LIVRO_Educacao1

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SINAIS DO FUTURO NO PRESENTE Coletivo Educ-ação

Transcript of LIVRO_Educacao1

  • SinaiS do futuro no preSente

    Coletivo educ-ao

  • Coletivo Educ-ao

    andr Gravat

    Camila piza

    Carla Mayumi

    eduardo Shimahara

  • COLETIVO EDUC-AOSo paulo Sp Brasil

    Capa alice Vasconcellos e Manuela novais (projeto grfico), andreia Marques (ilustrao) Projeto grfico alice Vasconcellos e Manuela novaisIlustraes alice Vasconcellos e Juliano augusto Edio e reviso Lorena Vicini, renan Camilo e thase Macdo (prova3 agncia de Contedo), elidia novais e Luis Ludmer.Diagramao Luiza Libardi (prova3 agncia de Contedo)

    Voc tem a liberdade de: Compartilhar Copiar, distribuir e transmitir a obra.Remixar Criar obras derivadas.

    Sob as seguintes condies:Atribuio Voc deve creditar a obra da forma especificada pelo autor ou licenciante (mas no de maneira que sugira que estes concedem qualquer aval a voc ou ao seu uso da obra).Uso no comercial Voc no pode usar esta obra para fins comerciais.Compartilhamento pela mesma licena Se voc alterar, transformar ou criar em cima desta obra, voc poder distribuir a obra resultante apenas sob a mesma licena, ou sob uma licena similar presente.Renncia Qualquer das condies acima pode ser renunciada se voc obtiver permisso do titular dos direitos autorais.

    Cip-BraSiL. CataLoGao na fonte

    V899

    Volta ao mundo em 13 escolas / andr Gravat... [et al.]. So paulo : fundao telefnica : a. G., 2013 288 p. ; 16 cm

    outros autores: Camila piza, Carla Mayumi e eduardo Shimahara iSBn 978-85-60195-29-9

    1. educao finalidades e objetivos. 2. educao multicultural. 3. Sociologia educacional. i. piza, Camila. ii. Mayumi, Carla. iii. Shimahara, eduardo.

    Cdd 370.117

    Catalogao elaborada por antonia pereira CrB-8/4905

  • Palavras iniciais

    A Fundao Telefnica Vivo nasceu da vontade de levar muito mais que comu-nicao s pessoas. Nasceu para melhorar a qualidade de vida de crianas e jovens usando aquilo que o Grupo Telefnica tem de melhor: tecnologias. Atuante no Bra-sil desde 1999, nosso compromisso impactar de forma positiva a vida de milhares de pessoas. Alm do Brasil, a Fundao Telefnica est presente em 16 pases.

    Buscamos fazer isso de forma inovadora: atravs da colaborao entre pessoas e instituies. Antecipamos as tendncias sociais e o desenvolvimento de novas tec-nologias, aplicando-as aos nossos programas e iniciativas em quatro reas: Combate ao Trabalho Infantil, Educao e Aprendizagem, Inovao Social e Voluntariado.

    Na rea de Educao e Aprendizagem temos o compromisso de gerar novos modelos educacionais e validar metodologias de aprendizagem com tecnologias que contribuam para a alfabetizao plena e o desenvolvimento das competncias do sculo 21. E foi neste contexto que a pesquisa proposta pelo Educ-ao: Volta ao mundo em 13 escolas, despertou nosso interesse, e com muito orgulho apoia-mos a realizao desta publicao.

    O livro Volta ao mundo em 13 escolas nasceu de um sonho compartilhado por um coletivo de pessoas: Andr Gravat, Camila Piza, Carla Mayumi, e Eduardo Shimahara. Em busca de histrias inspiradoras com novos olhares para a educa-o contempornea, eles visitaram nove pases em cinco continentes. Os 13 espa-os de aprendizagem visitados representam parte das iniciativas que hoje esto reinventando a educao e, pouco a pouco, trazendo para o centro das discusses valores como autonomia, cooperao e felicidade.

    Este livro mais do que o registro de iniciativas, uma plataforma para esti-mular mudanas prticas na educao. No h frmulas mgicas espalhadas pelos captulos, mas sim histrias e perguntas para que o leitor se inspire e se questione.

    Ns, da Fundao Telefnica, acreditamos no conhecimento como base de toda interveno de qualidade. Esperamos que as experincias relatadas aqui possam ajudar a criar e fortalecer uma nova e significativa educao para o sculo 21.

    Franoise TrapenardPresidente da Fundao Telefnica Vivo

  • Palavras para instigar a curiosidade

    Meu primeiro contato com alguns dos autores do Volta ao mundo em 13 esco-las foi por meio da pesquisa Sonho Brasileiro, que me chamou ateno pela inova-o na metodologia, apresentao e contedos produzidos.

    Assim, quando soube desse projeto, no tive dvidas em apoi-lo e procurei acompanhar o processo de viagens e descobertas.

    Como educadora, encantou-me o fato de jovens profissionais de outras re-as se mobilizarem em torno do tema educao com o desejo de descobrir novas formas de organizao de escolas, novos conhecimentos e formas de ensinar que estivessem mais consoantes com suas concepes de mundo e com os desafios do sculo 21.

    So vrias as possibilidades de leitura do livro, mas em todas elas o leitor em-barca em uma viagem pelos cinco continentes, guiado por concepes acerca da educao.

    Nas falas, atitudes e projetos, possvel perceber as nuances, especificidades e diferenciaes entre eles. No entanto, me chamou muito a ateno que algumas caractersticas so comuns a todas as experincias e metodologias relatadas: criati-vidade, autonomia, curiosidade, empreendedorismo, empoderamento, diversidade dos espaos de aprendizagem, dilogo, convivncia, confiana, respeito mtuo e de-senvolvimento pessoal.

    Nas experincias educativas apresentadas, possvel perceber que conhecimen-to e informao esto sempre relacionados com a realidade, com a experincia, com as ambiguidades e incertezas do mundo contemporneo. E, principalmente, que o erro uma forma de aprendizagem.

    Finalmente, me emociona o fato de que sonhos e esperana no futuro so parte integrante dessa viagem por escolas ao redor do mundo, e que podero ser compar-tilhados com todos os leitores deste livro.

    Maria Alice SetubalPresidente dos conselhos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educao,

    Cultura e Ao Comunitria (Cenpec) e da Fundao Tide Setubal.

  • SUmRIO

    embarque 7

    Mltiplas possibilidades de jornada dentro da jornada 17

    1. CieJa Campo Limpo 28

    2. amorim Lima e politeia 44

    3. CpCd 64

    4. escuelas experimentales 84

    5. Quest to Learn 100

    6. north Star 116

    7. Yip 134

    8. team academy 151

    9. Schumacher College 169

    10. Sustainability institute 185

    11. riverside School 199

    12. Green School 217

    ensaios 234

    desembarque 263

    agradecimentos 279

  • 7Volta ao mundo em 13 escolasEmbarque

  • 8Volta ao mundo em 13 escolasEmbarque

    Um sonho comum, uma jornada coletiva, um desafio compartilhado

    Em uma tarde de sbado, 15 amigos se encontraram em um escri-trio em So Paulo. Um chamado unia o grupo. Eduardo Shimaha-ra mais conhecido como Shima , 41 anos, convidou seus amigos para partilhar sonhos. Na mesa, havia sucos, canetinhas e cartazes para anotaes. Shima preparou uma apresentao com imagens e vdeos para ilustrar seus pensamentos sonhos individuais que se tornavam coletivos. Um dos seus sonhos, alis, era a criao de um livro sobre iniciativas inovadoras de educao. Ao compartilhar aquilo que o mo-via, Shima estimulava os amigos a repensar as prprias aspiraes. Ele sentia uma frio na barriga, e ao mesmo tempo uma grande esperana de que aquilo faria sentido.

    Na poca, Shima era diretor de sustentabilidade e inovao de um gru-po de universidades em So Paulo e Minas Gerais, com milhares de alunos. Ele costumava chegar em salas de aula lotadas e perguntar: Por que vocs escolheram o curso que esto fazendo?. Desafiado pelas respostas, que pa-reciam tocar apenas a superfcie das motivaes de cada um, Shima passou a se perguntar se existem outros modelos de escola alm dos tradicionais.

    Em busca de respostas, deparou-se com experincias inspiradoras em inmeros pases. Ento, naquela tarde de sbado, perguntou aos ami-gos: E se escrevssemos um livro sobre uma jornada de educao pelos cinco continentes?. Ao final do encontro, Shima citou versos do poeta irlands William Butler Yeats:

    Espalhei meus sonhos sob seus ps Caminhe delicadamente, porque voc caminha sobre meus sonhos.

    Sentadas mesa, trs daquelas pessoas ainda no sabiam, mas iriam fundar, junto a Shima, o Coletivo Educ-ao que trouxe este livro existncia. Andr Gravat, Camila Piza e Carla Mayumi conectaram-se com a proposta de Shima imediatamente. Por coincidncia, alguns dias antes, Andr e Carla haviam criado um arquivo on-line para comparti-lhar referncias sobre educao inovadora.

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  • 9Volta ao mundo em 13 escolasEmbarque

    Aquele encontro que trouxe tona as inquietaes de cada um. Ca-mila, 32 anos, formou-se em psicologia e especializou-se em mediao de conflitos; sempre interessada em escutar histrias de vida, se encanta pelo encontro entre os temas da criatividade e desenvolvimento humano. Carla, 43 anos, me de dois filhos uma garotinha de 4 anos e um rapaz de 19 , empreendedora e ativista da educao, alm de participar de um grupo de tric; no cansa de se perguntar como so os modelos de edu-cao que valorizam os sonhos das pessoas. Andr, 23 anos, estudou em escolas pblicas, formou-se em jornalismo, colabora para diversas revistas e se arrisca pelo caminho da fico literria; eternamente incomodado pela desigualdade social e entusiasmado com o potencial do coletivo para modificar a sociedade. Shima, formado em engenharia mecnica, mudou de rumos e se tornou um educador que instigava seus alunos universi-trios a encontrar os propsitos que guiavam suas decises; hoje estuda sustentabilidade na frica do Sul, onde mora com sua filha Zoe, 4 anos.

    Os demais convidados para a conversa daquela tarde no participaram da formao do coletivo por estarem envolvidos em outros projetos, no entando colaboraram com o pontap inicial e os passos que se seguiram.

    Devido histria coletiva que catalisou a criao deste livro, os re-latos sero feitos na primeira pessoa do plural. Ns vamos caminhar com voc por uma jornada repleta de insights ou clares, como diria o educador mineiro Tio Rocha. Ns vamos compartilhar o que de mais inspirador encontramos pelo caminho percorrido. Espalharemos sob os seus ps uma infinidade de sonhos, ideias e paixes.

    Sonhos de educao. E educao, para alm da escola, escolha do mundo que queremos no presente, dos saberes que valorizamos, do fu-turo que sonhamos. Educao a ao de criar, nutrir, cultivar. culti-var o ato de aprender. No livro Como as crianas aprendem, o educador norte-americano John Holt conta:

    Uma criana faminta, mesmo no caso de um bebezinho que experi-menta a fome como uma dor real, vai parar de comer ou de se ama-mentar se algo interessante acontecer, porque vai querer ver o que est acontecendo. Essa curiosidade, esse desejo de extrair algum sentido das coisas, vai direto ao corao do tipo de criaturas que ns somos.

  • 10

    Volta ao mundo em 13 escolasEmbarque

    O que nos moveu durante o perodo de quase dois anos nos quais de-senvolvemos este livro foi a curiosidade. Em vez de uma tese acadmica, escrevemos um livro-reportagem repleto de histrias. Antes da pesqui-sa, observvamos da varanda estrelas brilhando, e queramos nos apro-ximar para entender a natureza daquelas luzes, para investigar a origem de sua intensidade. Na nossa jornada, percebemos que a luz que nos chamou ateno era ainda mais forte de perto.

    DiversidadeNosso objetivo no desfiar teorias sobre educao, menos ainda

    apontar frmulas mgicas para mudar as escolas brasileiras. Nosso foco est nas pessoas que tecem as redes de convivncia e espaos que visita-mos, no aspecto social que se movimenta. Em vez de abordar a crise na educao com os preconceitos que inevitavelmente carregamos, nosso coletivo se despiu das certezas para ser preenchido por histrias que ampliassem nossos horizontes. A nossa pesquisa um manifesto positi-vo, que observa o lado cheio do copo em busca dos sinais do futuro no presente como o amanh feito de um material chamado hoje, legiti-mar o futuro que est no presente cultivar o que j existe de promissor.

    Escolhemos visitar no apenas escolas de ensino bsico, mas tambm faculdades e organizaes de aprendizagem. Cada um desses espaos tm pelo menos trs anos de existncia, ou seja, j carregam um histrico. Cada um se relaciona diretamente com o principal critrio de seleo definido por nosso coletivo: a diversidade. Da escola no Capo Redondo, na peri-feria de So Paulo que no fecha seus portes at a escola na Indon-sia, onde alunos do mundo inteiro aprendem em aulas que estimulam a aprendizagem com todos os sentidos.

    Temas como empreendedorismo, jogos, sustentabilidade, cultura e arte so os fios condutores de cada um dos captulos. Ao escolhermos a diversidade como o corte transversal, propomos que se imagine um mundo em que diferentes metodologias e abordagens convivam para-lelamente, onde a linearidade dos caminhos substituda pela sinuo-sidade da criatividade.

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  • 11

    Volta ao mundo em 13 escolasEmbarque

    A derrubada das paredes invisveisA primeira escola que visitamos fica em So Paulo. Durante as pes-

    quisas, descobrimos vrias iniciativas brasileiras que mereciam ser re-tratadas no livro. Escolhemos quatro exemplos bastante simblicos de mudanas significativas na educao contempornea: uma escola pbli-ca que experimentou colocar em prtica sua autonomia pedaggica ao quebrar, literalmente, algumas das suas paredes; uma escola particular que instiga os alunos a estudar temas pelos quais se interessam; uma escola pblica para jovens e adultos, com aulas em que pessoas de todas as idades estudam juntas; e, por fim, uma instituio onde as crianas so alfabetizadas enquanto preparam biscoitos. Com essas experincias por perto, j passou da hora do Brasil perder a sndrome do vira-lata e comear a valorizar as experincias com raiz nacional.

    Alm disso, no podemos ignorar que vivemos em um mundo cuja diversidade cultural deve mais nos unir do que afastar. Visitando a n-dia, Argentina, Inglaterra, frica do Sul, entre outros pases, percebemos que, por mais avanado que um sistema educacional possa ser conside-rado em relao a outro, as mesmas questes humanas e essenciais nos unem, sendo uma delas bastante clara: qual o propsito da educao? A escolha por buscar inspirao tambm fora do Brasil se pautou na necessidade de derrubar as fronteiras para conectar as iniciativas. O mo-mento em que vivemos anseia pelo fortalecimento de redes e platafor-mas que, hoje, operam isoladamente. A conexo dos pontos dispersos o elemento catalisador das mudanas.

    A estadia em cada escola durou em mdia cinco dias. Para buscar mltiplas perspectivas, entrevistamos professores, alunos, ex-alunos, pais e fundadores. Observamos aulas, participamos de reunies inter-nas. Distantes de um olhar teorizador e catalogador, nosso foco era entender a rotina e, ainda mais, captar a atmosfera do lugar, dos princ-pios que movem as aes. Ora observamos como estudantes, ora como educadores ou com um olhar de pai e me.

  • 12

    Volta ao mundo em 13 escolasEmbarque

    Os princpios vo aos quatro cantos do mundoCada iniciativa que abordamos nasceu em contextos bastante par-

    ticulares, e exatamente por isso so relevantes por respeitarem suas condies locais. Contaremos histrias de espaos de aprendizagem que valorizam seus contextos sociais para responderem aos seus desafios. De escolas que so organismos vivos em constante mutao, que se alimen-tam do entorno, que respeitam a diversidade.

    As prticas realizadas podem ser diferentes, mas h vrios princ-pios em comum levados a srio a autonomia, a cooperao e a susten-tabilidade so alguns deles. Quando temos princpios, eles viajam. Os princpios vo aos quatro cantos do mundo, comentou Rachel Lotan, diretora da Escola de Formao de Professores de Stanford (STEP), em um seminrio sobre formao de professores realizado na Universidade de So Paulo (USP).

    O valor dos princpios s vem tona quando os praticamos. Pilar Lacerda, educadora e ex-secretria de Educao Bsica do Ministrio da Educao (MEC), tem uma histria engraada nesse sentido. Ela conta que o princpio da autonomia aparece na maioria dos planos pedag-gicos brasileiros, que visam formar cidados crticos e ativos, mas ra-ramente esses planos so respeitados. Quando ela visitava escolas, uma cena se repetia: o tal cidado crtico sempre se encontrava na sala da diretora, sendo repreendido por sua capacidade de crtica e subverso. Os espaos de aprendizagem deste livro consideram seus princpios como o ar que respiram, exercitam seus propsitos na rotina. As experi-ncias que abordamos so exemplos de iniciativas que, mesmo com suas fragilidades afinal, no so perfeitas , buscam no se cristalizar, no cair na mesmice, no se corromper com a mornido.

    O desafio compartilhadoO sistema educacional brasileiro um gigante: h aproximadamente

    51 milhes de alunos na educao bsica, do ensino infantil ao ensino mdio, somando escolas pblicas e privadas, em dados do Censo Escolar 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE). Esse nmero corresponde populao de cinco Sucias, um dos pases que

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  • 13

    Volta ao mundo em 13 escolasEmbarque

    visitamos. H quase 200 mil escolas no pas, sendo que 84,5% dos alunos esto matriculados em escolas pblicas, com os outros 15,5% em insti-tuies privadas. Os jornais alardeiam que 8,6% dos brasileiros so anal-fabetos; outros 20,4% so considerados analfabetos funcionais, ou seja, no compreendem o que leem o que revela a Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (Pnad) de 2011, divulgados pelo IBGE. Existem escolas brasileiras que no tm nem mesmo espaos fsicos dignos para alunos. E no podemos nos esquecer das transformaes que se deram no mundo na expanso de possibilidades promovida pela internet, por exemplo. Para Pilar Lacerda, um dos desafios brasileiros dar conta, ao mesmo tempo, de demandas dos sculos 19, 20 e 21. Do espao fsico, do analfabetismo e da reinveno da sala de aula.

    At os nmeros nos relembram que as instituies so, essencialmen-te, grupos de pessoas. Alis, este livro s existe por causa de uma fora que envolveu diferentes grupos de apoiadores. Inicialmente, investimos parte do nosso dinheiro no projeto sem almejar retorno, e contamos com a doao de uma amiga, uma pessoa fsica que acreditou no nosso sonho. Depois, criamos uma campanha de financiamento coletivo na internet, no site Catarse.me, e exatas 566 pessoas contriburam com a gente, totali-zando uma arrecadao de 56 mil reais.

    Assim, falamos em nome do Coletivo Educ-ao e de mais uma rede de centenas de pessoas que acompanharam nosso blog e criaram esse projeto com a gente. Este livro um smbolo de um desafio coletivo glo-bal: para trabalharmos juntos, precisamos encontrar os pontos que nos unem, os propsitos que nos colocam na mesma mesa. No desenvolve-mos um projeto para reforar o valor dessa ou daquela teoria, no esta-mos defendendo uma linha pedaggica. Queremos, na verdade, mostrar que h pontos em comum em projetos inovadores, os quais indicam uma direo promissora, que talvez faa germinar sociedades mais saudveis.

  • 14

    Volta ao mundo em 13 escolasEmbarque

    A polinizao de ideiasDisparar uma infinidade de perguntas e inquietaes um dos ob-

    jetivos deste livro. E se a educao formal e informal andassem de mos dadas? E se as pessoas aprendessem fazendo? E se a criatividade fosse mais valorizada durante os processos de aprendizagem? E se as relaes entre professores e alunos no fossem to hierrquicas? E se aprender e brincar se tornassem sinnimos? E se voc pensasse nos seus prprios e se? Todos somos criadores de realidades e, para afirmarmos essa capacidade, fundamental questionarmos que futuro que almejamos fomentar. fundamental interrogarmos as razes do nosso prprio pen-samento.

    A partir daqui, a sua jornada pelas 13 escolas se inicia. Um cardpio de opes se abrir sua frente. Respire fundo e solte os cintos, para que voc possa caminhar conosco pelos espaos e ouvir algumas das histrias que ouvimos. Escrevemos um captulo para cada uma das es-colas pesquisadas, com exceo do captulo 2, que descreve duas escolas com abordagens pautadas em pedagogias democrticas. Em seguida, apresentamos um conjunto de ensaios sobre o propsito e o futuro da educao, escritos pelos pensadores e fazedores Dale Stephens, Fritjof Capra, Howard Gardner, Jos Pacheco, Maria Vilani e Lia Diskin. Por fim, est a seo Desembarque, dedicada aos clares e conexes que despontaram na jornada.

    A misso deste livro polinizar ideias e olhares. um convite para que voc sonhe com a gente, como props Shima na gnese de tudo. Um convite para sonhar com processos que geram mais cooperao do que concorrncia, com uma diversidade de caminhos inspiradores na rea da educao.

    Ns acreditamos no potencial da educao para redescobrir a feli-cidade e exercitar a capacidade de sonhar. Nossa jornada agora ganha concretude em um livro com licena aberta, para que estas ideias se es-palhem pelos mil cantos do mundo.

    Andr Gravat, Camila Piza, Carla Mayumi, Eduardo ShimaharaColetivo Educ-aowww.educ-acao.com

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  • SuciaYouth Initiative Program (YIP)um curso para jovens encontrarem suas paixes e explorarem o tema do empreendedorismo social

    ndiaRiverside School uma escola para crianas e jovens se tornarem a mudana que querem ver no mundo

    IndonsiaGreen Schooluma escola para entender a sustentabilidade com os cinco sentidos

    frica do SulSustainability Instituteum instituto e ecovila que busca a transdisciplinaridade na teoria e na prtica

    Nossa jornada

    13 espaos de aprendizagem / 9 pases / mais de 300 conversas

    InglaterraSchumacher Collegeuma faculdade para aprender sustentabilidade por meio da experincia

    EspanhaTeam Academy um curso para aprender e desaprender empreendedorismo na prtica, com clientes reais e projetos realizados mundo afora

    Estados UnidosNorth Star um centro de aprendizagem autodirecionada para potencializar processos de desescolarizao

    Quest to Learnuma escola para crianas construrem e imergirem em jogos e sistemas on-line e off-line

    ArgentinaEscuelas Experimentales uma rede de escolas pblicas para crianas e jovens aprenderem a importncia do ato de compartilhar, da arte e do silncio

    BrasilCentro Popular de Cultura e Aprendizagem (CPCD)uma organizao de aprendizagem para comunidades descobrirem o seu poder

    Amorim Lima uma escola pblica para jovens e pais conquistarem autonomia

    Politeia uma escola para crianas investigarem temas que as interessam e praticarem a democracia

    Centro Integrado de Educao para Jovens e Adultos (CIEJA) do Campo Limpo uma escola para jovens e adultos reaprenderem a sonhar

  • Mltiplas possibilidades de jornada dentro da jornadaa ordem dos captulos segue a distribuio geogr-

    fica das escolas, de continente em continente. esta

    apenas uma das maneiras de entrar na jornada. a

    seguir, propomos diferentes roteiros de viagem, com

    distintas possibilidades de leitura. Mas voc tambm

    pode decidir no seguir nenhuma das sugestes e

    criar seu prprio itinerrio.

  • 17

    VOLTA AO mUNDO DE CONTINENTE Em CONTINENTE

    #Amrica #AmricadoSul

    CieJa Campo Limpo 28amorim Lima e politeia 44CpCd 64escuelas experimentales 84

    #Amrica #AmricadoNorteQuest to Learn 100north Star 116

    #EuropaYip 134team academy 151Schumacher College 169

    #fricaSustainability institute 185

    #siariverside School 199

    #OceaniaGreen School 217

  • 18

    A JORNADA QUE ACENDE A fAGULhA DA mUDANA

    roteiro sugerido pelo Andr

    ainda fala-se muito nos problemas nos quais a sociedade atual est imersa. pouco tempo dedicado s boas prticas que estimulam a mudana. proponho uma jornada para aqueles que querem abando-nar a zona de conforto e imprimir o novo na prpria realidade. pro-ponho uma jornada aos que esto inquietos com a situao em que vivem, que querem buscar novos rumos e voos. refletindo sobre isso, lembrei-me de uma frase do poeta paul Valry, que diz o seguinte: Sejamos leves como o pssaro, no como a pluma. Sim, a jornada ao lado para aqueles que querem a leveza do pssaro, que buscam a essncia da natureza em movimento.

  • 19

    Da comunidade de portas abertas para a comunidade que funde real e virtual

    CieJa Campo Limpo 28Quest to Learn 100

    Da entrega do artista ao exerccio da persistnciaescuelas experimentales 84riverside School 199

    Da experimentao dentro do sistema experimentao fora deleamorim Lima e politeia 44north Star 116

    Da interdisciplinaridade dissoluo das disciplinasSustainability institute 185Schumacher College 169

    Da juventude que questiona a linearidade dos caminhos infncia que no se resume em uma linha

    Yip 134Green School 217

    Do empreendedorismo global revoluo empreendedora localteam academy 151CpCd 64

  • 20

    A JORNADA Em bUSCA DA SUSTENTAbILIDADE

    roteiro sugerido pelo Shima

    Sustentabilidade uma palavra muito em voga ultimamente. Chega a ser to usada que, para mim, j virou clich. para definir o que sus-tentabilidade, podemos acessar a definio clssica de 1987 de Gro Brundtland, ou podemos recorrer a tantas outras (in)definies que aparecem por a. prefiro pensar como fritjof Capra, que diz que no vivemos mltiplas crises e sim uma s: a crise de como percebemos o mundo. ento o meu roteiro busca um olhar para a autonomia e, quem sabe, a ampliao de horizontes.

  • 21

    Da sustentabilidade vivida na escola para a sustentabilidade vivida em comunidade

    Green School 217CpCd 64

    Da transdisciplinaridade para a incluso em comunidadeSustainability institute 185CieJa Campo Limpo 28

    Da tecnologia para o acolhimentoQuest to Learn 100riverside School 199

    Da inocncia para o protagonismoescuelas experimentales 84Yip 134

    Do empreender o aprendizado para o empreender no mundoamorim Lima e politeia 44team academy 151

    Da comunidade de aprendizado para a comunidade que aprende north Star 116Schumacher College 169

  • 22

    A JORNADA PELOS DIfERENTES ESTGIOS DA VIDA

    roteiro sugerido pela Carla

    Minha motivao para tentar entender como aprendemos e como podemos ensinar vem do fato de que tenho filhos. nada mais pre-mente e exigente do que ter filhos em tempos como estes: transit-rios, multicntricos, incertos. So dois filhos: um j trilhando o difcil caminho ps-escola, outra na linda idade pr-escolar. assim que se desenha o roteiro que proponho: a partir da linha da prpria vida, co-meando nos pequeninos e terminando na adultez. observando pr-ticas escolares, entendi que posso tentar ensinar menos e dar mais espao para o conhecimento latente dos meus filhos. proponho uma leitura a partir de um olhar de pai e me educadores. Com a percep-o atenta para a forma como as prticas destas escolas e iniciativas podem se transformar em ensinamentos para uma vida mais plena entre pais e filhos.

  • 23

    As escolas que visitei pessoalmente e que vo do jardim de infncia at as vsperas da universidade

    riverside School 199Green School 217

    As iniciativas abertas e democrticas, como as do pensador em educao A.S. Neill, que sempre me inspirou

    escuelas experimentales 84amorim Lima e politeia 44

    A no-escola que volta aos tempos do brincar na terra e fazer os prprios brinquedos e a escola para nascidos na era digital, onde tambm se constroem as brincadeiras

    CpCd 64Quest to Learn 100

    trs caminhos completamente diferentes que levam os jovens a um mesmo encontro: o encontro consigo mesmo, com o seu propsito

    Yip 134team academy 151north Star 116

    A escola que ensina jovens e adultos a encararem a vida

    CieJa Campo Limpo 28

    J adultos, como podemos contribuir para um futuro melhor para nossos filhos, apoiando o incio de um novo ciclo

    Schumacher College 169Sustainability institute 185

  • 24

    AS DIVERSAS POSSIbILIDADES DO APRENDER

    roteiro sugerido pela Camila

    fincada na necessidade de compreender as diferenas e as seme-lhanas, me vi buscando o protagonismo do indivduo junto cons-truo do coletivo. percebi que a diversidade, de idades, culturas e contextos, foi o meu fio condutor. durante esta jornada, questionei e fui questionada sobre quais crenas e valores balisam as nossas vidas. Me atentei pluralidade de caminhos que podemos percorrer na construo do nosso conhecimento. Convido voc, a embarcar nesta jornada, respeitando as particularida-des de cada contexto e imprimindo um olhar apreciativo para o que cada espao pode oferecer de melhor. a minha jornada seria assim:

  • 25

    Aprendendo a ser humano na potencialidade do indivduonorth Star 116Yip 134

    Aprendendo com a cultura que nutre, desabrocha e ensinaCpCd 64CieJa Campo Limpo 28

    Aprendendo com dilogos, diferenas e improvisosamorim Lima e politeia 44escuelas experimentales 84

    Aprendendo na integralidade e complexidades do mundo riverside School 199Schumacher College 169

    Uma aprendizagem que vai de uma sustentabilidade ambiental para uma mentalidade sustentvel

    Green School 217Sustainability institute 185

    Aprendendo com ousadia em um mundo sem fronteirasQuest to Learn 100team academy 151

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    ROTEIRO POR TEmAS

    Aprender com a realidadeCieJa Campo Limpo 28riverside School 199

    Aprender no ensino pblico

    escuelas experimentales 84amorim Lima 44

    Aprender brincando

    politeia 44Quest to Learn 100

    Aprender empreendedorismo

    Yip 134team academy 151

    Aprender sustentabilidade

    Schumacher College 169Sustainability institute 185Green School 217

    Aprender em comunidades

    north Star 116CpCd 64

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    Para curiosos

    HOLT, John. Como as crianas aprendem. Campinas, SP: Verus, 2007.

    Citamos um trecho do poema He Wishes for the Cloths of Heaven (1899). Verso original: I have spread my dreams under you feet; / Tread softly because you tread on my dreams. Fonte: http://prosody.lib.virgi nia.edu/materials/poems/he-wishes-for-the-cloths-of-heaven/

    O seminrio em que ouvimos a fala da pesquisadora Rachel Lotan ocorreu dia 10 de dezembro de 2012, na Faculdade de Educao da USP, abordando o tema da formao de professores.

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    CIEJA CAmpo LImpoSo Paulo, Brasil

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    Asala da coordenadora geral da Luiz, mais conhecida como dona da, aberta a todos, a qualquer momento. Aparecem professores para conversar sobre as aulas e alunos para fazer os mais di-versos pedidos como uma jovem que decidiu usar uma sala da escola para apresentar o namorado aos pais, pois tinha vergonha de sua casa.

    Samira Luis, agente escolar que trabalha no Centro Integrado de Educao de Jovens e Adultos (CIEJA) do Campo Limpo, no distrito de Capo Redondo, em So Paulo, disse que j trabalhou em muitas es-colas, mas nunca havia se sentido to bem recebida. No sou uma fun-cionria, mas sim parte de uma comunidade, parte de um coletivo que valoriza o respeito e o acolhimento, disse. A coordenadora geral abraa aqueles que chegam e olha nos olhos de cada um com o carinho de uma me. o reconhecimento de que o outro, independente de onde venha ou do que faa, deve ser valorizado. Por isso, quando jovens em situao de liberdade assistida vm at o CIEJA Campo Limpo para se matricu-lar, no se pergunta sobre seus antecedentes. Essa abordagem costuma causar espanto: Coordenadora, a senhora no vai perguntar o crime que cometi?, questionam os jovens. No, porque agora voc comea uma nova pgina na sua vida, a resposta.

    A escola recebe mais de 1.500 alunos por dia, a maioria so jovens: cerca de 65% dos estudantes tm entre 15 e 17 anos. Tambm so alunos adultos que decidiram retomar os estudos, pessoas com deficincia, jo-vens expulsos de outras instituies ou que estudam durante o dia para, noite, voltar a centros de atendimento socioeducativos.

    Visitamos a escola no incio de um ano letivo e nos deparamos com uma cena teatral para receber os alunos. No piso azul, situado em uma rea aberta da escola, entre dois prdios com salas de aula, havia um

    Conhecimento te d poder. da Luiz, coordenadora geraL do cieja campo Limpo

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    jovem enrolado em um cobertor, dentro de uma jaula tambm azul. Do lado de fora, livros abertos e espalhados. A princpio, os alunos no en-tenderam o motivo da presena daquele homem. Olhavam com curio-sidade, tiravam fotos. Um morador de rua dormiu dentro da escola?, pergunta uma aluna.

    Em sala, discutiram o que aquela cena representava. No demorou at que todos entendessem a metfora: o homem, quando apartado do conhecimento, entra em uma jaula. A apropriao dos saberes e a des-coberta do valor de aprender so os dois movimentos estimulados no CIEJA Campo Limpo.

    a educadora que mobilizou uma redePara entender os porqus que movem as prticas e a filosofia do CIE-

    JA Campo Limpo, importante juntar dois fios paralelos: a trajetria da dona da e a criao dos CIEJAs pela prefeitura de So Paulo. Come-cemos pela jornada pessoal de dona da, uma mulher apaixonada pela arte de educar.

    Desde criana, ela deu aulas aos primos e irmos, alm de lecionar

    As portas do CIEJA Campo Limpo ficam abertas o dia inteiro, inclusive h alunos que frequentam o espao mesmo depois de terminado o seu curso

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    matrias diversas a suas bonecas. De origem italiana, nasceu em So Paulo, em uma chcara onde vrios parentes moravam juntos. da mo-rava em frente escola e, por isso, sua casa tornou-se o ponto de encon-tro dos seus amigos. O pai dela construiu uma espcie de sala de aula em casa, estimulando a vocao de professora da pequena da, que ajudava os colegas de sala.

    A ideia de seguir carreira como professora a entusiasmava, e no sucumbiu nem depois de um momento traumtico com uma de suas educadoras. Em uma aula, da no conseguia pronunciar a palavra estojo. Sua mestra no se conteve: usou um estojo para bater na alu-na. Mesmo sentindo na pele o peso daquele abuso, a jovem decidiu cursar magistrio e comeou a dar aulas aos 15 anos, antes mesmo de se formar. O CIEJA Campo Limpo s apareceu na sua vida depois de 35 anos de experincia.

    Nesse momento, o fio da histria da dona da se encontra com o fio do CIEJA Campo Limpo. Em 1993, a Secretaria Municipal de Educao de So Paulo lanou um projeto direcionado para jovens (a partir de 15 anos) e adultos que almejavam completar sua escolaridade. Foram criados os Centros Municipais de Ensino Supletivo (Cemes), com horrios flex-veis, plantes de dvidas e apostilas. Em 2001, educadores, coordenadores e outros grupos discutiram mudanas no funcionamento dos centros. Os CIEJAs se originaram do documento redigido a partir dessas conversas, com destaque para tpicos como a integrao entre reas de conhecimen-to e a aprendizagem com autonomia, baseada na resoluo de problemas.

    Dona da, que havia trabalhado na direo de um Cemes em uma igreja na periferia, resolveu permanecer na instituio aps a mudana. O centro foi realocado para uma casa nos arredores, e um chamado comunidade local comeou a envolver mais gente na escola, j batizada CIEJA Campo Limpo. Houve moradores que at ajudaram a comprar cimento e areia para construir as rampas de acessibilidade.

    Em 2006, quando a perspectiva de fechamento dos CIEJAs ameaava terminar abruptamente o projeto, dona da e seus alunos saram s ruas para chamar ateno do secretrio de educao da poca. Ele foi convi-dado a visitar o CIEJA Campo Limpo e aceitou. Em sua ida escola, lanou um desafio: dona da deveria escrever um novo projeto para as 13

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    unidades do CIEJA da cidade. A escrita do projeto deu-se coletivamente, em um processo por meio do qual a coordenadora fez questo de visitar cada uma das unidades e de resgatar ideias do educador pernambucano Paulo Freire, com quem estudou em um grupo sobre educao de jovens e adultos. O projeto, ento, foi implementado, e a instabilidade quanto continuao dos CIEJAs se dissipou pelo menos nos ltimos anos.

    Com o tempo, o CIEJA Campo Limpo diferenciou-se dos outros por causa da sua rede ativa: funcionrios, alunos e toda a comunidade ao redor puderam apropriar-se da escola.

    a autonomia processoO Capo Redondo uma regio perifrica da capital paulistana,

    marcada pela violncia. Um dos alunos do CIEJA Campo Limpo, que costuma chegar por volta das cinco da madrugada na escola, vem direto do trabalho em um restaurante. Ele espera a abertura dos portes, s 7h30, e j foi assaltado na porta da instituio. De acordo com os mora-dores, o clima de tenso diminuiu muito ao longo dos anos, mas o bairro ainda considerado um dos mais violentos da cidade.

    Ao mesmo tempo, sabemos que no Capo Redondo h um caldeiro de projetos e espaos reinventando o bairro entre eles, claro, o CIEJA Campo Limpo. Nos primeiros dias da nossa visita, demos entrevista a um canal de vdeos chamado TV Doc Capo, realizado por jovens enga-jados em expor as mazelas e belezas da regio. Tambm passamos pelo Projeto Sonhar cujo propsito resgatar jovens das drogas , ideali-zado por Marcos Lopes, 30 anos, ex-traficante que se transformou em mobilizador social.

    Tanto Marcos quanto os meninos da TV Doc so parceiros do CIEJA Campo Limpo. Alguns garotos que passaram pelo Projeto Sonhar, por exemplo, hoje trabalham na escola. Este o caso de Anderson. Aos 22 anos, estudante do CIEJA Campo Limpo e tambm trabalha auxilian-do os cadeirantes e a limpeza de vidros, entre outras atividades. Parte das lembranas de Anderson no so nada alegres. Viveu situaes-li-

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    mite, como quando contou me que usava crack, aos 14 anos, e ela respondeu, como se o que tivesse ouvido no fosse nada demais: Ento vamos usar crack juntos, filho. Sua vida se transformou devido ao Pro-jeto Sonhar e ao CIEJA Campo Limpo. Hoje, ele est aprendendo a ler, em um ambiente que o acolheu. Esse local reconheceu nele a capacidade de desenvolver autonomia.

    Ningum amadurece de repente, aos 25 anos. A gente vai amadure-cendo todo dia, ou no. A autonomia [...] processo, vir a ser, explica o educador brasileiro Paulo Freire no livro Pedagogia da autonomia. A relao que Anderson estabelece com a educao uma grande evidn-cia das falas do nosso pedagogo da autonomia: A educao uma forma de interveno no mundo, dizia Freire. Ao comparecer ao CIEJA Campo Limpo todos os dias, Anderson no est apenas aprendendo a ler, mas tambm reinventando sua relao com toda a comunidade em torno de si.

    s segundas-feiras, por exemplo, uma prtica concretiza ainda mais essa proposio da educao como interveno na realidade: os alunos desenvolvem uma ao com impacto local. Pode ser uma pesquisa, uma campanha em prol ou contra algo, uma proposta prtica. A aluna Maria, 40 anos, conta que sua classe encaminhou prefeitura o pedido de um semforo para uma rua dificlima de atravessar. A solicitao foi aceita e

    Os alunos se distribuem

    pelo espao em grupos, o

    que estimula a constante troca

    de ideias

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    o semforo foi instalado. Outro projeto da turma solicitou mais policia-mento na regio, mas no houve xito.

    Participamos de aulas em que os alunos decidiam os temas das aes. A abundncia de iniciativas realizadas abrange reas diversas:

    Campanha contra o cigarro alunos saram s ruas com um ci-garro de quatro metros com uma mensagem contra o fumo que exibiam para os carros enquanto o farol estava fechado;

    Aproveitamento de sobras e partes de frutas e legumes que reco-lheram na feira local: sopas e caldos foram oferecidos comuni-dade em um dia com palestras sobre alimentao;

    Instalao de lixeiras comunitrias ao longo de um crrego que recebia dejetos;

    Criao de uma horta para doao de alimentos para uma creche prxima;

    Plantio de rvores ao longo de uma avenida; Resgate das prprias razes culturais com o conhecimento da his-

    tria do Capo Redondo, por meio da produo de textos.

    As discusses sobre definio dos temas das aes giram em torno das demandas locais. Ainda assistimos a conversas nas quais os temas em pauta eram a conscientizao sobre drogas, a capacitao para en-contrar empregos e a necessidade de mais espaos culturais na regio.

    um ms em cada cicloNas salas de aula do CIEJA Campo Limpo, as mesas e cadeiras so

    dispostas em grupos de seis. H cartazes colados nas paredes e pendura-dos no teto com frases como: Quais os conhecimentos necessrios para a sua vida?; Voc tem alguma certeza que gostaria de pr em dvida?; Tem alguma verdade que voc acha injusta?.

    Um dos alunos chegou a nos dizer com entusiasmo: No h sirenes na escola para sinalizar as divises dos perodos. Alm da no existn-cia de sirenes, as atividades tambm chamam a ateno dos alunos. O ensino se divide em quatro mdulos, com durao de um ano cada, que

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    correspondem, conjuntamente, ao ensino fundamental completo. Os mdulos so nomeados de Alfabetizao, Bsico, Complementar e Final essa diviso substitui a separao em sries ou anos. E cada mdulo formado por quatro ciclos: Linguagens e Cdigos (portugus e ingls); Cincias Humanas (histria e geografia); Ensaios Lgicos e Artsticos (artes e matemtica); e Cincias do Pensamento (cincias e filosofia). H dois professores de reas diferentes em cada ciclo, e a primeira aula que assistimos era uma combinao de geografia e histria, e em seguida participamos de uma com professores de artes e matemtica.

    Em uma das classes do ciclo de Cincias Humanas, encontramos na sala o professor Dennis Blowol, de geografia, e a professora Clia Gama, de histria. H sempre um computador na mesa e, tal como os alunos, os educadores tm que escrever um dirio de bordo da aula um resumo do fluxo das conversas e apreenso de contedos. A dupla docncia um desafio para os professores, que devem buscar a harmonia em sala de aula no apenas com os estudantes, mas entre eles mesmos. Passam pouca lio na lousa, a maior parte do tempo dedicada a debates.

    Uma das aulas de Dennis e Clia iniciou-se com a leitura de uma frase da urbanista e professora da Universidade de So Paulo (USP) Er-mnia Maricato: impossvel esperar que uma sociedade como a nossa, radicalmente desigual e autoritria, baseada em relaes de privilgio e arbitrariedade, possa produzir cidades que no tenham essas caracters-ticas. O professor de geografia indagou: Antes de discutirmos o conte-do da frase, h alguma palavra que vocs no entenderam?. Passaram--se alguns segundos de silncio. Como os alunos se sentam em grupos de seis, mais fcil o contato visual de uns com os outros, e eles se olha-vam sem esboar uma resposta, como se entendessem cada vrgula da sentena na lousa. Mas um deles, uma senhora, levantou a mo e disse que no sabia o significado da palavra autoritria. Ento ela perguntou: Autoritrio quem manda?. Foi o estopim para uma conversao que tocou camadas profundas do sentido do termo. O professor replicou: Todo mundo que d ordens autoritrio? H diferena entre autorit-rio e autoridade? Voc se lembra de alguma situao autoritria no seu trabalho?. A discusso se encadeou de forma a pavimentar ainda mais o assunto do dia, que incluiu uma msica que abordava aspectos hist-

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    IntErvEnEs urbAnAs E CoLEtIvAss segundas-feiras os alunos desenvolvem uma ao de impacto local. dedicam o tempo para pensar em uma interveno social, desde solicitar um farol em uma rua movimentada e difcil de atravessar, at instalar lixeiras ao longo de um crrego ou plantar rvores s margens de uma avenida.

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    ricos da cidade de So Paulo, e uma discusso sobre a geografia urbana e a distribuio das pessoas no mapa.

    Os alunos de Dennis e Clia continuaro um ms com eles, em en-contros de segunda a sexta. Depois deste ms de aulas, a turma seguir para outro ciclo, como filosofia e cincias, e para outro e enfim para o ltimo do semestre. Na segunda parte do ano, repetem o itinerrio, de ciclo em ciclo, em aulas que provocam o encontro entre os assuntos abordados e a realidade da rotina.

    aprendizagem com significadoAo assistir uma aula no CIEJA Campo Limpo sobre Tarsila do Ama-

    ral, Jos decidiu que iria pintar um painel no muro da escola. Comprou algumas latas de tinta com as cores primrias e secundrias, sendo que as cores primrias custaram R$ 32,00 (cada lata) e as secundrias R$ 34,00 (cada lata).

    a) Quanto Jos gastou no total?b) Se Jos tivesse conhecimento sobre as categorias de cores, quan-

    to ele teria economizado?A proposio acima um tpico exemplo de uma situao-problema

    discutida em sala de aula, cujos objetivos principais so interligar as matrias e, paralelamente, provocar o aluno a entender a conexo entre os contedos e o cotidiano. Essa situao-problema entrou em debate em uma aula de Ensaios Lgicos e Artsticos. Para resolv-la, os alunos so instigados a responder uma srie de perguntas implcitas, que eles mesmos precisaro perceber: quem Tarsila do Amaral e quais as suas obras? O que so cores primrias e cores secundrias? Quantas so?

    O professor de matemtica, Giulio Czesar, que aplicou a situao--problema das cores em companhia da professora Edinia Andrade, de artes, ressalta a influncia do terico norte-americano David Ausubel no seu trabalho. Ausubel acreditava que, quanto mais sabemos, mais temos capacidade de aprender. Defendia que aprender de maneira sig-nificativa ampliar e reorganizar as ideias na mente, criando conexes que possibilitem o acesso a contedos novos.

    Em uma aula de portugus e ingls, os professores aplicam uma ati-

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    vidade semanal, chamada Novos Conhecimentos. Dedicam alguns mi-nutos da aula para que todos inclusive a aluna mais velha da escola, com 91 anos compartilhem o que de mais importante aprenderam durante a semana. Em momentos assim, os estudantes relatam as pr-prias experincias, como a aluna que comentou: Fiquei impressionada com a fora de vontade dos estudantes aqui da escola que so deficientes visuais. O aprendizado da jovem nasceu da sensibilizao ela passou a se dedicar mais a suas atividades devido ao encontro com o diferente. por meio de atividades assim que no s a realidade do aluno se conecta com a da escola, mas tambm suas impresses sobre o prprio espao de aprendizagem emergem.

    o ponto de partida a inclusoOs professores de escolas pblicas brasileiras so proibidos de comer

    a merenda que chega escola. Tm que levar marmitas ou comer fora, em um intervalo de poucos minutos. No CIEJA Campo Limpo, a merenda servida a todos. Na hora das refeies, no raro encontrar um professor e um aluno sentados mesma mesa, batendo papo. Essa medida simples, mas com bastante significado, estimula a diversidade e a troca de ideias.

    Incluso no uma questo de coragem, mas de concepo do que se faz, diz dona da. Ao contar que o CIEJA Campo Limpo recebe 35 alunos surdos, 18 cegos, 22 cadeirantes e muletantes e 200 deficientes intelectuais, a coordenadora ressalta que isso apenas o reflexo de que o ponto de partida do projeto a incluso. Alis, nem a dona da nem os professores tm discursos asspticos quanto a isso eles falam declara-damente que trabalham com a excluso. Mas, na fala dos membros do CIEJA Campo Limpo, tal termo possui tom crtico e no preconceitu-oso. Quando falam de excluso, a coordenadora e os professores esto apenas constatando um fato: um nmero significativo de pessoas no aceito em lugar nenhum.

    Parte dos alunos com deficincia participa da mesma dinmica de mdulos explicada anteriormente, com os demais alunos da escola. Ou-tra parte visita o CIEJA Campo Limpo apenas dois dias por semana, em encontros no perodo da tarde. H aqueles que, como Ronildo, 24 anos,

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    deficiente visual desde os 5 anos devido a complicaes de uma menin-gite, voltam quase diariamente, mesmo depois do fim do curso. Para Ronildo, a escola deixou de ser um lugar de passagem para se tornar uma sala de estar, um ponto de encontro.

    Semanalmente, o professor Billy Silva, responsvel por aulas com gru-pos de deficientes, organiza o Caf Teraputico um encontro para pais e mes desses estudantes. Em geral, so entre 30 e 60 participantes. O professor costuma desenvolver um tema inspiracional na primeira par-te do encontro. A segunda metade dedicada conversa dos pais entre si e tambm para os filhos presentes trocarem ideias, enquanto comem alguns quitutes que trouxeram. Foi no Caf Teraputico que aprendi a falar para os outros sobre as dificuldades da minha filha, conta uma me.

    A atividade semanal funciona como uma formao para pais. uma maneira de estimul-los a dialogar e a se manter em uma constante re-ciclagem de ideias. A iniciativa surgiu em 2007, depois que a prefeitura aprovou o transporte adaptado para os alunos da escola. Hoje, vans bus-cam e levam os jovens para o CIEJA Campo Limpo. Antes do transporte gratuito, quem deixava os filhos nas escolas eram, em sua maioria, as mes. Reunidas no ptio, enquanto esperavam o fim da aula, alimenta-vam amizades e atividades como tric e bordados. Quando o transporte gratuito foi liberado, os encontros acabaram. O Caf Teraputico surgiu

    Os pais dos alunos com deficincia

    participam de encontros semanais

    para trocar experincias e

    discutir temas, como Somos todos iguais

    na diferena e A incluso que temos

    e a incluso que queremos

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    para aproximar aquelas mes novamente. A iniciativa foi reconhecida nacionalmente, em 2013, com o prmio Construindo a Nao, uma ho-menagem s boas prticas em escolas.

    Questionar os rumos da escolaNas sextas-feiras, o tempo dedicado principalmente a encontros de

    professores com seus colegas de rea. Em quatro reunies ao longo do dia, os educadores planejam as aulas da prxima semana. Aqui a gente estuda tanto!, disse uma das educadoras, destacando que no d para chegar nas reunies despreparada, seno a construo coletiva de ideias emperra.

    Nesse dia da semana, tambm conversam com a coordenadora, em um momento de anlise dos processos. Certo dia, um dos professores compartilhou um desconforto. Disse que a celebrao do Dia da Mulher realizada pela escola, por meio de desfiles com as alunas, reproduziu esteretipos combatidos por eles mesmos na sala de aula. Questionar os rumos da escola uma atitude estimulada no CIEJA Campo Limpo.

    As reunies acontecem entre as aulas, que duram menos tempo na sexta-feira por seguirem um roteiro diferente. Desde 2013, a sexta tambm o dia da tutoria. Professores e alunos ainda esto se acostuman-do com a novidade, implantada pela coordenadora depois de um longo perodo de maturao da ideia. um momento para que os laos entre os professores e os alunos se fortifiquem. Nesses encontros, as dificul-dades da semana so trabalhadas, com apenas um professor por sala. A ideia surgiu inspirada em um aluno que se responsabilizava por ligar para os colegas que faltavam, diminuindo as ausncias da sua turma e aumentando a participao. A tutoria nasceu com a inteno de aparar as arestas das relaes, para que os professores conheam os alunos mais a fundo e vice-versa.

    uma comunidadeQuando perguntamos a um dos novos alunos do CIEJA Campo

    Limpo, de 17 anos, qual era o sonho dele, ouvimos uma resposta nada animadora: No tenho nenhum sonho. Ele estava na sua terceira sema-

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender a sonhar no CIEJA Campo Limpo

    na de aula. Sua resposta categrica, sem nenhum vestgio de perspecti-vas para o futuro, carrega uma gravidade desconfortvel. Todos sabemos que a realidade s vezes to opressora que os sonhos so sabotados. Mas, quando a gente ouve de algum no tenho nenhum sonho, ne-nhuma pessoa que me inspire, nada, como receber uma pedrada em vez de uma resposta. Quando dona da refora a importncia do sonho na vida dos alunos, ela est se referindo necessidade de se criar uma realidade diferente daquela que parece determinante e absoluta.

    Outro estudante do CIEJA Campo Limpo, o Gustavo, 15 anos, sonha cursar a faculdade de cincias contbeis, pois se interessa por trabalhar dentro de escritrios. E os sonhos dos alunos que passam pelo CIEJA Campo Limpo no so pequenos. Inmeros, inclusive, inclusive j se rea-lizaram: possvel encontrar ex-alunos que se tornaram dentistas, enfer-meiros, administradores de empresas, escritores, entre outras profisses.

    H poucos anos um ex-estudante do CIEJA Campo Limpo, Ado, 63 anos, comeou a cursar direito na mesma faculdade em que seu neto estuda. L, aprendi que aprender tudo, conta. Quando entrou na fa-culdade, o filho questionava: Pai, como voc vai ser advogado com essa idade?. Pouco a pouco, Ado deixou de se inquietar com esse tipo de co-mentrio: aprendeu no CIEJA Campo Limpo que o conhecimento no tem idade. Ado incentivava tambm os amigos a voltarem escola, e vrios deles fazem faculdade hoje em dia. No s os professores do CIE-JA Campo Limpo o marcaram, mas tambm camaradas como Alex, 30 anos, um jovem cego que conseguia identificar cada um dos alunos na sua sala apenas ouvindo uma simples palavra pronunciada. Apaixona-do por direito desde jovem, Ado sempre admirou pessoas vestidas de terno e gravata. Aos 25 anos, enquanto trabalhava em um banco, ocu-pava o tempo do almoo em visitas a jris, observando os advogados. A sua fora o reflexo de uma certeza compartilhada na escola: possvel aprender em qualquer etapa da vida.

    O engajamento incansvel da coordenadora geral da escola um pi-lar essencial para a sustentao da sintonia entre as relaes. Por mais que dona da se dedique ao trabalho, patente que ela no se apresenta como o estandarte da mudana. Ela sabe muito bem o perigo da depen-dncia, por isso se esfora para provocar naqueles que esto ao seu redor

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    a autonomia, que a sustentao dos seus prprios passos. Os funcionrios ressaltam a importncia de promover a autonomia

    na rotina. Dizem que, por exemplo, no trato com alunos com deficincia, se esforam ao mximo para incentiv-los a desenvolver tarefas sozi-nhos como comer e ir ao banheiro. Eles cobram de si mesmos uma relao com esses alunos que no se paute no apego, para que eles no sofram caso no encontrem mais o funcionrio preferido no outro dia. Esses aprendizados so frutos do dia a dia de trabalho, a partir de acer-tos e erros, depois de inmeras conversas com pais e colegas.

    adaptao e transformaoA transformao promovida pelo CIEJA Campo Limpo se baseia no

    acolhimento. H uma ausncia de barreiras na escola que pode surpre-ender os desavisados. Comeando pelo porto de entrada aberto du-rante todo o perodo de aulas, passando pela ausncia de cmeras, pela no existncia de diviso de banheiros no h toaletes marcados para homens e mulheres, nem mesmo especialmente para professores, mas apenas banheiros com a placa banheiro , pelo lanche que no ser-vido por uma merendeira, mas pelos prprios alunos que decidem quanto vo comer at a biblioteca aberta comunidade, incluindo o acesso a moradores de rua sem documento que tm o direito de pegar livros emprestados.

    Mesmo com um convite evidente ao descobrimento de uma nova re-lao com o saber, a evaso de alunos do CIEJA Campo Limpo continua alta. Segundo dona da, cerca de 20% dos alunos desistem. O problema reflexo de uma necessidade social: o maior motivo de desistncia a busca pela sustentao financeira. Muitos alunos que encontram empre-gos para garantir ou complementar o salrio deixam o CIEJA Campo Limpo temporariamente ou de forma permanente mas, atenciosos, voltam escola para se desculpar com a coordenadora e rever os amigos.

    Em um almoo na escola, enquanto provvamos um delicioso prato de feijo com arroz, acompanhado por salada de acelga com tomate e

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    frango refogado, a aluna Zenaide, 43 anos, sentou-se nossa frente e, no meio de uma conversa, disse: Sem ler, me sentia cega, no escuro. Ao final da refeio, ela perguntou se tnhamos pego uma ma de so-bremesa. Assim que dissemos que no, pois a ma tinha acabado na hora em que passamos pelo refeitrio, ela estendeu a mo com a fruta e nos entregou. Tome uma, pois eu peguei duas, disse. Em certo ponto da conversa, uma pergunta simples foi feita: O que a senhora j apren-deu no CIEJA Campo Limpo?. A resposta resumiu a visita na escola: Aprendi que sou capaz de despertar meus sonhos adormecidos. E no apenas isso. Tambm percebi que posso sonhar mais.

    para curiososFREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica

    docente. So Paulo: Paz e Terra, 2008.

    A frase da urbanista Ermnia Maricato citada pelo professor do CIEJA Campo Limpo pode ser encontrada no seguinte livro:

    MARICATO, Ermnia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrpolis: Vozes, 2001.

    Blog do CIEJA Campo Limpo: http://blogdociejacampolimpo.blogspot.com

  • Amorim LimA e PoLiteiASo Paulo, Brasil

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender com a liberdade na Amorim Lima e Politeia

    A minha pesquisa sobre astronomia. Uma das perguntas que quis responder: por que o espao continua escuro na proxi-midade de estrelas ou mesmo do Sol?, conta Gabriel, de 14 anos. Em um semestre passado, um dos seus amigos pesquisou o tema dos jogos, buscando entender a evoluo dos consoles. Em outra pesquisa, refinou a interseco entre tecnologia e poltica: estudou o grupo de hackers Anonymous, responsveis por atos de protesto em que sites, blogs e ou-tros aparatos on-line governamentais e privados so invadidos.

    Os alunos da escola Politeia enveredam pelos temas mais complexos, desde economia at corrida espacial, de teoria da relatividade a zumbis. Desenvolvem seus trabalhos pessoais em mltiplos formatos, seja por meio de um jogo, uma histria em quadrinhos ou at uma apresentao em PowerPoint. Todos apresentam as descobertas e reflexes do trabalho individual ao final do semestre, em encontros com a presena dos pais e tambm abertos comunidade.

    No mesmo colgio, assembleias so organizadas semanalmente para discutir assuntos como mascar chiclete na aula ou criar uma atividade extraclasse. Trata-se de debates em que as questes de cada um podem ser expostas. Assim, as regras de convivncia podem ser construdas e atualizadas.

    A Politeia uma iniciativa privada, com 18 alunos, que oferece os trs ciclos de estudos do ensino fundamental (ciclo I: 1, 2 e 3 anos; ci-clo II: 4, 5 e 6; e ciclo III: 7, 8 e 9 anos). Os alunos no so divididos por anos os membros de cada ciclo estudam juntos. Ela est localizada em Perdizes, bairro da cidade de So Paulo.

    A pouco mais de dez quilmetros da Politeia, encontramos a Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, uma

    Tomar as rdeas das prprias escolhas uma habi-lidade que nem os adultos aprenderam ainda, ento

    por que seria fcil para uma criana?Gabriela Yanez, educadora da Politeia

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    instituio pblica que tem como eixo central de sua pedagogia a valo-rizao da autonomia do aluno. Recebe quase 800 alunos diariamente, do 1 ao 9 ano, nos perodos da manh e da tarde. Como conta o pai de dois estudantes, a instituio um ponto de resistncia social. Uma escola pblica com tantos desafios e dificuldades quanto solues base-adas em propostas democrticas. O espao da contradio cria coisas novas, diz Ana Elisa Siqueira, diretora da escola, que arrancou parte das grades do prdio logo no incio do processo de recriao pelo qual a Amorim passou a partir de 2003.

    Tanto a Amorim quanto a Politeia so consideradas escolas demo-crticas, pois ambas valorizam a capacidade de escolha do aluno, seja para construir o caminho curricular das aulas, seja para elaborar e repensar as diretrizes da escola. Geralmente, escolas com abordagem democrtica apresentam duas caractersticas em comum: gesto parti-cipativa, com processos decisrios que incluem estudantes, educadores e funcionrios; e organizao pedaggica como centro de estudos, em que os estudantes definem suas trajetrias de aprendizado, sem cur-rculos compulsrios, reflete a pesquisadora brasileira Helena Singer, no livro Repblica de crianas, uma das educadoras envolvidas com a concepo da Politeia.

    O escritor russo Liev Tolsti, criador da primeira escola com prticas

    A professora Cleide Portis ressalta que as prticas criadas na Amorim Lima foram desenvolvidas em um processo coletivo

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    democrticas de que se tem notcia no sculo 19 , dizia que escolas so organismos vivos, em constante mutao. Amorim e Politeia fazem jus expresso de Tolsti. Ambas escolas so convites abertos cocriao.

    a quebra de paredes na escola pblicaAna Elisa, como diretora da Amorim desde 1996, no mediu esfor-

    os para subverter a lgica vigente. Abrir espaos participativos na escola possibilita que as pessoas entrem com outro olhar, conta. Antes, enquan-to as portas estavam fechadas s pessoas, existia o caos da ausncia, da falta de perspectivas, de um beco sem sada. Cavar territrios de partici-pao da comunidade estimulou um caos criativo, que se estende at hoje.

    Na poca da festa junina, a diretora percebeu que a celebrao en-gajou as pessoas como nenhuma outra atividade at ento. A realizao do evento evidenciou um pedido dos jovens, que deixaram claro, ainda antes da festa, que preferiam msicas da moda s tpicas cantigas regio-nais. Ao discutirem esse assunto, Ana se deu conta que o apelo dos alu-nos demonstrava uma carncia da escola em oferecer espaos para que emergissem distintas formas de expresso. A voz dos alunos foi ouvida: uma das mes, estudiosa da cultura brasileira, ajudou a criar um festival musical para que os alunos se apresentassem, realizando um projeto que reafirma a escola como espao pblico onde a diversidade tem a opor-tunidade de emergir.

    Paralelamente, um grupo de dez mes voluntrias decidiu dar suporte escola no recreio. Na poca, apenas trs funcionrias se revezavam, res-ponsveis pela alimentao e limpeza da escola inteira. Para cada uma das mes voluntrias, a presena no intervalo significava uma oportunidade de cuidar da prpria prole. Quando as mes perceberam que os filhos se incomodavam com a presena delas, nasceu uma discusso sobre como poderiam colaborar mais fortemente com o coletivo. A questo que se imps: como cuidar dos filhos das outras mes?, lembra Ana Elisa.

    A mudana de pensamento concreta e palpvel: a me preocupada com a educao do seu filho passa a se interessar pela educao das

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    crianas e jovens que esto ao redor. Aquilo que o pai mais diligente e sensato deseja para o seu prprio filho, a comunidade dever desej-lo para todas as crianas que crescem no seu seio, refletiu o educador John Dewey em seu livro A escola e a sociedade. E a frase de Dewey lida com a tenso permanente entre os carteres pblico e privado, destacando o comportamento daqueles que passam a valorizar o que de todos em vez de buscar apenas o que se restringe s a alguns.

    Enquanto as mes se questionavam sobre seu papel na escola, Ana Elisa realizou outras mudanas. A onipresena do cinza nas paredes foi substituda por diversas cores e azulejos com desenhos. Pensam que a violncia existe s quando um bate no outro? H tambm a violncia sim-blica, que aparece na cor da escola, por exemplo, comenta a diretora.

    Os incmodos no se restringiam ao cinza plido. Uma cena quase diria atormentava a diretora: durante os intervalos, crianas se pendu-ravam nos ferros de grades para brincar, com gritos estridentes. Assim, arrancar as barras de metal se tornou o objetivo seguinte. Ana, ainda bem que a senhora tirou as grades, porque a gente no nem louco nem bandido para ficar preso, disse uma aluna. Quem disse que as pessoas no percebem os mecanismos de poder que tecem diariamente as suas humanidades?, questiona a diretora. Em outra iniciativa, um dos corre-dores da escola, que era sitiado apenas por lixo, transformou-se nova-mente em lugar de passagem aps um mutiro de limpeza.

    As reunies do conselho escolar acabavam meia-noite, tantas eram as pautas. Criaram uma comisso de pais e educadores para concentrar esforos na resoluo de problemas urgentes.

    Quatro paredes foram arrancadas para que dois extensos sales se formassem a partir de seis salas convencionais. No lugar das aulas ex-positivas, criaram oficinas sobre temas como portugus e matemtica, sendo o resto do tempo ocupado com pesquisas, a partir de temas que os alunos escolhem em um roteiro de pesquisa recheado de assuntos.

    Nos sales, os professores respondem s perguntas, medida que so solicitados. Divididos em grupos, os alunos tm a oportunidade de desenvolver uma atitude coletiva. O grupo existe para que todos perce-bam as responsabilidades que compartilham. Vejo muita gente dizendo que trabalha em grupo e ao mesmo tempo reclama que os membros da

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    sua equipe no fazem nada ou contribuem pouco. Aprender a trabalhar em grupo perceber que voc tambm se responsabiliza por aquele que no faz nada, que voc pode influenci-lo, comenta Ana. A autonomia de cada um lapidada no encontro com os outros. s quintas-feiras, os alunos dividem-se em grupos de dez para encontrar tutores respon-sveis por acompanhar o ritmo do seu desenvolvimento. O papel dos professores-tutores compartilhar leituras e referncias relevantes, con-versar sobre problemas e revitalizar a curiosidade dos seus pupilos. O tutor acompanha os alunos por anos seguidos, cultivando uma relao prxima.

    A mudana foi difcil para muitas pessoas, frisa Midori Hayakawa, assistente de direo da escola. Ela entrou na Amorim em 1990, ainda como professora, poca em que nenhuma alterao no plano da escola havia sido cogitada. No existiam cores nem jardim. No existia qua-dra coberta, rampa, balano, biblioteca, sala de artes, conta. O que foi mais complicado na mudana? Dizer para um aluno eu no sei respon-der o que voc est me perguntando. Voc pode me dar um tempo, que procurarei saber e voltarei a falar contigo?. Isso foi duro, muito difcil. Para Midori, o mais espinhoso est ligado a uma virada de perspecti-va: o professor no precisa demonstrar que o mais completo sbio,

    Pais e educadores organizam

    mensalmente um bazar na Amorim

    Lima, no qual vendem produtos usados e doados,

    investindo a verba arrecadada

    em reparos na escola

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    pois nenhum educador sabe tudo. Ao quebrar as paredes fsicas, a Amo-rim Lima aproximou educadores e alunos, compartilhando o papel de aprendizes.

    A Ana sempre diz: Desestabilizar para avanar. algo desafiador, completa Midori. E quando um sistema desestabilizado, isso no quer dizer que, em seguida, j volte estabilidade. At hoje, a Amorim uma escola repleta de contrastes. Enquanto uma parte dos estudantes elogia a escola com mil adjetivos como a ex-aluna e atual estudante de direito Beatriz, 19 anos, que ressalta: Ningum precisa pagar para ter uma boa educao outra parte, incluindo tanto estudantes quanto educadores, sente-se menos desafiada pela proposta, ainda no identificando o po-tencial da autonomia que estimulada.

    Elencar s os pontos positivos ou negativos seria um caminho mani-questa, reduziria o trabalho realizado na escola e esconderia o fato que mais merece destaque: as escolas pblicas podem exercer a autonomia que est prevista na lei e repensar seus formatos, mas precisam aceitar que a mudana implica novos desafios e traz novas perguntas. E, claro, novos processos esticam os horizontes das pessoas e, como geram im-pactos diferentes em cada um, demandam tempo para que sejam dige-ridos e apreendidos.

    Em uma conversa com o educador Jos Pacheco, criador da Escola da Ponte, em Portugal que serviu de inspirao Amorim Lima , e mentor do Projeto ncora, em So Paulo, abordamos exatamente o as-sunto da mudana. Chegamos a perguntar o seguinte:

    Em uma entrevista sobre a Ponte, o senhor falou sobre o lado feio do processo de desenvolvimento dessa escola, o lado da misria humana que tambm a constituiu. Faz parte do processo de mudana entrar em contato com um lado obscuro do ser humano?

    Sua resposta partiu de referncias lingusticas e poticas:Mudana, na linguagem ideogrfica oriental, a mistura de dois

    ideogramas: oportunidade e sofrimento. E tambm o poeta portugus Fernando Pessoa j dizia que quem quiser passar alm do Bojador / ter de passar alm da dor.

    Ou seja, Pacheco reafirmou a importncia de que os desafios se-jam reconhecidos como parte inevitvel dos processos de mudana.

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    Legitimar o conflito essencial, nos disse a professora Lia Diskin, fundadora do Instituto Palas Athena, uma organizao de cursos e ini-ciativas de impacto social em So Paulo. A pluralidade de pensamento instiga tenses, que s sero resolvidas quando realmente ouvidas, res-peitadas e debatidas.

    a criao de um acampamento permanenteA histria da Politeia comea em um momento de despedida. Devi-

    do a discordncias sobre questes internas, educadores e pais saram da Escola Lumiar, no bairro da Bela Vista, em So Paulo. Criada pelo em-presrio Ricardo Semler, a Lumiar foi a primeira escola privada brasileira democrtica, fundada em 2003.

    A ciso no se deu conflituosamente, tanto que os educadores e pais que deixaram a escola em 2006 at hoje reconhecem o pioneirismo da Lumiar e a elogiam. Aps se despedir da iniciativa de Semler, a trupe de educadores e pais decidiu fundar uma proposta semelhante.

    Enquanto pensava nesse projeto, Carolina Sumi que viria a ser a diretora da Politeia encontrou trabalho na Teia Multicultural, uma ins-tituio de ensino infantil e fundamental cujo eixo principal a arte. A Teia acabou servindo como incubadora para o projeto da nova escola, que ganhou o nome de Politeia. Na poca, a Teia no oferecia o ensino fundamental II, do 6 ao 9 ano. Ento a nova escola nasceu para suprir essa lacuna. Hoje em dia, ambas atuam independentemente, e a Politeia j recebe alunos de quaisquer anos do ensino fundamental.

    O primeiro grupo de estudantes surgiu em 2009, com seis crianas vindas diretamente da Teia. Um dos pais que participaram da fundao da iniciativa nova, o consultor de sustentabilidade Celso Sekiguchi, conta que a Politeia um acampamento permanente, um lugar em que se aprende com a diferena.

    Um tero dos estudantes tem algum tipo de deficincia, como a alu-na Luiza, 20 anos, que possui deficincia mental e cursa o ciclo III. O Joaquim fala a lngua de sinais. Ele legal, conta Pedro, 5 anos, quando sua me Solange pergunta como a relao com seus amigos na escola. Por mais que, em certos momentos, questes sem resposta acometessem

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender com a liberdade na Amorim Lima e Politeia

    Celso, como o Cau, meu filho, aprende mais ao ajudar outras crianas ou no?, a sua satisfao em relao Politeia visvel no seu esforo de divulgar a proposta onde quer que esteja.

    Nem todos os pais se acostumam com as proposies democrticas. Voltamos s contradies novamente: parte das famlias que colocam seus filhos em escolas com prticas disruptivas se esquece de redefinir seu pr-prio comportamento diante de algum conflito.

    Por exemplo, na primeira conversa com uma educadora da Politeia, uma me disse: A convivncia social muito importante para a minha filha. Quero que ela brinque com outras crianas. A vida inteira ela foi me-nosprezada pelos amiguinhos. A jovem j havia sido diagnosticada com transtorno obsessivo-compulsivo, e tomava remdios fortes. J na Politeia, brincando de pega-pega, a adolescente caiu e torceu o joelho. A educado-ra ligou para a me: Levaremos sua filha ao hospital. Ah, ela no podia correr!, respondeu a me. De pronto, a educadora replicou: A minha me me ensinou que a gente deve ter cuidado com o que quer. Voc sempre almejou que sua filha tivesse amigos e brincasse. Quem brinca, uma hora cai. O risco inevitvel.

    O comportamento contraditrio foi tema das reflexes de Tolsti, como afirma em uma carta disponvel no livro Os ltimos dias, indica-do por Yvan Dourado, um dos educadores da Politeia. Por mais que ex-pliquemos criana as palavras liberdade e fraternidade, as pessoas e a maneira como elas vivem, desde que se levantam at a hora do jantar, lhe provaro o contrrio, escreve o escritor russo.

    Se algumas mes demoram para se acostumar com a prtica da liber-dade, outras aprendem, pouco a pouco, a lidar com os imprevistos. Estou feliz porque meu filho est na escola que escolhi. Escolher no algo que fiz s no dia que matriculei. uma coisa que fao todos os dias quando mando meu filho para a escola, conta Lilian Kelian, me de Pedro, 6 anos. Quando ele chega com a roupa suja, ela se lembra: Quem escolheu esta escola em que os alunos so livres para brincar fui eu mesma. Preciso ar-car com as consequncias.

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    ces, gatos, corrida espacial e quadrinhosAqui, a construo de conhecimento aberta, disse Yvan, na abertura

    de um encontro. Os estudantes da Politeia preparavam-se para compar-tilhar os percursos de suas pesquisas com uma plateia de 20 pessoas, for-mada essencialmente por pais. O primeiro tema da noite economia foi apresentado por Henrique, 13 anos. A pergunta que pautou sua jornada de pesquisador: Como se constri a riqueza?. Falou sobre dficit, super-vit, inflao, crise econmica. Quando terminou a explanao, Celso, pai do Cau, perguntou a Henrique: O que o atrai no tema da economia?. Quero entender o porqu da roubalheira na poltica, respondeu.

    Em seguida, houve uma apresentao sobre a teoria da relatividade. Ela foi feita por Fabio, 12 anos, interessado em entender por que dizem que Einstein era inteligente. Quando o estudante decidiu pesquisar a teoria da relatividade, a orientadora Tassiana Carvalho se deu conta: As pessoas no esto preocupadas com crianas que querem entender a teoria da relatividade, difcil encontrar materiais que expliquem o as-sunto para leigos.

    Realizamos uma banca de qualificao no meio da pesquisa: cha-mamos pessoas das reas estudadas pelos alunos para dar sugestes, explica Carol. Os temas vo se tornando mais complexos medida que o tempo passa, destaca Yvan. Na hora de fazer sua primeira pesquisa in-dividual, a jovem Joyce, 13 anos, nem hesitou na deciso do tema: ces e gatos abandonados. Apresentou um agregado de fotos de cachorrinhos e gatinhos coladas em cartazes. No semestre seguinte, a discusso evoluiu, surgindo questes como: quais leis protegem os animais? Como cuidar de um animal? Para se aprofundar, Joyce saiu a campo e visitou uma creche canina nos arredores da escola. Tambm entrevistou uma veteri-nria, por meio da qual descobriu que alguns cuidados com bichinhos de estimao so exageros por parte dos donos.

    Esse segundo trabalho de Joyce abordou o tema dos maus-tratos a animais. Paralelamente, em cincias naturais, os alunos estudavam conflitos do sculo 20, sendo um dos temas a corrida espacial. Atenta

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    s aulas, Joyce chocou-se quando descobriu que o primeiro ser vivo enviado rbita da Terra foi uma cadela chamada Laika. E pior: o animal morreu na experincia. O fato histrico a influenciou a mudar o rumo do prprio olhar: aps a pesquisa sobre maus-tratos, esco-lheu como tema a corrida espacial. As palavras em jogo passaram a ser conceitos como capitalismo e socialismo. Em busca de informaes, de hyperlink em hyperlink, Joyce comeou a ler tirinhas da Mafalda. Apaixonada pelo humor crtico da personagem argentina, decidiu pes-quis-la no semestre posterior. Ou seja, animais fofinhos a levaram ao espao e, depois, obra do quadrinista argentino Quino. Seus inte-resses mais genunos, descobertos com a ajuda de um orientador, ins-tigaram aprendizados diretamente conectados com a sua curiosidade.

    Ainda um tabu dizer que a criana no precisa aprender determi-nada coisa em uma determinada faixa etria. As pessoas tm uma bar-reira quando voc diz: O professor no sabe o que vai dar neste semes-tre. A maneira como lidamos com o conhecimento, que construdo em conjunto com o aluno, a nossa maior conquista, afirma Yvan.

    a partir dos temas individuais, escolhidos pelos alunos, que os pro-fessores planejam os contedos a serem compartilhados nas aulas de cincias naturais e portugus, por exemplo. A partir das linhas de pes-quisa de cada aluno, apreende-se um projeto coletivo para o semestre, um pano de fundo geral, chamado Trilha Educativa.

    Quando se estabelece a questo central, como quem inventa os he-ris? ou como se constitui o tempo?, o desafio dos professores traar pontos de conexo entre o questionamento e suas reas. Mas essa regra no se torna um martrio para os educadores, at porque no se aplica a todo instante. No vemos como uma obrigatoriedade que tudo dia-logue com o tema do semestre, aponta a diretora, deixando claro que matrias como matemtica e espanhol nem sempre se relacionam dire-tamente com a Trilha Educativa.

    Plenrio mirimEm uma tpica semana de um aluno da Politeia, h espao para uma

    infinidade de momentos: projetos pessoais; grupos de estudos e aprimo-

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    ramento (GEAs) com temas to variados quanto xadrez, Egito Antigo e histrias de terror; visitas a parques, planetrios, museus, cinemas etc.; fruns de resoluo de conflitos, nos quais os problemas mais graves so discutidos; aulas de matrias como teatro, matemtica e cincias na-turais; reunies de planejamento coletivo das aulas; e assembleias, to importantes quanto os outros momentos, realizadas com o intuito de deliberar sobre assuntos da escola.

    Em um desses encontros, alunos propuseram uma atividade: passar uma noite na escola. A aceitao da ideia seguiu-se de uma semana inteira sem que eles movessem uma palha para a concretizao da pro-posta. O que vocs comero noite? Quem comprar a comida? Quem dar o dinheiro?, perguntou Yvan. Quando o educador apontou a falta de planejamento do grupo, os jovens caram na realidade. Interessados em colocar em prtica o que propuseram, dividiram-se em comisses para organizar os detalhes. Assim como a deciso compartilhada, a responsabilidade tambm . Se os alunos no se apropriam das deci-ses tomadas, as deliberaes perdem valor. E, desde ento, os alunos passaram a repetir essa atividade semestre a semestre.

    Quando os alunos do ciclo I entraram na Politeia, trs anos aps sua fundao, eles trouxeram novo flego e mais movimento, o que aumen-

    Nas assembleias, os alunos da

    Politeia tm a oportunidade

    de colocar em discusso as

    regras da escola

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    de hYPerlink em hYPerlinkos alunos da Politeia desenvolvem projetos semestrais cujos temas surgem de seus interesses e paixes. Joyce, 13 anos, comeou estu-dando ces e gatos abandonados e isso levou-a ao tema dos maus--tratos aos animais, pesquisa desenvolvida no semestre seguinte. descobriu a histria da cadela laika, que morreu ao ser enviada ao espao, encontrando assim seu tema de estudo posterior: corrida es-pacial. deparou-se com conceitos como capitalismo e socialismo e, ao tentar entend-los, pesquisou diversas fontes at encontrar um novo assunto de interesse: os quadrinhos da mafalda e seu humor cido sobre temas polticos.

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    tou a agitao pelo espao. O corre-corre incomodou alguns alunos, de-vido a esbarres inesperados na entrada de um dos corredores. A ques-to foi levada assembleia: pode ou no pode correr no corredor?. E se quem correr dentro da escola for proibido de visitar o Parque da gua Branca?, disse um dos alunos. Isso no vale, porque no parque d para correr bastante. No poder correr no parque um exagero, refletiram. E se proibirmos quem correr no corredor de ir para a biblioteca?, veio outra sugesto. No, isso no coerente. O corredor no tem nada a ver com a biblioteca. Quem correr no corredor poderia perder o direito de passar pelo corredor, tendo que dar uma enorme volta para acessar o outro lado, disse um aluno. E em dia de chuva? Em dia de chuva no d para dar a volta por fora, seno a gente se molha. Ento a regra no vale em dia de chuva, oras, comentaram.

    A ltima proposta foi acatada: qualquer um que fosse visto correndo no corredor por trs vezes seguidas ganharia um carto vermelho e a proibio de passar por aquela via pelo perodo de cinco dias aps uma corrida, o aluno recebia uma advertncia verbal, para que relem-brasse a regra; aps duas, um carto amarelo; trs era o limite.

    Depois de trs semanas, ningum estava respeitando os cartes ver-melhos. Como cinco dias uma eternidade para uma criana de 5 anos, decidiram que a penalidade no comprometeria mais do que dois dias, conta Carol. no exerccio da democracia que os alunos aprendem a ser responsveis, constroem os prprios limites com a ajuda dos educado-res. O limite no imposto, dado pelo prprio coletivo. a assembleia que diz o que pode e o que no pode, completa a diretora.

    O limite estruturante. Gosto da viso do limite como uma de-monstrao de amor pelo outro. a partir do limite que se convive, diz a educadora Gabriela Yanez. A partir do estabelecimento coleti-vo de limites, os estudantes desenvolvem uma postura ativa diante da regra, trazem tona suas vontades e dilemas pessoais para a esfera pblica. Nos relatrios das assembleias, possvel ler anotaes como: Carol quer saber quando ter a caa ao tesouro no bairro. Na linha abaixo, uma proposta: Isa sugeriu fazermos uma banda caipira.

    Como afirma Edgard Morin, no livro Os sete saberes necessrios educao do futuro, a democracia supe e nutre a diversidade dos in-

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    teresses. Cada vez mais as crianas da Politeia se sentem confortveis em compartilhar o que querem e sentem, acelerando a transformao da escola por meio das tantas vontades que vm tona. Todo dia estamos repensando qual o papel da escola. Camos mais em dvidas e conflitos do que em certezas, relata Yvan. Enquanto o educador desconstri seu papel de autoridade hierrquica, o aluno deixa de lado a postura de sim-ples receptor de informaes.

    o encontro entre a escola e os paisNa Politeia, as pesquisas representam o pontap inicial dos estudos.

    Na Amorim Lima, encontramos como essncia do dia a dia os roteiros de pesquisa, realizados em sales nos quais os alunos se distribuem em grupos de cinco integrantes.

    No caderno de pesquisa do 8 ano da Amorim Lima, os sete roteiros apresentados so: comunicao e memria, consumismo, digesto, o po-ema e o tempo, respirao, ritmos da vida e energia, e sangue e excreo.Em cada um dos roteiros, h uma srie de objetivos a cumprir, como conhecer um exemplo de epopeia ou entender a importncia da saliva e dos dentes na digesto, com indicaes de textos e tarefas diversas.

    Os alunos escolhem por onde comear. Mais da metade do tempo na escola dedicado aos roteiros - um estmulo perene pesquisa. Para alguns alunos, difcil se adaptar proposta, pois ela exige um exerccio consciente e ativo da capacidade de escolha. Para outros, a hora do salo o ponto alto da escola, um momento de exerccio de liberdade de esco-lha que lapida a autonomia. Afinal, os alunos no precisam se prender ao que est no roteiro. H quem decida criar grupos de estudos sobre certos temas, quem invente atividades a partir do que sugerido.

    O bom desta escola que sempre tem novidades, conta Sofia, 11 anos. Alm do tempo no salo, os alunos frequentam oficinas de artes, matemtica, portugus, educao fsica, latim, grego, violo, trabalho de concluso de curso (TCC), entre outras. O latim e o grego, por exemplo, entraram recentemente na rotina do 4 e 5 anos, por meio de uma par-ceria com a Universidade de So Paulo (USP). As novidades menciona-das por Sofia dizem respeito s aproximaes que a escola constri com

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    Volta ao mundo em 13 escolasAprender com a liberdade na Amorim Lima e Politeia

    diversos atores sociais, de universidades a organizaes no governa-mentais, de empresas a pessoas fsicas.

    Em pleno sbado de manh, encontramos na Amorim Lima o se-nhor Alcides de Lima, um mestre de capoeira que desenvolve oficinas para crianas, adolescentes e pais. Os participantes escrevem as letras de msicas da capoeira, leem textos de literatura e criam versos, desen-volvendo um olhar potico sobre essa arte. As escolas no entendem a cultura tradicional. J est na hora de a cultura tradicional ter o mesmo peso da acadmica, diz mestre Alcides, que tambm professor da USP e fundador do Centro de Estudos e Aplicao de Capoeira (Ceaca). Um dos resultados das oficinas o livro Cultura e educao, lanado na pr-pria escola. A capoeira um disparador para entender a nossa cultura, ressalta Alcides.

    Dias antes, presenciamos uma reunio entre cinco mulheres no refei-trio da escola. Esse encontro simboliza uma das principais caracters-ticas da Amorim Lima: a parceria com os pais. Sentamos ao lado delas, sem saber que se tratava de uma reunio da comisso de alimentao. Elas estavam provando a merenda da escola para verificar a qualidade. Discutiam quais os pontos positivos e negativos da refeio, que naque-le dia era composta por arroz, feijo, pur de batatas e carne de soja, servid