglicano Zedequias Manganhela65, acusado pela PIDE de subversão e de financiar a guerrilha. Este viria a perder a vida em 1972, na Cadeia da Machava.

Voltando aos jovens viajantes, chegados a Zitundo, tiveram a necessidade de trocar o dinheiro que possuíam, de Escudo para a Libra, moeda corrente em alguns dos territórios que iam percorrer. Devido à quantidade considerável do montante para quem pretendesse efectuar uma simples viagem de visita à Suazilândia, levantaram-se suspeitas em relação às suas reais intenções. Porém, Samora Machel, que era relativamente conhecido na região na qualidade de enfermeiro, afirmou que estava de férias e que ia comprar gado. Assim, conseguiram atravessar a fronteira e seguir viagem.

Na Suazilândia, apresentaram-se ao Dr. Dlamini que os mandou para Mbabane, capital do território, ao encontro do Dr. Zwane, Presidente do “Ngwane National Liberatory Congress”. Este, por sua vez, recomendou-lhes o Secretário-Geral do partido, Dumissa Dlamini, um príncipe próximo do Rei Sobhuza II, a quem pediram para falar com o príncipe Magule, ligado ao Governo do Protectorado Inglês.

Estes políticos eram simpatizantes dos movimentos de libertação da região e estavam a par das dinâmicas políticas que ocorriam. Aliás, eles também lutavam pela liberdade da Suazilândia da administração britânica.

Durante a estadia na Suazilândia, enquanto se encetavam esforços para prosseguirem a viagem, Samora Machel e Matias Mboa ficaram na cidade de Mbabane, mais concretamente no bairro de Msunduza. Neste local também localizava-se um acampamento de refugiados que albergava nacionalistas moçambicanos e de países da região austral. Matias Mboa66 confirmou que ele e o seu companheiro Samora, foram acolhidos em casa do Dr. Nquku, então Presidente do “Swazi National Progress Party”, que, igualmente acolheu outros nacionalistas.67

65 Chamango, 2005.66 Matias Mboa, entrevista de 05/09/2011. Cidade de Maputo.67 Esta casa acolheu, igualmente, Josefate Machel que saiu de Lourenço Marques para Dar-Es-Salaam um mês depois de Samora Machel.

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Fachada principal da casa do Dr. Nquku. Foto de 2011. Fonte: ARPAC.

Dependências em que se albergou Samora Machel, em casa do Dr. NqukuFoto de 2011. Fonte: ARPAC.

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Ao príncipe Magule, Samora e Mboa explicaram o seu objectivo, que era, basicamente, conseguir chegar a Dar-Es-Salaam. No entanto, informaram que havia dificuldades de atravessar as fronteiras até alcançarem o seu destino, uma vez que não possuíam nenhum passaporte ou documento de viagem. Em resposta ao pedido, o príncipe emitiu um salvo-conduto, qualificando-os como cidadãos suázis de visita ao Botswana. Com esta documentação partiram, passando pela República da África do Sul, via ferroviária, até Francistown.68

Salvo-conduto fornecido a Samora Machel na Suazilândia. Fonte: Sopa, 2001.

No Botswana, na tentativa de atravessar a fronteira para a Rodésia do Norte (actual Zâmbia), introduziram-se numa fila de mineiros que também entravam para aquele território. De acordo com Matias Mboa, Samora Machel seguiu em frente, com um intervalo de separação preenchido pelos mineiros. Antes combinaram para fingirem que ninguém conhecia o outro e que se alguém arranjasse problemas não tinha nada que denunciar o companheiro.68 Matias Mboa, entrevista de 02/09/2011. Cidade de Maputo.

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Quando chegou a vez de Samora Machel se identificar perante a polícia, esta, desconfiada, mandou-o sair da fila. Mboa, observou a situação com muita preocupação, mas conseguiu conter-se, continuando a marcha em direcção ao mesmo polícia, que, uma vez, mais o mandou sair da fila. O polícia colocou algumas questões em língua xi-cewa, ao que estes não conseguiram responder. Demonstrando que os tinha identificado como moçambicanos, mandou-os tirar as camisas, deixando a descoberto as cicatrizes de vacinas. Na altura, somente moçambicanos e angolanos as possuíam, como resultado das campanhas de administração de BCG, uma vacina contra a tuberculose feita nestas antigas colónias portuguesas. De forma condescendente, aconselhou-os a não permanecerem em Francistown, sob o risco de serem raptados pelos agentes da PIDE e repatriados para Moçambique.

É de salientar que havia vários casos de rapto, em vários países que tinham estabelecido acordos com a PIDE, entre eles, o Protectorado da Suazilândia e o regime minoritário da Rodésia do Sul (Zimbabwe). A título de exemplo, na Suazilândia, alguns nacionalistas, como Ibrahimo Papucho e Ibrahimo Manguço, foram raptados e repatriados para Lourenço Marques e executados pela PIDE.

Na Bechuanalândia, algumas individualidades ligadas a partidos e a congregações religiosas, prestavam apoio aos nacionalistas da região que transitavam por aquele território. Na altura, existia o Bechuana Peoples Party (BPP), que foi notável na assistência prestada a estes jovens libertadores.

Seguindo o conselho do polícia, partiram de Francistown para Lobatse, uma pequena cidade do então protectorado britânico. Samora Machel ficou hospedado na casa do velho Kgaboesele, um militante do BPP, que na companhia de sua esposa, lhe prestou o apoio necessário, o que o incentivou a prosseguir com a sua causa. Lobatse foi um local de trânsito de diversos nacionalistas da região, sobretudo devido à sua localização geo-estratégica e ao cruzamento de vias de comunicação, como linhas férreas e rodoviárias. Estas ligam a República da África do Sul e a fronteira com a Zâmbia, entre outros destinos.

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Casa onde Samora Machel foi alojado em Lobatse, vendo-se o interior do quarto onde Samora dormia. Junto à parede, a base da sua cama.

Foto de 2010. Fonte: ARPAC. A casa em que Samora Machel foi hospedado está a ser transformada em “Museu Samora Machel”, e passará a constituir uma referência importante deste acontecimento. Como forma de agradecimento, o Governo moçambicano edificou uma outra habitação para a família Kgaboesele.

Casa construida pelo Governo moçambicano para a família Kgaboesele. Foto de 2010. Fonte: ARPAC.

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A respeito das dificuldades de seguir a viagem, os jovens decidiram comunicar, por correspondência, esta preocupação ao Dr. Eduardo Mondlane, Presidente da FRELIMO, que os aconselhou a terem calma, pois, esforços seriam envidados com vista à solução do problema. Enquanto aguardavam, juntaram-se a um grupo de cidadãos sul-africanos que esperava, igualmente, por uma oportunidade de viajar para Dar-Es-Salaam.

Florence, esposa de Kgaboesele. Foto de 2010. Fonte: ARPAC.

Em Abril de 1963, Samora Machel e Matias Mboa conseguiram embarcar num avião Dakota fretado pelo African National Congress (ANC), para levar militantes deste movimento para Dar-Es-Salaam. Entre estes, estava Joe Slovo e J. B. Marks. A este respeito, Iain Christie, citando Joe Slovo, referiu o seguinte:

- “Pouco antes de partirmos, um jovem magro e enérgico perguntou se era possível obter um lugar no nosso avião porque queria ir juntar-se às forças da FRELIMO. JB tomou imediatamente a decisão de que um dos nossos quadros deveria sair do avião para dar lugar ao recruta da FRELIMO.

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O recruta que viajou connosco (e ele lembra-se disso muito bem e costuma contar esta história) é o Camarada Presidente Samora Machel”.69

Chegados a Dar-Es-Salaam, Samora Machel e Matias Mboa foram recebidos por Alberto Chipande e acomodados numa antiga Esquadra da Polícia, no Bairro de Ilala, onde se encontravam outros jovens moçambicanos. O principio adoptado pela FRELIMO para uma melhor integração de novos militantes, assentava na auscultação das suas pretensões e posterior explicação das directrizes e linhas mestras do movimento, de modo que os militantes estivessem cientes do que lhes esperava e tomassem a decisão de forma mais racional.

Neste sentido, antes de se integrarem nas diversas missões libertárias, Eduardo Mondlane, reunia-se com os militantes para a sua inserção no seio da visão do movimento. Assim, embora os jovens partissem para se juntarem à FRELIMO, existiam duas possibilidades: prosseguir com os estudos ou integrar directamente as hostes dos guerrilheiros. No entanto, o sentimento comungado por todos era, finalmente, terem a oportunidade de contribuírem para a libertação do seu povo da dominação colonial.

A motivação dos jovens para continuidade dos estudos explica-se, sobretudo de duas maneiras. Primeiro, a visita do Dr. Eduardo Mondlane a Moçambique, em 1961 e, segundo, a Rádio Moscovo, que entre outras mensagens, divulgava a oferta de bolsas de estudo para as pessoas que conseguissem chegar a Dar-Es-Salaam. Com efeito, Eduardo Mondlane, um negro, na altura doutorado em Sociologia e Antropologia, alto funcionário das Nações Unidas, admirado pelas suas qualidades, respeitado mesmo pela tenebrosa PIDE, era uma fonte de inspiração para muitos jovens.

69 Christie, 1996:52. Este depoimento dá ideia de que somente Samora Machel foi único moçambicano que embarcou neste avião, tendo Matias Mboa ficado em terra. No entanto, este último, em entrevista garantiu ter viajado nesta aeronave para Dar-Es-Salaam. Ironizando o facto de o seu nome nunca ser mencionado neste episódio, disse que “eu como não sou chefe grande, sou ignorado”.

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Seguindo os princípios partidários, à semelhança de outras situações, Eduardo Mondlane reuniu-se com cinco jovens recém-chegados a Dar-Es-Salaam, nomeadamente, Samora Machel, Matias Mboa, Armando Tivane, Simão Massango e Ângelo Lisboa. Este encontro resumiu-se nos desafios conjunturais da FRELIMO, contudo, sem perder de vista as perspectivas a longo termo. Matias Mboa referiu-se a este encontro nos seguintes termos:

- “O Presidente Eduardo Mondlane convidou os militantes para um encontro. Perguntou-nos qual era o objectivo de cada um. Quase todos disseram que pretendiam estudar. Eu tencionava me formar em Direito, Samora, em Medicina e os outros em outras áreas. Depois de saber das nossas pretensões, Mondlane explicou-nos que já tinha estabelecido contactos com o Senador norte-americano Robert Kennedy e este negociado com Portugal no sentido de conceder a auto-determinação ao povo moçambicano. No entanto, Portugal tinha-se recusado. Nesse sentido, a única solução para a FRELIMO era o desencadeamento da luta armada. Para isso, era necessário que os militantes fossem treinados militarmente, de modo a fazer face a um exército convencional e bem equipado”.70

Dada a complexidade do assunto, os jovens pediram para dar a resposta no dia seguinte, depois de ponderarem devidamente. Saídos do encontro, alguns murmuraram, dizendo que Mondlane, como já era Doutor, não queria que os outros se tornassem também. Porém, o diálogo e a ponderação que fizeram permitiu o entendimento da mensagem educativa e apelativa de Mondlane, especialmente, por parte de Samora Machel. A este respeito, Hélder Martins enfatiza o seguinte:

- “No dia seguinte, Samora Machel foi o primeiro a levantar o braço quando foram pedidos voluntários para o exército. Explicou, na reunião, que ele também tinha vindo com o desejo de continuar os estudos para ser médico, mas em face da situação que o Presidente tinha descrito, ele não via outra opção senão ir combater. A sua posição firme e engajada e o

70 Matias Mboa, entrevista citada.

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seu cometimento pela causa popular foram, de certo, modo contagiantes e muitos dos indecisos seguiram-lhe o exemplo. Assim se constitui o segundo grupo que foi fazer treino militar na Argélia. Pela sua determinação e engajamento, Samora foi logo escolhido para dirigir esse grupo”.71

Hélder Martins

Samora Machel, depois de assumir o compromisso de ser guerrilheiro da FRELIMO, foi-lhe confiada a liderança do grupo de cerca de 70 jovens moçambicanos72 e seis do ANC, que seguiu para treinos militares na Argélia73, no Centro de Instrução da Vila de Marnia. Neste país, Samora foi confirmado pelos instrutores argelinos como chefe do grupo, com base nas capacidades e habilidades por ele demonstradas, incluindo o espírito de liderança. A preparação militar em guerrilha durou seis meses. Findo este período, o grupo de Samora Machel regressou a Tanzania.71 Martins, 2001. 72 Era composto por, entre outros, Simão Tobias Lindolondolo, Alberto Chipande, Raimundo Pachinuapa, Lourenço Domingos, Matias Fundi, Elias Elias, Lucas Mania, Matias Mboa, Bonifácio Gruveta e Armando Timo. 73 Este país, então chefiado por Ahmed Ben Bella tinha encaixado nos alinhamentos diplomáticos de Eduardo Mondlane. Na altura, representava uma mais valia treinar os jovens neste país devido à sua experiência de guerra de guerrilha na luta de independência contra a França. O país treinou três grupos de militantes moçambicanos, os quais seriam responsáveis pelo desencadeamento da insurreição geral armada contra o regime colonial.

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3.4. Samora Machel e a Abertura dos Campos de Kongwa e Nachingwea

Em 1963, os combatentes da FRELIMO eram posicionados no campo de Bagamoyo. No entanto, nos princípios de 1964, surgiu a necessidade de os colocar num local relativamente distante de Dar-Es-Salaam, ao invés de Bagamoyo, que, para além de se localizar na zona da praia, com elevado fluxo de pessoas, ficava a escassos quilómetros da cidade de Dar-Es-Salaam. Nesta altura, a Tanzania vivia uma situação de crise política e temia-se que, por quaisquer razões, os guerrilheiros da FRELIMO fossem envolvidos em intentonas militares contra as autoridades tanzanianas. Tal receio era justificado pelo facto de, no mesmo período, ter sido dominada uma tentativa de sublevação.74

Em face destes factos, o grupo de Samora Machel deslocou-se a Kongwa, em Abril de 1964, onde este dirigiu os trabalhos visando a criação de condições para a fixação dos contingentes militares da FRELIMO. O que mais tarde viria a ser o campo de Kongwa era uma farma abandonada, sem instalações de nenhuma ordem, localizada no distrito de Dodoma.

Os guerrilheiros, sob a liderança e orientação de Samora Machel, criaram as condições para tornar o local habitável e com possibilidades de produzir alimentos. Mais do que isso, o campo de Kongwa constitui não só um testemunho dos sacrifícios consentidos pelos moçambicanos durante a luta, como e sobretudo, é uma demonstração de que os desafios de desenvolvimento são, de facto, transponíveis. Os combatentes não tinham armas suficientes para o treinamento e, para o efeito, faziam simulações com o recurso a paus. Foi desta situação que a FRELIMO partiu, para depois vencer o poderoso exército colonial português. Caracterizando o campo de Kongwa, Christie realça:

- “As condições no campo, uma propriedade agrícola abandonada, não levavam ao breve lançamento da luta armada. Os homens tiveram que fazer tijolos de barro para construir as suas próprias casas e tiveram que produzir uma grande parte da sua comida. Talvez mais grave para os futuros guerrilheiros fosse a falta de material de guerra nos

74 Matusse, 2004:77.

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primeiros dias de Kongwa. Para treinar os seus homens nas artes militares, Samora deu-lhes paus e pediu aos espantados combatentes da liberdade para imaginarem que estavam a pegar em espingardas. Após esse triunfo da mente sobre a matéria (…) foi ensinado aos homens como funcionavam os explosivos”.75

Até a altura do desencadeamento da insurreição geral armada, Kongwa funcionou como a base militar da FRELIMO na Tanzania. Foi a partir deste local que os guerrilheiros que tinham recebido a missão de iniciar a luta em Cabo Delgado, Niassa e Zambézia, partiram para receber instruções em Dar-Es-Salaam e, depois, seguiram para o interior de Moçambique. Alberto Chipande76 realçou que ele saiu de Kongwa à estação ferroviária de Dodoma, onde tomou um comboio rumo a Dar-Es-Salaam. Nesta cidade, ele e outros combatentes foram recebidos por Eduardo Mondlane e orientados para o desencadeamento da Luta Armada.

Samora dirigindo-se aos combatentes no campo militar de Kongwa, em 1964. Fonte: Sopa, 2001.

75 Christie, 1996.76 Alberto Chipande, entrevista de 28/10/2008. Maputo.

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O campo de Kongwa foi substituído pelo de Nachingwea, no decurso de 1965. Uma das razões para este facto foi a grande distância que o separava da fronteira com Moçambique. Esta situação não facilitava o reabastecimento das frentes de combate tanto em víveres, como em equipamentos militares e efectivos, assim como dificultava a coordenação das acções combativas pelo comando ali estacionado. Este problema encontrou solução com a identificação de Nachingwea, que distava cerca de 100 km da fronteira com Moçambique.

A abertura deste campo ocorreu em Setembro de 1965, quando um grupo de combatentes foi transferido de Bagamoyo, primeiro para Madai Rangers, e depois para Nachingwea. Madai seria abandonado devido à escassez de água no local, as reduzidas dimensões da fazenda e a sua proximidade com as aldeias.77 Por estas razões, os efectivos foram retirados para Nachingwea, mais concretamente para a Farm 17.

Em resultado da abnegada actividade dos combatentes sob a direcção de Samora Machel, Nachingwea tornou-se uma referência incontornável nos esforços da condução da Luta de Libertação de Moçambique, assim como um centro de formação e preparação do “Homem Novo”. Era nesta base onde se encontrava o Comando Nacional e, a partir dela, foram lançados os alicerces da futura Nação moçambicana. Uma das primeiras actividades destacadas foi o treinamento de três companhias, que seriam enviadas a Niassa para reforçar as que lá tinham iniciado as acções combativas.

Neste período em que dirigiu tanto o campo de preparação político-militar de Kongwa como de Nachingwea, Samora Machel demonstrou um elevado grau de coragem, capacidade de liderança invulgares e uma extraordinária e firme determinação. Sobressaíam as suas experiências de infância, adquiridas em Chilembene, onde fora pequeno pastor e praticante de agricultura com charruas aplicadas a juntas de bois. Um lutador destemido entre os pastores da sua época. Exaltavam-se as qualidades de um líder de grupo forjado por instrutores argelinos e de conhecedor da cultura dos guerrilheiros sob o seu comando.77 Neste campo foram treinados por especialistas chineses e instrutores nacionais, alguns recrutas em termos de tática, estratégia e armamento.

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Em Nachingwea, Samora enaltecia a visão ideológica da FRELIMO sobre a definição do inimigo. Era contra o colonialismo português e não contra o povo português. Igualmente, a luta não era contra os brancos, mas sim contra os opressores colonialistas. Estes princípios traduziam-se nas operações militares, definindo os alvos como sendo as infra-estruturas, equipamentos, efectivos militares e os agentes da autoridade colonial. De acordo com Hélder Martins, Samora considerava fundamental para o sucesso da luta, o mais estrito respeito por esses princípios, punindo a todos os combatentes que os infringiam:

- “Samora quis que eu travasse conhecimento com um comandante do início da guerrilha e que estava preso e na reeducação (…). Logo nas primeiras semanas da Luta Armada, ele deixou os seus soldados matarem cantineiro branco e saquearam a loja. (…). Logo que teve conhecimento do acontecimento, Samora imediatamente mandou regressar o comandante a Kongwa e rapidamente mandou efectuar um inquérito, que demonstrou que essa morte do cantineiro tinha tido resultados desastrosos (…). Esse camarada ficou na reeducação cerca de 2 anos”.78

Esta medida não foi exclusiva. Efectivamente, também faz-se referência a Francisco Mazuze que, na zona de Revia, no Niassa Oriental, assaltou uma loja e distribuiu os haveres ali encontrados pelos seus elementos e membros da comunidade. Esta medida valeu-lhe uma punição e submissão a um período de reeducação com vista à sua “lavagem cerebral”.

Um outro aspecto que foi solucionado graças à perspicácia de Samora Machel foi a questão da presença feminina nas bases, o que levou à criação do Destacamento Feminino. Com o inicio da Luta Armada de Libertação Nacional, muitas pessoas começaram a fugir das suas comunidades, aderindo às bases da FRELIMO. Algumas vezes fugiam famílias inteiras. Na generalidade, os homens, depois de treinados, passavam a tomar parte nas missões combativas, mas as mulheres eram integradas, geralmente, nas actividades produtivas e outras tradicionalmente tidas como femininas.

78 Martins, 2001: 304.

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A este respeito, Martins apresenta uma das facetas controversas da presença de efectivos femininos nas bases, tendo realçado o seguinte:

- “Em 1965/66, começaram também a aparecer, nas bases militares do interior, algumas mulheres como voluntárias. (…). Nas bases eram objecto dos desejos sexuais de todos aqueles homens (…). Mas havia consequências piores para a moral dos combatentes e para a disciplina nas bases. As emboscadas eram sempre feitas por voluntários e, habitualmente, havia sempre mais voluntários do que era preciso (…). Desde que houve mulheres nas bases, os comandantes tinham menos iniciativa de fazer emboscadas e quase não havia voluntários.

Os que tinham uma namorada, não queriam ir para não a perder. Os que não tinham namorada esperavam que os que tinham se ausentassem, para ver se conseguiam conquistar a namorada do outro. Mais ainda, nas emboscadas passou a haver uma taxa elevada de acidentes, em que um guerrilheiro matava outro”.79

Samora dialogando com um Grupo de guerrilheiras.

79 Martins, 2001:290-1.

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Perante esta situação, Samora Machel percebeu a essência do problema. A partir dos relatórios que recebia das frentes de combate, concluiu que este cenário era bastante preocupante e que podia comprometer o desenvolvimento de todo um esforço de luta pela independência. Assim, decidiu informar Eduardo Mondlane e Filipe Magaia, que acharam também a realidade problemática. Deste modo, uma delegação incluindo membros do Comité Central foi a Niassa investigar a situação, e confirmou o que Samora Machel tinha detectado.

Foi em consequência disso que se decidiu tomar medidas drásticas no que respeitava ao relacionamento entre homens e mulheres, e se criou o Destacamento Feminino, com as suas bases, onde só havia mulheres. Nestes campos, Samora Machel distinguiu-se no combate ao obscurantismo e divisionismo baseados na região de proveniência, na religião e na etnia. Durante a fase dos treinos dos novos recrutas, Samora Machel dedicava-se de forma particular na luta contra estas tendências que os instruendos traziam, esforçando-se em inculcar neles, conceitos científicos básicos e normas elementares para uma vida sã e saudável no seio dos grupos.80

3.5. Samora Machel e a Abertura da Frente do Niassa Oriental

A frente do Niassa Oriental foi aberta em 1965 por um pelotão de 46 combatentes. Este grupo era chefiado por Samora Machel e tinha como adjunto Solomone Machaque. André Moyo era comissário político, Ernesto Paulo, chefe de operações, Matias Pius, Pedro Malipa e Ndowana81, chefes das secções.

A abertura desta frente surgiu da necessidade de alargar as zonas de operações da Luta de Libertação Nacional. Refira-se que, no caso de Niassa, após o primeiro tiro, as operações estavam confinadas, 80 Martins, 2001. 81 Ainda não foi possível apurar o outro nome de Ndowana.

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fundamentalmente, à zona de predominância nyanja, junto ao lago Niassa. Assim, uma grande extensão coberta pelas populações yao e makhuwa encontrava-se fora das áreas de actuação da guerrilha. Deste modo, impunha-se encontrar estratégias rápidas para a extensão da luta a estas zonas. De acordo com Hélder Martins, Samora Machel decidiu ser, ele próprio, a comandar directamente o destacamento encarregue de abrir essa nova frente, tendo salientado o seguinte:

- “Quis ser coerente consigo próprio e mostrar a todos que não era um dirigente militar de gabinete, mas que também estava pronto para realizar o trabalho militar de base e a familiarizar-se com as realidades do terreno”.82

Niassa Oriental foi considerado uma das frentes mais difíceis no quadro da Luta de Libertação Nacional, tendo contribuído para tal, factores de vária ordem. Dentre estes, destacam-se o reduzido número da população na região, aliado à vastidão do território, à falta de água e à concentração de efectivos militares coloniais na fronteira com a Tanzania. De facto, a fraca presença da população não facilitou o trabalho de mobilização para o lançamento da luta armada. Estes factos são relatados por Christie, nos seguintes termos:

- “O Niassa Oriental era uma zona particularmente difícil para os guerrilheiros operarem. Samora Machel e a sua unidade iniciaram a sua jornada através de uma área sem lugares habitados nem fontes de água. Marcharam quatro dias nessas condições. No quinto dia atingiram os arredores de uma aldeia chamada Mecula, com a promessa de socorro da população local. Infelizmente, o exército português tinha sido avisado e tinha cercado a aldeia, impossibilitando a entrada do grupo de guerrilheiros. A única boa notícia foi que um chefe tradicional da área junto do posto português de Valadim estava pronto a receber Samora e os seus homens. A má notícia era que isso ficava a uma distância de mais seis dias de marcha”.83

82 Martins, 2001: 306-7.83 Christie, 1996.

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Apesar da distância que lhes esperava, o grupo marchou até à região do régulo Mataaka, em Mavago. À sua chegada, Samora Machel disfarçou-se de um xeique e, na companhia de André Moyo, foi contactar o régulo, que concordou em colaborar com as forças da FRELIMO. Assim, nesta região foram instaladas as primeiras bases da guerrilha de onde seriam lançados os primeiros ataques.

Pouco tempo depois da abertura da região, Samora Machel regressou a Nachingwea, onde empregou as suas forças e energias como chefe de treinamento e maximizou a experiência que trazia de Niassa Oriental. Com a sua saída, a direcção da guerra na região ficou sob comando de Solomone Machaque.

Posteriormente, o grupo recebeu um reforço da terceira companhia do primeiro batalhão, formado em Nachingwea. Este juntou-se ao pelotão de Solomone Machaque, tendo a partir daí iniciado acções de combate de vulto, libertando regiões, integrando a população nas zonas libertadas e incrementando a produção de bens alimentares.84

3.6. Samora Machel como Chefe do Departamento de Defesa da FRELIMO

Samora Machel já vinha demonstrando uma elevada capacidade de direcção, de liderança e de gestão tanto de efectivos militares como dos campos onde estes estavam fixados. Como chefe de treino, Samora encontrava-se numa situação privilegiada quanto ao conhecimento das reais capacidades do exército de libertação. Aliás, já nesta altura o seu carisma tinha começado a florir e a manifestar-se de forma inconfundível, revelando ainda um elevado grau de perícia em matéria de estratégia militar, assim como um profundo humanismo no trato com os combatentes. Estas qualidades tornavam-no um combatente capaz de conduzir o exército e liderar a luta no teatro de operações. Foi assim que, com a morte de Filipe Samuel Magaia, então chefe do Departamento de Defesa e Segurança (DSD), o Comité Central decidiu indigitá-lo Chefe do Departamento de Defesa (DD).

84 Para mais detalhes, vide Mudender et al, 2010.

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Até a sua morte em 1966, Filipe Samuel Magaia dirigia o DSD e, sob a sua orientação foram criadas as bases para o desencadeamento da insurreição geral armada. Na altura da morte de Magaia, a FRELIMO tencionava constituir o Comando Nacional ou Estado Maior das Forças de Libertação de Moçambique e, para o efeito, os seus membros deviam ter algum contacto com a realidade das frentes de combate. Esta medida fazia parte de uma decisão tomada pelo Comité Central, e preconizava a criação de um alto comando, operando a partir de um quartel-general. A responsabilidade pelos vários aspectos da actividade militar seria distribuída de uma forma racional.85

Como forma de operacionalizar esta ideia, Filipe Magaia encabeçou um grupo de quadros da FRELIMO que visitou a Província de Niassa. De regresso a Tanzania, Magaia foi atingido por uma bala, atirada por um dos membros do grupo. No entanto, não se soube ao certo qual tinha sido o móbil da acção contra Magaia, pois se considera que as investigações judiciais levadas a cabo pelas autoridades tanzanianas foram inconclusivas.

Guerrilheiros transportando Filipe Magaia, após ser atingido por uma bala. Fonte: Sopa, 2001.

85 Mondlane, 1995.

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Na sequência deste trágico acontecimento, a FRELIMO reuniu-se para encontrar alguém que tivesse a coragem e a intrepidez necessária para dar continuidade às acções combativas e manter o exército com o moral elevado.

Desse modo, uma das decisões tomadas foi a reestruturação do Departamento de Defesa e Segurança86, tendo sido criado o Departamento de Defesa, chefiado por Samora Moisés Machel e coadjuvado por Raul Casal Ribeiro, e o Departamento de Segurança, chefiado por Joaquim Alberto Chissano. Outras medidas tomadas no encontro foram a indicação de Marcelino dos Santos para Chefe do Departamento de Orientação Política; Joaquim Chissano, para Representante da FRELIMO na Tanzania; Armando Guebuza, para Chefe do Departamento de Educação; e Miguel Murrupa, para Chefe do Departamento das Relações Exteriores.87

O balanço efectuado em função das modificações da estrutura da Defesa foi bastante encorajador. Avanços notáveis estavam a ocorrer nas diferentes frentes de combate, particularmente em Niassa e Cabo Delgado, e esforços de infiltração estavam a decorrer em Tete. Como destacou Eduardo Mondlane, durante o ano de 1967, a área de combate alargou-se em todas as regiões:

- “Em Cabo Delgado, as nossas forças avançaram até ao rio Lúrio e cercaram Porto Amélia, a capital, ao mesmo tempo que consolidavam a sua posição no resto da província, que está agora quase totalmente nas nossas mãos. No Niassa, as nossas forças avançaram até à linha Marrupa-Maúa e estão se aproximando das zonas limítrofes com as províncias de Moçambique e Zambézia. Mais para sul ganharam o controlo da zona de Catur, entre as províncias da Zambézia e Tete,

86 Com esta remodelação, foi criado um Conselho Nacional de Comando, dirigido pelo Secretário do Departamento de Defesa (D.D), tendo como seu adjunto o Comissário Político do Exército, e composto por outros doze chefes responsáveis por diferentes sectores do exército. Assim, o exército foi estruturado nas seguintes secções: Operações; Recrutamento, Treino e Formação de Quadros; Logística (abastecimento); Reconhecimento; Transmissão e Comunicações; Informação e Publicações Militares; Administração; Finanças; Saúde; Comissariado Político; Pessoal e Segurança Militar. Vide Mondlane, 1995:122.87 Martins, 2001.

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enquanto, para ocidente, criaram as condições necessárias para recomeçar a luta em Tete e na Zambézia, regiões de grande importância pelos recursos agrícolas e minerais”.88

No que concerne a Tete, a 8 de Março de 1968, reiniciaram os combates nesta província. Na altura, Samora Machel dizia que o começo da luta em Tete constituía, verdadeiramente, um grande golpe contra o colonialismo português, porque esta libertava a população da Província, liquidava os planos coloniais de transformar Tete numa barreira física e humana capaz de impedir o progresso da luta e, ainda, dispersava as forças do inimigo. Com efeito, na altura estava em curso a construção da Barragem de Cahora Bassa, uma central hidroeléctrica para a instalação de linhas de transmissão à área industrial e mineira de Witwatersrand, na África do Sul.

De acordo com Sellström, Cahora Bassa representava muito mais do que uma central hidroeléctrica, pois viria a facilitar a exploração de depósitos ricos em minérios e também a irrigação de extensas áreas agrícolas, permitindo, eventualmente, a fixação de cerca de um milhão de cidadãos portugueses naquela área. Numa conferência de imprensa em Dar-Es-Salaam, a 25 de Março de 1968, o Presidente Eduardo Mondlane debruçou-se sobre a importância da reabertura da frente de Tete e de Cahora Bassa no contexto das lutas de libertação na região Austral de África, tendo salientado o seguinte:

- “A relevância desta frente da luta armada não se limita ao nosso país. É também importante no contexto mais geral do combate na África Austral. Basta recordar que Tete tem fronteiras comuns com o Zimbabwe, onde os nossos irmãos estão também, neste preciso momento, a lutar pela sua libertação contra o regime minoritário racista do qual Portugal é o principal aliado. A nossa luta em Tete é uma manifestação concreta da nossa solidariedade para com o

88 Mondlane, 1995: 124.

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povo do Zimbabwe e uma contribuição directa para a sua vitória. O mesmo se aplica à África do Sul, cujo interesse no projecto de Cahora Bassa é tão grande que já enviou tropas para defender o local da Barragem”.89

Estes avanços viriam a ser confrontados com a agudização das divergências entre os quadros do movimento, baseadas em princípios ideológicos e estratégico-militares. Estas rivalidades tiveram como consequência, entre outras, a ocorrência de mortes90 e deserções91, situação que abalou até certo ponto, a estrutura político-militar e administrativa da FRELIMO.

3.7. Samora Machel na Presidência da FRELIMO

Samora Machel ascendeu à presidência da FRELIMO em 1970 na sequência da morte de Eduardo Mondlane, ocorrida a 3 de Fevereiro de 1969. Este acontecimento ditou uma alteração significativa na estrutura de direcção do movimento. A conjuntura da altura contribuiu para a colocação em funcionamento de uma nova estrutura que não estava concebida nos estatutos da FRELIMO, que foi o triunvirato92, também designado “Colégio Presidencial”. Este órgão foi constituído por Uria Simango, vice-presidente da FRELIMO, Samora Machel, Chefe do Departamento de Defesa93 e Marcelino dos Santos, Chefe do Departamento Político.94

89 Sellström, 2008.90 Em Maio de 1968, foi atacado o escritório da FRELIMO em Dar-Es-Salaam, o qual resultou na morte de Mateus Sansão Muthemba. Em Dezembro do mesmo ano, Paulo Samuel Kankhomba foi barbaramente assassinado. 91 Entre as deserções, registaram-se as de Lázaro Nkavandame e Miguel Murrupa. 92 A decisão pelo triunvirato foi tomada a 11 de Abril de 1969, aquando da realização, em Nachingwea, da II Sessão do Comité Central da FRELIMO. Em princípio, o triunvirato funcionaria até à realização de um Congresso, onde seria eleito ou confirmado o Presidente da FRELIMO.93 Alberto Chipande, que ocupava o cargo de Chefe Nacional de Operações no Departamento de Defesa, passou a coordenar todas as actividades deste Departamento até à proclamação da independência, tendo passado depois a Ministro da Defesa Nacional.94 Na mesma sessão foram reduzidos os departamentos. As funções do Departamento Político, de Organização, de Administração assim como da Direcção dos Serviços de Saúde e da Secção de Produção, Cooperativas e Comércio, foram confiados ao Departamento de Defesa, sob a direcção do Comissário Político.

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No entanto, esta medida contrariava, de certo modo, os estatutos partidários, pois, em princípio, a substituição do Presidente deveria ocorrer de forma vertical, isto é, indicando-se o vice-Presidente. Todavia, para salvaguardar a Unidade no seio do movimento e permitir que este continuasse a lograr sucessos tanto a nível militar, como político e diplomático, o Colégio Presidencial apareceu aos olhos dos membros do Comité Central, como a resposta mais ajustada. No fundo, este órgão conhecia perfeitamente o carácter de Simango, contrário aos princípios que norteavam o sucesso da luta armada. Assim, a sucessão do Presidente ultrapassava a dimensão juridico-estatutária, tornando-se política, e, por conseguinte, adequada aos momentos da guerrilha.

A propósito desta decisão, o Presidente da Tanzania, Julius Nyerere mostrou-se relativamente céptico quanto à eficácia e ao poder mobilizador do mesmo perante os combatentes e os parceiros internacionais, porque conhecia profundamente os problemas de direcção na FRELIMO. No seu entender, este colégio dispersaria a concentração do poder de decisão e de comando, assim como de representação. Neste sentido, este tinha proposto a realização de um Congresso extraordinário ou a indicação de um Presidente, por consenso dos membros do Comité Central.95

Após a criação do Colégio Presidencial, Uria Simango, transvazando os princípios de resolução de conflitos no seio da FRELIMO, estes assentes no diálogo e transparência, publicou uma carta intitulada “A Triste Situação na FRELIMO”. Este documento fazia uma breve análise da situação crítica que se vivia na Frente desde os finais de 1967, tendo destacado a questão do Instituto Moçambicano, da frente de Cabo Delgado onde os Chairmen eram por uma solução secessionista, da morte de Silvério Nungu96, entre outros assuntos.

Um dos aspectos considerados mais graves no documento de Simango foi a acusação feita a alguns membros do Comité Central de tribalismo e de conspirarem para o seu assassinato.97 Tendo sido consideradas de gravíssimas estas acusações, que podiam perigar a unidade e 95 Salvador Zawangone, intervenção de 16 de Abril de 2010. Cidade da Matola.96 Principal acusado pela morte de Eduardo Mondlane.97 Ncomo, 2003.

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a sobrevivência do próprio movimento, Simango foi duramente repreendido e, posteriormente, expulso da FRELIMO. No mesmo encontro do Comité Central de Maio de 1970, em que se decidiu a expulsão deste, Samora Moisés Machel e Marcelino dos Santos foram eleitos Presidente e Vice-Presidente da FRELIMO, respectivamente. Esta mudança de direcção foi considerada pela FRELIMO como uma espécie de Revolução no seu seio, pois, contribuiu para dar um novo impulso aos esforços da Luta de Libertação Nacional. Um documento da época referia-se a esta questão, nos seguintes termos:

- “Assim se restabeleceu o equilíbrio e a confiança dentro da FRELIMO, a nossa Revolução, que estivera ameaçada pela presença de contra-revolucionários no seu seio, pode prosseguir e desenvolver-se, depois de se ter liberto deles. E de facto, a partir de então, a nossa luta de libertação tem conhecido sucessos que podemos qualificar de grandiosos, em todos os campos: no campo da luta armada, em que consolidamos as zonas libertadas reduzindo cada vez mais a presença portuguesa, e avançamos para novas zonas. No campo político, em que intensificamos a mobilização das populações e dos combatentes, elevando o seu nível de compreensão da luta em todos os aspectos. No campo da reconstrução nacional, em que desenvolvemos a um grau extremamente avançado os nossos programas de produção, educação, assistência médica, artesanato, etc. (…)”.98

Desde esta altura até à proclamação da Independência Nacional, Samora Machel seria o timoneiro da organização. Efectivamente, passou a coordenar todas as acções do movimento, desde as de carácter militar às político-diplomáticas. No âmbito militar, o seu carácter de estratega e comandante seria posto à prova com a Operação Nó Górdio, lançada em 1970, pela tropa colonial.

98 Mensagem do Presidente da FRELIMO ao Povo moçambicano, pelo Ano Novo de 1971. Colecção Textos e Documentos da FRELIMO, 2. Maputo, 1977.

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3.8. A Acção Estratégica de Samora Machel no Estrangulamento da Operação Nó Górdio

Até 1969, a Luta de Libertação Nacional tinha registado avanços significativos. Estes sucessos eram observados e encarados com preocupação pelo regime colonial, que ainda acreditava numa vitória militar sobre a FRELIMO. Como forma de contrariar o ímpeto militar da FRELIMO e controlar a mobilidade das populações, o regime colonial decidiu lançar a onerosa “Operação Nó Górdio” e incrementar a política dos “Aldeamentos” e da Acção Psicossocial.

Tais medidas estavam integradas nas estratégias da chamada guerra “contra-subversão”. Os aldeamentos tinham-se tornado numa prioridade estratégica desde 1968, com o objectivo de estreitar as relações, a malha de controlo das populações e intensificar os aparelhos de informação e repressão. Por seu turno, a acção psicossocial visava ganhar a população e conquistar a sua opinião, pois, controlar as “almas” era considerado mais essencial que a conquista do terreno. Obtida a vitória sobre as mentes, conseguir-se-ia desestabilizar os militantes e os guerrilheiros da FRELIMO, diminuindo a sua capacidade combativa.99 Efectivamente, numa guerra de guerrilha, a população é um factor fundamental, que pode contribuir para a determinação da vitória final. Estas iniciativas coloniais encontraram respostas não só contrárias, como surpreendentes para os seus mentores.

De facto, a FRELIMO conseguiu criar uma estabilidade militar e de sobrevivência nas zonas libertadas, permitindo a concentração de mais membros da população, e a continuidade do ciclo de produção agrícola. Esta acção militar concentrou-se, essencialmente, na província de Cabo Delgado. Nesta frente, a tropa colonial sofria uma acentuada pressão sobre os seus aquartelamentos. A FRELIMO pretendia alargar ainda mais a sua área de actuação, atravessar o rio Messalo e sitiar Porto Amélia, actual cidade de Pemba. A esta pressão se associava a intensificação da luta em Tete, para onde o exército colonial teve que alocar mais contingentes. O contínuo agravamento da situação militar e a impossibilidade de aumentar o esforço de 99 Cabaço, 2010.

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guerra, levaram o general português Kaúlza de Arriaga, a intensificar a formação de unidades de recrutamento local.

Em Abril de 1970, Samora Machel visitou a Província de Cabo Delgado para apresentar os planos de uma grande ofensiva a executar entre Junho e Julho. Durante o seu trabalho em Cabo Delgado, identificou algumas linhas mestras que deveriam nortear a actividade nesta frente de combate. Samora discriminou as tarefas específicas de cada segmento, referindo que se devia:

- “Alargar e reforçar as zonas de avanço a fim de atacar o inimigo em novas regiões, forçando-o a dispersar as suas forças, libertando ao mesmo tempo novas populações; continuar a aniquilar e a desalojar o inimigo daqueles postos que ainda subsistem como ilhotas isoladas no mar, nas nossas zonas libertadas, reduzindo ainda mais a sua capacidade operacional; consolidar (…) o trabalho de construção de uma sociedade nova que possa beneficiar as massas, o que significa a necessidade de uma orientação política cada vez mais clara e precisa e a elevação do nível organizacional no domínio da produção e comércio, educação e saúde, assim como na resolução dos problemas sociais”.100

A visita de Samora Machel teve como impacto imediato, o aumento da actividade militar da FRELIMO a um nível nunca antes visto. Consequentemente, Kaúlza de Arriaga decidiu lançar a Operação Nó Górdio, atribuindo a sua execução ao Comando Operacional das Forças de Intervenção (COFI), através do emprego conjunto de forças do Exército, Marinha e Força Aérea.101

O início da Operação Nó Górdio foi marcado para 1 de Julho de 1970, com a presença do general Kaúlza de Arriaga. Nela participaram mais de oito mil homens, que representavam cerca de 40 % dos efectivos das tropas de combate no território moçambicano, as quais totalizavam vinte e dois mil.102 100 A Voz da Revolução, nº 20. 1973.101 htt://www.guerracolonial.org.Acessado em 25/06/2011. 102 Esta concentração esgotou as reservas disponíveis, pois empenhou a totalidade das unidades de forças especiais (comandos, pára-quedistas e fuzileiros) e os grupos especiais (GE), recém-criados, mais a quase totalidade da artilharia de campanha, unidades de reconhecimento e de engenharia.

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O conceito da operação assentava num cerco e batida com grandes meios, prevendo o isolamento da área do Planalto de Mueda, onde se encontravam as grandes bases da FRELIMO103, através de um cerco ao longo dos itinerários Mueda – Sagal – Muidumbe – Nangololo – Miteda – Mueda, com a extensão de 140 km. Conseguido o isolamento da área, seguir-se-ia o assalto e destruição dos principais objectivos do núcleo central. As acções militares deveriam ser conjugadas com uma intensa campanha de acção psicológica, para provocar a rendição e a desmoralização do inimigo.

Para fazer frente a uma operação de grande envergadura como foi a Operação Nó Górdio, a FRELIMO decidiu abandonar as bases militares supra-citadas o que levou a tropa colonial a introduzir-se pela mata adentro, onde, a partir da estratégia de “efeito-surpresa”, seria violentamente atacada. Os guerrilheiros da FRELIMO foram fraccionados em pequenos grupos, de cerca de três elementos, e foi intensificada a actividade de sabotagem, como a colocação de minas nos principais itinerários, e a abertura de covas grandes, que depois eram cobertas com capim verde. Nestes buracos caíam os equipamentos militares motorizados e os bulldozers.104 Esta estratégia foi descrita por Barry Munslow, citado por Christie, nos seguintes termos:

- “Quando os ataques atingiam uma zona, as pessoas dispersavam-se em pequenos grupos, abandonando as casas que tinham sido construídas sob o escudo das árvores e fugiam para perto das bases dos guerrilheiros, onde podiam ser melhor defendidas. A FRELIMO então removia as pessoas da área afectada para outra. Um grupo de guerrilheiros bombardeava o inimigo da frente com morteiros, enquanto outro grupo passava para a retaguarda dos invasores para minar as estradas que tinham sido limpas pelos tractores de lagartas. Camponeses e milicianos trabalhavam em conjunto com as FPLM, cortando árvores e cavando valas para bloquear as estradas”.105

103 Entre elas, Ngungunyane, Moçambique e Nampula.104 Tembe & Saide, 2010.105 Christie, 1996.

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Esta resposta permitiu à FRELIMO infligir uma pesada derrota ao exército colonial. Aliás, como ressaltou um documento sobre a guerra colonial,106 a FRELIMO, apesar desta ofensiva, não foi impedida de actuar em qualquer dos teatros de operação, tendo intensificado as acções militares em algumas regiões. Esta situação mostra que o movimento manteve viva a sua pujança combativa, em todos sentidos.

Para a maior rapidez do contra-ataque, Samora equipou militarmente as milícias locais, os camponeses e mandou regressar todos os militares que estavam na Tanzania, em treinamento, reforçando os seus efectivos. O sucesso contra a ofensiva constituiu, per si, uma vitória anunciada da FRELIMO contra o exército colonial. Uma vez derrotados numa operação de grande dimensão como esta, os soldados portugueses perderam a moral combativa. Assim, iniciaram uma espécie de descida de um avião, confinando-se à guerra de palavras. A par destas, surgiam pequenas negociações locais que culminavam em acordos verbais de cessar-fogo.107

Samora Machel, Jorge Rebelo e Sebastião Mabote, em Cabo Delgado, 1971.

106 Cervelló. In: http://www.guerracolonial.org. Acessado em 25/06/2011.107 Christie, 1996.

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Este sucesso teve um impacto multiplicador nos esforços de libertação de Moçambique. Na região central do País, mesmo com a instalação de um sofisticado contingente militar na zona, com o objectivo de proteger a Barragem de Cahora Bassa, os guerrilheiros da FRELIMO conseguiram atravessar o rio Zambeze, dando início à luta armada nas províncias de Manica e Sofala, em 1972.

De acordo com Fernando Matavele108, citado por Muiuane, o então distrito de Manica e Sofala era um ponto estratégico da luta, pois nela se encontrava estabelecida uma comunidade significativa de colonos. Desta região projectava-se o alargamento da luta para a zona Sul de Moçambique. Na mesma altura, esforços estavam sendo envidados no sentido de reiniciar a luta no distrito da Zambézia. O avanço impetuoso das Forças de Libertação de Moçambique e a perda de iniciativa combativa do exército colonial, sobretudo após o desbaratamento da Operação Nó Górdio, conduziram à declaração pela FRELIMO, da “ofensiva generalizada em todas as Frentes”.109

Os sucessos observados em Moçambique e em outras colónias contra a tropa colonial precipitaram a ocorrência da Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974, em Portugal. A respeito desta revolução, Lincoln Secco referiu que os militares golpistas queriam apenas três coisas: pôr fim à ditadura, resgatar o prestígio das Forças Armadas e terminar a Guerra Colonial em África, que já estava virtualmente ganha pelos guerrilheiros nacionalistas110. O fim do regime salazarista acelerou as negociações conducentes ao Acordo de Lusaka e à independência total e completa de Moçambique do jugo colonial.

3.9. O Acordo de Lusaka

O golpe de Abril em Portugal conduziu a uma significativa alteração na estrutura política deste país. Porém, esta mudança não teve repercussões imediatas nas colónias. O móbil dos líderes militares golpistas era acabar com a guerra, contudo, António Spínola, que assumiu a presidência a seguir ao golpe, tinha outros planos. Em vez 108 Ex-comandante da FRELIMO em Manica e Sofala.109 FRELIMO, 1975:77.110 Secco, disponível em http://www.adusp.org.br. Acessado em 26/05/2010.

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de criar, imediatamente, mecanismos conducentes à autodeterminação destes territórios, propôs um cessar-fogo e um referendo para decidir sobre a independência.

Aquino de Bragança realça este aspecto ao afirmar que o plano de Spínola e dos seus generais previa um cessar-fogo imediato, sob o qual os movimentos nacionalistas deveriam depor as armas e passar a uma luta de ideias, como qualquer outro partido legalmente existente, no contexto prático de um portuguesismo multicontinental.111 Com base neste pressuposto, defendia que o futuro das “províncias ultramarinas” deveria ser decidido por todos aqueles que consideravam que estas terras lhes pertenciam. Como remata Bragança, este era, declaradamente, um apelo ao uso do referendo para decidir se Angola, Moçambique e Guiné-Bissau queriam fazer parte de uma Commonwealth de futuros “Brasis” africanos, uma federação luso-africana centrada em Lisboa.

A FRELIMO acompanhava o decurso dos acontecimentos em Portugal com um interesse redobrado. Parecia paradoxal o facto de os capitães militares “progressistas”, após tomarem o poder, terem-no entregue a uma “junta de generais reaccionários”, parafraseando Bragança.

António Spínola, por intermédio do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, iniciou conversações com a FRELIMO, em Dar-Es-Salaam. Num primeiro encontro, a proposta de cessar-fogo foi prontamente recusada pela contraparte moçambicana, defendendo-se que a paz era inseparável da independência nacional e que somente com a independência poder-se-ia pôr fim à guerra.112

No quadro destas conversações, Samora Machel colocou três condições para a paz: o reconhecimento da FRELIMO como legítimo representante do povo moçambicano, o reconhecimento do direito do povo moçambicano a uma independência completa e a transferência do poder para a FRELIMO. Apesar do fracasso destas negociações, chegou-se a um entendimento, segundo o qual, estas seriam retomadas, o que veio a ocorrer em Lusaka, capital da Zâmbia. 111 Bragança, 1986.112 Christie, 1996.

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O encontro de Lusaka, também conhecido por Lusaka I, teve lugar entre 4 e 6 de Junho de 1974. A comitiva moçambicana era composta por Samora Machel, Joaquim Chissano, Óscar Monteiro, Jacinto Veloso, Mariano Matsinha, Daniel Banze, Fernando Honwana, Isabel Martins, Sérgio Vieira e Alberto Chipande. Por sua vez, a delegação portuguesa, por Mário Soares, Otello Saraiva de Carvalho, Casanova Ferreira e Sá Machado.113

Na ocasião, Samora proferiu um discurso, tendo destacado o regozijo pela queda do fascismo em Portugal; a solidariedade com o povo português que sempre vivera oprimido e a definição dos princípios que se deveriam respeitar para pôr termo à guerra. Estes tinham como pressupostos o reconhecimento do direito à independência do povo moçambicano; a fixação da data para a proclamação da Independência Nacional; o estabelecimento dos mecanismos de transição conducentes à transferência para a FRELIMO dos poderes ainda detidos por Portugal; o estabelecimento dos mecanismos do cessar-fogo e da retirada das tropas portuguesas.114

Sérgio Vieira

Vieira115 referiu que Mário Soares trazia apenas um mandato para um cessar-fogo de jure ou de facto e nada mais; tendo reiterado que as prioridades definidas pelo Governo português estavam hierarquizadas da seguinte maneira: consolidar a democracia em Portugal; restaurar 113 Muiuane, 2006:184; Vieira, 2010:519.114 Vieira, 2010: 518.115 Idem.

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a economia portuguesa, e decidir, na sequência, o futuro das colónias, através de um referendo. Perante este posicionamento, Samora contrapôs, defendendo, mais uma vez, que a discussão do cessar-fogo não podia separar-se da resolução da causa que conduzira ao início da Luta Armada. Portanto, o cessar-fogo só podia resultar do entendimento sobre o fim do colonialismo e dos respectivos procedimentos para tal efeito.

O fracasso destas negociações “oficiais” desapontou tanto a FRELIMO como os militares portugueses. Associado ao desgaste devido à guerra, assistiu-se ao aumento das deserções nas hostes coloniais. A título de exemplo, em Cabo Delgado, o tenente-coronel António de Andrade Lopes, comandante do batalhão de caçadores de Mueda, enviou uma missiva intitulada “Quem assina?”, na qual solicitava um encontro com o comando da FRELIMO que operava em Cabo Delgado, para negociar um cessar-fogo local. Segundo Salvador M’tumuke:

- “Tendo sido recebida essa carta, foi em seguida remetida a Nachingwea, para o conhecimento de Samora Machel. De Nachingwea foi emitida uma resposta, enviada para o primeiro sector, em nome de Mateus Aníbal Malichocho. Este assinou a resposta, porém, não a enviou aos portugueses porque criar-se-ia um compromisso, que inviabilizaria o plano de assalto à base colonial Omar, na altura a ser preparado”.116

Face ao impasse negocial, era necessário realizar uma acção capaz de acelerar a marcha dos acontecimentos. Na sequência, planeou-se a concretização do assalto à base Omar, em Cabo Delgado. Samora Machel, pessoalmente, definiu a táctica da operação e recomendou que fosse gravada em som e imagem. Esta acção ocorreu a 31 de Julho, sob o comando de Salvador M’tumuke. Na manhã do dia seguinte, a guarnição colonial de Omar foi acordada com megafones, exigindo-se a sua rendição. Cento e cinquenta soldados foram feitos prisioneiros e três fugiram para Tanzania. O sucesso deste ataque pesou a favor da FRELIMO, na mesa de negociações.

116 Atanásio Salvador M’tumuke, entrevista de 22/05/2010. Cidade de Maputo.

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Para a FRELIMO, estava evidente que em Portugal havia mais de um centro de poder e que importava identificar quem, efectivamente, podia decidir sobre a questão da descolonização. Em função disso, Aquino de Bragança foi enviado a Lisboa, onde contactou Melo Antunes, que, juntamente com Almeida e Costa, seriam enviados a Dar-Es-Salaam, para negociar com os dirigentes da FRELIMO. No encontro, foi exibida a fita da gravação da rendição de Omar, o que deixou os mandatários de Portugal sem muita margem de argumentação no quadro das negociações. Em consequência, as partes concentraram-se na revisão de um memorando já elaborado pela FRELIMO e em questões como a designação de um alto-comissário ou de um presidente de uma junta governativa; a composição do Governo de transição; a criação de uma comissão militar; a questão das empresas; da nacionalidade e o destino dos moçambicanos que integravam as forças coloniais.117

Após esta reunião, houve uma outra, tendo como actores Melo Antunes, Victor Crespo, Almeida e Costa, Mário Soares, Almeida Santos e a direcção da FRELIMO, onde se abordou a proposta de texto para um acordo. No entanto, os portugueses solicitaram a separação do texto político do militar (cessar-fogo), que se referia ao julgamento dos criminosos de guerra e à troca de prisioneiros, pedindo que este último se mantivesse secreto. Igualmente, foi marcada a data para as negociações finais, entre os dias 5 e 7 de Setembro.118

A respeito do secretismo em que ainda permanece o acordo sobre o cessar-fogo, Mariano Matsinha, numa entrevista concedida a um periódico da praça, reconheceu que, apesar de este acordo continuar não divulgado, constituiu o “prato forte” das negociações. A sua não divulgação é fruto dos compromissos assumidos entre as duas delegações reunidas na State House. Conforme salientou:

- “Realmente, trata-se de um documento importante para se compreender o processo em si, dos Acordos de Lusaka, mas o importante naquela altura era o reconhecimento por parte de Portugal que nós tínhamos direito à independência.

117 Vieira, 2010.118 Vieira, 2010.

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Infelizmente, não participei na discussão do Acordo Militar, e nem sei quais são as cláusulas plasmadas, mas acredito que os portugueses tinham as suas razões em pedir para que não fosse publicado, face à situação em que se encontravam”.119

No dia 3 de Setembro, chegaram a Lusaka 22 representantes da FRELIMO, chefiados por Samora Moisés Machel.120 A delegação portuguesa desembarcou no dia 5, tendo sido encabeçada por Mário Soares.121 No dia 7 de Setembro, foi assinado o Acordo, que reconhecia o direito do Povo Moçambicano à independência e Portugal comprometia-se a transferir os poderes que detinha sobre Moçambique para a FRELIMO.122

Durante o Acordo de Lusaka, vendo-se Samora Machel, a proferir o seu discurso. Fonte: CDSM.

119 Jornal Zambeze. 09/02/2005. Maputo.120 A delegação incluía ainda Joaquim Chissano, Alberto Chipande, Mariano Matsinha, Jacinto Veloso, Óscar Monteiro, Armando Guebuza, Joaquim Carvalho, Sebastião Mabote, José Moiane, Joaquim Munhepe, Bonifácio Gruveta, Xavier Sulila, Mateus Malishosho, João Pelembe, Graça Simbine, Rui Baltasar e José Luís Cabaço.121 Integrava ainda, Almeida Santos, Melo Antunes, Almeida e Costa, Victor Crespo, Nuno Lousada, Casanova Ferreira, Paulo Castilho e Antero Sobral.122 Muiuane, 2006:184/5.

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O acordo preconizava que a independência completa de Moçambique seria solenemente proclamada a 25 de Junho de 1975; dia do aniversário da FRELIMO. Com vista a assegurar a transferência de poderes, foram criadas as seguintes estruturas governativas, que funcionaram durante o período de transição que iniciou com a assinatura do Acordo:

a) Um Alto-Comissário nomeado pelo Presidente da República Portuguesa;

b) Um Governo de Transição nomeado por acordo entre a Frente de Libertação de Moçambique e o Estado Português;123

c) Uma Comissão Militar Mista nomeada por acordo entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique.

O artigo 18 do Acordo era explícito quanto ao tipo de independência, e a liberdade de escolha do regime a ser implantado, assim como dos alinhamentos diplomáticos. Neste sentido, o Acordo destacou o seguinte:

-“O Estado Moçambicano independente exercerá integralmente a soberania plena e completa no plano interior e exterior, estabelecendo as instituições políticas e escolhendo livremente o regime político e social que considerar mais adequado aos interesses do povo”.

Os seus signatários foram Samora Moisés Machel, pela parte moçambicana, e da parte portuguesa, Ernesto Augusto Melo Antunes, Mário Soares, António de Almeida Santos, Victor Manuel Trigueiros Crespo, Antero Sobral, Nuno Alexandre Lousada, Vasco Fernando Leote de Almeida e Costa e Luís António de Moura Casanova Ferreira.124 123 O Governo de Transição seria constituído por um Primeiro-Ministro nomeado pela Frente de Libertação de Moçambique, a quem competeria coordenar a acção do Governo e representá-lo; Nove Ministros, repartidos pelas seguintes pastas: Administração Interna; Justiça; Coordenação Económica; Informação; Educação e Cultura; Comunicações e Transportes; Saúde e Assuntos Sociais; Trabalho; Obras Públicas e Habitação; Secretários e Subsecretários a criar e nomear sob proposta do Primeiro-Ministro, por deliberação do Governo de Transição, ratificada pelo Alto-Comissário.124 Acordo de Lusaka.

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No dia 8 de Setembro, em Lusaka, Samora Machel proferiu um discurso, onde referiu o seguinte:

- “Ao fim de 500 anos de opressão colonial, ao fim de 10 anos de luta armada dirigida pela FRELIMO, o Povo Moçambicano conseguiu impor os seus direitos. Assim, Portugal reconheceu o nosso direito à independência, reconheceu o princípio da transferência dos poderes à FRELIMO, representante do Povo Moçambicano, e, em consequência, connosco assinou o acordo que efectiva estes princípios.

Às zero horas do dia 8 de Setembro de 1974 – hora de Moçambique – termina com a vitória do povo a guerra criminosa desencadeada pelo deposto regime colonial-fascista português.

Esta é a vitória da coragem histórica do Povo Moçambicano, da sua determinação inabalável que resistiu e venceu os rigores da repressão colonial-fascista no duro combate clandestino, que superou as dificuldades da guerra. A guerra popular de libertação, que tornou operativa a nossa unidade, produziu profundas transformações na nossa pátria e conduziu-nos a edificar um Novo Moçambique”.125

A assinatura do Acordo de Lusaka catapultou os ânimos de todos os actores sociais, tanto dos nacionalistas, como dos fascistas. Os fascistas, que pretendiam que a dominação estrangeira fosse prolongada por tempo indeterminado, decidiram levar a cabo acções de desestabilização e sabotagem. Neste esforço desesperado, destruíam tudo quanto encontravam, formaram partidos políticos e assaltaram as instalações da Rádio Clube, actual Rádio Moçambique. Igualmente, atacaram a sede dos Correios, o aeroporto de Lourenço Marques, o jornal Notícias, a Refinaria da Matola e montaram barricadas em diversas vias da cidade da Beira.

125 Muiuane, 2006.

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Em face deste cenário, Samora Machel emitiu uma mensagem exortando os militares da FRELIMO e os soldados do regime colonial, a fazerem respeitar o acordo assinado em Lusaka. Na mesma mensagem, classificou o que estava a ocorrer em Lourenço Marques como obra de “bando de fací noras, composto por criminosos de guerra, agentes da PIDE-DGS, e conhecidos representantes das for ças exploradoras, que tentavam, desesperadamente, opor-se à vontade de paz do povo moçambicano e do povo português”. Samora Machel acrescentou, ainda, o seguinte:

- “O desafio desses elementos sem pátria e sem ideal é o de impe direm a independência de Moçambique. Para isso, procuram provocar um clima de con flito racial, de caos e anarquia, que sirva de pretexto para uma internacionalização da opres são contra o nosso povo. Neste quadro, recru taram forças mercenárias e buscaram o apoio de forças racistas e reaccionárias”.126

Samora Machel sublinhou que a FRELIMO não toleraria uma agressão imperialista e que proclamava solenemente, o cessar-fogo completo em todo o território moçambicano, entre as forças da FRELIMO e do Exército português. Como medidas visando pôr ordem no ambiente de agitação que se vivia, as forças militares portuguesas, em conjugação com as da FRELIMO, uniram-se, reprimindo qualquer tentativa de vandalismo. Efectivamente, com estas forças a trabalhar de forma coordenada, foi possível repor a ordem e a segurança públicas. No entanto, como rescaldo, inúmeras infra-estruturas foram danificadas. Foi neste quadro de destruição e vandalismo que a FRELIMO estabeleceu o Governo de Transição, que guiou os destinos do país até à proclamação da Independência Nacional, a 25 de Junho de 1975.

O Governo de Transição, empossado a 20 de Setembro de 1974, marcava assim, a fase derradeira da descolonização. Este era constituído por destacados membros da FRELIMO e representantes do Governo português.127 A cerimónia decorreu num dos salões da Ponta 126 Gil, In: http://www. macua.blogs.com - Acessado em 05/05/2011.127 Este Governo era chefiado por Alberto Joaquim Chissano, Primeiro-Ministro e pelo Contra-Almirante Victor Crespo. Do lado moçambicano, eram membros do Governo, Mário Fernandes da Graça Machungo, Ministro da Coordenação Económica; José Óscar Monteiro, Ministro da Informação;

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Vermelha, à qual assistiram o Vice-Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), delegações da Organização da Unidade Africana (OUA), Argélia, Camarões, Tanzania, Zâmbia, Somália, Guiné-Conacry e do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), além do Governo de Portugal.

Membros do Governo de Transição, destacando-se Joaquim Chissano, Armando Guebuza e Mariano Matsinha. Fonte: Muiuane, 2009.

No acto da tomada de posse, foi proferido um discurso que definiu as linhas mestras da governação que então iniciava. Após uma breve análise da situação que Moçambique herdava da dominação estrangeira, centrou-se na descrição das características do novo Governo, das suas tarefas fundamentais e dos mecanismos através dos quais iria prosseguir e alcançar os objectivos almejados. Neste sentido, uma das primeiras medidas seria a eliminação das reminiscências da dominação estrangeira, a popularização e democratização do poder político, a recuperação da economia, a promoção da actividade agrícola, a expansão dos sistemas de educação e saúde e a emancipação da mulher. Rui Baltasar dos Santos Alves, Ministro da Justiça; Gideon Ndobe, Ministro da Educação e Cultura; Mariano de Araújo Matsinha, Ministro do Trabalho; Armando Guebuza, Ministro da Administração Interna; Baptista Picolo, Ministro dos Transportes e Comunicações, Joaquim Paulino, Ministro da Saúde e Assuntos Sociais e Alcântara Santos, Ministro das Obras Públicas e Habitação. A comissão militar mista era constituída por Alberto Joaquim Chipande, Sebastião Marcos Mabote e Jacinto Veloso, pela parte moçambicana. João Pizarro Rangel de Lima, Mário Esteves Brinca e António José da Costa Pinto, como representantes de Portugal.

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4. Samora Machel na Preparação da Independência Nacional

4.1. Agradecimento aos Povos Tanzaniano e Zambiano

Após a assinatura dos Acordos de Lusaka e no âmbito da preparação da proclamação da Independência Nacional, Samora Machel iniciou, em Maio de 1975, uma viagem aos países da região, nomeadamente, Tanzania e Zâmbia. Esta digressão visava agradecer o apoio que estes países providenciaram à FRELIMO durante a Luta Armada de Libertação Nacional. Para além de consolidar esta amizade, almejava, igualmente, solicitar uma maior colaboração nos esforços com vista à construção da Nação moçambicana.

Samora Machel começou o seu périplo na Tanzania, principal baluarte da Luta de Libertação Nacional. Neste país, tinham sido estabelecidos os principais centros político-militares, incluindo a sede da FRELIMO. Dentre os locais visitados, destacam-se Kongwa, Kilimanjaro, Dar-Es-Salaam, State House Provincial, Tanga, Arusha, Dodoma, Iringa, Mbeya, Lingui, Songea, Rovuma e Cidade de Moshi. O primeiro local a ser escalado por Samora foi Kongwa, um dos campos de preparação militar da FRELIMO.

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100

Samora no campo militar de Kongwa, Tanzania. Fonte: Sopa, 2001.

Durante esta digressão, Samora Machel proferiu diversos discursos, onde, para além do agradecimento por todo o apoio prestado à causa nacional, se referia, igualmente, aos objectivos da luta travada pelo povo moçambicano contra o regime colonial. Com efeito, Machel afirmava que a luta não tinha servido somente para a autodeterminação, mas, inclusivamente, para a recuperação da dignidade dos moçambicanos, que tinha sido amordaçada pelo regime colonial. Samora Machel assim se pronunciou:

- “A nossa luta não foi só para libertar Moçambique do colonialismo português, mas, e, principalmente, para reconquistar a nossa dignidade e personalidade africanas”.128

128 Extracto do discurso de Samora Machel no estádio de FABA, província de Iringa. In: Jornal Notícias. 06/05/1975.

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A viagem de Samora à Tanzania terminou no dia 10 de Março de 1975. Um dos resultados imediatos da tournée foi a recepção de donativos do povo tanzaniano, destinados ao Fundo de Reconstrução Nacional. De igual modo, a amizade e a unidade entre os dois povos viram-se mais consolidadas, selando-se o compromisso mútuo de contribuir para a libertação total e pela paz dos países da África, em geral, e da região, em particular. Com efeito, num dos seus discursos, Samora Machel salientou o seguinte:

- “A nossa amizade foi criada na luta, fundida em aço pelo sangue e, por isso, é indestrutível! A luta continua! Obrigado Povo Tanzaniano! Obrigado CCM! Juntos estamos! Assante Sana Ndungu!”129

Samora Machel, ao lado de Rachid Kawawa, vendo-se ainda Manuel dos Santos, na sua Tanzania, despedindo-se para

Moçambique, em 1975.

129 Pachinuapa, 2005:16.

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Finda a viagem à Tanzania, Samora Machel seguiu para a República da Zâmbia. A visita a este país justificava-se pelos mesmos objectivos que a anterior, isto é, agradecer o apoio dado durante a Luta de Libertação e consolidar os laços de amizade, com vista à promoção do desenvolvimento e da paz na região. Samora Machel escalou locais como a província Oriental, Mutuara e cidade de Lusaka.

Samora Machel, Keneth Kaunda, Julius Nyerere e Marcelino dos Santos, na primeira fila, da direita para esquerda. Fonte: CDSM.

De facto, à semelhança da Tanzania, a Zâmbia contribuiu na luta nacionalista em Moçambique, através da instalação de uma representação permanente da FRELIMO, em 1964, que, entre outros aspectos, se destacou na recepção e no encaminhamento de jovens nacionalistas moçambicanos que seguiam para a Tanzania. Pode-se referir que este país funcionou como um ponto de trânsito privilegiado, pois, sua colaboração foi crucial para a relançamento da ofensiva militar na província de Tete.

Durante a visita, Samora Machel foi agraciado com uma distinção, em reconhecimento às suas qualidades de excelente combatente e exímio estratega militar, assim como militante internacionalista. Portanto, a

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15 de Maio, foi condecorado com a Ordem Grande Companheiro da Liberdade, na altura, a mais alta distinção zambiana.130

Samora Machel ostentando a Ordem Grande Companheiro da Liberdade. Fonte: Sopa, 2001

Após quatro dias de visita à Zâmbia, Samora Machel retornou a Dar-Es-Salaam. Desta cidade, foi a Zanzibar, onde percorreu vários locais, durante três dias. Neste périplo, a mensagem de Samora concentrou-se, particularmente, na reafirmação da necessidade de se garantir a unidade do continente africano, com vista a fazer face aos desafios enfrentados por este continente, com destaque para as independências na região e a promoção do desenvolvimento. Esta mensagem estava 130 Jornal Notícias de 17 de Maio de 1975.

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enquadrada nos esforços visando a conjugação de sinergias com o objectivo de libertar a Rodésia do Sul (actual Zimbabwe), o Sudoeste Africano (actual Namíbia) e o povo sul-africano do regime do apartheid. Samora Machel destacou, igualmente, a Unidade dentro dos respectivos países, considerada como sendo um pressuposto primordial para o combate à pobreza e ao sub-desenvolvimento. Numa das suas intervenções, expressou-se nos seguintes termos:

- “Unidade no nosso continente, unidade nacional, pobreza não é eterna, combate cerrado contra os males que grassam a sociedade, libertação do sul do continente, eliminação do tribalismo, racismo, regionalismo e definição clara do inimigo do povo”.131

Raimundo Pachinuapa

4.2. Decurso da Marcha Triunfal do Rovuma ao Maputo

Terminada a viagem à Tanzania e à Zâmbia, Samora Machel iniciou um périplo pelo território nacional, que teve a designação de Marcha Triunfal do Rovuma ao Maputo. Esta marcha tinha como propósito familiarizar-se de forma extensiva e profunda com os problemas que preocupavam o povo moçambicano, bem como divulgar as perspectivas de desenvolvimento do país, à luz dos princípios

131 Pachinuapa, 2005:18.

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preconizados pela FRELIMO. Serviu, igualmente, para partilhar com as comunidades o “sabor da vitória” contra o regime colonial e o processo de transferência do poder para os moçambicanos.

Samora Machel escalou, em primeiro lugar, o distrito de Mueda, na província de Cabo Delgado. Nesta parcela do país, foi recebido pelo Vice-Presidente da FRELIMO, Marcelino dos Santos, membros do Governo de Transição, o Alto-Comissário Vítor Crespo, o governador da província de Cabo Delgado, assim como pela população da região.A escolha de Mueda prendeu-se com a sua relevância no quadro do nacionalismo moçambicano. De facto, o massacre perpetrado pelo regime colonial em Mueda, marcou o clímax da consciência nacionalista e uma viragem memorável no quadro da luta pela independência nacional.132 A viagem de Samora Machel por Cabo Delgado incluiu a visita à Base Central, e aos distritos de Muidumbe, Montepuez, Ibo e à cidade de Pemba. Estes locais, de forma directa ou indirecta, estiveram relacionados com a Luta Armada. Para o caso do Ibo, a PIDE-DGS utilizou-o como presídio de muitos nacionalistas, particularmente, o Forte São João Baptista, onde os torturava de forma selvática.

Samora Machel proferiu a sua primeira mensagem dirigida ao povo moçambicano, em Mueda. Nesse discurso, Samora referiu-se a aspectos relacionados com o fim da guerra, a vitória da FRELIMO e o inimigo do povo. No mesmo, enfatizou que tinha terminado a opressão e exploração coloniais, dando lugar à emergência da liberdade de expressão, como resultado do desmantelamento do sistema colonial. Importa frisar que o fim da guerra colonial foi saudado pelo povo português, que também sofria os efeitos negativos da política colonial. Samora Machel reconheceu esta realidade, nos seguintes termos:

- “Viva o Povo de Moçambique! Parece que têm medo, mas já não há administradores aqui, não é verdade? Ontem eram bombas inimigas que gritavam, hoje é a nossa vitória. A nossa luta foi sempre justa, é por isso que ela triunfou. A opressão

132 Tiane & António, 2010.

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não era somente para o Povo moçambicano, mas também para o Povo português; é por isso que o triunfo da luta do Povo moçambicano é também uma vitória, é também o triunfo do Povo português. A luta do Povo moçambicano era para a sua personalidade, era para o seu respeito, para a sua dignidade, assim como para o Povo português – o fim da guerra, o fim da opressão em Moçambique que bloqueou também Portugal.

Portugal hoje tem uma face nova, o que é bem representado no mundo inteiro. Por isso, a nossa luta nunca foi dirigida contra o Povo português. O Povo português foi sempre um aliado natural do Povo moçambicano. Teremos ocasião de conversar. O Camarada Primeiro-Ministro dirigiu palavras calorosas a todos os nossos amigos que aqui vieram da Zâmbia, Tanzânia, jornalistas que vieram de diversos países socialistas, incluindo jornalistas de Portugal. Por isso, saudamos o Povo moçambicano, saudamos o Povo português. Saudamos particularmente a resistência oferecida pelo povo de Cabo Delgado. A luta continua! Independência ou morte! Venceremos! Obrigado”.133

Samora Machel, em Mueda, durante a Marcha Triunfal. Fonte: Sopa, 2001.

133 Jornal Notícias. 25 de Maio de 1975.

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Como corolário das disposições apresentadas por Samora Machel, a população das zonas visitadas, endereçou saudações a esta vitória e lançou sugestões ao Presidente sobre a maneira como devia ser governado o país independente e lidar com os inimigos da liberdade.134 A questão da Unidade Nacional foi evocada com alguma insistência por Samora Machel.

Terminada a estadia em Cabo Delgado, Samora seguiu para Niassa. Nesta província, visitou Lichinga, Marrupa, Mataca, Metangula, Amaramba, Cuamba, entre outras regiões. Samora Machel exaltou o papel que a população de Niassa desempenhara durante a Luta Armada, e a necessidade do seu engajamento na Unidade Nacional e na promoção do desenvolvimento. Em Marrupa, Samora participou no I Seminário da Agricultura que visava estudar as novas formas de produção no país.135

Samora prosseguiu com a sua viagem em território nacional, tendo escalado Nampula no dia 2 de Junho, onde foi recebido calorosamente pela população local, pelos membros do Governo e pelos representantes do PAIGC. Samora visitou a cidade de Nampula, os distritos de Angoche e Ilha de Moçambique, e as localidades de Lumbo e Tocoloé. Nesta última localidade encontravam-se instaladas a Artilharia e a base da Força Aérea Portuguesa. Esta foi responsável pelo lançamento de bombas Napalm, cujas consequências foram desastrosas para a população e as forças de libertação nacional.

Continuando com o seu périplo, Samora Machel escalou a província da Zambézia. Em Quelimane, foi recebido entusiasticamente por milhares de pessoas. Nesta província, passou por Milange, destacando-se a visita à base provincial de Mongoé e ao distrito de Morrumbala. Samora Machel seguiu depois para Tete, escalando Cahora Bassa, em Songo, Wyriamu, Moatize e Mangu.

Dos locais visitados, Songo e Wyriamu merecem destaque. Em relação ao primeiro, sublinha-se a Barragem de Cahora Bassa que foi usada para impedir o avanço dos guerrilheiros para o Centro e Sul do país 134 Pachinuapa, 2005:22135 A realização deste seminário em Marrupa deveu-se ao facto de a tropa colonial ter feito incursões apartir dali para ir destruir a produção nas machambas e atacar a população. Entretanto, havia necessidade de destruir a imagem que se tinha de Marrupa no tempo colonial, de terra de criminosos para centro de estudo para o engrandecimento do país.

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e internacionalizar a guerra, através do envolvimento de contingentes dos regimes de Ian Smith e do apartheid. No que se refere a Wyriamu, foi neste local, onde a tropa colonial cometeu um dos mais bárbaros massacres, no qual pereceram cerca de quatrocentos moçambicanos, em 1972.

No dia 11 de Junho, data que coincidiu com o atear da Chama da Unidade136, em Nangade, província de Cabo Delgado, Samora Machel iniciou a sua viagem pela província de Manica, tendo passado, entre outros lugares, por Chimoio e Catandica. Seguindo para Sofala, escalou Sena, Dondo e a cidade da Beira. Nesta cidade, Samora Machel afirmou que ela tinha sido um dos bastiões do colonialismo português e satélite do apartheid da Rodésia e África do Sul, implantado pela política colonialista.137 No entanto, exortou as populações para se envolverem massivamente na reconstrução do país, eliminando os resquícios do poder colonial.

Samora Machel na Beira. Fonte: Sopa, 2001.136 A Chama da Unidade foi acesa em Nangade, província de Cabo Delgado, e percorreu todas as províncias do país (cerca de 4 387 km), de mão em mão, até chegar à cidade de Maputo. Foi acesa pelo Tenente General na Reserva, Raimundo Pachinuapa e a principal mensagem transmitida era de que a chama devia iluminar todo o país, tendo em conta a Unidade Nacional propalada pelo presidente Samora Machel. Escolheu-se Nangade pelo facto de ser um local histórico pois, “constituía um dos pontos de entrada dos combatentes para o interior de Moçambique e de sua saída para Tanzânia” e também porque a base Beira estava instalada neste distrito. A chama chegou à cidade de Maputo no dia 26 de Junho de 1975. Dava, et al, 2010. 137 Jornal Noticias de 14 de Junho de 1975.

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Prosseguindo com a sua tournée pelo país, Samora Machel chegou à província de Inhambane, na tarde do dia 15 de Junho, acto marcado pela realização de um grande evento cultural. Samora foi recebido com uma mensagem que falava do significado da expressão “Terra de Boa Gente”, associada à passagem de Vasco da Gama, na sua viagem à Índia, em Janeiro de 1498. A população de Inhambane, demonstrando o seu cometimento com a causa nacional, endereçou a seguinte mensagem:

- “Passaram a vida a chamar-nos ‘Terra da Boa Gente’ para enganar-nos e melhor explorar-nos. Mas com os nossos irmãos de Moçambique inteiro, lutámos até vencer para encontrarmos a nossa unidade. Agora estamos fortes e não deixaremos mais que nos dividam e roubem as nossas riquezas. É por isso que cantamos: Bem-vindo Samora, Presidente do Povo”!138

No dia 21 de Junho, Samora chegou à província de Gaza, onde foi efusivamente saudado. Nesta província, afirmou que a “FRELIMO significa clareza ideológica, clareza política, clareza na definição dos seus objectivos. É o povo que sabe o que quer e como quer”

139. Samora salientou a necessidade de se reconstruir o país, com a unidade de todos os moçambicanos. A sua estadia em Gaza coincidiu com a passagem da Chama da Unidade e foi marcada também pelo reencontro com a sua família, volvidos dez anos de separação.

138 Jornal Noticias de 19 de Junho de 1975139 Pachinuapa, 2005:50

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Samora Machel ao ser recebido pelo seu pai aquando da Marcha Triunfal. Fonte: CDSM.

Finalmente, Samora Machel chegou à cidade de Lourenço Marques, às 14 horas e 30 minutos do dia 23 de Junho, pondo fim à Marcha Triunfal do Rovuma ao Maputo. No Aeroporto de Mavalane, foi recebido em apoteose pela população que, em uníssono, dizia “Samora chegou! Samora Chegou!”. Esta ovação era acompanhada pelo entoar de canções revolucionárias:

“Tchengera, kapriconi ku Moçambique, lero. Tchengera, tiri, hokonguera, kumenha inkondo.

Tchengera, ku Cabo (Delgado), ku lero, kuli ana á Samora, tchengera”.

Tradução livre

“Atenção, hoje - agora, inimigos de Moçambique, Atenção, com Samora estamos preparados para a luta, para a

guerra, em Cabo Delgado, Niassa”.

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Momento da chegada de Samora Machel ao Aeroporto de Lourenço Marques.

A marcha triunfal simbolizou a vitória de Moçambique contra o regime colonial português. De facto, enquanto decorria, o processo de transferência de poderes do governo português aos moçambicanos estava a acontecer. Do mesmo modo, ela serviu para estabelecer um primeiro contacto efectivo com as massas populares, sobretudo aquelas que não estiveram directamente envolvidas na luta de libertação, de modo a cimentar a Unidade Nacional, como um alicerce para a promoção do desenvolvimento socioeconómico do país. Porque esta fase era caracterizada por sabotagens de vária ordem, a FRELIMO considerou a segurança um aspecto, igualmente, importante para a prossecução do desenvolvimento. Foi neste contexto que Samora lançou as seguintes palavras de ordem: Unidade, Trabalho e Vigilância.

Para a população, constituiu uma oportunidade soberana para interagir com os seus líderes, e selar o seu compromisso com a causa nacional. De acordo com alguns informantes, este foi, realmente um momento de festa, de euforia e de celebração da vitória. O entusiasmo da população iria prolongar-se até depois da proclamação da Independência Nacional, confiante num Moçambique próspero e de igualdade social. Abílio Salomão destacou o seguinte:

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- “Quando o presidente Samora atravessou o rio Rovuma foi recebido pela população. Era momento de festa. Não havia nada que ele dissesse que não fosse bem aceite pelo povo. Todos nos sentíamos moçambicanos”.140

4.3. A Reunião de Tofo e a Primeira Constituição da República Popular de Moçambique

No quadro dos preparativos para a proclamação da Independência Nacional e formação do Governo da República Popular de Moçambique, foi realizada, entre os dias 19 e 21 de Junho de 1975, a V Reunião dos Comités Central e Executivo da FRELIMO, na Praia do Tofo, Província de Inhambane. A escolha de Tofo foi uma decisão estratégica, pois, teve em linha de conta três factores, nomeadamente, a relativa proximidade de Maputo, a segurança dos dirigentes e as facilidades logísticas.141

Vista frontal e lateral do edifício onde se realizou a reunião de Tofo. Fotos de 2011. Fonte: ARPAC.

140 Entrevista com Abílio Salomão, cidade de Inhambane, 24.05.2011141 Raimundo Pachinuapa, entrevista de 19/09/2011, Cidade de Maputo; Abílio Salomão, entrevista de 24 de Maio de 2011, Cidade de Inhambane.

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O encontro142, dirigido por Samora, centrou-se na análise dos preparativos para a proclamação da Independência, com enfoque para a aprovação da primeira Constituição da Republica Popular de Moçambique, da Lei da Nacionalidade e confirmação de Samora Machel como futuro presidente do país.143

Reunião de Tofo. Fonte: CDSM.

No discurso de abertura, Samora Machel definiu o perfil de um dirigente, cujas qualidades deviam acrescentar valor aos processos de governação. Segundo Samora o dirigente devia ser exemplar, tomar a dianteira para dirigir e garantir o bem-estar e a segurança do povo. Devia, igualmente, trabalhar e sacrificar-se pelo povo, de modo a resolver os problemas do país e responder às expectativas dos moçambicanos, sendo responsável e capaz de reflectir as aspirações populares, tendo salientado o seguinte:

142 Participaram na reunião cerca de trinta personalidades, dentre elas, Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano, Fernando Ganhão, Graça Simbine, Deolinda Guezimane, José Luís Cabaço, João Facitela Pelembe, Sebastião Marcos Mabote, Alberto Chipande, Armando Panguene, Jorge Rebelo, Armando Guebuza, Mariano Matsinha, Jonas Geraldo Namachulua, Manuel dos Santos, Vitorino Olímpio Vaz, Marina Pachinuapa e Raimundo Domingos Pachinuapa.143 Revista Tempo Especial,1975:46.

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- “Os membros do Comité Central, os membros do Comité Executivo e os membros do Governo, devem formar a força de vanguarda. Não queremos que os membros do Comité Central, os membros do Comité Executivo e os membros do Governo se transformem em carroças. Queremos que sejam a força de vanguarda consciente, a força de vanguarda organizada, a força de vanguarda que assume a linha de organização, assume a grandeza de Moçambique, assume a complexidade dos problemas que existem, e estejam sempre prontos para a solução desses problemas e, sobretudo, que sejam eles a vanguarda quando se trata de sacrifícios e os últimos em benefícios. Queremos que o povo veja nos membros do Governo de Moçambique o seu próprio Governo (…)”.144

A Constituição aprovada nesta reunião, foi o resultado, por um lado, dos ensinamentos adquiridos durante o processo da Luta de Libertação Nacional e, por outro, dos pressupostos ideológicos baseados na interpretação da doutrina marxista-leninista. Como reconheceu Sérgio Vieira, os modelos para a construção da nação moçambicana tinham como base as experiências das zonas libertadas; o exemplo da construção da Tanzania e dos países socialistas, e a rejeição da restauração do feudalismo e das nobrezas e aristocracias.145

Esta Constituição tinha como objectivo fundamental a “eliminação das estruturas de opressão e exploração coloniais (...) e a luta contínua contra o colonialismo e o imperialismo”. Preconizava ainda, no seu artigo segundo, a instauração de um Estado de democracia popular em que todas as camadas patrióticas se engajassem na construção de uma nova sociedade, livre da exploração do Homem pelo Homem. Assim, o poder pertenceria aos operários e camponeses unidos e dirigidos pela FRELIMO, e exercido pelos órgãos de poder popular, assente num regime político socialista numa economia marcada pela intervenção do Estado.146 144 Pachinuapa, 2005:49145 Vieira, 2010: 674.146 Constituição da República Popular de Moçambique, Maputo: 1975.

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Certos aspectos merecem destaque especial nesta constituição, dentre eles, a questão da separação dos poderes (legislativo, judicial e executivo), a possibilidade de perda de nacionalidade pela mulher no caso de contrair matrimónio com um estrangeiro, e as áreas de desenvolvimento prioritárias. Sobre o primeiro, Vieira sublinhou que na Constituição não se introduziu a separação de poderes, modelo inspirado na Revolução Francesa e nos fundadores dos Estados Unidos da América, pelas seguintes razões:

- “A separação de poderes não se radicava em qualquer experiência vivida e apreendida em Moçambique, mas sim dum modelo que aparecia intelectualmente, pela via das leituras; o país já vivia as experiências alternativas das zonas libertadas e dos grupos dinamizadores; na sociedade tradicional e na experiência das zonas libertadas, havia o princípio, e sobretudo a prática da não existência de poderes separados (...)”.147

No que respeita às áreas prioritárias, a Constituição atribuía primazia à agricultura tomada como a base através da qual se lançariam outras iniciativas de desenvolvimento, tendo como factor catalisador, a indústria, visando, principalmente, a liquidação do subdesenvolvimento e a criação das condições para a elevação do nível de vida do povo moçambicano.148 No aspecto social, a saúde e a educação eram considerados os pilares para a humanização da sociedade.

De acordo com a primeira Constituição, o Presidente da República tinha a competência de nomear os membros do Conselho de Ministros. Este Conselho foi constituído por quinze ministérios149, procurando reflectir as áreas prioritárias definidas pela Constituição.147 Vieira, 2010:676/7.148 Constituição da República Popular de Moçambique, artigo 6.149 Ministério de Estado na Presidência, Ministério da Defesa Nacional, Ministério do Interior, Ministério do Desenvolvimento e Planificação Económica, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Ministério da Justiça, Ministério da Informação, Ministério da Educação e Cultura, Ministério da Indústria e Comércio, Ministério da Agricultura, Ministério das Finanças, Ministério do Trabalho, Ministério dos Transportes e Comunicações, Ministério da Saúde e Ministério das Obras Públicas e Habitação.

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4.4. A Proclamação da Independência Nacional

As cerimónias centrais da proclamação da Independência Nacional decorreram no Estádio da Machava, no dia 25 de Junho de 1975. Presente às cerimónias, Samora Machel era acompanhado por Marcelino dos Santos, membros dos Comités Central e Executivo da FRELIMO e representantes das delegações estrangeiras.150 O evento contou com uma enorme moldura humana, que encheu o Estádio, para testemunhar as celebrações.

As ruas de Lourenço Marques encontravam-se engalanadas com cores e bandeiras da FRELIMO, e apresentavam dísticos com dizeres, tais como:

- “Saudamos os Povos, os Partidos e os Líderes da Tanzânia e Zâmbia, Nossas Bases de Apoio”.

- “Solidariedade com a luta dos povos da África do Sul, Zimbabwe e Namíbia”.

- “Bem-vindos à República Popular de Moçambique”.

- “A FRELIMO é o Guia do Povo”.151

No Estádio da Machava, assistiu-se ao arriar da bandeira portuguesa, executada por três elementos das Forças Armadas Portuguesas (um cabo da Marinha de Guerra, um cabo da Força Aérea e um militar do Exército). Depois, seguiu-se o içar da bandeira nacional152, por 150 Dentre as delegações estrangeiras presentes, destacam-se a da Zâmbia, Tanzânia, Angola, Namíbia, Marrocos, Itália, Jugoslávia, Libéria, Camboja, Sudão, Somália, a de Portugal, Finlândia, Noruega, União Indiana, Burundi, Roménia, Reino Unido, Líbia, República Democrática da Correia do Norte, Guiné-Equatorial, Hungria, Jamaica, Tunísia, Egipto, Trindade e Tobago, Lesoto, Swazilândia, Camarões, União Soviética, República Popular da China, etc. Dos movimentos de libertação e outras organizações progressistas estiveram presentes o Movimento de Libertação da Palestina, o ANC do Zimbabwe, o ANC sul-africano, o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, o Comité de Apoio à Descolonização de África. (Muiuane, 2006:449)151 Muiuane, 2006:453152 A bandeira nacional era composta por três faixas horizontais, apresentando cinco cores: verde (que representa a riqueza do solo), preto (que representa o continente africano), amarelo-dourado (que representa a riqueza do sub-solo), de cima para baixo e separadas por faixas de cor branca (que representa a paz), e a cor vermelha (que representa a resistência ao colonialismo). No cimo do canto esquerdo da

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Alberto Chipande. Este foi um dos momentos mais emocionantes da cerimónia, comemorado, através de aplausos, choros e gritos que expressavam alegria. No acto, foram disparados trinta e um tiros de canhão, como se refere no trecho abaixo:

- “A bandeira nacional foi erguida perante aplausos delirantes, choro dos velhos e ao som de trinta e um tiros de canhão, pelas mãos de um antigo combatente e sobrevivente do massacre de Mueda, Alberto Chipande.153

Içar da Bandeira Nacional.

bandeira há um símbolo emblemático da nação, representado por uma roda dentada (que representa a indústria), tendo no seu interior uma enxada (que representa a agricultura) e uma arma (que representa o combate e a defesa), cruzadas sobre um livro (que representa a educação), figurando ao alto uma estrela vermelha (que representa a solidariedade entre os povos). 153 Revista Tempo Especial, 1975.

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Com a bandeira nacional já hasteada, Samora Machel, em nome do povo moçambicano, proclamou solenemente a Independência Total e Completa de Moçambique, às zero horas do dia 25 de Junho de 1975. Desde este momento, Moçambique passou a ser um Estado soberano, independente e democrático. Na sua alocução, Samora referiu-se ao legado da dominação colonial, às razões que levaram ao desencadeamento da insurreição geral armada e ao processo de independência que ora iniciava.

A libertação não devia significar, somente, o fim da presença colonial, mas também o enaltecimento dos valores nobres do povo moçambicano, como a sua cultura e a sua identidade. Este acto constituía, sobretudo, um compromisso de todos os moçambicanos, nos esforços da reconstrução do país, com vista à elevação do desempenho económico e consequente melhoria do nível de vida, assim como uma maior participação dos cidadãos nos órgãos de decisão. A seguir, um extracto do discurso da proclamação da Independência:

- “Moçambicanas, moçambicanos;Operários, camponeses, combatentes;Povo Moçambicano:

Em vosso nome, às zero horas de hoje, 25 de Junho de 1975, o Comité Central da FRELIMO proclama solenemente a independência total e completa de Moçambique e a sua constituição em República Popular de Moçambique.

A República que nasce é a concretização das aspirações de todos os moçambicanos, é a extensão a todo o país da liberdade já conquistada durante a luta armada de libertação em algumas partes do nosso país, é o produto do sacrifício dos combatentes nacionalistas de todo o Povo Moçambicano, é a concretização da nossa vitória.

A nossa República Popular nasce do sangue do Povo. A sua consolidação e desenvolvimento é uma dívida de honra para cada moçambicano patriota e revolucionário”.154

154 Pachinuapa, 2005:28.

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Momento em que Samora Machel lia a mensagem da proclamação da Independência.

Saliente-se que, nem todos os moçambicanos puderam acompanhar a proclamação da Independência Nacional in loco, no Estádio da Machava. No entanto, mais de nove milhões de moçambicanos viveram este momento, passo a passo, através das rádios nas suas casas, nas ruas ou nos lugares de concentração previamente determinados, pois, a mensagem de Samora Machel foi difundida em todo o país. A alegria dos moçambicanos era indescritível. Entre palmas, gritos, abraços e lágrimas estes comemoraram a sua independência.

4.5. Investidura de Samora Machel

Proclamada a Independência Nacional, Samora Machel foi investido no cargo de Presidente da República Popular de Moçambique, às nove horas do dia 25 de Junho. A cerimónia teve lugar na Praça da Independência, no actual edifício do Conselho Municipal de Maputo, onde estiveram presentes centenas de pessoas. Marcelino dos Santos leu a declaração de investidura, em nome do Comité Central, dos militantes da FRELIMO, dos operários e camponeses e do povo moçambicano.

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Nessa declaração, sublinhava-se que Samora Machel tinha sido escolhido para Presidente porque possuía capacidades de concepção, de direcção e de identificação com o povo, que o colocavam numa posição privilegiada, fazendo dele um líder nato. A estas virtudes, acrescentava-se ao seu perfil, a sua militância forjada e temperada no duro processo da guerra popular de libertação e formado no combate político e armado, bem como na luta de classes”.155 A seguir à declaração, Samora Machel leu e assinou o Juramento de Investidura:

- “Eu, Samora Machel,Juro pela minha honra de militante da FRELIMO, dedicar todas as minhas energias à defesa, promoção, consolidação das conquistas da revolução, ao bem-estar do Povo moçambicano, fazer respeitar a Constituição, fazer justiça aos cidadãos”.156

Samora Machel assinando o Juramento de Investidura, ladeado por Marcelino dos Santos e Joaquim Chissano.

Lido o juramento, Samora Machel saudou o povo moçambicano com palavras de ordem e felicitações revolucionárias, tendo feito de seguida o seu primeiro discurso de Estado. Na sua mensagem à Nação, Samora falou sobre a importância da independência recém-proclamada, da memória dos que tombaram pela independência 155 Revista Tempo Especial, 1975:14156 Pachinuapa, 2005:59

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do país, da herança do povo moçambicano após a colonização, do partido que iria conduzir o país, do significado da República Popular de Moçambique, entre outros aspectos.157

A encerrar as celebrações oficiais do dia da Independência Nacional, Samora Machel ofereceu um banquete de Estado aos delegados e representantes dos países e povos aliados. Estiveram, igualmente, presentes os dirigentes da FRELIMO, membros do Governo e militantes das estruturas organizativas dos trabalhadores. O banquete realizou-se no Pavilhão do antigo Parque Municipal de Campismo (actual Centro de Conferências Joaquim Chissano). As comemorações prosseguiram no dia 26 com um espectáculo exibido pelos continuadores da Revolução, no Estádio da Machava, que iniciou com a chegada da Chama da Unidade.

Samora Machel e os membros do Primeiro Governo de Moçambique.

157 Revista Tempo Especial, 1975:22

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5. Samora Machel e as Perspectivas de Desenvolvimento de Moçambique

A proclamação da Independência Nacional, em 1975, constituiu um momento de viragem em muitos sentidos, desde o ordenamento político, ao socioeconómico e cultural. A nova estrutura de governação assentava em suportes ideológicos inspirados pela doutrina marxista-leninista, uma perspectiva que vinha sendo desenhada desde a Luta de Libertação. Tendo a FRELIMO como o guia, e Samora Moisés Machel como o timoneiro, Moçambique iria socializar a educação, saúde, entre outros sectores, reordenar os assentamentos populacionais rurais e intervir, directamente, no processo da produção e do desenvolvimento económico.

Estas medidas visavam, essencialmente, garantir o acesso equitativo e equilibrado de todos os sectores da sociedade aos serviços e bens económicos, assim como a sua participação nas esferas de decisão, através da implementação de uma gestão participativa da coisa pública. Quanto aos meios de produção, o imperativo era o incremento da produtividade, tendo como indicador o equilíbrio da balança de pagamentos e a redução do desemprego, melhorando assim, a redistribuição equitativa da renda. Importava, igualmente, afastar o espectro da miséria, da fome, do analfabetismo e, ainda, eliminar a “exploração do Homem pelo Homem”.

Em suma, este esforço teria como corolário, a formação da Nação moçambicana, através da incorporação de todos os valores culturais, amalgamados no Homem Novo, livre dos preconceitos tradicionais, e inspirado pelo saber científico. Samora Machel tomaria a dianteira na promoção destes valores. Nas próximas linhas, e em breves trechos, tentar-se-á trazer à luz algumas das ideias basilares que

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guiaram as perspectivas de Samora Machel sobre o desenvolvimento de Moçambique, com destaque para as áreas da educação e cultura, saúde e o desenvolvimento sócio-económico.

5.1. Samora Machel: Unidade Nacional e Homem Novo

Em linhas gerais, o projecto nacionalista moçambicano baseou-se na experiência da Luta Armada de Libertação Nacional, que consistiu, não apenas no confronto bélico com o colonialismo português, mas também na preparação ideológica que devia moldar um novo modelo de sociedade. Efectivamente, a luta revolucionária pela independência desenvolveu esta componente, inclusive chegando a implementar novos modelos de relações sociais nas “zonas libertadas”.

Estes modelos buscavam superar aquilo que eram considerados “vícios” das sociedades conservadoras, seja a colonial, como a tradicional. Este modelo – do qual o caso da base de Nachingwea158 é o maior exemplo, trouxe novas concepções acerca da divisão do trabalho, relações de género, trocas económicas e praxis política. A concordar com uma série de autores159, a ideia da Nação moçambicana que se projectou logo a seguir à independência foi uma tentativa de implementar o modelo de Nachingwea a todo o território e às populações do país. Assim, nas próprias palavras de Samora:

- “A construção da Nova Sociedade em que estamos empenhados é indissociável da criação do Homem Novo (...) temos que desencadear uma luta política dura para destruir o sistema de organização social que permite a exploração, igualmente, ao nível da consciência, dos valores morais e culturais, somos obrigados a fazer o mesmo combate” 160.

Esta passagem confirma que a luta no domínio da cultura teve a sua génese nas zonas libertadas, ou seja, estes debates foram feitos no seio 158 A base de Nachingwea, na Tanzânia, foi um dos principais centros da FRELIMO durante a Luta Armada. Seus modelos de organização baseavam-se na ideia de Ujamaa, conceito desenvolvido pelo presidente tanzaniano, Julius Nyerere, apologista de um “socialismo africano”. 159 Adam, Negrão, Brito, Sopa, 2001.160 Machel, 1975:159.

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de uma parcela bastante restrita da população moçambicana. Depois da Independência, era necessário inculcar estes mesmos ideais em toda vasta população extremamente diversa e bastante dispersa.

Em termos de conteúdo, para a ideia de Homem Novo, foi projectado um modelo de indivíduo adequado à nova nação que se pretendia construir, dotado de capacidades que lhe permitissem fazer a crítica dos sistemas colonial e tradicional, tanto ao nível da prática como da teoria. Como sublinha Cabaço, o Homem Novo inclui uma “nova práxis (trabalho manual, disciplina militar, empenho subjectivo através da ‘libertação da iniciativa’, educação formal, etc.) (...) que lhe conferisse os instrumentos para se apropriar da técnica através do conhecimento científico cartesiano (...) e evitar que as estruturas e o pensamento tradicional se ‘reorganizassem’”.161

Liderado por Samora Machel, o novo Governo de Moçambique, logo ao início, procurou estabelecer as bases para a Unidade Nacional, isto é, tornar em realidade para todos os habitantes do território a ideia de que compartilhavam o mesmo espaço, os mesmo ideais e, portanto, o mesmo destino socio-económico e político. Este aspecto remete ao que Anderson chama de “comunidade imaginada”, no sentido de que o processo de construção de uma nação implica uma série de procedimentos com vista a conferir materialidade a este imaginário.162 Aqui, é preciso atribuir estruturas de “homogeneidade” e “simultaneidade” às acções dos indivíduos para que se sintam dentro de um mesmo projecto nas várias perspectivas de desenvolvimento da nação.

Com efeito, Anderson define a nação como “(...) uma comunidade política imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”.163 Com a ideia de imaginação na concepção da nação, o autor quer dizer que os seus membros não conhecem, necessariamente, todos os demais e, assim, na mente de cada indivíduo, reside uma imagem da comunidade da qual participa. 161 Cabaço, 2009.162 Anderson, 1989.163 Idem.

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Daí, a necessidade da criação de um aparato simbólico por meio do qual se constroem os sentimentos de comunhão, solidariedade e horizontalidade social entre os membros da Nação.

Com este ideário pretende-se que se diluam os potenciais conflitos, desigualdades e diferenças que os atravessam. Para o caso moçambicano, o conceito de “comunidade imaginada” aplica-se justamente à Unidade Nacional que se pretendia, tanto ao nível simbólico do discurso, quanto de uma máquina governativa capaz de administrar o território e a população. Esta visão estende-se à gestão dos bens patrimoniais do país; para além de todo um sistema de procedimentos, rituais, comportamentos e produção de símbolos de modo a assegurar a estabilidade política da nova nação. Sob este ângulo, as estratégias e as políticas públicas para os sectores da educação, saúde, cultura e para o desenvolvimento económico, estão intimamente ligados à construção deste imaginário de forma compartilhada pelos moçambicanos.

Nesta ordem de ideias, as singularidades e as pluralidades que se verificaram na concepção do imaginário, definiram a personalidade moçambicana, face ao seu meio circundante que, por sua vez, se afigurava como referência incontornável para a sua concretização. Este aspecto remete à percepção clara que Samora Machel tinha sobre a Unidade na Diversidade. Este projecto samoriano é resumido pelo cancioneiro da Luta Armada de Libertação Nacional, de um modo geral. De forma específica, encontra-se na seguinte canção, cuja origem teve como um dos principais protagonistas, o Herói Nacional Belmiro Obadias Muianga:

“Hi va moçambicano hinkweru, Hi va moçambicano hinkweru,

A kuna mukhuwa,A kuna mukonde,

A kuna mutxangana,A kuna munyungwe,

A kuna mutxope,A kuna murhonga,

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A kuna mundau,A kuna mulungu, A kuna mulandi,

Hi va moçambicano hinkweru, swoswi”.

Tradução

“Somos todos moçambicanos,Somos todos moçambicanos,

Não há macuas,Não há makondes,

Não há machangana,Não há yungwes,Não há chopes,Não há rongas,Não há ndaus,

Não há brancos,Não há negros,

Somos todos moçambicanos, agora”

5.2. Perspectivas de Samora Machel sobre a Educação e Cultura

A educação pode ser considerada como aquela área que está directamente associada ao projecto de desenvolvimento de um país, ao entender-se que a evolução quantitativa, primeiro, e qualitativa, depois, assenta na qualificação do seu tecido social. Durante a Luta Armada, Samora Machel, referindo-se a este sector, dizia que era necessário educar o Homem para vencer a guerra, de modo a se criar uma sociedade nova164. Neste sentido, reconhecia o valor inestimável do factor educação em qualquer projecto de desenvolvimento.

164 Palavras de ordem que animaram a II Conferência do Departamento de Educação e Cultura, realizado em 1970. Nesta frase podemos verificar o sentido que se atribuía à educação como factor de unidade nacional.

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Antes da Independência Nacional, promovendo um novo modelo de educação que se adequasse às perspectivas de Moçambique, Samora preocupou-se com a linha que devia ser seguida e o objectivo a atingir. A título de exemplo, em Tunduru, em 1970, no decurso da II Conferência do Departamento de Educação e Cultura, Machel efectuou um diagnóstico em torno do sistema, apresentando as vertentes que podiam constituir obstáculos e aquelas que deviam ser promovidas.

Nessa ocasião, Samora Machel identificou três tipos de educação antagónicos: o tradicional, o colonial e o revolucionário. O tradicional visava transmitir a tradição, erigida em dogma, referindo que o sistema de classes, de idade e de ritos de iniciação tinha por objectivo integrar a juventude nas ideias velhas e destruir-lhe a iniciativa. Neste universo, tudo o que fosse novo, diferente, estrangeiro e dialéctico era combatido, em nome da tradição. Assim, se dificultava todo o progresso e a sociedade sobrevivia no seu imobilismo.165

No mesmo diapasão, referindo-se à educação colonial, condenou a visão de desenvolvimento vertical no seio dos moçambicanos, advogando que ela seria uma reprodução do sistema burguês-colonial, cujas mudanças estariam a ocorrer simplesmente ao nível da cor da pele, todavia, mantendo-se a essência do colonialismo. Samora pronunciou-se nos seguintes termos:

- “Para além dos seus objectivos gerais de fortificação da opressão burguesa, o ensino colonial procura especialmente despersonalizar o moçambicano. (...) o moçambicano deve tornar-se um burguês de pele preta, instrumento dócil do colonialismo, cuja ambição máxima é viver como o colono, a cuja imagem foi criado”.166

Perante este quadro, um novo modelo de educação, o revoulcionário, tornava-se urgente, de modo a corresponder aos novos desafios. Neste sentido, Samora Machel advogava que no âmbito da criação do Homem Novo, a educação devia permitir a formação de uma 165 Machel, 1975:33. 166 Machel, 1975:34

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personalidade moçambicana, que não fosse de subserviência, que assumisse a sua realidade, mas que soubesse tirar partido do contacto com o mundo exterior. Isto significa que devia assimilar criticamente as ideias e experiências de outros povos, porém, transmitindo-lhes, igualmente, o fruto da sua reflexão e prática, ou seja, do seu capital cultural. Portanto, devia permitir a aquisição de uma atitude científica aberta e livre de todos os pesos da superstição e tradições dogmáticas e retrógradas. De igual maneira, esta devia garantir a emancipação da mulher e inculcar nos homens uma mentalidade diferente a seu respeito, sabido que a diferença de género resulta de uma construção cultural conjuntural, no entanto, modernamente extemporânea.

Efectivamente, estavam assim lançadas as premissas para o novo modelo de educação. Porém, aquando da proclamação da Independência Nacional, Moçambique deparava-se com uma das mais altas taxas de analfabetismo no Mundo, que rondava, sensivelmente, em cerca de 93%.167 Aliás, a política de educação do regime colonial tinha excluído aos “nativos” a possibilidade de acederem a uma educação de qualidade, que lhes pudesse permitir competir, tanto no mercado do conhecimento como do emprego. Conforme vimos com o exemplo da Missão São Paulo de Messano, visava simplesmente, formar servidores dóceis ao regime, sem espírito de iniciativa. Esta realidade era, per si, um constrangimento ao projecto de Samora.

Ciente desta situação, o Governo de Moçambique lançou uma campanha de âmbito nacional com vista à reversão deste cenário. Assim, entre 1975 e 1982, duplicou o número de ingressos nas escolas primárias, a taxa de analfabetismo reduziu em 20%, e o número de professores duplicou, tendo passado de dez para vinte mil.168 Estes sucessos foram alcançados, em parte, como resultado das campanhas de alfabetização. A primeira, lançada em 1975, estendeu-se até meados da década de 80, atingindo as Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM), as empresas estatais, fábricas e cooperativas, os centros de produção, e consistiu, igualmente, na formação de 5.000 monitores de alfabetização. Este programa teve como marco referencial, a consagração da Educação de Adultos como um dos pilares do Sistema Nacional de Educação.167 Abrahamsson e Nilsson, 1994. 168 Abrahamsson e Nilsson, 1994.

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Os esforços foram orientados, consequentemente, para a concentração de recursos do Estado, para a reciclagem de 3.000 professores por ano, até 1980, elevação do seu nível político e pedagógico; formação anual de 800 professores com 6a Classe e criação de condições para graduar, até àquele ano, cerca de 60.000 estudantes com 4a Classe. O Partido FRELIMO apoiou o programa de extensão do Ensino Primário às Aldeias Comunais, mobilizando, quando necessário, alunos mais velhos com a 4a Classe ou graus superiores, para darem aulas às clas-ses mais baixas.

A segunda etapa iniciou nos meados da década de 80, e prolongou-se até 1995, envolvendo cerca de 300.000 alfabetizados. A educação primária era garantida a todos os cidadãos moçambicanos, como um direito básico e um pré-requisito fundamental para o desenvolvimento social e económico.169

Estes desdobramentos revelam o quão prioritária era considerada a educação para a construção de uma Nação moçambicana assente no progresso sócio-económico e guiada por modelos de pensamento científico. Refira-se que a implementação destas iniciativas se baseou na assunção de que a língua portuguesa serviria, também, de factor de Unidade Nacional, em reconhecimento da diversidade linguística em Moçambique. De facto, em função desta conjuntura, nenhuma língua, com a excepção do português, se apresentava como a mais aglutinadora, apesar de algumas possuírem uma representatividade significativa. Neste aspecto, considera-se que a FRELIMO fez muito mais, comparada ao regime colonial, na difusão desta língua ao nível das populações nativas.170

169 Mário, 2002:129-130.170 Lopes, 2004.

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Samora Machel, durante uma visita a um estabelecimento de ensino.

No entanto, o projecto de Samora em relação ao progresso da educação foi desafiado por “determinantes sociais”, que tinham escapado à visão de então. Era enorme o fosso entre a “base socio-teórica”171 dos diversos actores e os instrumentos teóricos a serem aplicados. Com efeito, apesar dos notáveis avanços observados, o voluntarismo e “revolucionarismo” destas medidas deparou-se, em alguns contextos, com uma adesão reduzida, em consequência de uma relativa fraca preparação ideológica e académica de alguns dos seus implementadores. Assim, observou-se algum autoritarismo na aplicação das directrizes educacionais. Como afirma Miguel Buendía, o projecto nacionalista de expandir a experiência das zonas libertadas para todo o país subestimou a maior complexidade da sociedade moçambicana, em relação à realidade das bases da FRELIMO durante a luta armada. Este autor asseverou, ainda, nos seguintes termos:

171 Com esta expressão, pretendemos designar a rede social que deveria implementar os projectos, como os próprios educadores, as lideranças políticas e económicas aos diversos níveis, os quais não tinham os conhecimentos teóricos à altura de um grande empreendimento como este defendido por Samora Machel.

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- “Daí, surgiram grandes resistências e obstáculos à aplicação das políticas educacionais, dado que os profissionais do sector no Moçambique independente padeciam de uma “fraqueza teórica” e que a maioria das pessoas não estava preparada em termos de reflexão para a acção política. O resultado é que em muitos casos, prevaleceu a doutrinação ideológica e não a superação dialéctica das contradições, fazendo com que a aplicação do projecto se desse de forma mecânica e descontextualizada”.172

No entanto, Samora Machel reconhecia os diversos desafios que existiam e a necessidade de serem ultrapassados. Por isso, ele defendia que “a educação era tarefa de todos nós”. Aliás, mesmo durante a Luta Armada, Samora sublinhava que os “quadros surgiam do próprio processo de luta, não sendo necessário esperar a formação de generais para se travar a batalha”. Foi nesse contexto que surgiu a palavra de ordem “aprender a fazer, fazendo”.173 Este era, efectivamente, um reconhecimento do reduzido número de quadros com formação especializada, e que, em função do seu pragmatismo e da urgência para a solução de situações imediatas, impunha-se a maximização dos parcos conhecimentos existentes. Era preciso semear-se para se colher.

O projecto do Homem Novo que temos vindo a caracterizar, depois da Independência Nacional, estaria associado ao da Construção da Nação, preconizando a união de todos os moçambicanos. Refira-se que a abordagem deste assunto tem sido dicotómica, havendo interpretações que apontam um dedo acusador em relação a Samora, alegadamente porque se teria dissociado da sua cultura, ao advogar a substituição de certas práticas culturais, por exemplo, os ritos de iniciação, e ao distanciar-se de confissões religiosas anti-revolucionárias. No entanto, o pensamento de Samora em relação à cultura moçambicana era, pelo contrário, orientado para que esta servisse o desenvolvimento de Moçambique. Neste contexto, terá sido mal entendido quando defendeu a expurgação dos aspectos tradicionais retrógrados, pois, estes já não constituíam, efectivamente, valores culturais. Neste 172 Buendía, 2001: 73.173 Macagno, In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol.24. Nº 70.

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domínio, perfilam casos como a prepotência do poder tradicional e religioso, as incisões doloridas, a desvalorização da mulher,174 tudo isto embandeirado na cultura moçambicana.

Explanando o seu pensamento relativamente à cultura, num dos seus discursos, Samora Machel realçava estes aspectos, destacando que o grande conhecimento de que o povo era detentor, sobre diversas áreas do saber, apesar de ser, essencialmente empírico e frequentemente adulterado pela superstição, devia ser resgatado e analisado de forma crítica, à luz dos pressupostos científicos, em proveito da própria sociedade. Do mesmo modo, recomendava a realização de estudos “etnográficos” sobre os “usos e costumes”, de modo a permitir a identificação, por um lado, dos chamados aspectos negativos e, por outro lado, promover, valorizar e salvaguardar os considerados valores positivos.

Na senda, ainda, de Anderson175 que reconhece que a Nação é, essencialmente, uma comunidade imaginada, em que os seus membros se identificam através de valores específicos, como interesses, classe, raça, entre outros, Samora Machel compreendeu que, no caso moçambicano esses valores deviam ser criados ou recriados. Aliás, as tradições culturais constituem, iminentemente, produtos sociais e não naturais, o que confere carácter dialéctico a todas as culturas.

Como mecanismos para o estabelecimento de maior intercâmbio cultural, e do mesmo modo, a sua recriação, a governação de Samora Machel implementou algumas iniciativas, como são os casos do Kuxa Kanema, da Campanha de Preservação e Valorização Cultural e da Companhia Nacional de Canto e Dança.

Criado pelo Instituto Nacional de Cinema, o Kuxa Kanema era um documentário cinematográfico cujo objectivo era “filmar a imagem do Povo e devolvê-la ao Povo”. De 1975 a meados da década de 1980, o Kuxa Kanema construiu um acervo de centenas de filmes de curta-metragem, nos quais se procurava levar a mensagem da Unidade Nacional a todas as populações do país, sobretudo, àquelas recolhidas 174 Cabaço, 2009:305.175 Anderson, 2008.

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em locais mais distantes, através de unidades móveis. Assim, o cinema cumpria o papel de tornar “real” a “comunidade imaginada”, fazendo recurso à força da imagem em movimento. Deste modo, foi possível difundir não apenas os ideais da independência, mas também as próprias políticas públicas dos diversos sectores governativos.

De facto, tinha sido atribuído a estas projecções, o imperativo de informar e educar a sociedade, colocando-a em contacto com as novas iniciativas e políticas de governação. Com efeito, devia-se permitir uma maior participação popular nesses processos. Assim, na II Conferência Nacional do Trabalho Ideológico do Partido FRELIMO, definiu-se mais precisamente o papel que o cinema devia desempenhar no processo revolucionário, cujos pressupostos podem ser percebidos no excerto abaixo:

- “Incentivar o aumento da produção e da produtividade. Na realização deste trabalho, é importante mostrar a dimensão nacional do trabalho, isto é, como o trabalho de cada trabalhador, de cada fábrica, em cada Província - beneficia todo o País e todo o Povo. (...) Divulgar em cada fase do desenvolvimento económico-social do país, com prioridade para os sectores estatais de produção, empresas industriais (...) unidades sanitárias e centros de educação. Promover a mobilização das massas trabalhadoras, dando-lhes o verdadeiro sentido da importância da vida em comunidade, educando-os para o trabalho colectivo. Neste contexto, deverá ser dada particular importância às Aldeias Comunais, machambas colectivas e cooperativas. (...) A divulgação dos grandes acontecimentos nacionais e do processo político no nosso país é também outro aspecto a considerar na produção dos documentários Kuxa Kanema, sendo exemplo: a Campanha Nacional de Estruturação do Partido, a Campanha Nacional de Alfabetização, a Campanha Nacional de Vacinação e outros”.176

176 II Conferência Nacional do Departamento do Trabalho Ideológico, 1978: 88-90.

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A Campanha de Preservação e Valorização Cultural que decorreu entre 1978 e 1982 consistiu na recolha e registo das manifestações artísticas nacionais, para efeitos de inventariação, preservação e divulgação. Pode-se afirmar que esta campanha foi uma medida com vista a fazer jus à recomendação de Samora Machel, segundo a qual, deveriam ser realizados trabalhos centrados nos “usos e costumes” do povo moçambicano, de modo a promover e salvaguardar os seus valores considerados positivos. Esta campanha teria, como alguns dos seus resultados, a realização de festivais culturais nacionais, iniciados em 1980, e a criação do Arquivo do Património Cultural (ARPAC), em 1983, mais tarde, em 2002, transformado em ARPAC – Instituto de Investigação Sócio-Cultural. Esta instituição visa dar continuidade ao trabalho de recolha e estudo do património cultural.

Edificio do ARPAC

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Do ponto de vista da promoção da Unidade Nacional, é relevante o facto de os festivais terem conseguido aglutinar diferentes manifestações culturais, permitindo uma efectiva troca de experiências entre artistas ao nível de todo o país. A concepção de festivais desta natureza já vinha presente no pensamento de Samora Machel desde a Luta Armada, como se pode perceber no trecho abaixo, proferido em 1970:

- “Consideramos o Primeiro Festival Cultural que o DEC se propõe a realizar, como uma contribuição preciosa para a nossa unidade nacional, para o desenvolvimento da nossa cultura. (...) Que na arte se procure combinar a forma antiga com o conteúdo novo e depois se origine a forma nova. Que à dança, à escultura, o canto, tradicionalmente cultivados, se junte a pintura, a literatura escrita, o teatro, o artesanato artístico. Que a criação de uns se torne a de todos, homens e mulheres, jovens e velhos, do Norte e do Sul, para que de todos nasça a nova cultura revolucionária e moçambicana”.177

O mesmo princípio director esteve na criação da Companhia Nacional de Canto e Dança (CNCD), outra realização no domínio da cultura no período pós-independência. Segundo Gabriel Simbine,178 o embrião da CNCD nasceu, sobretudo, a partir do campo de Tunduru, na Tanzania, através da realização de actividades culturais. Efectivamente, neste período, assistiu-se ao conhecimento cada vez maior do mosaico cultural moçambicano, onde cada grupo etno-linguístico apresentava as manifestações culturais da sua região de origem. Os intercâmbios havidos, como destacou Siliya,179 entre outros, contribuíram para a emergência e consolidação de uma abordagem sobre o desenvolvimento cultural inclusivo, lançando assim as bases para uma Unidade Nacional baseada no reconhecimento e promoção das diversidades étnicas.

Desta forma, após a proclamação da Independência, estas manifestações seriam congregadas, para dar lugar à CNCD, que passou a apresentar, nas suas actuações, as diversas práticas culturais 177 Machel, 1975: 37.178 Ex-Presidente do NESAM, Combatente da Luta Armada de Libertação Nacional, Primeiro Director da CNCD e ex-Director Geral Adjunto do ARPAC. Entrevista de 08/05/ 2011. 179 Siliya, 1966.

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nacionais. Esta acção contribuiu para a elevação dos valores culturais, na sua qualidade de instrumentos de mobilização, de participação social e de unidade nacional.

Ainda neste quadro, destacam-se as “canções revolucionárias”. No entender de Samora Machel, a canção era um veículo privilegiado para a transmissão das directrizes de governação. Estas canções tinham o objectivo de motivar o povo em torno da causa nacional em vários domínios de desenvolvimento. Um exemplo ilustrativo, são as canções de Makwaela180 que foram enquadradas neste contexto:

- “Unidos Trabalhadores do Mundo InteiroEsmagaremos o capitalismoConstruiremos o mundo novo.Abaixo o capitalismoAbaixo o imperialismoAvante, avante trabalhadoresAvante trabalhadores do mundo inteiro”.181

Efectivamente, a mensagem das canções também espelhava a esperança e o comprometimento dos moçambicanos na construção de uma Nação próspera e de igualdade social. Neste aspecto, pode-se referir a uma canção que Samora Machel entoava com frequência, nomeadamente:

- “Hi ta xurha, hi ta xurha Moçambique,Hi ta xurha, hi ta xurha Moçambique,Hi ta xurha, hi ta xurha Moçambique,Hi ta xurha, hi ta xurha Moçambique”182.

Esta canção, para além do seu poder mobilizador, incentivava para o incremento da produção e da produtividade, com vista à eliminação da pobreza e da fome em Moçambique. De igual modo, estimulava o desempenho noutras áreas como a educação, saúde, habitação, através da inclusão destas no verso.

180 Para mais detalhes sobre este processo em relação à Makwaela, vide Soeiro, 1999.181 Cardoso, 1978: 29.182 “Teremos fartura, teremos fartura em Moçambique”.

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5. 3. Perspectivas de Samora Machel em Relação à Saúde

À semelhança do sistema de educação, a área da saúde, no período colonial, cumpria a função de reproduzir a desigualdade social. As poucas unidades sanitárias existentes visavam atender à população branca e às pessoas que tinham o estatuto de assimilado. Assim, para a esmagadora maioria da população, praticamente, não havia assistência médica, o que concorria para o agravamento das condições de vida, já precárias. Samora Machel caracterizava o sistema de saúde, nos seguintes termos:

- “No Moçambique dos colonialistas e dos capitalistas só há hospitais onde há colonos, só há médicos e enfermeiros onde vivem os que podem pagar. Na cidade de Lourenço Marques há mais camas de hospital, mais médicos, mais enfermeiros, mais laboratórios do que em todo o resto de Moçambique”.183

De facto, no período anterior a 1975, os serviços de saúde estavam confinados aos centros urbanos e a maioria da população não tinha acesso a cuidados médicos básicos, nas zonas rurais, onde parte das doenças tropicais tinham um carácter endémico, como é o caso da malária, bilharziose, varíola, tifo e febre-amarela. De igual modo, o regime colonial promoveu, sobretudo, uma concepção de saúde curativa, com fins estritamente lucrativos, em detrimento de uma abordagem preventiva.184

As políticas públicas para o sector da saúde basearam-se, em certa medida, na experiência das zonas libertadas. Com efeito, nessa altura, foram criados os Serviços de Assistência em Saúde para suportar o esforço da guerra. No entanto, a percepção de Samora Machel não foi somente resultante deste esforço, mas, igualmente, da sua experiência como enfermeiro. Esta realidade iria permitir que Machel encarasse a saúde como uma das áreas prioritárias da sua intervenção, em termos de políticas de desenvolvimento. A título de exemplo, num dos seus discursos, destacava:

183 Machel, 1975:51.184 Martins, 2001:98.

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- “O espírito colectivo obriga-nos a enfrentar cada problema, cada situação, cada deficiência, como nossa. (...) Uma pequena ferida desprezível pode abrir a porta ao tétano que destrói o organismo inteiro. No corpo, a ferida no dedo mais pequeno do pé, se não é tratada, pode destruir a vida. Porque o problema não nos afecta completamente, não é menos importante, porque esse problema faz parte do organismo em que estamos integrados”.185

No quadro do processo revolucionário, Samora Machel identificou o papel que o sector de saúde devia desempenhar. O conteúdo programático da saúde na zona “revolucionária” devia ser ideologicamente informado, de modo a constituir um mecanismo de emancipação, através da apresentação de uma perspectiva holística em torno do Hospital, como atesta o extracto abaixo:

- “Tudo tem um conteúdo em função da zona em que se encontra, em função da natureza do poder que existe nessa zona. Na zona capitalista e colonialista a escola, a machamba, a estrada, o tribunal, a loja, o técnico, as leis, o estudo, tudo serve para sermos explorados, oprimidos. Na nossa zona, porque o poder nos pertence, porque são os camponeses, os operários, as massas laboriosas quem concebe e dirige, tudo se destina a libertar o homem, a servir o Povo. Assim, se passa com os hospitais, com o serviço de saúde (...).

Assim, o nosso Hospital é um centro de unidade nacional, um centro de unidade de classe, um centro de purificação de ideias, um centro de propaganda revolucionária e organizacional, um destacamento de combate. (…). A estadia do doente no hospital deve servir para elevar a sua consciência de unidade nacional, a sua determinação ao combater, o seu ódio ao inimigo explorador.

Compreende-se então porque definimos um hospital da FRELIMO como um destacamento operacional nosso. (...) Assim, o nosso enfermeiro, o nosso pessoal médico, além das suas tarefas específicas, são instrutores da nossa vida,

185 Machel, 1975:62.

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professores, comissários e políticos. A acção do nosso pessoal médico revolucionário não só cura o corpo, como também liberta e forma o espírito (...) Para o pessoal médico não existem raças, cores, crenças ou mesmo nacionalidades. Para eles só existem doentes. Um soldado português ferido ou doente, no nosso hospital, é tratado como qualquer um de nós. Fazemos isso porque possuímos uma moral revolucionária.186

Foram, de facto, estes pressupostos que nortearam a política de saúde após a Independência. Uma das primeiras medidas tomadas foi a criação do Ministério da Saúde, em 1975. Em seguimento do processo das nacionalizações, através do Decreto-lei nº 31/75, de 27 de Julho, aprovou-se a interdição de qualquer actividade de Saúde a título privado e/ou lucrativo.

No mesmo ano, entre os dias 30 de Outubro e 4 de Novembro, teve lugar o primeiro seminário de saúde, em Quelimane. Neste encontro, foi lançada a Campanha Nacional de Saneamento do Meio, com o envolvimento de todas as estruturas de prevenção de doenças. Desde este período, o Governo de Moçambique baseou a sua política sanitária na estratégia dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), cujo objectivo era o controlo das principais doenças que afectavam os cidadãos, através de medidas preventivas, curativas, promotivas e reabilitativas.187 Neste âmbito, foram lançadas campanhas alargadas de vacinação, sobretudo para menores de cinco anos.

As Campanhas de Vacinação tinham como objectivo alterar a situação atrás referida, sendo parte da assistência sanitária gratuita. A primeira teve lugar em Junho de 1976, e consistiu na administração de vacinas contra o sarampo, a varíola e a tuberculose. A escolha destas três vacinas baseava-se, por um lado, no facto de, para cada uma delas, ser necessária apenas uma inoculação e, por outro, no alto grau de incidência dessas doenças em todo o país.188 No concernente à varíola, era a primeira vez que esta era administrada em Moçambique e, no mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) esperava erradicá-la a nível mundial.189

186 Machel, 1975:52-60,187 Gulube, 1997. 188 Revista Tempo, 20 de Junho de 1976.189 Tempo, 20 de Junho de 1976.

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Em Setembro de 1977, foi aprovada a Lei de Socialização da Medicina, que garantia o acesso gratuito a vários serviços de saúde, medidas preventivas e acesso a medicamentos. Na sequência, foi publicado o I Formulário Nacional de Medicamentos e foi iniciada a formação de Agentes Polivalentes Elementares (APE’s)190.

Foram, ainda, criadas as empresas estatais MEDIMOC, responsável pela importação e exportação de medicamentos, e a FARMAC, com a missão de comercializá-los no mercado interno. Em 1979, uma segunda campanha nacional de vacinação contra a varíola, tétano e sarampo, abrangeu cerca da 90% da população, e a taxa de mortalidade infantil decresceu 20%.191

Entretanto, Martins chama a atenção para o facto de que todas essas disposições legais constituíam mais a manifestação de princípios e ideais do que políticas públicas claramente definidas, com planos e metas precisos.192 Para o autor, este aspecto está relacionado com o entusiasmo que envolveu todos os moçambicanos nos momentos imediatamente posteriores à Independência. Porém, a opção pela socialização dos serviços de saúde tinha implicações que, a princípio, não estavam a ser consideradas, sobretudo porque poder-se-ia frustrar a enorme expectativa gerada pelo entusiasmo popular nacionalista. A extrema pobreza do país193 aliada à precariedade das infra-estruturas, constituíam grandes obstáculos à implementação de uma política pública dessa natureza.

No quadro da implementação destas iniciativas, observaram-se outros constrangimentos, resultantes, por um lado, da complexidade administrativa e, por outro, das crenças enraizadas nas mentes das pessoas no que diz respeito às suas percepções sobre saúde e o papel do Hospital, como lugar de cura. De facto, em certa medida, estas iniciativas privilegiavam o que se chamou de Medicina Promotiva. Neste sentido, era necessário mobilizar as pessoas para a defesa da sua 190 Estas pessoas eram seleccionadas pela população, mas não eram trabalhadores da saúde. Recebiam o treino específico nos Centros de Formação de Saúde para o efeito criados, e viviam normalmente junto da população e à custa dos seus rendimentos e/ou com o apoio da comunidade que serviam.191 Newitt, 1997.192 Martins, 2001.193 Segundo este autor, o Sector da Saúde tinha sido contemplado pelo Orçamento Geral do Estado de 1974, com US$ 0,50 por habitante por ano.

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própria saúde, como forma de garantir a eficácia deste sistema. Uma das vantagens desta abordagem, é o maior grau de responsabilidade que os indivíduos têm para com o seu estado de saúde, podendo integrar nas estratégias de cura, as biomédicas194 e etnomédicas.

5.4. Visão de Samora Machel sobre Desenvolvimento Socioeconómico

O sector da economia, com particular incidência na produção e produtividade dos principais activos, como a agricultura e a indústria, foi assumido por Samora Machel como sendo o pilar a partir do qual se ergueria a Nação moçambicana, próspera e baseada na equidade redistributiva. De facto, para além do sector de serviços, a agricultura e a indústria eram as áreas em que Moçambique possuía algum potencial, e onde se encontrava empregue a maior parte da sua mão-de-obra. Assim, foi assumido o compromisso de incrementar a produção de bens alimentares e a industrialização do país, através da implementação de novos modelos de produção.

Tal como para as outras áreas de intervenção governamental, a experiência das zonas libertadas serviu de base para o desenho das estratégias relacionadas com este sector. Para este caso, o conceito-chave era o da sustentabilidade na gestão dos recursos, isto é, a ideia de que o país deveria privilegiar os seus próprios esforços e o produto do seu trabalho para se desenvolver. Foi precisamente este princípio que seria posto em funcionamento após a proclamação da Independência Nacional.

No entanto, o quadro económico e de produção de riqueza encontrado pela FRELIMO estava profundamente marcado pelo seu passado colonial, e pelo contexto internacional dominado pela Guerra Fria. Desta maneira, uma das primeiras medidas foi a ruptura com o legado colonial, caracterizado pela exploração de mão-de-obra barata, trabalho forçado e produção de matérias-primas básicas voltada para a exportação.

194 Martins, 2001: 97.

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A nacionalização dos activos de produção foi o prenúncio de um conjunto de medidas que culminariam na centralização dos mecanismos de gestão e administração da economia e dos factores de produção. Assim, destacaram-se medidas como a intervenção estatal nas empresas e fábricas, a criação das machambas estatais, o controlo dos preços e circulação dos produtos no mercado, assim como a socialização do campo, através da instituição de mecanismos de produção colectivos e de Aldeias Comunais.

Estas estratégias teriam como um dos seus marcos impulsionadores, o III Congresso, realizado em 1977. Ao nível da política económica, as iniciativas que vinham sendo desenhadas e implementadas encontraram no Plano Prospectivo Indicativo (PPI), aprovado em 1981, a sua formulação mais consequente. De facto, tratava-se de um programa com cunho revolucionário, e que pretendia acabar com o subdesenvolvimento e a pobreza em Moçambique, num período não superior a dez anos. Neste plano, a agricultura e a indústria eram assumidas como os seus pilares.

Este programa, que era a sistematização das directrizes que iriam nortear a chamada “Década da Vitória Contra o Sub-desenvolvimento”, tinha em vista, igualmente, ultrapassar os obstáculos herdados da era colonial, como sejam, a baixa capacidade dos activos económicos, e os novos desafios que eram colocados pelo crescente agravamento da instabilidade no país. Assim, esta iniciativa procurava garantir o incremento da produção e da produtividade, permitindo dotar o país de uma capacidade produtiva para abastecer o mercado interno e externo, e assim, melhorar as condições de vida das populações.

Com base nestes pressupostos, tinha sido lançada a transformação da estrutura económica agrária do país. A partir do IV Congresso da FRELIMO, realizado em 1983, foi adoptada oficialmente a estratégia de colectivização do campo, que assentava, por um lado, no sector empresarial estatal, assumido como a forma de produção dominante e, por outro, cooperativo,195 em torno do qual estariam congregadas as comunidades rurais. O objectivo imediato era satisfazer as necessidades alimentares e garantir a segurança alimentar. 195 Castel-Branco,1994

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A colectivização da produção era uma experiência observada na Tanzania, o ujamaa, e que tinha sido testada nas zonas libertadas. No que concerne, especificamente, às Aldeias Comunais, estas foram recebidas pelas comunidades moçambicanas de maneira ambivalente. Em alguns universos, observou-se uma adesão bastante significativa a esta iniciativa, pois, havia expectativa em relação à melhoria da qualidade de vida: acesso à energia eléctrica, água canalizada, serviços sociais básicos, como escolas, unidades sanitárias, rede comercial e rede viária.

No entanto, em outros locais, a sua implementação mostrou-se inadequada. Por um lado, na sua dimensão económica, este se revelou como um instrumento de controlo e de modernização social susceptível de abranger uma grande maioria da população rural, sem, no entanto, se observarem grandes investimentos. Por outro lado, o modelo das Aldeias Comunais entrava em choque com aspectos fundamentais da organização social de diversas comunidades, junto das quais era aplicado. As questões controversas relacionavam-se com a ligação espiritual e afectiva com a terra e as suas implicações políticas a nível local196, especificamente com as lideranças tradicionais. Em alguns casos, estas viam a sua autoridade reduzida como resultado da perda total ou parcial dos seus súbditos.

Durante o período compreendido entre 1975 e 1981, conseguiu-se deter a queda dos níveis de produção, tanto na agricultura como na indústria, e obter um aumento de produção que, em 1981, atingiu, para a maior parte dos bens de consumo interno e de produtos para exportação, os níveis mais altos após a independência.197 Por exemplo, a exportação aumentou 83%, entre 1977 e 1981. Este sucesso era explicado, principalmente, pela euforia provocada pela Independência, que serviu como base fértil para a mobilização política da população, através de campanhas de trabalho voluntário. Eneas Comiche reconheceu este desempenho, tendo destacado:

- “Com um esforço que se realizou a partir de 1977, já se começava a inverter a tendência de decréscimo da economia, de tal maneira que o Produto Interno Bruto (PIB) atingiu 2.8%

196 Adam, 2001: 35. 197 Castel-Branco, 1994.

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por ano, no período de 1977-1981. Nesse período havia um grande entusiasmo, em que as pessoas não trabalhavam por dinheiro, trabalhavam por amor à causa, estavam engajadas e motivadas.Nessa altura, os trabalhadores estavam enquadrados em estruturas organizativas, nomeadamente, Conselhos de Produção, Conselhos de Controlo de Produtividade, Conselhos de Unidades de Produção, de tal forma que havia um controlo e conhecimento do plano por parte de todos trabalhadores e gestores. Existiam também projectos estratégicos para a economia nacional, como o de Lioma, Angónia, do Vale do Zambeze, etc”.198

Eneas Comiche

De 1981 a 1983, o decréscimo das receitas e exportações atingiu um ponto crítico, observando-se um aumento astronómico das importações e da necessidade de financiamento internacional. Neste período, os efeitos da guerra de desestabilização já estavam a fazer-se sentir em todo o país, bloqueando, os esforços de aumento da produção e produtividade e de recuperação económica. Deste modo, Comiche recordou que, estando o país numa situação de guerra, teve que se optar por uma “economia de guerra”. Em 1983, foi feito um 198 Comiche, Eneas. “A Questão Económica”. In: Notícias: Edição Espacial. 2000.

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balanço da situação económica e o IV Congresso da FRELIMO fez uma reavaliação da estratégia económica a ser seguida. Foi então que se iniciaram as negociações com as instituições de Bretton Woods, em 1984. Para obter esse financiamento, Moçambique devia implementar um Programa de Reabilitação Económica (PRE)199, sendo a partir daí estabelecido o programa de reajustamento estrutural, cujo conteúdo viria a ser apresentado em Janeiro de 1987, e implementado até 1990.200 Neste contexto, torna-se claro que a economia de mercado em Moçambique foi introduzida por Samora Machel.

5.5. Samora Machel e a Organização da Mulher Moçambicana

Desde a sua criação, a FRELIMO considerou que a mulher moçambicana tinha um espaço na Luta de Libertação Nacional. Assim, na Declaração Geral do I Congresso, ela proclamou “a união de todos os moçambicanos sem qualquer discriminação (…) para a conquista da independência nacional”. Na sua sessão de Outubro de 1966, o Comité Central determinou que fossem “feitos os esforços necessários para que todos os órgãos de diferentes escalões da FRELIMO tivessem na sua composição mulheres”.201

As raízes da OMM remontam ao período da Luta Armada. Os primeiros passos tendentes ao enquadramento da mulher foram a criação da Liga Feminina de Moçambique (LIFEMO), em Junho de 1966, em Mbea, na Tanzania. Posteriormente, com o desenvolvimento da luta e as constatações da importância da mulher neste processo,

199 O PRE tinha como objectivo principal, recuperar os índices de produção de 1981, e corrigir os erros do PPI, que eram apontados como sendo a má gestão macroeconómica, a distorção da estrutura dos preços relativos em desfavor da agricultura e das exportações e o desincentivo à operação do sector privado nacional e estrangeiro.200 Importa destacar que o FMI e o Banco Mundial tinham abordagens diferentes a respeito da recuperação das economias em crise. Enquanto o Banco Mundial se oferecia para apoiar os países que se comprometessem a efectuar mudanças estruturais de longo prazo, que conduzissem ao crescimento, a sua política é conhecida como reajustamento estrutural, o FMI se centrava no controle da inflação, através do aumento das exportações, redução do consumo interno e do poder de compra, pondo deste modo, a sua ênfase em medidas de curto prazo, e, por isso mesmo, a sua política é conhecida como de estabilização. Vide: Hanlon, 1997. 201 Matusse e Malique, 2008

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houve necessidade de dotá-la de formação para a defesa da pátria. Deste modo, o dia 4 de Março de 1967 marca o início da criação do Destacamento Feminino (DF), onde, pela primeira vez, 25 mulheres foram mobilizadas e integradas na preparação político-militar, em Nachingwea, para a sua formação em missões combativas. Este processo culminou com a criação da Organização da Mulher Moçambicana (OMM), a 16 de Março de 1973.

Os preparativos para a implementação da decisão do Comité Central, de criar uma organização da Mulher Moçambicana, tiveram início a 4 de Janeiro de 1973, sob a coordenação de Armando Emílio Guebuza, então Comissário Político Nacional, através da convocatória para uma reunião que teve lugar no Centro Educacional de Tunduru. De acordo com a convocatória, até 15 de Fevereiro, todos os delegados provinciais deveriam chegar a Tunduru para reflectirem sobre a materialização da decisão do Comité Central em criar a OMM e procederem à análise dos problemas que se levantavam e influíam no processo de emancipação da mulher.202 Sob o lema “A libertação da mulher é uma necessidade da revolução, garantia da sua continuidade, condição do seu triunfo”, a Conferência foi presidida pelo Presidente Samora Moisés Machel que aprovou os seus Estatutos e elegeu Deolinda Guezimane para Secretária-Geral. Esta agremiação foi definida como uma organização de base da FRELIMO e devia seguir as suas directrizes políticas. A sua função principal era trabalhar pela emancipação feminina, através do envolvimento das mulheres nas tarefas da Revolução.

202 Idem, p. 173-174

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5.6. Samora Machel e a Organização Continuadores de Moçambique

“As crianças são flores que nunca murcham”

Durante a Luta de Libertação Nacional, Samora Machel preocupou-se com o amparo de crianças e adolescentes nas Zonas Libertadas, através da integração social de órfãos em algumas famílias, da criação de condições para a sua educação, entre outras, considerando que estas eram o futuro de Moçambique. De facto, dentre as várias estruturas administrativas instaladas nas Zonas Libertadas, pontificava o Departamento de Assuntos Sociais, chefiado por Josina Machel, que tinha dentre várias tarefas, prestar assistência a crianças.

Para um melhor atendimento às crianças, estas foram organizadas num núcleo, mais tarde, denominado Continuadores, como referiu Ivone Mahumana203, nos seguintes termos:

- “Os Continuadores surgem durante a Luta Armada, como uma preocupação da FRELIMO, com o objectivo de albergar e cuidar das crianças órfãs, cujos progenitores eram vítimas da guerra e não só. Este posicionamento assentava no pressuposto de que elas eram a semente da Nação moçambicana, o que estava patente na designação que tomariam: Continuadores da Revolução Moçambicana (CRM)”.204

A preocupação com as crianças continuou saliente após a Independência Nacional. Foi neste contexto que se abriu espaço para que algumas pessoas que já trabalhavam com crianças dinamizassem as suas actividades, através da criação de grupos infantis que se dedicavam à educação da criança. Ivone Mahumana, que sempre fora apaixonada pela educação, sobretudo da criança, cria no ano de 1979 o Núcleo Infantil Escolinha Vamos Brincar, no Bairro do Aeroporto, em Maputo.203 Secretária Geral da Organização entre 27 de Outubro de 1985 e 17 de Maio de 2002.204 Ivone Mahumana, entrevista 22/09/ 2011. Changalane.

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Os trabalhos deste Núcleo atraíram as atenções do Governo de Samora Machel, o que conduziu à criação, em 1984, da Comissão Nacional Preparatória da Criação da Organização Continuadores da Revolução Moçambicana (OCRM), como referiu Mahumana:

- “Os trabalhos que lá fazíamos influenciaram muito o Ministério da Educação e Cultura, dirigido por Graça Machel (…). É por esta altura que Samora Machel ouviu falar do nosso grupo e, em 1984, foi criada a Comissão Nacional Preparatória da Criação da Organização Continuadores da Revolução Moçambicana (OCRM)...”205

Esta Comissão era composta por pessoas de várias organizações sociais, nomeadamente, Organização da Mulher Moçambicana (OMM), Organização da Juventude Moçambicana (OJM), Ministério da Educação e Cultura (MEC), Ministério da Saúde, Confissões Religiosas, Ministério da Agricultura, entre outras. A 25 de Outubro de 1985, foi criada, por Samora Moisés Machel, “A Continuadores”, uma organização que passou a enquadrar crianças dos 6 aos 16 anos de idade. Elas constituem o viveiro do país, daí a adopção de acções visando a sua formação patriótica e educacional, incutindo-lhes, desde cedo, um sentimento humanista, construindo-se uma personalidade baseada nos valores nobres da moçambicanidade.

A 27 de Outubro do mesmo ano, a direcção do Partido FRELIMO nomeou os dirigentes da Organização, sendo Graça Machel a Presidente; Ivone Mahumana, Secretária Geral e Teresa de Carvalho Ferreira, Secretária Geral-Adjunta.

A função principal da Continuadores era a de identificar as habilidades das crianças, através de uma observação permanente e participante, de modo a capitalizá-las, orientando-as para a vida adulta. Esta era, de facto, a visão que Samora Machel tinha para o enquadramento e projecção da criança, numa época caracterizada pelo definhamento do tecido social no país. Perseguindo princípios como “Formar o 205 Idem

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homem novo dando a partir da criança aquilo que ela quer” e “motivar para que a unidade nacional seja uma realidade através da escola”, a Continuadores teve várias realizações, entre as quais, formação de monitores, criação de redes de apoio, convívios e a adesão a dispositivos internacionais. São exemplos deste último aspecto, o facto de Moçambique ter sido um dos primeiros países na África Austral, a aderir, em 1984, à Declaração dos Direitos da Criança.206

Ao defender o postulado de que “as crianças são flores que nunca murcham”, Samora Machel demonstrou o seu olhar visionário, quanto a importância de se investir em crianças de tenra idade. Actualmente, volvidos pouco mais de duas décadas da criação desta Organização, dela brotou uma série de profissionais e dirigentes, entre eles médicos, professores, engenheiros, empresários e políticos.

Samora Machel com um grupo da Continuadores, numa sessão da Assembleia Popular.

206 Ivone Mahumana, entrevista 22/09/ 2011. Changalane.

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6. Samora Machel no Contexto da Luta Diplomática da FRELIMO

6.1. Os Primeiros Contactos Diplomáticos da FRELIMO e o Lançamento da Insurreição Geral Armada

“É pela diplomacia, pela discussão, pelo diálogo que deverão ser resolvidos os problemas que afectam a humanidade…”.

(Samora Machel)

Os movimentos nacionalistas que enveredaram pela luta armada para a libertação dos seus territórios contaram, na sua generalidade, com o apoio de alguns países independentes, para a fixação de escritórios ou retaguardas políticas e militares, e de corredores diplomáticos aos diversos níveis. Refira-se que, em termos conceptuais, para alguns teóricos, diplomacia é a arte e a prática de conduzir as relações exteriores ou negócios estrangeiros de um determinado Estado, empreendida, normalmente por diplomatas de carreira, envolvendo assuntos de paz, comércio exterior, promoção cultural207, entre outros.

Sem se pretender aprofundar o debate sobre este conceito do ponto de vista académico, considera-se que os dirigentes da FRELIMO, entre eles, Eduardo Mondlane e Samora Machel tiveram actuações diplomáticas, as quais se enquadram, em certa medida, nesta definição. Fazendo jus ao postulado, segundo o qual “é pela diplomacia, pela discussão, pelo diálogo que deverão ser resolvidos os problemas que afectam a humanidade”, Samora Machel, particularmente após a proclamação da Independência Nacional, enveredou por aquilo que 207 http://pt.wikipedia.org/wiki/Diplomacia.

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actualmente se convencionou chamar “Diplomacia Preventiva”. Esta corrente encontra suporte no pressuposto defendido pela FRELIMO, que preconiza que é preciso criar “mais amigos e menos inimigos”.

A diplomacia desempenhou um papel crucial desde a altura em que os movimentos começaram a tomar contornos políticos mais consequentes. Efectivamente, os movimentos que viriam a resultar na formação da FRELIMO desenvolviam as suas actividades, grosso modo, nos países vizinhos, onde contavam com o apoio de outras associações nacionalistas.

No que concerne à FRELIMO, esta Frente foi criada em Dar-Es-Salaam, em 1962, como resultado de acções diplomáticas. Aliás, foi a partir dos corredores diplomáticos das Nações Unidas, que Eduardo Mondlane e Julius Nyerere estabeleceram contactos visando, por um lado, a criação da FRELIMO e, por outro, a fixação da sua sede na Tanzania e, sobretudo, o uso das suas bases para as futuras Forças de Libertação de Moçambique.

Nesta altura, Nyerere terá exercido uma influência significativa em Mondlane, ao motivá-lo a abandonar o seu trabalho nas Nações Unidas e na Universidade de Siracusa, para se dedicar à libertação do seu povo da dominação estrangeira.

No seu I Congresso, em 1962, a FRELIMO definiu a campanha diplomática como uma forma de luta e de pressão contra a administração colonial portuguesa. Em face desta opção, sob a liderança de Mondlane, iniciou-se uma intensa campanha diplomática no seio das Nações Unidas. Igualmente, a Frente encetou contactos com os povos de África, Europa, América Latina e da Ásia, bem como com diversas organizações e forças progressistas amantes da paz.

Simultaneamente, a FRELIMO encetou contactos com o senador norte-americano Robert Kennedy, que foi solicitado para interceder junto de Portugal no sentido de conceder a independência, pacificamente, a Moçambique. Portugal recusou esta proposta. Apesar disso, a FRELIMO passou a contar com o apoio de organizações americanas,

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entre religiosas e filantrópicas. Uma delas foi a Fundação Ford,208 que viria a contribuír significativamente para o funcionamento do Instituto Moçambicano. Ao nível das Nações Unidas, foi possível, em 1963, o debate sobre a descolonização dos “territórios ultramarinos” de Portugal.

Esta luta contribuiu para que a FRELIMO passasse a ter legitimidade e reconhecimento internacional como um movimento que se empenhava pela libertação do seu povo do jugo colonial. Na sequência destes contactos, conseguiu-se angariar apoio importante para a Luta Armada, como equipamento militar, medicamentos e material escolar. Depois da morte de John Kennedy, em 1963, Mondlane estabeleceu um novo eixo estratégico de apoio a Luta Armada, tendo se orientado para outros cantos do Mundo. Nesta altura, vivia-se o auge da “Guerra Fria” e, procurando gerir esta situação, colocou-se numa espécie de Não-Alinhamento, aliás, um posicionamento tomado, igualmente, por Agostinho Neto, líder do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA).

A 25 de Maio de 1963, foi criada a Organização da Unidade Africana (OUA), em Adis-Abeba, na Etiópia. A nova organização continental vincou a necessidade da abolição da colonização dos povos africanos e, consequentemente, o direito à independência dos seus territórios. Uma das medidas tomadas por esta organização foi a criação do Comité de Coordenação para a Libertação de África, com sede em Dar-Es-Salaam. Encarregou-se a este Comité a responsabilidade de coordenar os recursos materiais e humanos dos países africanos já independentes e pô-los à disposição dos movimentos de libertação dos países que ainda se encontravam sob domínio colonial.

De facto, Eduardo Mondlane, acompanhado por alguns quadros da FRELIMO, realizou uma campanha com vista a angariar ajuda de várias instituições e Estados mundiais. Visitou a Escandinávia, a 208 A Fundação Ford é uma instituição filantrópica americana, criada em 1936 por Henry Ford e seu filho Edsel. Os cinco pontos fundamentais da estratégia da fundação ainda se mantêm, nomeadamente, a criação e desenvolvimento de outras instituições; a geração e disseminação de conhecimento e informação; o desenvolvimento de talentos individuais; o estimulo da ajuda de outras fontes, e contribuir de forma independente para a Diplomacia Pública.

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China, a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Suíça, Alemanha Federal, Holanda, Grã-Bretanha e países do norte de África, entre eles, Argélia, Tunísia e Egipto.209

A par da colaboração da Argélia, que treinou os três primeiros efectivos de guerrilheiros da FRELIMO, a China iria receber um grupo de moçambicanos, na Academia de Naquim. Parte deste grupo já possuía conhecimentos de guerrilha, tratando-se, neste caso, de uma especialização. Nos períodos subsequentes, o Egipto recebeu outro grupo, para formação em matéria de segurança e Israel, em 1964, em enfermagem militar. Do mesmo modo, a FRELIMO contava com o apoio da Jugoslávia e da ex-URSS em equipamento bélico e materiais não letais. Como resultado da sua diplomacia, foram criadas as condições para o desencadeamento da Insurreição Geral Armada contra o regime colonial, a 25 de Setembro de 1964.

Presidente Eduardo Mondlane e a sua esposa Janet Mondlane à chegada a Uppsala, Suécia, 1964.

209 Para mais detalhes, vide: Jesus, 2010.

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6.2. A Política Diplomática de Samora Machel Durante a Luta de Libertação Nacional

Dando continuidade à acção diplomática de Eduardo Mondlane, Samora Machel empenhou-se em consolidar as relações de solidariedade com os movimentos independentistas da região, como o ANC, a ZANU, a ZAPU e a SWAPO. Aliás, desde o seu I Congresso, a FRELIMO definiu a solidariedade com os povos e os movimentos “progressistas” de luta pela autodeterminação como uma das suas prioridades. A colaboração com estes movimentos era justificada, entre outros aspectos, pelo facto de possuírem uma causa semelhante, que era a independência dos povos e por razões geo-estratégicas, consubstanciadas na partilha de fronteiras comuns. Nessa altura, já se assumia a premissa segundo a qual a libertação da região passava, necessariamente, pela libertação de cada um dos países.

Uma das primeiras acções diplomáticas de Samora Machel, como Presidente da FRELIMO, foi a abertura em relação ao Vaticano. Tratou-se, essencialmente, de uma acção conjunta dos três movimentos de libertação das então colónias portuguesas em África, nomeadamente, a FRELIMO, o MPLA e o PAIGC. Os seus representantes foram recebidos pelo Papa, a 1 de Julho de 1970.210

Esta visita ao Vaticano pode ser analisada em duas dimensões. Num primeiro aspecto, a recepção da FRELIMO pelo Papa Paulo VI significava, pelo menos implicitamente, que o Vaticano apoiava a causa do povo moçambicano e o seu direito à auto-determinação. Num segundo sentido, sendo esta uma autoridade que tinha apoiado o regime colonial nos seus esforços de colonização e subjugação de outros povos, esta acção mostrava um certo distanciamento do Vaticano em relação aos seus anteriores aliados.

Samora Machel, em função do seu pragmatismo, apercebeu-se que este encontro teria, a curto e médio prazos, repercussões salutares para a FRELIMO, apesar do seu posicionamento, na altura, hostil em relação à Igreja Católica, devido às mencionadas mágoas de infância e, ainda, às ligações que esta tinha estabelecido com o regime colonial. A este respeito, Iain Christie sustenta o seguinte: 210 Christie, 1996.

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- “Embora Samora não tivesse boa impressão sobre a Igreja Católica, por um lado, resultante das suas experiências de infância e, por outro lado, resultante da permanente ajuda do Vaticano ao colonialismo português, ele não queria uma confrontação directa, pois a Igreja Católica já tinha uma influência considerável no país, daí o seu apoio à ideia de Marcelino dos Santos de se encontrar com o Papa. (…). Esta acção fazia parte de uma política estratégica, da diplomacia da FRELIMO, bem arquitectada desde o período de Mondlane até ao de Samora Machel. Esta política era designada por Samora de ‘política de fazer mais amigos e menos inimigos’, que visava reduzir a ajuda internacional ao inimigo”.211

A receptividade do Vaticano constituiu uma vitória para a FRELIMO. Efectivamente, durante as conversas, o Papa assegurou que a Igreja Católica apoiava a luta pela justiça, liberdade e independências nacionais. Outro elemento digno de realce deste encontro foi o facto de ter servido de encorajamento aos missionários católicos que se sentiam perturbados com a injustiça e a brutalidade do regime colonial, sem, contudo, poderem se pronunciar ou agir publicamente. Consequentemente, alguns padres brancos retiraram-se de Moçambique como forma de repúdio aos métodos de guerra e de repressão do Estado colonial.

Face a este posicionamento do Vaticano, surgiram duas situações que merecem atenção. Por um lado, agudizaram-se as inquietações no seio de alguns conservadores dentro da comunidade portuguesa, tendo-se sentido profundamente chocados. Este sentimento acabou resultando no esfriamento das relações entre o regime colonial português e o Vaticano. Por outro lado, alguns países, como os Nórdicos, compreenderam a justeza da luta e apoiaram a FRELIMO. As ajudas resultantes foram, sobretudo de material não letal. Sebastião Dengo, debruçando-se sobre os esforços diplomáticos da FRELIMO, em geral, e de Samora Machel, em particular, referiu o seguinte:

211 Obra citada

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- “Durante esta fase da luta pela independência, houve países que entenderam a causa da luta. Os países nórdicos, por exemplo, compreenderam a sua justeza e nos apoiaram. Porque alguns não podiam fornecer material bélico, então providenciavam outros bens, como medicamentos”.212

A primeira viagem de Samora Machel ao Leste europeu ocorreu em 1971. Nessa digressão, visitou Estados como a Roménia, República Federal da Alemanha (RFA) e a ex-URSS. Das negociações havidas, a FRELIMO considerou ter alcançado resultados substanciais, pois, aquelas contribuiram para o reforço do apoio daqueles países ao movimento.

Refira-se que, a nível do bloco socialista, a FRELIMO sempre se esforçou em ultrapassar as divergências que opunham a China e a ex-URSS. Chamando para si a herança diplomática de Mondlane, Samora Machel enveredou pelo não-alinhamento, tendo como farol a libertação do seu povo do jugo colonial. Neste sentido, Machel agiu diferentemente do que acontecia com certos países, que exploravam as clivagens entre os blocos ideológicos antagónicos em função das alianças com cada um deles. Diga-se de relance que a China procurava colaborar somente com os movimentos que eram seus seguidores político-ideológicos e, sobretudo, que não fossem pró-soviéticos. Nestas situações, os líderes da FRELIMO pautavam por não se envolver em diatribes ideológicas, mantendo um distanciamento respeitável, e, simultaneamente, gozando da simpatia de todas as partes. Sobre este posicionamento, diplomaticamente estratégico, Joaquim Chissano referiu o seguinte:

- “A FRELIMO evitou envolver-se desnecessariamente em conflitos ideológicos e, por conseguinte, respeitou a independência de cada povo. Facto interessante e como corolário da observância dos nossos princípios é que a FRELIMO não tomou nenhum partido no conflito ideológico que colocava em oposição a União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas (URSS) comummente chamada apenas de União Soviética, por um lado, e a República Popular da China, por outro. Nós, dirigentes da FRELIMO, observamos

212 Sebastião Dengo, entrevista de 25/05/2011. Cidade de Inhambane.

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equidistância e cooperamos com os dois. Agimos de tal forma que foi possível manter o apoio de ambos países até depois da proclamação da Independência Nacional.213

Joaquim Alberto Chissano

Neste quadro, Samora Machel214 efectuou, em 1971, uma digressão pelo Extremo Oriente, tendo visitado a China, a Coreia do Norte e o Vietname, acompanhado por Sebastião Mabote, Pedro Juma, Tomé Eduardo, Alberto Sande e Sérgio Vieira. Nestes territórios, a FRELIMO obteve ajuda diversa. No entanto, sabe-se que a China exigiu o conhecimento da realidade da luta em Moçambique, condição para o apoio à FRELIMO. Na sequência, um grupo de jornalistas chineses visitou as zonas libertadas, tendo constatado os avanços da luta de libertação. A partir desta verificação in loco, a FRELIMO conseguiu consolidar as suas relações com a China, o que resultou em ajuda sob várias formas. 213 isri:opiniao de joaquim chissano sobre diplomacia. acessado em 18/04/2011.214 De acordo com Raimundo Pachinuapa, o primeiro contacto de Samora Machel com as autoridades chinesas ocorreu em 1968, aquando de uma visita que este realizou àquele país, na companhia de outros cinco combatentes, dentre eles, Raimundo Pachinuapa, Cândido Mondlane e Oswaldo Tazama.

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Como se referiu anteriormente, a solidariedade com os movimentos independentistas foi assumida como uma prioridade pela FRELIMO. As relações foram mais notórias com o ANC, a ZANU e a ZAPU. No que se refere ao ANC, destaca-se a integração de seus militantes (cerca de seis) no contingente que seguiu para Argélia para a realização de treinos militares, sob a direcção de Samora Moisés Machel. Outro exemplo dos laços fraternos e salutares estabelecidos entre a FRELIMO e o ANC, foi o uso de Kassuende por este último como base de apoio, com o objectivo de se lançar uma ofensiva militar em território sul-africano. A este respeito, José Moiane, que foi comandante em Tete, durante a Luta de Libertação Nacional, pronunciou-se do seguinte modo:

- “Os elementos do ANC estiveram na base Kassuende a explorar as possibilidades de lançamento de uma intervenção militar a partir do nosso território. Nesse sentido, Kassuende iria funcionar como um centro de abastecimento em material bélico e equipamento diverso. De forma específica, permaneceram cerca de quatro meses, enquanto estudavam as entradas para a RSA através de Tete”.215

Entretanto, dado o elevado nível do poderio militar do regime do apartheid, na altura, aspecto associado ao facto de, no Zimbabwe, ainda prevalecer, igualmente, um regime minoritário, aliado à África do Sul, considerou-se inviável a infiltração de guerrilheiros do ANC. Desse modo, os esforços foram orientados, sobretudo, para a libertação do Zimbabwe, país que serviria, depois, de corredor para os guerrilheiros do ANC, uma estratégia que visava a conjugação de sinergias entre este movimento, a FRELIMO e os movimentos independentistas zimbabweanos. Neste quadro geo-estratégico, a FRELIMO criou facilidades para o desencadeamento de acções militares a partir do território moçambicano. Sobre esta matéria, José Moiane referiu:

- “As acções militares contra o regime do apartheid assim como os levantamentos populares eram barbaramente reprimidos, como ilustram os reveses sofridos pelo ANC na batalha de Wank, o que exigiria um elevado esforço militar para fazer frente ao regime. Por isso, entendeu-se que havia dificuldades para o lançamento dessa ofensiva e, eventualmente, reduzidas probabilidades de êxito.

215 José Moaine, entrevista de 2008. Maputo.

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Assim, concluímos que a independência do Zimbabwe, um terreno relativamente mais fácil, seria muito importante para o desenvolvimento da luta do ANC, partindo de Moçambique. Esta é a razão por que na última reunião que tivemos com eles, nós informámos que não estávamos a ver a possibilidade de iniciar a luta na RSA a partir de Tete, porque tinham que passar do Zimbabwe. Nessa altura o Zimbabwe ainda não estava independente e sofreriam sacrifícios desnecessários. Foi assim que os elementos do ANC interromperam as suas iniciativas e os esforços foram canalizados para os movimentos do Zimbabwe”.216

De facto, em finais de 1970, Marcelino dos Santos, à frente de um contingente de guerrilheiros da FRELIMO, escoltou militantes zimbabweanos, pertencentes ao Zimbabwe People’s Revolutionary Army (ZIPRA), com vista ao inicio da sua luta. No entanto, Joshua Nkomo, dirigente da ZAPU, rejeitou o apoio. Provavelmente, a atitude de Nkomo pode ser explicada, por um lado, pelos problemas internos que grassavam o país na altura e, por outro lado, pelo facto de a ZAPU possuir pouco apoio na região fronteiriça do Zimbabwe, junto a Tete.217 Em face desta situação, a FRELIMO estendeu a sua solidariedade à ZANU, outro movimento nacionalista zimbabweano. Neste contexto, ainda na década de 1970, a ZANU, através da Zimbabwe African National Liberation Army (ZANLA), iniciou ofensivas militares, fazendo um excelente aproveitamento da fronteira comum.

Em Agosto de 1972, Samora Machel deslocou-se a Lusaka onde se encontrou com o Presidente Keneth Kaunda. Na reunião havida entre os dois dirigentes, Samora Machel destacou que a ZANU era um movimento que merecia mais credibilidade e, portanto, não devia ser marginalizado.218 Esta campanha diplomática de Samora Machel integraria também o chefe de Estado da Tanzania. O objectivo de Samora era garantir um maior reconhecimento para este movimento ao nível dos Estados da região, de modo a canalizarem apoios nos mais diversos aspectos. O apoio fornecido pela FRELIMO a 216 José Moaine, entrevista de Maio de 2009. Cidade de Maputo.217 Christie, 1996.218 Christie, 1996.

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estes movimentos seria incrementado, significativamente, após a independência de Moçambique, manifestamente, através da afectação de contingentes militares e aderência às sanções económicas decretadas pelas Nações Unidas contra o regime minoritário da Rodésia do Sul, chefiado por Ian Smith.

6.3. A Política Diplomática de Samora Machel após a Proclamação da Independência Nacional

Desde a proclamação da Independência Nacional, a política diplomática de Moçambique foi influenciada, por um lado, pela conjuntura interna e, por outro, pelo cenário regional e internacional. No aspecto interno, destaca-se a necessidade da democratização da sociedade através da massificação dos serviços de educação, saúde, habitação, acesso à terra, entre outros, assente numa perspectiva de governação centralizada e de socialização do campo.

No aspecto externo, foi condicionada por alguns posicionamentos assumidos durante a Luta de Libertação Nacional, como a solidariedade com os movimentos anti-colonialistas e anti-imperialistas e sua orientação revolucionária, que o conotava com o bloco socialista, no contexto da Guerra Fria. De igual modo, Moçambique continuou a apoiar os movimentos de libertação da região, particularmente, o ANC e a ZANU, integrando assim, a luta contra o regime do apartheid e de Ian Smith, com os quais Malawi mantinha uma relação privilegiada. Desta maneira, Moçambique continuou a advogar a “neutralidade positiva” ou o não-alinhamento, uma estratégia da diplomacia preventiva.

Joaquim Chissano, debruçando-se em torno da política externa de Moçambique, apontou a conjuntura regional como tendo sido determinante para as opções tomadas, descrevendo o seguinte cenário:

- “A nível regional estávamos rodeados por regimes de segregação racial na Rodésia do Sul e África do Sul, dispostos a comprometer a nossa conquista. Cedo fomos chamados a

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aderir aos movimentos diplomáticos internacionais para o isolamento do regime minoritário da Rodésia, na sequência da proclamação unilateral da Independência daquela colónia britânica por Ian Smith em benefício unicamente dos Rodesianos de raça branca e completa exclusão e desrespeito dos negros”.219

Os posicionamentos assumidos por Moçambique foram confrontados com uma resposta agressiva do regime de Ian Smith e do apartheid. De facto, como reacção ao apoio dado à ZAPU, o regime de Ian Smith, através dos seus serviços secretos, iniciou, em 1976, o recrutamento de dissidentes moçambicanos, que viriam a constituir o Mozambique National Resistance (MNR), mais tarde conhecida por RENAMO. No mesmo período, criou uma estação radiofónica denominada “Voz da África Livre”220, que transmitia mensagens contra o Governo de Moçambique.221

Com o auxílio destes instrumentos, as Forças de Defesa e Segurança da Rodésia do Sul incrementaram os seus ataques a alvos socio-económicos e militares de Moçambique, com vista a desestabilizar o país. Acções de grande envergadura foram reportadas nas províncias de Tete, Manica, Sofala e Gaza, tendo resultado na morte de civis e na destruição de diversas infra-estruturas (pontes, linhas de transmissão de energia eléctrica, linhas férreas, etc.).

No que concerne à relação entre Moçambique e a África do Sul, refere-se que a independência do primeiro país, azedou as relações entre ambos, devido, por um lado, ao surgimento de mais um Governo de maioria negra na África Austral, o que era agravado por este nutrir a confiança do bloco socialista. Por outro lado, a animosidade do regime do apartheid era explicada pelo apoio de Moçambique aos membros do ANC. Tal situação conduziu ao lançamento, por parte do regime sul-africano, de acções de desestabilização contra Moçambique.

Durante este período, observaram-se na África do Sul, duas correntes em matéria de política externa para a região: a maximalista e a 219 ISRI: opinião de Joaquim Chissano sobre diplomacia. acessado em 18/04/2011.220 Voice of Free Africa (VOFA), do nome original inglês Também conhecida por “Rádio Quizumba”.221 Robinson, 2006.

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minimalista222. A primeira, defendida sobretudo no seio da South African Defence Forces (SADF), preconizava a realização de intervenções militares de vulto contra Moçambique, tanto por meio de acções directas, como através do reforço da capacidade combativa da RENAMO. Esta foi materializada pela Total National Strategy (Estratégia Nacional Total). A segunda defendia uma aproximação menos belicista, advogando que as intervenções militares deviam servir somente para submeter Moçambique à esfera económica da África do Sul, e, por via disso, garantir a sua dependência. Este posicionamento teve a sua formulação na Constelação de Estados (CONSAS).223

Nos anos 80, a desestabilização de Moçambique assumiu um carácter sistemático. As acções sul-africanas tornaram-se mais agressivas com a independência da Rodésia do Sul, actual Zimbabwe, em 1980, sob a direcção de Robert Mugabe. Nesta altura, o regime do apartheid atribuía todas as principais ameaças à segurança da África do Sul, ao facto de estar cercada por países de orientação socialista.224

Residências destruidas pelas tropas do regime do apartheid, na cidade da Matola, em 1981. Fonte: Revista Tempo.

222 Robinson, 2006.223 Robinson, 2006:119

223 Alguns dos exemplos dessas intervenções foram os ataques a Matola.

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Um golpe a esta tentativa foi dado pela criação da Southern African Development Coordination Conference (SADCC), em 1980, como contra-esquema de integração por parte dos Estados da Linha da Frente, que rapidamente frustou o novo regionalismo dominado pela África do Sul. Com a SADCC, surgiu uma proposta de cooperação económica que se dirigiu explicitamente contra a dominação económica do subcontinente pela África do Sul, e cujos objetivos de cooperação e coordenação de desenvolvimento foram vistos como parte integrante da luta contra o regime do apartheid. Mesmo com esta medida, a RSA continuou com as suas acções de desestabilização na região.

Apesar da acção repressiva e desestabilizadora do regime do apartheid contra o Governo de Moçambique, Samora Móisés Machel continuou de forma resoluta e com cometimento, a solidarizar-se e a apoiar os movimentos nacionalistas da região. De facto, o seu contributo para a luta do ANC ganhou um novo ímpeto, caracterizado pela fixação de escritórios, habitações e uma retaguarda segura, através da qual podiam ser organizadas acções de luta nacionalista. Porém, contrariamente ao tipo de ajuda prestada à ZANU, a FRELIMO não podia dar um apoio explícito ao ANC, sob o risco de ser interpretado como uma agressão a um Estado soberano. Sobre este aspecto, Mariano Matsinha, afirmou o seguinte:

- “Este entendimento, surgiu devido ao facto de a África do Sul ser um Estado independente e reconhecido pelas Nações Unidas, o que implicava a reformulação do tipo de apoio para esse tipo de luta, e Moçambique não queria parecer perante o mundo que estava a apoiar acções armadas dentro da África do Sul. Entretanto, o processo de infiltração de armamento era feito à revelia do governo moçambicano, pese embora as forças especiais de Moçambique tivessem informação da existência dessas acções”.225

No entanto, afigura-se pouco provável que se realizasse a infiltração do material de guerra sem que as autoridades moçambicanas estivessem a par das acções do ANC, dada a relação de cumplicidade 225 Macuácua, 1998.

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existente. Raimundo Pachinuapa226 considerou que, na prática, o relativo distanciamento das autoridades moçambicanas à introdução do material de guerra na África do Sul, era uma táctica que visava camuflar o relacionamento existente, até este nível de intervenção.

Com o agravamento da situação de instabilidade em Moçambique, Samora Machel compreendeu a necessidade de salvaguardar a integridade e soberania de Estado. Foi neste contexto, que encetou negociações com o regime do apartheid que culminaram com assinatura do Acordo de Nkomati, também designado de Não Agressão e Boa Vizinhança, em Março de 1984. Este acontecimento foi interpretado de outra maneira, o que levaria a equívocos mesmo no seio dos parceiros históricos da Linha da Frente, os quais se associaram ao entendimento de que se tratava de uma espécie de capitulação de Samora Machel perante o apartheid. No entanto, de acordo com a percepção e o pragmatismo de Machel, tratava-se de uma questão de sobrevivência do Estado moçambicano. Surgiam assim, duas correntes de análise que se podem qualificar de anti-samoriana e pró-samoriana.

A corrente anti-samoriana argumentava que, a partir do Acordo, o Governo de Moçambique deixava de ser militar em parceria com os outros governos da região, contra o regime do apartheid. Acrescentavam que isto significava que o ANC perderia o apoio da FRELIMO e, consequentemente, teria que abandonar o território moçambicano.227 Este aspecto não foi visto, obviamente, com entusiasmo no seio do ANC e da Linha da Frente. Esta percepção teria pesado bastante para que os líderes carismáticos da região, nomeadamente, Julius Nyerere e Keneth Kaunda, não participassem

226 Comunicação pessoal.227 No artigo terceiro do Acordo de Nkomati lê-se o seguinte: “As Altas Partes Contratantes (Governos de Moçambique e RSA) não permitirão que os respectivos territórios, águas territoriais ou espaço aéreo, sejam utilizados como base, ponto de passagem ou de qualquer outra forma por outro Estado, Governo, forças militares estrangeiras, organizações ou indivíduos que planeiam ou se preparem para levar a cabo actos de violência, terrorismo ou agressão contra a integridade territorial ou independência política da outra, ou que possam ameaçar a segurança dos seus habitantes”.

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no acto. Aliás, especula-se que mesmo no seio do Partido FRELIMO terá havido incompreensão face à assinatura do Acordo. Como refere Manghezi:

- “Embora para o Governo moçambicano o acordo se destinasse essencialmente a por termo à guerrilha da RENAMO, que ameaçava a continuação do regime da FRELIMO no poder, ao nível da cúpula deste partido nem todos aceitavam a ideia de Moçambique chegar a um entendimento com um regime condenado universalmente em face da sua política de discriminação racial (…)”.228

Dentre os defensores da corrente pró-samoriana distinguem-se, Sérgio Vieira e Armando Panguene229. O primeiro referiu que Samora Machel tinha consciência a respeito dos pretextos veiculados pelo regime do apartheid para agredir Moçambique. Nestes, figuram mensagens segundo as quais Moçambique era um regime belicista e a firmar-se como ponta de lança para eventuais agressões soviéticas contra a África do Sul. Com base nestes pretextos, a África do Sul estava a forjar uma legitimidade para efectuar ataques de grande envergadura e até nucleares contra Moçambique, com o apoio do Ocidente.230

No mesmo diapasão, Armando Panguene231 destacou que o acordo de Nkomati serviu, basicamente, para impedir que a África do Sul, potência que contava com o beneplácito de Ronald Reagan e de Margareth Thatcher, Presidente do EUA e Primeira-Ministra da Inglaterra, respectivamente, lançasse uma grande operação militar contra Moçambique. Aliás, é importante recordar que a ascensão de Reagan significou uma notável redução do apoio que este país providenciava a Moçambique, alegadamente devido à sua ideologia marxista.228 Manghezi, 2007.229 Combatentes da Luta Armada de Libertação Nacional e dirigentes políticos. Sérgio Vieira foi um dos participantes das negociações que conduziram a este Acordo. 230 Vieira, 2010.231 Armando Panguene, entrevista de 10/08/2011. Cidade Maputo.

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Armando Panguene

Apesar da assinatura deste Acordo, o regime do apartheid continuou com as acções de desestabilização. A título de exemplo, David Robinson indica que, a seguir ao acordo, a RENAMO intensificou as suas operações em várias regiões do país. Esta situação pode ter sido o resultado da flutuação da política interna na África do Sul, entre os minimalistas e os maximalistas. As violações de fronteira e do espaço aéreo, assim como o treinamento e o suprimento em equipamento militar à RENAMO continuaram, como demonstraram os documentos capturados na sua base em Gorongosa, em 1985.232

Samora Machel foi objecto de atitudes hostis protagonizadas pelo Presidente Kamuzu Banda, do Malawi, um aliado do regime do apartheid. Com efeito, Banda mantinha uma estreita colaboração com os regimes militaristas e segregacionistas da região, através da concessão de bases e acampamentos à RENAMO e uso do seu território para o lançamento de ofensivas militares contra Moçambique.233 Este posicionamento levou à reacção dos países da Linha da Frente, os quais, em 1983, pressionaram, através de um ultimato, o regime de Banda a limitar a sua colaboração com o apartheid, sob pena de se ver isolado, ao nível da região234.232 Robinson, 2006.233 Revista Tempo, nº 832, 21 de Novembro de 1986. Maputo. 234 Cabá, 1997.

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Não obstante o ultimato, Malawi não mostrou sinais de mudança, ao que Samora reagiu, insistindo em fóruns diplomáticos regionais sobre a necessidade de aquele país posicionar-se ao lado da Linha da Frente. Como forma de aumentar a pressão, Samora ameaçou encerrar a fronteira comum entre Moçambique e o Malawi. Consequentemente, a 26 de Setembro de 1986, o governo malawiano enviou a Maputo uma delegação chefiada por John Tembo, com vista ao relançamento das relações entre os dois países, tendo sido proposta a criação de uma Comissão Conjunta de Segurança de Alto Nível.235

A iniciativa do encontro representou um “recuo estratégico” do Malawi, pois a realidade no terreno se mostrava adversa, aspecto que terá contribuído para que Samora Machel ameaçasse posicionar mísseis contra o território malawiano. A despeito destas medidas, Samora admitia a possibilidade de prosseguir com as negociações, sobretudo, a nível multilateral e de se chegar a um entendimento sobre o diferendo.

No que concerne aos laços estabelecidos com os países de orientação socialista, Moçambique reforçou as suas relações com a China, Cuba, a República Democrática Alemã (RDA), o leste europeu, os nórdicos, entre outros. No entanto, na primeira metade da década de 80, Moçambique começou a ressentir-se de uma crise política e socioeconómica236, o que motivou uma tentativa de integração, sem sucesso, na Council for Mutual Economic Assistance (COMECOM). Como alternativa, o Governo de Moçambique decidiu efectuar um realinhamento na política externa, tendo iniciado negociações com o Ocidente, visando beneficiar-se de financiamento por parte das instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial)237.

Abrahamsson e Nilsson descrevem a reorientação da política externa como uma tentativa de “fazer mais amigos e menos inimigos”, aliás, um princípio da FRELIMO, seguido desde a Luta de Libertação Nacional. Considerava-se que era de importância fulcral ser amigo dos amigos do inimigo principal. Na prática, isso significava que 235 Mosse, 139.236 Refere-se ao recrudescimento do conflito armado e aos efeitos da seca, com efeitos nefastos para a economia.237 Terá pesado para o posicionamento de Moçambique o facto de as relações económicas terem-se mantido mais favoráveis do bloco Ocidental, do que do Socialista, desde a Independência do país.

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Moçambique devia desenvolver grandes esforços para melhorar as relações diplomáticas com os países ocidentais que tinham interesses na África do Sul. Esta estratégia produziu os seus primeiros frutos logo em 1983, quando Samora Machel fez uma visita oficial aos países mais importantes da então Comunidade Económica Europeia (CEE) e, pela primeira vez, visitou Portugal.238

Em 1985, Samora Machel visitou os Estados Unidos da América (EUA), no quadro dos seus esforços de alinhamento numa economia de mercado. Há informações de que esta visita teria sido facilitada por Margaret Tatcher, a partir da abertura que Machel teve em relação ao Ocidente e aos esforços para manter um clima de paz na região austral de África. Neste encontro histórico memorável, Samora emocionou Ronald Reagan pelo seu carácter extrovertido, pois, ao entrar na sala de audiência do Presidente americano, quebrou o protocolo, saudando-o de uma forma jovial e descontraída. Reagan ficou admirado e, sobretudo, entusiasmado com este carácter de Samora, o que, a partir de então, traria impacto positivo no relacionamento entre os seus Estados.239

Samora Machel, com Ronald Reagan, durante a visita aos EUA. Fonte: Sopa 2001.

238 Abrahamsson & Nilsson, 1994. 239 Armando Panguene, entrevista citada.

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7 . A Morte do Presidente Samora Moisés Machel

A morte do Presidente Samora Moisés Machel ocorreu a 19 de Outubro de 1986, vítima de acidente de aviação, quando o Tupolev 134A se despenhou em território sul-africano, na região de Mbuzini. As investigações sobre este acidente são, ainda, inconclusivas, o que tem dado espaço a várias especulações.

No entanto, existem indicações de se ter tratado de terrorismo de Estado, engendrado pelo regime do apartheid, pelo facto de existirem elementos susceptíveis de clarificar o cenário em que o acidente ocorreu. Entre os elementos evocados para a sua sustentação, destaca-se a conjuntura política regional, caracterizada pela “confrontação” entre os regimes moçambicano e sul-africano, já analisada em capítulos anteriores. Acrescenta-se a esta, a falaz alegação, segundo a qual, a tripulação não possuía experiência e que as licenças de voo eram falsas, ficando assim evidente que o avião tenha sido desviado, de forma intencional.

A conjuntura permite sustentar a tese do terrorismo de Estado, segundo a qual, o regime do apartheid preparou e executou a operação que culminou com o despenhamento do avião, vitimando a maior parte dos seus ocupantes. Como terá afirmado o único tripulante sobrevivente do acidente e engenheiro de bordo, Vladimir Novosselov, pelas circunstâncias em que o acidente ocorreu, tratou-se de um atentado, tendo em consideração a experiência do chefe da tripulação e as favoráveis condições atmosféricas:

- “ …estava convencido de que não foi acidente, mas um caso de armadilha, pois, o piloto Yuri Novodran tinha mais de 25 anos de experiência bem como os demais. O

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voo era normal, descolámos, apontámos a Maputo com o altímetro nos 11.400 metros. Foi pedida depois, a Maputo, a descermos para 10.600 metros. Foi pedida, depois, a Maputo a respectiva autorização para aterragem, concedida pelos serviços aeroportuários. As condições atmosféricas eram favoráveis. Maputo encontrava-se à nossa frente e um pouco para esquerda. À direita e relativamente próxima, a fronteira sul-africana. Descíamos agora lentamente. Altitude a 5.200 metros. Baixámos então para 3.000 metros, ainda a 133 km da pista de Maputo. O comandante Novodran desliga o piloto automático e toma o controlo manual do rumo. Um excelente comandante, bem como o navegador Kudriachov e o operador da rádio, Choulipov, com mais de 14.000 horas de voo. Nunca conheceram comandante com mais calo que Novodran. Descemos para baixo dos 1.000 metros. A última coisa que me lembro no painel de instrumentos é da leitura do altímetro nos 970 metros”.240

Destroços da aeronave 134A. Fonte: CDSM.

240 Oliveira, 2006:355.

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Refira-se que, apesar de o Tupolev ter penetrado numa zona militar e operacional do espaço aéreo sul-africano, restrita e sob vigilância de radar 24 horas por dia, com um sofisticado sistema de defesa computarizado, o sistema de radar Plessey AR-3D, não foi emitido qualquer aviso de que a aeronave estava fora do curso e a penetrar no espaço aéreo da África do Sul. Igualmente, não houve nenhum alerta que mostrasse a perigosidade das montanhas a que o avião se aproximava. Portanto, nenhuma acção preventiva foi efectuada no sentido de impedir o incidente, por parte do Governo sul-africano.241

Há indicações segundo as quais, na verdade, o avião presidencial foi seguido pelos radares da África do Sul, a centenas de quilómetros, a partir do espaço aéreo zambiano. Sérgio Vieira, num artigo de opinião, citou o comandante da Força Aérea Sul-Africana, que teria afirmado que os radares daquele país tinham acompanhado a navegação aérea do aparelho. Um outro dado que permite associar o regime do apartheid ao acidente, foi a interferência de Pik Botha, então Ministro dos Negócios Estrangeiros nas investigações levadas a cabo para apurar a real causa do acidente. Aliás, para aquele regime, a única causa plausível que explica o incidente, é a incompetência da tripulação. Cabrita referiu o seguinte:

- “Sérgio Vieira num artigo de opinião citou o Comandante da Força Aérea Sul-Africana, afirmando que os seus radares tinham acompanhado o avião presidencial desde Mbala bem como os helicópteros e aviões de busca. Outro ponto apresentado por Sérgio Vieira seria o facto de que a caixa negra analisada em Pretória indicava que o rumo do avião estava a ser ditado pelo VOR, porém, quando a comissão quis identificar o VOR, a África do Sul, unilateralmente deu por encerrado o inquérito, declarando que o acidente tinha sido causado por incompetência e desleixo dos pilotos”.242

241 Oliveira, 2006.242 Cabrita: 29/10/95.

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Urna contendo os restos mortais do Presidente Samora Machel. Fonte: CDSM.

No que se refere à interferência de Pik Botha, este tomou a iniciativa de entregar às autoridades moçambicanas a documentação da aeronave sinistrada, à revelia dos preceitos que regem as comissões que investigam acidentes de aviação, desautorizando, deste modo, a Comissão de Inquérito.243 Botha tinha, igualmente, contribuído para a evacuação do mecânico de bordo, do hospital onde se encontrava, assim como a remoção dos cadáveres para Maputo. Tal medida retirava alguns dados importantes que pudessem permitir uma investigação mais conclusiva.

Um outro sobrevivente do despenhamento do Tupolev é Fernando Manuel João “Rendição”, o chefe da Guarda Presidencial. Após a queda do aparelho, este conseguiu sair do local e procurar socorro nas proximidades. Por volta da meia-noite, conseguiu contactar a polícia de Komatipoort, informando-a sobre o acidente. No entanto, o 243 Papenfus, Theresa. “Pik Botha and His Times”. In: www.canalmoz.com. Acessado em 24/01/2011.

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Governo Moçambicano, só às 6:50 horas da manhã seria oficialmente informado do desastre pelas autoridades sul-africanas, volvidas pouco mais de dez horas depois da queda da aeronave. Aliás, tinha sido inicialmente veiculada a informação segundo a qual o avião havia se despenhado na região do Natal e não na zona de Mbuzini. Estas informações, totalmente desencontradas, teriam, em grande medida, dificultado a pronta intervenção das autoridades moçambicanas. Neste sentido, pode-se perceber o depoimento de Pedro Almeida, segundo o qual, após a chegada da tropa do regime do apartheid ao local, a sua preocupação não se centrou em providenciar os primeiros socorros às vítimas, mas sim, identificar e recolher a documentação que seguia a bordo:

- “Houve gente que pereceu por falta de assistência. Foi triste ver a polícia sul-africana em cena, a revolver a papelada, a recolher a documentação e a não tratar dos feridos que gemiam”.244

Após o incidente de Mbuzini, foi constituída uma Comissão Nacional de Inquérito, que viria a integrar a Comissão Internacional de Inquérito. Dos relatórios elaborados por estes grupos de peritos, Moçambique recusou as conclusões a que a Comissão de Inquérito Tripartida ou Internacional tinha chegado, que apontava como causa principal do acidente, a negligência da tripulação. Deste modo, para Moçambique, o que explica o acidente é a acção sul-africana, portanto, terrorismo de Estado, perpetrado pelo regime do apartheid. Armando Emílio Guebuza, actual Presidente de Moçambique, tem vindo a reiterar, tanto em fóruns nacionais como internacionais, esta tese. O estadista moçambicano, num comício realizado na Cidade de Xai-Xai, afirmou o seguinte:

- “Samora Machel foi barbaramente assassinado pelo regime do Apartheid, nas colinas de Mbuzini, em território sul-africano”.

244 Mosse & Fauvet, 2008.

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Armando Emílio Guebuza

De Mbuzini, o corpo de Samora Machel foi transportado para a cidade de Maputo. O velório decorreu na sala dos grandes actos do Conselho Municipal de Maputo, sob a orientação de Marcelino dos Santos. A morte de Samora colheu de surpresa toda a população moçambicana. A tristeza sobre esta perda ficou plasmada nas faces das pessoas, que, lúgubres, acompanharam o velório ou saíram à rua para prestar a última homenagem ao Marechal Samora Moisés Machel.

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Graça Machel, acompanhada por familiares e membros do Governo, chorando junto à urna de Samora Machel. Fonte: CDSM.

Em seguida, os restos mortais foram transportados para a Praça dos Heróis Moçambicanos, tendo sido depositados na cripta, ao lado dos outros heróis nacionais, seus pares, que se distinguiram na libertação do povo moçambicano e defesa da pátria. Marcelino dos Santos, no último adeus a Samora Machel, pronunciou-se nos seguintes termos:

- “Juramos construir o Moçambique que sonhaste, o país desenvolvido e próspero, a pátria socialista moçambicana; são nossos os teus sonhos, é nossa a tua luta. Camarada Presidente, chegou o momento mais difícil para todos nós, o momento da despedida. Mas à terra entregamos apenas o teu corpo. Nunca te diremos adeus, um povo não pode despedir-se da sua história. Samora vive. A Luta Continua. A Luta Continua. A Luta Continua”.

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Agentes das Forças de Defesa e Segurança chorando a morte de Samora Machel.

Populares no funeral de Samora Machel.

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Lista de Entrevistados

Abílio Salomão, Cidade de Inhambane,Alberto Chipande, Maputo, Alfredo José Njote, Chilembene,Armando Panguene, Maputo,Dinis Chambal, Xiguidela,Ernesto Obrigado Langa, Chilembene,Fanuel Daniel Chambal, Chilembene,Gabriel Simbine, Maputo, Gideão Simão Cossa, Chilembene,Josefate Moisés Machel, Maputo, Joshua Tchambale, Chilembene,Júlio Rafael, Cidade de Inhambane,Ivone Mahumana, Maputo,Martinho Paulo Cossa, Chilembene,Matias Mboa, Maputo,Media Samuel Cossa, Chilembene, Nemias Mundjoi, Chilembene, Noé Alberto Macamo, Chilembene,Ntewani Machel, Maputo, Orlando Machel, Chilembene, Ornila Machel, Chilembene, Raimundo Pachinuapa, Maputo,Raul Marcos Cossa, Chilembene,Romão Xinguemane Tchaúque, Chilembene,Salésio Nalyambipano, Maputo, Salomão Mário Chambal, Chilembene, Salvador M’tumuke, Maputo, Salvador Zawangoni, Maputo, Sorita Tchaiakomo, Ilha de Inhaca, Valemo Simione Cambaco, Chilembene,Zacarias Khupela, Tanzania.

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