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Felipe Charbel Teixeira TIMONEIROS: Retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História. Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin Rio de Janeiro Junho de 2008

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Felipe Charbel Teixeira

TIMONEIROS: Retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História.

Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin

Rio de Janeiro Junho de 2008

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Felipe Charbel Teixeira

Timoneiros:

Retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini

Profº Marcelo Gantus Jasmin

Orientador Departamento de História - PUC-Rio

Profº Ricardo Augusto Benzaquen de Araujo Departamento de História – PUC-Rio

Profº Bernardo Medeiros Ferreira da Silva Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio

Profª Andréa Viana Daher Departamento de História - UFRJ

Profª Monica Grin Monteiro de Barros Departamento de História – UFRJ

Profº Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 02 de junho de 2008.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da Universidade, do autor e do orientador.

Felipe Charbel Teixeira

Bacharel em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde defendeu a dissertação A República bem ordenada: Francesco Guicciardini e a arte do bom governo. Autor de artigos publicados em periódicos nacionais, como: “O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método prudencial de análise da política”. In: Dados, vol. 50, nº 2, 2007; “Individualismo de fronteira em Romeu e Julieta e Noite de Reis”. In: ArtCultura, nº 15, 2007; “Narrativa e fronteira cultural”. Fênix, vol. 2, nº 2, 2005. Atuou nos anos de 2005 e 2006 como professor substituto no Departamento de História da UFRJ.

Ficha Catalográfica

Ficha Catalográfica

CDD: 900

Teixeira, Felipe Charbel

Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini / Felipe Charbel Teixeira ; orientador: Marcelo Gantus Jasmin. – 2008. 240 f. ; 30 cm

Tese (Doutorado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia

1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Retórica. 4. Prudência. 5. Historiografia. 6. Renascimento. 7. Maquiavel. 8. Guicciardini. I. Jasmin, Marcelo Gantus. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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Para Carla, pela compreensão e presença.

Para meus pais, José Antonio e Nádia, pelo apoio incondicional, e também para minhas irmãs Daniela e Helena Karyme.

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Agradecimentos Ao professor Marcelo Gantus Jasmin, por todo o apoio e incentivo, pelas

sugestões sempre valiosas e pertinentes e especialmente pela amizade ao longo de

seis anos de mestrado e doutorado.

À professora Andrea Daher, pelo diálogo sempre estimulante, argúcia analítica e

grande amizade e incentivo nos últimos anos.

Ao professor Ricardo Benzaquen de Araújo, com quem tanto aprendi em diversos

cursos; registro minha admiração intelectual.

Ao professor Bernardo Medeiros Ferreira da Silva e à professora Monica Grin,

pelos comentários e sugestões valiosas na argüição.

Aos professores e professoras que constroem na Pós-graduação em História da

PUC-Rio um rico ambiente de debates: além dos já referidos, cito Antonio

Edmílson Martins Rodrigues, Luiz Costa Lima, Ilmar Rohloff de Mattos, Maria

Elisa Sá Mader, João Masao Kamita, Luiz Resnik, Margarida de Souza Neves,

Berenice Cavalcante e demais.

Ao professor Manoel Salgado, que aprendi a admirar desde os tempos de

graduação, e às professoras Norma Côrtes e Maria Aparecida Motta, pela

enriquecedora convivência no PROCULT nos anos de 2005 e 2006.

Aos meus queridos amigos dos anos de mestrado e doutorado, parceiros de

debates, conversas e trocas intelectuais das mais estimulantes, sem os quais teria

sido impossível chegar até aqui com uma certa dose de saudosismo: Danrlei de

Freitas Azevedo, Sérgio Xavier, Gustavo Naves Franco, Marcelo Rangel,

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Leonardo Padilha, Renata Schittino, Affonso Celso Thomaz Pereira, Maria

Eugênia Bertarelli, Luiza Rauter, Fabrina Magalhães Pinto, Janaína Oliveira,

Bernardo Buarque de Hollanda, Luiza Laranjeira, Fefa, além de Alexander

Martins Vianna e Luiz Cristiano Andrade, pelas agradáveis discussões sobre

temas ligados ao Renascimento, no ano de 2005.

Aos irmãos de sempre: Alípio Carmo, Jorge Roberto, Wander Paulus e Pedro

Barbosa.

Aos funcionários e funcionárias do departamento de História da PUC-Rio, sempre

solícitos, pacientes e bem-humorados: Cláudio, Cleuza, Anair e especialmente

Edna Timbó.

À CAPES, pela bolsa de estudos concedida.

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Resumo

Teixeira, Felipe Charbel; Jasmin, Marcelo Gantus. Timoneiros: retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. Rio de Janeiro, 2008, 240 p. Tese de Doutorado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O conceito de prudência possui centralidade em Maquiavel e Guicciardini,

sendo empregado para qualificar o bom juízo, a celeridade decisória e a aguçada

capacidade de avaliar as transformações da realidade. Os prudentes, além de

reunirem em si as qualidades citadas, devem ser capazes de articular os produtos

do cálculo cuidadoso da realidade na forma de textos ou orações regrados segundo

preceitos definidos em tratados clássicos de arte retórica. Abrem-se, assim, dois

horizontes distintos, porém mutuamente dependentes, em torno da prudência. De

um lado, a ênfase no cálculo e medida das coisas do mundo, com destaque para a

questão dos efeitos, ou seja, os possíveis resultados das ações dos governantes e

demais agentes envolvidos nos processos de tomada de decisões em Repúblicas,

principados, reinos ou estados papais; de outro, a representação de uma

performance letrada da prudência em textos compostos segundo preceitos ético-

retóricos-poéticos convencionais. Trata-se, nesta tese, da discussão desta dupla

dimensão acerca da prudência, com ênfase no exame das histórias compostas por

Maquiavel e Guicciardini.

Palavras-chave Retórica, Prudência, Historiografia, Renascimento, Maquiavel, Guicciardini.

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Abstract

Teixeira, Felipe Charbel; Jasmin, Marcelo Gantus. Helmsmen: rhetoric, prudence, and history in Machiavelli and Guicciardini. Rio de Janeiro, 2008, 240 p. Tese de Doutorado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The concept of prudence is vital for the appropriate understanding of

Machiavelli and Guicciardini’s texts, being used in order to qualify the good

judgment, the ability to make fast decisions and the acute comprehension of the

transformations of reality. The prudent men must also be capable of articulating

the products of the careful analysis of the reality’s movements in texts composed

according to the precepts established in classical treatises of rhetoric. Thus one

institutes two distinct, however mutually dependent, horizons concerning

prudence. On the one hand, the emphasis on the calculation and measure of the

things of the world – the possible results of the actions of governors and the other

agents responsible for taking decisions in Republics, Principalities, Kingdoms or

Papal States. On the other hand, the representation of prudence’s literate

performance in texts composed according to the ethical and rhetorical and poetical

rules established by the tradition. This thesis discusses this double character

associated to prudence, especially through the exam of the histories composed by

Machiavelli and Guicciardini.

Keywords Rhetoric, Prudence, Historiography, Renaissance, Machiavelli, Guicciardini.

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Sumário

1. Introdução: navegando num mar agitado pelos ventos. 11

2. A prudência em Maquiavel e Guicciardini. 21

2.1 O homem e o corpo político. 21

2.2 O princípio da analogia. 48

2.3 Breve excurso: da phronesis à prudentia. 54

2.4 Verità effetualle e prudência: os “novos modos e ordens”. 69

2.5 Uma retórica prudencial. 98

3. Um remédio contra a Fortuna? Maquiavel e Guicciardini como

homens de letras.

106

3.1 Exílio, ócio e melancolia. 106

3.2 Ócio sem dignidade: o epistolário Maquiavel-Vettori e a

Consolatoria de Guicciardini.

120

3.3 O homem de letras na escala da glória. 149

4. Ars historica como arte da prudência. 162

4.1 Uma construção de fatos e palavras. 162

4.2 A concepção humanista da ars historica. 181

4.3 Maquiavel: o sabor e o sentido das histórias. 193

4.4 Guicciardini e os limites da prudência. 207

5. Considerações finais. 216

6. Referências Bibliográficas. 219

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Eu estivera ao leme na noite escura, a lanterna ardendo fraca sobre minha cabeça.

(Franz Kafka. O Timoneiro).

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1. Introdução: navegando num mar agitado pelos ventos.

O conceito de prudência possui centralidade nos escritos políticos e

históricos de Maquiavel e Guicciardini, sendo empregado para qualificar o bom

juízo, a celeridade decisória e a aguçada capacidade de avaliar as transformações e

sutilezas da realidade – ou coisas do mundo, como diziam os florentinos do século

XVI. Atentos à dinâmica entre diversidades substanciais, aspectos estáveis ou

recorrentes das coisas humanas em tempos diversos, e acidentes, eventos fortuitos

e casuais associados à Providência ou à Fortuna, os prudentes, além de reunirem

em si as qualidades citadas, devem ser capazes de articular os produtos do cálculo

cuidadoso da realidade na forma de textos ou orações de retórica deliberativa e/ou

epidítica, regrados segundo preceitos definidos em tratados como a Retórica a

Herênio, os textos ciceronianos De Inventione e De Oratore, além da Institutio

Oratoria de Quintiliano.

Não existe prudência sem reconhecimento público: apenas os homens

reputados dignos e honestos por seus pares podem almejar glória e distinção. Para

que a reputação de prudente seja alcançada faz-se necessário dominar as várias

convenções ético-retóricas prescritas para o tratamento hierárquico entre iguais,

superiores e inferiores. Um homem incapaz de se expressar eloqüentemente em

cerimônias públicas ou instâncias deliberativas de uma República; inábil na forma

de tratar o príncipe ou condottiero de um regime stretto; inepto na composição de

histórias e tratados segundo o decoro letrado (regras de conveniência previstas e

aguardadas por leitores e ouvintes); um homem sem qualidades visíveis e bem

definidas jamais será apontado como prudente, mesmo que demonstre

impressionante argúcia analítica (isoladamente, ela passaria despercebida).

Abrem-se, assim, dois horizontes distintos, porém mutuamente dependentes,

em torno da tópica da prudência. De um lado, a ênfase no cálculo e medida das

coisas do mundo, com destaque para a questão dos efeitos, ou seja, os possíveis

resultados das ações dos governantes e demais agentes envolvidos nos processos

de tomada de decisões em Repúblicas, principados, reinos ou estados papais. De

outro, a representação de uma performance letrada da prudência em textos

compostos segundo preceitos ético-retóricos-poéticos definidos e examinados

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pelas autoridades antigas e humanistas: dramatizações (nos diálogos, e

parcialmente nas histórias) de processos orais de deliberação pública – caso do

Dialogo de Reggimento di Firenze de Guicciardini, da Arte da Guerra e da Vita di

Castruccio Castracani de Maquiavel, e das obras históricas compostas por ambos

–, ou exposições de argumentos na forma de tratados, comentários ou máximas,

como O Príncipe e os Discorsi, redigidos pelo secretário, e o Discorso di

Logrogno, as Considerazioni e os Ricordi de Guicciardini. Estas duas dimensões

são indissociáveis; porém, para efeito analítico, será preciso muitas vezes tratá-las

isoladamente, sem perder de vista sua articulação necessária.

O conhecimento prudencial assenta-se em critérios de uma racionalidade

não-cartesiana, onde a experiência e o poder da tradição são enormemente

valorizados, e a palavra das autoridades – sejam elas as Escrituras, livros de

cabala, os astros (cujas vozes se revelam nos mapas astrológicos) ou autores

venerados da Antiguidade, como Aristóteles, Cícero, Sêneca, Quintiliano,

Salústio, Tito Lívio, Lucrécio, Tácito, entre muitos outros – possui o poder de Lei,

mesmo para aqueles reverenciados pela posteridade como inovadores em certos

campos, casos de Maquiavel e Guicciardini. A prudência consiste, nesse sentido,

no dispositivo responsável por flexibilizar de algum modo essas Leis,

interpretando-as segundo os princípios da contingência, da necessidade e da

“qualidade dos tempos”; ela permite a delimitação de regras provisórias de

validação, estabelecidas segundo o critério da probabilidade e articuladas

analogicamente, mostrando-se capaz, assim, de lançar alguma luz sobre a

realidade sempre cambiante.

Em analogia recorrente, a prudência é vista como o leme que permite a

navegação com alguma segurança em mares incertos. O timoneiro competente é

precisamente aquele capacitado a agir segundo o bom juízo; a tomar decisões

adequadas após analisar e interpretar devidamente os movimentos das “coisas do

mundo”; a agir no tempo certo, prevendo com alguma segurança, através do

exame da situação presente em comparação com momentos passados – isto pela

experiência no trato público e pela leitura atenta das histórias antigas e modernas

–, os movimentos imediatos e futuros dos agentes políticos; a reconhecer os

limites de toda ação, atendo-se exclusivamente ao que é possível realizar;

finalmente, a garantir, com um mínimo de segurança, a consecução dos fins

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últimos desejados e adequados à saúde da res publica – fins honestos, como

argumentarei.

No primeiro capítulo, procuro situar a produção letrada de Maquiavel e

Guicciardini em relação a um corpo de idéias comuns aos florentinos do século

XVI acerca da cosmologia, teoria dos humores, experiência do tempo e natureza

humana – aspectos de um sistema de representações coletivas distinto do

moderno. Enfatizo, nesse sentido, o tratamento de questões como: a singularidade

de uma forma de experiência temporal irredutível a metáforas geométricas como

“tempo circular” ou “tempo linear”; a associação entre a idéia de “diversidades

substanciais” e os princípios de estabilidade da natureza humana e recorrência

circular-assimétrica de padrões gerais, como costumes e formas de governo; a

teoria hipocrático-galênica dos humores, aplicada ao exame do corpo político; a

centralidade do princípio da analogia para o cálculo prudencial e urdidura de

juízos fundamentados no recurso à experiência e às “histórias antigas e

modernas”, entre outros aspectos.

Desnecessário dizer que não se trata de uma dedução do “particular dos

textos” do “geral da cultura” – o texto não é pensado como entidade alheia às

práticas culturais, tampouco a cultura é concebida estaticamente, como se fosse

sempre igual a si mesma –, mas da tentativa de compreender alguns mecanismos

de circulação e “negociação” de “energia social” nos textos políticos e históricos

de Maquiavel e Guicciardini, o que implica, entre outras coisas, partir das

seguintes premissas, elencadas por Stephen Greenblatt em Shakesperean

Negotiations:

“1. Não pode haver apelo à idéia de gênio como origem das energias da grande

arte.

2. Não pode haver criação sem motivo.

3. Não pode haver representação transcendente, atemporal ou imutável.

4. Não pode haver artefatos autônomos.

5. Não pode haver expressão sem uma origem e um objeto, um de e um para.

6. Não pode haver arte sem energia social

7. Não pode haver geração espontânea de energia social”.1

1 GREENBLATT, Stephen. Shakespearian Negotiations, p.12.

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Como argumenta Greenblatt, a “energia social”2 circula no contínuo

comércio simbólico de valores culturais. Ao analisar o conceito de prudência em

Maquiavel e Guicciardini procuro destrinchar diversos fios, elementos peculiares

aos seus escritos que não dizem respeito a “visões de mundo” rigidamente

conformadas, mas a processos dinâmicos onde interagem práticas ético-retóricas e

valores culturais arraigados entre os florentinos acerca do tempo, do cosmo, do

corpo humano e político e da natureza de homens e cidades, não só

compartilhados em determinado “contexto intelectual” como também suscetíveis

a “negociações” de toda espécie: releituras, adequações, interpretações, etc. Como

pretendo mostrar, as apropriações das mais diversas referências clássicas e

humanistas, assim como as maneiras particulares com que Maquiavel e

Guicciardini lidavam com muitas das concepções circulantes entre os florentinos

do Cinquecento sobre o homem, o tempo e a natureza – especialmente a relação

entre diversidades substanciais e acidentes –, alicerçam uma redefinição3 do

conceito de prudência calcada tanto na valorização da argúcia do olhar para a

dinâmica complexa das coisas do mundo quanto no deslocamento da prudência do

quadro convencional das virtudes cardeais, especialmente no que diz respeito à

sua subsunção à justiça – sem que por isso ela deixe de ser considerada uma

virtude.

Em seguida, após analisar brevemente o princípio da analogia como modo

particular de inferência do juízo prudencial – compreendida como disposição

calculadora da “alma racional”, para falar como Aristóteles, a prudência opera

com dados contingentes da realidade, mobilizando-os analogicamente numa busca

incessante de semelhanças entre elementos díspares do mundo –, discuto algumas

dentre as mais importantes tradições interpretativas sobre a prudência, com

destaque para a filosofia prática aristotélica, para a discussão da indissociabilidade

entre prudência e retórica em Cícero, para o tratamento tomista e para as reflexões

dos humanistas Matteo Palmieri e Giovanni Pontano sobre a questão. A maneira

2 Cf. Idem. Ibid., p.6. “We identify energia only indirectly, by its effects: it is manifested in the capacity of certain verbal, aural, and visual traces to produce, shape, and organize collective physical and mental experiences”. 3 O emprego da palavra “redefinição” não deve se confundir com uma intencionalidade transformadora. Tal redefinição corresponde a movimentos sutis, e pode ser pensada como uma reconfiguração do conceito de prudência, ou como uma série de ajustes conceituais efetuados na própria mobilização e emprego da categoria em ocasiões específicas, sem que gerem, contudo, movimentos teóricos de ruptura com reflexões de autoridades como Aristóteles e Cícero acerca da phronesis ou da prudentia.

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com que Maquiavel e Guicciardini concebiam a prudência é ao mesmo tempo

devedora de aspectos significativos dessas reflexões, especialmente a aristotélica,

e inovadora em sua ênfase no exame dos efeitos das ações e na antecipação das

possíveis deliberações dos agentes envolvidos nos processos decisórios de

Repúblicas, principados, monarquias e estados papais. Não que estes elementos da

prudência fossem estranhos aos tratadistas gregos e latinos; a redefinição do

conceito não constitui, nesse sentido, uma ruptura com as práticas ético-retóricas

antigas e humanistas. Por meio da análise da mobilização, nos textos políticos e

históricos de Maquiavel e Guicciardini, de certos lugares-comuns da retórica

deliberativa – como as tópicas da honestidade, da utilidade, da segurança e da

necessidade –, argumento que a ênfase do secretário na verità effetualle della cosa

não representa, como defende John Najemy, uma “intenção de estabelecer um

discurso da política independente da retórica e da eloqüência”.4 Tampouco

compartilho da posição de Athanasios Moulakis de que as recorrentes assertivas

do personagem Bernardo del Nero no Dialogo del Reggimento di Firenze de

Guicciardini, prescrevendo a atinência do analista político aos “efeitos” e à

“natureza das coisas”, no lugar da investigação de “um governo immaginato, que

seja mais fácil de aparecer nos livros que na prática”,5 sejam indícios de um

“constitucionalismo realista avant le mot”, efetiva ruptura com o “republicanismo

clássico” decorrente da descaracterização do vir bonus dicendi peritus.6 Defendo,

em concordância com Victoria Kahn, que Maquiavel – assim como Guicciardini,

acrescentaria – “não suplanta a retórica com uma visão mais realista da política;

ao contrário, faz a política mais profundamente retórica do que havia sido até

então”.7 Nesse sentido, a reconfiguração do conceito de prudência corresponderia

a uma mudança de foco analítico cujo sentido fundamental seria não o de operar

4 NAJEMY, John. “Language and The Prince”, p.91. “[…] The Prince announces its intention to establish a discourse of politics independent of rhetoric and eloquence”. 5 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.60. 6 MOULAKIS, Athanasios. Republican Realism in Renaissance Florence, p.22. “Realist constitutionalism is used here to describe this innovating complex of ideas; a constitutionalism avant le mot […]. What at first sight appears as a revival of classical republicanism is in fact a departure from it, as well as a departure from medieval ecumenic order. The exemplary statesman is not Cicero’s ideal of the vir bonus dicendi peritus, ‘the good man expert in speech’’. He is instead the savvio, the prudent man, capable of shrewd an reasoned, informed by a worldly experience normally associated with high social standing”. 7 KAHN, Victoria. Machiavellian Rhetoric, p. 8. “[...] I argue that Machiavelli does not supplant rhetoric with a more realistic view of politics but rather makes politics more deeply rhetorical than it had been in the earlier humanist tradition”.

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uma crítica destrutiva do humanismo, e sim a tentativa de aperfeiçoar seus

mecanismos cognitivos segundo o critério da adaptação às condições dos tempos.

Como percebe Alcir Pécora, “o exame de procedimentos previstos e

aplicados pelas convenções letradas”8 estabelecidas nos tratados antigos de

retórica – como mobilização de lugares-comuns, medidas dispositivas e figuras da

elocução – torna possível demarcar “determinações convencionais e históricas

constitutivas dos sentidos verossímeis”9 de textos complexos, anteriores ao

período Romântico. Defendo que o exame da mobilização de certos lugares-

comuns da retórica deliberativa e epidítica permite a delimitação de um certo

caráter convencional dos escritos de Maquiavel e Guicciardini, condição

essencial para que se possa estabelecer, segundo o critério do verossímil histórico,

traços de tensões com as tradições clássica e humanista, pensados não como

produtos de rupturas intencionais, e sim como resultados da convergência de

diversos debates e referências citadinas.

Pode-se citar, nesse sentido, a retórica típica das pratiche, reuniões dos

florentinos ilustres para aconselhamento das magistraturas da República10 que

foram registradas por redatores oficiais, um dos quais Maquiavel, entre 1498 e

1512; pode-se perceber, nos discursos dos oradores, tanto uma ênfase nas tópicas

tradicionais da retórica deliberativa, como a honestidade, a utilidade, a segurança

e a necessidade, quanto a valorização do critério dos “efeitos” – ou seja, a

tentativa de antecipar as possíveis deliberações e ações dos agentes envolvidos

nos diversos processos decisórios atrelados à vida política. Também as

chancelarias e magistraturas da República possuíam formas particulares de debate

não muito vinculadas ao tratamento humanista acerca do bom governo e da

concórdia; trata-se do que Maurizio Viroli denominou “arte do estado” – conjunto

de preceitos empíricos associados à condução da res publica ou de um stato

principesco, os quais visavam à manutenção e ampliação dos seus domínios.11

A maneira com que Maquiavel e Guicciardini compreendem os fenômenos

políticos é em grande medida devedora desses debates, sem estar diretamente

subsumida a eles. O que há de específico nesta forma de abordagem das “coisas

do mundo” – e ao mesmo tempo constitui o elemento-chave para as significativas

8 PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros, p.12. 9 Idem. Ibid., p.11. 10 Cf. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p.29.

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divergências existentes entre os dois acerca de questões como a imitação dos

romanos, a concórdia e as possibilidades de reabilitação da antiga virtus – é a

singularidade que a categoria de prudência adquire nos escritos políticos e

históricos de Maquiavel e Guicciardini. Não se trata mais da phronesis aristotélica

ou da prudentia de Cícero e dos humanistas, e sim de uma prudenzia distanciada

do quadro das virtudes cardeais e dos imperativos éticos que a atrelavam à justiça

e às demais virtudes morais. Nesse sentido, a redefinição da prudência está

diretamente associada às mudanças no tratamento da virtù – em Maquiavel pela

vinculação do conceito ao critério da necessidade; em Guicciardini como efeito da

pouca importância atribuída à virtù, como notam, respectivamente, Quentin

Skinner e John Pocock.12

Concebida como disposição calculativa retoricamente vinculada ao decoro

letrado dos gêneros discursivos e à produção de efeitos persuasivos – o que, se

não chega a constituir novidade, diferencia-se de reflexões como a aristotélica e a

ciceroniana pela forma peculiar com que tal articulação é proposta e consumada –,

a prudência adquire um novo estatuto, por estar no cerne de um olhar para os

fenômenos políticos calcado na valorização do exame das minúcias da realidade,

das condições dos tempos e das mudanças da Fortuna; em suma, um olhar mais

atento à dinâmica das coisas do mundo que a possíveis deontologias. Nesse

sentido, argumento que a ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à

efetividade analítica não opera uma separação entre retórica e política; ao

contrário, a idéia de verità effetualle, compartilhada por ambos, realça tanto a

importância do cálculo cuidadoso da dinâmica da realidade como da produção,

pelo orador e pelo homem de letras, de efeitos persuasivos sem os quais o

ajuizamento, ele próprio condicionado por preceitos ético-retóricos convencionais,

não será reconhecido como prudente. Daí ser possível atestar uma

indissociabilidade entre retórica, prudência e decoro letrado, cuja unidade

conforma uma efetiva retórica prudencial: somente um discurso copioso tanto em

suas figuras e ornato quanto no conhecimento da matéria (rerum cognitione) pode

ser capaz de produzir bons efeitos, incitando os ouvintes ou leitores à ação.

Discurso copioso que é o produto do engenho de homens prudentes,

11 Cf. VIROLI, Maurizio. From politics to reason of state, p. 180.

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simultaneamente dedicados à vita negotiosa e às práticas letradas – ou, no caso de

Maquiavel e Guicciardini, forçosamente apartados da vita negotiosa. Daí a

discussão, no segundo capítulo, do lento e descontínuo processo de formação de

uma representação letrada – a imagem de homem de letras (litterati) –, nos

escritos post res perditas de ambos.

Tanto Maquiavel quanto Guicicardini construíram importantes trajetórias

públicas, atuando como agentes da vida florentina e italiana nos primeiros

decênios do Cinquecento. Maquiavel foi segundo chanceler da República e

secretário dos Dez entre 1498 e 1512, quando precisou abandonar seus cargos e a

cidade por força do retorno dos Medici. Guicciardini iniciou sua atuação pouco

antes da queda da República, como embaixador florentino junto à corte de

Fernando de Aragão, rei de Espanha, tendo servido aos Medici como governador

de importantes províncias e lugar-tenente papal até 1527, ano do saque de Roma e

prisão do papa Clemente VII, seu protetor. Embora tenham ocasionalmente se

dedicado à escrita em momentos de otium inter negotium, em conformidade com a

noção ciceroniana de “ócio com dignidade” – pode-se mencionar os versos

maquiavelianos da primeira Decenal (elaborada entre 1504 e 1506), além de

opúsculos diversos redigidos pelo secretário durante missões oficiais, e no caso de

Guicciardini importantes registros como o Discorso di Logrogno (1512), o

Dialogo del Reggimento di Firenze (1521-1524), as primeiras versões do Ricordi,

além de alguns textos inacabados, sem contar as juvenis Storie Fiorentine,

compostas antes de 1512 –, a situação de exílio forçado e afastamento

compulsório dos negócios públicos foi decisiva para que viessem a conceber para

si mesmos um lugar como homem de letras, se não tão digno e glorioso em

comparação com a participação ativa na condução dos assuntos citadinos,

certamente não destituído de importância.

Argumento que a construção de tal representação letrada – que jamais chega

a se afirmar plenamente como um entendimento estável acerca da relação entre

ócio e negócio, destituído de tensões e ambigüidades –, permite a Maquiavel e

Guicciardini se manterem atrelados às discussões políticas de seu tempo de modo

honroso, isto porque na composição de tratados, comentários, diálogos, vidas e

12 SKINNER, Quentin. Maquiavel, p. 65; POCOCK, John. The Machiavellian Moment, p. 238. “There could be no clear statement of Guicciardini’s refusal to enter into that world of virtù that so fascinated Machiavelli”.

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histórias, subgêneros da retórica deliberativa e epidítica, eles apresentam o

produto de cálculo cuidadoso e medido das coisas do mundo – com base nos

critérios da experiência, da leitura atenta das histórias, da ragione e da discrezione

–, segundo preceitos ético-retóricos que não apenas “enformam” o que será dito,

mas que efetivamente participam de todos os momentos do cálculo prudencial.

Nesse sentido, as produções letradas de Maquiavel e Guicciardini podem ser

compreendidas como performances prudenciais do bom juízo, cuja utilidade

pública, condição decisiva para o reconhecimento da prudência de tais escritos, se

revela de várias formas: na exposição do percurso de um ragionamento, pela

dramatização do diálogo entre homens reputados prudentes; pelo tratamento

sistemático de uma matéria visando o aconselhamento; pelo comentário de

auctores da Antiguidade ou mesmo de obras contemporâneas; finalmente pela

delimitação de lições prudenciais a partir da memória dos acontecimentos

(memoria rerum gestarum) – através do registro das histórias antigas e modernas

ou do acúmulo de experiência –, regrada como ars historica.

O terceiro capítulo privilegia exatamente a análise da ars historica de

Maquiavel e Guicciardini. Por ars historica, ou simplesmente história, entenda-se

um tipo de relato regrado segundo os preceitos associados aos gêneros retóricos

epidítico e deliberativo, definidos no livro II do diálogo ciceroniano De Oratore e

retomados por tratadistas como Bartolommeo della Fonte, Giovanni Pontano e

Paolo Cortesi no século XV. Os usos que faço do vocábulo “história” não devem

se confundir em momento algum com seu sentido moderno – a história como

singular coletivo, evento e representação de si mesma.13 Trata-se, ao contrário, de

uma concepção retórica do relato histórico, cujas duas finalidades básicas seriam

a de deleitar a audiência ou os leitores – produzindo efeitos de presença por meio

de narrativa copiosa em figuras e idéias, breve, ritmada e repleta de discursos

diretos in utramque partem, representações letradas do debate na res publica – e

de movê-los à ação, o que poderia ser obtido através da amplificação de virtudes e

vícios, conformando modelos para a imitação ou para o repúdio. Nesse sentido, se

a história, entre os humanistas, era concebida como uma forma de arte da

prudência – arte no sentido de uma técnica, tekhnè –, monumento cívico de

afirmação pública da concórdia e da liberdade, em Maquiavel e Guicciardini ela

13 Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Historia Magistra Vitae”. In: Futuro Passado, pp. 47-60.

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também será um tipo de arte da prudência, com outros contornos, porém: a

história deixa de possuir um caráter monumental e adquire – ou recupera, segundo

o critério maquiaveliano do verdadeiro conhecimento das histórias, ou seja, da

leitura diligente das histórias antigas com vistas à modelagem de ações imitativas

no presente – um aspecto de evento. Nesse sentido, as Istorie Fiorentine e a Storia

d’Italia mais ensinam a ajuizar que propriamente oferecem lições generalizantes

de conduta; embora máximas, sentenças e lugares-comuns circulem livremente

nestes textos, eles atuam como alicerces dos ajuizamentos sobre as

particularidades das coisas do mundo, e não como extratos universais de validade

indistinta, aplicáveis nas mais diversas circunstâncias. Elas ensinam a navegar

“num mar agitado pelos ventos”, indicam os modos e condutas que o timoneiro

deve seguir, traçam percursos possíveis; porém, não são capazes de oferecer

segurança no trajeto, sempre suscetível às mais diversas variações e

contingências. Assim, embora seja o fio condutor das Istorie Fiorentine de

Maquiavel e da Storia d’Italia de Guicciardini, a prudência é nelas apresentada e

tematizada em seus limites, por oferecer como lição não um estável produto final

do bom juízo, mas o incerto e efêmero percurso do seu próprio ragionamento.

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2. A prudência em Maquiavel e Guicciardini.

A sentence is but a cheveril glove to a good wit

(Shakespeare. Twelfth Night)

2.1 O homem e o corpo político.

Cosmologia, teoria dos humores, experiência do tempo e natureza humana:

algumas considerações sobre o sistema de representações coletivas dos

florentinos na primeira metade do século XVI e sua centralidade para a

compreensão dos sentidos verossímeis, segundo o critério da particularidade

histórica, dos textos políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini.

A retórica prudencial de Maquiavel e Guicciardini possui uma lógica

peculiar que só pode ser compreendida em sua particularidade história se pensada

em função de um sistema de representações coletivas de caráter não-cartesiano,

estruturado por uma forma de conhecimento que atribui importância substantiva

às similitudes, analogias e relações simpáticas entre as coisas do mundo, e

condicionado por uma cosmologia específica alicerçada na distinção entre uma

esfera celeste, sempre igual a si mesma, e uma esfera sublunar, suscetível a ciclos

e transformações condicionados pelo movimento dos astros.1 Em As Palavras e as

Coisas, Michel Foucault chamou de epistéme do século XVI a esta forma

específica de compreensão da realidade, distinta, em quase todos os seus aspetos

centrais, da que se afirmará na modernidade.

Em The Machiavellian Cosmos, Anthony J. Parel examina os escritos de

Maquiavel pelos seguintes vieses: o papel dos astros nas coisas humanas e a

importância da teoria dos humores, de origem hipocrático-galênica, para a

compreensão da idéia de “corpo político” no autor florentino. Segundo Parel, estes

1 Sobre a questão das representações coletivas, conferir: CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. In: À beira da falésia, p.72. “Tentar superá-las [as divisões entre ‘objetividade das estruturas’ e ‘subjetividade das representações’] exige, primeiramente, considerar os esquemas geradores dos sistemas de classificação e de percepção como verdadeiras ‘instituições sociais’, incorporando sob a forma de representações coletivas as divisões da organização social [...], mas

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são aspectos decisivos da compreensão maquiaveliana da política, intrinsecamente

associados à maneira com que o secretário concebe a instabilidade das coisas do

mundo, o papel da Fortuna nos assuntos humanos, o sentido de virtù e defende o

princípio da imitação dos antigos.

Segundo esta lógica, haveria um tipo de “causalidade exercida pelos céus

tanto nas ‘coisas do mundo’ quanto nas ‘coisas humanas’”, a submeter os seres

humanos “às mudanças qualitativas supostamente ligadas aos movimentos astrais

e às limitações impostas a eles pelo humor individual”.2 Configura-se, assim, um

tipo de naturalismo político alicerçado na idéia de uma relação entre movimento

dos astros, equilíbrio dos humores do corpo humano e político e instabilidade de

ordenações, cidades, leis e costumes. A tópica da “vontade dos céus”, recorrente

em diversos escritos florentinos da primeira metade do século XVI, encontra-se

intimamente associada a esta compreensão da dinâmica cosmológica: de acordo

com Maquiavel, o Duque de Atenas teria sido mandado a Florença “pela vontade

dos céus, que preparavam as coisas para males futuros”3; Guicciardini, pela voz de

Bernado del Nero, afirma no Dialogo del Reggimento di Firenze que a tirania

pode surgir como resultado da “má fortuna ou das disposições dos céus”.4

Tal forma de compreender a ordem do cosmo remete à física aristotélica, e

parte da premissa de que o movimento do mundo celeste é eterno e perfeitamente

circular.5 Já o mundo sublunar se submete a alterações e transformações

contínuas, atreladas à dinâmica da esfera celeste, as quais incidem em elevada

instabilidade das “coisas do mundo” e das “coisas humanas”. Numa famosa

passagem dos Discorsi, Maquiavel ampara sua defesa da imitação das ações

virtuosas dos antigos com o seguinte argumento: “o céu, o sol, os elementos e os

homens” não mudaram de “movimento, ordem e poder, distinguindo-se do que

eram antigamente”.6 Céu, sol e os elementos são imutáveis. Já as coisas humanas

apresentam oscilações contínuas; no entanto, por estarem submetidas ao

também considerar, corolariamente, essas representações coletivas como as matrizes práticas que constroem o próprio mundo social”. 2 PAREL, Anthony J. The Machiavellian Cosmos, p.9. “’Natural cause’ I interpret here to mean the causality exercised by the heavens on both the ‘things of the world’ and on ‘human things’”. 3 MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, pp. 132-2. 4 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 86. “ma non mi pare già che se la mala fortuna loro o la disposizione de’ cieli ha voluto che surga uno tiranno [...]”. 5 Cf. ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa, p.34; BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles, pp.43-74. 6 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, Proêmio, p.7.

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movimento perfeito da esfera celeste, mostram-se suscetíveis a certos padrões de

regularidade e estabilidade – respectivamente os ciclos assimétricos de ascensão e

queda dos povos e costumes e a natureza humana constante –, efetivas condições

de possibilidade para a imitação dos antigos. “A grande verdade”, diz Maquiavel

na abertura do livro III dos Discorsi, “é que todas as coisas do mundo têm seu

tempo de vida; mas as que seguem todo o curso que lhes é ordenado pelo céu

geralmente são aquelas cujo corpo não se desordena, mas se mantém de modo

ordenado, sem alterações, ou, se as houver, com alterações que o tornem mais

saudável, e não o danifiquem”.7 As coisas do mundo, para o secretário, só se

mostram duradouras quando seguem a tendência das predisposições celestes,

numa espécie de adaptação às “condições dos tempos” capaz de tornar possível a

regeneração e fortalecimento dos corpos políticos.

Para empregar palavras do historiador Paolo Rossi, “o mundo terrestre” era

entendido como “o mundo da alteração e da mutação, do nascimento e da morte,

da geração e da corrupção”, ao contrário da esfera celeste, “inalterável e perene”,

com seus movimentos regulares onde “nada nasce e nada se corrompe”.8 Não se

tratava, porém, de uma dicotomia irrestrita: havia um sentido de integração entre

as duas esferas. Embora o mundo terrestre fosse visto como lugar dos ciclos de

nascimento e morte, geração e corrupção, suas oscilações não eram

compreendidas simplesmente como um caos de eventos difusos; muitas das

transformações do mundo sublunar eram consideradas efeitos de uma causa

primeira, o movimento dos astros.9 Prevalecia, assim, a chamada “doutrina da

simpatia”, a qual pressupunha, para falar como o filósofo neoplatônico Marsílio

Ficino, “uma amizade entre as estrelas e os elementos”.10 Como se acreditava que

todos os entes do mundo sublunar eram compostos pelos quatro elementos (terra,

água, fogo e ar), supunha-se que a trajetória das estrelas deveria necessariamente

interferir, se não completa, ao menos parcialmente, nas agitações das “coisas do

mundo” – inclusive nas transformações sucessivas a que se submetiam povos e

cidades. Caberia aos homens interpretar tais tendências e se adequar a elas,

visando assim à estabilidade e saúde dos costumes e ordenações políticas.

7 Idem. Ibid., III, 1, p.305. 8 ROSSI, Paolo. Op. cit., p.36. 9 Cf. FARACOVI, Ornella Pompeo. “Introduzione”. In: Scritti sull’astrologia, p.9. 10 FICINO, Marsilio. Sopra lo amore, III, iii, p. 51. “É ancora nelle stelle e negli elementi una certa amicizia, la quale l’Astrologia considera”.

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Se a idéia de uma relação de determinação entre a esfera celeste e o mundo

sublunar não sofrerá abalos significativos até o questionamento dos pressupostos

da física aristotélica por Copérnico, Galileu, Kepler e outros11, o problema do

caráter divinatório da astrologia se faz motivo de intensa controvérsia no século

XVI.12 Em fins do Quattrocento, inventivas contra a astrologia judicial foram

redigidas por Girolamo Savonarola e Pico della Mirandolla, entre outros.13

Alguns, como Marsílio Ficino, mostravam-se favoráveis à apreciação dos

movimentos astrais para o exame das coisas humanas; o filósofo argumenta em

De vita coelitus comparanda que o poder de atração dos astros deveria ser levado

em conta no tratamento de uma enfermidade, com vistas à melhoria das condições

gerais do paciente.

De acordo com esta lógica, como corpo e alma (essência divina) eram

considerados indissociáveis14, e sendo o corpo formado por humores compostos

pelos quatro elementos – e o próprio temperamento percebido como o resultado

da variação dos humores –, a atração exercida pelos astros será invariavelmente

sentida pelos seres humanos. A medicina deve consistir, segundo Ficino, na

manipulação desse poder de atração, visando ao máximo o equilíbrio dos humores

corporais (sangue, linfa, bile amarela e bile negra), situação alcançável, ao menos

parcialmente, com o uso de amuletos, plantas, alimentos e perfumes credenciados

a atrair as forças de determinados planetas.15 Por outro lado, a capacidade de

prever o futuro pelos astros é vista com bastante reserva por Ficino em sua

Disputa contro il giudizio degli astrologi – tais previsões, segundo ele, “não

11 Como percebe Claude-Gilbert Dubois, as imagens do “universo-imagem” e do “universo-mensagem” predominavam no século XVI. “Para escapar do dilema”, afirma ele, “foi preciso elaborar um terceiro grupo de metáforas: as do universo-objeto, universo-máquina, universo-relógio, cujo campo vai determinar o surgimento de um pensamento ‘científico’; na verdade, uma terceira via do imaginário desenvolvida com a língua dos artesãos que falam de técnicas e dos mercadores que falam de operações e cifras”. DUBOIS, Claude-Gilbert. O imaginário da Renascença, p.83. 12 A pressuposição de causalidade entre movimentos dos astros e as coisas do mundo foi refutada algumas vezes nos séculos XV e XVI, especialmente em tratados filosóficos que tratavam do tema da Fortuna. No entanto, a crença em tal relação era amplamente predominante. Acerca desta questão, conferir: PAREL, Anthony. Op. cit., p.18. 13 Cf. Idem. Ibid., p.20. “In any case, the ultimate purpose of both Pico and Savonarola was the same”. 14 Cf. YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética, p.40. 15 Cf. FICINO, Marsílio. De vita libri tres, III, 1, pp. 249-255. Sobre esta questão, afirma Yates: “A magia de Ficino baseia-se numa teoria do spiritus [...]. Para Ficino, ‘atrair para a terra a vida dos céus’ só é possível se se usar o spiritus como um canal por meio do qual se difunde a influência das estrelas”. YATES, Frances. Op. cit., pp. 81-2.

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prenunciam eventos específicos para os homens, mas somente eventos

genéricos”.16

Maquiavel adota uma postura claramente contrária a Pico e Savonarola, ao

defender a influência dos céus nas coisas humanas, como se pode perceber na já

citada abertura do livro III dos Discorsi. Em estudo cuidadoso sobre a vida

pública na Florença Renascentista, Richard Trexler argumenta que “a ritualização

do comportamento em torno de pontos astrológicos é um dos motivos mais

conhecidos da vida formal florentina. O bastão de comando não podia ser dado a

um condottiere, tropas não podiam deixar a cidade, batalhas não seriam iniciadas,

exceto nos momentos propícios”.17 Ainda que, de acordo com Trexler, Savonarola

possa ter exagerado ao dizer que “os florentinos acreditavam mais na astrologia

que em Deus”18, a disseminação da confiança no poder dos astros fazia-se sentir

sobremaneira, inclusive nas crônicas e Histórias da cidade, como em Giovanni

Villani, Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini e, no século XVI, Maquiavel,

Guicciardini e Cerretani.

Todavia, não se deve confundir a crença no poder dos astros com a apologia

da astrologia judicial, aquela voltada para a adivinhação do futuro. O respeito às

predições e adivinhações de toda espécie eram comuns, como atesta a seguinte

passagem dos Discorsi: “Donde vem isso não sei, mas vê-se, por antigos e

modernos exemplos, que nunca ocorre nenhum acontecimento grave numa cidade

ou numa província que não tenha sido previsto por adivinhos, revelações,

prodígios ou outros sinais celestes”.19 Maquiavel situa no rol de previsões

inexplicáveis aquelas feitas por Savonarola à época da morte de Lorenzo de’

Medici – indício de que o exame astrológico do futuro era distinguido, por ele,

daquele realizado por meio de profecias e adivinhações, enigmáticos segundo

qualquer critério lógico ou natural. “A razão dessas coisas”, afirma Maquiavel,

16 FICINO, Marsilio. “Disputa contro il giudizio degli astrologi di Marsilio Ficino, fiorentino”. In: Scritti sull’astrologia, p. 51. “Non prennunciano eventi specifici per ogni individuo, ma solo eventi generici”. 17 TREXLER, Richard. Public Life in Renaissance, p.79. “The ritualization of behavior around astrological points is one of the better known motifs of Florentine formal life. The baton of command could not be given to a condottiere, troops could not leave the city, battles could not be started, except at the right moments”. 18 Idem. “Savonarola exaggerated when he said that the Florentines believed more in astrology than in God”. 19 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 56, pp. 163-4.

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“deve ser comentada e interpretada por alguém que tenha conhecimento das coisas

naturais e sobrenaturais, que não temos”.20

Guicciardini, por sua vez, nunca deixou de se mostrar um crítico contumaz

da astrologia como forma de predição:

As coisas futuras são tão falazes e submetidas a tantos acidentes, que o mais das

vezes mesmo os mais sábios se enganam; e quem anotasse as suas opiniões,

máxime nos particulares das coisas – porque nas generalidades adivinham com

freqüência –, verificaria que há pouca diferença entre eles e os que são tidos como

menos sábios [...] (grifo meu).21

Assim como Ficino, Guicciardini argumenta que os sábios podem acertar

em suas previsões gerais, embora considerasse qualquer presciência de eventos

particulares como falaciosa. Na máxima 207 dos Ricordi ele é ainda mais duro

com a astrologia divinatória:

Da astrologia, isto é, daquela que julga as coisas futuras, é loucura falar: ou a

ciência não é verdadeira, ou todas as coisas necessárias para que seja não se podem

saber, ou a capacidade dos homens não chega a tanto. Mas a conclusão é que

pensar saber o futuro por este caminho é um sonho. Os astrólogos não sabem o que

dizem, não chegam a adivinhar, a não ser por acaso [...] (grifos meus).22

Ainda assim, Guicciardini sempre levava consigo o próprio horóscopo, para

efeito de consulta. Este documento, descoberto por Roberto Ridolfi em meados do

século XX, consiste em um “volume in quarto de centenas de páginas”, onde sua

vida, “passado e futuro, natureza e ações, são examinados”.23 Embora condenasse

a astrologia divinatória, Guicciardini não descartava a influência dos astros nas

coisas humanas, ao menos no que tange à tendência geral dos acontecimentos.24

20 Idem. 21 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 23, p. 61. 22 Idem. Ibid., máxima 207, p. 141. 23 RIDOLFI, Roberto. The life of Francesco Guicciardini, pp. 58-9. “But this is an actual quarto volume of hundreds of pages, where the whole life, past and future, the nature and actions of Guicciardini, are examines”. 24 Ridolfi não chega a uma conclusão sobre a relação de Guicciardini com a astrologia, limitando-se a dizer que “perhaps he too may have thought there were more things in heaven and earth than our philosophy dreams of, and so he went on annotating and leafing his way through the voluminous horoscope”. Idem. Ibid., p.60.

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Outro dado importante é a atenção por ele dedicada às profecias de toda

espécie, como se pode perceber na máxima 211 dos Ricordi:

Acredito poder afirmar que os espíritos existem. Refiro-me ao que nós chamamos

de espíritos, isto é, àqueles seres aéreos que familiarmente falam com as pessoas,

porque vi tantas experiências que me parece não haver nenhuma dúvida disso. Mas

o que são e como, quem está persuadido de sabê-lo sabe tanto quanto quem nem

pensa nisso. Essas coisas e a previsão do futuro, como certas pessoas fazem por

arte ou por loucura, são potências ocultas da natureza, ou seja, daquela virtude

superior que tudo move: a Ele patentes, a nós secretas, e de tal maneira que as

mentes dos homens não as alcançam (grifos meus).25

Igualmente, os milagres são entendidos por ele como segredos da natureza:

“talvez não seja pecado dizer também que estes [os milagres], assim como os

vaticínios, são segredos da natureza, a cujas razões o intelecto dos homens não

pode chegar”.26 Nas Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli,

Guicciardini, para refutar a tese defendida por seu amigo da permanência da

“substância” virtù ao longo dos tempos, afirma que “ou por influência dos céus ou

por algum arranjo oculto, ocorre que, em certas eras, não só em uma província,

mas universalmente em todo o mundo, há mais virtù ou mais vício que em outra

era...” (grifo meu).27

Tais “arranjos ocultos” desnudavam-se por meio de sinais ou “prodígios”.

Jean Céard, ao discutir o “insólito” no século XVI, chama de “prodígios” os

acontecimentos maravilhosos e alheios à ordem natural das coisas, percebidos

como anúncios de eventos futuros, presságios, mensagens – avisos atribuídos à

vontade divina e considerados imperscrutáveis em sua natureza última, porém

passíveis de interpretação parcial graças às concessões de forças ocultas.28

Nos Discorsi I, 56 Maquiavel lista uma série de prodígios, muitos dos quais

também se fazem presentes nas Storie Fiorentine e na Storia d’Italia de

Guicciardini: a já mencionada previsão, por Savonarola, da morte de Lorenzo de’

25 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, maxima 211, p.143. 26 Idem. Ibid., maxima 123, p.103. 27 GUICCIARDINI, Francesco. Considerazioni intorno ai Discorsi del Machiavelli, p. 379. “...perché si vede essere verissimo che, o per influsso de’ cieli o per altra occulta disposizione, corrono talvolta certe età nelle quali, non solo in una provincia, ma universalmente in tutto el mondo è più virtù o più vizio che non è stato in una altra età”. 28 Cf. CÉARD, Jean. La nature et les prodiges. L’insolite au XVIe siècle, p.87.

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Medici, além dos presságios associados e este evento; os exércitos vistos

combatendo no ar em Arezzo; o relâmpago que atingiu o palácio da Signoria

pouco antes da destituição do gonfaloniero Soderini. Nas Storie Fiorentine,

Guicciardini refere-se a supostos avisos prévios da morte de Lorenzo de’Medici:

As graves conseqüências desta morte foram anunciadas por diversos presságios:

pouco tempo antes, apareceu um cometa; se ouviam uivar os lobos; uma mulher

enlouquecida em Santa Maria Novella gritou que um touro com chifres de fogo

incendiava toda a cidade; alguns leões brigaram entre si, e um deles, belíssimo, foi

morto pelos outros; e por último, um ou dois dias antes de sua morte [de Lorenzo],

durante a noite, um raio atingiu a cúpula de Santa Reparata, e fez rolar algumas

pedras enormes, as quais caíram próximas à casa dos Medici.29

Na Storia d’Italia Guicciardini menciona os prodígios que antecederam a

invasão da Itália pelas tropas de Carlos VIII, rei de França:

aqueles que dizem ter notícias das coisas futuras, ou por ciência ou por sopro

divino, afirmavam com as mesmas vozes o aparecimento de muitas e freqüentes

mudanças, acidentes muitos estranhos e horrendos que por muitos séculos não

tinham lugar em parte alguma do mundo.30

Ainda: três sóis teriam sido vistos na cidade de Puglia; em Nápoles, o

fantasma do falecido rei Ferdinando teria se revelado a um cirurgião da corte para

alertar sobre a inutilidade da resistência aos franceses.31

Os prodígios eram tratados como produtos da vontade divina transformados

em signos por forças ocultas, seres intermediários: “no entanto”, diz Maquiavel

nos Discorsi, “poderia ser que os ares estejam, como querem alguns filósofos,

29 GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.172. “Fu denotata questa morte come di momento grandissimo da molti presagi: era apparita poco innanzi la cometa; erasi uditi urlare lupi; uma donna in Santa Maria Novella infuriata aveva gridato che uno bue corna di fuoco ardeva tutta la città; eransi azzuffati insieme alcuni lioni ed uno belíssimo era stato morto degli altri; ed ultimamente um dì o dua innanzi alla morte sua, di notte uma saetta aveva dato nella lanterna della cupola di Santa Liperata e fattone cadere alcune pietre grandissime, le quale caddono vesro la casa de’ Medici”. 30 GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 9. “quegli che fanno professione d’avere, o per scienza o per afflatto divino, notizia delle cose future, affermavano com uma voce medesima apparecchiarsi maggiori e più spesse mutazioni, accidenti più strani e più orrendi che giá per molti secoli si fussino veduti in parte alcuna del mondo”. 31 Cf. Idem. Ibid., I, 18.

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cheios de inteligência, que por naturais virtù prevêem as coisas futuras e têm

compaixão dos homens, avisando-os com semelhantes sinais para que eles possam

preparar suas defesas”.32 Estes eventos estranhos, portanto, não eram atribuídas

aos movimentos celestes – até mesmo por isso eram considerados alheios à ordem

natural das coisas. É o que explica, para Céard, o lugar de destaque dos prodígios

em Guicciardini, apesar de suas críticas à astrologia judicial.33

A pressuposição de uma relação direta, de ordem simpática, entre a esfera

celeste e os quatro elementos constitutivos dos entes do mundo sublunar é crucial

para a compreensão da teoria clássica dos quatro humores e temperamentos – a

fonte mais importante da medicina renascentista. Entendia-se que os quatro

temperamentos (sanguíneo, colérico, fleumático e melancólico) resultavam do

predomínio no corpo humano de um dos quatro humores – sangue (associado ao

elemento ar), fleuma (água), bile amarela (fogo) e bile negra (terra)34 – de modo

que a saúde perfeita era pensada, por esta tradição, como o equilíbrio entre os

quatro humores; logo, como uma cooperação no organismo de humores opostos,

não semelhantes.35 Como o equilíbrio perfeito era considerado praticamente

inalcançável, entendia-se que os seres humanos estavam sujeitos à incidência de

um humor predominante, o qual, juntamente com a posição dos astros no

momento do nascimento, determinava as características marcantes de uma pessoa.

Tome-se o caso da melancolia, temperamento associado à ascendência da

bile negra no organismo – seja por compleição natural ou como resultado da

queima do “humor melancólico”, resultando na perniciosa “melancolia adusta”.36

Como efeito da influência de Saturno, os melancólicos seriam donos de

temperamento perscrutador, mostrando-se atentos, de acordo com Marsilio Ficino,

ao “centro de todos os assuntos, e à inquirição de suas profundezas”.37 Por esta

razão, “deve-se dar razão”, segundo o filósofo, “a Demócrito, Platão e Aristóteles

quando afirmam que não são poucos os melancólicos que às vezes excedem a

32 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 56, p.164. 33 CÉARD, Jean. Op. cit., p.93. “Ainsi Guichardin, pourtant très critique à l’égard de l’astrologie, n’hésite pas, dans ses oeuvres historiques, à faire la plus large place aux pródiges”. 34 Cf. PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz; KLIBANKY, Raymond. Saturno y la melancolía, pp. 113-24. 35 Cf. PAREL, Anthony J. Op. cit., pp.101-2. 36 Cf. SCHIESARI, Juliana. The Gendering of Melancholia, p.127. 37 FICINO, Marsílio. De Vita Libri Tres, I, V, p. 121.

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todos em inteligência que parecem divinos, não humanos”.38 O estagirita,

inclusive, propõe no seu Problema XXX,1 uma relação direta entre a melancolia

natural ou equilibrada e a qualidade do bem governar.39 Porém, a queima do

humor melancólico – melancolia adusta – poderia incidir em diversas

complicações, inclusive a perda da razão. Para este caso específico, ou mesmo

preventivamente, Ficino recomendava o uso de amuletos associados ao planeta

Júpiter, capazes de amenizar as influências saturninas.

Por analogia, os “corpos políticos” – entendidos como organismos plurais

em sucessão, totalidades capazes de sobreviver no tempo40 – também eram

considerados suscetíveis às mudanças de humores.41 Por humor de uma cidade

devem-se entender suas partes constituintes – sejam elas de origem “natural”

(ricos e pobres, grandi e universale) ou facciosa (ex. “brancos” e “negros”,

guelfos e gibelinos) –, assim como os apetites e desejos de tais grupos. Nas Istorie

Fiorentine de Maquiavel as referências aos humores citadinos são recorrentes; o

mesmo se dá nos escritos de Guicciardini, tanto em suas histórias como nos

opúsculos sobre o governo florentino – na Oratio Consolatoria, ele chega a

atribuir seu exílio em 1527 à mudança dos humores da cidade, ou seja, ao declínio

dos Medici e ascensão dos “populares”.42

Se o facciosismo merece grande destaque nos escritos de Maquiavel e

Guicciardini, também as inimizades naturais a todas as cidades, particularmente

aquela entre os grandi e o universale, são tratadas como “diversidade de humores”

38 Idem. Ibid., I, V, p. 117. 39 Cf. ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia. O Problema XXX,1, p.95. “Mas esses nos quais o calor excessivo se detém, no seu impulso, em um estado médio são certamente melancólicos mas são mais sensatos, e se são menos bizarros, em compensação, em muitos domínios são superiores aos outros, uns no que concerne à cultura, outros às artes, outros ainda à gestão das cidades”. 40 Cf. POCOCK, John. The Machiavellian Moment, p.3 41 Como argumenta Ernst H. Kantorowicz, a noção de “corpo político”, de origem aristotélica, se torna popular no século XIII. “O Estado ou, nesse sentido, qualquer outro agregado político, era compreendido como decorrente da razão natural. Era uma instituição que possuía seus fins morais em si mesma e tinha seu próprio código de ética”, p.135. Ao mesmo tempo, é nessa época que as noções de corpo político e corpo místico tornam-se intercambiáveis. Sobre a analogia entre corpo físico e corpo político, afirma Kantorowicz: “Em outras palavras, o traço essencial de todas as corporações não era o de que fossem ‘uma pluralidade de pessoas reunidas em um só corpo’ no momento presente, mas o de que eram essa ‘pluralidade’ em sucessão, animada pelo Tempo e mediante a ação do Tempo”. KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval, p.190. 42 GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.94. “Veggo che per li umori che ora possono nella città tu ti truovi escluso da tutto el governo [...]”.

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responsáveis pela irrealização da concórdia.43 A valorização da unidade do “corpo

político” remete às filosofias platônica e aristotélica, mas era fundamentalmente

em Cícero que os autores do Quattrocento e do Cinquecento italiano buscavam

inspiração para discutir esta questão.44 Diz o filósofo romano no De Officiis: “os

que estiverem encarregados dos assuntos públicos” devem se ocupar “com todo o

corpo da república e nunca, ao proteger uma parte”, esquecer “as outras”.45 Dois

dos tratados humanistas mais importantes, a Laudatio de Leonardo Bruni e o Vita

Civile de Matteo Palmieri, têm na questão da concórdia o ponto central.46 Mesmo

em fins do século XV e primeiros decênios do XVI, período marcado por

conflitos internos responsáveis pela restauração republicana em duas ocasiões, a

idéia de concórdia permanece viva: “o fim do governo é a união e paz do povo”,

afirma Savonarola em seu Tratatto sul governo di Firenze.47 Do mesmo modo,

indaga Bartolomeo Cavalcanti em discurso proferido em 1530 diante da

ordinanza militar florentina: “não sabeis quão grandes e suaves são os frutos da

concórdia civil e quão rudes e graves os danos da discórdia?”.48

Embora a noção de concórdia se faça presente nos textos políticos e

históricos de Maquiavel e Guicciardini como um tipo de horizonte regulatório,

ambos consideravam sua realização efetiva praticamente uma impossibilidade, ao

menos em tempos de corrupção e degradação dos valores; ainda assim, ela jamais

deixou de constituir um ideal – no caso dos textos de Guicciardini anteriores a

1527, este ideal era associado a um passado glorioso de predomínio ottimati,

43 Para Jean-Claude Zancarini, a divisão em dois humores é ampliada e complexificada por Maquiavel em diversos momentos, revelando uma tensão no uso do léxico. Concordo com Zancarini quanto às tensões do léxico político, mas a existência de outras divisões não anula o fato de que, para Maquiavel, tensões naturais são aquelas entre o povo e os grandi – sendo as demais de caráter faccioso. Cf. ZANCARINI, Jean-Claude. “Gli umori del corpo político nelle opere di Machiavelli”, pp.61-70. 44 Cf. SKINNER, Quentin. “Ambrogio Lorenzetti and the portrayal of virtuous government”. In: Visions of Politics, vol. II, p.42. 45 CICERO, Marco Túlio. De Officiis, I, xxv, 85, p.43. 46 Cf. PALMIERI, Matteo. Vita Civile, III, p.104. “Solo questa virtù è principale imperadrice d’ogni altra virtù: conserva a ciascuno quello che è suo, a tutto il corpo della republica insieme provedere et ministra, ciascuno membro conserva, la pace, unione et concordia della civile multitudine [...]”. 47 SAVONAROLA, Girolamo. Trattato sul governo di Firenze, de Savonarola. “Perché essendo la unione e pace del popolo el fine del governo [...]”, I, 2, p.40. 48 CAVALCANTI, Bartolomeo. “Orazione di Bartolomeo Cavalcanti Patrizio Fiorentino falla alla Militare Ordinanza Fiorentina”, p.17. “Non sapete quanto vi sien grandi e suavi i frutti della civile concordia e quanto aspri e gravi i danni della discordia?”.

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localizado nos dois primeiros decênios do século XV49, enquanto na Storia

d’Italia ele se releva algo distante, irrecuperável.

Se as reflexões de Guicciardini sobre a concórdia são bastante

convencionais, diferindo muito pouco do entendimento ciceroniano – o que, de

maneira geral, não deixa de incidir, segundo John Pocock, na constatação de que

“o que deve ser não é o que vai acontecer, mas ainda assim precisa ser afirmado”50

–, Maquiavel explora com originalidade inaudita a distinção entre as divisões

naturais de uma cidade e aquelas de caráter faccioso. Argumenta ele que a

existência de dois humores naturais antagônicos não só não afeta a segurança da

res publica como se mostra benéfica ao bem comum: “em toda república há dois

humores diferentes”, afirma nos Discorsi I, 4, “o do povo, e o dos grandes, e todas

as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles”. Assim,

prossegue ele, “não se pode dizer que tais tumultos sejam nocivos, nem que tal

república fosse dividida”.51 Tais dissensões, diz Maquiavel nas Istorie Fiorentine,

“naturalmente costumam existir em todas as cidades entre os poderosos e o povo”,

isto porque “visto que o povo quer viver de acordo com as leis, e os poderosos

querem comandá-las, não é possível que se ajustem”.52 Os humores naturais,

prossegue ele, ficaram encobertos, na Florença do século XIV, “enquanto os

gibelinos infundiam medo”, e acabaram se mostrando “com toda a sua força tão

logo estes foram dominados”.53 Se a divisão entre grandes e populares é vista

como natural e até mesmo benéfica, o facciosismo é condenado, precisamente por

descaracterizar o estado natural dos humores de uma cidade – como se tais

partidos representassem, por analogia, a combustão maléfica dos humores a que se

refere Ficino quando discorre sobre a saúde do corpo humano.

A noção de humor também aparece nos escritos de Maquiavel e

Guicciardini em outro sentido, a saber, como indicativo de certas características

49 Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.79. “Ebbe la città in quegli tempi più volte molti tumulti, e finalmente con un parlamento si fermò lo stato nel 93, sendo gonfaloniere di giustizia messer Maso degli Albizzi, [...] e rimase el governo in mano di uomini da bene e savi, e com grandíssima unione e sicurtà si continuò insino presso al 1420”. 50 Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.243. “... what ought to be is not what is going to happen, but nonetheless it requires to be affirmed”. 51 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 4, p. 22. 52 MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 12, p.94. 53 Idem. Ibid., História de Florença, II, 12, p.95.

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naturais ou adquiridas de um povo ou cidade.54 Afirma Guicciardini no Dialogo

del Reggimento di Firenze, pela voz de Bernardo del Nero:

não devemos procurar um governo imaginário [uno governo immaginato], que seja

mais fácil de aparecer nos livros que na prática, talvez como a república de Platão.

Ao invés, deve-se considerar a natureza, a qualidade, as condições, a inclinação, e

para reduzir todas essas coisas em uma palavra, os humores da cidade e dos

cidadãos (grifos meus).55

Os humores, segundo este entendimento, correspondem às condições

particulares de determinada cidade e povo, aos seus costumes e inclinações –

passageiras, como no caso de disputas eleitorais demasiadamente acirradas, ou

duradouras, como em características coletivas inatas e costumes arraigados.56

Tais tendências configuram-se quase sempre nos primórdios de uma cidade,

ou então em momentos decisivos do seu passado, e podem ser apreendidas tanto

pela observação atenta das “coisas do mundo” quanto pela leitura diligente das

histórias antigas e modernas. Por muito tempo, os florentinos defenderam que o

apego à liberdade demonstrado ao longo dos séculos advinha da fundação da

cidade no período da República romana por homens de Mário e Sila, como se vê

na Laudatio de Bruni57 – questão interpretada por um viés completamente distinto

nos Discorsi, onde Maquiavel marca o caráter “cativo” da cidade, por esta ter sido

54 Anthony Parel destaca quatro sentidos de “umori” em Maquiavel: (a) “umori” como os desejos e apetites naturais de um grupo social; (b) “umori” como os próprios grupos sociais; (c) “umori” como as atividades produzidas pela interação entre os grupos políticos; (d) emprego de “umori” para classificar os regimes políticos, associado aos seus efeitos. Cf. PAREL, Anthony J. Op. cit., pp. 104-107. Com tal distinção, Parel relata quatro usos possíveis da palavra “umori”, mas não quatro sentidos distintos. Como sentidos, penso em apenas dois, que podem possuir inúmeros desdobramentos: “umori” como os grupos sociais, de origem natural ou facciosa, com seus desejos e apetites específicos e “umori” como as inclinações, costumes e tendências de uma cidade, presentes desde a sua fundação ou adquiridos com o tempo. 55 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 146. “E però non abbiamo a cercare di uno governo immaginato e che sia più facile a apparire in su’ libri che in pratica, come fu forse la republica di Platone; ma considerato la natura, la qualità, le condizioni, la inclinazione, e per strignere tutte queste cose in una parola, gli umori della città e de’ cittadini”. 56 Um exemplo do emprego de humor como uma dissensão passageira: “né mi pare che si abbi a fare coniettura da quelle poche elezione che si sono fatte in questi princìpi, perché ancora ogni cosa è piena di appetiti vani, di sospetti e di confusione, umori che si purgheranno in brieve tempo”. Idem. Ibid., p.79. 57 Cf. BRUNI, Leonardo. Panegirico della città di Firenze, p.43. “Imperò che li altri populi ànno avuto per loro autori overo fugitivi, overo usciti dalla propria patria, overo contadini, overo altro forestieri; ma di voi [florentinos] il populo romano vincitore et signore di tutto il mondo è autore et principio”. Como argumenta James Hankins, a associação com Roma visava à construção da idéia

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fundada como colônia.58 Edificada por forasteiros, argumenta o secretário,

Florença não tivera uma origem livre; ainda assim, o apego à liberdade teria se

revelado desde sempre um dado efetivo da realidade citadina: “porque aquela

cidade [Florença], acostumada que estava a fazer e a dizer todas as coisas com

toda a liberdade, não podia suportar que lhe atassem as mãos e lhe calassem a

boca”.59 Tal noção de liberdade da palavra era considerada uma característica

natural dos florentinos também por Guicciardini.60

Outro aspecto comumente atribuído a Florença: por se tratar de uma cidade

velha, “cativa dos seus hábitos primeiros”, ela seria difícil de reformar, algo a ser

levado em consideração pelos proponentes de reformas do reggimento citadino.61

O reconhecimento dos humores naturais ou adquiridos se faz decisivo, como

argumentam Maquiavel e Guicciardini, para a definição do melhor governo

possível em uma cidade, assim como a atenção às “condições dos tempos” – trata-

se da ênfase nos bons efeitos, em detrimento do governo immaginato existente nos

livros dos filósofos, aspecto central para a compreensão do sentido de prudência

compartilhado por ambos, como será analisado adiante.

O reconhecimento dos humores citadinos se mostra capital para a escolha do

remédio político adequado: argumenta Bernardo del Nero no Dialogo que

qualquer governo que venha a ser introduzido em Florença deve “seguir o

exemplo dos médicos que, embora sejam mais livres que nós, porque podem dar

aos enfermos todos os remédios que lhes pareçam adequados, não dão aos

enfermos, porém, aqueles que são bons e dignos de nota por si mesmos, mas

aqueles que o enfermo pode suportar segundo sua compleição e outros accidenti”

(grifos meus).62

de que Florença poderia reviver o Império Romano. HANKINS, James. “Rhetoric, history, and ideology: the civic panegyrics of Leonardo Bruni”, p.145. 58 As “cidades edificadas por forasteiros [...] não são livres na origem”, por isso “raras são as vezes em que realizam grandes progressos”. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 1, p.9. 59 MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 36, p.141. 60 GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.174. “massime sendo questa uma città liberissima nel parlare, piena di ingegni sottilissimi ed inquietissimi...”. 61 Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, pp. 122-3. “Considero più oltre che la città nostra è ormai vecchia [...]. Quando le città sono vechhie, si riformano difficilmente, e riformate, perdono presto la sua buona instituzione [...]”. 62 Idem. Ibid., p.147. “seguitando in questo lo exemplo de’ medici che, se bene sono piì liberi che non siamo noi, perché, agli infermi possono dare tutte le medicine che pare loro, non gli danno però tutte quelle che in sé sono buone e lodate, ma quelle che lo infermo secondo la complessione sua e altri accidenti è atto a sopportare”.

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Tendo em vista a importância atribuída aos humores de uma cidade, não é de

se estranhar a recorrência de analogias médicas nos tratados políticos, discursos e

histórias do século XVI florentino. Em passagem do opúsculo inacabado Del

Governo di Firenze dopo la Restaurazione de’ Medici nel 1512, Guicciardini

compara o tratamento (reggimento, na língua toscana do século XVI, mesma

palavra usada para governo) de um doente à condução do stato.63 Na Storia

d’Italia, ele afirma que “as enfermidades da Itália não eram tais, nem pouco débeis

eram suas forças, que se pudesse curá-las com remédios ligeiros; antes, como

ocorre em corpos repletos de humores corrompidos, que um remédio usado para

prevenir a desordem acaba gerando perigos ainda maiores e mais perniciosos”

(grifo meu).64 Nas Istorie Fiorentine, Maquiavel fala de “remédios” que, “se

administrados antes que a necessidade se apresentasse, teriam sido proveitosos,

mas, administrados depois, contra a vontade, não só deixaram de ser proveitosos,

como também apressaram sua ruína”.65

Estas analogias não devem ser entendidas como simples “jogos poéticos”:

“o mundo”, afirma Claude-Gilbert Dubois, era “concebido como uma vasta

metáfora, em que todas as partes” se correspondiam “entre si”.66 Tratava-se de um

efetivo “saber das semelhanças”, para empregar palavras de Foucault. No todo

orgânico que é o universo segundo esta visão, homem e natureza encontram-se

intimamente conectados.67 Mesmo as palavras são vistas como detentoras de um

poder simpático – premissa da cabala, estudada por Giovanni Pico della

Mirandola, entre outros.68 Segundo Foucault, o “jogo das semelhanças” pode ser

articulado de quatro maneiras: por conveniência, emulação, analogia ou simpatia,

as quais “nos dizem de que modo o mundo deve se dobrar sobre si mesmo, se

duplicar, se refletir ou se encadear para que as coisas possam assemelhar-se”.69

Nesse sentido, conhecer alguma coisa implica “ajustar a infinita riqueza de uma

63 GUICCIARDINI, Francesco. Del Governo di Firenze dopo la Restaurazione de’ Medici nel 1512, p.44. 64 GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, VIII, 1, p.721. “Non erano tali le infermità d'Italia, né sí poco indebolite le forze sue, che si potessino curare con medicine leggiere; anzi, come spesso accade ne' corpi ripieni di umori corrotti, che uno rimedio usato per provedere al disordine di una parte ne genera de' piú perniciosi e di maggiore pericolo”. 65 MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, II, 8, p.88. 66 DUBOIS, Claude-Gilbert. Op. cit., p.57. 67 Cf. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural, p. 90. 68 Cf. YATES, Frances. Op. cit., pp. 108-9. 69 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas, p.35.

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semelhança”70 e estabelecer gradações comparativas que tornem possíveis novas

aberturas analíticas – é o caso das analogias médicas, que jogam com um

pressuposto visto como natural (a relação de afinidade entre o corpo humano e

político) e o exploram até a exaustão. O resultado do juízo analógico vai além da

simples comparação didática ou recurso poético: o que está em jogo nas analogias

médicas é uma reflexão aguda sobre a transitoriedade e fragilidade das coisas do

mundo em geral, e também sobre as limitadas possibilidades de regeneração dos

organismos políticos.

O tempo, para os florentinos do século XVI, era compreendido como “coisa

pública e divina”71: a data de nascimento indicava comumente o nome da criança,

de acordo com o santo do dia; a idade de 29 anos era exigida, e ansiosamente

aguardada pelos filhos das grandes famílias, para o início da participação na vida

civil; festejos públicos se espalhavam pelo ano e condicionavam o calendário dos

casamentos, escrutínios, etc. “Todo tempo era significativo”, argumenta Richard

Trexler, “mas este significado residia no mundo, não no indivíduo”.72

Embora a intuição de uma temporalidade “linear” remetesse aos primórdios

do judaísmo e do cristianismo, é somente a partir de meados do século XVIII que

a experiência do tempo se abrirá como um continuum de infinitas possibilidades

futuras associadas a um espaço de experiências retraído, para falar como

Koselleck.73 Até então, a intuição de um tempo natural, entendido em função dos

ciclos naturais e do movimento das estrelas, coadunava-se sem muitos conflitos

com a noção cristã do tempo74– e mesmo esta não se mostrara coesa e monolítica

ao longo dos séculos.75

Como argumenta o filósofo italiano Santo Mazzarino, imagens como a do

tempo cíclico constituem simples vulgarizações esquemáticas da idéia de cosmo

defendida por pitagóricos e estóicos no mundo antigo.76 “Na discussão moderna

70 Idem. Ibid., p.43. 71 TREXLER, Richard. Op. cit., p.73. “Time was a public and divine thing to which the individual geared his own”. 72 Idem. Ibid., p.73. “All time was significant – there was no accident – but that significance lay in world, not individual, biography”. 73 Cf. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas. In: Futuro Passado; MARRAMAO, Giacomo. Minima Temporalia, pp. 47-56. 74 Cf. TREXLER, Richard. Op. cit., p. 79. 75 Cf. KANTOROWICZ, Ernst H. Op. cit., pp. 170-176. 76 Cf. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico classico, v.3, p.414.

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sobre a Zeitauffassung ‘cíclica’”, diz Mazzarino, “que seria greco-romana, e

aquela ‘linear’, que seria própria do judaísmo ou do cristianismo, devemos evitar

as polarizações teóricas”77, isto porque as generalizações obscurecem a distinção

entre a idéia de eterno retorno como doutrina cosmológica e o princípio de

tendências cíclicas assimétricas observáveis historicamente. O eterno retorno

como doutrina cosmológica é identificado com a idéia estóica de uma destruição

cíclica e continuada do cosmo.78 Já a intuição do tempo predominante tanto na

Antiguidade quanto no Renascimento não parte do princípio da repetição dos

acontecimentos em suas particularidades. A famosa anaciclose das formas de

governo desenvolvida por Maquiavel no segundo capítulo do livro I dos Discorsi,

emulação de Políbio79, deve ser entendida segundo este viés analítico – ou seja,

como tendência natural de desenvolvimento passível ou não de se verificar na

realidade, isto porque tal tendência pode ser acentuada, anulada ou, em casos mais

otimistas, revertida pela ação humana.80

O emprego das metáforas geométricas do tempo linear oposto ao tempo

circular – tomadas não como ferramentas analíticas, e sim como dados efetivos da

realidade – muitas vezes obscurece as sutilezas históricas de certas formas de

experiência temporal. Como nota Claude-Gilbert Dubois, a intuição do tempo no

período renascentista “resulta da ação concertada dessas três potências: recebe seu

ritmo geral da natureza, sua direção e diretrizes da providência, da fortuna, seus

impulsos e caprichos” (grifos meus).81 Trata-se, assim, menos de uma percepção

“geométrica” da “linha” do tempo que de uma complexa fenomenologia da

contingência, de caráter naturalista, alicerçada filosoficamente na presunção da

complementaridade entre aspectos da realidade sujeitos a uma lógica cíclica ou

estável – diversidades substanciais – e os elementos acidentais e contingentes da

77 Idem. Ibid., p.415. “Nella discussione moderna sulla Zeitauffassung ‘ciclica’, che sarebbe greco-romana, e quella ‘lineare’, che sarebbe própria del giudaismo e cristianesimo, dobbiamo evitare le polarrizzazioni teoretiche”. 78 Idem. Ibid., p.417. “Il Ritorno storico è dunque un ricorso che non prelude all’identità di un ciclo con quello successivo; viceversa, l’Eterno Ritorno cosmologico, secondo le scuole filosofiche che l’hanno sostenuto con piena coerenza (soprattutto pitagorici; e stoici, ad esclusione della tendenza di Panezio), implica la dottrina della distruzione del mondo e della ripetizione di esso (tal quale per la serie dei suoi eventi) nell’altro mondo che succederà a quello distrutto”. 79 Deve-se notar, contudo, que a adesão de Maquiavel à concepção polibiana da anaciclose é apenas parcial. Cf. BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano, p.176. 80 Arnaldo Momigliano argumenta que nem Heródoto, nem Tucídides e nem Políbio trabalhavam com uma noção cíclica de história. Cf: MOMIGLIANO, Arnaldo. “El tiempo en la historiografia antigua”, pp. 75-80. 81 DUBOIS, Claude-Gilbert. Op. cit, p.126.

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realidade, submetidos aos caprichos da Fortuna e aos desígnios divinos – os

accidenti.82 John Pocock, a partir dos argumentos de Kantorowicz, percebe que o

desenvolvimento da preocupação com a particularidade e com a contingência está

diretamente atrelado à valorização da dimensão temporal das sociedades – a idéia

de que o corpo político existe no tempo –, operada não pela filosofia do

Renascimento, e sim pela reflexão política de autores do período.83 Nota-se, nesse

sentido, uma constante preocupação com a relação entre geral e particular,

especialmente no que diz respeito à possibilidade de distinção entre o recorrente e

o fortuito.

Na máxima 76 dos Ricordi, Guicciardini argumenta que “tudo aquilo que

foi no passado e é no presente será ainda no futuro; mas os nomes e as aparências

das coisas mudam de tal maneira que quem não tem bom olho não as reconhece”

(grifo meu). Declaração similar é encontrada em carta que ele remete, no dia 18

de maio de 1521, a Maquiavel:

Caríssimo Machiavello. Quando leio vossos títulos de embaixador da República

(...) e considero com quantos reis, duques e príncipes negociastes, me recordo de

Lisandro, a quem depois de tantas vitórias e triunfos foi dada a tarefa de distribuir

carne aos mesmos soldados os quais havia gloriosamente comandado, e digo: veja

que, mudando somente os rostos dos homens e as cores exteriores, as mesmas

coisas sempre retornam, e não vemos acontecimento algum que em outros tempos

não se tenha visto. Mas o mudar de nomes e figuras das coisas faz com que

somente os prudentes as reconheçam: por isso é boa e útil a história: porque te

coloca adiante e te faz reconhecer e rever aquilo que diretamente não conheceu ou

viu (grifos meus).84

82 Desenvolvi a questão em: TEIXEIRA, Felipe Charbel. “O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método prudencial de análise da política”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 50, nº 2, pp. 325-349. 83 Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.9. 84 Carta a Maquiavel, do dia 18 de maio de 1521. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere a Francesco Vettori e a Francesco Guicciardini, p.298. “Machiavello carissimo. Quando io leggo e vostri titoli di oratore di Republica e di frati et considero con quanti re, Duchi et Principi voi havete altre volte negociato, mi ricordo di Lysandro, a chi doppo tante victorie et trophei fu dato la cura di distribuire la carne a quelli medesimi soldati a chi si gloriosamente haveva comandado; et dico: Vedi che, mutati solum e visi delli huomini et e colori extrinseci, le cose medesime tucte ritornano; né vediamo accidente alcuno che a altri tempi nos sai stato veduto. Ma el mutare nomi et figure alle cose fa che soli e prudenti le riconoschono: et però è buona et utile la hystoria, perché ti mecte innanzi et ti fa riconoscere et rivedere quello che mai nos havevi conosciuto né veduto”.

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Pode-se encontrar uma afirmação análoga nos Discorsi de Maquiavel:

“quem quiser saber o que haverá de acontecer deverá considerar o que já

aconteceu”.85 Numa passagem do Dialogo del Reggimento di Firenze,

Guicciardini, pela voz de Bernardo del Nero, afirma que

tudo aquilo que foi no passado, parte é no presente, parte será em outros tempos e

algum dia retornará a ser, mas sobre aspectos exteriores diferentes e várias cores,

de modo que quem não possui os olhos muito bons o toma por novo e não o

reconhece; mas quem tem a vista aguda e que se aplica a distinguir cada caso, e

considera quais são as diversidades substanciais e quais são aquelas que importam

menos, facilmente o reconhece, e com o cálculo e medida das coisas passadas pode

calcular e medir o futuro (grifos meus).86

As diversidades substanciais dizem respeito às coisas humanas suscetíveis a

ciclos e padrões recorrentes, como a ascensão e queda de povos e costumes, além

do surgimento de novas cidades e do enfraquecimento e declínio de outras mais

antigas. Também se referem aos dados da realidade considerados estáveis e

permanentes: à natureza humana, enfim, e a tudo aquilo tomado como desigual ao

longo dos tempos apenas na aparência externa.87 Os accidenti, por outro lado,

compõem-se de matéria singular, fortuita; por essa razão, eles não se subsumem a

qualquer lógica de caráter natural acessível aos homens pela análise dos astros ou

das tendências das coisas do mundo. Seus domínios são os desígnios e caprichos

da Fortuna, assim como a Vontade divina. As diversidades substanciais

articulam-se à já referida visão cosmológica, própria da física aristotélica, de um

mundo sublunar sujeito a ciclos e movimentos regulares, condicionados pela

dinâmica da esfera celeste. Já os accidenti dizem respeito à singularidade das

ações humanas, ao caráter finito da existência, à perecibilidade e também aos

85 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, III, 43, p.445. 86 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36. “ E così tutto quello che è stato per el passato, parte è al presente, parte sara in altri tempi e ogni dì ritorna in essere, ma sotto varie coperte e vari colori, in modo che chi non há l’occhio molto buono, lo piglia per nuovo e non lo riconosce; ma chi ha la vista acuta e che sa applicare e distinguere caso da caso, e considerare quali siano le diversità sustanziali e quali quelle che importano manco, facilmente lo riconosce, e co’ calculi e misura delle cose passate sa calculare e misurare assai del futuro”. 87 Cf. SASSO, Gennaro. “I volti del ‘particulare’”. In: Per Francesco Guicciardini. Quattro Studi, p.7. “Non aveva forse proprio Machiavelli insegnato, o insegnato di nuovo, che, con giro incessante, tutto torn nel quadro immobile del mondo che non muore? Ebbene, con quel suo tono peculiare, in cui commoione e parodia si condizionano a vicenda, a questa tesi il Guicciardini rende omaggio”.

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fatores externos que impedem uma autonomia plena, impondo empecilhos ao

livre-arbítrio. Não existem leis infalíveis nos assuntos humanos. As diversidades

substanciais, porém, evidenciam tendências, enquanto os accidenti se limitam a si

mesmos, ou, como se acreditava, são produtos dos caprichos da Fortuna ou dos

desígnios da Providência.

A habilidade de distinguir as diversidades substanciais das acidentais se

mostra decisiva para a compreensão adequada dos movimentos e tendências das

coisas do mundo – somente os prudentes são capazes de reconhecê-las, diz

Guicciardini na carta a Maquiavel. Como o prudente precisa se valer do passado

(por meio da experiência e da leitura das histórias antigas e modernas) para definir

intervenções adequadas no presente e controlar seus efeitos futuros, é crucial

saber distinguir o que é acidental, imprevisível, daquilo que pode indicar algum

padrão de recorrência – condição necessária para a análise penetrante da

realidade. Embora o prudente não possa prever a morte de um rei, a proliferação

de pestes, tempestades ou mudanças inesperadas no curso dos eventos, sua

apreciação das coisas do mundo não é vaga ou arbitrária. Ao se deter no exame

dos padrões gerais de comportamento dos homens em determinadas

circunstâncias, ao atinar para as tendências naturais demonstradas em outros

tempos pelas coisas do mundo, o prudente antevê, se não com plena convicção, ao

menos com certo grau de segurança, os efeitos das ações de outros homens,

podendo assim planejar melhor seus próprios movimentos.

O declínio das cidades, principados e dos seus costumes era percebido como

um dado natural pelos florentinos do século XVI: “como todas as coisas humanas

estão em movimento”, diz Maquiavel nos Discorsi, “e não podem ficar paradas, é

preciso que estejam subindo ou descendo”.88 Configura-se, desse modo, um “ciclo

segundo o qual todas as repúblicas se governaram e governam”89, ciclo este que

raras vezes chega a se completar, pois as cidades, principados e Impérios tendem a

desaparecer antes de retornarem ao estado original. Neste círculo, quase sempre

imperfeito e assimétrico, alternam-se, em movimentos regulares, o bom

principado e sua forma degenerada, a tirania; os ottimati e sua forma degenerada,

o estado de poucos; o regime popular e sua forma degenerada, a licenciosidade.

88 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 6, p.32. 89 Idem. Ibid., I, 2, p.17.

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Trata-se de um movimento natural correspondente ao nascimento, crescimento e

declínio dos estados, onde os seres humanos não possuem papel passivo, muito

pelo contrário.90 Como os homens são livres em suas ações, torna-se possível, para

Maquiavel, alterar o sentido das tendências naturais e até mesmo revertê-las,

conquanto haja virtù suficiente.

Guicciardini, por sua vez, mostra-se bastante cético quanto à alteração, por

meio de intervenções humanas, das tendências naturais de ascensão e declínio. Em

sua opinião, um período de corrupção não pode esperar uma grande mobilização

da virtù; no máximo, seria possível lutar contra os males imediatos e atenuar os

movimentos de degradação das coisas do mundo. Talvez por isso não se possa

encontrar, em seus escritos, algo similar a uma teoria circular-assimétrica das

formas de governo. Daí a afirmação de que “as cidades são mortais assim como os

homens”, sendo que elas “não morrem por defeito de matéria, a qual sempre se

renova, mas por má sorte ou por má administração, isto é, pelas decisões

imprudentes tomadas por quem governa”.91 Como os homens são inconstantes, é

natural que as cidades entrem em declínio:

Todas as cidades, os Estados, todos os reinos são mortais; todas as coisas, natural

ou acidentalmente, terminam e findam alguma vez. Por isso, um cidadão que se

encontra no fim da sua pátria não deve lamentar-se tanto da desgraça desta e

chamá-la de mal-afortunada, e sim da sua própria: porque à pátria aconteceu o que

de toda maneira devia acontecer, mas a desgraça foi de quem veio nascer numa

época que devia ter tal infortúnio.92

Maquiavel, Guicciardini e tantos outros florentinos do início do século XVI

viam sua época como um período de decadência, de degradação dos costumes e

corrupção. Nesse sentido, se bem que condenasse em muitos aspectos a atuação

de Savonarola, Guicciardini, escrevendo uma década após a morte do frei, é capaz

de elogiar supostas mudanças de costumes produzidas por suas intervenções:

90 Cf. BIGNOTTO, Newton. Op. cit., p.176. 91 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 139, p.109. 92 Idem. Ibid., pp. 131-2. Este motivo também se faz presente no Dialogo: “perché alle case e alle nobilità interviene come alle città e alle altre cose del mondo, che invecchiano, si diminuiscono e si spengono per vari accidenti, e in luogo di quelle che mancono bisogna che sempre surghino e si rinnovino delle altre”, p. 80.

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No que diz respeito à observância dos bons costumes, o que ele [Savonarola]

conseguiu realizar foi algo santíssimo e miraculoso. [...] Não se jogava mais em

público, e nas casas, apenas com temor; foram fechadas as tavernas, que eram os

lugares de reunião da juventude depravada e antro de todos os vícios; a sodomia

havia praticamente desaparecido; as mulheres, em grande parte, abandonaram as

vestes desonestas e lascivas....93

A decadência dos costumes era compreendida por Guicciardini como um

sinal inequívoco e natural da corrupção dos tempos.94 Precisamente por isso, ele

qualifica como miraculosos os feitos de Savonarola.

A corrupção era então compreendida como uma “lei que diz respeito a todo

o ‘cosmos’ e não somente ao homem em sua singularidade”, para empregar

palavras de Newton Bignotto.95 “Não constitui vergonha para as cidades ilustres”,

diz Guicciardini na Storia d’Italia, “se após muitos séculos caem finalmente em

servidão, porque era fatal que todas as coisas do mundo fossem submetidas à

corrupção”.96 E, como ele mesmo já notara muito antes, no Discorso di Logrogno

(1512), “a corrupção que há no mundo não é de hoje; dura já por muitos e muitos

séculos, o que atestam os escritores antigos que tanto detestaram e falaram contra

os vícios de seus tempos”.97

Acreditava-se ser próprio das “coisas do mundo” estarem “sempre em

movimento”98 e serem “submetidas a mil casos e acidentes”.99 Tal instabilidade

fazia da política uma atividade complexa, sujeita a erros e mal-entendidos – o que

não implicava, porém, atestar sua completa indeterminação. “Quem considere as

coisas presentes e as antigas”, defende Maquiavel, “verá facilmente que são

sempre os mesmos os desejos e os humores em todas as cidades e em todos os

93 GUICCIARDINI, Francesco. Storie Fiorentine, p.278. “Le opere fatte da lui circa l’osservanzia de’ buoni costumi furono santissime e mirabile. [...]Non si giudicava più in publico, e nelle case ancora com timore; stavano serrate le taverne che sogliono essere ricettaculo di tutta la gioventù scorretta e di ogni vizio; la sodomia era spenta e mortificata assai; le donne, in gran parte lasciati gli abiti disonesti i lascivi [...]”. 94 Segundo Diane O. Hughes, a analogia entre o corpo humano político implicava a idéia de corrupção como um dado natural. Cf. HUGHES, Diane O. “Bodies, disease, and society”, p.110. 95 BIGNOTTO, Newton. Op. cit., p.177. 96 GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, II, 1, p. 151. “Non essere vergogna alle città preclare se dopo il corso di molti secoli cadevano finalmente in servitú, perché era fatale che tutte le cose del mondo fussino sottoposte alla corruzione”. 97 GUICCIARDINI, Francesco. Discorso di Logorgno, p.40. “Né incomincia questa corrutela oggi nel mondo, ma è durata già molti e molti secoli, di che fanno fede li scritori antichi che tanto detestano ed esclamano contro a’ vizi delle età loro”. 98 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos... II, Proêmio, p.178.

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povos, e que eles sempre existiram”.100 Assim, se por um lado acreditava-se que as

ações particulares dos homens nunca se repetiam, padrões de estabilidade e

recorrência poderiam ser percebidos tanto pela experiência quanto pela leitura das

histórias antigas e modernas. Nesse sentido, a presunção de imutabilidade do

mundo celeste torna possível, mesmo levando-se em conta a instabilidade das

coisas humanas, atestar a tendência de conservação de certos aspectos

característicos do homem como tal.

Cabe notar que a idéia de natureza humana estável não implicava a

pressuposição de um mundo sempre igual a si mesmo, alheio a todo tipo de

oscilações. Muito pelo contrário: é próprio da natureza movimentar-se

ciclicamente. Do mesmo modo, pressupõe-se que os homens, não como

indivíduos singulares, mas como seres em geral, sejam possuidores de uma

substancialidade atestada na repetição de certos padrões ao longo dos tempos,

como formas de governo, costumes e constituições. Os seres humanos, diz

Maquiavel nos Discorsi, “nasceram, viveram e morreram, sempre, segundo uma

mesma ordenação”.101 Reconhecer a existência de uma natureza humana estável

implica atestar que os homens tendem a agir de forma parecida quando

confrontados com situações e motivações análogas a outras, que tiveram lugar em

épocas passadas.

Na medida em que a afirmação da constância da natureza humana não

presumia uma circularidade perfeita das “coisas do mundo”, ou uma estabilidade

perene das condições do homem, é possível atestar a existência de um certo grau

de flexibilidade na maneira com que o homem lidava com sua própria natureza,

para falar como Thomas Greene.102 O homem é produto de sua natureza e também

do livre-arbítrio, sendo capaz de se adaptar, e até mesmo anular, os impulsos

negativos de sua condição animal e de suas paixões. Diz Maquiavel que “os

homens nunca fazem bem algum, a não ser por necessidade”.103 Tal critério de

necessidade, compreendido como uma espécie de coerção imposta pelos homens a

99 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 1, p.47. 100 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos..., I, 39, p. 121. 101 Idem. Ibid., I, 11, p.52. 102 Cf. GREENE, Thomas. “A flexibilidade do self na literatura do Renascimento”, p.50. “’Homines non nascuntur, sed finguntur’, escreveu Erasmo – os homens não nascem, são modelados –, uma fórmula que poderia ser tomada como o lema da revolução humanista”. 103 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 3, p.20.

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si mesmos – no caso de uma República, por meio de deliberação coletiva –,

possibilita não só a reversão dos maus costumes como a atenuação e controle dos

impulsos naturais, decorrentes de apetites e paixões destrutivas. “Isso”, ou seja, a

coerção pela lei, permite, de acordo com o secretário, que “os legisladores das

repúblicas ou dos reinos se disponham mais a refrear os apetites humanos,

destruindo nos homens qualquer esperança de errar impunemente”.104 As leis,

deste modo, atuam como freio dos impulsos naturais; como resultado, instituem

bons exemplos: “os bons exemplos”, diz Maquiavel nos Discorsi, “nascem da boa

educação; a boa educação, das boas leis; e as boas leis, dos tumultos que muitos

condenam sem ponderar”.105 Isso no que diz respeito aos humores naturais de uma

cidade. Quando, todavia, a mesma se encontra corrompida por facções ou por

deterioração acentuada dos costumes, “de nada valem leis bem-ordenadas”; neste

caso, é preciso que alguém institua as boas leis exclusivamente pela força.106

Além das leis, a religião, especialmente a religião dos romanos, constitui,

para Maquiavel, elemento determinante para um controle efetivo dos apetites e

paixões, por incidir, quase sempre, na busca da verdadeira glória e do bem

comum: “assim como a observância do culto divino é a razão da grandeza das

repúblicas, também o seu desprezo é a razão de sua ruína”.107 Mesmo o

cristianismo, pouco afeito às “honras mundanas”108, é, para ele, preferível à

ausência total de religiosidade; ademais, os valores cristãos não são, para

Maquiavel, necessariamente contrários à defesa da pátria: decorrem de uma

interpretação “da nossa religião [cristianismo] segundo o ócio, e não segundo a

virtù”. “Porque”, prossegue o secretário, “se eles considerarem que a religião

permite a exaltação e a defesa da pátria, veriam que ela quer que a amemos e

honremos, preparando-nos para sermos tais que a possamos defender”.109

A disciplina militar se soma às duas qualidades referidas, por modelar corpo

e alma e construir tanto o desapego às paixões perecíveis quanto o amor à pátria e

valorização do bem comum: “em qualquer lugar”, afirma Maquiavel em A arte da

104 Idem. Ibid., I, 42, p.131. 105 Idem. Ibid., I, 4, p.22. 106 Idem. Ibid., I, 17, p.71. 107 Idem. Ibid., I, 11, p.51. 108 Idem. Ibid., II, 2, p.189. 109 Idem. Ibid., II, 2, p.190.

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Guerra, “com exercícios, fazem-se bons soldados; pois onde falha, a natureza é

suprida pela indústria, que nesse caso vale mais que a natureza” (grifo meu).110

Se não podem transformar a própria natureza, os homens podem controlá-la,

subjugá-la por algum tempo, até mesmo por séculos, como foi o caso dos

romanos, e isto se viabiliza pelo recurso às boas leis, à verdadeira religião, aos

costumes virtuosos, à força militar, e fundamentalmente pelo apego à verdadeira

glória e à honesta ambição.111 Tais elementos fizeram a grandeza dos romanos,

que souberam, por muito tempo, controlar a própria natureza.

A compreensão de Guicciardini acerca da natureza humana é bastante

similar àquela de Maquiavel em seus aspectos centrais, ainda que a categorização

dos seus caracteres constitutivos divirja em alguns momentos. Se Guicciardini,

diferentemente do secretário, considera os homens “por natureza inclinados ao

bem”112, isso não altera o entendimento geral de uma natureza humana fraca,

incapaz, por si só, de levar os homens ao cume da glória: “a verdade”, afirma

Guicciardini no Dialogo del Reggimento di Firenze,

é que a natureza humana é muito frágil, de modo que por qualquer mínima situação

se desvia do caminho correto [via diritta], e as coisas que promovem tais desvios,

isto é, a cupidez e as paixões, são tantas e possuem tanta força na débil natureza do

homem que, não fossem outros os remédios que não aqueles que os homens

aplicam a si mesmos, pouquíssimos não se corromperiam.113

Para Guicciardini, assim como para Maquiavel, é preciso que os homens

sejam mantidos na diritta via por meio das leis. “Uma coisa que é natural a todos

os povos”, diz ele no Discorso di Logrogno, é que os homens, “quando não são

bem dirigidos [timoneggiati]”, usam “sua liberdade de forma insolente”.114 Os

bons ordenamentos, por sua vez, “não somente consolidam a liberdade e

110 MAQUIAVEL, Nicolau. A arte da Guerra, I, p.22. 111 Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 36. Sobre a questão da glória em Maquiavel conferir: VAROTTI, Carlo. Gloria e ambizione política nel Rinascimento, pp. 418-441. 112 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.89. “Quanto alla malignità, io vi dico che per natura tutti gli uomino sono inclinati al bene”. 113 Idem. Ibid., p.89. “Vero è che la natura umana è molto fragile, in modo che per leggiere occasione diverte dalla via diritta, e le cose che la fanno divertite, cioè la cupidità e le passioni, sono tante e in uno subietto debole come è la natura dello uomo hanno tanta forza, che se non fussi altro rimedio che quello che ciascuno fussi per fare da sé medesimo, pochissimi sono che non si corrompessino”.

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constituem um bom modo de governar o stato, mas também resultam em

recompensa aos cidadãos que se portam e agem bem”.115

Uma diferença importante entre a concepção de natureza humana de ambos

diz respeito à questão da maldade ou bondade natural dos homens. Para

Maquiavel, os homens são naturalmente invejosos116, além de não conseguirem ser

completamente bons ou maus117, o que acaba por prejudicá-los nos momentos de

tomada de decisões cruciais.118 São também facilmente corruptíveis, ambiciosos e

desconfiados119, tendendo sempre para o lado que imediatamente ofereça melhores

benefícios120: “os homens estimam mais aos bens materiais que às honras”.121

Sempre inclinados às novidades, eles se desapegam facilmente do bem comum,

demonstrando maior interesse pelas aparências que pela realidade.122 Como diz em

O Príncipe, “os homens sempre se revelarão maus, se não forem forçados pela

necessidade de serem bons”.123

Já para Guicciardini, “encontram-se naturalmente nos homens o desejo de

dominar e de obter superioridade sobre os outros”124; do mesmo modo, “os

homens que conduzem bem as suas coisas neste mundo têm sempre diante dos

olhos o próprio interesse, e medem todas as suas ações por esse fim”.125 A

despeito de tais generalizações, Guicciardini enxerga uma maior indeterminação

na natureza do homem, em comparação com Maquiavel: “são várias as naturezas

dos homens”, diz ele na máxima 61 dos Ricordi: “alguns esperam cem vezes mais

do que realmente podem ter, outros temem tanto que nunca esperam se não têm

em mãos”.126 Suas considerações sobre a natureza humana quase sempre vêm

acompanhadas de advérbios de modo: “Comumente os povos e todos os homens

inexperientes deixam-se atrair mais pela esperança de adquirir algo que quando se

114 GUICCIARDINI, Francesco. Discorso di Logrogno, p.14. “...ed uma cosa che è naturale a tutti e’ populi, quando e’ non sono bene timoneggiati, di usare insolentemente la sua liberta”. 115 Idem. Ibid., p.33. “Gli ordini detti ed introdotti di sopra son solo stabliscono la libertà e constituiscono buono modo di governare lo stato, ma ancora proveggono in gran parte alla remunerazione de’ cittadini che si portino ed operino bene”. 116 Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, proemio. 117 Idem. Ibid., I, 27. 118 Idem. Ibid., I, 30. 119 Idem. Ibid.,I, 29. 120 Idem. Ibid., I, 42. 121 Idem. Ibid, I, 38. “gli uomini stimano più la roba che gli onori”. 122 Idem. Ibid., I, 25. 123 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XXIII, p. 115. 124 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.65. “Mi pare bene, se io non mi inganno, che negli uomini si truovi naturale el desiderio di dominare e di avere superiorità agli altri”. 125 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 218, página 147.

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lhes mostra o perigo de perder. [...] normalmente nos homens a esperança tem

mais poder que o temor: por isso facilmente não temem o que deveriam temer, e

esperam o que não deveriam esperar” (grifos meus).127 Embora os homens sejam

inclinados ao bem, é preciso que as boas leis mantenham os homens na via

virtuosa. Diz Guicciardini na máxima 134 dos Ricordi:

Todos os homens são por natureza mais inclinados ao bem que ao mal, e desde que

outro aspecto não os conduza a direção contrária, não há ninguém que não faça

voluntariamente mais o bem que o mal; mas a natureza dos homens é tão frágil e

tão freqüentes no mundo as ocasiões que convidam ao mal que os homens deixam-

se facilmente se desviar do bem. E por isso os sábios legisladores encontraram os

prêmios e as penas: outra coisa não fizeram que manter os homens firmes na

inclinação natural deles (grifos meus).128

Se, em Maquiavel, as boas leis abrem ao homem a possibilidade de superar e

transformar, ainda que não de forma definitiva, a própria natureza, em

Guicciardini as boas leis permitem a realização plena da natureza humana: a

inclinação ao bem.

Tanto para Maquiavel como para Guicciardini a boa lei não corresponde à

aplicação simples de um princípio universal à realidade. O analista prudente que

se dispõe a perscrutar o melhor reggimento para uma cidade, levando em conta as

condições dos tempos e as variações dos humores citadinos – um melhor governo

possível129–, deve considerar não só os padrões de recorrência das condutas

humanas em geral, como também a natureza de povos e cidades. Isto lhe permitirá

vislumbrar os efeitos produzidos pelas leis que se queira introduzir.130 Como não

se trata de uma aplicação direta de idéias gerais à realidade concreta, o prudente

precisará examinar cuidadosamente as condições particulares das coisas do

mundo; comparando ações passadas com as perspectivas presentes, buscando

similitudes entre situações diversas, estabelecendo analogias que lhe permitam

126 Idem. Ibid., máxima 61, p. 77. 127 Idem. Ibid., máxima 62, p.77. 128 Idem. Ibid., máxima 134, p.107. 129 Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. A República bem-ordenada: Francesco Guicciardini e a arte do bom governo, pp. 131-161; “O melhor governo possível: Francesco Guicciardini e o método prudencial de análise da política”. Op. cit., pp. 325-249.

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enxergar além, ele edificará para si um amplo repertório de experiências próprias

e alheias a partir do qual apoiará a formulação dos seus juízos.

2.2 O princípio da analogia

De como o princípio da analogia constitui aspecto estruturante da retórica

prudencial de Maquiavel e Guicciardini.

Os homens prudentes costumam dizer, não por acaso nem inadvertidamente, que

quem quiser saber o que haverá de acontecer deverá considerar o que já aconteceu;

porque todas as coisas do mundo, em todos os tempos, encontram correspondência

[riscontro] nos tempos antigos.131

Nesta passagem dos Discorsi, Maquiavel deixa claro quão importante é o

princípio da analogia para o exame minucioso da realidade segundo o critério da

prudência. Embora o presente e o futuro não sejam considerados pelo secretário

repetições exatas do passado, eles engendram situações análogas a acontecimentos

de outras épocas que podem ser postas em perspectiva pelo prudente, aquele capaz

de separar as diversidades acidentais das substanciais, percebendo as tendências

de ascensão e queda das coisas do mundo, as motivações quase sempre

recorrentes na grande maioria dos homens e finalmente identificando o que é

fortuito, casual, e por isso deve ser avaliado como produto das contingências.

No De Inventione, Cícero trata a analogia (similitudo) como um aspecto da

inventio – parte da arte retórica responsável pela busca de argumentos verossímeis

ou verdadeiros capazes de sustentar uma causa determinada.132 Diz ele que “a

analogia se estabelece principalmente entre coisas contrárias, parecidas ou que

obedecem a um mesmo princípio”133, estando associada à urdidura de argumentos

prováveis, isto pelo recurso a uma imagem, a uma comparação ou a um

130 Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.34. “Però ditemi che governo sarà questo, acciò che, considerata la natura sua e la natura della città e di questo popolo, possiamo immaginarci che effetti producerà”. 131 MACHIAVELLI, Niccolò. Discursos, III, 43, p. 445. 132 CICERO, M.T. De Inventione, I, 9. 133 Idem. Ibid., I, 46.

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exemplo.134 Na Retórica a Herênio, o autor desconhecido, após defini-la, enumera

quatro de seus usos possíveis: “a similitude é o discurso que extrai alguma

semelhança de coisas distintas. É adotada ou para ornamentar, ou para provar, ou

para falar mais claramente, ou para colocar algo diante dos olhos” (grifos

meus).135 Percebe-se um vasto conjunto de possibilidades associadas ao emprego

pragmático das analogias136, segundo o tratamento conferido nestes dois tratados,

textos-base da formação ético-retórica humanista.

Tal recurso da argumentação, todavia, não deve ser entendido estritamente

em caráter técnico-instrumental, isto porque, para empregar palavras do filósofo

italiano Enzo Melandri, a analogia consiste em “processo de pensamento dotado

de uma modalidade específica, exemplificável por uma grandíssima variedade de

formas”.137 Segundo este viés analítico, a analogia não se configura apenas como

tropo retórico ou figura de linguagem, mas como um modo particular de

inferência, nem sempre avaliado devidamente segundo os critérios de

racionalidade das lógicas clássica e moderna.138 Diante da rigidez instaurada por

divisões binárias, a analogia se revela um tertium comparationis responsável tanto

pela neutralização das possíveis dicotomias que venham a surgir no âmbito da

argumentação como pelo estabelecimento de um novo ponto de partida, capaz de

transcender as aporias instauradas sem precisar necessariamente “resolvê-las” pela

anulação da contrariedade posta, ou pela produção de uma síntese dialética.139

Giorgio Agamben, ao examinar os pontos de vista de Melandri, define analogia

como “o dispositivo que, em toda antinomia e em toda aporia, exibe sua

inevitabilidade lógica e, ao mesmo tempo, torna possível não tanto a sua

composição, quanto sua superação e transformação”.140 Trata-se menos da busca

de um meio-termo aristotélico, capaz de evadir uma situação de impasse pela

134 Idem. Ibid., I, 49. 135 A.D. Retórica a Herênio, IV, 59. 136 Também no De Oratore, tratado de maturidade, Cícero discute amplamente a questão da analogia, sem recorrer, porém, à divisão apresentada no De Inventione. 137 MELANDRI, Enzo. La linea e il circolo, p.33. “Si tratta di un determinato processo di pensiero, dotato di una sua specifica modlità, esemplificabile in una larghissima varietà di forme”. 138 Cf. Idem. Ibid., p.311. 139 Cf. AGAMBEN, Giorgio. “Archeologia di un’archeologia”, p. xvii. Diz ele: “Come scrive Melandri (792), è solo dal punto di vista della dicotomia che il principio analogico può apparire come un tertium comparationis. Il terzo si attesta qui soltanto attraverso la deidentificazione e la neutralizzazione dei primi due che diventano ora i poli di un campo di tensioni vettoriali. Il terzo è questo campo, e nient’altro”.

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delimitação de um ponto eqüidistante entre extremos discursivos, que da

flexibilização da rigidez de uma oposição tomada como absoluta, por exemplo

entre verdadeiro e falso, através de uma comparação capaz de insinuar nuanças e

sinuosidades da questão examinada – o que, num campo como a análise política,

mostra-se particularmente relevante.

Na medida em que a analogia consiste fundamentalmente numa comparação

entre coisas distintas, um exame tanto da qualidade como da gradação do que é

então assemelhado revela-se determinante para a formulação de juízos analógicos

– aqueles responsáveis pelo estabelecimento e definição de pertinência em uma

comparação.141 No proêmio da sua Storia d’Italia, por exemplo, Francesco

Guicciardini compara a instabilidade das coisas humanas a um mar agitado pelos

ventos. O mar e as coisas humanas não apresentam em si e de forma evidente

atributos que tornem possível uma assinalação imediata de propriedades comuns

às coisas analisadas, capaz de pôr, de forma instantânea, “algo diante dos olhos”

de alguém. É preciso definir certas qualidades – como a agitação do mar pelo

vento e a instabilidade das coisas humanas – e certas gradações – um mar agitado

mas não um maremoto, situações instáveis mas não caóticas –, para que a

comparação venha a ser frutífera, produzindo bons efeitos e capacitando o público

leitor e/ou ouvinte a reconhecer, a visualizar, algum princípio de semelhança.

Ao relacionar a instabilidade das coisas humanas a um mar agitado pelos

ventos, Guicciardini formula uma sentença de caráter analógico que, no proêmio

de uma obra histórica, parece alertar para um uso crítico e prudente da memoria

rerum gestarum. Ele não alega a incapacidade das histórias de municiar leitores e

ouvintes com lições prudenciais, tampouco suas reflexões indicam o

enfraquecimento e diluição dos exemplos a serem imitados;142 isto implicaria

contradizer a máxima ciceroniana da história como “testemunha dos tempos, luz

140 Idem. Ibid., p. xvi. “L’analogia è il dispositivo che, in ogni antinomia e in ogni apori, esibisce la loro inevitabilità logica e, insieme, rende possibile non tanto la loro composizione, quanto il loro spostamento e la loro transformazione”. 141 Cf. MELANDRI, Enzo. Op. cit., p. 314. “Per il giudizio analogico è invece essenziale che le qualità, proprietà o attributi siano intensivi, cioè suscettibili di gradazione secondo il criterio del ‘piú-o-meno’ [...]. In altre parole, ciò significa sostituire al criterio del vero-o-falso un criterio del ‘piú-o-meno-vero-o-piú-o-meno-falso”. 142 Embora afirme que Guicciardini tenha procurado em sua Storia d’Italia seguir os preceitos ciceronianos e humanistas sobre a elaboração de um relato histórico, Felix Gilbert trata tais preceitos como “aspectos formais” (p.274) da história, e não como condições estruturantes de um gênero, no sentido de uma unidade ético-retórica. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini , p. 282.

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da verdade, mestra da vida, guardiã do passado”.143 Guicciardini não questiona a

possibilidade de buscar nas histórias a matéria-prima para a orientação das ações

presentes, como argumento no terceiro capítulo; ele questiona, isto sim, a

formulação de sentenças generalizantes e pouco criteriosas a partir da assinalação

de semelhanças superficiais, não substanciais, entre situações presentes e

passadas, como defende na máxima 117 dos Ricordi:

É falacíssimo julgar pelos exemplos porque, se não são semelhantes em tudo e por

tudo, não servem, pois cada mínima variedade no caso pode ser causada de enorme

variação no efeito. Para sermos capazes de discernir estas variedades, quando não

são pequenas, devemos ter olhos bons e perspicazes (grifos meus).144

As coisas humanas são diversas e variáveis; por essa razão, é preciso que o

analista dos fenômenos políticos tenha “olhos bons e perspicazes”, de modo a

extrair da inquirição destes não um ensinamento geral e inequívoco, supostamente

válido de forma indistinta, mas um princípio de orientação segundo condições

específicas, apropriado a determinada situação concreta. Daí a importância da

analogia: ela não reafirma o que já se sabe (ainda que comparações e metáforas

ligeiras e pouco estudadas sejam, desde sempre, uma constante no campo da

política). Ao contrário: se urdida com prudência e discernimento, a analogia

permite a delimitação de gradações e sutilezas que fornecem ganhos efetivos à

inquirição das coisas do mundo, tornando-a mais criteriosa.

Voltando à passagem do proêmio da Storia d’Italia, a analogia entre o mar

agitado pelos ventos e a instabilidade das coisas humanas é acompanhada de uma

censura à atuação dos príncipes, embaixadores e magistrados dos domínios

principescos e republicanos da Península Itálica, no período que vai da morte de

Lorenzo de’Medici, em 1492, à década de 1530, os quais, segundo Guicciardini,

“vislumbram apenas o que está diante dos olhos” sem se recordar das contínuas

mudanças de Fortuna. Se esta reprimenda for articulada à imagem do mar agitado,

sugerida logo antes, a passagem acaba por chamar a atenção para um aspecto

decisivo dos textos políticos e históricos de Guicciardini e também de Maquiavel:

a condução correta do stato diante das vicissitudes das coisas do mundo; mais

143 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 36. 144 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 117, p.101.

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especificamente o papel central dos bons timoneiros – em analogia com os

magistrados máximos de uma república, príncipes ou senhores preponderantes –,

aptos por suas habilidades prudenciais a navegar com segurança no mar agitado

das coisas humanas, sempre instáveis em função das constantes variações da

Fortuna.

Se as analogias entre a condução dos assuntos públicos e a arte da navegação

eram corriqueiras desde a poesia homérica, também as comparações do bom

governante com o bom médico mostravam-se usuais, como analisei anteriormente.

Numa analogia entre “coisas do estado” e medicação de enfermos, Maquiavel diz:

acontece, neste caso, o mesmo que dizem os médicos dos tísicos: no princípio o mal

é fácil de curar e difícil de diagnosticar, mas, com o passar do tempo, não tendo

sido nem reconhecido nem medicado, torna-se mais fácil de diagnosticar, mas, com

o passar do tempo, não tendo sido nem reconhecido nem medicado, torna-se mais

fácil de diagnosticar e mais difícil de curar. O mesmo acontece nas coisas de

estado, já que, quando se conhecem com antecedência (o que só ocorre quando se é

prudente) os males que surgem, eles se curam facilmente; mas, quando por não

terem sido identificados deixa-se que cresçam a ponto de todos passarem a

conhecê-los, não há mais remédio (grifos meus).145

O governante prudente, como o bom médico, deve se mostrar um intérprete

atento das “exigências do tempo”.146 Compara Guicciardini:

os médicos prudentes e experientes em nada usam zelo mais exato que ao conhecer

a natureza do mal, ao perceber os traços, a qualidade e todos os acidentes, para

resolver-se, a partir destes fundamentos, qual deve ser o tratamento [reggimento] do

enfermo, de que sorte e em que tempo se deve dar a ele os remédios.

“E”, prossegue ele,

como do fato de um enfermo ser bem ou mal medicado se pode chegar a um

argumento potente sobre sua melhora ou sua morte, o mesmo acontece no governo

de um stato, porque sendo conduzido prudentemente e proporcionalmente, se pode

145 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12. 146 Idem. Ibid., XXV, p.120.

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crer e esperar bons efeitos; sendo conduzido de outra forma e mal governado, em

que se pode crer senão na sua destruição? (grifos meus).147

Assim como o bom remédio é o que produz melhoras significativas no

paciente, o bom governo é o que gera bons efeitos, a saber, uma melhora parcial

do corpo político, na ótica de Guicciardini, ou mesmo total, segundo Maquiavel. E

que figura se não a do prudente está para eles habilitada a identificar e aplicar os

bons remédios necessários à saúde do stato?

Nesse sentido, pode-se dizer que a analogia não é meramente ilustrativa: ao

comparar a condução do stato ao tratamento conferido a um enfermo, Maquiavel e

Guicciardini realçam a vulnerabilidade da organização política das repúblicas e

principados da Península Itálica. Diante de um corpo político decadente e

adoentado é preciso agir com a máxima prudência, tanto no que diz respeito à

cautela quanto à celeridade decisória e à habilidade de saber reconhecer as

condições do tempo; trata-se, em suma, do controle dos meios eficientes capazes

de incidir na atenuação ou reversão do quadro geral de degeneração.

A seguir, traçarei um panorama de algumas das mais importantes tradições

interpretativas sobre a prudência, com o intuito de fornecer elementos para o

exame, no quarto item deste capítulo, dos termos específicos da redefinição do

conceito nos escritos de Maquiavel e Guicciardini. Possuidora de uma dupla

dimensão, calculativa e performativa – que de fato compõem uma unidade, na

medida em que perfazem uma retórica prudencial onde a análise sutil da realidade

é indissociável do domínio de convenções ético-retóricas que, mobilizadas

segundo o decoro específico das práticas letradas, visam à produção de efeitos de

persuasão e conseqüentemente ao reconhecimento público do bom juízo do orador,

ou do escritor –, a prudência constitui a categoria-chave para a fixação de um

critério interpretativo alicerçado no princípio do cálculo seguro, aguçado e veloz

das possíveis motivações e ações dos agentes históricos (príncipes, embaixadores,

condottieri, magistrados de Repúblicas, monarcas, etc.) no emaranhado tabuleiro

147 GUICCIARDINI, Francesco. Del governo di Firenze dopo la restaurazione de’ Medici nel 1512, pp. 43-4. “prudenti ed esperti medici in nessuna cosa usare più esatta diligenzia che in conoscere quale sai la natura del male, e capitulare um tratto le qualità e tutti li accidenti sua per resolversi poi com questo fondamento quale abbi a essere el reggimento dello infermo [...].E come dallo essere uno infermo bene curato da’ medici o no, si può pigliare potente argumento della salute o morte sua, così interviene nel governo di uno stato, perché essendo retto prudentemente e proporzionatamente, si può crederne altro che la ruína e destruzione sua?”

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das relações entre os stati, sem prejuízo das tópicas da honestidade e da utilidade,

vistas como finalidades últimas de toda deliberação política.

2.3 Breve excurso: da phronesis à prudentia.

Da phronesis em Aristóteles. A tradução de phronesis por prudentia entre os

latinos. Seu lugar no projeto ciceroniano de unidade ético-retórico-filosófica.

Tomás de Aquino e a recta ratio agibilium. A prudentia no Vita Civile de Matteo

Palmieri e nos escritos do napolitano Giovanni Pontano.

A prudência constituiu por muitos séculos um aspecto decisivo da reflexão

ético-retórica e filosófica entre os gregos, romanos, com a escolástica, no

Renascimento italiano e no mundo ibérico do século XVII. Desde então, ela

sofreu um eclipse significativo, resultante das transformações do conceito na

modernidade. Conquanto não tenha desaparecido completamente do horizonte da

análise política, a prudência lentamente deixou de ser considerada, especialmente

a partir de meados do século XVIII, uma disposição associada tanto à celeridade

decisória quanto à capacidade de articular o conhecimento das coisas boas,

passando a estar circunscrita a apenas um de seus domínios clássicos, a

precaução.148 Um exemplo retirado de um dicionário contemporâneo ilustra este

entendimento:

[do lat. Prudentia.] S. f. 1. Qualidade de quem age com moderação, comedimento,

buscando evitar tudo o que acredita ser fonte de erro ou de dano. 2. Cautela, precaução:

Dirige o carro com muita prudência. 3. Circunspeção, ponderação, cordura, sensatez: Leu

os autos com toda a prudência.149

148 Cabe ressaltar que o eclipse da prudência não implicou seu desaparecimento na modernidade. Como demonstra Peter J. Diamond, a análise da racionalidade prática entre autores do iluminismo escocês atribuía grande destaque à questão da prudência. Cf. DIAMOND, Peter J. “The ‘Enlightenment Project’ Revisited: Common Sense as Prudence in the Philosophy of Thomas Reid”. Também as controvérsias públicas dos primórdios da República Norte-Americana envolveram diferentes concepções da ação prudencial. Cf. HARIMAN, Robert. “Theory Without Modernity”, p.22. 149 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio, p.1.651.

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Na segunda metade do século XX deu-se uma reabilitação teórica da

prudência, movimento associado ao recrudescimento do interesse pela filosofia

política clássica, especialmente a ética aristotélica.150 Em Verdade e Método,

Hans-Georg Gadamer dedica alguma atenção à phronesis, com o intuito de pensar

a possibilidade de um “saber filosófico sobre o ser moral do homem”.151 Do

mesmo modo, pode-se destacar a contribuição de filósofos como Hannah Arendt,

Pierre Aubenque, Alasdair MacIntyre, Josef Pieper, além do próprio Gadamer,

para a revalorização da categoria. Tal conjunto de reflexões fez da prudência um

tema privilegiado entre os filósofos contemporâneos, especialmente aqueles

interessados nos limites da ética moderna, pós-kantiana.152 Ainda que não se

proponha a discutir o revigoramento da phronesis e da prudentia na

contemporaneidade, o presente estudo tem em seu horizonte algumas das

preocupações delineadas por estes autores, como a relação entre saber teórico e

saber prático, o caráter prudencial da história e a tensão entre segurança e

contingência no campo da análise política.

As primeiras definições e discussões teóricas acerca da phronesis remetem à

filosofias platônica e aristotélica, mas já na Ilíada e na Odisséia o vocábulo e

alguns significados correlatos se fazem presentes. A figura de Ulisses multi-

ardiloso sugere a importância atribuída ao cálculo cuidadoso das ações e à

ponderação, assim como à elaboração de estratégias e artifícios capazes de trazer

soluções rápidas diante de percalços imediatos. Também Nestor pode ser

destacado nesse sentido, como o protótipo do ancião sábio e experiente da Ilíada –

embora, como percebe Moses Finley, ele não se apóie em momento algum “na sua

experiência para justificar a escolha de uma decisão em vez de outra”.153 Ainda

segundo o historiador norte-americano, “na Ilíada, a prudência era personificada

pelo troiano Polídamas (e não por Nestor), sublinhando o seu diálogo com Heitor

150 Cf. UYL, Douglas J. Den. The Virtue of Prudence, pp.1-11. 151 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método, p.466. Sobre a questão da phronesis em Gadamer, conferir: CÔRTES, Norma. “Descaminhos do método: notas sobre história e tradição em Hans-Georg Gadamer”. In: Varia História, v. 22, nº 36, pp. 274-290. 152 Segundo Douglas J. Den Uyl, a prudência, entre os autores que, na segunda metade do século XX, buscam sua reconsideração, “could only hold, at most, a place of prominence as a motivational basis for virtue, but not as a virtue in its own right. That which will be called virtuous within the modern perspective will be defined as such in terms of a corresponding duty”. UYL, Douglas J. Den. Op. cit., p.16. 153 FINLEY, Moses I. O mundo de Ulisses, p.109.

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a verdadeira qualidade do herói”.154 Tal noção de prudência, associada ao cálculo

preciso e à precaução, acaba por se opor à idéia homérica de honra, alcançada

apenas na guerra e na morte gloriosa, com bravura – daí a insatisfação de Heitor

com os conselhos que lhe dão Polídamas e Príamo. Não se pode dizer, assim, que

a phronesis seja vista, na Ilíada e na Odisséia, como um elemento constitutivo da

areté, um de seus pilares. A reconsideração da prudência no mundo grego estará

diretamente associada à transformação do conceito de areté operada pelas

filosofias socrática e platônica, no sentido de pensá-la como excelência moral.155

Em Platão, a areté conforma a unidade de quatro elementos – justiça,

prudência, coragem e temperança –, denominadas virtudes cardeais por Santo

Ambrósio no século V da era cristã. Entendida como excelência, a areté é

alcançada por meio do equilíbrio entre as três partes da alma – irascível, apetitiva

e racional –, equilíbrio este que tem na phronesis seu alicerce fundamental, posto

que a parte racional deve dominar as demais.156 Há, ainda, uma subordinação da

phronesis à sophia. Por este critério, caberia aos governantes sábios e prudentes –

na pólis ideal da República, o filósofo-rei; na pólis orientada por esse ideal sem

consumá-lo plenamente, delineada por Platão no Político e nas Leis, os

governantes apoiados na legislação – tomar as decisões apropriadas acerca da

organização da pólis como um todo, sem perder de vista os princípios universais

do Bom e do Justo.157 A phronesis, nesse sentido, é categorizada pelo filósofo

ateniense como uma efetiva politiké epistéme, “ciência da política” – em sentido

completamente distinto do moderno, diga-se158 – responsável por zelar pela

condução apropriada dos assuntos citadinos. A conseqüência imediata de tal

assertiva é a exigência de que tanto magistrados como legisladores devam ser,

154 Idem. Ibid., p.110. 155 Cf. TARANTO, Domenico. Le virtù della politica. Civismo e prudenza tra Machiavelli e gli antichi, p.22. 156 Cf. PLATÃO. A República, IV, 428a-432e. 157 Cf. Idem. Ibid., IV, 428c-d. “Na cidade que há pouco fundamos existe, em alguns cidadãos, uma ciência que não delibera sobre algo que nela ocorre, mas sobre a cidade como um todo, procurando fazer ver como estabeleceria da melhor maneira as relações entre seus cidadãos e com as outras cidades?”. 158 O sentido de ciência da política, politiké epistéme, próprio da filosofia política clássica é bem explicitado por Leo Strauss na seguinte passagem, e em nada se aproxima da ciência política moderna: “Political life requires various kinds of skills, and in particular that apparently highest skill which enables a man to manage well the affair of his political community as a whole. That skill – the art, the prudence, the practical wisdom, the specific understanding possessed by the excellent statesman or politician – and not a ‘body of true propositions’ concerning political matters which is transmitted by teacher to pupils, is what was originally meant by ‘political

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além de homens experimentados nos assuntos políticos, sábios em sentido

filosófico.159 Este constitui o elemento central da crítica de Aristóteles a seu

mestre. Para o estagirita, conhecimento teórico e sabedoria prática constituem

atividades díspares da alma racional.

O ponto de partida das reflexões ético-políticas de Aristóteles reside na

crítica à teoria platônica das Formas. Não que o estagirita renuncie à noção de um

Bem supra-sensível; todavia, mesmo que tal valor exista como um princípio

externo e perfeito, sempre igual a si mesmo, ele não poderá jamais constituir um

modelo efetivo para as ações e aspirações dos homens em geral.160 “Ainda que

haja um bem único que seja um predicado universal dos bens”, diz ele na Ética a

Nicômaco, “ou capaz de existir separada e independentemente, tal bem não

poderia obviamente ser praticado ou atingido pelo homem, e agora estamos

procurando algo atingível”.161 Aristóteles estabelece aqui um finalismo sustentado

pela idéia de que as ações praticadas pelo homem conformam meios pelos quais

ele pode realizar seus objetivos maiores, bens para si mesmo mas não

necessariamente o Bem Supremo metafisicamente fundado. Como afirma Francis

Wolff, para Aristóteles “tudo o que existe é explicável por aquilo em vista do que

ele existe”162; as ações humanas, deste modo, são compreendidas em função dos

bens almejados: “se há portanto um fim visado em tudo que fazemos”, diz o

estagirita na Ética a Nicômaco, “este fim é o bem atingível pela atividade, e se há

mais de um, estes são os bens atingíveis pela atividade”.163

Dado que as ações humanas direcionam-se a fins, e cada fim, segundo esta

lógica, deve ser entendido como um bem, não seria correto falar em Bem

universal, mas em “bens” próprios a cada homem e a cada circunstância,

science’”. Cf. STRAUSS, L. “On Classical Political Rationalism”. In: The rebirth of classical political rationalism, p. 52. 159 A forma ideal de governo é instituída e examinada por Platão em A República; em O Político, esta forma ideal é chamada de “verdadeiro governo”. Já as outras formas (monarquia, aristocracia, democracia e suas formas degeneradas) “nem são legítimas nem verdadeiras, senão simples cópias daquela, imitando-a no bom sentido as bem organizadas, e o contrário disso as que de nada valem”. PLATÃO. O Político, 293e. Também no Górgias há a crítica da maneira com que a polis fora conduzida até então. Homens de estado reputados como prudentes, phronimos, são desqualificados por Sócrates, que afirma: “creio ser um dos poucos atenienses, para não dizer o único, que se dedica à verdadeira arte política, e que ninguém mais presentemente a pratica”. PLATÃO, Górgias, 521d. 160 Cf. HUTCHINSON, D.S., “Ethics”, p.201. 161 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, I, 6, 1096b. 162 WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política, p. 43. 163 ARISTÓTELES. Op. cit., I, 1, 1096a.

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atingíveis por meio de escolhas intencionais do possível.164 Havendo um bem

supremo, este deve ser procurado entre as cobiças comuns a todos os homens, não

entre idéias descarnadas, visíveis para uns poucos e inalcançáveis na plenitude.

Trata-se, este bem possível, da eudaimonia: “a felicidade”, afirma Aristóteles,

“mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos

sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais”.165 Caberia à filosofia

prática, nesse sentido, definir os meios adequados à consecução de fins

determinados em função do bem supremo, a eudaimonia, sem fugir, contudo, da

verdade e da virtude. “A filosofia prática”, diz Enrico Berti,

tem em comum com a teorética o fato de procurar a verdade, ou seja, o

conhecimento de como são efetivamente as coisas, e também a causa de como são

[...]. Sua diferença em relação à filosofia teorética é que, para esta última, a

verdade é fim para si mesma, enquanto para a filosofia prática a verdade não é o

fim, mas apenas um meio em vista de outro, ou seja, da ação, sempre situada no

tempo presente.166

Se a verdade da filosofia prática não é fim, ela envolve necessariamente o

princípio da escolha (proairesis) – não uma escolha qualquer, mas aquela

“responsável pela retidão dos meios” capazes de incidir na virtude, a retidão dos

fins.167 Viver virtuosamente implica escolher a felicidade suprema, optar por ela e

deliberar, em acordo com a retidão dos fins, sobre os meios necessários para

alcançá-la.168

A phronesis, nesse sentido, é percebida por Aristóteles como a disposição

prática responsável pelo reconhecimento das virtudes morais, pela compreensão

da necessidade de agir em conformidade a elas, preservando a justa medida e,

afinal, pela definição dos meios retos capazes de incidir na consumação dos fins

almejados. Se, como diz Aristóteles no livro II da Ética a Nicômaco, “a

164 Cf. AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles, p.163. “Na realidade, há tantos sentidos de bem quanto há de categorias do ser”. 165 ARISTÓTELES. Op. cit., 1097a. 166 BERTI, Enrico. Op. cit., p.116. 167 Cf. AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.199. “De resto, à frente, Aristóteles precisa que a virtude é responsável pela retidão do fim, o que deixaria supor que a escolha, responsável pela retidão dos meios, enquanto tal não pode ser dita virtuosa ou viciosa”. 168 Cf. ARISTÓTELES. Op. cit., II, 1113a.

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excelência moral é engendrada em nós [...] com o hábito”169, a phronesis

corresponde à disposição intelectual capaz de viabilizar tal aprendizado, através

da escolha segundo um desejo correto. “Para que a escolha seja boa”, afirma o

estagirita, “tanto a razão deve ser verdadeira quanto o desejo deve ser correto, e

este deve buscar exatamente o que aquela determina”.170 A phronesis se configura,

deste modo, como uma faculdade intelectual associada à parte calculadora da

alma racional (logistikón) – que tem por objeto o contingente –, não à sua parte

“científica” (epistemonikón)171, mostrando-se responsável pela “percepção da

verdade segundo o desejo correto”.172 Daí a definição da phronesis, no livro VI da

Ética a Nicômaco, como a “qualidade racional que leva à verdade no tocante às

ações relacionadas com os bens humanos”.173

Toda deliberação é um ato singular, único.174 “Ninguém delibera acerca das

coisas invariáveis”, diz Aristóteles, “nem acerca de ações que não podem ser

praticadas”.175 Precisamente por esta razão a phronesis se distingue da sabedoria

(sophia), a qual “diz respeito ao necessário”.176 “A sabedoria do imutável”,

argumenta Aubenque acerca da filosofia prática aristotélica, “não nos presta

nenhum socorro num mundo onde tudo nasce e perece”.177 Daí ser possível dizer

que o domínio da phronesis é aquele das escolhas tomadas com base em critérios

de validade não-asseguráveis em sua plenitude – isto porque, como afirma o

estagirita, “o homem não é o que há de melhor no universo”.178 Ela diz respeito às

“ações humanas e coisas acerca das quais é possível deliberar”179, enquanto a

sophia é a “mais perfeita das formas de conhecimento”.180

É certo, todavia, que o fato de a phronesis lidar com o acaso não implica

atestar a completa indeterminação de seus juízos – que desta forma sequer

poderiam receber este nome. Afirma Aristóteles: “está claro que não é possível

169 Idem. Ibid., II, 1102a. 170 Idem. Ibid., VI, 1139a. 171 Cf. BERTI, Enrico. Op. cit., p. 144. 172 ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1139b. 173 Idem. Ibid., VI, 1140b. 174 Cf. HARIMAN, Robert. Op. cit., p. 5. “Prudence is the mode of reasoning about contingent matters in order to select the best course of action.”. 175 ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1140a. 176 AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.109. 177 Idem. Ibid., p.147. 178 ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1141a. 179 Idem. Ibid., VI, 1141a. 180 Idem.

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possuir sabedoria prática [phronesis] quem não seja bom”.181 O conceito de bom,

neste caso, constitui um tipo de arché que orientará as escolhas racionais do

homem prudente, sem, contudo, determiná-las. Nesse sentido, Alasdair MacIntyre

defende que “a deliberação primeiramente busca um início, uma arché, tendo em

vista a construção de uma argumentação que conclui com um produto final que

Aristóteles chama de proáiresis”.182 Trata-se do assim chamado “silogismo

prático” aristotélico, no qual a primeira premissa afirma que “tal coisa deve ser

feita enquanto boa”; já na segunda premissa, “o agente afirma que as

circunstâncias são tais que oferecem a oportunidade e a ocasião para se fazer o

que deve ser feito”.183

“A phronesis”, diz Aristóteles, “é a disposição da alma relacionada com o

que é justo, nobilitante e bom para as pessoas”. No entanto, argumenta ele, “estas

são as coisas que o homem bom faz naturalmente, e não seremos mais capazes de

agir bem somente por conhecê-las, já que as várias formas de excelência moral

são disposições do caráter”.184 Logo, não basta saber o que é justo e nobilitante. É

preciso, acima de tudo, saber escolher o justo, transformá-lo em ação e conduta, o

que só é possível pela ponderação de cada acidente, de cada lance fortuito a que

os homens estão sujeitos. Daí a afirmação de Aristóteles, na Política, de que “ao

falar em um homem bom queremos dizer que ele possui uma bondade única, a

bondade perfeita, mas é obviamente possível ser um bom cidadão sem possuir a

bondade característica de um homem bom”.185 Dito de outro modo: cada ação,

conquanto orientada por modelo, é única e visa ao seu próprio bem específico, não

se subsumindo, assim, a um padrão previamente estabelecido. Donde decorre que

a phronesis “é a única qualidade específica de um governante”186, aquela capaz de

distingui-lo dos seus governados pela ação no tempo oportuno (kairos) e pela

procura do “melhor possível, dadas as circunstâncias”.187 Assim, como defende

Aubenque, o prudente, o phronimos, “sendo o critério último, é seu próprio

181 Idem. Ibid., VI, 1143b. 182 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual racionalidade?, p. 148. 183 Idem. Ibid., p. 155. 184 ARISTÓTELES. Op. cit., VI, 1143b. 185 ARISTÓTELES. Política, II, 1277a. 186 Idem. Ibid., II, 1277b. 187 AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.186.

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critério”, de modo que, em Aristóteles, “não é mais o homem de bem que tem os

olhos fixos nas idéias, somos nós que fixamos os olhos no homem de bem”.188

Pierre Aubenque afirma que “os latinos não estavam pouco inspirados

quando traduziram por prudentia, que Cícero nos lembra que se trata de uma

contração de providentia, a phronesis de Aristóteles e da tradição popular”.189 Isto

porque, como sustenta o filósofo no De Officiis, uma das qualidades centrais do

homem sábio e prudente consiste na capacidade de “antever as coisas futuras e, no

momento crítico, resolver os problemas tomando a decisão oportuna”190, com base

no critério da justiça e do honestum – uma vez que, para o Cícero, “a prudência,

sem a justiça, é impotente para gerar fé”191, isto é, gerar fidúcia.

Tal capacidade de antevisão já havia sido ressaltada por ele no De

Inventione, tratado de juventude:

a prudência é o conhecimento do que é bom e daquilo que é mau, e do que não é

nenhum dos dois. Suas partes são a memória, a inteligência e a previsão

[providentia]. A memória é o que permite à mente revocar o passado; a

inteligência, o que faz compreender o presente; a previsão, o que permite conhecer

a realização de uma coisa antes que aconteça.192

A prudência, no De Inventione, é tratada como parte da matéria honesta –

“aquilo que é desejado por si mesmo, em sua totalidade ou parcialmente”193 –,

visão que é compartilhada na Retórica a Herênio, de autoria desconhecida e

provavelmente redigida na mesma época:

A matéria honesta divide-se em reto e louvável. Reto é o que se faz com virtude e

dever. Subdivide-se em prudência, justiça, coragem e modéstia. Prudência é a

destreza que pode, com certo método, discernir o bem e o mal. Também se

denomina prudência o conhecimento de alguma arte, e ainda a memória de muitas

coisas e o trato de um grande número de negócios (grifos meus).194

188 Idem. Ibid., p.77. 189 Idem. Ibid., p.154. 190 CICERO, Marco Tulio. De Officiis, II, 33. 191 Idem. Ibid., II, 34. 192 CICERO, Marco Tulio. De Inventione, II, 160. 193 Idem. Ibid., II, 159. 194 AD. Retórica a Herênio, III, 3, p.153.

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Como conhecimento do que é bom e mal, e do que não é nem um nem

outro, a prudência é configurada como disposição intelectual capaz de articular o

entendimento do passado, a visão do presente e a antevisão do futuro, de modo a

possibilitar a urdidura de juízos honestos, desejáveis por si mesmos e em acordo

com a virtude e suas partes – especialmente a justiça, como Cícero frisa no De

Officiis. Nesse sentido, ela é responsável pelas escolhas de ações justas e corretas,

estando articulada, porém não subsumida, à sapientia, sabedoria em sentido

filosófico; inclusive, a dificuldade de distinguir sapientia e prudentia nas obras de

Cícero é um indício do nível de articulação destes dois conceitos em sua filosofia.

A discussão sobre a prudência adquire maior clareza no De Oratore e no

Brutus, diferenciando-se em aspectos importantes do entendimento aristotélico da

phronesis, especialmente no que diz respeito à ênfase na unidade entre prudência

e retórica e à defesa de um modelo de prática prudencial associado ao passado

romano.195 Não que a relação entre retórica e prudência fosse negada pelo

estagirita; em Cícero, porém, ela é realçada e levada ao primeiro plano.196

Prudentes, no De Oratore, são os oradores sábios e eloqüentes, detentores de

ampla sabedoria prática e profundo conhecimento filosófico.197 Cícero vislumbra

na figura do orador pleno – simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – a

desejável unidade entre filosofia e retórica.

Na abertura do livro II do diálogo De Oratore, Cícero afirma, em trecho

dirigido a seu irmão Quinto, que “a eloqüência alcançada por Crasso e Antônio

nunca poderia se realizar sem o conhecimento de todas as coisas que produziram a

prudência e a fluência oratória [dicendi copiam] manifesta nos dois”.198 É

importante frisar, aqui, a íntima relação entre conhecimento das coisas (cognitis

195 Cf. CAPE JR., Robert W. “Cicero and the Development of Prudential Practice at Rome”, p.39. “…by elevating the term within the dialogue genre, providing examples of viri prudentes in intellectual debate, associating prudentia intimately with rhetoric and politics, and doing this within the context of writing literary dialogue as a form of political action, Cicero provided a model of prudential practice”. 196 Cf. NEDERMAN, Cary J. “Rhetoric, reason, and republics: Republicanisms – ancient, medieval, and modern”, p. 252. “Instead, Cicero states that the realm of so-called ‘practical philosophy’ (philosophy touching on vita atque mores) falls more properly within the domain of the orator than of the philosopher”. 197 Cape Jr. argumenta que, em Cícero, a prudência é removida de seu âmbito estritamente legal, passado a constituir uma virtude essência do orador. Cf. Op. cit., Ibid., p.48. 198 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 2.

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rebus omnibus) e prudência; tal conhecimento de nada valerá, porém, se não for

acompanhado de eloqüência.

Para além dos procedimentos calculativos da phronesis aristotélica, fica

evidente a relevância atribuída por Cícero às performances práticas do homem

prudente – logo, ao caráter de evento adquirido pela prudência, associado à

deliberação em geral e à vita negotiosa.199 Cícero define modelos de homens

prudentes a serem imitados, e argumenta que o aprendizado da prudência,

envolvendo o somatório de eloqüência e conhecimento prático, se dá pela

observação atenta e respeitosa dos grandes homens do presente e leitura sobre os

grandes homens do passado, na busca do aperfeiçoamento moral pleno.200 Daí a

afirmação de Crasso, no De Oratore: “o costume e o treinamento agudizam a

prudência e aceleram a fluência oratória”.201

Como nota Robert Cape Jr., tal sentido de prudência, ao mesmo tempo em

que alcança seu apogeu com Cícero, não sobrevive à sua morte. Em Sêneca e

Tácito, alega, a prudentia “se transforma em meio de acomodação ao regime

político corrente”.202 Ainda segundo sua argumentação, os verdadeiros herdeiros

do entendimento ciceroniano de prudência foram os humanistas do Renascimento.

Em instigante exame da filosofia tomista, o filósofo alemão Josef Pieper

argumenta que a prudentia, para Tomás de Aquino, deve ser compreendida como

a causa fundamental para que as outras virtudes se constituam como tal.203

Percebida como capacidade humana de tomar decisões certas, a prudência permite

ao homem agir bem; logo, envolve em seu mecanismo de ajuizamento a própria

intuição da verdade.

199 Cf. CAPE JR., Robert W. Op. cit., p.61. “The rich texture of prudential practice in De Oratore, the Somnium Scipionis, and Brutus interwove the calculative procedures of prudence in rhetoric, ethics, and politics into a living tapestry of practical performance. Wisdom was embedded in political action; the great men of the state supported learning for its broader application to civic life and reflected upon their own positions; political performance could be learned and taught, as rhetoric was, by imitation”. 200 Cf. TARANTO, Domenico. Le virtù della politica. Civismo e prudenza tra Machiavelli e gli antichi, p.39. “Che gli antichi romani siano stati esempli di virtù non significa solo per Cicero che essi abbiano costituito dei modelli a sé stessi, ma anche che la stessa virtù sia talmente radicata nela loro cultura da non derivare né linguisticamente, né concettualmente, da odelli stranieri”. 201 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 90. 202 CAPE JR., Robert W. Op. cit., p.61. “Prudentia in later writers, particularly in Seneca and Tacitus, became a means of accommodation to the current political regime”. 203 Cf. PIEPER, Josef. The Four Cardinal Virtues, p.6. “Prudence is the cause of the other virtues’ being virtues at all”.

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Para Pieper, a prudência se configura, na filosofia tomista, como uma

espécie de sinderesis – intuição dos princípios universais – aplicada a situações

específicas.204 Trata-se, nesse sentido, da preocupação com os meios dos fins

corretos, fins estes que são concebidos como a “verdade das coisas reais”, ou seja,

das coisas como são.205 A prudência consiste, portanto, em recta ratio agibilium,

reta razão aplicada ao agir206; por meio dela, é possível alcançar a providentia, a

antevisão do que ainda não aconteceu. A antevisão precisa do futuro depende,

porém, da Graça, de uma iluminação de caráter único, ela mesma imprevisível.

Como esta independe do homem, sendo atributo exclusivamente divino, a noção

de providentia em Tomás de Aquino adquire outros contornos, devendo ser

entendida também como um produto intelectual, segundo argumento de Pieper:

Na medida em que a prudência é acima de tudo uma ‘virtude intelectual’, não

devemos, também, imputar às suas decisões a ‘certeza da verdade’ (certitudo

veritatis)? A esta sugestão, Tomás de Aquino responde: ‘non potest certitudo

prudentiae tanta esse quod omnino solicitudo tollatur’ – a certeza da prudência não

pode ser tão grande de modo a remover completamente a ansiedade. Uma

declaração profunda, esta! O homem, então, quando chega a uma decisão, não pode

jamais ser suficientemente presciente, tampouco pode esperar que a lógica lhe

forneça certeza absoluta.207

Assim como em Aristóteles e em Cícero, o prudente em Tomás de Aquino

não age visando atingir uma certeza plena; esta é insondável. O horizonte, aqui,

ainda é o provável, porém sob os auspícios do Bom e do Justo, princípios

universais que devem orientar toda escolha específica. Nas palavras de Pieper, a

prudência, em sentido tomista, “transforma o conhecimento da realidade em

204 Cf. Idem. Ibid., p.11. “Prudence, or rather perfected practical reason which has developed into prudence, is distinct from ‘synderesis’ in that it applies to specific situations”. 205 Cf. Idem. Ibid., p.20. “The meaning of the virtue of prudence, however, is primarily this: that not only the end of human action but also the means for its realization shall be in keeping with the truth of real things”. 206 AQUINO, Tomás de. A prudência. A virtude da decisão certa, questão 47, artigo 4, p.8. 207 PIEPER, Josef. Op. cit., p.18. “But since prudence is after all an ‘intellectual virtue’, shall we not also ascribe to its decisions ‘the certitude of truth’ (certitudo veritatis)? To this suggestions Thomas Aquinas responds: ‘non potest certitudo prudentiae tanta esse quod omnino solicitudo tollatur’ – the certitude of prudence cannot be so great as completely to remove all anxiety. A profound statement, this! Man, then, when he comes to a decision, cannot ever be sufficiently prescient nor can he wait until logic affords him absolute certainty”.

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realização do bem”.208 Por esta razão, sua caracterização difere um pouco do

tratamento aristotélico: se para o estagirita a phronesis constitui uma virtude

intelectual, dianoética, em Tomás de Aquino a prudentia conforma um ponto

médio entre as virtudes morais e intelectuais.209 “Todos os atos humanos”, afirma

Mario Santoro acerca da filosofia tomista,

são inspirados por dois princípios, o intellectus ou ratio e o appetitus; por isso toda

virtude humana é condizente com um dos dois: em conseqüência, toda virtude, se é

própria do intelecto especulativo, é intellectualis, e se é própria do appetitus é

moralis: por isso a prudência é uma virtude intelectual e, ao mesmo tempo, é

acompanhada de outras virtudes morais.210

A definição de prudência como recta ratio agibilium mostrou-se recorrente

entre os humanistas italianos dos séculos XIII ao XV. Em Dante, ela é pensada

como mestra das coisas a seguir ou fugir211; em Petrarca, ela é compreendida

como o remédio mais efetivo contra a Fortuna, por guiar o homem nas ações

concretas fazendo-o esquecer dos bens vãos e valorizar a liberdade interior.212

No diálogo Vita Civile, composto em meados do século XV, o humanista

Matteo Palmieri fornece uma das análises mais aguças acerca da prudência:

De acordo com as virtudes cívicas, é ofício da Prudentia dirigir com razão todo o

nosso pensamento e toda a nossa ação, de acordo com fins honestos e dignos de

elogio, não querer nem fazer nenhuma coisa menos que honesta e prover cada uma

das nossas operações com razão e juízo perfeito.213

208 Idem. Ibid., p.22. “Prudence […] transforms knowledge of reality into realization of the good”. 209 Cf. SANTORO, Mario. Fortuna, ragione e prudenza nella civiltà letteraria del cinquecento, p.47. 210 Idem. Ibid., p.48. “La virtù umana è per S. Tommaso un abito che consente all’uomo di bene operare: tutti gli atti umani sono ispirati da due principim l’intellectus o ratio, e l’appetitus; perciò ogni virtù umana è perfettiva di uno di essi: di conseguenza ogni virtù, se è perfettiva dell’intelletto speculativo, è intellectualis, mentre, se è pefettiva dell’appetitus, è moralis: perciò la prudenza è una virtù intellettuale e, nello stesso tempo, si acompagna alle virtù morali”. 211 Cf. Idem. Ibid., p.49. 212 Cf. Idem. Ibid., p.50. 213 PALMIERI, Matteo. Vita Civile, I, 187, p.52. “Secondo virtù civile è proprio officio della Prudentia ogni nostro pensiero et ogni nostra acione con ragione dirizare in laudbile et honesto fine, niuna cosa meno che honesta né volere né fare, et provedere a ciascuna nostra operatione con ragione at perfecto giudicio”.

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Assim como Cícero no De Inventione, Palmieri delimita três partes da

prudência: memória, inteligência e providência, sendo esta última responsável

pela previsão “acautelada de todas as coisas, com arbítrio quase divino”.214

Ao dirigir com razão o pensamento, a prudência se faz virtude intelectual

sem deixar de ser ela mesma uma virtude moral, nos moldes tomistas; a ênfase

nos fins honestos remete à compreensão ciceroniana da prudentia, e está

diretamente associada à valorização do equilíbrio das paixões e apetites humanos,

assim como ao bom governo: “com estas virtudes”, afirma Matteo Palmieri acerca

das quatro virtudes cardeais (prudência, fortaleza, temperança e justiça), “os

homens bons governam primeiramente a si mesmos e às suas coisas; em seguida,

fazem-se governantes das repúblicas”.215 Para que seja reconhecido como

prudente, o homem deve fugir da ignorância, procurar a verdade das coisas –

sabendo medi-las com diligência –, e respeitar o tempo certo de agir, sem perder

de vista o “governo do bom e justo viver”, segundo os critérios do útil e do

honesto.216 É “ofício próprio do homem prudente saber bem aconselhar”, diz ele;217

para tanto, é preciso que esteja apto a vislumbrar e distinguir a verdade, quando

diante dela.

Segundo Palmieri, o reconhecimento da verdade pode ser obtido de quatro

formas distintas: pelo intelecto, força natural a partir da qual se revelam os

princípios universais; pela ciência, conhecimento verdadeiro das coisas certas;

pela arte com razão, que diz respeito às coisas que podem ser e não ser, ou seja, o

domínio do provável, e finalmente pela sabedoria, consideração elevada das

coisas supremas. Na medida em que o domínio da prudência diz respeito às

“coisas humanas”218, a verdade almejada pelo prudente sempre está sujeita às

contingências, ao acaso e à indeterminação; logo, diz respeito ao domínio do

provável. Sendo assim, das quatro formas de conhecer a verdade elencadas acima,

aquela que, segundo Palmieri, mais se aplica à prudência é a arte com razão –

214 Idem. Ibid., II, 41, p.68. “con arbitrio quasi divino a ogni cosa possiano cautamente provedere”. 215 Idem. Ibid., I, 190, p.52. “Con queste virtù i buoni huomini prima governono loro et le loro cose; di poi, venutti governatori delle republiche, acrescono, consigliono e difendono quelle”. 216 Idem. Ibid., II, 31, p.65. “sapere bene consigliare di tutte le cose che sieno laudabili et utili all’universale governo del buono et iusto vivere”. 217 Idem. Ibid., II, 33, p.66. “Sendo proprio ufico dell’humomo prudente sapere bene consigliare, et bene consigliare non puossi se prima l’animo non discerne il vero”. 218 Idem. Ibid., II, 39, p.67. “[...] gli elevati ingegni di coloro che [...] cercono et sono in meditationi di beni celestiali et divini sono chiamati sapienti et non prudenti, però che la prudentia solo sé exercita intorno alle cose humane”.

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todo conselho deve versar sobre o verossímil, o possível porém incerto, jamais

sobre o necessário, que não é passível de deliberação.219 Assim, existe

aconselhamento acerca dos meios, não sobre os fins. “Numa república”, diz

Palmieri, para exemplificar a última afirmativa, “não se aconselha a paz, mas com

que meios se faz a paz”.220 Ainda, toda prática de aconselhamento deve ser “livre,

verdadeira e aberta”. Livre é o conselho que não enfraquece a verdade em

detrimento de uma comodidade qualquer, ou que não teme retaliações ou se deixa

levar por amizades221; conselho verdadeiro é aquele adequado à virtude e às suas

partes222; aberto é o conselho provido de boas sentenças, palavras apropriadas e

ordem, sem analogias impertinentes ou falar dúbio.223

Vê-se, assim, que para Matteo Palmieri toda deliberação é

fundamentalmente retórica (a “arte com razão”), e que a produção de bons efeitos

– alcance dos resultados visados pela argumentação, ou a edificação de um

consenso a partir de posições contrárias – dependerá fundamentalmente da

maneira com que argumentos convincentes são mobilizados a partir do recurso a

lugares-comuns retóricos, assim como do emprego conveniente de medidas

dispositivas e figuras de ornato.

Nos escritos do humanista napolitano Giovanni Pontano, embora a

prudência não se desligue da acepção ciceroniana que a fixa entre as virtudes

cardeais e atesta sua indissociabilidade ante a justiça, seu tratamento adquire um

grau maior de complexidade em relação à análise de outros humanistas do

Quattrocento, como Palmieri. Trata-se de um novo direcionamento do olhar, que

passa a estar focado, como argumenta Mario Santoro, em “novos temas”, e numa

“nova interpretação da existência”.224 Tal reconsideração deriva, em grande parte,

219 Idem. Ibid., II, 42-45, p.68. “Ogni consiglio debbe essere di cose possibili [...]. Qualunche consiglio è rimosso dalle cose di che siàno certi [...]”. 220 Idem. Ibid., II, 46, p.69. “Niuno consiglio è mai del fine, ma in che modo et con che mezi al fine si possa venire [...]; nella republica non si consiglia dalla pace, ma con che mezi s’abbia la pace”. 221 Cf. Idem. Ibid., II, 49, p.69. “La libertà prima si domanda da sé, poi di fuori; in sé, si vuole guardare che particulare commodità non impedisca il vero, fuori di sé, che timore d’odio o speranza d’amicitia o terrore di potentia non ti tiri al contrario di quello di che tu consigli”. 222 Cf. Idem. Ibid., II, 49, p.69. 223 Cf. Iem. Ibid., II, 50, p.69. “Aperto sarà quello consiglio che con buone sententie, parole apropriate et chiare fia narrato col proprio suo ordine, sanza similitudini impertinenti o parlari dubbii, perubati o torti”. 224 SANTORO, Mario. Op. Cit., p.54. “la nozione pontaniana di ‘prudenza’ assume un significato nuovo, implica nuovi problemi e nuovi temi, riflette una nuova interpretazione dell’esistenza”.

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das dificuldades de compreender as significativas transformações da realidade

italiana após a invasão de Carlos VIII em 1494 – sentidas inicialmente, e com

mais força, no reino de Nápoles.

Pontano defende no tratado De Prudentia que as “coisas do mundo” são

móveis, fluidas e bastante complexas, estando sujeitas a extremas variações, que

interferem e condicionam as ações humanas, não deixando, muitas vezes, brechas

para a ação plenamente responsável e autônoma, segundo modelos fixados pela

tradição.225 Tal complexidade se revela na delimitação feita por ele das qualidades

do prudente: consyderatio, providentia, meditatio, ingenium, solertia, apparatio,

perspicacitas, cunctatio, celeritas, versatilitas, discretio. Santoro destaca

especialmente o tratamento da cunctatio (saber delongar, adiar, faculdade

imortalizada por Quinto Fabio na Segunda Guerra Púnica) e da celeritas (a qual

remete à prontidão e rapidez decisória), por dizerem respeito à questão do tempo

certo para a deliberação e ação – tema recorrente em Maquiavel e Guicciardini.

Outro aspecto destacado por Santoro é a discrição, discretio, considerada por

Pontano a disposição para distinguir e julgar apropriadamente o momento certo de

intervir na realidade ou de gozar o benefício do tempo.226

Ainda segundo Mario Santoro, o quinto livro do tratado De Prudentia é todo

ele dedicado a exemplos de homens prudentes, e sua ênfase concentra-se no

campo da prudentia civilis, assuntos concernente a eventos políticos e militares.227

Os exemplos são retirados em grande parte das histórias antigas, especialmente o

Ab Urbe Condita de Tito Lívio. O que está em jogo é a discussão de uma

“possibilidade concreta de retirar da história uma lição política realista e atual”228,

ou seja, ensinamentos capazes de produzir efeitos imediatos segundo as

exigências do tempo e de acordo com as singularidades exigidas pelas

circunstâncias de cada momento. Nesse sentido, o tratamento conferido por

Pontano à questão da prudência revela-se decisivo para a compreensão do modo

de conceber a política que surge entre os florentinos no final do século XV e

início do século XVI. As ênfases conferidas à argúcia da visão, à inconstância das

225 Idem. Ibid., p.55. “Sostituita alla cognizione del reale prospettato come un repertorio di cose da seguire o da fuggire (per cui la responsabilità delle scelte e dei resultati spetta tutta all’uomo) la cognizione di una realtà estremamente complessa, fluida, mobile e variabile, che condiziona in modo massiccio e pressante l’azione dell’uomo”. 226 Cf. Idem. Ibid., p.58. 227 Cf. Idem. Ibid., p.63.

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coisas do mundo, à celeridade decisória e, fundamentalmente, ao respeito do

tempo certo da ação se mostram recorrentes nos escritos políticos e históricos de

Maquiavel e Guicciardini, constituindo aspectos capitais que sustentam a

redefinição do conceito de prudência operada por ambos.

2.4 Verità effetualle e prudência: os “novos modos e ordens”.

A redefinição da prudência nos escritos de Maquiavel e Guicciardini. A ênfase nas

tópicas da honestidade, da utilidade, da segurança e da necessidade. Arte do

estado e verdade efeitual: a retórica das pratiche. Componentes da prudência:

experiência, leitura das histórias, discrezione e ragione.

Maquiavel e Guicciardini viveram em um período de grandes turbulências

políticas e militares. Em 1494 a Península Itálica foi invadida pelas tropas de

Carlos VIII, monarca francês, o que desencadeou profundas transformações na

dinâmica política da região. Se antes desta data havia um certo equilíbrio de poder

entre as Repúblicas e principados da região – em especial Florença, Veneza,

Nápoles, Milão e os domínios papais –, com a chegada dos franceses e, logo em

seguida, também dos espanhóis, a Península praticamente foi dividida entre os

interesses das duas grandes monarquias.

Já na última década do século XV diversos tratados políticos põem em

xeque algumas concepções sobre a vida civil próprias dos “humanistas cívicos”.229

A discussão sobre a interferência da Fortuna nos assuntos humanos adquire

evidência, uma vez que o poder do acaso e os caprichos da deusa passam a ser

associados, por escritores da passagem do XV para o XVI como Pontano,

Rucellai, Maquiavel e Guicciardini, às mudanças dos ventos na Península Itálica.

Também o conceito de prudentia, ou prudenzia, ganha novo destaque, sendo

reconfigurado a partir das demandas por novas formas de compreender as

significativas mudanças políticas da época. Compõe-se, assim, um horizonte de

expectativas pleno de incertezas, ligado por fios ainda fortes a um espaço de

228 Cf. Idem. Ibid., p.64. “[...]la concreta possibilità de trarre dalla storia una lezione politica realistica e attuale”.

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experiência bastante amplo que, todavia, se mostrava cada vez mais difícil de

mobilizar, por ser incapaz de fornecer, por si só e de forma evidente, as respostas

necessárias às indagações sobre os rumos imprevistos das “coisas do mundo”.230

Como nota Jean-Louis Fournel, pode-se perceber, a partir do exame dos

chamados “escritos de governo” maquiavelianos do período republicano (1494-

1512) – ofícios, legações, cartas da Chancelaria, etc. –, uma grande atenção ao

problema da passagem do tempo e da rapidez com que certas transformações

inesperadas se impunham, sem que seus vestígios pudessem ser rastreados

adequadamente.231 A reflexão sobre o presente adquire centralidade: este se torna

em grande medida incompreensível, segundo os critérios usuais defendidos e

praticados em assembléias e magistraturas da República, isto porque a experiência

e as histórias antigas deixam de constituir repositórios evidentes em si mesmos de

ações e condutas para o presente, e o futuro já não é compreendido como algo

plenamente mensurável.232 Não que o recurso à experiência e às histórias seja

abandonado; nota-se, porém, uma maior exigência no que diz respeito à

mobilização de tais expedientes, evidenciada pelo destaque conferido ao que

chamavam de exame da “qualidade dos tempos”. Torna-se imperativo saber se

valer da experiência e das histórias de forma correta, em estreita relação com as

condições particulares em jogo: somente os prudentes, donos de olhar agudo e

penetrante, podem distinguir, no emaranhado de situações superpostas, muitas das

quais praticamente indistinguíveis entre si, as escolhas e caminhos apropriados.

É significativo que tanto nas Istorie Fiorentine de Maquiavel quanto na

Storia d’Italia de Guicciardini a palavra prudência venha na maior parte das vezes

acompanhada do advérbio “pouca”: “[...] para a admiração de toda a Itália, que,

229 Para uma discussão sobre a propriedade do emprego da categoria de “humanismo cívico”, conferir: BIGNOTTO, Newton. Origens do Republicanismo Moderno, pp. 13-31. 230 Emprego estas categorias em acordo com o sentido proposto por Reinhart Koselleck em “Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas”. In: Futuro Passado. Não se trata de uma contração do espaço de experiências atrelado a um alargamento do horizonte de expectativas, e sim de um espaço de experiências quase hipertrofiado, porém incapaz de lidar plenamente com o problema da aceleração temporal – questão decisiva para a compreensão da idéia de prudência em Maquiavel e Guicciardini –, e um horizonte de expectativas obscuro, incerto, sem um critério delimitador capaz de fornecer respostas especulativas à questão do devir. 231 Cf. FOURNEL, Jean-Louis. “Temps de l’histoire et temps de l’ecriture dans les scritti di governo de Machiavel”, p.80. 232 Cf. Idem. Ibid., pp. 80-81. “Enfin, le présent a acquis une radicalité qui le rend tout à la fois impératif et incompréhensible, porteur d’un passé proche qui engage et d’un possible futur qui impose une réaction circonstanciée (puisque l’enjeu de cette dernière n’est plus ni le salut

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por pouca prudência, os honrava”233; “essa injúria, cometida com pouca prudência,

foi recebida com grande ódio pelo povo”234; “valendo-se, em detrimento alheio, do

poder a eles concedido pela coletividade [salute comune], fazem-se, ou por pouca

prudência ou por demasiada ambição, autores de novos tumultos”.235 Quando

Maquiavel e Guicciardini analisam as decisões e ações de príncipes, magistrados e

condottieri italianos, especialmente dos seus contemporâneos, raras são as vezes

em que exaltam condutas adequadas.

As dificuldades encontradas pelos escritores do século XVI florentino para

compreender os desenlaces da calamità italiana incidiram no reexame de certos

critérios tradicionais sobre o melhor ordenamento da República, suas leis,

costumes e hábitos militares – há, nesse sentido, um aguçamento e, por que não

dizer, radicalização da “crise das relações entre a linguagem e a realidade

histórica”, para empregar palavras de Cesare Vasoli que demarcam um dos

“aspectos fundamentais da cultura filosófica” do século XV.236 A validade de

julgamentos, sentenças e ações até então considerados pertinentes é duramente

questionada, como no caso do princípio de “gozar o benefício do tempo”, máxima

dominante entre os florentinos do século XV no que diz respeito aos assuntos

externos da res publica: como “o tempo leva adiante todas as coisas e pode trazer

consigo tanto o bem como o mal”, argumenta Maquiavel em O Príncipe, deve-se

gozar os benefícios da “virtù e prudência”, não da delonga.237 Diante da ineficácia

imediata do que “está na boca de todos os sábios dos nossos tempos”238; em vista

da sensação de uma esfacelamento dos critérios ordenadores da relação entre

passado/presente, presente/futuro; ante o contato com sucessivas novidades, como

a descoberta de novas terras e a emergência de atores políticos dotados de

exércitos gigantescos e fiéis (caso de França e Espanha); perante um horizonte de

intensas transformações sócio-políticas; em presença destes dados, torna-se um

individuel ni la survie du monde chrétien mais la sauvegarde d’une république singulière, d’un Etat particulier, bref de la patrie”. 233 MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, I, 39, p.74. 234 Idem. Ibid., II, 7, p.86. 235 GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 1. “[...] e convertendo in detrimento altrui la potestà conceduta loro per la salute comune, si fanno, o per poca prudenza o per troppa ambizione, autori di nuove turbazioni”. 236 VASOLI, Cesare. “L’Humanisme Rhetorique em Italie au XVeme Siècle”, p.45. « ‘Crise’ des relations entre la langage et la réalité historique contemporaire, qui constitue un des aspects fondamentaux de la culture philosophique de cee temps ». 237 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12. 238 Idem.

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imperativo de governantes, magistrados, conselheiros, príncipes e embaixadores

deliberar com celeridade e agir com presteza, na tentativa de assegurar alguma

margem de autonomia para suas intervenções na realidade – e como

conseqüência, garantir a segurança da res publica ou dos domínios territoriais

(mantenere lo stato).

Nos tratados latinos de retórica, a tópica do útil quase sempre aparece

atrelada à tópica da segurança, especialmente no que diz respeito ao

fortalecimento militar, à preservação do stato e à expansão territorial.239 Como

percebe Maurizio Viroli, a tradição ético-retórica clássica não comportava uma

oposição cabal entre útil e honesto.240 Lê-se na Retórica a Herênio que “no debate

político a utilidade divide-se em duas partes: a segura e a honesta”.241 A matéria

honesta, por sua vez, é dividida em duas categorias: o reto e o louvável. “Reto é o

que se faz com virtude e dever. Subdivide-se em prudência, justiça, coragem e

modéstia”.242 O louvável é “aquilo que produz lembrança honesta tanto no

presente quanto na posteridade”.243 No De Inventione, a utilidade é pensada como

o conjunto composto por segurança e potência. A segurança, por sua vez, é

definida como “a disponibilidade de meios idôneos para conservar os próprios

bens ou para debilitar aqueles de outros”.244 Já o honestum é tratado por Cícero

como “aquilo que é desejado por si mesmo, em sua totalidade ou parcialmente”;

esta categoria engloba a virtude, “que pode ser definida como um comportamento

em harmonia com a norma natural e a razão”.245

Conforme a argumentação ciceroniana, o útil se delineia em função da

“sobrevivência e segurança dos estados”, e busca afirmar o poder e a grandeza

adquiridos por estes.246 Ele é dividido em duas categorias: uma diz respeito ao

“objeto mesmo” e a outra a coisas estranhas a este:

A maior parte deste [do útil] se refere, fundamentalmente, às vantagens que se

refletem sobre o objeto mesmo: assim, na re publica, algumas coisas dizem

respeito, por exemplo, ao corpo civil, como território, os portos, o dinheiro, a frota,

239 Cf. HÖRNQVIST, Mikael. Machiavelli and Empire, pp. 40. 240 Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.68. 241 AD. Retórica a Herênio, III, 3, p.153. 242 Idem. 243 Idem. Ibid., III, 7, p.157. 244 CICERO, Marco Túlio. De Inventione, II, 169. 245 Idem. Ibid., II, 159.

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os marinheiros, os soldados, os aliados, coisas que garantem segurança e liberdade;

mas existem outras coisas que produzem vantagens mais vistosas e menos

necessárias, como o embelezamento e grandeza de uma cidade, uma riqueza

extraordinária, um grande número de amigos e aliados.247

Dito desta forma, o útil revela-se atrelado ao honesto – dado confirmado pela

crítica de Cícero a Aristóteles, o qual defendia ser o gênero deliberativo inclinado

somente à utilidade.248

Tendo em vista a centralidade da Retórica a Herênio e do De Inventione –

considerados, juntamente com os tratados ciceronianos De Oratore e De Officiis,

além da Institutio Oratoria de Quintiliano, os textos-chave da formação ético-

retórica renascentista, efetivos modelos de memorização, reflexão e imitação249 –

tanto para a formação ético-retórica dos florentinos em fins do século XV como

para a constituição do que Richard Lanham denominou “ideal retórico da vida”250,

o tratamento conferido ao gênero deliberativo nestes tratados deve ser levado em

conta para a compreensão do destaque imputado por Maquiavel e Guicciardini às

tópicas da utilidade e da segurança.

A proeminência do útil denota uma acentuada preocupação com o “corpo

civil”, especialmente com a segurança geral do stato e com a manutenção da

liberdade – compreendida como ausência de domínio externo e acesso equânime

às magistraturas citadinas251 –, sem que haja um afastamento substancial do

honestum. Donde se pode afirmar que tal deslocamento não se dá à margem ou

mesmo em contradição com os preceitos ético-retóricos sustentados pelas

autoridades antigas e seus comentadores humanistas. Fundamentalmente, não há

uma dicotomia entre útil e honesto; podem existir, isto sim, certas tensões entre o

que é considerado como o honroso em geral e o que é tido como útil ou vantajoso

246 Idem. Ibid., II, 169. 247 Idem. Ibid., II, 168. 248 Idem. Ibid., II, 156. 249 Cf. WARD, John O. “Renaissance Commentators on Ciceronian Rhetoric”, p.128. “[...] equally, we might expect the Ad Herennium and its commentaries to have remained the main didactic text during the Renaissance”. Conferir também: MOSS, Ann. Les recueils de lieux communs, pp. 97-120. 250 Cf. LANHAM, Richard. The Motives of Eloquence. Literary Rhetoric in the Renaissance, p.3. 251 Cf. PETTIT, Philip. Republicanism. A Theory of Freedom and Government, pp. 31-35; SKINNER, Quentin. “The republican ideal of political liberty”, pp. 293-309.

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em determinada circunstância particular, questão que não era estranha aos

tratadistas romanos, como nota Maurizio Viroli.252

Note-se, nesse sentido, o emprego por Maquiavel em O Príncipe da

paradiástole, técnica retórica de redescrição de virtudes e vícios, que atua

precisamente na lacuna entre definições gerais e enunciados específicos: a

redescrição, como nota Quentin Skinner, consiste no “meio de aumentar o que se

pode dizer a favor de determinado ato, ou de minimizar o que se pode dizer contra

ele”.253 Lê-se na Retórica a Herênio:

Com efeito, não haverá quem prescreva o abandono da virtude, mas que se diga,

então, que o caso não é tal que permita pôr à prova uma excepcional virtude, ou

que a virtude reside, antes, em coisas opostas às que foram exibidas; também, se

assim pudermos, o que o adversário chamar justiça demonstraremos que é

covardia, fraqueza e torpe liberalidade; o que tiver denominado prudência, diremos

que é um saber inepto, verboso e molesto; o que disser que é modéstia, diremos

que é inércia e negligência dissoluta; ao que ele nomear coragem, chamaremos de

temeridade irrefletida e gladiatória (grifos meus).254

Como percebe Skinner, a descaracterização das virtudes comumente

associadas à condução de estados – virtudes cardeais, principescas e cristãs255 –

pode ser vista como prática de redescrição paradiastólica, empregada em O

Príncipe especialmente na análise das virtudes da clemência e da liberalidade.256

“A liberalidade usada de maneira ostensiva te prejudica”257; “um príncipe deverá

portanto não se preocupar com a fama de cruel se desejar manter seus súditos

unidos e obedientes”.258 Trata-se da depreciação do uso indistinto da liberalidade e

da clemência na condução do stato. Não que ambas devam ser descaracterizadas

252 Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.88. “Roman authorities on the art of rhetoric amply discuss the delicate issue of possible conflicts between honor and expediency, or between what is praiseworthy and what is advantageous”. 253 Cf. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes, p. 218. 254 AD. Retórica a Herênio, III, 6, p.157. Conferir também: CICERO, Marco Tulio. De Inventione, II, 165. 255 Cf. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno, pp. 146-7. 256 Afirma Skinner, sobre O Príncipe: “É que o livro de Maquiavel é um texto em que a técnica da redescrição retórica é não apenas utilizada de maneira sensacional, como é também especificamente usada como um meio de depreciar e solapar as chamadas virtudes ‘principescas’ da clemência e da liberalidade”. Ibid., p.229. 257 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XVI, p.75. 258 Idem. Ibid., XVII, p.79.

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como virtudes em geral; apenas precisam se adequar às situações particulares,

cuja análise atenta, muitas vezes, demonstra o caráter inapropriado do emprego

destas em determinadas circunstâncias.

A ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à questão dos bons efeitos

– a saber, a capacidade de antevisão dos possíveis resultados de uma ação e o

emprego de meios eficientes, independentemente de sua retidão, para o alcance

dos fins desejados – não pode ser tomada como a pressuposição de uma dicotomia

entre útil e honesto. Nesse sentido, a famosa frase atribuída a Maquiavel – “os fins

justificam os meios” –, se não foge completamente ao espírito de O Príncipe,

precisa ser reconsiderada: nem todo meio é justificável em si; basta que se pense

no caso de Agátocles, eficiente na manutenção do seu stato mas inglório em sua

fama, por se valer excessivamente da força e da brutalidade. É preciso alcançar

um certo equilíbrio para que um meio contrário à compreensão usual de virtude

não arruíne a possibilidade de realização de um fim honesto. Por essa razão, o

príncipe novo nunca deve perder de vista o honesto, embora este dificilmente seja

plenamente realizável em tempos de corrupção; ainda assim, ele pode atuar como

ideal regulatório a partir do qual os meios e fins primeiros (resultados imediatos

que, em longo prazo, devem ser compreendidos como meios de fins últimos)

serão balizados. Como afirma Isaiah Berlin, “os fins últimos nesse sentido, sejam

ou não aqueles da tradição judaico-cristã, são o que geralmente se pretende dizer

por valores morais”.259

Próprio da análise efetiva, ou efeitual, é a exploração dos diversos lados de

uma questão, com vistas à definição do útil em cada situação específica. Na

máxima 21 dos Ricordi, Guicciardini afirma:

Eu disse e escrevi outras vezes que os Medici perderam o stato em 1527 por tê-lo

governado com liberdade em muitas coisas, e que duvidava que o povo perdesse a

liberdade se a tivessem praticado com mais força em muitas outras. A razão destas

duas conclusões é que o stato dos Medici, que era detestável para a cidade como

um todo, querendo manter-se, devia ter formado uma base de amigos partidários,

isto é, de homens que por um lado tirassem muitas vantagens do stato, por outro se

considerassem perdidos a ponto de não poderem continuar em Florença se os

259 BERLIN, Isaiah. “A originalidade de Maquiavel”, p.314.

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Medici fossem expulsos dela [...]. Totalmente ao contrário deve proceder um

governo popular, porque sendo comumente amado em Florença, e não sendo

também uma máquina regida por certas finalidades encaminhadas por um ou por

poucos, mas trabalhando todos os dias para a multidão e ignorando os que querem

modificar o seu procedimento, precisa, querendo manter-se, conservar-se grato à

toda a população [...] (grifos meus).260

Aqui, Guicciardini considera o ponto de vista dos Medici segundo o

princípio do que lhes teria sido benéfico. Ao mesmo tempo, ele não perde de vista

o honesto, ao dizer que o governo da família era “detestável para a cidade como

um todo”. Finalmente, ele analisa o modo correto de proceder num governo

popular – agradar à multidão.

Maquiavel, diante de questão similar – como um príncipe civil que ascendeu

“pelo apoio dos seus concidadãos” deve proceder261 –, afirma que “não se pode

satisfazer honestamente aos grandes sem injúrias aos outros, mas ao povo sim,

porque seus fins são mais honestos que os dos grandes” (grifo meu).262 Ainda

assim, ele reflete sobre a melhor maneira de manter o controle sobre um

principado civil apoiado mais nos grandes que no povo: “mas quem se tornar

príncipe pelo favor dos grandes e contra o povo deverá, antes de qualquer outra

coisa, procurar conquistá-lo, o que também será fácil, se lhe der proteção”.263

Nesse sentido, pode-se dizer que a análise efetiva sempre tem em vista o

princípio da utilidade: ou o que é útil num governo stretto – que mesmo se

opondo muitas vezes ao honesto não deve perdê-lo de vista – ou o que é útil num

governo popular, quando então útil e honesto se complementam. Diante deste

quadro, a discussão sobre a possibilidade de retidão dos meios e fins primeiros e o

grau de adesão destes ao fim último revela-se bastante complexa. Torna-se

forçoso o estabelecimento de gradações e hierarquizações entre valores como o

honesto, o útil, o seguro, a conveniência, etc., que torne possível a ordenação das

situações específicas segundo critérios regulatórios gerais. O recurso ao De

Inventione pode trazer alguma luz à discussão de tais critérios. Diz Cícero:

260 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 21, p.61. 261 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, IX, p.43. 262 Idem. Ibid., p.44. 263 Idem. Ibid., p.45.

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o honesto e o útil são as características das coisas que devemos buscar, e o

desonesto e o inútil as que devemos evitar. A estas duas categorias há que se

acrescentar outras duas sumamente importantes: a necessidade e a affectio. A

primeira está associada à força, a segunda às pessoas e às coisas.264

Quando aborda as necessidades, Cícero trata de hierarquizá-las:

a necessidade mais importante é a da honestidade; segue a esta a necessidade

relativa à segurança; a terceira, e menos importante, é a conveniência, que nunca

poderá enfrentar as anteriores.265

Embora o honesto seja, em si mesmo, mais importante e louvável que o

seguro, não há uma rigidez na hierarquização proposta, visto que toda necessidade

implica, em maior ou menor grau, alguma adaptabilidade às circunstâncias

particulares.266 Ademais, Cícero sustenta que “não podemos consegui-la

[honestidade] se sacrificarmos a segurança” (grifos meus)267; logo, se a

segurança estiver ameaçada – no caso de uma República como a florentina nos

primeiros decênios do século XVI a principal ameaça era a perda de liberdade e

autonomia –, o honesto deixa de constituir a necessidade premente, embora não

cesse de conformar um horizonte regulatório. É o caso, por exemplo, da

“crueldade bem empregada”, a que Maquiavel se refere no capítulo VIII de O

Príncipe. Diz ele que “são bem empregadas as crueldades (se é legítimo falar bem

do mal) que se fazem de uma só vez pela necessidade de garantir-se e depois não

se insiste mais em fazer, mas rendem o máximo possível de utilidade para os

súditos” (grifos meus).268 Aqui, dois pontos chamam a atenção: em primeiro lugar,

a afirmação de que bem e mal não se confundem, e que uma crueldade só pode ser

um bem “relativo”, desde que pensada em função de um fim honesto – no caso, a

utilidade para os súditos, e não para o governante. Do mesmo modo deve ser

interpretada a famosa passagem do Dialogo del Reggimento di Firenze em que

264 CICERO, Maro Tulio. De Inventione, II, 158. 265 Idem. Ibid., II, 173. 266 Sobre esta questão, afirma Maurizio Viroli: “This ordering can, however, be altered and, if security is really at stake, the orator can put security before honour, particularly if honour, momentarily lost, can later be recovered by courage and diligence”. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.88. 267 CICERO, Marco Tulio. De Inventione, II, 174. 268 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VIII, p.41.

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Bernardo del Nero fala das “razões e usos dos estados”, associadas à preservação

de um domínio pela força.269 “Porém, quando falei em matar ou manter os pisanos

prisioneiros, não falei porventura como cristão, mas falei segundo as razões e

práticas dos estados [la ragioni e uso degli stati]”.270 O que está em jogo, nesta

passagem, é a segurança dos florentinos, e a necessidade de fortalecer os próprios

domínios – tratar-se-ia, neste caso, de uma “crueldade bem empregada”, para falar

como o secretário.

Algumas vezes, pode ocorrer de as circunstâncias particulares incidirem em

mudanças tão notáveis e inesperadas que a hierarquização das necessidades deixa,

momentaneamente, de ter validade. Tais mudanças dizem respeito às

contingências da realidade, e são tratadas por Cícero como um princípio de

indeterminação associado às pessoas e às coisas: “a affectio é uma mudança

repentina, espiritual ou física, devida a alguma causa, como a alegria, o desejo, o

temor, a pena, a enfermidade, a debilidade, e outras do mesmo gênero”.271 A

conjunção entre affectio e necessidade instaura um rol de condições tanto mais

indeterminantes quanto atreladas aos movimentos fortuitos da realidade –

associados por Maquiavel e Guicciardini à Fortuna. “Existem certas coisas que

devem ser consideradas de acordo com as circunstâncias e os motivos”, diz

Cícero, “e não segundo sua própria natureza”.272 Assim, embora um argumento

baseado no honesto seja sempre extremamente persuasivo, as circunstâncias

particulares, decorrentes muitas vezes de uma affectio imprevisível (afetação

circunstancial) ou de uma necessidade premente, tornam peremptória a

reconsideração da hierarquia das necessidades, especialmente no que diz respeito

à segurança do stato: é o caso da liberdade interna e da autonomia em assuntos

externos. Diante de circunstâncias adversas, o critério de orientação das ações

humanas deixa de ser o melhor em geral, deslocando-se para o que é possível

269 Cf. STOLLEI, M. “L’idée de la raisón d’etat de Friedrich Meinecke et la recherche actuelle”. In: ZARKA, Y., Philosophie politique et raison d’etát, p.23, sustenta que “l’occurence de l’expression chez Guicciardini (vers 1523) n’est pas une curiosite fortuite que l’on pourrait bégliger”. 270 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.231. “Però quando io ho detto di ammazzare o tenere prigioneri e’ pisani, non ho forse parlato cristianamente, ma ho parlato secondo la ragione e uso degli stati”. 271 CÍCERO, Marco Tulio. De Inventione, I, 36. 272 Idem. Ibid., II, 176.

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obter – conforme análise de Cícero no De Inventione, o possível não é fácil, exige

fadiga, esforço, tempo, além de gerar inconvenientes e dificuldades.273

“Vamos discutir”, solicita Bernanrdo del Nero aos seus interlocutores do

Dialogo del Reggimento di Firenze, “se a mudança do stato [dos Medici para a

República, em 1494] foi útil ou não à cidade, e em seguida [...] considerar os

efeitos daquele governo que caiu e suas condições, e por outro lado considerar

quais serão os efeitos e condições deste que introduzis, ou, para dizer melhor,

pensastes haver introduzido” (grifos meus).274 Com este chamado ao exame dos

efeitos e condições dos governos, del Nero opera um deslocamento de foco

analítico: enquanto seus interlocutores esquadrinhavam definições gerais de

República e bom governo, alicerçadas no ajuste da ação às virtudes, à honra e à

“glória verdadeira”275, o ancião defende uma análise cuidadosa e comparativa das

condições e circunstâncias particulares das duas formas de governo em jogo, a que

caiu e a que então de instituía, segundo o princípio da qualidade dos tempos.

Pode-se dizer que a rigidez de uma análise conformada a valores comunais

(aqueles das grandes famílias florentinas) e preceitos formais bem estabelecidos

(segundo os fundamentos ético-retóricos das autoridades antigas e humanistas) dá

lugar a uma definição mais maleável das formas de governo, sem regras fixas

determinadas de antemão: conquanto não sejam abandonados, o arranjo de bons e

maus ordenamentos políticos em formas positivas ou deterioradas, assim como as

“listas de coisas a seguir ou a não seguir”, para empregar expressão de Mario

Santoro, revelam-se insuficientes para a compreensão dos confusos movimentos

da realidade florentina e da vida política italiana. Como percebe Newton Bignotto,

“se Guicciardini não está disposto a simplesmente deixar de lado o que aprendeu

com a tradição, como prova o desenrolar do diálogo, também não aceita se guiar

273 Idem. Ibid., II, 169. 274 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.34. “Noi vogliamo disputare se la mutazione dello stato è stata utile alla città o no; e secondo questo fonamento che io ho fatto, a volere bene risolversene, bisogna considerare gli effetti di quello governo che è mutato e le condizione sue, e da altro canto considerare quali saranno gli effetti e le condizioni di questo che voi avete introdotto”. 275 Conferir, nesse sentido, a fala de Soderini no Dialogo: “la virtù è onorata [...], si debbe cercare ogni altro vivere; perché nessuno governo può essere vituperoso e più pernizioso che quello ha cerca di spegnere la virtù e impedisce a chi vi vive drenti, venire, io non dico a grandezza, ma a grado alcuno di gloria, mediante la nobilità dello igegno e la generosità dello animo”. Idem. Ibid., p.63.

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unicamente pelas fórmulas herdadas”.276 Mais importante, segundo o personagem

Bernardo del Nero, é buscar uma forma de organizar o reggimento citadino que

incida no fortalecimento interno das magistraturas; na preservação e aquisição de

domínios externos; na distribuição equânime de cargos e honras públicas; na

agilidade administrativa e presteza decisória; e finalmente no posicionamento

adequado de Florença diante das forças italianas e européias, num jogo contínuo

de interpretação e antecipação de pensamentos e ações de governantes e

embaixadores de outras Repúblicas, principados e monarquias, condição decisiva

para o planejamento bem-sucedido das próprias intervenções, segundo o critério

da prudência. Esta, por sua vez, não é elencada pelo ancião entre as assim

chamadas “virtudes cardeais”, como faziam os humanistas do Quattrocento;

tampouco a virtude é entendida como unidade composta de quatro elementos bem

definidos (justiça, prudência, temperança e coragem). Assim, embora a prudência

não deixe de ser vista como uma virtude, ela já não está necessariamente atrelada

a outras virtudes pré-fixadas, as quais podem ou não ser úteis na condução dos

assuntos públicos. Nesse sentido, pode-se dizer que o conceito de prudência em

Maquiavel e Guicciardini aproxima-se em alguma medida da concepção

aristotélica da phronesis, sem que, contudo, se possa tomá-los como sinônimos.

De acordo com Pierre Aubenque, “a phronesis” em Aristóteles “designa, de

fato, a virtude da parte calculativa ou opinativa da alma”.277 Cabe a ela, com

correção de critérios, separar o bom do mau, definir o que é acertado em

determinada circunstância particular, orientar a deliberação, reconhecer a virtude e

fazer agir – a virtude, em Aristóteles, consiste em justo meio determinado pela

reta regra da deliberação prudente.278 Sendo assim, a phronesis, virtude intelectual,

embora não se confunda com as virtudes morais, está intimamente associada a

elas. Não há, portanto, uma tensão entre meios e fins; embora Aristóteles nunca

almeje “deduzir o particular do universal”279, ele atesta a validade dos princípios

normativos acerca das condutas humanas gerais a partir de critérios definidos pelo

próprio phronimos, o homem prudente.280 Nesse sentido, as idéias de justo meio,

moderação e eqüidade conformam critérios capazes de coordenar a correção dos

276 BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e Realismo, p.139. 277 AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.23. 278 CF. Idem. Ibid., p.61. “enquanto a virtude moral é uma disposição (prática) que concerne à escolha, a prudência é uma disposição prática que concerne à regra da escolha”. 279 Idem. Ibid., p.75.

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meios e a adequação dos fins segundo a reta regra. Conquanto a “norma” seja

encontrada entre os valores caros aos homens, e não em Idéias transcendentes, e

muito embora ela dependa da deliberação de homens prudentes que são eles

próprios os critérios de si mesmos, há uma “universalidade de valor” a que

Aristóteles não renuncia.281 Tampouco o fazem Maquiavel e Guicciardini; há,

porém, uma problematização decisiva, que diz respeito não à definição dos

valores últimos, mas às possibilidades de realização destes.

Para o secretário, a antiqua virtus, o modelo republicano romano e seus

valores, constituem tal universalidade de valor.282 Para Guicciardini, esta se define

em referência ao período de predomínio das grandes famílias florentinas e dos

valores ciceronianos do bom governo – o modelo otimatti que teve em Maso

degli’Albizzi seu ponto máximo. Porém, a calamità instaurada a partir de 1494,

com a alegada corrupção dos costumes e a imprudência dos governantes, conferiu

a tais valores certa intangibilidade. A problematização da universalidade dos

valores é um elemento capital em Maquiavel e Guicciardini, por levar à já aludida

tensão entre meios, fins primeiros e fins últimos.

A suposição de uma certa intangibilidade dos valores últimos pode ser

articulada à redefinição do conceito de prudência inicialmente esboçada em

Giovanni Pontano e levada a cabo por Maquiavel e Guicciardini. Como afirma

Reinhart Koselleck, todo conceito “reúne em si a diversidade da experiência

histórica assim como a soma das características objetivas teóricas e práticas em

uma única circunstância, a qual só pode ser dada como tal e realmente

experimentada por meio desse mesmo conceito”.283

A polissemia do conceito de prudência não pode ser tomada como fruto

exclusivo de intenções hipertrofiadas pensadas numa evolução cronológica; trata-

se do produto de uma “tensão dinâmica”284, para falar como o historiador alemão,

entre a realidade e o conceito, entre a forma de compreender a dinâmica das coisas

do mundo e as ferramentas cognitivas de caráter ético-retórico disponíveis. Daí

minha discordância em relação ao argumento de Victoria Kahn de que

“Maquiavel altera o significado de prudência, da razão prática dos humanistas,

280 Cf. Idem. Ibid., p.77. 281 Cf. Idem. Ibid., pp. 83-84. 282 Cf. GARVER, Eugene. “After Virtù”, p.75. 283 KOSELLECK, Reinhart. “História dos conceitos e história social”. In: Futuro Passado, p.109.

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alicerçada por considerações morais, para a faculdade de julgamento calculativa,

potencialmente amoral, apropriada ao homem de virtù”.285 Trata-se de uma

concepção calcada na premissa de uma subjetividade forte que atua como

desenraizadora consciente da tradição humanista. Penso que a redefinição da

prudência em Maquiavel e também em Guicciardini obedeça a movimentos mais

sutis, isto porque, para ambos, a prudência não deixa em absoluto de ser

concebida como recta ratio agibilium; é precisamente a noção de “razão reta” que

se transforma, distanciando-se da idéia de que modelos universais possam ser

intuídos e realizados em ações particulares, e aproximando-se de um

entendimento mais pragmático calcado na valorização dos efeitos das ações dos

agentes envolvidos e na antevisão das possibilidades em jogo no tabuleiro da

política. A ênfase analítica é em grande medida direcionada aos meios e fins

primeiros, os quais não deixam de remeter, ainda que muitas vezes de forma

opaca, a fins últimos tomados como honestos. De modo que não se pode afirmar

que a idéia aristotélica de desejo correto seja questionada por Maquiavel e

Guicciardini; porém, o caráter normativo deste desejo correto se dissolve de tal

forma que o princípio de correção passa a ser, ele próprio, contingente e passível

de deliberação.

O secretário possivelmente concordaria com Aristóteles sobre o princípio de

que a virtude não é passível de deliberação, sendo desejável por si mesma, mas

talvez acrescentasse a esta máxima uma série de elementos condicionantes,

capazes de “esvaziar” o “conteúdo” moral da idéia de virtude e fazer dela um

“recipiente” a ser preenchido de acordo com as condições dos tempos. Como

percebe Isaiah Berlin, Maquiavel não questiona que a virtude seja boa em si, e que

tudo aquilo que a tradição chamou de virtudes seja de fato louvável – em Between

Friends, John Najemy lista uma série de virtudes e vícios presumidos a partir da

leitura de O Príncipe, os quais nunca se encontram num único homem, e que,

mesmo que pudessem se fixar, não representariam a plena garantia do alcance de

bons efeitos.286 O questionamento fundamental diz respeito à aplicabilidade

284 Idem. Ibid., p. 117. “A tensão dinâmica entre realidade e conceito aparece, portanto, tanto no nível da língua-fonte como no da linguagem científica”. 285 KAHN, Victoria. Machiavellian Rhetoric, p. 21. “At the same time, he alters the meaning of prudence from the humanists’ practical reason, informed by moral considerations to the calculating, potentially amoral faculty of judgment appropriate to the man of virtù”. 286 Virtudes presumidas: liberale, donatore, pietoso, fedele, feroce, animoso, umano, casto, intero, facile, grave, religioso. Vícios presumidos: misero, rapace, crudele, fedifrago (traiçoeiro),

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universal de tais virtudes, e à desconsiderações de práticas que, em circunstâncias

determinadas, e tendo em vista fins últimos úteis e honrosos, poderiam ser

consideradas virtuosas, não em absoluto, mas segundo condições específicas – a

isto Quentin Skinner denominou “revolução maquiavélica”, ou “qualidade da

flexibilidade moral que se requer de um príncipe”.287

Para Aristóteles, agir de forma magnânima, ou com liberalidade, ou com

coragem, implica necessariamente agir de forma prudente, uma vez que a

phronesis se constitui como disposição intelectual responsável pelo

reconhecimento da virtude e pela ação conforme o justo meio – há o

reconhecimento do universal no particular, seguido pela escolha da ação correta e

pela consumação desta.288 A virtude, nesse sentido, é sempre determinável; o

prudente é aquele que sabe reconhecê-la no particular e agir em conformidade a

ela. Em Maquiavel, o reconhecimento da virtude é mais complexo que na filosofia

prática aristotélica: é preciso, antes de tudo, perceber o que é a virtude numa

circunstância tal, dar moldes a ela para, então, pensar na decisão prudente a se

tomar, visando à produção de bons efeitos, em acordo com um bem definido em

função das situações particulares em jogo. Um exemplo desta prática está no

tratamento conferido à liberalidade em O Príncipe:

Logo, não podendo um príncipe usar da virtù da liberalidade sem prejuízo próprio e

sem danos, de forma que seja divulgada, deverá, se for prudente, não se preocupar

effeminato, pusillanime, superbo, lascivo, astuto, duro, leggieri, incrédulo. Sobre esta questão, afirma Najemy: “Machiavelli’s approach depends on the difference between the way the terms in his list are normally or generally used and the way in which he, having carefully considered them, can invert – not their meanings in conventional usage, for virtues remain virtues, and vices are still vices – but their relationship to the problem of how princes ought to act in order to preserve their power”. NAJEMY, John. Between Friends, p.192. 287 Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.65. “Ele endossa a idéia convencional de que virtù é o nome dado àquele conjunto de qualidades que permitem a um príncipe aliar-se com a Fortuna e conseguir honra, glória e fama. Mas afasta o sentido do termo de toda e qualquer conexão necessária com as virtudes cardeais e principescas. Argumenta, ao contrário, que a característica que define um príncipe verdadeiramente virtuoso consistirá em uma disposição de fazer tudo aquilo que for ditado pela necessidade – independente do fato de ser a ação eventualmente iníqua ou virtuosa – para alcançar seus mais altos objetivos”. 288 Sobre esta questão, afirma Pierre Aubenque: “Enfim, é preciso notar que as duas fórmulas se encontram no livro VI, onde a phronêsis é descrita tanto como capacidade de aplicar o universal ao particular, como a capacidade de escolha judiciosa dos meios. [...] Não há, portanto, nenhuma ‘contradição’ entre as duas descrições da ação dadas por Aristóteles. Pois, uma vez reconhecido o particular, se o universal a ele se aplica necessariamente, é preciso inicialmente reconhecer o particular: o que se deduz silogisticamente é a propriedade do particular de ser desejável, mas não a existência do particular. Não é difícil saber que é preciso ser corajoso, nem decidir que o que foi reconhecido como corajoso deve ser cumprido”. AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p.227.

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com a fama de miserável, porque com o tempo será considerado cada vez mais

liberal, ao verem que, graças à sua parcimônia, suas receitas lhe bastam.289

Se a liberalidade é inquestionavelmente uma virtude em sentido amplo, sua

aplicação é passível de deliberação: dependendo da circunstância, ela pode ou não

ser ou não uma virtude para a situação específica.

Guicciardini também percebe a virtude como algo honrado e digno em si;

porém, não denomina virtude àquilo que não é considerado como tal pela tradição

ético-retórica de caráter ciceroniano. Ao tomar como fins últimos a segurança do

estado, a liberdade, a distribuição equânime das magistraturas, ao se ater ao útil,

ele pensa estar contribuindo para a glória da res publica, logo, contribuindo para a

consecução do que é honesto. Ademais, como percebe John Pocock, a categoria

de virtù não possui centralidade em Guicciardini.290

Se a prudência não deixa de ser concebida por Maquiavel e Guicciardini

como uma virtude, as razões para tanto divergem do tratamento conferido à

questão pelos humanistas do Quattrocento. Diferentemente das reflexões

aristotélica e ciceroniana, Maquiavel e Guicciardini não subordinam a prudência à

justiça – daí se poder falar, como o faz Guicciardini, em “tirano prudente”.291 Não

que a justiça não seja desejável em si mesma. Agir de forma justa, porém, nem

sempre resulta na produção de bons efeitos segundo os critérios do útil, do seguro

e do necessário; atuar com justiça quando a res publica está em perigo pode até

mesmo implicar a ruína do stato. Daí a necessidade de estar sempre atento à verità

effetualle della cosa, como diz Maquiavel – o que difere do “agir conforme a

verdade das coisas” de Tomás de Aquino, uma verdade inflexível, evidente e

natural, porque associada à sinderesis, enquanto a verità effetualle maquiaveliana

é provisória, circunscrita e retórica. Como nota Eugene Garver, “agir de acordo

com princípios garante a retidão das ações numa ética dos princípios; alcançar

resultados bem sucedidos justifica a retidão numa ética das conseqüências”.292

Seria tentador enxergar neste movimento uma instrumentalização da

prudência, associada a uma autonomização da política em relação à ética, como

289 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XVI, pp.75-6. 290 Cf. POCOCK, John. Op. cit., p.238. 291 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máximas 98 e 99.

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defende Athanasios Moulakis: “pode-se dizer que o desenvolvimento de um ramo

autônomo da política [...] visa a prevenir a contaminação da lógica da política por

ilusórias mistificações ideológicas”.293 O que estaria em jogo, segundo Moulakis,

seria a inauguração de um “constitucionalismo realista”, conjunto de idéias

inovadoras supostamente responsáveis pela fundação da modernidade política.294

Embora Maquiavel flexibilize a noção de virtude, segundo a sugestão de

Quentin Skinner analisada acima, esta permanece sendo louvável e o vício

condenável. Deste modo, entra em discussão o que é virtude e o que é vício em

relação a um fim primeiro, considerado útil e necessário à segurança do stato, e

em que medida este fim primeiro se posiciona diante de um fim último

necessariamente honesto. Dito isto, não se pode falar, como o fazem Moulakis e

tantos outros, em uma autonomia da política em relação à retórica, assim como

não há a autonomia da política diante da ética295 – como se a política, separada dos

outros campos, fosse “realista” porque atrelada à “verdade das coisas”, enquanto

ética e retórica seriam fundamentalmente “ideológicas”.296 A prudência depende,

como argumentarei adiante, de uma performance retórica para se tornar efetiva,

para que venha a alcançar bons efeitos, para que seja reconhecida como tal. Como

292 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence, p.16. “Acting according to principles guarantees the rectitude of actions in an ethics of principles; successfully attaining some result justifies the rectitude of actions in an ethics of consequences”. 293 MOULAKIS, Athanasious. Republican Realism in Renaissance Florence, p.4. “One could say that the development of an autonomous craft of politics isbefore it is transmuted into an instrumentum regni, an attempt at intellectual hygiene: it seeks to prevent the contamination of the logic of politics by specious ideological mystifications”. 294 Cf. Idem. Ibid., p.22. 295 Nas décadas de 1920 e 1930, num momento de reordenamento das forças político-militares e ascensão dos fascismos na Europa, diversos filósofos europeus se voltam para os escritos maquiavelianos, especialmente O Príncipe. Benedetto Croce (1866-1952), em seus Elementi di política (1925), defende a hipótese de que Maquiavel teria descoberto a autonomia da política em relação à ética. É também de Croce a tese que atribui ao secretário a paternidade da idéia de razão de estado – entendida como ciência independente da religião e moral cristã. Friedrich Meinecke (1862-1954), com base no argumento croceano, publica em 1924 seu famoso estudo sobre A idéia de razão de estado na idade moderna, responsável pela “canonização” do argumento da separação entre política e moral em Maquiavel. Meinecke afirma, ainda, que Maquiavel teria fundado a moderna concepção de Estado, hipótese seguida por Ernst Cassirer (1874-1945), para quem o escritor florentino foi responsável pela instauração de uma ciência política de validade geral, alicerçada numa concepção estática da história. Em sua refutação da hipótese da separação entre ética e política, Isaiah Berlin atesta a existência, em Maquiavel, de “dois mundos, o da moralidade pessoal e o da organização pública. Há dois códigos éticos, ambos supremos; não são suas regiões ‘autônomas’, uma da ‘ética’, outra da ‘política’, mas duas alternativas (para ele) exaustivas entre dois sistemas conflitantes de valor”. Berlin defende que, para o secretário, “nem todos os valores são compatíveis uns com os outros”, o que faria de Maquiavel, “a despeito de si mesmo”, “um dos criadores do pluralismo”. Cf. BERLIN, Isaiah. Op. cit., pp. 327-8; 347-8. 296 Cf. GARVER, Eugene. “After Virtì”, p.75. “The rhetorical virtue of appropriateness and decorum and the ethical virtue of doing what is right in the right circumstances are assimilated”.

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percebe Eugene Garver, “nada assegura que uma ação prudencial seja correta; a

correção e o sucesso de uma ação prudencial estão sempre abertos ao debate e à

refutação pelo fracasso prático”.297 Precisamente por isso a prudência não se

configura apenas como um instrumento da razão calculativa; por estar associada à

qualidade elementar de toda deliberação, condição de possibilidade para a

produção de consensos argumentativos numa República e de bons conselhos no

âmbito de um principado ou regime stretto, ela é fundamentalmente retórica,

estando sujeita aos preceitos convencionais de reconhecimento que lhe atribuem

validade prática.

O prudente em Maquiavel e Guicciardini, diferentemente do prudente

delineado pela tradição ciceroniana e humanista, atém-se primordialmente às

conjunturas circunscritas a um conjunto particular de possibilidades, conforme o

parâmetro do que é possível realizar. “Um homem prudente”, afirma Maquiavel

em O Príncipe,

deve sempre seguir os caminhos abertos pelos grandes homens e espelhar-se nos

que foram excelentes. Mesmo não alcançando sua virtù, deve pelo menos mostrar

algum indício dela e fazer como os arqueiros prudentes que, julgando muito

distantes os alvos que pretendem alcançar e conhecendo bem o grau de exatidão do

seu arco, orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado, não para

atingir tal altura com flecha, mas para poder, por meio de mira tão elevada, chegar

ao objetivo (grifos meus).298

O princípio do possível, tomado pelo prudente, implica a escolha dos mais

elevados modelos para emulação, o que incide, em decorrência, no necessário

reconhecimento das distâncias e proporções exatas – o cálculo certeiro de quem

mira para o alto para acertar um ponto mediano. Na mesma linha, afirma o

secretário em outra passagem de O Príncipe:

297 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence, p.16. “[…] nothing assures that a prudential action will be correct; the rightness and the success of a prudential action are always open to debate and to refutation by practical failure”. 298 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VI, p.23.

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Sei que vão dizer que seria muito louvável que um príncipe, dentre todas as

qualidades acima, possuísse as consideradas boas. Não sendo isto porém

inteiramente possível, devido às próprias condições humanas que não o permitem,

necessita ser suficientemente prudente para evitar a infâmia daqueles vícios que lhe

tirariam o estado e guardar-se, na medida do possível, daqueles que lhe fariam

perdê-lo.299

Em outro capítulo, diz o secretário: “A prudência consiste em saber reconhecer a

natureza dos inconvenientes e tomar os menos maus como satisfatórios”.300

A mesma ênfase na observação atenta é prescrita por Bernando del Nero, no

Dialogo del Reggimento di Firenze:

a se querer ajuizar entre governo e governo, não devemos considerar tanto de que

espécie são, mas seus efeitos, e dizer que é o melhor governo ou menos daninho

[cattivo] aquele que produz melhores efeitos, ou menos daninhos.301

O foco, nestas passagens, está tanto na agudeza no olhar – a capacidade de

distinguir o fulcro de uma questão e analisá-lo segundo os critérios da efetividade

– quanto no cálculo das possibilidades conjunturais. Vale citar uma vez mais a

passagem do Dialogo del Reggimento di Firenze em que Guicciardini, pela voz de

Bernando del Nero, diz: “não devemos procurar um governo imaginário [uno

governo immaginato], que seja mais fácil de aparecer nos livros que na prática,

talvez como a república de Platão. Ao invés, deve-se considerar a natureza, a

qualidade, as condições, a inclinação, e para reduzir todas essas coisas em uma

palavra, os humores da cidade e dos cidadãos”.302 Não se busca na realidade o que

já se sabe, ou não se projeta nela o que se espera saber; ao contrário: parte-se da

diversidade, do que é pouco visível, do que se esconde em cores e nomes diversos,

para, com engenho, agudeza e celeridade, destrinchar os movimentos sutis das

“coisas do mundo”, através da separação entre diversidades substanciais, aquelas

que de alguma forma remetem a certos padrões estáveis e recorrentes – como

299 Idem. Ibid., XV, p.74. 300 Idem. Ibid., XXI, p.108. 301 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.33. “dico che a volere fare giudicio tra governo e governo, non debbiamo considerare tanto di che speie siano, quanto gli effetti loro, e dire quello essere migliore governo o manco cattivo, che fa migliori e manco cattivi effetti”. 302 Idem. Ibid., p.60.

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ciclos de formas de governo, princípios associados à natureza humana, máximas e

sentenças presentes em diversos povos e tempos, tudo enfim que transcende as

“variações de nomes e cores” responsáveis pelos enganos recorrentes de analistas

desatentos, sejam eles príncipes, conselheiros ou homens de letras –, e os

acidentes, cuja lógica, se é que existe, é inextricável, remetendo, portanto, aos

caprichos da Fortuna, ao acaso e aos desígnios da Providência.

Ser prudente, para Guicciardini, é olhar para as “coisas do mundo” de forma

penetrante, com occhi che penetri drento303, separar o substancial do acidental,

mergulhar nas motivações dos homens procurando antever com alguma margem

de segurança – nunca, porém, com certeza absoluta –, as motivações, ações e

condutas dos agentes políticos. Basta lembrar a passagem do Dialogo del

Reggimento di Firenze, anteriormente mencionada, em que Bernardo del Nero

afirma que “tudo aquilo que foi no passado, parte é no presente, parte será em

outros tempos e algum dia retornará a ser, mas sobre aspectos exteriores diferentes

e várias cores”, de tal modo que os possuidores de “vista aguda”, atentos às

“diversidades substanciais” – em suma, os prudentes –, mostram-se habilitados a,

com base no “cálculo e medida das coisas passadas”, “calcular e medir o futuro”

(grifos meus).304 Como diz Maquiavel em passagem de O Príncipe também

mencionada anteriormente: “Quando se conhecem com antecedência (o que só

ocorre quando se é prudente) os males que surgem, eles se curam facilmente”.305

Ser prudente é, também, duvidar a todo o momento dos próprios olhos e dos

sentidos imediatos306, posto que o mundo está sempre em transformação, e o que

parecia correto ontem poderá, amanhã, deixar de sê-lo: “nunca tenham como certa

uma coisa futura”, diz Guicciardini,

ainda que assim pareça, de modo que, se puderem, não alterando a conduta habitual,

reservem algo para o caso de acontecer o contrário, pois as coisas muitas vezes têm

êxito fora da opinião comum e a nossa experiência mostra ser prudente agir

assim.307

303 GUICCIARDINI, Francesco. Oratio Consolatoria, p. 115. 304 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36. 305 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, III, p.12. 306 Sobre a relação entre juízo e sentidos, conferir: ADVERSE, Helton. Aparência, retórica e juízo na filosofia política de Maquiavel. Belo Horizonte, Tese de Doutorado, UFMG. 307 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 81, pp.86-87.

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Diante destes dados, pode-se dizer que a prudência em Maquiavel e

Guicciardini possui necessariamente um caráter de evento: a validade de seus

juízos nunca é universal, mas provisória, mesmo quando diz respeito aos padrões

de recorrência ou tendências de estabilidade. Nesse sentido, as lições da prudência

legadas às gerações futuras por meio de histórias ou tratados só se revelarão úteis

se puderem ser atualizadas performativamente, mostrando-se aptas a produzir,

diante de um público leitor ou ouvinte, bons efeitos similares, mas não

necessariamente iguais, àqueles produzidos em seu contexto original de

enunciação – entenda-se por bom efeito um resultado de acordo com o esperado,

produto de uma deliberação sustentada por argumentos sólidos, numa assembléia

pública ou no escrutínio do analista consigo mesmo.308

Por esse viés, a análise da política, para que seja efetiva, effetualle, não pode

visar exclusivamente, mesmo preferencialmente, à formulação de sentenças

genéricas de validade indistinta. Não que as sentenças deixem de se fazer

presentes: especialmente nos Discorsi de Maquiavel e nos Ricordi de Guicciardini

elas encontram um campo privilegiado, tendo lugar também nas histórias. Tais

sentenças, porém, possuem pouca ou nenhuma validade se descoladas de situações

concretas. Neste caso, a ênfase fundamental se volta para a capacidade de enxergar

na dinâmica da realidade as recorrências e os padrões gerais de conduta, com o

intuito de fornecer elementos para o ajuizamento prudente. Além disso, as

sentenças possuem um papel importantíssimo na construção retórica dos discursos:

“convém interpor as sentenças esparsamente para que nos vejam como advogados

de uma causa, não como preceptores do viver”309, defende o autor desconhecido da

Retórica a Herênio. As sentenças podem ser de dois tipos: simples, no caso de

exposições breves que não necessitam de justificativas, ou confirmadas pela

apresentação de uma razão, mais elaboradas. “Quando dispostas assim, contribuem

muito para o ornamento e necessariamente o ouvinte dará seu assentimento

tácito”.310 Elas fornecem, assim, considerações alicerçadas na experiência que,

todavia, não constituem princípios normativos de intervenção tática, tampouco

lições morais generalizantes. Seu emprego visa fundamentalmente à produção de

308 Cf. PERELMN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de Argumentação. A Nova Retórica, pp.45-50. “O acordo consigo mesmo é apenas um caso particular de acordo com os outros”, p.46. 309 AD. Retórica a Herênio, IV, 24, p.235. 310 Idem. Ibid., IV, 25, p.237.

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efeitos persuasivos, e a análise da mobilização das sentenças não pode

desconsiderar a situação particular a que engendrou.

“Sendo meu intento escrever algo útil para quem quer me ler”, diz

Maquiavel em famosíssima passagem de O Príncipe, “parece-me mais

conveniente procurar a verdade efetiva (ou efeitual) da coisa [verità effetualle

della cosa] do que uma imaginação sobre ela”.311 A verità effetualle remete à

noção de bom efeito.312 Como tal, ela revela um duplo caráter: diz respeito à ênfase

analítica nos resultados produzidos por certas ações (em detrimento de sua

adequação a preceitos tácitos, pretensamente universais) e também à performance

retórica consumada pelo discurso diante de uma platéia específica de leitores ou

ouvintes deliberando, publica ou intimamente, sobre casos concretos. De tal modo,

a veritá effetualle deve ser compreendida como aquela adequada ao

convencimento de um auditório de homens prudentes, por meio de argumentação

consistente, analogias bem fundamentadas, imagens copiosas e discurso

conformado ao decoro letrado do gênero retórico, e também como aquela capaz de

mover os homens à ação ou de proporcionar deleite, segundo o momento e a

circunstância.

A ênfase atribuída por Maquiavel e Guicciardini à questão dos efeitos está

diretamente ligada ao tipo de debate que teve lugar, entre 1494 (expulsão dos

Medici) e 1512 (recondução da família pelos espanhóis), nas practiche da

República florentina. As pratiche (no singular, pratica) eram reuniões dos

cidadãos mais influentes, com o intuito de aconselhar os órgãos consultivos da

República, como a Signoria.313 De acordo com Felix Gilbert,

embora as pratiche não fossem, durante o período republicano, uma instituição

constitucionalmente estabelecida, elas serviam ao importante propósito de fornecer

aos comitês decisórios um meio de testar as reações dos cidadãos a algumas de

suas propostas, e de permitir aos cidadãos arejar suas opiniões.314

311 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XV, p.73. 312 Cf. VIROLI, Maurizio. Op. cit., p.82. 313 Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p.29. 314 Idem. Ibid., p.65. “Although the pratiche were not, during the republican period, a constitutionally established institution, they served the important purpose of giving the policy-making boards a means of testing the citizens’ reactions to some of their proposals and of allowing the citizens to air their opinions”.

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Os registros referentes às pratiche foram conservados, e constituem

documentos preciosos para o exame das discussões políticas associadas à esfera

administrativa da República, ou aos debates das magistraturas e chancelarias. A

“análise efeitual” da realidade, típica de Maquiavel e Guicciardini, deve muito à

retórica das pratiche. Há, notadamente, um foco na utilidade e na segurança da

República, como é de se esperar em discursos de retórica deliberativa. As falas

dos oradores, registradas em seus aspectos centrais por redatores – um dos quais

foi Maquiavel, segundo-chanceler e secretário dos Dez –, também enfatizam

recorrentemente a necessidade de se ater ao honesto e evitar o desonesto.315

Os participantes não se abstinham de interpretar as possíveis motivações dos

principais agentes envolvidos nas pendengas sujeitas à análise. O intuito central

era tentar se antecipar às possíveis iniciativas destes, propiciando um maior grau

de segurança nas tomadas de decisões pelos ocupantes das magistraturas

republicanas.

Na pratica de 23 de maio de 1505, Giovanbattista Ridolfi traça um retrato do

Marquês de Mântua, definindo-o como um homem dependente e servil; logo,

passível de condução e manipulação.316 Piero Guicciardini (pai de Francesco), o

orador seguinte, concorda com o juízo de Ridolfi: “circa lo homo, il medesimo

che Giovambaptista Ridolphi”.317

Na prática de 29 de Junho de 1505, Ridolfi dá novamente mostras de seu

bom juízo, ao mudar, com sua intervenção, os rumos do debate. Diante da questão

“um acordo com Siena e com Luca pode ajudar Florença a recuperar Pisa?”, os

primeiros oradores, Giovanvictorio Soderini, Matteo Nicolini e Piero Popoleschi

argumentam pela utilidade da retomada da Pisa, o que seria digno e honroso para

Florença; defendem, assim, a aliança com Luca e Siena. Fora a discordância de

Guglielmo de’ Pazi, que afirma não haver “nem honra nem utilidade” na amizade

com as referidas cidades318, os oradores subseqüentes reiteram os benefícios do

acordo. Até que, em seu discurso, Ridolfi argumenta que ninguém, até então,

315 Cf. BAUSI, Francesco. “Machiavelli nelle consulte e pratiche della Repubblica Fiorentina”. 316 Pratica, 23 de maio de 1505. Consulte e Pratiche, p.5. 317 Idem. 318 Pratica, 29 de Junho de 1505. “Sì che non ci vedendo né honore né utilità [...]. Delle gabelle che domandono di più Luchesi, cioè di levare la legge fatta per loro conto, non li parendo honorevole né con dignità o utile della città, se rimetteva alli altri”, p.22.

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havia levado em conta a mudança dos tempos e a variação das coisas analisadas.319

Seria preciso, segundo ele, obter inicialmente o consenso dos espanhóis, os quais,

bem armados, poderiam a qualquer momento desfazer todo tipo de acordo

traçado: “é necessário entender-se bem com os espanhóis, os quais são vizinhos e

poderosíssimos”.320 Ridolfi prega a proximidade com os espanhóis, e em relação a

Siena e Luca defende o benefício do tempo, ou seja, o adiamento da decisão. Os

oradores seguintes tomam seu partido, chegando-se assim a um consenso sobre a

questão.

A prática de 29 de Junho de 1505 indica exatamente o percurso da produção

de um consenso, tornado possível pela intervenção de um homem reputado sábio e

prudente, atento às sutis variações da realidade que haviam passado despercebidas

aos demais oradores. Seria necessário realizar uma análise mais profunda das

pratiche, com o intuito de buscar ligações mais efetivas entre a forma de

argumentação própria a Maquiavel e Guicciardini e as discussões travadas nas

assembléias. Porém, há nas pratiche, indubitavelmente, uma maneira de

compreender os fenômenos políticos distante do tratamento usual dos tratados

humanistas do Quattrocento, em função da ênfase na análise atenta das

transformações sutis da realidade e da antevisão dos possíveis efeitos das ações

dos agentes – sem que haja o abandono dos preceitos ético-retóricos tradicionais e

de princípios arraigados, como o “benefício do tempo” tão criticado por

Maquiavel e Guicciardini. Também a escrita funcional de legações e ofícios de

órgãos como a Chancelaria demonstra uma acentuada preocupação com as

interpretações das motivações dos agentes, a antecipação dos efeitos, as condições

dos tempos, celeridade decisória, etc.321

O tipo de argumentação efetiva ou efeitual deve-se sustentar

necessariamente a partir de exemplos variados, oriundos tanto da experiência

prática como da leitura atenta das histórias antigas e modernas; deve, também, ser

urdido com discrezione (discernimento) e ragione, o que é racional porque

319 Ibid., p.23. “[...] però li pareva fussi da havere altri respecti che non si hebbe alhora nel consigliare, sendo mutati li tempi et variate le cose da quello essere”. 320 Idem. “Però iudicava più ad proposito et più necessario intendersi bene con li Spagnioli, quali sono vicini et potentissimi, che con altri”. 321 Cf. FOURNEL, Jean-Louis. Op. cit., p.93. “L’insistence sur la celerità est ainsi une constant des scritti di governo”.

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razoável. Voltarei a este ponto adiante. Outro aspecto decisivo é o respeito ao

princípio da probabilidade.322 Sobre essa questão, diz Cícero, no De Inventione:

toda argumentação que utilize os argumentos que acabamos de mencionar deverá

ser provável ou necessária. Pois, em minha opinião, e para defini-la em poucas

palavras, a argumentação é qualquer tipo de meio concebido que demonstra que

algo é provável ou que prova que é necessário.323

A argumentação pautada no critério da necessidade pode ser atestada,

prossegue Cícero, quando não existem meios de demonstrar os fatos de maneira

distinta da que se diz. Ela é classificada em “dilema”, “enumeração” ou

“inferência simples”.324 Já a probabilidade diz respeito ao que ocorre

“habitualmente, quando faz parte da opinião comum ou quando oferece alguma

analogia com a realidade, seja verdadeira ou falsa”.325 O juízo prudente é

fundamentalmente da ordem do provável, mesmo se levar e conta os aspectos

substanciais da realidade – isto porque as diversidades substanciais, por

necessitarem de um olhar agudo capaz de distingui-las, precisam de comprovação

pelo hábito, pela opinião comum ou por analogias. A validade de tais juízos não é

atestada por comprovação necessária; sua verdade é uma verdade limitada e

circunscrita a condições específicas, uma verdade efetiva. Diz Guicciadini, em

trecho do Dialogo:

As coisas desta sorte não têm regola certa ou curso determinado; antes, possuem

variações diárias, segundo o andamento do mundo, e as decisões que se tem que

tomar tem por fundamento quase sempre a conjuntura, e de um pequeno

movimento dependem com muita freqüência as coisas da maior importância, e dos

princípios pouco notados nascem muito efeitos gravíssimos. Por isso é necessário

que o governante seja muito prudente, dedicando atenção aos mínimos accidenti, e

322 Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.20. 323 CICERO, Marco Túlio. De Inventione, I, 44. 324 Idem. “El dilema es un razonamiento en el que el contrario es refutado sea cual sea la proposición que haya admitido. Por ejemplo: ‘si es um malvado, por qué lo tratas? Si es honesto, por qué lo acusas? En la enumeración, se mencionan diferentes hipótesis de manera tal que se refutan todas excepto una cuya validez queda necesariamente demostrada. [...]. Una inferencia simples deriva de una deducción necessaria, como en este ejemplo: “si cuando decís que cometí esos actos yo estaba en ultramar, hay que concluir que no solo no hice lo que decís sio que ni siquiera pude hacerlo”.

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pese bem tudo aquilo que pode acontecer, esforçando-se em evitar de início e

excluir, na medida do possível, o poder do acaso e da Fortuna.326

A prudência é apresentada, assim, como remédio eficaz contra a Fortuna.

Não um remédio de fácil aplicação, ou infalível, e sim um paliativo capaz de

orientar a ação no mundo com alguma segurança, minimizando os riscos de

sucumbir às constantes variações propiciadas pelo acaso. Num tempo de pouco

controle dos resultados das ações, a prudência permite olhar adiante.

Maquiavel, embora tenha se notabilizado pela oposição entre Fortuna e

virtù, também via na prudência um paliativo contra os caprichos da deusa: “a

maldade da fortuna”, diz ele nas Istorie, “pode ser vencida com a prudência,

pondo-se freio à ambição desses homens, anulando-se as ordenações que

alimentaram as facções e prendendo aqueles que não estão em conformidade com

a verdadeira vida livre e civil”.327 O prudente, nesse sentido, é mais livre que os

outros homens, por conseguir se manter menos vulnerável à Fortuna. O exercício

desta liberdade é uma forma de manter aceso o amor à res publica, de vislumbrar,

em horizonte turvo, as possibilidades, ainda que parciais, de consolidação dos fins

últimos e honestos.

Resta discutir os elementos que, em Maquiavel e Guicciardini, dão alicerce

ao prudente na formulação de seus juízos segundo as regras da arte. Tratam-se das

tópicas dos argumentos da experiência e do conhecimento das histórias antigas e

modernas, além da ragione e da discrezione, disposições do prudente.

A tópica dos argumentos de experiência trata, de acordo com Alcir Pécora,

“da produção de um discurso em que a experiência de vida se apresenta como

principal fundamento e garantia do saber que propicia”.328 A experiência permite o

325 Idem. Ibid., I, 46. 326 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo, p.96. “Perché le cose di questa sorte non hanno regola certa né corso determinato, anzi hanno ogni dì variazione secondo gli andamenti del mondo, e le deliberazioni che se ne hanno a fare, si hanno quasi sempre a fondare in su le conietture, e da uno piccolo moto dependono el più delle volte importanze di grandissime cose, e da princìpi che a pena paiano considerabili nascono spesso effetti ponderosissimi. Però è necessario che chi governa gli stati sia bene prudente, vigili attentissimamente ogni minimo accidente, e pesato bene tutto quello che ne possi succedere, si ingegni sopra tutto di ovviare a’ princìpi ed escludere quanto si può la potestà del caso e della fortuna”. 327 MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, III, 5, pp. 168-9. 328 PÉCORA, Alcir. “A história como colheita rústica de excelências”. In: As excelências do governador, p.52.

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acesso a situações diversas, ilustrando o discurso e lhe dando força de autoridade.

Na dedicatória de O Príncipe, Maquiavel diz ter aprendido o que sabe “através de

uma longa e contínua experiência das coisas modernas e um contínuo estudo das

antigas”.329 Nos Discorsi, também na dedicatória, o secretário afirma ter

expressado o que aprendeu “na longa prática e contínuas lições das coisas do

mundo”.330 No proêmio do Dialogo del Reggimento di Firenze, Guicciardini

destaca a prudência e experiência dos quatro interlocutores, especialmente

Bernardo del Nero, “cidadão já velhíssimo e muito sábio”.331 Não é um acaso que

tais referências sejam apresentadas nos exórdios, momento responsável pela

captação da benevolência e atenção dos leitores ou do auditório, como argumenta

Lucia Calboli Montefusco.332 A produção de um ethos favorável, por meio da

afirmação da prudência de quem compõe o discurso, ou dos interlocutores do

diálogo, contribui decisivamente para a produção da docilidade da platéia ou dos

leitores. Uma das principais finalidades do exórdio (para Quintiliano a única, como

percebe Skinner), era a de “estabelecer dessa maneira o caráter da pessoa, com isso

colocando sua platéia num estado de espírito receptivo”.333

A experiência é tão decisiva que Guicciardini chega a considerá-la mais

importante que a prudência natural, inata: “que ninguém confie tanto na prudência

natural ao ponto de persuadir-se de que esta basta sem a experiência como

acessório, porque todos os que lidaram com negócios, ainda que prudentíssimos,

puderam verificar que com a experiência se chega a fazer muitas coisas, o que não

é possível apenas com o talento natural”.334

Ao mesmo tempo, o bom conhecimento das histórias antigas e modernas

revela-se decisivo, por proporcionar o acesso a exemplos abundantes,

fundamentais na retórica deliberativa. Lê-se na Retórica a Herênio que

o exemplo é o relato de algo feito ou dito no passado com a segurança do nome do

autor. É usado pelos mesmos motivos que usamos a similitude. Torna as coisas

329 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, p.129. 330 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, p.3. 331 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.16. “[...] Bernardo del Nero, cittadino già vecchissimo e molto savio”. 332 Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Exordium, narratio, epilogus. Studi sulla teoria retorica greca e romana delle parti del discorso, p.3. “L’oratore cioè si serviva dell’esordio non solo per anticipare l’argomento da trattare, ma anche per rendere benevolo l’ascoltatore [...]”. 333 SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes, p.177. 334 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 10, p.55.

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mais ornadas quando é empregado apenas em razão da dignidade; mais claras,

quando ilumina aquilo que parecia obscuro; mais prováveis, quando as faz mais

verossímeis; coloca-as diante dos olhos, quando expressa tudo de modo tão

perspícuo que eu diria ser quase possível tocar com a mão.335

Vê-se por essa passagem que o exemplo possui uma vasta aplicação, estando

articulado tanto à sustentação “lógica” de um argumento quanto à produção de um

efeito de presença, capaz de incidir com propriedade na produção de bons efeitos

retóricos.

A retórica da exemplaridade, assim como o princípio da analogia, orienta

tanto o uso das histórias antigas e modernas quanto a mobilização da

experiência.336 “Um homem prudente”, diz Maquiavel em O Príncipe, “deve

sempre seguir os caminhos abertos pelos grandes homens e espelhar-se nos que

foram excelentes”.337 Por esta razão “deve o príncipe ler as histórias e refletir sobre

as ações dos homens excelentes”.338 Aqueles que lêem com zelo as histórias

antigas e modernas, afirma Guicciardini no Dialogo, pela voz de Bernardo del

Nero, e fazem disso um hábito, não possuem dificuldades para antever o futuro.339

É importante notar, contudo, algumas divergências de propósitos acerca dos

usos das histórias antigas e modernas em Maquiavel e Guicciardini. No que diz

respeito aos romanos, especialmente do período republicano, o ex-secretário

mostra-se propenso a aceitá-los como modelos para a ação política presente, sem

se conformar, é bom que se frise, com uma idéia servil e irrefletida de imitação.

Como ele afirma no proêmio do livro I dos Discorsi, “na ordenação das repúblicas,

na manutenção dos estados, no governo dos reinos, na ordenação das milícias, na

condução da guerra, no julgamento dos súditos, na ampliação dos impérios, não se

vê príncipe ou república que recorra aos exemplos dos antigos”, situação oriunda

“do fato de não haver verdadeiro conhecimento das histórias, de não se extrair de

sua leitura o sentido, de não sentir nelas o sabor que têm” (grifos meus)340; enfim,

335 AD. Retórica a Herênio, IV, 62, p.297. 336 Cf. HAMPTON, Timothy. Writing From History, pp.1-30. 337 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, VI, p.23. 338 Idem. Ibid., XIV, p.71. 339 Cf. GUICCIARDINI, Dialogo, p.35. “E dove mi ingannassi io, potrete facilmente supplicare voi, perché avendo voi letto moltssime istorie di varie nazioni antiche e moderne, sono certo le avete anche considerate e fattovene uno abito, che con esso non vi sarà difficile el fare giudizio del futuro”. 340 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, I, proêmio, pp. 6-7.

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de não se saber ler as histórias adequadamente e da incapacidade de mobilizá-las

com prudência, ou seja, como modelos efetivos para a ação.

Já para Guicciardini, seria preciso “ter uma cidade como era a deles

[romanos], e depois governar-se segundo aquele exemplo”, algo que, “para quem

tem qualidades desproporcionais, é tão desproporcional quanto querer que um asno

corra como um cavalo”.341 Ler as histórias agudamente e com discernimento, de

modo que estas possam orientar as ações presentes, implica, segundo Guicciardini,

o respeito às enormes diferenças de qualidade entre os tempos, especialmente

quando os romanos estão envolvidos na comparação. Estes, para o escritor

florentino, só poderiam representar modelos efetivos caso houvesse uma série de

recorrências e similitudes capazes de corroborar a analogia.

Articulando a experiência e o conhecimento das histórias antigas e modernas

está a ragione, razão num sentido de “racional porque razoável”, sem a pretensão

de fixação de princípios gerais e intangíveis.342 Diz Guicciardini: “sou daqueles

que, neste tipo de coisa, jamais alegaria a experiência se esta não viesse

acompanhada de razão”.343 Também a discrezione, discernimento, desempenha um

papel decisivo na articulação entre experiência e leitura das histórias, como a

disposição responsável pela percepção da “variedade das circunstâncias” da

realidade e por saber medi-las e considerá-las com propriedade. Trata-se de

atributo do tipo discreto, necessariamente prudente (em oposição ao homem

vulgar).344

341 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 110, página 97. 342 Cf. BARBUTO, Gennaro Maria. La politica dopo la tempesta. Ordine e crisi nel pensiero di Francesco Guicciardini, p.36. 343 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo..., p.45. “Io sono uno di quegli che in queste cose non allegherei mai la esperianza, se io non a vedessi accompagnata dalla ragione”.

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2.5 Uma retórica prudencial

Da unidade entre retórica e prudência. Copia rerum e copia verborum. Adaptação

às circunstâncias: prudência e decoro letrado.

A idéia de retórica prudencial visa destacar a unidade entre retórica e

prudência na filosofia política antiga e renascentista. Embora Aristóteles tenha

proposto, na Ética e na Retórica, analogias entre o homem prudente e o orador –

no que diz respeito à sabedoria prática e à forma de julgamento de ambos345 –, é

com Cícero que prudência e retórica se mostram plenamente indissociáveis.

De acordo com definição do De Inventione, a retórica consiste na eloqüência

segundo as regras da arte.346 Ela é uma parte constitutiva da civilis ratio (ou

scientia), a ciência dos assuntos civis. A prudência, nesse sentido, é compartilhada

pela ciência dos assuntos civis e pela retórica, sem que os dois campos se

englobem totalmente. Como argumenta Antonio no livro I do diálogo De Oratore,

em refutação a Crasso, prudentia e ratio dicendi não se superpõem: “existe uma

grande diferença entre estas duas habilidades”.347 Para ilustrar seu argumento, ele

faz menção a Marcus Scaurus (163-89 a.C.), cônsul em 115 e censor em 109,

princeps senatus por muitos anos (o primeiro a falar quando das consultas

senatoriais), reputadamente um homem honrado, que “embora fosse um orador,

nos assuntos de envergadura se apoiava mais em sua prudência que na arte

oratória”.348

Antonio delimita um campo de atuação específico da prudência, concernente

aos assuntos de estado e à vida civil – em suma, à rerum cognitione, o

conhecimento das coisas. Segundo Cícero, sem este tipo de conhecimento o orador

não consegue ir longe na compreensão das questões civis; em conseqüência, não se

mostrará convincente e persuasivo em suas intervenções. Ainda assim, argumenta

Crasso, a rerum cognitione não possuirá valor algum caso o orador não revele em

seu discurso maneiras harmoniosas, urbanidade, graça e polidez, de modo que o

344 Cf. HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho, p.94. 345 Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.30. 346 CICERO, Marco Tulio. De Inventione, I, 6. 347 Idem. Ibid., I, 215. 348 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 214.

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estilo venha a se “acomodar plenamente ao pensamento”.349 Copia rerum leva à

copia verborum – a abundância e fluência oratória existem verdadeiramente

quando há um conhecimento efetivo do assunto tratado.350

A partir do livro II, Antonio, que no segmento anterior confrontara seus

pontos de vista com Crasso, num exemplo de argumentação in utramque partem,

passa a buscar com este um consenso sobre a perfeição oratória, onde fluência

verbal e conhecimento das coisas não se dissociem. Vale relembrar a assertiva de

Cícero na abertura do livro II do De Oratore, citada anteriormente: “a eloqüência

alcançada por Crasso e Antônio nunca poderia se realizar sem o conhecimento de

todas as coisas que produziram a prudência e a fluência oratória [dicendi copiam]

manifesta nos dois”.351

Para Cícero, não se pode pensar num homem prudente que não seja um bom

orador, tampouco num bom orador que não seja prudente – princípio eternizado

por Quintiliano na expressão vir bonus dicendi peritus.352 Os humanistas do

Quattrocento compartilhavam este entendimento com seus mestres da

Antiguidade: Leonardo Bruni defendia, segundo a linha proposta no De Oratore, a

identidade entre eloquentia e sapientia353; com base na leitura de Quintiliano,

Lorenzo Valla valorizava a experiência do orador nos assuntos públicos, o que, em

sua opinião, tornava a eloqüência mais eficaz354; para Jorge de Trebizonda, a

oratória estava associada à condução de cada momento da vida moral e política355;

Poliziano sustentava que a retórica era responsável tanto pela formação do homem

como da civilização356, tópica que busca em Cícero.357

Embora se possa notar uma redefinição no conceito de prudência nos

escritos de Maquiavel e Guicciardini, a associação desta com a retórica não deixa

de se fazer notar. Como discuti anteriormente, prudência implicava, para ambos,

349 Idem. Ibid., I, 50-54. 350 Cf. CAVE, Terence. The cornucopian text. Problems of Writing in the French Renaissance, p.6. “According to this theory (a commonplace since the ancient Greek debates on rhetoric), true copia – as opposed to vitiosa abundantia or loquacitas – is assured where res inform or guarantee verba”. 351 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 6. 352 Cf. ALBERTE, Antonio. “Recepción de los criterios retóricos ciceronianos en Quintiliano”, pp. 159-183. 353 Cf. VASOLI, Cesare. “L’humanisme rhetorique en Italie au XVeme siecle », p.54. 354 Cf. Idem. Ibid., p.64. 355 Cf. Idem. Ibid., p.77. 356 Cf. GALAND-HALLYN, Perrine. “La rhetorique en Italie a la fin du Quattrocento (1475-1500) », p.138. 357 Cf. CICERO, Marco Tulio. De Inventione, I,1.

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um olhar atento para a realidade, capaz de separar diversidades substanciais e

acidentais e compreender sua dinâmica; tendo por horizonte o que normalmente

ocorre em situações similares, o juízo prudente visa à definição do que é

apropriado em determinadas circunstâncias, o melhor possível. Daí a atenção aos

efeitos das ações de outros homens e seus prováveis resultados – almeja-se, deste

modo, à máxima segurança na consecução dos fins primeiros e últimos visados, o

que envolve a deliberação. Por deliberação, deve-se entender não apenas uma

prática intelectual, realizada publicamente ou intimamente, mas fundamentalmente

uma atividade regrada segundo os preceitos de um dos três gêneros retóricos, a

saber, o gênero deliberativo.

A retórica deliberativa tem no seu cerne a idéia de prudência. Somente

homens prudentes são capazes de discorrer com precisão acerca dos assuntos

concernentes à res publica e agir com celeridade. No exercício do debate e na

busca do consenso os prudentes mostram suas habilidades práticas, orientados por

vasta experiência e ampla leitura das histórias, e também pelo bom juízo natural

(prudência natural) e discrição (discrezione), sem os quais mesmo os homens mais

experientes e eruditos não conseguirão ir além de análises superficiais das “coisas

do mundo”. A deliberação, entendida retoricamente, envolve a participação – ou

sua presunção, no caso da deliberação consigo mesmo –, de outros homens num

ragionamento, um debate onde terá lugar a argumentação in utramque partem,

(argumentos contrários), ou então a busca de consenso via cooperação, ou mesmo

as duas coisas – dos argumentos contrários à busca do consenso, como no De

Oratore.

“O ofício do orador”, lê-se na Retórica a Herênio, “é poder discorrer sobre

as coisas que o costume e as leis instituíram para o uso civil, mantendo o

assentimento dos ouvintes até onde for possível”.358 O orador sempre fala para

alguém, buscando a produção de efeitos particulares num auditório específico.

Sem a capacidade de convencimento, sem saber lidar com um auditório, de nada

valerá ao prudente a excelência calculativa do bom juízo, isto porque a deliberação

entre homens reputados prudentes é ela mesma condição primordial para o

reconhecimento da prudência de um sujeito particular. Sem a retórica, a prudência

é inefetiva, por não adquirir um caráter público. Analogamente, a retórica sem

358 AD. Retórica a Herênio, I, 2, p.55.

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prudência é vazia, rasa, incapaz de ir ao cerne das questões. Assim, embora não se

confundam, retórica e prudência perfazem uma unidade necessária, sem a qual

ambas não se sustentam. A prudência não se resume a uma atividade intelectual:

ela possui uma dimensão performativa presente mesmo na deliberação consigo

mesmo.

Em Maquiavel e Guicciardini, as práticas letradas não podem ser

compreendidas apropriadamente sem que se leve em consideração a

indissociabilidade entre prudência e retórica.

Nos escritos de ambos, as referências à prudência implicam quase sempre as

noções de bom juízo – “confiando na vossa prudência, criarei coragem para dizer o

que penso” (Arte da Guerra)359 –, celeridade decisória e desembaraço na ação,

como na Storia d’Italia:

não se deve confundir – como poucos observadores das propriedades, dos nomes e

da substância das coisas afirmam – a timidez com a prudência; nem se deve reputar

como sábios aqueles que, tomando por certo todos os perigos, agem como se todos

fossem acontecer. Não se pode chamar de sábio ou prudente àqueles que temem ao

futuro mais que se deve.360

Trata-se, assim, de um conceito diretamente associado ao aconselhamento e

à ação política – no âmbito da República de Florença, a prudência dirá respeito ao

aconselhamento nos foros de discussão (como nas já referidas pratiche) ou de

deliberação (como no Consiglio Maggiore) e à ação no exercício das diversas

magistraturas (como na Signoria). Já num principado, ou num regime stretto –

como era o caso da Florença sob o jugo dos Medici, antes da instituição do ducado

–, a ação se concentrará nas mãos do príncipe, dos condottieri e seus homens de

confiança; neste caso, caberá aos conselheiros orientar a ação principesca segundo

o bom juízo. Em todas as instâncias referidas, porém, o caráter calculativo da

prudência não se basta, isto porque o princípio do reconhecimento público orienta

a produção dos efeitos desejados. Ainda mais importante: não existe um cálculo

359 MAQUIAVEL, Nicolau. A arte da guerra, III, p.98. 360 GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, III, 4, p.284. “e perciò non doversi confondere, come molti poco consideratori della proprietà de’ nome e della sostanza delle cose affermano, la timidità con la prudenza, né riputare savi coloro che, presupponendo per certi tutti i pericoli che sono dubbi e però temendo di tutti, regolano, come se tutti avessino certamente a succedere, la loro

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prudencial anterior ao ornato; o discurso não é o meio transparente que dá vazão a

idéias, e sim o produto de uma complexa operação onde os elementos

convencionais mobilizados na argumentação – a disposição do discurso, o

emprego de lugares-comuns (argumentos-padrão, ou “pequenos-discursos”,

segundo definição de Lechner, de aplicação “universal”)361, as técnicas de

amplificações, etc. – estruturam a urdidura dos juízos prudenciais. É o caso, por

exemplo, da já mencionada redescrição paradiastólica: ela não é um “instrumento”

empregado por Maquiavel para justificar sua flexibilização da noção de virtù, mas

a própria condição de possibilidade de tal flexibilização, sendo incorreto separar

um hipotético “cálculo anterior” de uma técnica supostamente neutra.

Pela mesma razão, prudência e decoro letrado são indissociáveis.362 O

prudente, além de se mostrar habilitado a deliberar, sem timidez e com bom juízo,

sobre as melhores ações a seguir ou evitar num determinado momento, deverá, da

mesma forma, saber como se portar, o que dizer ou escrever segundo a ocasião –

diante de iguais, de superiores ou de inferiores, de acordo com as hierarquias

sociais. “Se as paixões estão na natureza”, afirma João Adolfo Hansen, “a

moderação prescrita como virtude é a do decoro”.363

Erasmo, em sua Brevíssima e Muito Resumida Fórmula de Elaboração

Epistolar (1521), discute “o que convém” aos diversos tipos de cartas e epístolas,

no que diz respeito ao tratamento com inferiores – ex. de um príncipe para os

súditos, de um chefe de família para agregados, etc. –, iguais – ex. foros de

deliberação em uma República – e superiores – ex. postar-se diante de um

príncipe. Ao mesmo tempo, expõe preceitos sobre os diferentes gêneros de

epístolas a que “todas as espécies de cartas podem ser resumidas”364, equivalentes

aos três gêneros de causa da arte retórica (judicial, deliberativo e epidítico). Diz

Erasmo, sobre o gênero deliberativo:

deliberazioni. Anzi non potersi in maniera alcuna chiamare prudenti o savi coloro che temono del futuro piú che non si debbe”. 361 Cf. LECHNER, Joan Marie. Renaissance concepts of the commonplaces, pp. 72-73. “After the topoi have been sighted and their treasury of invention explored, there remains one further element of the commonplace to be defined and that is its place as a ‘speech-within-a-speech’. This concept of the locus communis as an oratio marks its full development in amplifying virtue or vice, in adorning and embellishing the speech, and in moving the audience to virtuous action. The commonplace, whether it be considered as an argument, a thesis, or an oration, is a rhetorical device brought into the main speech from outside the cause being pleaded”. 362 Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.39. 363 HANSEN, João Adolfo. Op. cit., p.45.

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De início, deve-se observar que o gênero deliberativo, que também pode ser

chamado de suasório, deve ser definido com utilidade e decoro. Contudo, quando

com utilidade dizemos, com decoro também queremos seja interpretado, eis que

nada útil pode ser dito que da mesma forma decoroso não seja (grifo meu).365

Nos séculos XV e XVI, os preceitos estabelecidos na Antiguidade por

autores como Aristóteles, Cícero e Quintiliano, visando primordialmente a oratória

forense e as diversas cerimônias públicas, acabam se difundindo de forma notável

para a composição de tratados, diálogos e outros gêneros.366 A demarcação precisa

do que convém mostra-se crucial, como forma de assegurar o reconhecimento

público da dignidade dos escritos; logo, como reconhecimento da prudência de

quem os compôs. Não há prudência sem decoro: o princípio da adequação às

condições particulares do auditório e do tempo é o que os une. Afirma Cícero no

Orator,

da mesma forma que na vida, também nos discursos o mais difícil é ver o que

convém. [...] O orador deve mirar o conveniente não só nas idéias, mas também nas

palavras. É que as pessoas em diferentes circunstâncias, de classes distintas, com

prestígio pessoal diferente, de diferentes idades, e os diferentes lugares, momentos e

ouvintes não devem ser tratados com o mesmo tipo de palavras ou idéias. Há que se

ter em conta todas as partes do discurso, da mesma forma que na vida, o que é

conveniente: e o conveniente depende do tema que se trate e das pessoas, tanto as

que falam como as que escutam (grifos meus).367

A regra, aqui, é a adaptação às circunstâncias. Decoro e prudência não

apenas se complementam: são indissociáveis. Só o prudente sabe reconhecer o que

convém diante de um auditório específico; logo, ninguém pode ser chamado de

prudente a menos que seja reconhecido como um orador discreto e honesto. O

Cortesão é um exemplo vívido da conexão entre decoro, prudência, dignidade,

364 ERASMO, Desiderio. “Brevíssima e Muito Resumida Fórmula de Elaboração Epistolar”, p.120. 365 Idem. Ibid., p.123. 366 Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.38. 367 CICERO, Marco Tulio. Orator / El Orador, I, 71.

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discrição (discrezione), agudeza e graça.368 Castiglione defende que o cortesão

discreto deve evitar todo tipo de afetação, e “usar em cada coisa uma certa

sprezzatura que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço

e quase sem pensar”.369 A oratória não deve aparentar artifício ou excesso de

energia, constituindo-se como uma arte do justo meio, do equilíbrio e da

prudência. Alguns oradores antigos, prossegue Castiglione pela voz do conde

Ludovico de Canossa, “mostravam que seus discursos eram elaborados de modo

simples e segundo o que lhes sugeriam a natureza e a verdade, menos que o estudo

e a arte”.370 A dissimulação do artifício é um registro de prudência: um orador

gracioso e discreto conquistará facilmente as benesses do seu público.

Boa parte da educação humanista se baseava nos estudos associados às “boas

letras” – leitura, memorização e composição em acordo com as autoridades

clássicas.371 Como defende Victoria Kahn, os humanistas concebiam as práticas

letradas como uma forma de prudência em si, e não apenas como produtos

materiais da prudência de determinados homens.372 “Assim como Salutati”, afirma

a autora, “Giovanni Pontano afirmou que o decoro literário ou retórico pode

educar o leitor na virtude da prudência, tanto porque provê exemplos temáticos de

ações prudentes do passado como porque as habilidades de julgamento e

discernimento envolvidas na composição e interpretação de uma obra literária são

similares àquelas envolvidas na reflexão prática sobre nossas ações”.373

Deste modo, pode-se dizer que eram definidos como prudentes não apenas

os homens honestos que participavam com dignidade da vida pública de suas

cidades, os conselheiros de príncipes e das magistraturas republicanas, mas

também os homens de letras – especialmente os que procuravam registrar, em seus

textos, o difícil percurso do cálculo prudencial e da conversação sobre as coisas do

368 Cf. PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros, p.72. 369 CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão, I, p.42. 370 Idem. 371 Cf. VASOLI, Cesare. Op. cit., p.56. 372 Cf. KAHN, Victoria. Op. cit., p.39. 373 Idem. Ibid., p.40. “Like Salutati, Giovanni Pontano claimed that literary or rhetorical decorum can educate the reader in the virtue of prudence, both because it can provide thematic examples of prudent actions in the past and because the skills of judgment and discrimination involved in the composition and interpretation of a literary work are similar to those involved in practical reasoning about our actions”.

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mundo, de forma ornada e em acordo com o decoro letrado. “A escrita”, afirma

Castiglione pela voz de dom Federico,

não é outra coisa senão uma forma de falar que permanece depois de se ter falado, e

quase uma imagem, ou antes, a vida das palavras [...]. Mas certamente aquilo que

convém ao escrever, convém igualmente ao falar; e é belíssimo o falar que é similar

aos belos escritos.374

A forma privilegiada, nesse sentido, era o diálogo, associado à dimensão oral

do debate; porém, mesmo tratados mais “sistemáticos” como O Príncipe

reproduziam, em sua invenção, disposição e ornato, a estrutura dos discursos de

retórica deliberativa. Entendidos como performances letradas da prudência, os

textos políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini pressupunham “auditórios

implícitos”, ou um público inscrito nos próprios caminhos do texto. Tais

performances prudenciais só se consumam plenamente como atos de leitura ou

práticas orais. Elas dependem da produção dos efeitos desejados no leitor; do

contrário, não haverá evento, não haverá prudência – nenhuma lição poderá ser

aprendida, nenhum caminho será seguido.

Entretanto, os percursos que levaram Maquiavel e Guicciardini da situação

de membros ativos da vida política florentina e italiana à condição de homens de

letras não foram destituídos de tensões e ambigüidades, tampouco resultaram de

escolhas bem-planejadas ou de um ideal de equilíbrio entre otium e negotium.

Diante da Fortuna, eles procuravam os remédios que pudessem não só amenizar

suas situações particulares, como também atenuar a calamità italiana iniciada em

1494. Embora não tivessem o controle do timão florentino, possuíam uma arma

formidável, a reconhecida prudência nos assuntos civis, além do engenho e da

agudeza necessários à composição de algumas das peças letradas mais importantes

do Cinquecento florentino, as quais, se não foram suficientes para lhes devolver a

almejada participação nos negócios públicos, ao menos permitiu que definissem

estratégias e intervenções que consideravam as mais apropriadas num momento de

graves turbulências.

374 CASTIGLIONE, Baldassare. Op. cit., I, p.47.

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3. Um remédio contra a Fortuna? Maquiavel e Guicciardini como homens de letras.

Ah, Fortuna crudel, Fortuna ingrata! Trionfan gli altri, e ne moro io d’inopia.

(Ariosto. Orlando Furioso, I, 44).

3.1 Exílio, ócio e melancolia

Ócio e negócio na Antiguidade e no Renascimento: o otio onorato. Exílio e

melancolia. O ócio sem dignidade de Maquiavel e Guicciardini.

Leonardo Bruni foi orador reputadíssimo entre os humanistas do

Quattrocento. Tradutor de Platão e Aristóteles, chanceler da República florentina

por duas vezes, escritor de diálogos, tratados e comentários muito lidos em seu

tempo, Bruni legou copiosa epistolografia, organizada ainda em vida por ele

mesmo. Em suas cartas familiares, costumava refletir sobre a relação entre vita

negotiosa e vita otiosa; embora considerasse a participação nos assuntos da

República uma honra inigualável, Bruni não só enaltecia o estudo e a

“contemplação” como se mostrava recorrentemente desejoso de um estado ideal

de ociosidade filosófica.1

A busca pelo equilíbrio entre vida ativa e ócio filosófico não era em

absoluto uma especificidade do “humanismo cívico”. Na Ética a Nicômaco,

Aristóteles diferencia as virtudes morais – entendidas como meio-termo entre dois

vícios e próprias à participação na vida da polis e à orientação prática da ação no

mundo, sob a orientação da disposição intelectual da phronesis – das virtudes

intelectuais, associadas ao conhecimento daquilo que “não é sujeito sequer a

variações”: as verdades filosóficas.2 Entre os romanos, esta distinção é trazida

para o cerne do debate sobre a res publica; homens como Cícero, Sêneca e Marco

Aurélio, conquanto fossem personagens bastante atuantes na vida política,

1 Cf. VITI, Paolo. Leonardo Bruni e Firenze. Studi sulle lettere pubbliche e private, p.342. 2 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, VI, 1139a – 1140a.

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deixaram vasto legado de orações, textos filosóficos, diálogos e tratados diversos,

muitos dos quais focados nas questões do retiro voluntário e do ócio filosófico.

No livro I do diálogo ciceroniano De Oratore, o personagem Antonio,

debatendo com Crasso, afirma que o orador deve guardar suas reflexões

filosóficas para os momentos de ócio.3 Segundo ele, estas não seriam importantes

no âmbito das disputas judiciais ou no debate público, pois as decisões práticas

associadas à vida civil não necessitam interrogar a todo o momento sobre o

summum bonum.4 Delimita-se, assim, a separação de duas esferas distintas, onde

ao otium é associado o estudo filosófico das verdades eternas e ao negotium

corresponde a sabedoria prática do prudente. A idéia de vita otiosa era também

comumente atrelada ao descanso da alma e ao revigoramento das agruras próprias

da vita negotiosa. Como afirma o personagem Crasso, em passagem do livro II do

De Oratore, “o ócio verdadeiro é fruto da relaxação, e não das contendas da alma

[contentio animi]”,5 o que o leva, em seguida, a argumentar que “não pode ser

chamado de livre aquele que às vezes não está fazendo nada”.6

O verdadeiro ócio, nesse sentido, é compreendido como disposição do

homem livre, do cidadão virtuoso, o qual, nos intervalos indispensáveis entre as

fatigantes atividades públicas, dispõe de seu tempo ora contemplando as verdades

eternas ora repousando das dificuldades inerentes à vita negotiosa. Por esta razão,

não se pode atestar uma oposição entre negotium e otium nas diversas tradições

filosóficas da Antiguidade; o ócio, inclusive, era percebido como etapa necessária

de preparação para a vida pública, “ocasião propícia para se ater à companhia de

homens excelentes [optimos viros], os melhores exemplos a partir dos quais

guiaremos nossas vidas”7, como se lê no tratado De Otio, de Sêneca.

Ao contrário dos epicuristas – os quais, segundo Sêneca, defendiam a

abstenção dos negócios da res publica –, os estóicos, de acordo com ensinamento

de Zenão mobilizado pelo filósofo romano, deveriam se engajar nos assuntos

públicos, a menos que houvesse algum tipo de impedimento, como por exemplo

um estado de corrupção amplamente disseminado.8 No ócio, fundamentalmente,

dá-se o “cultivo das virtudes”, através da conversação com homens excelentes e

3 Cf. CÍCERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 224. 4 Idem. Ibid., I, 222. 5 Idem. Ibid., II, 22. 6 Idem. Ibid., II, 24. 7 SENECA. De Otio. In: Moral Essays, 28, 1.

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do estudo dos grandes filósofos, virtudes essas consideradas decisivas na vida

pública.9 Para Sêneca, a vita otiosa permite àqueles homens engajados nos

assuntos públicos o cultivo adequado da virtus; em relação aos que optam por

servir ao que ele chama de grande res publica sem fronteiras, o conhecimento

verdadeiro, esses têm no ócio a condição propícia para o bom desenvolvimento

das disposições almejadas.10

Mesmo quando o homem é forçado a se exilar11 – experimentando então a

“pobreza, a desonra e o desprezo”12, como diz Sêneca na Consolação a Hélvia –,

ainda assim não incorrerá em indignidade, pois, segundo o filósofo, “duas coisas,

que são belíssimas, para onde quer que nos movamos, nos seguirão: a natureza

universal e nossa própria virtude”.13 Como “nada que há no mundo é estranho ao

homem”,14 a dor do exílio pode ser então substituída pelo amor ao país de

adoção.15 Tendo optado pela virtude e pela coerência consigo mesmo, nenhuma

dificuldade externa, associada aos reveses da Fortuna, poderá atormentar a alma

de um estóico. “O sumo bem”, diz Sêneca, “é uma alma que despreza os azares da

sorte e se compraz na virtude”.16

Trata-se, como observa Pierre Hadot, de uma efetiva escolha de vida,

associada não só ao estoicismo como também às mais diversas tendências

filosóficas do período helênico, do fim da República e início da época imperial17:

o amor à sabedoria e à filosofia, condições para que o homem sinta-se em casa

mesmo no exílio. Não existe propriamente, tanto em Cícero quanto em Sêneca,

uma oposição efetiva entre ócio e negócio: embora sejam percebidos como

domínios diferentes da vida, eles devem se completar na busca pelo equilíbrio da

alma e pelo aperfeiçoamento moral. Somente aos optimos viros é facultado o otio

onorato e verdadeiro, atributo do homem livre e condição de cultivo das belas

virtudes.

8 Cf. Idem. Ibid., 30, 3. 9 Cf. Idem. Ibid., 30, 4. 10 Cf. Idem. Ibid., 31,2. 11 Sobre os exílios de Sêneca, conferir: VEYNE, Paul. Seneca, the Life of a Stoic, pp. 1-30. 12 SENECA. Consolação a Hélvia. In: Cartas consolatórias, VI, 1. 13 Idem. Ibid., VIII, 2. 14 Idem. Ibid., VIII, 5. 15 SENECA. Carta XIII. In: As relações humanas, p. 97. 16 SENECA. De vita beata, IV, 2. 17 Cf. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga, p.154.

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No diálogo Secretum e nos tratados De vita solitaria e De otio religioso, o

humanista Francesco Petrarca discute a questão do ócio e da solidão, no horizonte

do diálogo interior do homem cristão em busca da verdade e da graça divina. Por

uma ótica marcadamente agostiniana, Petrarca, nos textos referidos, valoriza tanto

o ócio do leigo quanto aquele do religioso como lugares de reflexão, favoráveis à

meditação sobre a situação do homem no mundo, a Queda, o sentido do tempo e a

relação com a eternidade.18 Em De otio religioso, o humanista trata da solidão

monástica, com o intuído de pensá-la em bases distintas da noção de acedia, a

melancolia dos monges, considerada nos séculos finais da Idade Média um grave

pecado.19

Como argumenta Giorgio Agamben em Stanzas, a acedia decorria do

impasse entre o imenso desejo de união com Deus e a constatação da

impossibilidade de tal realização; tratava-se da alternância entre uma tristeza

angustiada e o tédio e indiferença oriundos do saber-se definitivamente apartado

do objeto de desejo – no caso, Deus.20 O movimento de Petrarca se dá

precisamente no sentido de valorizar a solidão monástica, não como fonte de

tormentosos taedium vitae, tristitia e desidia, mas como condição de imitação

terrena da eternidade, orientação para o infinito sagrado e verdade divina; em

suma, pelo alcance de uma sensação de presença divinal, propiciada pela paz de

uma vita otiosa consagrada aos estudos e à fé.21 Como nota Francesco Tateo,

Petrarca, ao propor uma releitura da oposição otio / labor, reverte o entendimento

clássico da vita otiosa como preparação para a vida pública: apenas a vida

solitária é considerada por ele como digna de fato; unicamente pela contemplação,

o homem, desde que tenha sido apreciado com a graça divina, é capaz de lidar

adequadamente com sua condição decaída.22 “Nos esforçamos não para alcançar a

virtude como fim”, diz Petrarca em De Otio Religioso, “mas para chegar a Deus

18 Cf. TATEO, Francesco. L’ozio segreto di Petrarca, p.19. Diz o autor: “Ciò dipende dal senso polemico dell’ozio petrarchesco, che è il luogo della riflessione e quindi anche l’occasione di meditare sulla propria situazione di uomo costretto ad aspirare a quel luogo come unica condizione di sopravvivenza”. 19 Cf. HERSANT. Yves. “L’acédie et ses enfants”. In: CLAIRE, Jean. Mélancolie. Génie et folie en Occident, p.54. 20 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Stanzas. Word and Phantasm in Western Culture, p.5. 21 Cf. PETRARCA, Francesco. On Religious Leisure / De Otio Religioso, I, 7, p.65. “The way is sweet; the end blessed. Taking time to see, to ménage leisure, to realize, and to climb, not only with minimal effort to eternal rest, a goal which itself is highly desirable, but also through worldly joy to eternal blessings, will grant you the reward of immense grace”. 22 TATEO, Francesco. op cit., p.113.

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através da virtude”:23 a verdadeira glória é restrita a Deus; ao homem, cabe

contemplá-Lo.24

Tal reversão do modelo clássico incide numa nova forma de associar ócio e

liberdade. Fundamental, em Petrarca como em Agostinho, é a liberdade de

consciência, condição primeira para o diálogo interior.25 Somente a solidão e o

ócio podem tornar o homem efetivamente livre das fadigas e da indignidade da

vida terrena; somente o afastamento das coisas do mundo garante as condições

necessárias para a descoberta de si e para a perscrutação da condição humana.26 O

lugar do solitário é pensado, nesse sentido, como um altar, onde a paz se

estabelece e se eterniza num constante estado de doçura da vida, associado à fé e à

espera da graça. Desligado de seu caráter preparatório, intervalo voltado para a

busca da glória terrena, o ócio é compreendido por Petrarca como a condição

fundamental para o exercício da mais alta virtude, a contemplação da Verdade.27

Ao realizar o duplo movimento de distanciar o ócio tanto da vita negotiosa

quanto da acedia, Petrarca abre o caminho para a associação entre otium

modestum et suave e melancolia: “Que o ócio seja moderado e suave, não

excessivo; a solidão serena, não feroz; seja assim solidão, não barbárie”.28 Ao

invés da acedia tormentosa, entra em cena o equilíbrio e serenidade da suave

melancolia do estudioso solitário, dedicado a Deus e seus mistérios. Como na

gravura São Jerônimo em seu estúdio, de Dürer, o ideal petrarquiano constrói uma

melancolia terna, livre de angústias não só por lidar adequadamente com a perda

de Deus como também por possibilitar, através da vida solitária, a construção de

um simulacro da eternidade como presença.29

23 Citado por: TATEO, Francesco. op. cit., pp.118-9. 24 Cf. VAROTTI, Carlo. Gloria e ambizione politica nel Rinascimento. Da Petrarca a Machiavelli, p.117. 25 Cf. TATEO, Francesco. op. cit., p.100. 26 Idem. Ibid., p.104. 27 Cf. Idem. Ibid., p.112. “perciò l’ozio non può confondersi con l’inerzia perché risiede nell’esercizio della più alta virtù, che non è azione in senso politico, né ‘opera’ in senso religioso, ma contemplazione di Dio e conoscenza delle cose”. 28 Citado em: TATEO, Francesco. op. cit., p.111. 29 Cf. ALCIDES, Sérgio. “Sob o signo da iconologia: uma exploração do livro Saturno e a melancolia, de R. Klibansky, E. Panofsky e F. Saxl”, p.165. “A suave melancolia descrita por Panofsky a propósito de ‘S. Jerônimo em seu estúdio” é um ideal estranho a Saturno e a melancolia. O prazeroso isolamento do estudioso ‘com seus pensamentos, seus animais, seu Deus’ nada tem a ver com o ideal humanista que apontava para a contínua superação dos limites impostos pela natureza do entendimento humano. A diferença entre ‘S.Paulo’ e Melancolia I é de grau, segundo a escala de Agrippa; mas o que distingue o ‘S. Jerônimo’ de Melancolia I não é o temperamento nem o grau, e sim o próprio espírito: na linguagem de Klibansky, Panofsky e Saxl, é

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Em Coluccio Salutati, a serenidade do ócio petrarquiano dá lugar a uma sutil

tensão entre vita negotiosa e vita otiosa, onde o equilíbrio entre as duas

disposições afigura-se como o ideal desejável da verdadeira glória, inalcançável

em sua plenitude: “neste mundo corruptível”, diz ele na inventiva contra Antonio

Loschi, “tanta grandeza é sem dúvida impossível”.30 Embora o desejo de glória

fosse considerado por Salutati como uma fraqueza humana, reveladora da

fugacidade e inconsistência dos que não se apegam verdadeiramente aos valores

cristãos, ele é também analisado pelo humanista florentino como característica

inata dos seres humanos. Associado ao amor à res publica e à “verdadeira

ambição”, o desejo de glória mostra-se fundamental, segundo ele, para a formação

de um cidadão virtuoso.31 Ainda assim, apesar de considerar a glória humana

como inconsistente e associar a verdadeira glória à fé e aos valores cristãos,

Salutati jamais deixa de destacar o caráter decisivo do gratissimum negotium: o

homem é um ser destinado à ação.32 O caráter cristão do sentido ideal de glória e

virtude em Salutati incide numa ambigüidade inexistente na reflexão clássica, já

que o equilíbrio entre vita otiosa e vivere civile, plenamente atestado e almejado

em Cícero e Sêneca, não pressupõe, nos escritos do humanista florentino, uma

unidade plena, haja vista a impossibilidade de superposição entre duas éticas

distintas e em muitos aspectos antagônicas: a moralidade cristã e a antiquas virtus

pagã.33

Em Leonardo Bruni, tal ambigüidade será não apenas atestada, como

permitirá uma nova associação entre ócio e melancolia, ao mesmo tempo próxima

e distante do ideal petrarquiano. Bruni teve sua carreira marcada tanto pela intensa

participação civil na vida política florentina quanto pela elaboração de diálogos e

tratados fundamentais para a afirmação da singularidade da República de

a diferença entre o erudito medieval que pretendia ‘unir-se a Deus’ e o gênio humanista que aspirava a ‘competir com Deus’”. 30 SALUTATI, Coluccio. Invettiva contro Antonio Loschi da Vicenza, p.37. “Ma poiché in questo mondo corruttibile tanta grandeza è senza dubbio impossibile [...]”. 31 Cf. VAROTTI, Carlo. op.cit., p.143. “Da una parte Coluccio condanna dunque con argomenti tipici della tradizione cristiana l’aspirazione alla gloria, dall’altra pone il desiderio di gloria degli antichi romani tra i fattori ineliminabili della loro natura, al punto che esso fu tra le componento fondamentali dei loro moris e consuetudines”. 32 Cf. GARIN, Eugenio. Italian Humanism, p.85. “Salutati, though he had admitted, in keeping with medieval tradition that contemplation is to be rated more highly than action, had projected the beatific vision into heaven. On earth, he had insisted, man is destined for action”.

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Florença, através do destaque de elementos que viriam a se tornar comuns entre os

humanistas do Quattrocento, como a tópica do caráter natural tanto da liberdade

quanto da igualdade entre os florentinos, decorrentes, segundo ele, da origem

republicana da cidade, fundada no apogeu de Roma.34 Tais princípios são

afirmados em textos como a Ludatio Florentinae Urbis, a Oratio in funere

Ioannis Stroze, o Dialogi ad Petrum Paulum Histrum e na História do Povo

Florentino, onde Bruni não só discorre sobre a grandeza de Florença como

procura justificar seu domínio sobre outros povos e cidades.

Por outro lado, Bruni adquiriu significativa reputação como tradutor do

grego e comentador de Platão e Aristóteles. Nesse sentido, pode-se dizer que ele

tentava afirmar, com seus escritos, um modelo bifronte de virtus. Na dedicatória a

Eugênio IV de sua tradução da Política, Bruni toma a vida de Cícero como

modelo para sua defesa do equilíbrio entre vita otiosa e vita negotiosa, ao destacar

não só suas virtudes como escritor e orador, mas também suas qualidades como

cidadão e homem da política.35 Como em Aristóteles, a contemplação é associada

aos valores eternos, adquirindo, nesse sentido, um amplo destaque; todavia, sem a

participação política, esta seria de pouquíssima valia. No seu Diálogo a Pier

Paolo Vergerio, Bruni, pela voz do personagem Coluccio Salutati, afirma que “é

um absurdo falar consigo mesmo e examinar diversas questões entre quatro

paredes, de forma solitária, e em seguida, nas reuniões com outros homens, agir

como se nada soubesse”.36 Fica clara, nesta passagem, a mobilização da tópica

clássica do ócio como preparação para a vida ativa.

Em seu epistolário, porém, a defesa do equilíbrio entre ação e contemplação

sofre alguns reveses, como se pode perceber a partir da análise minuciosa e

erudita feita por Paolo Viti das cartas familiares do humanista aretino. Ainda que

a integração entre ócio e negócio se mantenha como horizonte ideal, Bruni

lamenta-se recorrentemente de seus fatigantes afazeres públicos, tarefas

duríssimas que, segundo ele, não lhe propiciavam o tempo necessário aos seus

33 Sobre a relação entre vida contemplativa e vida ativa entre os humanistas do Quattrocento, conferir: BIGNOTTO, Newton. Origens do Republicanismo Moderno, pp. 83-130. 34 Cf. HANKINS, James. “Rhetoric, history and ideology: the civic panegyrics of Leonardo Bruni”. In: HANKINS, James. (org.). Renaissance Civic Humanism, p.153. 35 Cf. VITI, Paolo. op. cit., pp.342-3. 36 BRUNI, Leonardo. Dialogo a Pier Paolo Vergerio, p. 49. “Ed è assurdo parlare seco stessi e molte questioni esaminare tra quattro pareti e in solitudine, e pois nelle radunanze degli upmini tacere come se nulla si sappia”.

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estudos e traduções.37 Emulando o estilo epistolar ciceroniano38, Bruni constrói

um modelo ideal de vida solitária muito próximo àquele delineado por Petrarca,

com uma diferença significativa: no lugar da ênfase na contemplação (nunca

direta) de Deus, Bruni destaca preferencialmente o amor ao saber, aos estudos e à

erudição filosófica. Estabelece-se, assim, uma tensão entre vita negotiosa e vita

otiosa ainda mais forte que aquela delineada em Salutati. Se, para este, o caráter

inconciliável entre ócio e negócio, embora se fizesse presente, não fora levado às

últimas conseqüências, em Bruni ele é não só atestado como problematizado.

Conquanto as cartas familiares renascentistas, como será discutido adiante, não

possam ser tomadas como reflexos diretos de um suposto “estado de ânimo” de

seus escritores, por remeterem a tópicas da inventio retórica e regras específicas

de decoro letrado, a própria seleção do que dizer e o modo de elocução levam,

como se pode atestar pela análise de Viti, a uma ambigüidade decisiva, na medida

em que Bruni apresenta-se como desejoso de uma vita otiosa inexeqüível, perdida

sem que nunca tenha se concretizado efetivamente.39

Se, como em Petrarca, o ócio é associado por Bruni a uma vida doce e

suave, regulada pela busca dos valores eternos através do estudo e da

contemplação, ele é configurado nas cartas familiares como desejo de retorno a

um estado ideal perdido, nostalgia do que nunca se teve. A suave melancolia do

homem de letras petrarquiano transforma-se em Bruni num ideal praticamente

inconciliável com as agruras da vida civil, condição da glória citadina. Pode-se

dizer que, para o humanista aretino, a tensão entre vita otiosa e vita negotiosa

revela-se um dado constitutivo da experiência humana, na contínua impressão de

uma perda fundamental, em grande medida irremediável. Definem-se deste modo

os primeiros contornos de uma inaudita associação entre melancolia e perda,

objeto de reflexão do filósofo neoplatônico Marsilio Ficino.

37 Cf. VITI, Paolo. op. cit., p.347. “Ma nel suo epistolario privato, a prima vista – ed, anzi, ad una diffusa verifica di queste lettere – ci troviamo di fronti ad un Bruni che fra le due ‘vite’, quella ‘negotiosa’ e quella ‘otiosa’, per quanto in teoria, come si è visto, amedue tanto, e parimenti, celebrate, ci appare esclusivamente proteso a condannare quei fastidiosi affari politici ad amministrativi che lo tormentano e lo tengono lontano dal più affascinate mondo della solitaria riflessione culturale e dell’operosità letteraria, ed a rimpiangere ed esaltare questo mondo col suo sereno raccoglimento negli studi”. 38 Sobre as cartas familiares de Cícero, conferir: MARCHETTI, Sandra Citroni. Amicizia e potere nelle lettere di Cicerone e nelle elegie ovidiane dall’esilio, pp. 3-99. 39 Cf. VITI, Paolo. op. cit., pp. 353-4. “...molte sono le lettere in cui il Bruni, in occasioni diverse e con vari personaggi, di fronte alla dicotomia ‘vita otiosa’ – ‘vita negotiosa’ mostra apertamente la

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Entre os séculos XV e XVII, uma vasta literatura sobre o problema da

melancolia veio à tona na Europa, em especial após a publicação dos três livros de

Marsílio Ficino destinados à saúde do homem de letras e à magia: De vita sana,

De vita longa e De vita coelitus comparanda, posteriormente reunidos em um

único volume, intitulado De vita libri tres. Neste estudo, em especial no primeiro

livro, Ficino retoma a doutrina hipocrática dos quatro humores, associada à idéia

galênica dos quatro temperamentos.40 O humanista, porém, não se limita ao

resgate de tais preceitos. Como notam Panofsky, Saxl e Klibansky no clássico

Saturno e a Melancolia, Marsílio Ficino foi o primeiro estudioso a identificar a

concepção aristotélica da melancolia como característica dos homens

intelectualmente destacados com a noção platônica de “furor divino”.41

Como já foi dito no primeiro capítulo, os melancólicos, para Ficino, se

fazem mais perscrutadores e atentos às sutilezas da vida e ao centro das questões

fundamentais da existência, isto por conta da influência decisiva do planeta

Saturno. A bile negra, também chamada de humor melancólico ou simplesmente

melancolia – nesse sentido, melancolia designa tanto o estado de ânimo quanto o

humor –, possuiria destacada afinidade com o centro da Terra, por conta da

própria natureza do humor melancólico, frio e seco. Isto, porém, no que concerne

à melancolia natural, uma parte mais densa e seca do sangue: “logo, somente a

bile negra a que chamamos de natural nos leva ao bom juízo [iudicium] e

sabedoria, mas nem sempre”.42 A chamada melancolia adusta – resultante da

combustão do sangue, bile, fleuma ou da própria melancolia natural – incidiria,

segundo ele, numa predisposição contrária àquela da melancolia natural, por

afetar o julgamento e tornar os homens irascíveis e propensos a ações irrefletidas:

qualquer melancolia que derive da adustão afeta a sabedoria e a capacidade de

julgar, pois quando o humor entra em combustão e queima, ele caracteristicamente

sua preferenza per la prima, e quindi una profonda attrattiva per un’esistenza appartata, tutta dedita agli studi...”. 40 Cf. PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz; KLIBANSKY, Raymond. Saturno y la melancolía, pp. 113-24. 41 Ibid., p. 254. 42 FICINO, Marsílio. De vita libri tres, I, V, p.117.

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torna as pessoas excitadas e agitadas; a esta melancolia os gregos denominaram

mania [maniam] e nós chamamos de furor [furorem].43

Além de queimar, incidindo na perda do juízo, a melancolia natural poderia

tornar-se muito fria, levando o melancólico a experimentar sensações de

desesperança e temor excessivo; quando em abundância, misturando-se com a

fleuma, a melancolia tornaria o “espírito mais pesado e mais frio”.44 Evidencia-se,

segundo Ficino, a tendência aos extremos presente nos melancólicos: “muito

quente, ela produz a mais extrema audácia, mesmo ferocidade; muito fria,

contudo, leva ao medo e à covardia”.45

Na análise que fazem sobre Ficino em Saturno e a melancolia, Panofsky,

Saxl e Klibansky associam sua concepção de melancolia à idéia de genialidade,

não em sentido romântico, mas no que diz respeito à busca da distinção e da glória

universal: “para o Renascimento”, dizem, “o parentesco da melancolia com o

gênio não era uma mera reminiscência cultural, mas uma realidade experimentada

muito antes de sua formulação humana e literária”.46 Trata-se da tentativa de se

emancipar dos limites ordinários da vida, sem que isto todavia fosse percebido

como algo plenamente possível47; mesmo homens como Leon Battista Alberti

aturdiam-se com a incapacidade de dominar completamente os resultados de suas

ações, como é possível perceber no diálogo Fatum et Fortuna. A nostalgia de um

ócio idealizado, como nas cartas familiares de Bruni, pode ser lida nessa ótica:

tratam-se, aqui, de diversas formas de conceber um hiato entre o desejo de possuir

pleno controle das próprias ações e a constatação da impossibilidade da

autonomia, questão que, conforme discutirei adiante, será decisiva em Maquiavel

e Guicciardini. De fato, como nota Giorgio Agamben ao analisar a questão da

perda em Ficino, próprio da melancolia é fazer com que um objeto inapreensível –

como o ócio de Bruni – seja dado a ler como uma perda imaginária.48

43 Idem. 44 Ibid., p. 119. 45 Idem. 46 Cf. PANOFSKY; SAXL; KLIBANSKY, op. cit., p.246. 47 Cf. Ibid., p.249. “Así, de la situación intelectual del humanismo – es decir, de la conciencia de libertad experimentada como una sensación de tragedia – surgió la idea de un genio que reclamaba, cada vez con mayor apremio, emanciparse en su vida y obras de los criterios de la moralidad ‘normal’ y de las reglas comunes del arte”. 48 Cf. AGAMBEN, Giorgio. op. cit, p.25. “The imaginary loss that so obsessively occupies the melancholic tendency has no real object, because its funeral strategy is directed to the impossible capture of the phantasm”.

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Na mesma linha, Juliana Schiesari defende que Ficino, mais em De Amore

que no De vita libri tres, leva ao primeiro plano a associação entre melancolia,

perda e desejo.49 Se, como argumentei, a fé e a esperança na graça divina

garantem em Petrarca as condições de possibilidade de uma paz suave, simulacro

da presença de Deus, em Ficino o conhecimento da verdade configura-se como

um desejo de presença associado à anamnese do Um, processo lento e repleto de

inquietações.50 Conhecer, nesse sentido, é lutar contra o esquecimento e

recuperar-se da perda. Não há suavidade em tal processo, muito pelo contrário.

Em Petrarca, Deus, embora inalcançável, não é um objeto perdido; em Ficino,

todavia, o Um é o próprio objeto perdido e desejado que deve ser novamente

alcançado. Diz Schiesari que, “assim como todo o conhecimento é reduzido à

anamnese, do mesmo modo aquilo que se ama na pessoa amada é também o que a

pessoa amada desperta no amante”.51 A melancolia amorosa decorreria, assim, do

desejo por uma unidade inalcançável, segundo a análise da autora.52 Esta

associação entre melancolia e perda, pensada por Freud séculos depois em termos

bastante distintos, se faz presente em muitos dos humanistas, e não

necessariamente no sentido da perda amorosa – tanto o otio onorato de Cícero e

Sêneca quanto o otium modestum et suave de Petrarca são concebidos, no

Quattrocento e no Cinquecento, como objetos inalcançáveis.

Já nos primeiros decênios do século XVI, período da chamada calamità

italiana, superpõem-se à recorrente nostalgia de um equilíbrio inalcançável entre

ócio e negócio análises sobre a destruição da autonomia política e

recrudescimento dos poderes do acaso, da contingência e do inesperado,

associados à Fortuna. A perda, para alguns, deixa de ser intuída como nostalgia

de um desejo “metafísico” de unidade plena com o divino e passa a ser encarada

como embate contínuo contra forças imprevisíveis da realidade.

Em Maquiavel, o afastamento compulsório da vida pública, mudança de

afetos, distanciamento de tudo que dava sentido à sua existência, constitui o ponto

49 Cf. SCHIESARI, Juliana. The Gendering of Melancholia, p.111. 50 Cf. Idem. Ibid., p.116. “Knowledge, then, can never be the acquisition of ‘new’ insights; it can only be the remembering of what was once known but has been forgotten”. 51 Idem. Ibid., p.119. 52 Cf. Idem. Ibid., p. 127. “Not only is the state of lack associated with melancholia, an extreme state brought on by love, but – again as in the case of Socrates – those who are ‘melancholy by

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de partida para uma possível associação entre sua visão negativa do ócio, a

melancolia e a experiência do exílio. Nas margens do autógrafo do opúsculo Dello

ordinare lo stato di Firenze alle armi, o ex-secretário redige três palavras que

ficarão associadas por séculos à sua desventura: Post res perditas.53 De acordo

com Roberto Ridolfi, “amargo era o vexame, pungente a injustiça, depois de ter

servido à República com tamanho zelo e fidelidade, angustiada a visão do futuro,

insuportáveis os primeiros tempos de ócio para aquele homem de muitas

tarefas”.54 Se para Petrarca, Bruni e Ficino, o ócio, em suas diversas acepções,

representava a condição de possibilidade para a busca infinda de algo

simultaneamente perdido e inalcançável, em Maquiavel ele se revela um obstáculo

intransponível à verdadeira glória, aquela obtida no serviço da República. Trata-se

de uma perda irreparável, da impossibilidade de perseguir os objetivos

considerados por ele como dignos e honrosos.

A questão da vita otiosa, pouco tematizada pelo secretário nos opúsculos,

cartas e legações oficiais anteriores a 1512, adquire algum destaque nos escritos

posteriores ao exílio compulsório. Nos Discorsi, os ociosos são comparados aos

ímpios, covardes, inúteis, aos destruidores de religiões, inimigos das virtudes, à

corrupção de toda espécie, enfim.55 Ócio torna-se sinônimo de indolência,

efeminação, recusa das agruras da atividade militar, ambição desmedida por

riquezas e luxos e afastamento da verdadeira glória; ociosos são, por exemplo, os

gentiluomini pouco afeitos ao trabalho árduo e à virtù, indivíduos perigosos em

qualquer República por sua falta de apego ao bem comum.56 Ócio ambicioso,

associado por Maquiavel ao homem corrompido de seu tempo; juntamente com os

parcos conhecimento das histórias antigas e com a fraqueza oriunda dos valores

cristãos, o ócio forma a tríade decisiva que leva à corrupção dos costumes e

nature’ (and not just as a contingent or accidental effect of love) are said to be more prone to falling in love”. 53 Cf. RODOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, p.157. 54 Idem. 55 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 10, p.44. “São, ao contrário, infames e detestáveis os homens que destroem religiões, dissipam reinos e repúblicas, inimigos das virtù, das letras e de qualquer outra arte que confira utilidade e honra à espécie humana; tais são os ímpios, os violentos, os ignorantes, os incapazes, os ociosos, os covardes”. (grifo meu). 56 Idem. Ibid., I, 55, p.161. “E, para esclarecer o que é chamado de gentil-homem, digo que gentis-homens são chamados os que vivem ociosos das rendas de suas grandes posses, sem cuidado algum com o cultivo ou com qualquer outro trabalho necessário à subsistência. Esses são perniciosos em todas as repúblicas e em todas as províncias, porém mais perniciosos são aqueles que, além de terem as fortunas de que falamos, comandam em castelos e têm súditos que lhes obedecem” (grifos meus).

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proliferação dos vícios nas cidades italianas.57 Também em O Príncipe o ócio é

visto como condição propícia à degradação: “um príncipe sábio deve observar

comportamento semelhante e jamais permanecer ocioso nos tempos de paz”.58

Tanto nos Discorsi como no opúsculo sobre os principados, o ócio é tratado como

fator condicionante do desapego à antiquas virtus.

A vita otiosa a que fora compulsoriamente relegado a partir de setembro de

1512 configura-se para Maquiavel como uma existência indigna, distante do ideal

verdadeiro da participação política; seu próprio ócio enforma, nesse sentido, a

lente a partir da qual vislumbrará uma idéia de República perdida. Pode-se dizer

que tal República não se constitui, para Maquiavel, somente como aquela de seu

passado recente como segundo secretário. Existem dois níveis articulados de

perda: o primeiro, mais imediato, refere-se à reviravolta de sua vida após a

restauração dos Medici em 1512; o segundo nível corresponde a um ideal

republicano associado a um modelo de virtus visível tão somente nas histórias dos

antigos, em especial em Tito Lívio e Salústio. Semelhantes desqualificações do

ócio também se fazem presente em Guicciardini: na Oratio Consolatoria, escrita

em 1527, logo após seu afastamento da vida pública, a via estóica da resignação é

prontamente recusada, isto porque os bens da Fortuna são por ele considerados

valorosos.

O ócio é visto por Maquiavel e Guicciardini como algo abjeto, obstáculo

intransponível à realização de um certo modelo de vida, especialmente após o

exílio compulsório e distanciamento forçoso das atividades públicas. Ao mesmo

tempo – ironia trágica –, ele é a condição de possibilidade para que ambos

viessem a exercer plenamente o papel de homem de letras, produzindo alguns dos

escritos mais expressivos da tradição ocidental. Trata-se, porém, de uma lenta e

descontínua metamorfose, do ócio visto como algo indigno à aceitação do papel

de litterati, o que, especificamente no caso de Maquiavel, precisou envolver o

“cancelamento” de uma imagem-de-si cuidadosamente construída em longo e

sólido processo de formação de valores – no sentido proposto por Stephen

Greenblatt de uma ambigüidade constitutiva entre self-fashioning e self-

57 Idem. Ibid., I, proêmio, p.6. “E creio que isto provém não tanto da fraqueza à qual a atual religião conduziu o mundo, ou do mal que um ambicioso ócio fez a muitas regiões e cidades cristãs [...]” (grifo meu). 58 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XIV, p.72.

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cancellation, a modelagem de um papel público e o desejo, no caso de Maquiavel

a necessidade, de cancelar esta imagem e forjar uma outra.59

Em suas trocas epistolares com Francesco Vettori entre 1513 e 1515, post

res perditas, a autocomiseração, a melancolia e a tematização da perda associada

ao exílio forçado são constantemente abordadas por Maquiavel. Ao mesmo

tempo, ele vislumbra para si, em certos momentos, uma nova identidade, a do

homem de letras, a qual não se configurará plenamente antes dos primeiros anos

da década de 1520, e mesmo assim jamais chegará a constituir uma conquista

pacífica, um estado de tranqüilidade associado à recusa voluntária da participação

nos assuntos públicos. Também Guicciardini, na Oratio Consolatoria – composta

em 1527 no exílio compulsório, após o saque de Roma e a desgraça de Clemente

VII –, abordará as tópicas da perda e do afastamento do que até então lhe fora

mais importante. Cabe frisar, uma vez mais, que ócio literário e vita negotiosa não

eram considerados mutuamente excludentes segundo as diversas tradições antigas

ou mesmo renascentistas – embora nestas se possa atestar uma certa tensão no

tratamento do assunto. No período de chancelaria, Maquiavel redigiu os

Decennali, poema histórico; Guicciardini, nos intervalos de suas ocupações,

dedicou-se à composição de diversos tratados sobre o governo de Florença,

inclusive o Dialogo, erigido segundo os preceitos retóricos concernentes ao

gênero. O afastamento compulsório da vida pública, porém, fez com que o

caminho das letras se configurasse para ambos como um produto da necessidade,

do acaso, associado às mudanças de vento da Fortuna.

59 Cf. GREENBLATT, Stephen. Renaissance Self-fashioning. From More to Shakespeare, p.13.

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3.2 Ócio sem dignidade: o epistolário Maquiavel-Vettori e a Consolatoria de Guicciardini.

O gênero epistolar no Renascimento. A melancolia como tópica da inventio nas

cartas de Maquiavel a Vettori. O secretário diante da Fortuna. A recusa da via

estóica na Consolatoria de Guicciardini.

No dia 31 de janeiro de 1515, Maquiavel escreve a Francesco Vettori,

embaixador da República Florentina junto a Roma sob o papado de Leão X.

Mostra-se desanimado e abatido, como se tivesse definitivamente optado pela

resignação diante dos caprichos da Fortuna, a quem culpava pelas perdas e

intempéries de que fora vítima nos últimos anos. Procurando aparentar

acomodação aos novos tempos, vis e indignos segundo seus critérios, o ex-

secretário diz a Vettori que os grilhões impostos pela deusa lhe parecem agora

“doces, leves e pesados”. Após dois anos de afastamento dos afazeres da

chancelaria, ele afirma não imaginar outro cotidiano que não o seu. O embaixador

não responde a esta carta, e dessa maneira as trocas epistolares são suspensas por

um bom tempo, aparentemente até 1521, quando o ex-secretário envia ao então

gonfaloniere Vettori uma mensagem bastante curta e formal, retomando, sem o

mesmo afinco e regularidade, o antigo hábito da escrita mútua. O que teria levado

Vettori a não responder à carta do secretário e Maquiavel a não retomar o diálogo

epistolar?

Entre os anos de 1513 e 1515, os dois mantiveram uma extensa

correspondência, onde discorriam sobre os mais variados assuntos – da situação

política italiana às peripécias amorosas de que tomavam parte, passando pela sutil

ironia ou deslavada galhofa em relação a qualquer um que se lhes revelasse um

alvo propício.60 Já em 1508, muito antes da restauração dos Medici, Vettori e

Maquiavel estreitavam laços enquanto participavam conjuntamente de uma

importante missão junto ao Imperador Maximiliano, fomentando uma relação

fundada no respeito mútuo e gostos privados similares.61 Ainda assim, é preciso

notar, nunca deixou de haver entre eles um desnível hierárquico patente, resultado

60 Como percebe Maria Luisa Doglio, as cartas privadas eram, para Maquiavel, não apenas instrumentos de comunicação, mas também lugares específicos para construir uma imagem-de-si. Cf. DOGLIO, Maria Luisa. “Varietà e scrittura epistolare: le lettere del Machiavelli”, p. 336.

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das diferenças de extração familiar: não se poderia imaginar que Vettori, filho de

uma das mais importantes famílias florentina, e Maquiavel, membro de um clã

respeitável, porém apartado das grandes glórias, pudessem estabelecer entre si

relações absolutamente livre de protocolos, em acordo com a noção moderna de

intimidade.62 As cartas trocadas por ambos refratam a todo o momento esta

hierarquia, como se pode atestar pelo emprego específico de certos preceitos

concernentes ao tratamento com superiores, iguais ou inferiores, conforme

definidos em tratados destinados ao gênero epistolar.

Embora a chamada “nova epistolografia” do humanismo italiano tenha

flexibilizado as preceptivas medievais da ars dictaminis, recuperando o

entendimento ciceroniano da carta familiar como amicorum mutuus sermo,

diálogo entre amigos ausentes63, a atinência a ditames e modelos das autoridades

antigas e humanistas não fora de modo algum abandonado.64 Como afirma

Erasmo, em tratado sobre epistolografia datado do início do século XVI, escrever

uma carta equivalia a “sussurrar num canto com um amigo” sobre matérias as

mais diversas.65 O remetente deveria, inclusive, construir cuidadosamente seu

despojamento: “com efeito”, diz Erasmo, “o estilo epistolar deve ser simples e

mesmo bastante descuidado, no sentido de um descuido estudado”, de modo a

parecer “não trabalhado e quase improvisado e sem preparação”.66 Esta sentença

erasmiana pode ser tomada pelo analista contemporâneo das correspondências

renascentistas como um “sinal amarelo” em relação às possíveis familiaridades

entre o gênero epistolar quinhentista e a correspondência privada moderna:

enformando o aparente descuido de um diálogo entre amigos distantes, existe um

conjunto de silêncios eloqüentes, marcas da diligência negligente trabalhada com

61 Sobre esta missão, conferir: RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 119-29. 62 Como nota Maurizio Viroli, Maquiavel costumava se dizer pobre, o que não significa dizer que sua família não tivesse alguns bens e reputação estabelecida em Florença. O pai de Maquiavel, Bernardo, ainda que fosse um advogado de poucos recursos, era respeitado nos círculos eruditos da cidade de Florença, tendo sido representado inclusive como um dos personagens de um diálogo do humanista e chanceler da República Bartolomeo della Scala. Nesse sentido, diz o autor: “Ao definir-se como pobre, Maquiavel se colocava entre os que não pertenciam a grandes famílias e estavam, portanto, excluídos de serem eleitos aos cargos públicos ou de alcançar fortuna nos negócios”. Cf. VIROLI, Maurizio. O sorriso de Nicolau. História de Maquiavel, p.20. 63 Cf. FUMAROLI, Marc. “Genèse de l’épistolographie classique”, p.887. 64 Cf. PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros, p.24. 65 Cf. Idem. Ibid., p.25. 66 ERASMO, Desiderio. Brevíssima e muito resumida fórmula de elaboração epistolar, p.112.

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afinco, as quais não devem ser confundidas, como Erasmo mesmo advertia, com a

simples espontaneidade.67

Como afirma Richard Trexler, não havia “sinceridade sem forma e forma

sem sinceridade”, uma vez que as convenções marcavam a condição de

possibilidade da conversa civil e urbana entre homens públicos.68 Assim, muitos

dentre os humanistas dedicados à discussão do gênero epistolar, como Aeneas

Sylvius, Francesco Negri, Poliziano, Pietro Aretino, Erasmo e Justo Lípsio,

conquanto destacassem a diversidade de estilos e matérias no gênero epistolar – a

“infinidade das formas possíveis”, segundo definição de Erasmo69 –, prescreviam

um conjunto de regras visando marcadamente à afirmação do decoro letrado e

prudência do remetente. Justo Lípsio, em seu A arte de escrever cartas (1590),

resume a cinco os preceitos do sermo humilis epistolar quanto ao “modo de estilo

e de elocução adequado à carta”. Se, “quanto à matéria, é totalmente um assunto

de moderada prudência”70, no que diz respeito ao estilo o remetente deve

privilegiar a brevidade do relato, a clareza, simplicidade, elegância e o decoro.

“Como na conversação ou na narração”, afirma Lípsio, “na carta é odiosa a

tagarelice”.71 É preciso acima de tudo ater-se à justa medida:

No entanto, viso à medida apropriada à matéria. Se é uma carta Séria ou Erudita,

desejaria alguma coisa mais difusa e alguma gravidade das palavras poderia ser

acrescentada à própria matéria grave. Se é Familiar, condensa: e assuntos variados

e superficiais tu não deves sobrecarregar com um estilo rebuscado.72

Fundamental em uma carta, argumenta Lípsio, é “adequar a tua pessoa e o

teu estilo, visto que o ponto capital da arte é escrever convenientemente”,73 o que

leva à questão do decoro: saber o que convém dizer no momento certo para a

pessoa certa, evitando a desarmonia e o desequilíbrio do discurso, era decisivo

para a afirmação da prudência do remetente. “Por decoro”, afirma Lípsio,

67 Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., p.890. “Elle est d’autant plus souhaitable pour Erasme qu’il doit combattre un autre adversaire que les Artes dictaminis, et leur légalisme excessif ; c’est un certain spontanéisme qui abandonnerait l’art de la lettre privée, genre sans valeur littéraire, à une négligence sans diligence”. 68 TREXLER, Richard. Public life in Renaissance Florence, p.132. 69 Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., p.889. 70 LÍPSIO, Justo. A arte de escrever cartas, p.141. 71 Idem. Ibid., p.142. 72 Idem.

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“entendo aquilo que os gregos chamam adequação; encontra-se numa carta

quando alguma coisa está adequada e apropriadamente escrita”. Dois aspectos são

assim destacados: a pessoa e o assunto.

Quanto à pessoa, esta tem enfoque dúplice: com respeito a ti mesmo e a quem tu

escreves. Já o assunto, em qualquer caso, é simples: qualquer coisa deve concordar

com o conteúdo, e as vestes da sentença e frases devem ser adequadas às estruturas

do assunto.74

O decoro envolve sempre uma relação entre duas partes, pautada por

critérios de conveniência; assim, como afirma Marc Fumaroli, próprio do decoro é

que a posição social e a posição institucional determinem inteiramente o ritual de

trocas epistolares, marcando tanto o estilo quanto a matéria do discurso.75

Atualizam-se dessa maneira na correspondência diversos “níveis hierárquicos de

conveniência discursiva e extra-discursiva”, pautados pela harmonia do discurso e

pela prudência e agudeza das sentenças do remetente, atestadas e construídas

como adequação conveniente a certos lugares, conformes aos posicionamentos

hierárquicos do remetente e do destinatário.76

Pode-se dizer que o desnível hierárquico visível no epistolário Maquiavel-

Vettori constitui a própria condição de possibilidade da fala, pois delimita o

tratamento, a matéria e o estilo empregados por ambos. John Najemy, em estudo

cuidadoso, sustenta que “as cartas de Maquiavel e Vettori estavam imersas nas

tradições retóricas e literárias da epistolografia antiga e humanista”.77 A inventio

envolve, nesse sentido, a reprodução de tópicas retóricas em todas as etapas do

comércio epistolar, da saudação ao lacre; envolve também a seleção conveniente

do que dizer, no sentido de produzir no destinatário um afeto relativo à posição do

remetente.

Com base nestas questões, acredito ser possível pensar a melancolia na

correspondência ativa de Maquiavel como uma tópica, ou um conjunto de tópicas,

73 Idem. Ibid., p.143. 74 Idem. Ibid., pp.146-7. 75 Cf. FUMAROLI, Marc. op. cit., pp.887-8. “Il s’agissait d’un decorum officiel, mettant en rapport deux personnages dont le range social, la position institutionelle, determinait entièrement le rituel de l’échange”. 76 Cf. HANSEN, João Adolfo. “Introdução. Cartas de Antonio Vieira (1626-1697)”, p.37. 77 NAJEMY, John. Between Friends, p.23.

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de sua inventio epistolar. Empregada na escolha do que falar e de como falar, ela

ajuda a marcar uma posição verossímil sobre sua nova realidade, a vita otiosa

desonrada, sendo construída retoricamente como condição associada à perda da

vida pública e dependência em relação a outros homens e à Fortuna. Ela se

associa, portanto, à constatação de um hiato entre o desejo de autonomia e a

consciência da impossibilidade de controlar o próprio destino, em acordo com os

desdobramentos pensados por Ficino acerca do desejo por uma unidade

inalcançável e a perda decorrente de tal incompletude – no caso de Maquiavel,

não apenas a perda do cargo, mas a constatação do caráter inexeqüível de seu

ideal de República. Trata-se, aqui, não da identificação e diagnóstico de uma

compleição e temperamento correspondentes ao homem Maquiavel, mas da

análise da maneira particular com que este se vale de imagens amplamente

difundidas associadas à melancolia, como a incompletude, o abatimento, as

variações de humores, o sofrimento amoroso, etc.

A melancolia, como percebe Juliana Schiesari, possui um caráter

essencialmente teatral, estando associada à produção de uma representação de si78

– talvez por isso ela tenha sido tão bem sucedida no teatro elizabetano, ao ser

caracterizada em personagens como Jacques e Hamlet.79 Nesse sentido, pode-se

dizer que a seleção de tópicas ligadas à melancolia nas cartas de Maquiavel a

Vettori visa ao reforço da compaixão do destinatário, o que remete ao

posicionamento adotado pelo embaixador na primeira carta enviada por ele após

ter recebido notícias do secretário.

Diante daquele a quem passa a tratar como protetor, Maquiavel procura

demonstrar constrição e sofrimento, forjando em certos momentos um

distanciamento decoroso rejeitado por Vettori, que não deixa de explicitar seu

desconforto diante de tais situações. O embaixador procura, em inúmeras

situações, definir uma igualdade entre ambos, na forma de relação de amizade

pautada pelo critério ciceroniano da harmonização de preferências, gostos e

princípios, os quais tornam todo e qualquer sentido utilitário, como favores e

pedidos, amplamente descabidos.80 Dá-se, assim, um desnível de expectativas:

78 Cf. SCHIESARI, Juliana. op. cit., p. 236. 79 Cf. LYONS, Bridget Gellert. Voices of Melancholy, p.11. 80 Cf. CICERO, Marco Tulio. Da Amizade, IV, 15. “Entretanto, quando me vem à mente a amizade que nos unia, tal é a minha satisfação que julgo ter sido venturoso, uma vez que convivi com Cipião. Com ele dividi preocupações políticas e da vida privada; com ele atravessei tempos

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Maquiavel confia na proteção de Vettori; por essa razão, constrói em algumas de

suas cartas, especialmente naquelas em que solicita ao embaixador intervenção

junto aos Medici, um tratamento próprio ao comércio com superiores, ainda que

moderado e sutil. Vettori, por sua vez, conquanto tenha oferecido proteção na

primeira carta por ele remetida após a soltura do secretário, passa a rejeitar

sistematicamente tal posição, visando à construção de um outro decoro: o ânimo

cordial entre iguais, pautado pela agudeza dos conceitos e simplicidade casual.81

Esta situação implica uma recorrente tensão, relativa à dificuldade revelada por

ambos para situarem-se adequadamente diante do outro, de escolher a forma

propícia de reproduzir nas trocas epistolares alguma estabilidade. As cartas

alternam-se, assim, entre pedidos formais de Maquiavel, recusas de Vettori,

tratamento cordial e agudo quando falam de seus casos amorosos, gravidade

prudente na discussão das “coisas do mundo”, sem que, à diversidade das

matérias, correspondesse uma estabilidade no tratamento.

Tomando por base tal variedade, discutirei a seguir a construção da

melancolia nas cartas de Maquiavel endereçadas a Vettori, com atenção especial a

dois pontos: o debate sobre o papel da Fortuna nos assuntos humanos, associado à

problematização da perda do mundo público, e também à lenta e descontínua

produção, da parte do secretário, de um novo “lugar” para si, associado à escrita e

à prudência letrada.

Maquiavel e Vettori representavam alguns papéis no trato com o outro, o

que não implica dizer que entre eles houvesse necessariamente fingimento ou

ausência de sinceridade. Tais posições constituem condições da fala, e marcam a

possibilidade de situar-se em diversas dinâmicas sociais a partir de um lugar

específico. Precisamente por esta razão, o epistolário revela grande riqueza de

silêncios e recusas, na medida em que Vettori possui claramente um papel ativo

na correspondência, delimitando o material adequado e inadequado às cartas.82 O

de pa e guerra. E, o que constituiu a essência de toda amizade, nossas preferências, gostos e princípios se harmonizavam perfeitamente”. 81 Cf. HANSEN, João Adolfo. op. cit., p.47. Diz o autor, sobre Vieira: “Assim, quando escreve para superiores, aplica termos de submissão, reverência, humildade, obediência, súplica e obséquio. Dirigindo-se a iguais, trata-os com termos corteses e civis, correspondentes a um ânimo cordial”. 82 Cf. NAJEMY, John. op. cit., pp. 3-17. Diz o autor: “His letters of 1513 (not unlike The Prince, I will argue) are filled with swerves and inconsistencies, inventions and projections, leaps and

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que não implica dizer que eles não se tratassem em boa parte do tempo como

iguais, especialmente em duas situações: em assuntos de amor e luxúria, onde a

discussão era caracterizada pela agudeza das sentenças, bom-humor e leveza, e na

análise prudente das “coisas do mundo”, invariavelmente construída em estilo

grave.

Nas referidas situações de tensão, contudo, o desnível social se expunha em

toda a sua força, acrescido das recusas silenciosas de cada um de adotar o papel

que o outro lhe tentava atribuir. Em diversas ocasiões, Maquiavel tenta convencer

o embaixador a intervir em seu favor junto aos Medici, para que pudesse sair do

ostracismo, mas Vettori parece não lhe dar ouvidos nessas horas: freqüentemente

responde com evasivas, promessas incertas e longas digressões sobre a falta de

autonomia do homem diante dos caprichos da Fortuna. Nessas horas, o

argumento do humanista Leon Battista Alberti de que, no rio do destino, as

grandes famílias tendiam a naufragar mais facilmente que as “embarcações

pequenas”, quando expostas aos caprichos da Fortuna, deveria parecer ao ex-

secretário incrivelmente falacioso.83 Conquanto ambos tivessem servido fielmente

ao gonfaloniero Soderini no período republicano, os efeitos do retorno dos Medici

à cidade foram por eles sentidos de forma incrivelmente desigual: enquanto

Francesco Vettori fora nomeado embaixador da República Florentina em Roma84,

um cargo que, apesar da pouca importância estratégica – sua função era a de

representar os Medici de Florença junto aos Medici da cúria papal –, retinha alto

valor simbólico, ao ex-secretário coube a prisão, a tortura, e, ainda pior, a

invisibilidade, o ostracismo político, um resto de vida forçosamente apartado dos

anseios da glória e da honra pública.

Diante das insistências de Maquiavel – sendo a mais famosa o pedido para

que o embaixador oferecesse ao papa seu recém-redigido opúsculo sobre

principados –, e também porque fazia questão de frisar seu enfado diante da cena

política romana, Vettori tenta seguidamente evitar discussões sobre as “coisas do

mundo”. As contendas políticas revelavam-se cada vez menos agradáveis ao

embaixador, especialmente a partir do segundo semestre de 1514, embora

contradictions, whose cumulative effect conveys the impression if a good deal of doubt and hesitation in the face of certain dilemmas”, p.3. 83 Cf. ALBERTI, Leon Battista. “O Destino e a Fortuna”. In: BIGNOTTO, Newton. Origens do republicanismo moderno, p.298.

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tivessem sido bastante usuais ao longo do ano de 1513. Ao invés de discorrer

sobre assuntos políticos, Vettori prefere se ater às suas aventuras eróticas – a

ponto de afirmar, em carta datada de 16 de Janeiro de 1515, que o mundo nada

mais é que amor e luxúria.85 Ele demonstra entusiasmo especial com relatos bem-

humorados e maliciosos de Maquiavel; contudo, quando o assunto em questão é a

carreira política do secretário, e suas perspectivas de voltar a ocupar uma função

pública, Vettori opta pelo silêncio ou por evasivas.

Maquiavel procura, em suas cartas, corresponder aos anseios do

embaixador; recorrentemente, porém, destaca as amarguras do exílio. Também

insiste na eficácia e propriedade de seus conselhos, que a seu ver poderiam ser de

grande valia para os Medici naqueles dias turbulentos. Vez ou outra tenta

demonstrar suas habilidades analíticas, mas Vettori quase sempre dá pouco

destaque a estas digressões – discordando inclusive de muitas considerações e

pontos de vista do secretário.

Cerca de um mês antes da suspensão das trocas epistolares, em dezembro de

1514, Maquiavel envia ao embaixador um longo texto, onde comenta a grave

situação italiana e os perigos que o papa enfrentaria no jogo político europeu caso

optasse pela neutralidade entre França e Espanha. Em sua resposta ao documento,

Francesco Vettori – que havia ele mesmo solicitado ao amigo tal análise –, prefere

se ater a outras questões, ora muito gerais (como o imenso poder da Fortuna nas

coisas humanas), ora bastante pontuais (a resposta sobre um pequeno favor que o

secretário lhe solicitara, para que interviesse em Roma a favor dos negócios de um

certo Donato del Corno). Quanto à possibilidade de conseguir um posto político

para Maquiavel, o embaixador esquiva-se uma vez mais, agora com clareza

incomum, deixando evidente, de modo cordial, que preferia não fazer pedidos aos

seus protetores: “Parece-me que estou em boas graças com o papa e os outros

Medici, de quem todavia nada peço. Para me manter, gasto o salário que a lei me

atribui, e no fim do mês resta-me pouco” (grifo meu).86 Sobre o documento

84 Sobre a vida e obra de Vettori, conferir: JONES, Rosemary Devonshire. Francesco Vettori. Florentine Citizen and Medici Servant. 85 Carta de 16 de Janeiro de 1515. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere a Francesco Vettori e a Francesco Guicciardini, p.281. “Poi, pensando intra me medesimo che questo mondo non è altro che amore, o, per dir più chiaro, foia, mi ritenni”. 86 Carta de 15 de Dezembro de 1514. Ibid., p. 269. Trecho em latim, que é traduzido desta maneira: “Mi pare di essere in buona grazia presso il papa e gli altri Medici, cui pure non chiedo nulla. Per mantenermi, spendo il salario che la legge mi attribuisce, e a fine mese non me ne avanza nulla”.

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redigido pelo amigo, argumenta que ainda não pudera mostrá-lo às autoridades

competentes.87

Impaciente, Maquiavel não consegue aguardar a resposta de Vettori a seu

documento (resposta esta que o embaixador expedira no dia 15, ou seja, apenas

cinco dias após Maquiavel ter-lhe remetido o pequeno texto). Inicia uma carta

complementar, datada de 20 de dezembro de 1514, com as seguintes palavras:

“Magnífico embaixador. Como vós tivésseis me incitado, se eu vos aborreci com

meu escrito, diga: seja eu o culpado, que o requeri”.88 Trata-se de tópica muito

comum, não só em cartas familiares como também em dedicatórias e proêmios de

escritos dos mais diversos gêneros – o próprio Maquiavel se valerá dela nos

Discorsi. Em seguida, reitera os pontos de vista defendidos na carta anterior,

especialmente a crítica ao princípio da neutralidade, como se pretendesse

complementar e melhor fundamentar a argumentação anterior. Contudo, ao

receber, ainda naquele dia, a resposta de Vettori – logo após ter-lhe enviado a

carta onde reafirma seus pontos de vista –, Maquiavel se vê obrigado a mudar de

postura, isto porque, dessa vez, Vettori não adota o silêncio como estratégia: ao

afirmar que nada poderia solicitar junto aos Medici, o embaixador praticamente

enterra as expectativas políticas de Maquiavel de se fazer ver em Roma ou

Florença, isto porque Vettori representava, naqueles dias, a melhor conexão do

secretário com o mundo público. Diz Maquiavel, na segunda carta remetida a

Vettori no dia 20 de dezembro de 1514:

Eu vos agradeço novamente por todas as ações e por todos os pensamentos que

tenhais tido por amor a mim. Não vos prometo recompensas, porque já não creio

que possa fazer bem nem a mim nem aos outros. E se a fortuna tivesse desejado

que os Medici, ou em assuntos internos de Florença ou em política externa, ou em

assuntos deles, particulares ou públicos, tivessem me recomendado, eu estaria

contente. Todavia, eu ainda não me encontro completamente privado de

esperanças. E se isto tivesse acontecido e então eu não soubesse me manter, eu me

lamentaria; mas o que há de ser, será. E a cada dia reconheço que é verdade o que

disseste, sobre o que escreve Pontano: quando a fortuna nos leva a uma

87 Cf. Idem. “L’altra che mi risponde a’ quesiti vi feci, hebbi hieri. Anchora non l’ho monstra a ninsignor de’ Medici, el quali mi commisse ve li facessi: creddo che satisfaràm perché satisfà anchora a me: quando l’haró monstra, vi risponderò quello mi dirà”.

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determinada direção, coloca diante de nós uma vantagem imediata ou temor

imediato, ou ambos simultaneamente; acredito que estas duas possibilidades sejam

os maiores inimigos àquela posição que sustento em minha carta. (grifos meus).89

Aqui, Maquiavel acata um certo entendimento acerca do papel da Fortuna

na vida dos homens, associado ao humanista napolitano Giovanni Pontano, cujo

tratado Sulla Fortuna havia sido lido por Vettori, que o recomendara ao amigo em

carta anterior.90

Creia em mim – diz Vettori –, somos conduzidos pelo destino. Li nos últimos dias

o livro de Pontano, Sulla fortuna, recentemente publicado (...). Pontano demonstra

claramente que nada podem o ânimo, a prudência, a força ou qualquer outra

virtude, se faltar a fortuna. (Vettori).91

Ao acatar tal posição, Maquiavel muda seu ponto de vista usual acerca das

possibilidades do homem de lidar com as desventuras impostas pela deusa. Como

percebe Mario Santoro, o tratado do humanista Giovanni Pontano sobre a Fortuna

88 Carta do dia 20 de dezembro de 1514. Ibid., p.272 (primeira carta). “Magnifico oratore. Poiché voi mi havete messo in zurlo, se io vi straccheró con lo scrivere, dite: habbimi il danno, ché gli scrissi”. 89 Carta do dia 20 de dezembro de 1514 (segunda carta). Ibid., pp. 277-8: “Io vi ringrazio di nuovo di tutte l’opere et di tutti i pensieri che voi havete hauti per mio amore. Non ve ne prometto ricompenso, perché non credo mai più potere far bene né a me né ad altri. Et se la fortuna havesse voluto che i Medici, o in cosa di Firenze o di fuora, o in cose loro particolari o pubbliche, mi havessino una volta comandato, io sarei contento. Pure io non mi diffido ancora affatto. Et quando questo fussi, et io non mi sapessi mantenere, io mi dorrei di me; ma quello che ha ad esse, fia. Et conosco ogni dì, che gli è vero quello che voi dite, che scrive il Pontano: et quando la fortuna ci vuole cacciare, la ci mette innanzi o presente utilità o presente timore, o l’uno et l’altro insieme; le quali due cose credo che sieno le maggiori nimiche habbia quell’opinione che sieno le maggiori nimiche habbia quell’opinione che nelle mie lettere io ho difesa”. 90 Esta carta de Vettori é escrita parte em língua vulgar e parte em latim. O trecho em que fala do livro de Pontano é todo ele escrito em latim, talvez para diferenciar este tipo de reflexão dos outros tópicos abordados na carta. De todo modo, ele faz referência, logo no início, a uma carta que recebera de Maquiavel, toda ela redigida em latim. Juntamente com tal carta latina, datada de 1514, Maquiavel envia uma longa carta política, solicitada por Vettori, em que discute os possíveis posicionamentos do papa diante da conjuntura política do momento, especificamente o posicionamento em favor de Espanha ou França. Vale notar que a carta latina é dirigida diretamente ao embaixador, como se explicasse a ele as circunstâncias de envio, e outros pequenos detalhes. Já a carta política é toda ela redigida em língua vulgar. Sobre a questão da escrita em latim e em língua vulgar no Cinquecento, conferir: TROVATO, Paolo. Storia della língua italiana, pp. 19-35. 91 Carta do dia 15 de dezembro de 1514. MAQUIAVEL, Nicolau. op. cit., p.271. Tradução do trecho feita a partir da tradução italiana de Giorgio Inglese “Ma, credimi, siamo trasportati dal destino. Ho letto nei giorni scorsi il libro del Pontano, Sulla fortuna, recentemente stampato (...). Pontano dimostra chiaramente che niente può l’animo, o la prudenzam o la forza, o qualunque virtù, se manca la fortuna”.

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é profundamente marcado pelo desencanto decorrente da invasão francesa de

1494 na Península Itálica, o que incide na valorização do fortuito, imprevisível,

irracional e extraordinário – em suma, dos obstáculos ao domínio cognitivo da

realidade.92 Vale notar que, como napolitano, Pontano vivenciou tais agruras

muito de perto, pois o reino de Nápoles fora o palco mais sangrento das batalhas e

das disputas políticas dos últimos anos do século XV. Assim, ao acatar tais

ensinamentos na carta de 20 de dezembro de 1514, Maquiavel parece fazer uma

concessão à resignação, como se reconhecesse que, diante da Fortuna, só lhe

cabia baixar a cabeça – postura esta que Vettori vinha defendendo insistentemente

desde o início de 1513, e que Maquiavel sistematicamente rejeitava. “Já não creio

que possa fazer bem nem a mim nem aos outros”, diz: juntamente ao

reconhecimento do imenso poder da deusa, Maquiavel afirma a impotência de

seus atos.

Tal postura de resignação diante da Fortuna não se havia feito presente nas

cartas anteriores de Maquiavel a Vettori, redigidas entre março de 1513 e o fim de

1514. Tampouco se faz presente em O Príncipe, escrito na segunda metade de

1513. Se em dezembro de 1514 as esperanças de voltar à vita negotiosa pareciam

se diluir diante das constantes evasivas de seu amigo Francesco Vettori e da

recusa dos Medici de lhe atribuir alguma função, em março de 1513 o quondam

segretario – ex-secretário, como assina em algumas cartas – procurava construir

uma idéia de altivez, se não de desafio, diante dos caprichos da Fortuna.

No dia 13 de março de 1513, sete meses após a perda do cargo de segundo

secretário, Maquiavel escreve a Vettori para falar de sua disgrazia, os eventos

sucedidos como avalanche trágica desde setembro de 1512, quando as tropas do

rei espanhol Fernando de Aragão destituíram o gonfaloniere Piero Soderini e

reconduziram os Medici para dentro dos muros florentinos. Em suas palavras, “a

sorte fez de tudo para me perpetrar esta injúria”.93 Maquiavel refere-se, aqui, à sua

prisão e tortura, das quais fora salvo pelo indulto de Giovanni de’ Medici – que

92 Cf. SANTORO, Mario. Fortuna, ragione e prudenza nella civiltá letteraria del cinquecento, p.33. Diz o autor: “Ma ora il problema si presentava con una insospettata gravità e attualità: la presenza del fortuito, dell’imprevisto, dell’irrazionale, con la sperimentazione di quegli eventi straordinari, acquistava dimensioni così ampie, un peso così determinante che un’ indagine sulla ‘fortuna’ finiva per risolversi in un’ indagine sulla stessa realtà della condizione umana”. 93 Carta do dia 13 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p.99. “la sorte há fatto ogni cosa per farmi questa ingiuria”.

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após ser eleito papa (Leão X), mandou libertar todos os presos da cidade como

parte dos festejos comemorativos e demonstração de magnanimidade.

Já nesta primeira carta, Maquiavel inicia o movimento, recorrente nos dois

anos seguintes, de tentar se fazer ver junto à cúria romana. Embora soubesse da

gravidade de sua situação – um fiel servidor de Soderini, de família não muito

bem reputada, jamais seria visto com bons olhos pelos Medici –, Maquiavel

solicita a Vettori que o mantenha vivo junto à memória do papa.94 Em sua

resposta, Vettori desculpa-se por não haver intercedido quando teve notícias das

torturas sofridas por seu amigo: “dói-me não vos poder ter ajudado, como

merecíeis pela fé em mim depositada”.95 Em seguida procura alentar aquele a

quem costuma chamar na salutatio de suas cartas de compare mio charo –

enquanto Maquiavel refere-se a Vettori como Magnifico viro Francisco Victorio

oratori florentino apud Summum Ponteficem –, ao dizer que, tão logo a situação

se acalme, Maquiavel poderá ir a Roma visitá-lo, e assim estar diante do papa e de

tantas outras figuras de destaque. Em sua análise desta carta, John Najemy

argumenta que Vettori constrói uma idéia de compaixão, como se o embaixador

quisesse se desculpar e se justificar por nada ter feito no sentido de ajudar o

secretário quando este se encontrava em apuros.96 De fato, logo no início de sua

carta, Vettori se identifica com as dores e sofrimentos do amigo, empregando

inclusive a palavra “tortura”, evitada por Maquiavel.97 Como afirma Najemy, “em

uma curiosa reversão, praticamente parece que Vettori era quem estava em

necessidade, almejando consolação”.98 Vettori expressa seu amor por aquele a

quem toma para si como protegido, convidando-o para passar alguns dias em

94 Cf. Ibid., pp. 99-100. “Tenemi, se è possibile, in memoria di Nostro Signore, che, se possibile fosse, mi cominciasse a adoperare, o lui o suoi, a qualche cosa, perché io crederrei fare honore a voi et utile a me”. 95 Carta do dia 15 de março de 1513. Ibid., p. 102. “Duolmi non vi havere potuto aiutare, chome meritava la fede havevi in me”. 96 Cf. NAJEMY, John. op. cit., pp. 96-7. 97 Carta de 15 de março de 1513. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 102. “Compare mio charo. Da otto mesi in qua io ho avuto e maggiori dolori che io havessi mai in tempo di mia vita, e di quelli anchora che voi non sapete; nondimeno non ho avuto il maggiore, che quando intexi voi essere preso, perché subito iudicai che sanza errore o causa havessi havere tortura, chome è riuscito”. 98 Cf. NAJEMY, John. op. cit., p.97. “In a curious reversal, it almost seems that Vettori was the one in need of and seeking consolation”.

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Roma, tão logo a situação se torne favorável a ambos, de modo que Maquiavel

pudesse restabelecer seus antigos contatos e solicitar favores aos Medici.99

Em sua resposta, datada de 18 de março de 1513, Maquiavel demonstra

alegria diante do convite: “Magnífico embaixador. Vossa tão amorosa carta me

fez esquecer todos os afãs passados; e, conquanto estivesse mais que certo do

amor que tendes por mim, esta carta me foi gratíssima”.100 Logo na abertura,

Maquiavel constrói a condição de protegido, a que retomará constantemente, para

desconforto de Vettori. Por reconhecer no embaixador a figura de um benfeitor, o

secretário vislumbra nesta relação um possível caminho para inserir-se novamente

na vita negotiosa.

Olhando adiante, Maquiavel consegue mirar para o seu passado recente com

algum distanciamento, a ponto de recomendar a Vettori que extraísse lições das

vicissitudes por ele enfrentadas: “quanto a virar o rosto para a Fortuna, quero que

tenhais destes meus afãs este prazer, que eu o suportei tão francamente, que estou

contente comigo, e que pareço ser mais do que acreditei ser”.101 Maquiavel quer

se mostrar à altura de um recomeço, marcando a própria altivez e capacidade de

superação, como se dissesse ao embaixador estar pronto para esquecer as

desventuras, sem ressentimento algum. Parece-me que a idéia chave, neste trecho,

é a de “virar o rosto para a Fortuna”, não se deixar abater, mostrar-se vigoroso

mesmo diante de um grande tropeço, certamente percebido por ele como injustiça

dos céus. Tal postura diante da Fortuna será bastante recorrente nas cartas

seguintes de Maquiavel, como um ideal regulatório de comportamento diante do

imponderável: o chamado a uma virtù fundada na força e na virilidade, capaz,

senão de controlar a deusa plenamente, ao menos de amenizar os efeitos das suas

ações, precisamente porque, além de não se deixar abater diante da deusa,

Maquiavel procuraria dali em diante desafiá-la, mostrando-se merecedor de seus

favores – como percebe Hanna Pitkin, embora a personificação da Fortuna como

99 É o que fica evidente na seguinte passagem da carta: “Scriverrovi, quando harò l’animo posato, se ci ho a stare, di che dubito, perchè credo saranno huomini d’altra qualità non sono io che ci vorranno stare, e io harò patientia a tutto”. Carta de 15 de março de 1513. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p.102. 100 Carta de 18 de março de 1513. Ibid., p. 76. “Magnifico oratore. La vostra lettera tanto amorevole mi há fatto sdimenticare tutti gli affani passati; et, benché io fussi più che certo dell’amore che mi portate, questa lettera mi è suta gratissima”. 101 Carta de 18 de março de 1513. Ibid., p. 104. “Et quanto a volgere il viso alla Fortuna, voglio che habbiate di questi miei affani questo piacere, che gli ho portati tanto francamente, che io stesso me ne voglio bene, et parmi essere da più che non credetti”.

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mulher fosse bastante antiga, Maquiavel foi o primeiro a sugerir a idéia da

conquista sexual da deusa, através da ação viril e do desafio explícito.102

É certo que tal postura não lhe poderia garantir a plena certeza do sucesso:

“e se parecer [adequado] a estes nossos patrões não me deixar por terra, eu os

estimarei muito, e creio conduzir-me de modo que também eles terão razões para

querer-me bem; e se não os parecer [adequado], viverei como vim ao mundo

[viverò come io ci venni], eu que nasci pobre, e aprendi antes a lutar que a gozar a

vida”.103 Segundo Najemy, trata-se aqui da afirmação de um certo “estoicismo” de

Maquiavel, da possível aceitação resignada de tudo o que possa vir a acontecer.104

Penso, contrariamente, que se trata precisamente de uma recusa da via estóica, na

medida em que o ideal almejado é o da participação, o da inserção. Maquiavel

tenta se posicionar diante dos seus próprios reveses, e procura também fazer com

que, através do exemplo de sua conduta, Vettori volte a acreditar na possibilidade

de restabelecer o controle dos efeitos das próprias ações, num processo de

reaquisição da autonomia perdida. Ele reconhece, no entanto, o imenso poder da

Fortuna, ao aceitar que suas próprias forças já não são suficientes para conseguir

uma nova inserção, por menor que seja.

Em carta datada de 30 de março de 1513, Francesco Vettori procura não

iludir ao amigo, ao demonstrar que suas possibilidades em Roma eram de fato

muito reduzidas; como se, diante da carta do dia 18 de março escrita pelo

secretário, em que este defende a atitude de mostrar a face para a Fortuna, o

embaixador procurasse alertá-lo sobre a necessidade de agir como muita cautela.

Vettori reitera sua posição valendo-se da mesma imagem empregada

anteriormente por Maquiavel:

Eu sou daqueles que, ainda que vos exortasse a virar o rosto à fortuna, entretanto

persuado mais propriamente os outros que a mim mesmo, porque na fortuna

102 Cf. PITKIN, Hanna Fenichel. Fortune is a woman, p. 144. “Specifically, although the prsonification of fortune as female is very old, Machiavelli appears to be the first to use that metaphor as a way of suggesting the sexual conquest of fortune, introducing into the realm of politics and history concerns about manliness, effeminacy, and sexual prowess”. 103 Carta de 18 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 104. “et se parrà a questi patroni nostri non mi lasciare in terra, io l’harò caro, et crederrò portarmi in modo che gli haranno ancora loro cagione di haverlo per bene; quando e’ non paia, io mi viverò come io ci venni, che nacqui povero, et imparai prima a stentare che a godere”. 104 Cf. NAJEMY, John. op. cit., p.98.

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próspera não me elevo, mas na adversa me acovardo e de tudo temo; e se vos

falasse acreditaria ser possível fazer-vos capaz de temer com razão.105

Vettori recusa nesta carta a possibilidade de estabelecer um ragionamento

seguro sobre as “coisas do mundo”. Tal recusa da parte do embaixador deve-se à

crença, revelada inclusive em momentos anteriores106, de que todos os efeitos das

ações políticas estariam sujeitos ao mero acaso.107 Para o embaixador, quando

falta a sorte, ou quando a Fortuna se mostra desfavorável, o melhor a fazer é se

acomodar, deixar os ventos mudarem de direção, para então tentar se reerguer,

mais ou menos como procurava agir em sua estadia junto à cúria papal.108

Maquiavel, por sua vez, parece não aceitar esta postura resignada. Em sua

resposta, defende a possibilidade de elaborar ragionamenti seguros sobre a

política. Como se, diante da inexorabilidade dos fatos, das imposições do azar e

do acaso, a ele só restasse a reflexão detida e acurada dos acontecimentos

políticos, como única ligação com um ideal de vida que se perdia. Diz Maquiavel

em famoso trecho da carta de 9 de abril de 1513:

Sem dúvida, se vos pudesse falar, não poderia evitar preencher vossa cabeça com

fantasias [castellucci], porque a Fortuna fez com que, não sabendo discorrer

[ragionare] nem da arte da seda e da arte da lã, nem dos lucros e perdas, me

conviesse discorrer sobre o stato [e’ mi conviene ragionare dello stato], e necessito

ou calar-me ou discorrer [ragionare] sobre isto.109

Ao invés da resignação, o desafio. Na segunda metade deste mesmo ano de

1513, Maquiavel se empenhará na redação de seu opúsculo sobre os principados.

105 Carta de 30 de março de 1513. Ibid., p. 107.”Io sono di quelli che, anchora che vi chonfortassi a volgere il viso alla fortuna, nondimeno lo so meglo persuadere a altri che a me medesimo, perché nella prospera fortuna non mi lievo, ma nell’ adversa mi avilisco e d’ ogni chosa dubito; e se vi parlassi crederrei farvi chapace dubitare con ragione”. 106 Refiro-me às divergências entre Vettori e Maquiavel na missão de 1508. Cf. NAJEMY, John. op. cit., p. 81. 107 Cf. Carta de 30 de março de 1513. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p. 107. “E chosì m’ho acconcio questo Grillo nel cervello; e, chome vi ho decto qualche altra volta, io non voglo andare più discorrendo con ragione, perché spesso mi son trovato ingannato...”. 108 Cf. Ibid., p. 108. “Si che, Niccolò mio, vedete quello fa la buona sorte, della quale chi manca, chome fo io, bisogna facci poche imprese, o per meglio dire nessuna...”. 109 Carta de 9 de abril de 1513. Ibid., p.110. “Pure, se io vi potessi parlare, non potre’ fare che io non vi empiessi il capo di castellucci, perché la Fortuna ha fatto ché, non sapendo ragionare né dell’arte della seta et dell’arte della lana, né de’ guadagni né delle perdite, e’ mi conviene ragionare dello stato, et mi bisogna o botarmi di stare cheto, o ragionare di questo”.

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Diante dos reveses de sua Fortuna, procurará desafiá-la com sua capacidade de

ragionamento, precisamente aquela aptidão de discorrer sobre os assuntos da

política abdicada por Vettori há muito. Maquiavel recusa a acomodação do

embaixador, até mesmo porque, diante das poucas possibilidades que se lhe

abriam, as possíveis perdas não pareciam de fato tão grandes. Abrir mão de sua

arte implicaria o abandono do seu maior atributo natural, a prudência, de que

tanto se vangloriara em sua carreira como secretário da República.

Se por um lado o apego ao ragionamento pode ser lido como uma tentativa

de tornar-se novamente visível, os príncipes virtuosos – no sentido já discutido

anteriormente de uma qualidade de flexibilização moral que leva o príncipe a não

operar com regras fixas e definidas de antemão110 – esboçados em seu tratado

podem ser descrito como homens capazes, por aptidão própria, de superar

inúmeras adversidades. Esperava-se destes homens, fundamentalmente, que eles

pudessem enfrentar a deusa caprichosa, domando-a com virilidade, impondo-se

bravamente e mostrando-lhe a face, desafiando-a até que ela cedesse às

investidas.111 É o que defende em famosa passagem de O Príncipe:

Estou convencido do seguinte: é melhor ser impetuoso do que tímido, porque a

fortuna é mulher, e é necessário, para dominá-la, bater-lhe e contrariá-la. Vê-se que

ela se deixa vencer mais pelos que agem assim do que pelos que agem friamente; e,

como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos tímidos, mais ferozes

e a dominam com maior audácia.112

Maquiavel projeta seu príncipe virtuoso como alguém que desafia a

Fortuna, revelando-se capaz de lhe mostrar a face, enfrentando-a sem temor. Mas

poucos podem desafiá-la: diferentemente de Alberti, que afirmava que os grandes

tinham mais chances de perecer diante dos caprichos da deusa, para Maquiavel

são precisamente os mais poderosos, como os Medici, aqueles habilitados a reunir

as características necessárias para tal enfrentamento. Quanto a ele, que “nasceu

pobre, e aprendeu antes a lutar que a gozar a vida”, é reservado um papel mais

detido, porém não menos significativo: o de conselheiro dos príncipes, se não

110 Para esta discussão, voltar ao capítulo 1, item 4. 111 Cf. JASMIN, Marcelo. “Política e historiografia no Renascimento Italiano: o caso de Maquiavel”. In: Modernas Tradições, p.185. 112 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe, XXV, p.122.

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diretamente, ao menos por meio de suas habilidades calculativas e oratórias,

apresentadas na forma de um opúsculo sobre os principados.

Ao buscar alguém que se mostre apto a unir os diversos principados e

repúblicas da Itália em uma única força capaz de enfrentar o poderio de França e

Espanha, Maquiavel projeta seu desejo viril de domínio sobre o fortuito. Tal

desejo pode ser interpretado como a construção de um modelo antagônico em

relação à sua própria realidade, sua experiência do ócio. Nas missivas remetidas a

Vettori na segunda metade de 1513, pode-se notar um leve arrefecimento de suas

crenças em uma nova inserção no mundo público, após o impulso inicial de

desafiar a Fortuna. Na famosa carta de 10 de dezembro de 1513, Maquiavel

constrói um “retrato” de sua vida em Sant’Andrea, no sentido de mais uma vez

despertar a compaixão do embaixador. Ele assegura viver isolado e apartado,

cuidando da casa e da alimentação familiar, jogando com bêbados para preencher

suas tardes. Na companhia de “piolhos”, como se refere aos camponeses com os

quais se relaciona, o secretário dizia limpar o cérebro do mofo, esquecendo por

alguns instantes da malignità de sua sorte. Como nota Maurizio Viroli, ele chega a

inventar uma palavra para descrever a situação em que se encontrava:

m’ingaglioffo, algo como “acanalho-me”.113 Sente-se tão degradado que só lhe

restava esperar a piedade da deusa (per vedere se la se ne vergognassi).114 Diz ele:

De manhã me levanto com a aurora, e me vou por uma das áreas que mandei

desmatar em meu bosque (...). Dirijo-me depois à taverna, junto à estrada: falo com

os que passam, pergunto pelas novidades em seus povoados, ouço diversas coisas e

observo os diversos gostos e as diversas fantasias das pessoas (...). Depois de

comer, volto à taverna onde habitualmente encontro o taverneiro, o açougueiro, um

moleiro e dois padeiros. Com eles me acanalho [m’ingaglioffo] o restante do dia

jogando cricca e trique-traque, e depois vêm mil discussões e infinitos desaforos

com palavras injuriosas; e na maior parte do tempo briga-se por um vintém, e nossa

gritaria se ouve nada menos que em San Cassiano. Assim, em meio a esses piolhos,

113 Cf. VIROLI, Maurizio. O sorriso de Nicolau, p.180. Diz o autor: “Para tentar descrever como se sentia, inventou um verbo – m’ingaglioffo –, que significava ‘acanalhar-se, afundar na vulgaridade, aturdir-se’. Entrega-se a essas atividades para desafogar a raiva que sente por dentro, pela sua condição atual”. 114 Carta de 10 de Dezembro de 1513, p.194. “Con chesti io m’ingaglioffo per tutto dì giucando a criccha, a trische-tach et poi, dove nascono mille contese et infiniti dispetti di parole injuriose, et il più delle volte si combatte un quattrino et siamo sentiti nondimanco gridare da San Casciano. Così

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extraio meu cérebro do mofo, e alivio a malvadez desta minha sorte, contente que

ela me tenha rebaixado desta maneira porque um dia poderá se envergonhar de ter

feito isso.

Logo a seguir, porém, Maquiavel menciona uma súbita mudança de ânimo,

típica do temperamento melancólico, para ilustrar os altos e baixos dos seus dias.

Após deixar a taverna, retira-se para a casa; tranca-se no quarto e durante quatro

horas se esquece do mundo, estabelecendo contato direto com os autores

antigos115:

Quando a noite vem, volto para casa e entro em meu escritório e, na entrada, tiro a

roupa cotidiana cheia de lama e sujeira e ponho roupas simples e adequadas.

Vestido convenientemente, entro em antigas cortes de antigos homens, onde,

recebido amavelmente, me nutro do alimento que é só meu e para o qual nasci;

onde não me envergonho de falar com eles, de perguntar a respeito das razões de

suas ações, e eles, por bondade, me respondem. Não sinto, por quatro horas, tédio

algum, esqueço toda preocupação, não temo a pobreza, não fico acabrunhado com

a morte: transporto-me inteiramente para eles. E como diz Dante que não se faz

ciência sem reter o que se entendeu, anotei o que pela conversação deles retive ser

essencial e compus De Principatibus [...].116

Se, por um lado, não se pode tomar a representação construída na carta de

10 de dezembro de 1513 como um retrato fiel do cotidiano de Maquiavel em

Sant’Andrea in Percussina, ou mesmo de seu “estado de espírito”, ela pode

auxiliar na compreensão do processo de produção de O Príncipe.117 Na carta,

Maquiavel vislumbra uma imagem que lhe parece conveniente, a do diálogo

literário com grandes homens da Antiguidade; ao mesmo tempo, tal imagem não é

rinvolto entra questi pidocchi traggo el cervello di muffa, et sfogo questa maignità di questa mia sorte, sendo contento mi calpesti per questa via, per vedere se la se ne vergognassi”. 115 Sobre o colóquio com os antigos, afirma Giulio Ferroni: “Si deve però notare che, anche se carico di una cosí immediata risultanza pratica e política, quel colloquio con gli antichi si insrisce in uno spazio ‘a parte’, che sembra sganciato da ogni legame con la vita quotidiana, il mondo basso che ha reso la veste ‘piena di fango et di loto’, ma la stessa urgenza della realtà esterna, la stessa dimensione dell’essere pratico, la stessa aleatorità della vita, la stessa sospensione ed incerteza, la stessa minacciosa varietà che regola l’accadere umano, il regno della fortuna, la scena del vivere (che è anche la scena della politica”. FERRONI, Giulio. “La struttura epistolare come contradizione”, p.267. 116 Emprego aqui a tradução presente em: RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 175-6. 117 Sobre esta questão, conferir: NAJEMY, John. op. cit., pp. 176-214.

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associada, por ele, à dignidade do ócio filosófico, mas à desonra de uma vida

apartada das glórias públicas. Escrever um espelho de príncipes é obra para

homens de letras; orientar um príncipe, tarefa para conselheiros prudentes.

Maquiavel acaba se colocando entre os dois extremos, ao compor um discurso em

acordo com as normas literárias vigentes que pudesse ser capaz de aconselhar

efetivamente, não segundo os ditames da filosofia moral antiga ou humanista, mas

em acordo com as lições extraídas do próprio movimento das coisas, dos efeitos

produzidos por elas, da experiência na condução e deliberação acerca dos assuntos

concernentes à res publica, da leitura cuidadosa das histórias antigas e modernas;

um discurso que pudesse ser um produto singular da prudência de alguém apto a

discorrer com clareza e precisão sobre a arte do estado; finamente, um discurso

que pudesse ser persuasivo ao ponto de reverter ânimos contrários e retirá-lo do

ócio forçado.

Não há propriamente na carta de 10 de dezembro de 1513 a fixação de um

lugar valoroso em si mesmo para o homem de letras; pode-se, contudo, perceber a

delineação de uma possibilidade ainda incerta, associada ao comércio com os

homens antigos, à composição de textos e à percepção da dignidade de tal relação.

Maquiavel passa, na carta, da resignação à ira, se lamenta, ri de seu estado e ao

fim restabelece a própria honra, ao descrever sua ocupação literária.

No fim de 1514, um ano após ter redigido O Príncipe, Maquiavel não

avistava muitas alternativas para si. Percebendo que Vettori provavelmente jamais

interviria em seu favor, o secretário passa a dar razão àqueles que, como Pontano,

afirmavam a incapacidade humana diante da Fortuna. Neste horizonte pleno de

perspectivas sombrias, o normalmente espirituoso Maquiavel parece se curvar

diante do imponderável. Em missiva datada de 31 de Janeiro de 1515, o secretário

apresenta-se como um homem triste, padecendo de um mal que sequer

considerava capaz de explicar. Nesta carta, a última que troca com Vettori antes

de 1521, ou ao menos a última de que se tem registro, Maquiavel vale-se da tópica

do sofrimento amoroso, como faz notar no soneto de abertura:

Haveva tentato il giovinetto Archiere Tinha tentado o jovem arqueiro già molte volte vulnerarmi il petto já muitas vezes vulnerar-me o peito con le saette sue, ché del dispetto com sua flecha, que do despeito

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et del danno d’altrui prende piacere e do dano dos outros tem seu prazer. et benché fosson quelle acute et fiere, e embora sua flecha fosse afiada e brutal, ch’uno adamante non hare’ lor retto, que nem mesmo um diamante a ela

resistisse non di manco trovâr sì forte obbiecto ainda agora encontrou um objeto tão forte che stimò poco tutto il lor potere. e não tomou satisfação do seu poder

Onde che quel si sdegno et furor carco, Donde para fazer pesar seu desdém e furor, per dimostrar(e) la sua alta excellenza, e para demonstrar a sua grande excelência, mutò pharetra, mutò strale, er arco; mudou de aljava, flecha e arco; et trassene uno con tanta violenza, e deixou-se voar com tanta violência ch’anchor(a) delle ferite mi rammarco, que ainda me entristeço por essa ferida et confesso et conosco sua potenza e confesso e conheço sua potência

O jovem arqueiro a que Maquiavel se refere é naturalmente o Cupido. Não

só a Fortuna impõe seus desígnios com veemência: todas as forças da natureza

parecem, de acordo com o ex-secretário, conspirar para “acorrentá-lo” e tolher sua

capacidade de ação, a ponto de Maquiavel escrever, em certo trecho da carta, que

prefere esta situação a uma possível mudança da sorte:

E estes grilhões são tão fortes que eu me encontro totalmente desesperado da

liberdade, e nem posso pensar como seria se me desacorrentasse; e quando por

sorte ou outra manobra humana algum caminho se abrisse para que eu saísse,

talvez não quisesse segui-lo, pois que agora me parecem doces, leves e pesados

esses grilhões, e fazem tal mistura de modo que julgo não mais ser possível viver

contente sem este tipo de vida.118

Aqui, Maquiavel procura se apresentar como um ser fraco, carente de

autonomia, resignado diante do imponderável e abatido, não só pelo amor não

correspondido – tópica convencional da literatura medieval e renascentista, não

necessariamente um sentimento “sincero”119 – mas também pelos infortúnios dos

118 Carta de 31 de janeiro de 1515. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere..., p.283. Diz Maquiavel: “Et sono, quelle che mi ha messo, sì forte catene, che io sono al tutto disperato della libertà né posso pensare via come io habbia a scatenarmi; et quando pure la sorte o altro aggiramento humano mi aprisse qualche cammino ad uscirmene, et per avventura non vorrei entrarvi, tanto mi paiono hor dolci, hor leggieri, hor gravi quelle catene, et fanno un mescolo di sorte, che io giudico non potere vivere contento senza quella qualità di vita”. 119 A frase de Frank Kermode acerca dos versos de Romeu por Rosalina, na abertura de Romeu e Julieta, aplica-se bem ao soneto de Maquiavel: “Rhyming whenever he feels like it, the rhymes

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últimos anos. Porém, ao mesmo tempo em que se apresenta como melancólico

sintomático – talvez para tentar, mais uma vez, ganhar a compaixão do

embaixador –, ele emprega um último artifício. Maquiavel revela ter notícias de

que o irmão de Francesco Vettori, Paolo, estava prestes a ser nomeado para a

senhoria de Parma, Piacenza, Modena e Reggio. Tendo ciência destes fatos, o

secretário se apressa em dar conselhos ao embaixador sobre a manutenção de

principados novos, como se pretendesse aproveitar a oportunidade para mostrar,

uma vez mais, o valor e a pertinência de seus conhecimentos práticos. Nada pede;

apenas discorre longamente sobre ações e medidas capazes de gerar resultados

eficientes.120 Vettori, porém, perdera completamente o gosto pelas discussões

políticas, pelo ragionamento dello stato; com seus pedidos e cobranças,

Maquiavel tornava-se um peso para o desiludido embaixador. A carta do ex-

secretário permanecerá sem resposta, e, ao que tudo indica, eles só voltarão a se

escrever em 1521.121

Alguns meses antes de retomar, de modo formal, a correspondência com

Francesco Vettori, Maquiavel inicia um estimulante diálogo epistolar com

Francesco Guicciardini; em determinado momento, chegam a trocar quatro cartas

no espaço de um único dia, quando o ex-secretário se encontrava em uma pequena

missão oficial a serviço dos Medici.122 Guicciardini, quatorze anos mais novo,

being more or less as conventional as his suffering, Romeo brings the scene to an end with an account of the unseducible Rosaline”. KERMODE, Frank. Shakespeare’s language, p.54. 120 Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Lettere... p.284: “Chi vedesse le nostre lettere, honorando compare, et vedesse le diversità di quelle, si maraviglierebbe assai, perché gli parrebbe hora che noi fussimo huomini gravi, tutti vòlti a cose grandi, et che ne’ petti nostri non potesse cascare alcuno pensiere che non havesse in sé honestà et grandezza. Però dipoi, volttando carta, gli parrebbe quelli noi medesimi essere leggieri, inconstanti, lascivi, vòlti a cose vane”. 121 Existe a possibilidade de que tenham trocado cartas nestes seis anos, e estas tenham sido perdidas. Trata-se, porém, de hipótese pouco provável, por duas razões: em primeiro lugar, Maquiavel costumava guardar todas as cartas que Vettori lhe enviava. Em segundo lugar, a carta de 1521 enviada por Maquiavel a Vettori, que parece retomar o diálogo epistolar interrompido seis anos antes, apresenta um tom bastante formal; Vettori é chamado de “signor gonfaloniere”, e Maquiavel assina como “obligatissimus Niccolò Machiavegli”. Sobre a preservação das cartas de Vettori por Maquiavel, afirma John NAJEMY: “In sum, the evidence from the Apografo makes it seem likely that Machiavelli did keep a nearly complete file of the letters that he and Vettori wrote to each other over these years”. op. cit., p.13. 122 Sobre o epistolário Maquiavel-Guicciardini, conferir: MASI, Giorgio. “Saper ‘ragionare di questo mondo’. Il carteggio fra Machiavelli e Guicciardini”.

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porém membro de família respeitabilíssima, ocupava naquele ano de 1521 um

importante cargo: o governo da província de Modena.123

Guicciardini tinha por costume redigir pequenos textos políticos nos

intervalos de otia inter negotia, como um hábito de auto-reflexão; em tais escritos,

invariavelmente discorria sobre a reforma do reggimento florentino. Em especial,

procurava refletir sobre a melhor maneira de organizar as magistraturas de sua

cidade natal, de modo a preservar os valores do bom governo, mesmo diante do

predomínio de uma só família.124 No Dialogo del Reggimento di Firenze, redigido

entre 1521 e 1526 nos poucos intervalos de afastamento das coisas públicas,

Guicciardini procura recuperar um debate que teria de fato ocorrido no ano de

1494, emulando o De Oratore de Cícero, modelo recorrente entre os autores

renascentistas de textos do gênero diálogo.125 No texto de Guicciardini, os

interlocutores abordam as vicissitudes concernentes à reorganização republicana

da cidade, diante da fuga de Piero de’ Medici e conseqüente retorno de Florença

ao regime republicano, após sessenta anos de domínio familiar; sua análise,

porém, voltava-se também para o presente, e tinha como horizonte uma possível

queda, nos anos subseqüentes, do regime mediceu.126 Em um primeiro momento,

o autor considera pouco provável que Florença pudesse sediar um regime livre

rapidamente; entretanto, “os accidenti que ocorrem diariamente nas coisas

humanas” poderiam, segundo Guicciardini, fazer com que “da mesma forma que

do stato popular originou-se o stato de um, possa com a mesma facilidade voltar

do stato de um à liberdade primeira” (grifos meus).127

Se Maquiavel ainda possuía razões de sobra para se queixar da Fortuna ao

longo da década de 1520 – e decerto as teria até o momento de sua morte –, o

mesmo não se pode dizer do governador: desde que iniciara suas atividades

políticas em 1512, sua carreira fora marcada por sucessos recorrentes. Ao

123 Não se pode garantir que Maquiavel e Guicciardini não trocaram cartas em período anterior. Sabe-se que Maquiavel possuía relações com o irmão de Francesco Guicciardini, Luigi. De todo modo, o diálogo é intensificado neste período. 124 Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. A República bem ordenada..., pp. 10-24. 125 Sobre o gênero diálogo, conferir: MARSH, David. The Quattrocento Dialogue. 126 Como afirma Newton Bignotto, “a escolha da forma dialogal é exigência de um pensamento que não hesita em enfrentar suas contradições”. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e realismo, p.134. 127 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p. 14. “se bene per la autorità che hanno e’ Medici in Firenze, e per la potenza grandissima del pontefice paia perduta la libertà di quella, nondimeno per gli accidenti che tuttodì portono seco le cose umane, può a ogn’ora

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mobilizar no Dialogo o princípio de indeterminação associado aos accidenti, e

conseqüentemente à Fortuna, Guicciardini fala com a autoridade de quem fora

por ela muito beneficiado até aquele momento de sua vida – ao contrário de

Maquiavel, cujo destino é lamentado pelo governador na já referida carta de 18 de

maio de 1521:

Caríssimo Machiavello. Quando leio os vossos títulos de embaixador da República

(...) e considero com quantos reis, duques e príncipes negociastes, me recordo de

Lisandro, a quem depois de tantas vitórias e triunfos foi dada a tarefa de distribuir

carne aos mesmos soldados os quais havia gloriosamente comandado.128

Ainda na mesma carta, Guicciardini aconselha o ex-secretário a aproveitar

os bons ventos da Fortuna129, numa referência à pequena missão para a qual

Maquiavel fora nomeado pelos Medici, após quase dez anos de ostracismo.130 Este

evento serviu para aproximá-los, pois Guicciardini hospedou o secretário por

alguns dias durante esta missão oficial.

Ao se indagar no Dialogo sobre a reforma do governo florentino, o

governador destina pouca atenção a uma idéia recorrente nos tratados políticos do

Quattrocento e do Ciquecento, idéia esta que Maquiavel fora forçado pelas

circunstâncias a aprender: trata-se do princípio de que os favores da Fortuna

nunca são eternos, e que de uma hora para outra ela impõe seus desígnios sem se

fazer notar. Aeneas Sylvius Piccolomini, em texto de 1444 intitulado Um sonho

com a Fortuna, indagava à deusa: “por quanto tempo és amável para com os

homens?”. No que ela respondia: “não por muito tempo, para com nenhum

deles”.131

Como defende Mario Santoro em análise do De Belo Italico de Bernardo

Rucellai, a Fortuna era considerada no Cinquecento um elemento dominante da

realidade.132 Havia, segundo o crítico italiano, um evidente “sentido naturalístico

da noção de ‘fortuna’: esta se apresenta acima de tudo como complexo de

nascere, che così come in uno tratto dallo stato populare la venne allo stato di uno, possi ancora con la medesima facilità ritornare dallo stato di uno alla sua prima libertà”. 128 Conferir o item 1 do capítulo 1. 129 “Non mi è parso in beneficio vostro da perdere tempo o abbandonare la fortuna, mentre si mostra favorevole”. 130 Cf. RIDOLFI, Roberto. op. cit., p. 215. 131 Apud. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.49. 132 Cf. SANTORO, Mario. op. cit., p.156.

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circunstâncias, de eventos, de acontecimentos, e também como instintos e paixões

operantes no interior do homem, que condicionam, para além de qualquer refúgio,

de qualquer defesa, de modo imprevisível e mesmo irracional, o agir do

indivíduo”.133 Tratava-se, assim, de um princípio geral de indeterminação

associado à impossibilidade do controle pleno do próprio devir. Daí a oposição,

muito comum no Quattrocento e também no Cinquecento, entre Fortuna e

prudenzia; embora fosse comumente aceito que esta última não era capaz de se

antepor às forças incontroláveis da realidade objetiva – como, em certa medida,

poderia fazer a virtù segundo o argumento de Maquiavel no capítulo XXV de O

Príncipe –, acreditava-se que a prudenzia fosse capaz de propiciar alguns

paliativos no trato com o imponderável.

Em seus textos políticos escritos entre 1512 e 1527, Guicciardini dedica

pouco espaço à Fortuna; preocupa-se mais com a delineação de ações eficientes,

capazes de incidir em reformas das magistraturas citadinas e dos costumes em sua

cidade natal, que propriamente com o papel do inesperado e do contingente nos

assuntos políticos.134 Como percebe com argúcia Mario Santoro, o emprego do

vocábulo Fortuna nos primeiros escritos de Guicciardini, como as Storie

Fiorentine, a Relazione di Spagna e o Discorso di Logrogno, remetia à “acepção

convencional de boa sorte, circunstâncias e ocasiões favoráveis”.135 Esta situação

mudará a partir da segunda metade da década de 1510.136 Guicciardini passa a

ocupar um papel de destaque no jogo político italiano, como homem de confiança

de Clemente VII, o segundo papa Medici. Em 1527, com a invasão e saque de

Roma, detenção do papa e expulsão dos Medici de Florença, ele, que tanto se

orgulhava de seu papel destacado no cenário italiano, é forçado a retornar à sua

cidade natal como inimigo do regime, sendo obrigado a enfrentar um tribunal por

conta de seu apoio ao regime derrubado.

133 Idem. Ibid., p.160. “Da questi esempli (e da tanti altri che si pottrebbero addurre) appare evidente la direzione naturalistica della nozione di ‘fortuna’: questa cioè si prospetta soprattutto come complesso di circostanze, di eventi, di accadimenti, oltre che come instinti e passioni operanti nell’interno dell’uomo, che condizionano, al di là di ogni riparo, di ogni difesa, in modo imprevedibile e spesso irrazionale, l’agire dell’individuo”. 134 Cf. CADONI, Giorgio. Un governo immaginato. L’universo politico di Francesco Guicciardini, pp.9-38. 135 SANTORO, Mario. op. cit., pp. 319-20. “[...] ma, come abbiamo osservato, la fortuna qui ha l’accezione convenzionale di ‘buona sorte, circostanze e ocasioni favorevoli”. 136 Cf. Idem. Ibid., p.320. “Nel decennio 1516-1526, nel corso di un’intensa attività politica [...] il Guicciardini sperimentò di persona la massiccia presenza del fortuito, dell’imprevedibile,

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Diante desta situação, Guicciardini isola-se em uma de suas propriedades

rurais, onde redige um pequeno texto, a Oratio Consolatoria. Trata-se de um

escrito auto-reflexivo, diálogo do autor consigo mesmo que remete ao modelo

clássico da consolatio ad exsulem: tentativa de exibir uma atitude racional diante

do exílio, reflexão sobre a universidade da natureza humana e o poder da Fortuna,

refutação de argumentos de que o exílio é um mal em si, entre outras tópicas.137 A

imagem construída é de desencanto. Orgulhosamente, contudo, ele procura se

convencer de que suas ações não teriam sido equivocadas, e que qualquer pessoa

bem intencionada teria agido como ele, em respeito ao papa e às “razões das

coisas”. Configura-se, assim, uma associação entre abatimento e orgulho, tópica

recorrente em escritos dos séculos XV e XVI – como no caso da peça As You Like

It, de Shakespeare, com o personagem Jacques.

A primeira frase que se lê, antes mesmo do começo do texto, constitui forte

indício do que virá: Fatta di settembre 1527 a Finocchieto, Tempore pestis, tempo

de peste em Florença e arredores. Inicialmente, o remetente da carta, que chamarei

de “amigo fictício”, lamenta o estado de Francesco naqueles dias de isolamento.138

Diante de toda a glória que experimentara ao longo da vida, diz o amigo, os

acontecimentos recentes causavam naturalmente um “desprazer infinito”139, até

mesmo porque, segundo ele, Francesco, acusado de desvio de dinheiro e de incitar

uma ação militar contra a própria cidade natal, fora atacado naquilo de que mais

se orgulhava – a honra.140 Diante de acusações tão graves, o amigo conclui que

Francesco provavelmente estaria passando por um período de extrema

turbulência, impelido a um tipo de vida que lhe era completamente estranho:

de um extremo de excessiva honra, de reputação, de feitos grandíssimos e de

reconhecimento universal em que te encontravas, tu te viste repentinamente

precipitado em um outro extremo, de vida ociosa, abjeta, privado de tudo, sem

dell’irrazionale, in una realtà che si rivelava, con le sue continue variazioni e complicazioni, estremamente sfuggente e rischiosa”. 137 Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. Displaced persons. The literature of exile from Cicero to Boethius, p.22. 138 GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.91. “Io non mi maraviglio, Francesco, benché io ti cognosca di animo fermo e virile, che tu ti truovi ripieno di grandissimo dispiacere...”. 139 Ibid., p.93. “Ma quando io veggo che tu sei percosso si può dire nel tuo proprio, ed in quello che depende dalla patria tua, non posso credere che el dispiacere tuo non sia infinito”. 140 Ibid., p.91. “né è solo la roba in che tu patisci, mas di più la grandezza, la degnità, e quello che io credo che ti pesi sopra tutte le cose, l’onore”.

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dignidade, sem grandes feitos, inferior em sua cidade a qualquer cidadão pequeno

(grifos meus).141

Guicciardini constrói para si mesmo a imagem de um homem subitamente

apartado de tudo aquilo que, segundo ele, dava sentido a uma existência digna;

mantém o orgulho de seu passado, mas ao olhar para o presente enxerga um

homem abjeto, desonrado e de pouca valia. Assim como nas cartas de Maquiavel

a Vettori, há, na Consolatoria, uma associação entre ócio e indignidade, ao

mesmo tempo em que o estado de ânimo representado visa a despertar a

compaixão. Embora o texto não fosse destinado a ninguém especificamente, ele se

inseria na tradição antiga das cartas consolatórias, e como tal pressupunha uma

série de convenções próprias ao gênero epistolar consolatório.142 Há, nesse

sentido, um “leitor implícito” – fundado na “estrutura do texto”, como defende

Wolfgang Iser143 –, que pode ser atestado na circulação de tópicas retóricas

associadas à produção do decoro letrado.144 As dores da alma, o sentimento de

injustiça145, a doença que o “amigo fictício” diagnostica, todos estes aspectos

devem ser tratados como tópicas que pressupõem uma expectativa de leitura e

compreensão segundo critérios convencionais.

Pela mesma ótica deve ser compreendido o chamado do “amigo fictício” a

que Guicciardini se cure da enfermidade e recupere as forças para bem viver.146

Trata-se da cogitação do caminho estóico: na filosofia, Francesco poderá

141 Ibid., p.94. “in modo che da uno estremo eccesivo di onori, di riputazione, di faccende grandissime e di notizia universale in che tu eri, ti truovi precipitato subito in uno altro estremo di uno vivere ozioso, abietto, privatissimo, sanza degnità, sanza faccende, inferiore nella tua città a ogni piccolo cittadino”. 142 Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. op. cit., p. 21. 143 Cf. ISER, Wolfgang. O ato da leitura, vol. 1, p.73. Embora a categoria de leitor implícito seja proposta por Iser para pensar o texto ficcional, ela se aplica também a textos não-ficcionais, desde que estes possuam em alguma medida um caráter convencional, como é o caso de textos regrados segundo preceitos retóricos. Diz Iser: “o leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condição de recepção, a seus leitores possíveis. Em conseqüência, o leitor implícito não se funda em substrato empírico, mas sim na estrutura do texto”. 144 Refiro-me aqui à categoria proposta por João Adolfo Hansen de uma “primeira legibilidade normativa”. Cf. HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho, p.23. 145 GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.95. “sono certissimo che quelo che ti duole insino al cuore, quello che ti cava l’anima, è el vedere che sanza alcuno fondamento di verità, sanza alcuna cagione, fu sparsa voce sì universale che tu abbi in questa guerra rubato e’ danari publici, che tu abbia in questa per avarizia o per malignità permesso che e’ soldati faccino tanti danni in questo contado, che tu sia di animo tirannico ed inimico della libertà della città”. 146 Cf. Ibid., p.96. “Ma poi che io non posso fare questo, mi sforzerò almanco con le parole darti quella medicina o quello lenitivo che io saprò (...). E’ dispiaceri che tu hai sanza dubbio grandissimi, e potentissime le ragione che ti fanno risentire (...)”.

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encontrar a consolação de que necessita, uma vez que, para os estóicos, o “sumo

bem” consiste na vida virtuosa e no crescimento interior:

não só julgo digno de nota – diz o “amigo fictício” –, como considero admiráveis e

beatos aqueles que se encontram dispostos [a levar esta vida], de modo que com

estas contemplações se afastem tanto das coisas do mundo, que não sintam e se

afetem pelos seus acidentes.147

O que a Fortuna dá ou tira não deve ser considerado como relevante, pois a

deusa procura seduzir os homens pela oferta de bens efêmeros, e não pelos valores

verdadeiros, aqueles encontrados tão somente na atitude contemplativa.148 Trata-

se de um tipo de ensinamento muito aludido e considerado nos diversos tratados

humanistas do Quattrocento e do Cinquecento, quase sempre em referência a

Sêneca. Em De Vita Beata, este define felicidade a partir da idéia de virtus, ao

equiparar a vida feliz ao estado de perfeito equilíbrio entre corpo e alma:

uma vida feliz é a que está em conformidade com sua natureza e isso só pode

acontecer se, antes de mais nada, a alma está sã e em perfeito estado de saúde; em

segundo lugar, se é corajosa e veemente, e, mais ainda, muito bela e paciente,

pronta para tudo o que vier, cuidadosa, sem ansiedade, com o seu corpo e tudo o

que lhe diz respeito.149

O estado de equilíbrio aludido por Sêneca – o summum bonum como

concórdia da alma150 – é precisamente o oposto do que Guicciardini expõe na

Consolatoria. Acostumado com a glória e com as honrarias públicas, ele não

aceita facilmente o desmoronamento de suas referências, sem que tenha, em seu

147 Ibid., p.97. “ed io non solo giudico degni di laude, ma ammirabili e beati quelli che si truovono disposti in modo che con queste contemplazioni si spicchino tante dalle cose del mondo che non sentino e non curino gli accidenti suoi”. 148 Cf. Idem. “Così chi procedendo filosoficamente si ricordassi che questi beni della fortuna sono di nessuno momento, e da essere stimati da’ savi come cosa vilissima, e’ quali chi perde, perde più presto una soma inutile e travagliosa, che cosa di alcuno valore, e che la felicità ed el sommo bene consiste solo nella virtù e ne’ beni dello animo (...)”. 149 SÊNECA. De Vita Beata (Sobre a Vida Feliz), III,3, p.27. 150 Cf. Ibid., VIII, 6, p.41. “Por isso, você pode declarar, sem hesitação, que o sumo bem é a concórdia da alma; pois as virtudes deverão estar onde residirem a harmonia e a unidade; os vícios, com as dissensões”.

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juízo, cometido ações equivocadas ou imprudentes.151 Dá-se, deste modo, uma

tensão entre o desejo de possuir os bens da Fortuna e a prescrição de um caminho

estóico. Guicciardini, no exílio, percebe a impossibilidade de uma plena

autonomia, sem se conformar com o próprio destino. É nesse sentido que sua

Consolatoria adquire singularidade, como conflito irresoluto entre o imperativo

da resignação diante do fortuito e o desejo inatingível da plena autonomia.

O “amigo fictício” de Guicciardini orienta-se pelos ensinamentos de Sêneca,

especialmente pela idéia de que a verdadeira liberdade, obtida por intermédio da

contemplação e vida virtuosa, era capaz de anular o poder da Fortuna, por se

fundar na perseguição dos valores eternos, e não no anseio das glórias efêmeras.

Diz Sêneca: “Essa liberdade, nada a pode dar senão a indiferença aos caprichos da

fortuna”.152 Analogamente, a pior das escravidões consistia, segundo ele, na

dependência e vinculação do homem em relação à deusa, como nota o estóico:

Pois – e essa é a maior das escravidões – ela começa a precisar da fortuna; daí

resulta uma vida ansiosa, suspeitosa, temerosa, assustada com os acontecimentos,

preocupada com as vicissitudes da vida.153

Ainda que os caminhos da contemplação e do ócio filosófico fossem

considerados muito dignos, Guicciardini recusa terminantemente a solução

inicialmente aventada – ao menos para si –, mesmo que tenha se convencido

acerca da sabedoria envolvida na atitude estóica. Seu interesse sempre fora pelas

“coisas do mundo”; o que caracteriza a humanidade, segundo ele, não é a

beatitude das pessoas, mas a vida incerta e totalmente suscetível aos accidenti,

visando à glória em vida e à realização das ambições privadas.154 Guicciardini não

quer abrir mão das glórias que a Fortuna traz e tira caprichosamente; o que ele

deseja é receber novamente os favores da deusa. O remédio de Sêneca não pode

produzir bons efeitos em um paciente como ele; daí a afirmação do “amigo

fictício”:

151 GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.97. “perché io non ti cognosco sì imprudente né sì poco consideratore delle cose del mondo”. 152 SÊNECA. op. cit., IV, 5, p.31. 153 Ibid., XV, 3, p.57. 154 Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Consolatoria, p.97. “Ma ho anche perscutato chi dalla fragilità umana è impedito a levarsi tanto alto, e chi in ogni avversità che gli sopravenga si ricorda e senta di essere uomo”.

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sem querer imitar certos médicos que rapidamente dão ao paciente aqueles

remédios de que por si não necessitam, falarei de maneira mais baixa [più

bassamente] e mais de acordo com a natureza dos homens e do mundo.155

É preciso encontrar boas razões, concernentes à “natureza dos homens e do

mundo”, para convencer e conduzir este paciente; o remédio contra a Fortuna não

pode consistir na simples recusa dos seus bens e favores. É preciso persuadi-la,

envolvê-la. Mas como?

“Não te recordas de ter nascido homem”, indaga o “amigo fictício”,

“submetido às coisas do mundo e às variações da fortuna como os outros

homens?”.156 Esta auto-censura atua como impedimento à consolação plena e

necessária; a recusa do caminho estóico implica a aceitação resignada do estado

de incerteza inerente aos homens. O erro de Guicciardini, segundo seu auto-

exame, fora o de se considerar inatingível pelos accidenti, superior aos desígnios

da deusa volúvel. O estado de abatimento que ele compõe na Consolatoria,

caracterizado pela prostração e orgulho excessivo, não poderá ser solucionado

com medicamentos estóicos, pois que resulta do afastamento compulsório da vida

pública, e não de uma escolha ponderada e equilibrada da alma. O hiato entre o

desejo de autonomia e a consciência da impossibilidade de controlar o próprio

destino mantém-se insolúvel.

Que remédio contra a fortuna? Dificilmente Guicciardini ou Maquiavel

concordariam com a postura debochada de Celia em As You Like It: “Let us sit

and mock the good housewife Fortune from her Wheel, that her gifts may

henceforth be bestowed equally”.157

155 Idem. “e però non volendo imitare certi medici che spesso danno allo infermo quelle medicine che per sé non piglierennono, parlerò teco più bassamente e più secondo la natura degli uomini e del mondo”. 156 Ibid., p.102. “Non ti ricordi tu di essere nato uomo, sottoposto alle cose del mondo, a’ morsi della fortuna come gli altri uomini?” 157 SHAKESPEARE, William. As You Like It, I, 2, 5-8.

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149

3.3 O homem de letras na escala da glória

Res literaria como forma de prudência. Glória, reconhecimento público e o lugar

do homem de letras em Maquiavel e Guicciardini.

É apenas em fins do século XVIII e início do XIX que a idéia de um mundo

literário autônomo ganha força158, com a imposição da literatura como valor

cultural eminente e o “reconhecimento da subjetividade individual” como “fonte

de exaustão do antigo critério retórico”.159 Até então, como argumenta Marc

Fumaroli, o vocábulo “literatura” era empregado no sentido amplo de “belas-

letras”, derivando do latim res literaria.160 Por belas-letras entendia-se

fundamentalmente o “íntimo e assíduo comércio com os oradores e poetas da

Antiguidade”161, a erudição proveniente da leitura e diálogos com outros homens

de letras, assim como a capacidade de emular as “autoridades” clássicas em textos

e orações regrados segundo preceitos letrados convencionais.162 Nesse sentido,

pode-se dizer que as práticas letradas eram compreendidas segundo o critério do

“rigor preceptístico”163, ou seja, da adequação às definições de gênero

estabelecidas em tratados de retórica e poética, campos cujas fronteiras muitas

vezes se confundiam.164 Os litterati eram, nas palavras de Luiz Costa Lima,

artífices de topoi “entendidos como resultantes da escolha objetiva e impessoal de

recursos expressivos à disposição de qualquer letrado”.165

158 Cf. VIALA, Alain. Naissance de l’écrivain, p.7. “C’est au milieu du XIXe siècle que la littérature s’est imposée comme valeur éminente : cette thèse formulée par Jean-Paul Sartre a été, ensuite, reprise, et confirmée à quelques nuances près”. Até o século XVII não havia propriamente um “campo literário” autônomo. É com a criação, na França do século XVII, das primeiras academias, com o recrudescimento do comércio de obras, com o surgimento dos direitos do autor, com a renovação de gêneros como a tragédia e a comédia, em suma, com a possibilidade de que alguns homens se dedicassem fundamentalmente à escrita, que a literatura se afirmará, ainda que de forma embrionária, como um valor cultural em si mesma. 159 COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, pp. 323-4. 160 Cf. FUMAROLI, Marc. L’âge de l’éloquence, p.24. “Les mots ‘Lettres’, ‘Littératture’ au XVIIe siècle, que nous tirons sans scrupule à nous, sont en fait des traductions du latin humaniste Litterae humaniores, Literatura, res literaria et sont chargés du même sens : connaissance érudite de ces fondements de la sagesse et du savoir que sont les textes légués par l’Antiquité [...]”. 161 Idem. Ibid., p.25. “Les Belles-Lettres elles-mêmes, avant d’être ‘création littèraire’, sont d’abord un commerce assidu et intime avec les poètes et orateurs de l’Antiquité”. 162 Cf. PÉCORA, Alcir. op. cit., pp. 11-16. 163 Cf. COSTA LIMA, Luiz. “A questão dos gêneros”. In: Teoria da Literatura em suas fontes, p. 260. 164 Cf. LECLERC, F. “Théoriciens français et italiens: une ‘politique’ des genres”, p.96. 165 COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, p. 324.

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Duas categorias essenciais da retórica clássica orientavam, no

Renascimento, a composição de peças letradas dos mais diversos gêneros: a

imitatio, emulação dos mais altos padrões estilísticos da Antiguidade, e a

convenientia, “adaptação do discurso a todas as variáveis do problema concreto a

que ele responde”.166 O homem de letras, nesse sentido, era um artesão da palavra

escrita ou falada, alguém capaz de reconhecer e manipular as inúmeras

convenções concernentes à composição de peças retóricas dos mais diversos

gêneros, para expressar, de forma apropriada, o que convém dizer.167

Os tratados antigos de retórica estabeleciam três grandes gêneros do

discurso: o judicial, ou a retórica dos tribunais, o deliberativo, retórica das

assembléias e discussões públicas, e o epidítico, voltado para o deleite da platéia e

calcado no princípio da amplificação de virtudes e vícios. No Quattrocento, como

percebe Victoria Kahn,

a distinção entre retórica deliberativa e demonstrativa [epidítica] sucumbe [...] não

apenas porque o [gênero] epidítico pode ser visto como um incitador do curso da

ação, mas também porque a deliberação envolvida na leitura é ela mesma

entendida como uma forma de deliberação que leva à ação. Os humanistas do

Renascimento assim vão além dos seus mentores clássicos ao conceber a literatura

não somente como a causa e efeito da prudência e ação direita (i.e., presume-se que

o escritor seja prudente e que inspire prudência em outros), mas ela mesma como

uma forma de prudência (grifos meus).168

166 FUMAROLI, Marc. op. cit., p.22. “Une des catégories essentielles de la rhétorique est l’imitatio : c’est par référence à une gamme de styles illustrée par les modèles exemplaires de l’Antiquité que procède l’invention de l’écrivain ou de l’orateur du XVIIe ; une autre de ses catégories esta la convenientia, l’adaptation du discours à toutes les variables du problème concret auquel il répond : c’est par référence à cette valeur à la fois esthétique et morale que l’homme de Cour se conduit et converse”. 167 Sobre o domínio e importância das convenções, afirma Paul Zumthor, “dans la littérature des civilisations traditionnelles, les genres, quel qu’ils soient, présentent un haut degré de conventionnalité, nécessaire au fonctionnement de la communication”. ZUMTHOR, Paul. “Perspectives Générales”. In: La notion de genre à la Renaissance, p.8. 168 KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.39. “But the distinction between deliberative and demonstrative rhetoric breaks down in the works of the Quattrocento humanists not only because epideictic can be viewed as urging a course of action, but also because the deliberation involved in reading is itself understood as a form of the deliberation that leads to action. The Renaissance humanists thus go beyond their classical mentors in conceiving of literature not only as the cause and effect of prudence and right action (i.e., the writer is presumed to be prudent and to inspire prudence in others), but as a form of prudence itself”.

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Segundo o argumento defendido por Kahn, esperava-se que o homem de

letras fosse ele próprio discreto e prudente, possuindo as mesmas habilidades

oratórias e calculativas dos homens envolvidos na condução dos assuntos

públicos. Nesse sentido, a ars historica possuía um papel de destaque, por ser o

gênero onde habilidades oratórias e rerum cognitione precisam mostrar total

conveniência – daí que o humanista napolitano Giovanni Pontano tenha afirmado,

no seu diálogo Actius, que a história se serve indistintamente dos gêneros

deliberativo e epidítico.169

Assim, exigia-se do homem de letras tanto a capacidade de manipular os

lugares-comuns retóricos, as regras de invenção, disposição e elocução do

discurso como um conhecimento aprofundado da matéria tratada, em consonância

com a definição ciceroniana de orador pleno e também com a caracterização

horaciana da indissociabilidade entre meio e conteúdo nos gêneros retórico-

poéticos.170 “Se não posso nem sei respeitar o domínio e o tom de cada gênero

literário”, indaga-se Horácio na Ars Poetica, “por que saudar em mim um poeta?

Por que a falsa modéstia de preferir a ignorância ao estudo?”.171

As cidades italianas do Renascimento foram fartas em uomini litterati

reputadíssimos, como Petrarca, Dante, Bocaccio, Coluccio Salutati, Leonardo

Bruni, Pontano, Castiglione, Boiardo, Ariosto, Bembo, Pietro Aretino, entre

outros. “A prática das letras”, defende Marina Beer em estudo sobre a cultura

literária do Renascimento italiano, “e das letras vulgares em particular não é nada

além de uma das atividades destinadas a tornar virtuoso e talvez produtivo o

‘ócio’ nobiliário”.172 Alguns dos lugares privilegiados para as práticas letradas

eram as instáveis cortes principescas, como a de Guidobaldo de Montefeltro em

Urbino, descrita por Castiglione em O Cortesão.173 As cortes constituíam não só

ambientes propícios, mas efetivas condições de possibilidade para a produção de

169 Cf. VASOLI, Cesare. “Modelli teorici della storiografia umanistica”. In: Civitas Mundi, p.223. “Anzi, con un’espressione assai icastica, definiva la storia come una ‘poetica soluta’, sciolta dal ritmo e dal verso, che aveva in comune con la poesia la ‘repetitio’ delle cose antiche e vetuste, che, come la poesia, si serviva dei generi retorici ‘dimostrativo’ e ‘deliberativo’”. 170 Cf. CLAASSEN, Jo-Marie. op. cit., pp.13-14. “Horace, in his Ars Poetica, while emphasizing both authorial purpose and the importance of the audience or reader as receptor, crystallized the generally held ancient understanding of generic convention, characterizing genre by both metre (medium) and content (object). Here he followed a Roman precedent: for Varro, style and content could not be divorced”. 171 HORÁCIO. Ars Poetica, p.57. 172 BEER, Marina. L’ozio onorato. Saggi sulla cultura letteratia italiana del Rinascimento, p.14. 173 Cf. FANTONI, Marcello. Il potere dello spazio. Principe e ciità nell’ Italia dei secoli XV-XVII.

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tais registros letrados, uma vez que seus “autores” vinculavam-se diretamente aos

príncipes por meio de uma economia das mercês. Como percebe Norbert Elias,

as formas literárias e de saber que caracterizavam a sociedade de corte

correspondem às suas exigências e necessidades específicas. Trata-se sobretudo de

memórias, cartas, aforismos (“máximas”), determinados gêneros de poesia, ou seja,

formas literárias que nasciam direta ou indiretamente da conversação incessante em

sociedade, que estimulava seu crescimento.174

O caso florentino mostrava-se mais complexo que a média italiana, uma vez

que a cidade, entre os anos de 1494 e 1512, experimentou um tipo de governo

republicano bastante incomum naqueles dias.175 Por outro lado, mesmo com o

retorno dos Medici a Florença em 1512 algumas instituições e magistraturas

republicanas foram preservadas. Assim, não se pode dizer que escritos como a

Arte da Guerra e os Discorsi de Maquiavel, produtos das discussões sobre os

rumos florentinos nos Orti Oricellari176, os jardins da família Rucellai, ou o

Dialogo del Reggimento di Firenze de Guicciardini, que ele próprio percebia

como sendo de difícil aceitação pelos Medici, por força de sua adesão aos valores

republicanos e defesa da liberdade177, encaixem-se na categoria de formas

literárias típicas das sociedades de cortes. Mesmo escritos como O Príncipe e as

Istorie maquiavelianas, dedicados aos Medici, ou os Ricordi e a Storia d’Italia de

Guicicardini, que tiveram ampla circulação nas cortes européias da segunda

metade do Cinquecento, dificilmente podem ser tratados como exemplares típicos

de “literatura” cortesã. Em O Príncipe, as lições de Maquiavel fogem

completamente do que é recomendado no gênero de espelho de príncipes,

especialmente a tópica do príncipe justo, liberal e magnânimo, por isso mesmo

174 ELIAS, Norbet. A sociedade de corte, p. 299, nota 34. 175 Cf. ALBERTINI, Rudolph von. Firenze dalla Repubblica al Principato. Storia e Coscienza Politica. “Ci si riallaccia qui alla tradizione dei comuni, dove cittadino, nel senso vero della parola, era chi aveva diritto di sedere in consiglio e di eleggere le lagistrature”, p.10. 176 Cf. GILBERT, Felix. “Bernardo Rucellai e gli Orti Oricellari. Studio sull’origine del pensiero politico moderno”, pp.18-30. 177 Cf. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e realismo, p.127. “O que devemos levar em conta é que ele não desconhece a tensão entre o republicanismo aristocrático, que continua a defender, e sua trajetória política na esfera do poder papal. Suas convicções teóricas vão de encontro à sua visão da política italiana e ele procura desesperadamente um meio de colocar as coisas no mesmo patamar”.

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virtuoso e prudente178; nas Istorie, como analisarei no próximo capítulo, a matéria

que deveria alicerçar um monumento florentino composto de encômicos de

homens ilustres e vitupérios de tiranos estrangeiros desmesurados ou cidadãos

refratários à concórdia é tratada como retrato das fraquezas institucionais da

cidade e de suas contínuas lutas internas, muito distintas, porque contrárias à

natureza, dos combates entre patrícios e plebeus na Roma republicana; nos

Ricordi, Guicciardini oferece máximas bem distantes dos preceitos de urbanidade

que della Casa urdirá no Galateo, lições que não fixam regras, padrões de

costumes ou exemplos estáveis de modos de ação e conduta política – “muitos,

mesmo prudentes, erram, e é difícil abster-se disso; mas se a dificuldade é grande,

são maiores os frutos que obtém quem souber fazê-lo”179, diz ele, numa clara

constatação da “instabilidade que se impõe às coisas humanas”180 associada ao

desejo de controle das próprias ações e de atenuação das diversas

indeterminações. Além disso, há uma diferença significativa entre a maneira com

que Maquiavel e Guicciardini lidam com a tópica do ócio com dignidade e o

modo predominante na escrita cortesã: embora as práticas letradas sejam vistas

por eles como louváveis, na escalada da glória elas são invariavelmente postas

abaixo das honras conquistadas no comando de exércitos ou no exercício de

importantes cargos e magistraturas.

O Dialogo del Reggimento di Firenze de Francesco Guicciardini, redigido

entre 1521 e 1524, apresenta um colóquio ocorrido no ano de 1494, supostamente

narrado a Francesco Guicciardini por seu pai, um dos interlocutores.181 No

primeiro livro, o autor dispõe a matéria tratada como um choque de pontos de vista

contrários: de um lado Bernardo del Nero, homem de confiança do falecido

Lorenzo de’ Medici e perito na arte dello stato – conhecimento das habilidades e

meios eficientes para a preservação dos domínios (stati) de uma família ou de uma

República.182 De outro Piero Guicciardini (pai de Francesco), Paoloantonio

Soderini e Piero Capponi, representantes legítimos da aristocracia quatrocentista

florentina, os chamados ottimati. No segundo livro, os interlocutores deixam as

178 Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel, p.61. 179 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 7, p. 53. 180 GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 1. 181 Cf. BROWN, Alison. “Introduction”. In: Dialogue on the Government of Florence, p.x. 182 Cf. VIROLI, Maurizio. From politics to reason of state, p.3.

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divergências de lado e passam a buscar um consenso argumentativo; como

resultado, esboçam uma definição do melhor governo possível para a cidade de

Florença, adequado a um momento de turbulências externas e corrupção dos

valores civis. Na língua toscana do século XVI, o vocábulo ragionare possuía a

acepção de conversação; nesse sentido, o ragionamento poderia ser confundido

com a própria prática do diálogo. Sobre este conceito, afirma John Najemy:

“ragionare (...) existe em algum lugar entre a razão e a fala, incorporando aspectos

de ambas e implicando algum controle ou domínio sobre um assunto que poderia

ser tanto aprendido quanto ensinado”.183

No proêmio do diálogo, “gênero por excelência a adotar-se quando se

tratasse de produzir o elogio do convívio intelectual e do prazer honesto da

companhia”,184 fica claro o propósito de Guicciardini de fornecer ensinamentos

“úteis e adequados” à realidade florentina, através da dramatização de uma

conversa ocorrida em 1494 entre homens considerados sábios e prudentes, o que

ressalta um aspecto concernente a toda República que se pretendia livre e bem

ordenada: o debate entre concidadãos como fundamento do vivere civile.185 Como

afirma Alcir Pécora, “a forma de diálogo [...], gênero tributário do prestígio das

183 NAJEMY, John. op. cit., p. 109. 184 PÉCORA, Alcir. op. cit., p. 97. 185 No proêmio, Guicciardini propõe-se a realizar a “sincera e fiel narração daquilo que, uma vez, fora ragionato por alguns dos nossos cidadãos muito graves e sábios” (grifos meus)”. Cabe dizer que tal noção de fidelidade, recorrente em tratados retóricos clássicos e renascentistas, não remete à idéia de uma reprodução exata das palavras proferidas, mas à verossimilhança de uma narração de acordo com certos critérios retórico-poéticos – tal qual Tucídides, que nos discursos de sua Guerra do Peloponeso (I, XXII) se atém “o mais próximo possível do sentido geral das palavras”. Trata-se de um lugar-comum retórico amplamente empregado em exórdios de diálogos – como no Cortesão de Castiglione ou na Arte da Guerra de Maquiavel –, cuja finalidade consiste em afirmar a autoridade de quem fala e tornar verossímil a argumentação e a narração, através da amplificação das virtudes ou dos vícios dos personagens envolvidos. Cícero, seguindo Aristóteles, sustenta no De Inventione (I, 44) que toda argumentação pode ser caracterizada ou como provável ou como necessária. Necessário é o argumento silogisticamente irrefutável; provável é o argumento construído a partir da opinião comum, do hábito, ou da analogia com a realidade. Na mesma linha, lemos na Retória a Herênio (I, 16) que “a narração será verossímil se falarmos como o costume, a opinião e a natureza ditam, se nos ativermos à duração do tempo, à dignidade dos personagens, aos motivos das decisões e às oportunidades do lugar (...). Se a matéria for verdadeira, ainda assim, todos esses preceitos devem ser observados ao narrar, pois é comum acontecer de a verdade não conseguir obter fé quando são negligenciados”. Obter fé, aqui, implica afirmar a honestidade e gravidade da matéria nas diversas partes do discurso, especialmente no exórdio e na narração. Tais elementos são mobilizados por Guicciardini na passagem do proêmio em que se refere à “sincera e fiel narração” do ragionamento travado entre os quatro grandes homens. Trata-se, assim, da reprodução verossímil dos efeitos de tal conversação, o sentido do que por eles fora discutido, a saber, a delineação de um “governo honesto, bem ordenado, a que se possa verdadeiramente chamar de livre” (Dialogo, p.15). Verossímil porque homens reputados pela opinião comum como honestos – virtuosos e cientes dos seus deveres, conforme definição da Retórica a Herênio (III,3) – emitem bons juízos sobre a realidade, demonstram agudeza e celeridade de raciocínio e, sobretudo, almejam primordialmente o bem comum e a saúde da República.

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grandes obras da Antiguidade filosófica, mostra-se inteiramente própria para o

estabelecimento do espectador como alguém que deva produzir um decisivo ato

de juízo, mediante a exposição das falas contraditórias das diferentes

personagens”.186 Daí a importância da dramatização de uma conversação, que não

pode ser substituída pela simples exposição de argumentos. Por esta razão,

Guicciardini avalia que “não se pode dizer que não mereça ser louvado quem

aplica o ânimo e dedica boa parte do tempo na contemplação de matéria tão digna

e honesta; pode-se, ainda, obter ensinamentos em grande medida úteis e relevantes

ao nosso viver”.187 Em seguida, ele faz questão de frisar que suas análises não

devem ser tomadas como uma “disposição contrária à grandeza” ou autoridade

dos Medici188: daí sua preocupação de anunciar que escreve para seu próprio

“prazer e recreação”189, nos momentos de otia inter negotia. Guicciardini, antes

de experimentar a disgrazia que o levará ao ostracismo anos depois, reproduz uma

idéia convencional de ócio literário, associada a autoridades como Cícero e

186 PÉCORA, Alcir. op. cit., p.71. 187 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.13. “[...] non si può dire se non che meriti di essere laudato chi applica l’animo e consuma ancora quache parte del tempo nella contemplazione di sì onesta e sì degna materia; sanza che sempre se ne può cavare documenti acccommodati e utili a molte parte del vivere nstro”. 188 Ainda que a narrativa remeta à restauração republicana de 1494, o horizonte analítico de Guicciardini consistia primordialmente no exame da situação política florentina na década de 1520. Se bem que a ruína dos Medici fosse então considerada pouco provável, fazia-se necessário, segundo o autor, manter vivo o pathos republicano, já que os muitos accidenti ocorridos a cada dia poderiam fazer com que subitamente a liberdade pudesse voltar a imperar na cidade. E dessa vez, diferentemente do que se dera em 1494, os florentinos deveriam estar preparados para enfrentar as variações das “coisas do mundo”. Conquanto não vislumbre razões que o levem a crer na ruína dos Medici em um curto espaço de tempo, Guicciardini afirma que “não se pode esperar de uma família a perpetuidade que se pode esperar de uma República”. Ainda assim, faz questão de se prevenir, no proêmio, de possíveis acusações, ao deixar clara a sua fidelidade aos Medici e também seu amor republicano. Trata-se de ambigüidade notada por diversos intérpretes, como Vittorio de Caprariis e John Pocock. Segundo Vittorio de Caprariis, tal conflito reflete-se na própria estrutura do Dialogo: no texto, a “esperança do cidadão”, correspondente ao livro II, choca-se com a observação aguda do “estado das coisas” – livro I. John Pocock, refutando Caprariis, defende que a diferença de perspectiva entre as duas partes do Dialogo consiste numa tensão entre “valor” e “história”. Como atesta Nicolai Rubinstein, a perspectiva de uma mutazione di stato não era totalmente improvável no contexto de redação do Dialogo. Seguindo tal linha argumentativa, pode-se aferir que Guicciardini se propunha, no texto, a pensar uma efetiva reforma da cidade, a ser implementada tão logo os Medici perdessem o poder – o que poderia levar alguns meses ou muitos anos, mas em algum momento ocorreria, pois, como diz o próprio Guicciardini em trecho já citado do Dialogo, “não se pode esperar de uma família a perpetuidade que se pode esperar de uma República”. Cf. CAPRARIIS, Vittorio. Francesco Guicciardini dalla política alla storia; POCOCK, John. Machiavellian Moment, p.243; RUBINSTEIN, Nicolai. “Guicciardini politico”. In: Francesco Guicciardini 1483-1983. Nel V centenario della nascita, p. 176. 189 GUICCIARDINI, Francesco. op. cit., p.17. “Alle quali obrigazione non pare che si convenga nutrire pensieri contrari allo stato della casa loro; perché dallo scrivere mio, massime fatto per mio piacere e recreazione né con intenzione di publicarlo, non si può né debbe inferirne che i abbia anio alieno dalla grandezza loro, né che la loro autorità mi dispiacia”.

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Sêneca: a tentativa de atribuir dignidade aos momentos de afastamento dos

assuntos públicos – in otio cum dignitate, como sentencia Cícero na abertura do

De Oratore.190 Nesse sentido, é significativa a maneira como compõe a frase “não

se pode dizer que não mereça ser louvado quem aplica o ânimo e dedica boa parte

do tempo na contemplação de matéria tão digna e honesta”: os que se ocupam da

res literaria certamente merecem honras e respeito, mas seriam eles tão dignos

quanto os participantes ativos do vivere civile? Não estaria a dignidade do ócio

literário atrelada à possibilidade de voltar recorrentemente à prática política?

Trata-se de questão amplamente discutida pelos antigos, como se pode perceber

no seguinte trecho da Bellum Catilinae de Salústio:

Em meio a grande variedade de ocupações a natureza mostra a cada um o seu

próprio caminho. É belo servir à república com ações [bene facere rei publicae],

não é descabido fazê-lo com a eloqüência [etiam bene dicere haud absurdum est];

é possível se tornar ilustre na paz ou na guerra; e muitos foram louvados, os que

realizam façanhas e os que narram as façanhas de outros. Para mim, embora a

glória de quem narra as façanhas não seja igual àquela de quem as faz [auctorem

rerum], me parece que o ofício de quem escreve as coisas acontecidas seja árduo

(grifos meus).191

Nos Discorsi, outro escrito que dificilmente pode ser enquadrado na noção

de escrita cortesã, Maquiavel define o lugar do homem de letras numa escala da

glória, em acordo com os ensinamentos de Salústio:

Entre todos os homens louvados, os mais louvados foram os cabeças e ordenadores

de religiões. Logo depois destes, os que fundaram repúblicas ou reinos. Depois

destes, são célebres os que, comandando exércitos, ampliaram seu próprio domínio

ou o da pátria. A estes se somam os homens de letras [uomini litterati]. E, como

estes são de vários tipos, são eles celebrados segundo o mérito de cada um.192

Embora os uomini litterati não possam ser igualados em sua glória aos

fundadores de religiões e repúblicas ou aos grandes generais, Maquiavel lhes

190 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, I, 1. 191 SALUSTIO. La congiura di Catilina / Bellum Catilinae, III, 1-2, p.5. 192 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 10, p.44.

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atribui um alto grau de dignidade, assim como o faz Guicciardini no Dialogo.

Ambos, porém, consideram a glória do letrado inferior àquela dos grandes homens

de ação. Há, nesse sentido, uma associação entre ambição pela busca das honras

do vivere civile e o reconhecimento público do bom serviço à pátria – o que

remete à noção de cupido gloriae, tal qual pensada por Leonardo Bruni, o

estímulo à grandeza individual por meio do amor à res publica.193 Não existe

glória sem reconhecimento público, e este parece se voltar com mais força e

louvor àqueles empenhados na condução dos assuntos de estado ou de religião.

Tanto a experiência post res perditas de Maquiavel quanto o afastamento

compulsório de Guicciardini dos assuntos públicos revelam-se freios

significativos aos anseios de reconhecimento público manifestados em inúmeras

ocasiões. Se, no Dialogo del Reggimento di Firenze, Guicciardini é capaz de

vislumbrar um horizonte de dignidade para o ócio literário, associado à

preparação para a “vida ativa”, na Consolatoria, como afirmei anteriormente, o

ócio é visto como a mais abjeta das situações, e mesmo a atividade literária não

pode instituir consolo algum.

Sem uma análise aprofundada da correspondência particular de

Guicciardini, não é possível atestar se, nos treze anos que se seguiram à sua

derrocada, intercalados por curtos momentos de retorno aos assuntos de estado,

ele construiu para si uma representação de homem de letras. A própria decisão de

escrever obras históricas após vinte anos – precisamente o período de ocupação à

serviço da República e dos Medici – constitui um indício de que ele talvez

entrevisse para si um novo papel, uma vez que a ars historica era tida no

Renascimento como um dos gêneros mais importantes e graves, e por essa razão

destinava-se comumente aos homens de letras mais reputados, especialmente os

ocupantes ou ex-ocupantes de magistraturas de destaque. Trata-se, porém, de

especulação. O que se pode atestar é a dedicação de Guicciardini às Cose

Fiorentine (1528), deixadas de lado após algum tempo, aos Ricordi, conjunto de

máximas que vinha redigindo há muitos anos e que ganharão uma versão final em

Santa Margherita a Montici, às Considerazioni sobre os Discorsi de Maquiavel,

193 Cf. VAROTTI, Carlo. op. cit., p. 411. “Alle origini del repubblicanesimo fiorentino Bruni aveva attribuito alla libertà e all’equalità cittadina il merito di stimolare la cupido gloriae, facendo

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comentário à obra maquiaveliana, e finalmente à Storia d’Italia, redigida nos

últimos anos da década de 1530.

Muitos analistas notaram a transformação das posições de Guicciardini

neste período, como a verificação do recrudescimento do papel da Fortuna nos

assuntos humanos e o ceticismo quanto às possibilidades efetivas do retorno da

situação italiana a um estado de paz, como o existente nos últimos anos de vida de

Lorenzo o Magnífico. Felix Gilbert defende que “como Guicciardini havia sido

inspirado pela crença no poder do homem de controlar os eventos e em seu

próprio talento de conduzir os assuntos públicos, o choque causado pelos eventos

de 1527 foi profundo”.194 Embora ele tenha voltado a ocupar cargos importantes,

como o governo de Bolonha, Guicciardini jamais recuperou o lugar de destaque

que tivera, especialmente após a morte de Clemente VII.195 Durante o ducado de

Cosimo de Medici, afirma Gilbert, “Guicciardini estava sem nenhuma influência

política, e não lhe restava nada além de se retirar para sua villa. Então ele

começou a escrever sua História da Itália”.196 Isso foi em 1538. Dois anos depois,

Guicciardini morre, deixando incompleta a obra. Em seu testamento, pediu para

que seus escritos fossem queimados. Não foi atendido.

Já em Maquiavel as evidências da lenta construção de uma nova identidade

são bastante significativas, não só em seu epistolário como também em seus

textos diversos, de peças teatrais às Istorie Fiorentine (o que não implica dizer

que ele tenha deixado de desejar as honrarias públicas: na década de 1520, quando

solicitado pelos Medici ou por Francesco Guicciardini, tomou parte em pequenas

missões). Na correspondência com Vettori, Maquiavel concebe para si um lugar

como homem de letras, ainda que discretamente, na passagem da carta de 10 de

dezembro de 1513 que trata da conversação com os antigos; nos Discorsi,

provavelmente redigidos entre 1515 e 1517, os homens de letras são vistos como

possuidores de um lugar digno na escala universal da glória, como mostrei acima;

em carta de 17 de dezembro de 1517 a Luigi Alamanni, Maquiavel se queixa da

della politia il luogo in cui principalmente la grandezza individuale può esprimersi, divenire una forma di eccellenza ‘vista’, sottoposta alo sguardo ammirato della comunità”. 194 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, pp. 280-81. “Becase Guicciardini had been inspired by the belief in man’s power to control events and in his own talent to menage his affairs, the shock caused by the events of 1527 was profound”. 195 Cf. RIDOLFI, Roberto. The life of Francesco Guicciardini, p.216. 196 GILBERT, Felix. op. cit., p. 281.

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ausência de seu nome na lista de grandes poetas italianos presente no Orlando

Furioso, de Ariosto197; no dia 21 de outubro de 1525, assina uma carta a

Francesco Guicciardini como “Machiavelli, historico, comico et tragico”.198 Como

percebe Roberto Ridolfi, “seus próprios ócios, como seus escritos”, com o passar

do tempo “assumem aparência mais literária”.199 No prólogo da Mandrágora,

provavelmente composta em 1518, a situação é colocada de forma bastante clara:

E se esta matéria, por ser muito leve,

Não for digna de um homem

Que deseja parecer sábio e grave,

Desculpem-no por isto,

Pois ele usa seu engenho [s’ingegna]

Para fazer, com estes vãos pensamentos,

Mais suave seu triste tempo.

Porque noutro lugar não tem para onde mostrar a face

Pois foi impedido

De mostrar com outras empresas outra virtude,

Não sendo premiado por suas fadigas (tradução livre).200

A matéria leve da comédia se opõe à gravidade da tragédia ou do tratamento

dos assuntos concernentes à res publica. Entendia-se que a composição de uma

peça cômica deveria se dar em acordo com o gênero de estilo simples (tenue),

próprio da conversação e das cartas familiares. “O melhor estilo”, diz Reboul, “ou

197 Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Opere, v. 3. Carta de 17 de dezembro de 1517, p.498. “Io ho letto a questi dì Orlando Furioso dello Ariosto, e veramente el poema è bello tutto, et in molti luoghi à mirabile. Se si truova costì, raccomandatemi a lui, e ditegli che io mi dolgo solo che, avendo ricordato tanti poeti, che m’abbi lasciato indreto come un cazo, e ch’egli ha fatto a me quello in sul suo Orlando, che io non farò a lui in sul mio Asino”. 198 Carta a Francesco Guicciardini de 21 de outubro de 1525. Cabe destacar que Maquiavel jamais escreveu tragédias, o que constitui matéria de discussões infindáveis entre seus intérpretes. Sobre esta questão, afirma Ridolfi: “Tragédias jamais as escreveu, talvez nem cogitou, a não ser essa em que agora estava trabalhando ao se voltar para questões históricas”. RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, p.251. Conferir também: MARTINEZ, Ronald L. “Tragic Machiavelli”, p.119. Afirma o autor que, “signing himself historian, comedian, and tragedian, Machiavelli foresaw all too well how the history of Italy was shaping itself into a tragic plot”. 199 RIDOLFI, Roberto. op. cit., p.191. 200 MAQUIAVEL, Niolau. Mandragola. In:____ Tutte le opere storiche, politiche e letterarie, p. 728. “E, se quesa materia non è degna, / per esser pur leggieri, / d’un uom, che voglia parer saggio e grave, / scusatelo con questo, che s’ingegna / con questi van’ pensieri / fare el suo tristo tempo più suave, / perché altrove non have / dove voltare el viso / che gli è stato interciso / mostrar con altre imprese altra virtùe, / non sendo premio alle fatiche sue”.

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seja, o mais eficaz, é aquele que se adapta ao assunto”201, respeitando a regra da

conveniência. Maquiavel, no prólogo da Mandrágora, reconhece a necessidade de

mudar o estilo em função da matéria tratada. E isso era exatamente o que se

esperava de um homem de letras prudente: o respeito às convenções letradas

convenientes e a capacidade de mobilizá-las com agudeza e engenho.

O texto engenhoso era assim concebido simultaneamente como um fruto da

prudência e como um produto prudente, cujo reconhecimento enquanto tal

dependia da autoridade tácita investida a leitores e ouvintes discretos, habilitados

a identificar tanto a correção do tratamento como a conveniência do discurso. Por

esta razão, os textos políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini devem ser

compreendidos como performances da prudência, registros do bom juízo cuja

validade não é universal, por estar circunscrita às situações analisadas, mas cujo

poder exemplar é infindo, na medida em que cada leitura, cada apropriação por

outros prudentes, pode incidir em nova performances, análises inspiradas no modo

de ajuizar sem necessariamente copiar o juízo definido. É nesse sentido que se

configura uma dignidade específica para o homem de letras.

Especificamente as histórias compostas por ambos, por analisarem a matéria

de crônicas e “histórias antigas e modernas” segundo o critério da efetividade

analítica, maximizam as possibilidades de atualização continuada de performances

do bom juízo prudencial. Nesse sentido, a ars historica era concebida por

Maquiavel e Guicciardini não apenas como a edificação de um monumento

cívico, mas fundamentalmente como a exposição de erros e acertos, segundo os

critérios da efetividade analítica prudencial, dos que, em algum momento, tiveram

o timão em suas mãos, e também uma maneira de exibir o que eles próprios

fariam caso possuíssem outra vez, mesmo que de forma fugidia, o controle do

timão. A utilidade da história se revela, por esse viés, menos nas lições universais

que o leitor / ouvinte pode extrair e mais na possibilidade de compreender o

percurso de ragionamento. Assim, o leitor / ouvinte é convidado por analistas

experimentados nas coisas do mundo a tomar parte, como espectador privilegiado

e participante potencial, no processo de “fabricação” de bons juízos.

Convidado em 1521 para se tornar chanceler do condottiero Prospero

Colonna, um dos homens mais influentes da Península Itálica naqueles tempos,

201 REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, p.62.

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com remuneração de duzentos ducados de ouro, livre de despesas – quase cinco

vezes o que ganhava para escrever as Istorie sob o patrocínio dos Medici –,

Maquiavel recusa a proposta.202 Talvez porque para ele a verdadeira glória só

pudesse ser alcançada no serviço da pátria; ou porque não se considerasse

vocacionado para a vida cortesã; ou porque o ânimo lhe faltasse depois dos

cinqüenta anos. Ou mesmo, quem sabe, porque agora se encontrava

definitivamente do lado dos que “narram as façanhas dos outros”.

202 Cf. RIDOLFI, Roberto. op. cit., pp. 212-3.

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4. Ars historica como arte da prudência.

Quando eu considero a quantidade e a variedade dos acidentes, das enfermidades, do acaso e da violência a que a vida do homem é submetida e quantas coisas devem concorrer no ano para que a colheita seja boa, não há nada que me espante mais que ver um homem velho, um ano fértil (Francesco Guicciardini. Ricordi, máxima 161).

4.1 Uma construção de fatos e palavras.

Tucídides: sobre a distinção entre logos e ergon e o procedimento da autópsia. O

princípio da utilidade: Tucídides e Políbio. O tratamento latino para a tensão

entre res e verba. Os preceitos da ars historica no De Oratore. A história como

monumento da virtus: Salústio e Tito Lívio.

Embora a história – entendida como prática de inquirição sobre as grandes e

memoráveis obras dos homens calcada numa "atitude crítica com relação ao

registro de acontecimentos”,1 cujo propósito central seria o de salvar os feitos

humanos do esquecimento –2 tenha não apenas surgido na Grécia do V século

como alcançado, com Heródoto e Tucídides, sua maior expressividade no mundo

antigo, a discussão acerca da concepção retórica de história predominante na

Antiguidade deve dar atenção especial às reflexões de Cícero no livro II do

diálogo De Oratore, isto porque os gregos jamais chegaram a definir a história

como um gênero retórico-poético. Porém, antes de discutir os preceitos

ciceronianos sobre a escrita da história, dedicarei algumas páginas à análise da

tensão entre logos e ergon na História da Guerra do Peloponeso de Tucídides,

assim como ao exame da concepção de autópsia e do privilégio do testemunho

ocular sobre os relatos orais predominantes entre os historiadores gregos, como

1 MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna, p.55. Segundo Santo Mazzarino, esta atitude crítica era, ao mesmo tempo, profundamente religiosa. Cf. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico classico, vol. 1, p.207. 2 Cf. HARTOG, François. O espelho de Heródoto, p.22; CANFORA, Luciano. La storiografia greca, pp. 26-43.

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forma de introduzir a discussão acerca da definição ciceroniana da história como

exaedificatio in rebus et verbis.

Como nota Charles Fornara, a nomenclatura “historiador” era bastante

imprecisa na Antiguidade, podendo ser atribuída a escritores de textos em prosa

que lidavam com “aspectos da atividade humana e heróica no tempo passado”.3

Havia, segundo o autor, cinco tipos básicos de abordagem dos feitos de outras

épocas: genealogia, etnografia, história, história local e cronografia.4 A história,

nesse sentido mais estrito, era compreendida como a descrição das ações humanas

passadas – em suas acepções latinas, expositio rerum gestarum, memoria rerum

gestarum ou simplesmente historia –, diferenciando-se da “história local”

(próxima dos anais) por não se constituir necessariamente como registro ano a ano

dos acontecimentos da polis desde sua fundação. Os limites e fronteiras entre as

referidas formas de relato eram tênues, e os próprios gregos não demonstravam

muito interesse em delimitar as particularidades de cada uma. Apenas Aristóteles

será mais específico a esse respeito, ao diferenciar, na Poética, a história da

poesia.5

Na abertura da História da Guerra do Peloponeso lê-se que “Tucídides de

Atenas escreveu a guerra dos peloponésios e atenienses, como guerrearam uns

conta os outros”.6 Escrever a guerra é diferente de escrever sobre a guerra; trata-

se de uma maneira peculiar de conceber a relação entre logos e ergon, palavra7 e

feito, pela simultânea constatação de uma “dificuldade de chegar à realidade das

coisas”8 inerente ao logos e da possibilidade de reduzir a equivocidade do relato a

um mínimo, pelo recurso ao testemunho ocular – não os logoi dos que se arrogam

suspeitas observações, mas as considerações do phronimos, homem diligente e

prudente, o próprio Tucídides de Atenas, testemunha dos acontecimentos mais

3 FORNARA, Charles. The Nature of History in Ancient Greece and Rome, p.3, nota 8. 4 Cf. Idem. Ibid., p.1. 5 Cf. ARISTÓTELES. Poética, IX, p.28. 6 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, I, 1, p.3. Emprego aqui a tradução de Jacyntho Lins Brandão. In: HARTOG, François (org.). A história de Homero a Santo Agostinho, p.57. 7 Emprego o vocábulo “palavra”, aqui, para caracterizar aquilo que Jacques Derrida chamou de privilégio da phoné, em sua relação direta com o logos: “Tal como mais ou menos implicitamente determinada, a essência da phoné estaria imediatamente próxima daquilo que, no ‘pensamento’ como logos, tem relação com o ‘sentido’; daquilo que o produz, que o recebe, que o diz, que o ‘reúne’. [...] Entre o ser e a alma, as coisas e as afeções [affection], haveria uma relação de tradução ou de significação natural; entre a alma e o logos, uma relação de simbolização convencional. E a primeira convenção, a que se referiria imediatamente à ordem da significação natural e universal, produzir-se-ia como linguagem falada”. DERRIDA, Jacques. Gramatologia, p.13.

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grandiosos e memoráveis que tiveram lugar na Hélade desde o fim da guerra de

Tróia e por isso mesmo apto a elidir em sua exposição todo e qualquer desnível

entre o que aconteceu e o que é apresentado discursivamente, compondo uma

narrativa que é ela própria a presença da guerra, segundo o ideal do rigor

(akríbeia).9

Como percebe Adam Milman Parry, a distinção entre logos e ergon

constituiu uma característica central do “pensamento” grego, fazendo-se presente

já em Homero e sendo percebida de maneiras particulares na poesia – onde ambas

as categorias conformam aspectos dessemelhantes porém igualmente

significativos da experiência humana –, na tradição popular – entendimento dos

erga como “realidade inquestionável” e condenação dos logoi como puramente

delusórios –, e na filosofia – especialmente em Parmênides e Heráclito,

correspondendo o logos à “realidade verdadeira” e sendo o mundo sensível visto

como simples “aparência ilusória”.10 Ainda segundo Parry, o capítulo 22 do livro I

da História da Guerra do Peloponeso marca a primeira vez em que a distinção

logos / ergon ocorre no texto de Tucídides.11 Diz o ateniense na referida

passagem:

Quanto aos feitos realizados na guerra, decidi escrever não recolhendo informações

junto de qualquer um, nem como me pareciam ser, mas os que eu próprio

presenciei, tendo ainda checado cada um deles, com a maior exatidão possível,

junto de outros. Com muito trabalho eles se descobriam, porque os presentes a cada

um dos feitos não diziam as mesmas coisas sobre os mesmos, mas de acordo com a

simpatia ou lembrança que tinham.12

8 PARRY, Adam Milman. Logos and ergon in Thucydides, p.103. 9 Cf. MAZZARINO, Santo. Op. cit., p. 250. 10 PARRY, Adam Milman. Op. cit., pp. 15-16. “To understand its development properly, we must take account of three strands of thought in Greek literature of this period. These strands are often intertwined, and they do not appear with equal consistency throughout the period in question. Yet they can legitimately be considered as distinct attitudes toward a similar problem. One is a literary strand: that is, it appears first in the poets. Its tendency is to regard logos and ergon, or equivalents thereof, as differing but positive constituents of human experience. The second is popular. It appears first in Solon, then in the earliest comic writers. There is reason to think that it was common coin in the Vth century. It is simple and ethical, placing value on ergon as unquestioned reality, and condemning logos as something purely delusive. The third is philosophical, appearing first in Parmenides and – though less clearly – in Heraclitus. It regards logos as true reality, and puts in the category of the delusive appearances of the sensible world”. 11 Idem. Ibid., p.103. 12 TUCÍDIDES. Op. cit., I, 22, p. 81.

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Diferentemente de Heródoto, Tucídides, ao descartar os depoimentos orais

diversos, procura estabelecer uma presunção da fidúcia em torno do seu

testemunho ocular bem intencionado, cujo produto é apresentado não como uma

interpretação particular, mas como a presença da coisa mesma –13 feitos

memoráveis não apagados pela ação do tempo.14 Esta é, para o historiador

ateniense, a condição de possibilidade para que seu relato possa se constituir como

“aquisição [ktêma] para sempre”, dotada de utilidade universal.15

Trata-se, nas palavras de Luciano Canfora, de uma “axiologia das

sensações”, sendo os sentidos privilegiados a visão e a audição.16 A proeminência

da visão põe em segundo plano a discussão sobre a tensão entre logos e ergon,

pois desde que o historiador não queira ludibriar seus ouvintes / leitores, o relato

proveniente de testemunho ocular assegurará a verdade (alétheia) da exposição,

no sentido do desvelamento do que poderia ter-se ocultado rapidamente com a

ação destrutiva do tempo.17 É nesse sentido que deve ser compreendida a famosa

assertiva de Collingwood de que, para os gregos, “em vez de ser o historiador a

escolher o assunto, era o assunto que escolhia o historiador. Isto é, a história era

escrita apenas porque tinham lugar acontecimentos memoráveis, que despertavam

o aparecimento de um cronista”.18

O progressivo distanciamento em relação aos feitos, associado à

multiplicação dos relatos, constitui entrave decisivo na luta contra o

esquecimento; nesse sentido, a autópsia seguida de registro constitui o melhor

13 Cf. GUMBRECHT, Hans-Urich. Production of Presence. What Meaning Cannot Convey, 2004, p. xiii. “The word ‘presence’ does not refer (at least does not mainly refer) to a temporal but to a spatial relationship to the world and its objects. Something that is ‘present’ is supposed to be tangible for human hands […]”. 14 Cf. TUCÍDIDES. Op. cit., I, 20, p.79. 15 A premissa da utilidade geral da história, sua compreensão como “aquisição para sempre”, é a estabilidade da natureza humana e a recorrência de certos padrões perceptíveis nos acontecimentos. 16 CANFORA, Luciano. Op. cit., p.17. Discordo de Canfora, porém, quando este diz que “con l’esaltazione della vista, la storiografia rivela tutta la sua deboezza conoscitiva”. Não se trata de uma debilidade, e sim, para falar como Hartog, de um regime de historicidade fundado em uma concepção distinta de verdade. 17 Como percebe Luiz Costa Lima, a partir da análise heideggeriana da questão, “alétheia, portanto, continha um duplo movimento, que não era sucessivo e não se esgotava ao atingir o segundo estágio: ocultar e desvelar. Essa alternância lhe será constitutiva. Acrescente-se para o caso particular da escrita da história: a reconstituição de uma cena passada desvela e ao mesmo tempo oculta, sem que isso dependa de alguma intenção de fraude de quem a empreende”. COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura, p. 111. 18 COLLINGWOOD, R. G. A idéia de história, p.42.

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remédio contra a ação do tempo. “A natureza”, diz Políbio no livro XII das

Histórias,

forneceu-nos dois instrumentos por meio dos quais sabemos muitas coisas e

podemos averiguar outras. Refiro-me à visão e à audição; a vista é muito mais

fidedigna, segundo o dito de Heráclito: os olhos são testemunhos mais exatos que

os ouvidos.19

Isto porque, como diz Candolo a Gigés no livro I das Histórias de Heródoto, “os

ouvidos são menos crédulos que os olhos”.20

Políbio, prosseguindo seu exame dos dois “instrumentos” – visão e audição

–, cita o caso de Timeu, que teria escolhido para suas investigações o método

“mais agradável, porém menos válido”, abrindo mão do testemunho ocular e

valendo-se da audição, campo que comporta também a leitura.21 Neste último

caso, é preciso que o historiador tenha o cuidado de “buscar uma cidade que

possua documentação abundante ou que tenha em suas cercanias uma biblioteca”,

de modo a permitir o cotejo dos diferentes relatos”.22 A comparação e exame

cuidadoso das diversas posições analisadas fazem-se necessários, também, quando

existem diferentes versões orais. É significativo, nesse sentido, que Heródoto, nas

passagens de suas Histórias que tratam de acontecimentos já opacos na memória

dos homens, seja extremamente cauteloso, evocando diversas posições e muitas

vezes abstendo-se de tomar partido, enquanto os logoi de suas viagens não

comportam este tipo de procedimento, sendo mais afirmativos.23 O cotejamento

de informações obtidas por meios orais ou pela leitura de livros não deve, porém,

substituir a “investigação pessoal”, como defende Políbio.24 “Éforo”, diz ele,

“afirma que se pudéssemos ser testemunhas de todos os acontecimentos, esta

experiência seria muito distinta das outras”.25

19 POLIBIO. Histórias, XII, 27, p.521. 20 HERODOTO. Histórias, I, 8, p.32. 21 Cf. POLIBIO. Op. cit., XII, 27, p.521. 22 Cf. Idem. Ibid., XII, 27, p.522. 23 O que se relaciona diretamente àquilo que Santo Mazzarino considera uma singularidade de Heródoto: sua tentativa de compreender também o ponto de vista persa. Cf. MAZZARINO, Santo. Op. cit., p.164. 24 POLIBIO. Op. cit., XII, 27, p.522. 25 Idem.

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Entre os latinos, a abordagem da relação res / verba ganha novos contornos,

na medida em que a discussão acerca do caráter retórico da história é alçada ao

primeiro plano. Há, na comparação com os historiadores gregos, um deslocamento

parcial de ênfase, da produção da presença via autópsia ou escrutínio cuidadoso de

relatos orais para a construção de lições gerais moralizantes, o que se associa em

grande medida ao caráter cerimonial atribuído à história em Roma. Não que os

gregos tivessem preterido a meditação sobre o caráter retórico da história, ou

destinado pouca atenção à questão das lições formuladas a partir do exame de

acontecimentos passados. Segundo o argumento de Luciano Canfora, pode-se

perceber, da parte de Tucídides, um “esforço de elaboração retórica” na História

da Guerra do Peloponeso, onde o “espaço reservado à palavra retoricamente

elaborada é amplíssimo, em grande medida mais que em Heródoto”.26 Ademais,

discípulos de Isócrates, como Teopompo e Éforo, fizeram da retórica o princípio

condutor na composição de histórias.27 No que diz respeito à tópica da utilidade,

tanto Tucídides como Políbio realçam sua centralidade na história: “mas, se todos

os que quiserem examinar com clareza o que aconteceu (e o que porventura,

conforme o humano, será de novo igual ou semelhante ao acontecido) os julgarem

úteis, será o suficiente”, afirma Tucídides;28 “a melhor educação para a realidade

da vida é a experiência que resulta da história pragmática”, define Políbio.29

Existem, porém, diferenças contundentes no que diz respeito à comparação

do tratamento da tensão entre logos e ergon em Tucídides e da tensão entre res e

verba em Salústio e Cícero, assim como à comparação da concepção de utilidade

em Tucídides e Políbio e nos historiadores latinos. Diferentemente dos gregos,

estes esboçam uma sutil problematização daquilo que Luiz Costa Lima chama de

“determinação aporética da escrita da história”, ou seja, a compreensão desta

como inscrição da verdade, determinação do que é necessariamente fugidio.30 Diz

Salústio, em sua Conjuração de Catilina:

26 CANFORA, Luciano. Op. cit., p.22. Posição similar é defendida por: HORNBLOWER, Simon. “Narratology and Narrative Techniques in Thucydides”. In; HORNBLOWER, Simon. Greek Historiography, p.165. 27 Cf. CANFORA, Luciano. Op. cit., p.22. 28 TUCÍDIDES. Op. cit., 22, p.81. 29 POLIBIO. Op. cit., I, 35, p.112. 30 COSTA LIMA, Luiz. Op. cit., p. 39.

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parece-me que o ofício de quem escreve as coisas acontecidas [res gestas scribere]

seja árduo: primeiramente porque se deve adequar as palavras aos fatos; depois

porque diante das críticas feitas, a maioria pensa que as palavras foram ditas por

malevolência e ódio; quando se faz menção da grande virtude e da glória dos

valorosos, aceita de bom grado aquilo que julga capaz de fazer, enquanto considera

inventado ou falso o que supera suas possibilidades.31

Aqui, diferentemente do tratamento tucididiano da questão, Salústio não

recorre ao procedimento da autópsia como solução para seu impasse, que é tratado

como tensão constitutiva, no que diz respeito à verificação das dificuldades de

adequar palavras e fatos e de constatar uma apropriação que não seja tida como

maledicente, partidária ou puramente laudatória. A preocupação com a produção

da presença, embora exista, é tomada como um dos meios capazes de incidir no

fim almejado: a educação moral dos ouvintes / leitores. Como analisarei adiante,

Cícero, no De Oratore, abordará a questão em termos próximos de Salústio – ou,

reconhecida a anterioridade do escrito ciceroniano, pode-se dizer que os termos de

Salústio aproximam-se daqueles do filósofo latino.

A outra diferença fundamental diz respeito à questão da utilidade do relato

histórico. Para Tucídides e Políbio tratava-se menos da definição de lições morais

generalizantes que da proposição de ensinamentos práticos, de caráter político e

militar, capazes de atuar como “memória artificial” para homens que porventura

viessem a se encontrar diante de situações semelhantes às descritas nas histórias.32

Segundo Charles Fornara, o primeiro a introduzir lições moralizantes de caráter

geral nas histórias foi Xenofonte –33 não é de se estranhar, nesse sentido, que tanto

ele quanto Plutarco tenham sido, no Renascimento florentino, os historiadores

gregos mais difundidos.34 Para os latinos, a produção de uma lição de virtus pelo

ouvinte ou leitor do relato histórico era o ponto crucial. Daí a relevância atribuída

à questão do tratamento retórico da expositio rerum gestarum: se não houver a

atualização de efeitos persuasivos junto a leitores e ouvintes, o relato será incapaz

de fornecer lições adequadas.

31 SALUSTIO. La congiura di Catilina / Bellum Catilinae,, 3, 2, p.5. 32 Cf. WALBANK, Frank W. “Polybius and the past”. In: Polybius, Rome and the Hellenistic World. Essays and Reflections, p. 179. 33 Cf. FORNARA, Charles. Op. cit., p.107. 34 Cf. FRYDE, E. B. Humanism and Renaissance Historiography, p.24.

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Cícero, no De Oratore (55 a. C.), alude a utilidade do relato histórico em

sentença memorável e exaustivamente repetida até os nossos dias: “a história é

testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida,

mensageira do passado”. Menor atenção, porém, foi dedicada pela posteridade à

pergunta que fecha a ilustre passagem: “que voz, se não a do orador, pode torná-la

imortal?”.35 A seguir, analisarei a maneira com que Cícero concebe a relação entre

história e retórica, e sua ênfase na figura do orador prudente – simultaneamente

conhecedor da matéria e perito na ars dicendi – como aquele apto a ornar a

expositio rerum gestarum segundo os modelos gregos.

Procurando esmiuçar os termos da possível relação entre memoria rerum

gestarum e retórica, Cícero, pela voz do personagem Antonio, traça no livro II do

diálogo De Oratore uma genealogia das atividades de registro das coisas passadas

entre os romanos, com o intuito de delimitar, através da comparação dessas

práticas com o legado grego, aquilo que ele considera a especificidade da história:

ser uma construção de palavras e coisas devidamente ornada pela voz do orador,

condição para que o registro dos acontecimentos passados possa revelar alguma

utilidade pública. Diz Antonio que “a história [historia] não era mais que a

confecção de anais [annalium confectio]”36, e mesmo os gregos antes de Heródoto

e Tucídides haviam escrito como Catão, Fábio Pictor e Pisão – famosos, segundo

ele, tanto por suas valiosas notas sobre acontecimentos passados como pela crueza

e ausência de adornos em seus relatos.37 “Muitos seguiram essa forma de

redação”, prossegue ele, “que, sem ornamento algum, deixou apenas os

monumentos relativos aos tempos, aos homens, aos lugares, aos

acontecimentos”.38 Tais registros, porém, por sua rudeza e falta de elegância, não

são vistos como adequados à produção de ensinamentos gerais, capazes de

orientar as ações dos homens. Era preciso, segundo Antonio, que, a exemplo dos

gregos, os romanos dispusessem e ornassem suas histórias segundo as regras da

arte retórica, para que tais registros fossem capazes de produzir nos ouvintes e

leitores os efeitos desejados.

35 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 36. Emprego a tradução de Jacyntho Lins Brandão. In: HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho, p.181. 36 Idem. Ibid., II, 52, p.145. 37 Idem. 38 Idem.

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Antonio define dois modelos que, segundo ele, deveriam ser emulados pelos

romanos interessados em compor histórias. São ele Heródoto e Tucídides:

[...] entre os gregos, homens eloquentíssimos, que se mantiveram longe da prática

forense, dedicaram-se a outras atividades ilustres e sobretudo a escrever história

[historiam scribendam]. Por exemplo, o famoso Heródoto, que foi o primeiro a

ornar esse gênero, não se ocupou absolutamente de processos, segundo a tradição

que recebemos; todavia, tanta é sua eloqüência que eu, certamente, tanto quanto

posso entender o que se escreve em grego, me regalo extremamente com ela.

Depois dele, Tucídides, segundo minha opinião, ultrapassou facilmente a todos

pela arte da sua linguagem [dicendi artificio]: ele é tão denso em numerosos

domínios, que conseguiu ter quase tantas palavras [verborum] quanto

pensamentos [sententiarum]; mais ainda, sua dicção tem tanta proporção e tensão,

que não se sabe se o fato [res] dá brilho ao estilo [oratione] ou a língua [verba]

ao pensamento [sententiis]. [...] em seguida, saídos do que era como que uma

brilhantíssima escola de retórica, dois homens de superior talento, Teopompo e

Éforo, sob o impulso de seu mestre Isócrates, consagraram-se à história (grifos

meus).39

Heródoto é tido como o primeiro a ornar o gênero, a expositio rerum

gestarum, e Tucídides como o maior de todos, por seu dicendi artificio. Percebe-

se a ênfase atribuída ao ornato, à fluência e à riqueza de expressão – precisamente

o que diferencia, para Antonio, eloqüentes exornatores de simples narratores,

responsáveis pelo registro de fatos passados sem brilho algum.40 Como observa

Charles Fornara, o verbo latino ornare “significa algo mais que adornar

superficialmente, decorar, embelezar. [...] Ornare em si mesmo é tomar um fato e,

a partir dele, montar uma cena, desenvolvendo suas potencialidades latentes”.41

Um ponto deve ser destacado na passagem acima, por trazer elementos

cruciais para a compreensão do próximo passo argumentativo de Antonio, a saber,

a definição da história como uma construção de fatos e palavras [rebus et

verbis]:42 trata-se da tematização da especificidade da relação entre res e verba,

39 Idem. Ibid., II, 55-57, p.147. 40 Idem. Ibid., II, 54, p.147. 41 FORNARA, Charles William. Op. cit., p.136. 42 O uso do vocábulo “fato”, aqui, deve ser tomado em sentido amplo, como acontecimento, ou “coisas acontecidas”.

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através dos pares res x oratione, verba x sententia. Reagrupando-os pelo critério

da semelhança, não do antagonismo, é possível chegar a novos pares, a saber: res,

sententia x verba, oratione. O valor de Tucídides, segundo Antonio, estaria

exatamente no entrelaçamento destas oposições, de modo a tornar indistinguíveis

ars dicendi e rerum cognitione como aspectos separados do discurso; articulados,

torna-se difícil assinalar se é a res que dá brilho à oratione de Tucídides ou se é a

verba a iluminar seus pensamentos [sententiis]. Nesse sentido, pode-se dizer que o

valor da história ornada – a única, para Cícero, digna desse nome – repousa na

supressão retórica da oposição entre res e verba, não pelo recurso à autópsia, que

sequer é mencionada por Antonio, e sim pela prescrição de uma unidade

discursiva entre verba e rerum cognitione, que somente a figura do orador pleno –

simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – pode alcançar.

Assim, se em Tucídides existe a presunção de que o phronimos é

potencialmente o melhor historiador, por ser capaz de observar e compreender

com clareza as variações da realidade sem se deixar levar por simpatias ou

partidarismos diversos, conformando a fidúcia necessária à validação do

procedimento da autópsia, em Cícero a unidade retórica entre res e verba só pode

ser alcançada pelo prudente, um orador eloqüente que seja ao mesmo tempo

profundo conhecedor da matéria tratada. Daí a indagação de Antonio, após o

término de sua exposição sobre o valor dos historiadores gregos: “não vedes a que

ponto a história é função do orador? Não sei se a mais importante, pela riqueza e

pela variedade do estilo”.43

Logo a seguir, Antonio destacará a falta de atenção dos tratados de retórica à

história, a qual, segundo ele não é “em lugar algum especialmente contemplada

pelos preceitos dos retores”.44 Isto se deve, segundo ele, ao fato de as leis da

história serem de conhecimento geral, estando por isso “diante dos nossos olhos”.

São as seguintes as leis da história elencadas por Antonio:

Com efeito, quem ignora que a primeira lei da história é não ousar dizer algo falso?

Em seguida, não ousar dizer algo que não seja verdadeiro? Que não haja, ao se

escrever, qualquer suspeita de complacência? Nem o menor rancor?.45

43 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 62, p.151. 44 Idem.

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As leis da história constituem premissas necessárias, sem as quais mesmo

uma narrativa convenientemente ornada não se revelará eloqüente e persuasiva,

precisamente por carecer de conhecimento da matéria. Como diz Emanuele

Narduci, “a abundância da matéria”, para Cícero, “produz a riqueza das palavras,

e a honestidade (honestas) dos argumentos tratados conferem uma natural beleza à

expressão do orador”.46 Por esta razão não é possível extrair lições úteis do que

não aconteceu, ou do que foi deturpado por rancor ou complacência. Assim como

Tucídides, Cícero, por um viés diverso, embora em alguma medida complementar

àquele do historiador ateniense, atribui relevo à questão da fidúcia, não pelo

recurso ao argumento de autoridade do testemunho ocular prudente, mas através

da construção retórica de um caráter (ethos) irretocável,47 fundamental para que

haja a produção de uma “representação que coloca diante dos olhos”. Diz Alcir

Pécora acerca do panegírico, subgênero epidítico assim como a história e outras

formas historiográficas:

trata-se pois de um discurso que autoriza a verdade desses feitos. O seu recurso

fundamental para tanto é a representação que os coloca diante dos olhos do leitor,

por meio de uma composição assentada na vivacidade do que se narra, de tal modo

que se imagina testemunhado pela vista, no exato presente da leitura.48

A atinência às leis da história, nesse sentido, é incapaz por si mesma de “dar

fé” ao que é narrado, uma vez que a construção de um bom ethos é ela mesma

retórica, sendo parte importante da inventio – seu lugar apropriado é o exórdio,

que deve buscar a atenção e captar a benevolência dos ouvintes.49 Daí a afirmação

de Antonio de que “esses fundamentos são conhecidos por todos, mas a própria

construção repousa nos fatos e nas palavras [exaedificatio posita est in rebus et

45 Idem. 46 NARDUCCI, Emanuele. Cicerone e l’eloquenza romana, p.65. 47 Digo que são aspectos complementares porque também em Tucídides a construção do ethos é retórica, uma vez que o que dá fé não é apenas o testemunho ocular em si, mas também a prudência de quem testemunha, a qual é atestada pelos ouvintes e leitores que precisam reconhecê-lo como tal. No entanto – e aí reside a diferença fundamental –, Tucídides não tematiza esta construção do ethos como elemento decisivo da história, enquanto Cícero, na medida em que subordina a ars historica ao sistema retórico, implicitamente atribui um lugar próprio à delimitação do ethos. 48 PÉCORA, Alcir. “A história como colheita rústica de excelências”. In: SCHWARTZ, Stuart B.; PÉCORA, Alcir (org.). As excelências do governador, p.49. 49 Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Exordium Narratio Epilogus. Studi sulla teoria retorica greca e romana delle parti del discorso, p.3.

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verbis]”.50 Como argumenta Luiz Costa Lima, “o De Oratore, concebido e

redigido em 55 a.C., revelava que, mesmo em Roma, a maior ênfase na

eloqüência não dissolvia a nota específica do historiador”.51 Isto não quer dizer,

porém, que “Luciano e Cícero expunham o historiador fora do puro domínio da

retórica”,52 muito pelo contrário: toda a ênfase do filósofo romano – e também do

sátiro de Samósata, como analisarei adiante –, voltava-se para a elevação da

expositio rerum gestarum segundo preceitos retóricos articulados a partir da

leitura atenta e minuciosa dos historiadores gregos, especialmente Tucídides.53

Dito de outro modo, Cícero defende que, embora as leis da história não possam

ser abandonadas, elas, em si, não garantem a elevação do gênero; somente o

orador pleno, um homem prudente,54 está apto a produzir uma história rica em

ensinamentos, útil por ser capaz, inicialmente, de deleitar seus ouvintes / leitores e

em seguida de movê-los no sentido da ação virtuosa.55

Seguindo o mesmo viés analítico, Luciano de Samósata, embora defenda em

seu opúsculo Como se deve escrever a história que “do mesmo modo que

admitimos que o historiador deve ter como objetivos a franqueza e a verdade,

assim também o primeiro e único objetivo de sua linguagem é explicar claramente

os fatos e fazê-los aparecer em plena luz”56, argumenta que “será necessário

algum sopro poético para inflar as velas com bons ventos e elevar a nau sobre a

50 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 63, p.151. 51 COSTA LIMA, Luiz. Op. cit., p.98. 52 Idem. Ibid., p. 100. 53 Cf. NARDUCCI, Emanuele. Op. cit., p. 23. 54 Cícero vislumbra na figura do orador pleno – simultaneamente sábio, prudente e eloqüente – a desejável unidade entre filosofia e retórica. Cf. CAPE JR., Robert W. “Cicero and the Development of Prudential Practice at Rome”. In: HARIMAN, Robert (org.). Prudence. Classical Virtue, Postmodern Practice, p.39; NEDERMAN, Cary J. “Rhetoric, reason, and republics: Republicanisms – ancient, medieval, and modern”. In: HANKINS, James (org.). Renaissance Civic Humanism, p.252. 55 Docere, delectare, movere: de acordo com os tratados clássicos, estas seriam as três finalidades da retórica, sendo a primeira associada ao gênero de estilo simples, a segunda ao gênero nobre e a terceira ao gênero médio. A história, por ser compreendida como subgênero epidítico com alguma proximidade do gênero deliberativo, não deveria se fixar exclusivamente em um dos três gêneros de estilo. No que diz respeito à narração, o gênero simples deveria ser privilegiado. Já no exórdio e nas digressões, o gênero médio seria o mais apropriado, visando ao deleite e à captação da benevolência do auditório ou dos leitores. Na peroração, responsável por mover os homens à ação, o gênero de estilo conveniente seria o nobre. Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p.7. “Nell’orator poi la dottrina, pur presentata sempre come caratteristica di Antonio, subisce un’evouzione nella conessione tra queste qualità o compiti dell’oratore e i tre stili del discorso, per cui al docere corrisponderebbe lo stilo piano, ao delectare il medio, al movere l’elevato”. 56 LUCIANO. Como se deve escrever a história. In: HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho, 44, p. 225. Tradução de Jacyntho Lins Brandão.

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crista das ondas”.57 Daí sua preocupação com a disposição e com o adornamento

do discurso:

justamente essa é também a tarefa do historiador: ordenar os acontecimentos de

forma bela e mostrá-los da maneira mais clara possível. Quando, escutando-o,

alguém julga ver o que é dito e em seguida o elogia, então, sim, sua obra está

perfeita, tendo ele recebido um elogio apropriado a um Fídias da história (grifo

meu).58

Em Luciano, como em Cícero, a produção da presença advém do domínio

das sutilezas e habilidades da arte retórica. A visualização do que é dito decorre da

consecução de um efeito desejado, insinuado em movimentos sutis concernentes à

mobilização de lugares-comuns, às medidas dispositivas e às figuras da elocutio

empregadas. Constitui-se, assim, uma unidade discursiva calcada na presunção da

indissociabilidade entre o conhecimento da matéria e sua exposição apropriada,

incidindo em relato pleno, decoroso, útil e honesto. Daí que o lugar da história no

sistema retórico seja, senão esmiuçado, ao menos aludido nos tratados clássicos de

arte retórica, especialmente nas sessões destinadas ao exame do gênero epidítico.

Voltado para a produção de lições edificantes, úteis e honestas, onde,

através do encômio ou vitupério de homens e cidades, ficassem claros o caminho

da virtude e os perigos do vício, o gênero epidítico englobava uma série de

subgêneros: o panegírico, a laudatio funebris, a biografia exemplar, a crônica, a

história, entre muitos outros. Como argumenta Lucia Calboli Montefusco, “no

gênero epidítico o uso da narratio se justifica mais razoavelmente”, em

comparação com seu emprego no gênero deliberativo.59 Daí que, no De

Inventione, a história seja tratada na seção destinada à narrativa, sendo definida

como a exposição de gesta res, ab aetatis nostrae memoria remota – coisas

acontecidas em tempos distantes, segundo nossa memória.60 Ela vem incluída,

juntamente com a fabula – “narração própria da tragédia e da poesia, distante da

verdade e da verossimilhança” – e o argumentum – “narração própria da comédia,

57 Idem. Ibid., 45, 227. 58 Idem. Ibid., 51, p. 231. 59 MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p. 36. 60 CICERO, Marco Tulio. De Inventione. Madrid: Gredos, 1997, I, 19.

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distante da verdade mas verossímil”61 –, na classe de narrativas concernentes aos

negotiis, não às pessoas, categorias que por sua vez pertencem ao terceiro grupo

de uma divisão tríplice: (a) narrativa que inclui a própria causa, fundamento da

controvérsia; (b) narrativa que contém uma divisão externa à causa, cuja

finalidade principal é a acusação; (c) narrativa alheia às causas civis, cujo objetivo

principal é agradar, embora sirva também como exercício útil para o falar e o

escrever.62

As premissas gerais do gênero epidítico são estabelecidas e analisadas por

Cícero em De Partitione Oratoria: “tudo o que está associado à virtude deve ser

louvado e tudo o que está associado ao vício deve ser vituperado”, diz ele.63 “Mas

este tipo de discurso”, prossegue, “consiste em narrar e exibir ações passadas, sem

empregar argumentos, e seu estilo busca influenciar suavemente as emoções, ao

invés de buscar convencimento e aquisição de provas. Ele não estabelece

proposições que são duvidosas; ao contrário, ele amplifica o que é certo, ou tido

por certo”.64 Como o objetivo claro é o de deleitar a audiência, prossegue ele, o

orador deve buscar um “ritmo capaz de satisfazer os ouvidos como o que se pode

chamar de harmonia verbal”,65 o que corresponde ao gênero de estilo médio. Este

ritmo, no caso da história, deve emular a autoridade de Heródoto e Tucídides,

perfazendo um “tipo de discurso agradável, fácil, abundante, com frases

engenhosas e palavras harmoniosas”, de acordo com definição proposta no

Orator.66

Como notam Perelman e Tyteca,

os discursos epidíticos constituem uma parte central da arte de persuadir [..]. A

eficácia de uma exposição tendente a obter dos ouvintes uma adesão suficiente às

teses apresentadas, só pode ser julgada pelo objetivo que o orador se propõe. A

intensidade da adesão [...] muitas vezes será reforçada até que a ação, que ela

deveria desencadear, tenha ocorrido.67

61 Cf. MONTEFUSCO, Lucia Calboli. Op. cit., p.46. 62 Esta mesma divisão se faz presente na Retórica a Herênio e em Quintiliano. Cf. Idem. Ibid., pp. 45-6. 63 CICERO, Marco Tulio. De Partitione Oratória, XXI, 71. 64 Idem. 65 Idem. Ibid., XXI, 72. 66 CICERO, Marco Tulio. Orator, 42, p. 47. 67 PERELMAN, Chaïm; TYTECA, Lucie Olbrechts. Tratado da Argumentação. A Nova Retórica, pp. 54-5.

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O discurso epidítico, nesse sentido, reforça “uma disposição para a ação ao

aumentar a adesão aos valores que exalta”,68 aproximando-se, portanto, do gênero

deliberativo, sem confundir-se com ele. Assim, o ato de deleitar a audiência, a que

a história deveria visar inicialmente, não era tomado como um fim em si mesmo,

isto porque havia claramente a prescrição de uma finalidade pedagógica dos

relatos, na medida em que se esperava que estes visassem sobretudo à afirmação

do útil. Define-se, assim, uma estreita relação entre os gêneros epidítico e

deliberativo, embora, ao menos até o século XV, seus contornos se mantenham

nítidos e bem traçados.69

O argumento-tipo do discurso epidítico é a amplificação. Por amplificação

entendia-se uma forma de argumentação pautada na elevação da nobreza de algo

ou alguém, ou no destaque dos vícios de algo ou alguém, como forma de “instigar

o auditório por meio do lugar-comum”70 e de compor o caráter virtuoso ou vicioso

do sujeito através do elogio ou censura.71 Os preceitos relativos ao encômio e ao

vitupério são compartilhados pelo panegírico e pela história, e Cícero os enumera

no livro II do De Oratore (45,46). A história, porém, possui algumas regras

próprias, que tanto dizem respeito ao tratamento da matéria quanto à elocutio. Diz

Antonio:

a inteligência dos fatos requer a ordem dos tempos e a descrição dos lugares. Pede

também, já que em fatos importantes e dignos de memória se espera que haja

primeiro deliberações, depois execução e em seguida resultados, que sobre as

deliberações seja indicada qual é aquela que o autor aprova; sobre os feitos, que se

declare não só o que se fez ou se disse, mas também de qual modo; e, quando se

fala do resultado, que se desenvolvam todas as causas que se devem ao acaso, à

sabedoria ou à temeridade – e não se fale só dos feitos dos próprios homens, mas,

com relação aos que se distinguem pela reputação e pelo nome, também da vida e

do caráter de cada um. Quanto à economia da linguagem [verborum autem ratio],

68 Idem. Ibid., pp. 55-6. 69 Cf. KAHN, Victoria. Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, p.39. “But the distinction between deliberative and demonstrative rhetoric breaks down in the works of the Quattrocento humanists not only because epideictic can be viewed as urging a course of action, but also because the deliberation involved in reading is itself understood as a form of the deliberation that leads to action”. 70 AD. Retórica a Herênio, II, 47, p.143. 71 Cf. LECHNER, Joan Marie. Renaissance Concepts of the Commonplaces, p.101.

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deve-se perseguir um gênero oratório difuso e arrastado, que flua regularmente

como uma certa suavidade, sem essa aspereza própria ao tribunal e sem os

aguilhões que as fórmulas têm no fórum (grifos meus).72

São estes, para Antonio, os preceitos concernentes à composição da história

segundo as regras da arte retórica, princípios que envolvem não apenas o

tratamento do estilo como também a apreciação da matéria, através da

especificação dos três tipos de causas que devem ser atribuídas às ações humanas;

da necessidade de não apenas descrever o que se fez ou disse, mas também de

definir os modos com que algo foi feito ou dito; da defesa de que a vida e caráter

dos homens sejam abordados como aspectos constitutivos dos próprios fatos.

Embora tratadistas subseqüentes como Quintiliano e Dionísio de

Helicarnasso tenham direcionado o debate para outros aspectos, como a

proximidade entre história e poesia,73 a asseveração da dignidade da história

sempre esteve associada à mobilização da tópica da utilidade. Daí a afirmação de

Luciano de Samósata de que “a utilidade é o fim da história, de modo que, se

alguma vez, de novo, acontecerem coisas semelhantes, poder-se-á, diz ele,

consultando-se o que foi escrito antes, agir bem em relação às circunstâncias que

se encontram diante de nós”.74 Os termos são claramente tucididianos, e remetem

à famosa passagem do capítulo 22 do livro I, onde o historiador ateniense afirma

que seu relato constitui “aquisição para sempre”.

Ao afirmar o produto de sua operação como ktêma (aquisição, patrimônio)

para sempre, Tucídides atribui a seu escrito um caráter monumental: por ser o

registro da guerra, a história se afirma como presença, cuja validade em si, cuja

grandeza dos erga, registrada em logos a que se atesta fidúcia pela autópsia,

produzirá lições úteis àqueles que se dispuserem a destrinchá-la. Como nota

François Hartog, Tucídides opera aí um deslocamento fundamental em relação a

Heródoto, do kléos ao ktema:

Heródoto pôs mãos à obra para impedir que todas as marcas da atividade dos

homens se apagassem (tornando-se akléa), deixando muito rapidamente de serem

72 CICERO, Marco Tulio. De Oratore, II, 63-64, p.151. 73 Cf. COSTA LIMA. Op. cit., pp.100-104.

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contadas. Tucídides, por seu lado, escolhendo ‘escrever’ uma guerra que ele sabia

dever ser ‘a maior’ de todas, apresenta sua narrativa como ‘ktêma para sempre’,

isto é, patrimônio para sempre. Do kléos ao ktêma, o deslocamento é sensível. [...]

Daí em diante não se trata mais de preservar do esquecimento as ações valorosas,

mas de transmitir às gerações futuras um instrumento de inteligibilidade de seu

próprio presente.75

Este sentido de patrimônio, aquisição, monumento, adquire uma dimensão

ainda mais expressiva com os romanos, para quem a história era sempre entendida

como res gestae populi Romani.76 Como percebe Charles Fornara, diferentemente

dos gregos, “Fábio, Postumus, Catão, Fannio, Asellio e outros escreveram sobre

sua cidade-estado como membros da elite dirigente”.77 Daí que, por exemplo, a

questão dos conflitos internos (stasis), de modo algum um assunto considerado

memorável e por isso digno de nota entre os historiadores gregos, torne-se um

objeto privilegiado nas considerações dos romanos.

Uma das principais críticas de Cícero aos primeiros narratores latinos das

coisas acontecidas dizia respeito à dificuldade de se extrair lições edificantes de

relatos pouco ornados, rústicos e meramente descritivos. Nesse sentido, Salústio,

profundo conhecedor dos oradores gregos, pode ser considerado como o primeiro

dentre os romanos a compor uma obra histórica em consonância com os preceitos

ciceronianos, embora fosse inimigo político do filósofo – o que, como percebe

Santo Mazzarino, não o impediu de atribuir a Cícero um papel de destaque na luta

contra Catilina.78 Sua Conjuração de Catilina, claramente inspirada em motivos

tucidideanos, pode ser considerada uma tentativa de construir um legado romano

para sempre apoiado em dois pilares: a antiga virtus do período anterior à Segunda

Guerra Púnica, associada a homens que “com estas duas atitudes, a audácia na

guerra e a eqüidade nos momentos de paz, governavam a si mesmos e à

república”,79 e os exemplos de virtude no mar de corrupção da Roma de Salústio,

74 LUCIANO. Op. cit., 42, p.225. 75 HARTOG, François. Op. cit., p.28. 76 Cf. FORNARA, Charles. Op. cit., p.41. 77 Idem. Ibid., p.54. 78 Cf. MAZZARINO, Santo. Il pensiero storico clássico, vol. 3, p.17. 79 SALUSTIO. Op. cit., 9,3, p.13.

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especificamente Catão e César, “homens de notável virtude, e por caráter

opostos”.80

Eis um tema que Maquiavel retomará em O Príncipe: a complementaridade

entre ímpeto e prudência. Catilina só pôde ser derrotado, argumenta Salústio,

porque dois homens de temperamentos distintos atuaram em colaboração – Catão,

homem severo, modesto e decoroso, que preferia ser bom a parecer bom; César,

responsável por inúmeras glórias e conquistas no comando de suas legiões, liberal,

o “refúgio dos pobres”, além de estimado pela generosidade.81 A prudência, na

Conjuração de Catilina, é vista como a principal dentre as virtudes, aquela

responsável tanto pela articulação da concórdia civil – sendo por isso

fundamentalmente justa –, como pelo equilíbrio dos apetites:

os homens mais prudentes eram os mais ocupados nos negócios políticos, ninguém

exercitava a mente sem o corpo, os melhores preferiam agir a falar [...]. Tanto na

paz como na guerra os bons costumes eram cultivados: a concórdia era máxima,

mínima a avidez.82

Já o ímpeto é associado à bravura e à coragem, especialmente no que

concerne ao domínio das habilidades militares.

Salústio, sem perder de vista a lição honesta afirmada no proêmio de caráter

filosófico – “a glória das riquezas e da beleza é efêmera e frágil; a virtus é um

bem esplêndido e eterno”83 –, constrói, em movimentos bem marcados, sua

exposição da conjuração de Catilina, procurando seguir tanto o preceito

tucididiano da akríbeia como as regras elencadas no De Oratore sobre o

tratamento da matéria e o estilo adequado à história: a narrativa é breve e suave,

indo dos tempos antigos, descritos rapidamente como na parte “arqueológica” da

história de Tucídides, aos tempos atuais, delineados em minúcias; discursos

diretos expõem as motivações dos personagens, e possibilitam a demarcação de

pontos de vista diversos; o acaso, a sabedoria e a temeridade são os critérios

explicativos fundamentais das ações dos agentes; a amplificação da virtudes de

César e Catão, assim como dos vícios de Catilina e seus asseclas, demarcam

80 Idem. Ibid., 53, 6, p.81. 81 Cf. Idem. Ibid., 54, p.83. 82 Idem. Ibid., 8-9, p.13. 83 Idem. Ibid., 1, 4, p.3.

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nitidamente o caráter destes, encadeando-se com as ações – as amplificações

constroem o ethos em sentido retórico, mobilizando lugares-comuns de aceitação

universal; trata-se, nesse sentido, menos da tentativa de delimitar as motivações

dos agentes que da produção de hipérboles capazes de incidir na atenção dos

ouvintes e leitores. Assim, o relato ornado, repleto de exemplos, sentenças,

amplificações e figuras engenhosas deleita num primeiro momento para, em

seguida, persuadir os ouvintes e leitores no sentido da ação imitativa, segundo os

modelos virtuosos apresentados.

Levando-se em conta o tratamento de Cícero e Salústio da ars historica,

modelos que Tito Lívio toma para si, não é de se estranhar que ele, em seu Ab

Urbe Condita, defina a história como monumento:

o que principalmente há de são e fecundo no conhecimento dos fatos [cognitione

rerum] é que consideras todos os modelos exemplares, depositados num

monumento, em plena luz: daí colhes para ti e para teu estado [rei publicae] o que

imitar; daí evitas o que é infame em sua concepção e em sua realização.84

Concebida como “texto-monumento”85 – oposto à “palavra evento” do

aedo, para empregar terminologia de Florence Dupont –, registro utilitário da res

gestae populi Romani, esperava-se da história que iluminasse os homens,

fornecendo, através de exemplos numerosos, modelos virtuosos a serem imitados

ou condutas viciosas a serem rejeitadas. O exemplo, retoricamente, torna claro o

que é obscuro; ajuda na construção do verossímil; torna a matéria mais ornada;

finalmente, como se pode ler na Retória a Herênio, “coloca-as diante dos olhos,

quando expressa tudo de modo tão perspícuo que eu diria ser quase possível tocar

com a mão”.86 O monumento da história é, nesse sentido, uma efetiva presença

tangível, capaz de orientar, como aquisição para sempre, inúmeras gerações. E é

precisamente como monumento pedagógico da virtus, urdido retoricamente pelo

prudente – profundo conhecedor da matéria tratada e perito na ars dicendi –, que

os humanistas florentinos, emulando as autoridades da Antiguidade, conceberão a

ars historica.

84 TITO LIVIO. Ab Urbe Condita, Proêmio, 10, p.207. In: HARTOG, François. A história de Homero a Santo Agostinho. Tradução de Jacyntho Lins Brandão. 85 Cf. DUPONT, Florence. L’invention de la littérature, p.36. 86 Cf. AD. Retória a Herênio, IV, 62, p.297.

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4.2 A concepção humanista da ars historica.

Do tom ciceroniano predominante no tratamento humanista da ars historica. As

histórias de Florença de Leonardo Bruni e Poggio Bracciolini. As considerações

de Giovanni Pontano e Lorenzo Valla.

Na ótica do humanista Coluccio Salutati, a história constituía difficilimum

genus dicendi:87 somente um profundo conhecedor dos assuntos públicos e da arte

retórica estaria apto, segundo ele, a compor uma obra histórica diligente e

cuidadosa, capaz de fornecer lições úteis e de orientar o homem no sentido da

virtude.88 Cesare Vasoli percebe que

Salutati fixa com clareza o status da história na cultura de que ele mesmo é um dos

representantes máximos; a saber, sanciona a função predominantemente ético-

política, o caráter peculiar de ars dicendi (que tem por instrumento essencial o

exemplum) e a finalidade francamente persuasiva [...]. Não espanta que o opus

oratorium mais digno, mais eficaz e melhor adequado a estas finalidades seja

justamente a grande narrativa histórica, imitada dos modelos clássicos máximos.89

O tom das considerações de Salutati é claramente ciceroniano, e busca

fundamentalmente a afirmação da unidade entre expressão decorosa e

conhecimento rigoroso da matéria – o que ademais conformará um padrão entre

os humanistas dedicados à discussão da ars historica. Guarino de Verona, em

epístola de 1446, afirma que na história veritas e utilitas são inseparáveis90; Jorge

de Trebizonda, no seu Rhetoricorum libri, defende o caráter essencialmente

87 Cf. STRUEVER, Nancy. The language of History in the Renaissance, p.72. 88 Cf. VASOLI, Cesare. “Modelli teorici della storiografia umanistica”. In. Civitas Mundi, p. 215. “[…] la storia sia il solo vero ammaestramento etico-politico, la forma di discorso più persuasiva che permette il migliore orientamento nell’intricata selva del mondo umano, dove tutto semra posto sotto il segno del possibile e del probabile e valgono a poco le sottigliezze astratte dei logici, le predicazioni dei moralisti e – si direbbe – le dottrine sempre troppo universali dei filosofi”. 89 Idem. Ibid., p. 216. “[…] il Salutati fissi già con chiarezza lo status della storia nella cultura di cui egli stesso è uno dei massimi rappresentanti; e, cioè, ne sanzioni la preminente funzione etico-plitica, il carattere peculiare di ars dicendi (che ha per strumento essenziale l’exemplum) e la finalità schiettamente persuasiva [...]. Né stupisce che l’opus oratorium più degno, più efficace e megli rispondente a simili finalità diventi appunto la grande narrazione storica, imitata dai massimi modelli classici [...]”. 90 Cf. Idem. Ibid., p. 219.

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oratório da história91; Bartolommeo della Fonte, assim como o Trapezuntio,

argumenta que a eloqüência é condição necessária de uma narração histórica

verdadeira92; Paolo Cortesi, em De hominibus doctis (1490), destaca a

importância de aliar estilo elegante, basicamente inspirado em Tito Livio, e

deliberação prudente, sustentada em exposição clara das estratégias militares e dos

debates públicos.93 “Cortesi”, argumenta Donald Wilcox, “insiste no valor da

‘delectationem’ e da ‘utilitatem’, que só podem ser asseguradas por um arranjo

claro e bem-expresso da grande variedade de eventos que uma história deve

incluir em sua narrativa”.94

Já foi amplamente notado que a Historiarum Florentini Populi Libri XII de

Leonardo Bruni, composta ao longo de várias décadas e deixada incompleta em

função da morte do humanista aretino em 1444, possuiu um caráter quase oficial.

Segundo Felix Gilbert, “os governos principescos italianos” costumavam nomear

“historiadores públicos desde o início do Quattrocento”; porém, segundo ele,

“uma posição similar não existia nas cidades-estado republicanas”, pelo menos

não antes da contratação de Andrea Navagero em 1516 para escrever uma história

de Veneza.95 Ainda que as Histórias não tenham sido encomendadas diretamente

pela Signoria, Bruni, após a publicação do primeiro dos doze livros, passou a ter

isenção de impostos para melhor se dedicar à sua composição, tornando-se uma

espécie de historiador oficial da cidade.96 Em seu funeral, Bruni, autor de

panegíricos, vidas, diálogos, cartas familiares, tradutor de Platão, Aristóteles,

91 Cf. Idem. Ibid., pp. 219-220.“Ora, il Trapezunzio non ha alcun dubbio che il discorso storico sia sempre ed essenzialmente oratorio (anche se contraddistinto del particolare carattere della sua narrazione che deve essere ‘clara’ e ‘brevis’)”. 92 Cf. TRINKAUS, Charles. “A Humanist’s Image of Humanism: the Inaugural Orations of Bartolommeo della Fonte”, p. 117. “Summarizing what he had covered I this present oration he again indicates history as subordinate to rhetoric”. 93 Cf. WILCOX, Donald. The Development of Florentine Humanist Historiography in the Fifteenth Century, p. 17. 94 Idem. Ibid., p. 19. “Cortesi himself insists o the vlue of ‘delectationem’ and ‘utilitatem’, which can only be assured by a clear and well-expressed arrangement of the great variety of events that a history must include in its narrative” 95 GILBERT, Felix. “Le ‘Storie Fiorentine’ di Machiavelli. Saggio interpretativo”. In: Machiavelli e il suo tempo, p.291. “I governi principeschi italiani avevano nominato storici pubblici fin dagli inizi del Quattrocento. Ma una simile posizione non esisteva nelle città-stato rpubblicane. La prima nomina di questo tipo fu quella di Andrea Navagero, che nel 1516 fu stipendiato dal governo veneziano per comporre una storia di Venezia”. 96 HANKINS, James. “Introduction”. In: History of the Florentine People, vol. 1, p.xi.

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Tucídides, Políbio e outros, teve depositado em seu túmulo precisamente um

exemplar das Histórias, cena preservada em monumento fúnebre.97

Como percebe Eugenio Garin, “o ideal de Lenardo Bruni era usar humanae

litterae e studia humanitatis como meios para a educação do homem completo”.98

Nesse ideal, pode-se dizer que a história possuía um lugar de destaque, sendo

considerada, inclusive, como um dos pilares dos studia humanitatis,99 por oferecer

exemplos abundantes de ações virtuosas e viciosas, atuando assim como

repositório de experiências alheias incorporadas artificialmente como memória.100

A História de Bruni, nesse sentido, era vista pelos próprios florentinos como um

monumento da cidade, por ilustrar, em estilo irretocável, aquilo que eles

consideravam sua maior virtude como povo: o apego à liberdade.101 Uma prova do

valor atribuído ao empreendimento de Bruni é a tradução para o vulgar do texto,

completada em 1473 por Donato Acciaiuoli e financiada pela Signoria.102

Não que Leonardo Bruni tenha sido o primeiro a escrever os feitos dos

florentinos desde tempos imemoriais: ao longo dos séculos XIII, XIV e XV

diversos cronistas, como Dino Compagni, Giovanni Villani, seu irmão Matteo,

Filippo, filho deste, Goro Dati, entre outros, deixaram valiosos registros da vida

citadina e dos conflitos externos de Florença. Um dos focos principais dos

cronistas era fornecer descrições detalhadas dos assuntos internos e externos da

cidade, entre outras coisas para que futuros historiadores interessados em escrever

histórias de Florença segundo os cânones clássicos tivessem material abundante à

disposição.103 As crônicas eram compostas em língua vulgar – ou seja, na própria

97 Cf. WILCOX, Donald J. Op. cit., p.8. “Poggio Bracciolini, who would eventually succeed Bruni both as chancellor and as historian of Florence, composed a funeral oration for Bruni in which the Historiae are singled out among Bruni’s achievements: ‘But’, [diz Poggio], ‘what must receive the highest praise from all ages is the history of Florentine affairs which he wrote in twelve books [..]’”. 98 GARIN, Eugenio. Italian Humanism, p.41. “Leonardo Bruni’s ideal was to use humanae litterae and studia hmanitatis as means for the education of the complete man”. 99 Cf. KRISTELLER, Paul Oskar. Renaissance Thought and its Sources, p.244. “The fourteenth century witnessed a rise of grammar and rhetoric, especially in Italy, and this is reflected in the new scheme of the studia humanitatis which we encounter in the course of the fifteenth century. This scheme, as we saw before, includes grammar, rhetoric, poetry, history, and moral philosophy”. 100 Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.125. “History becomes the history of publicly-shared experience on the one hand”. 101 Como nota Donald Wilcox, “[...] at least outside humanist circles, Bruni’s history was valued as an illustration of how liberty is to be achieved and maintained”. WILCOX, Donald. Op. cit., p.16. 102 Cf. Idem. Ibid., p.4. 103 Apud MATUCCI, Andrea. Machiavelli nella storiografia fiorentina, p.3. Diz Villani: “non perch’io mi senta sifficiente a tanta opera fare, ma per dare materia a’nostri successori di nonn-essere negligenti di fare memorie delle notevoli cose che averranno per gli tempi apresso noi”.

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língua falada e usada em apontamentos comerciais, e não em latim, comum nos

tratados humanistas – e em estilo próximo daquele empregado por mercadores em

seus livros de memórias, visando primordialmente à produção de lições úteis

calcadas na distinção entre virtude e vício.104 Apesar disso, as crônicas não se

conformavam a muitos dos preceitos clássicos associados à ars historica.105 “As

crônicas ainda não eram histórias”, diz Eric Cochrane, “pelo menos não de acordo

com a nova definição de história que estava para emergir do trabalho de Bruni e

seus sucessores”106 – precisamente a noção de vera storia, ou história verdadeira.

Isto por algumas razões: em primeiro lugar, as crônicas eram redigidas em língua

vulgar, considerada imprópria para gêneros nobres e dignos. Em segundo lugar, as

crônicas eram estruturadas livremente: normalmente não apresentavam uma

introdução geral de caráter filosófico, não se atinham exclusivamente à vida

política e assuntos militares – até mesmo por isso elas são documentos preciosos

para os historiadores contemporâneos, por fornecerem informações valiosas sobre

o cotidiano e as práticas econômicas –, tampouco emulavam necessariamente as

autoridades clássicas. Finalmente, a história, como argumentavam os humanistas a

partir da leitura de Cícero, deveria fornecer padrões de compreensão mais

complexos que a pura descrição dos eventos, característica das crônicas

(descrições estas que, como percebe Louis Green, muitas vezes portavam um

sentido providencialista completamente estranho às histórias humanistas).107

A História de Bruni, nesse sentido, pode ser considerada como o modelo

perfeito da vera storia em sentido humanista: construída em latim perfeito, emula

as autoridades de Tito Lívio, Salústio, Tucídides e Políbio, especialmente do

104 Cf. GREEN, Louis. Chronicle into History, p.3. 105 Sobre esta questão, afirma Donald Wilcox: “Bruni’s statement of theme differs from the opening sections of all these chronicles and vernacular histories in two major respects. First, in no case do the chroniclers present a clear statement of the scope of their subject. […] The second difference between the preface of Bruni and those of the chroniclers illustrates even more plainly his departure from tradition. The chroniclers’ statements of scope are not only confused but basically nonselective, including everything in any way connected with the general topic of their work, whether that is a city or a family. The rigor with which Bruni applies his principle of selectivity separates him strikingly from the group of vernacular historians”. WILCOX, David. Op. cit., p.34. 106 COCHRANE, Eric. Historians and Historiography in the Italian Renaissance, p.11. “Chronicles were not yet history, at least not according to the new definition of history that was to arise from the work of Bruni and his successors”. 107 Cf. GREEN, Louis. Op. cit., p.5. “Instead of so dismissing history, a chronicler such as Giovanni Villani saw it as material through which the will of God revealed itself. It could be made to demonstrate the consistency between the working of the human world and the principle of divine justice”.

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primeiro.108 Seus temas são circunscritos à vida política citadina e às guerras

travadas por Florença.109 “A história”, diz Bruni no proêmio, em clara referência a

alguns dos preceitos ciceronianos estabelecidos no De Oratore, “requer uma

narrativa longa e bem conectada, explicações causais de cada evento, e a

expressão pública do julgamento sobre cada assunto”.110

Assim como em sua acepção antiga, a história, para os humanistas, deveria

ser persuasiva. Por essa razão, esperava-se que ela seguisse as regras próprias ao

decoro letrado do gênero – ou seja, o que convém a um tipo de relato.111 Se não

houver a demonstração da estima pelo bem público e pela virtude; se o estilo e as

figuras não forem apropriados; se não houver uma preocupação com a verdade;

enfim, se estas condições não se fizerem presentes, presumia-se que dificilmente

um leitor ou ouvinte se deixaria levar pela narrativa.

A abertura, ou proêmio, das Histórias de Leonardo Bruni ilustra bem os

aspectos discutidos acima:

Deliberei por muito tempo e muitas vezes tive que mudar de idéia antes de decidir

escrever sobre os feitos do povo florentino, suas lutas na cidade e fora dela, seus

celebrados êxitos na guerra e na paz. O que me atraiu foi a grandeza das ações

realizados por este povo: primeiramente, suas muitas lutas internas, em seguida

suas admiráveis empresas contra seus vizinhos imediatos, e finalmente, no nosso

tempo, a luta contra o todo poderoso Duque de Milão e o agressivo rei Ladislau.

[...] Por terem parecido a mim dignos de registro e lembrança, acreditei que o

conhecimento destes fatos serviria tanto a fins públicos como privados. Pois se

pensarmos que homens de idade avançada são mais sábios porque viram mais da

vida, quão maior é o conhecimento que a história nos pode proporcionar se for lida

com cuidado! Pois na história as ações e decisões de muitas eras podem ser

108 Cf. GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p.208. “The humanists believed that writers of histories ought to follow the same principle which the humanists applied to all their literary efforts: the principle of ‘imitation’”. 109 Cf. FUBINI, Riccardo. “Note sugli ‘Historiarum Florentini Populi Libri XII di Leonardo Bruni”. In: Storiografia dell’umanesimo in Italia da Leonardo Bruni ad Annio da Viterbo, pp. 97-8. “Le Historiae del Bruni nascono da esigenze complesse: l’intento di ricostruire la storia cittadina, concepito di seguito e a sviluppo del panegirico della Laudatio Florentinae urbis, mal si lascia distinguere da quello di ripristinare il modello della storiografia antica greco-latina, come parte in senso lato di un programma culturale, in virtù del quale egli veniva in pari tempo traducendo (o ritraducendo) e divulgando opere di storici, oratori e filosofi greci [...]”. 110 BRUNI, Leonardo History of the Florentine People, p.5. 111 Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.164. “Conversely, the prudent man who wishes to be considered wise also observes the same decorum and bows to the times: ‘prudentis viri esse parere tempore’”.

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minuciosamente examinadas; de suas páginas podemos facilmente aprender que

comportamento devemos imitar ou evitar, ao mesmo tempo em que a glória

conquistada por grandes homens nos inspira a agir de forma virtuosa”.112

No trecho fica evidente o caráter pedagógico e paradigmático da história:

através de inúmeros exemplos de ações nobres e virtuosas do passado, tanto no

que diz respeito à condução da República quanto às guerras com outras cidades, é

possível deliberar sobre os comportamentos a imitar ou evitar no presente e no

futuro. As lições definidas por Bruni, nesse sentido, não pressupõem uma tensão

entre o útil e o honesto: elas afirmam preceitos universais, sentenças de validade

indistinta que todavia devem ser urdidas em consonância com o exame cuidadoso

das situações particulares. Se, como defende Cícero no De Oratore pela voz de

Antonio, “que sobre as deliberações seja indicada qual é aquela que o autor

aprova”, a aceitação ou reprovação das resoluções e condutas dos agentes é

articulada como efetivo juízo prudencial, orientado pelo exame das circunstâncias

conjunturais. Bruni, tradutor da Política e da Ética aristotélica, vê na prudentia a

disposição responsável pela orientação da escolha segundo as virtudes morais,

resultando em ações apropriadas, que são objetos de elogios, ou em situações

contrárias à prudência, passíveis de vitupérios. Os discursos diretos, nesse sentido,

constroem não apenas paralelismos argumentativos como também conformam

exemplos vívidos de tipos de virtudes cívicas, como percebe Nancy Struever.113

A Historia populi florentini de Poggio Braciolini, mesmo com um alcance

temporal menor – cem anos, de 1350 a 1450, contra os quase mil e quinhentos

anos abrangidos por Leonardo Bruni114 –, apresenta pontos de vista bastante

similares àqueles sustentados pelo humanista aretino115, embora, como note

Donald Wilcox, Poggio dedique mais atenção às guerras externas que às

vicissitudes internas.116 No proêmio, Poggio afirma a utilidade da história, e diz

que somente homens excelentes e de grande engenho podem escrevê-la

112 BRUNI, Leonardo. Op. cit., p.3. 113 Cf. STRUEVER, Nancy. Op. cit., p.135. “Bruni most frequently uses speeches to present recurring types of civic virtue”. 114 Cf. Idem. Ibid., p.166. 115 Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.131. “the historical ideas in Poggio’s Historia are quite similar to Bruni’s”. 116 Cf. Idem.

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apropriadamente.117 Poggio, como argumenta Wilcox, é ainda mais enfático que

Bruni na formulação de seus julgamentos morais, menos sutis que os de seu

predecessor118 – talvez porque o humanista aretino, tradutor de Aristóteles, tivesse

uma compreensão mais apurada que a de Poggio sobre as agudezas do livro VI da

Ética a Nicômaco.119

Sem questionar os preceitos ciceronianos associados à ars historica, o

tratamento da questão por Lorenzo Valla e Giovanni Pontano apresenta algumas

nuances que podem fornecer elementos para o exame de certas particularidades

das histórias compostas por Maquiavel e Guicciardini. Como percebe Cesare

Vasoli acerca das reflexões de Lorenzo Valla, “a cultura humanista consignou ao

futuro ainda uma outra concepção da história, fundada na idéia do valor crítico do

conhecimento do passado”.120 Trata-se, penso, menos de uma outra concepção

que do destaque a certos elementos até então secundarizados ou discutidos

apressadamente por Cícero, Quintiliano e por humanistas como Salutati, Guarino,

Fontius e o Trapezuntio. A proeminência conferida a aspectos como solertia,

acumen e iudicium, aos quais Valla se refere em sua Historiarum Ferdinandi

Regis Aragoniae libri tres, não entra em contradição com a concepção retórica da

história, muito pelo contrário: ela visa a tornar mais efetivo o conhecimento das

coisas – copia rerum –, fornecendo elementos diversos para a conformação da

copia verborum. Daí que para Valla a “história ofereça ao homem um saber civile

e um ensinamento de prudentia superior à filosofia”.121

117 BRACCIOLINI, Poggio. Historia populi florentini, prohemio. “per idustria eingegnio deglhuomini excellenti estata trouata lahistoria”. 118 Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.143. “His attention to the conduct of tyrants in the Historia is clear evidence that he wishes his history to have didactic and moral value for them as well as for citizens of a republic – an attention which represents a definite expansion in scope over the Historiae Florentini populi. […] Rather, he superimposes upon an historical narrative constructed in terms of a casual complex similar to Bruni’s a moral judgment of a type that Bruni regularly avoids”. 119 Ao mesmo tempo, como argumenta Gian Mario Anselmi, Poggio, diferentemente de Bruni, atribui importância destacada ao poder da Fortuna e do acaso. Cf. ANSELMI, Gian Mario. Ricerche sul Machiavelli storico, p.71. 120 VASOLI, Cesare. Op. cit., p. 229. “Ma la cultura umanistica ha consegnato al futuro anche un’altra concezione della storia, fondata sull’idea del valore critico della conoscenza del passato, del suo rapporto con il mutare dei linguaggi, delle istituzioni e delle culture, della sua capacità d’intendere e interpretare i ‘documenti’ e i segni di ogni genere che tramandano la memoria dell’umanità, e di servirsene per comprendere e discutere anche il presente”. 121 Idem. Ibid., p. 230. “Ma il Valla sa pure, e lo afferma senza esitazioni, che la storia offre all’uomo un sapere ‘civile’ e un insegnamento di ‘prudentia’ assai suepriore di quello recato dalla filosofia”.

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Nesse sentido, como argumenta Liliana Monti Sabia, “a normativa do

Actius”, diálogo composto pelo humanista napolitano Giovanni Pontano entre

1495 e 1499,

revela-se facilmente como uma reelaboração, amplamente articulada e filtrada pelo

próprio gosto e a própria sensibilidade artística, de preceitos que remetem a autores

clássicos, em particular a Cícero, a Quintiliano e Luciano, preceitos que eram de

domínio comum na consciência cultural do Humanismo, tanto que já antes dele

outros, como Guarino de Verona e Jorge de Trebizonda, as haviam tomado como

objeto de seus escritos, antes mesmo de Pontano.122

Ad docendum, ad delectandum, ad movendum123: são estas, para Pontano, as

três finalidades da história. Para que sejam alcançadas, diz ele, o historiador deve

privilegiar em sua narrativa a brevitas e a celeritas124; deve expor as causas e

efeitos dos acontecimentos, assim como os consilia, sententiae e voluntates dos

que têm poder de decisão.125 Estas tópicas, porém, não devem ser tomadas como

fins em si mesmas, na medida em que possibilitam um melhor conhecimento da

matéria – de modo a trazer para a análise elementos diversos, capazes de incidir

na produção de lições úteis e honestas pelos ouvintes e leitores.126 A ênfase

atribuída a tópicas atreladas à discussão da acuidade do relato histórico não se

choca com as prescrições do De Oratore; tal destaque revela, todavia, um

interesse cada vez maior pela questão dos efeitos, pela análise prudente das

122 SABIA, Liliana Monti. Pontano e la storia. Dal De bello Neapolitano all’ Actius, pp. 2-3. “Cominceremo subito coll’osservare che la normativa dell’Actius sul modo di scrivere la storia, salvo alcuni spunti personali, si rivela facilmente come una rielaborazione, ampiamente articolata e filtrata attraverso il proprio gusto e la propria sensibilità artistica, di precetti risalenti agli autori classici, in particolare a Cicerone, a Quintiliano, a Luciano, precetti ch’erano di dominio comune nella coscienza culturale dell’Umanesimo, tant’è vero che giá altri, come Guarino Veronese, o Giorgio da Trabisonda, li avevano fatti oggetto dei loro scritti assai prima del Pontano stesso”. 123 Apud. SABIA, Liliana Monti. Op. cit., p. 9. 124 Cf. ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p.11. 125 Cf. SABIA, Liliana Monti. Op. cit., p.12. “Alle cause che provocano un’azione politica o una guerra sono legati i consilia, le sententiae, le voluntates di coloro che hanno poteri decisionali, teorizza l’Actius, citando l’esempio di Livio e Sallustio, per mostrare come sia opportuno presentare attraverso i discorsi le opinioni di protagonisti in contrasto tra loro”. 126 Cf. VASOLI, Cesare. Op. cit., p. 224. “Il Pontano – è stato già più volte rilevato – insiste sul nesso tra causa ed effetto di cui lo storico deve essere ‘memor certusque ... ac versus expositor’, così comme deve conoscere i fini perseguiti dagli ‘actores’, le loro decisioni (‘consilia’) ed i loro risultati. [...] Comunque, il suo modello della narrazione storica consisteva nella presentazione di una serie di fatti e di azioni tra loro strettamente connesse, da ricostruire nella loro genesi e nel loro sviluppo che lo storico deve adornare con la sua capacità oratoria, proporre come exempla e utilizzare per il fine preminente dell’insegnamento etico e politico”.

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possibilidades deliberativas abertas aos agentes históricos. Deste modo, na medida

em que o exame da prudência em Pontano adquire um maior grau de

complexidade em relação ao tratamento humanista usual, como analisei no

capítulo 1, também a ars historica, gênero por excelência do homem de letras

prudente, adquire novos contornos, com a ênfase nas minúcias das ações

particulares e nas motivações dos agentes envolvidos em processos decisórios,

analisados não apenas pelo viés moralizante da adequação de suas condutas às

virtudes morais, mas também pela inquirição dos efeitos práticos de suas

intervenções e deliberações.

As análises críticas sobre as histórias renascentistas, especialmente aquelas

produzidas nos séculos XV e XVI em Florença, Nápoles, Milão e Veneza, têm-se

pautado, ao menos desde a publicação, no início do século XX, da História da

Historiografia moderna de Eduard Fueter127, pela afirmação do suposto caráter

moderno e inovador das produções letradas de cunho histórico compostas por

Leonardo Bruni, Poggio Bracciolini, Giovanni Pontano, Bartolomeo Cerretani e

especialmente as Istorie Fiorentine de Maquiavel e a Storia d’Italia de

Guicciardini, isto pela observação, entre os homens de letras que se dedicaram à

composição de obras históricas nesse período, de práticas como a pesquisa

documental apurada e a atenção especial às motivações “psicológicas” dos

agentes históricos.

Alguns pesquisadores da segunda metade do século XX, como Felix

Gilbert, Nancy Struever, Donald Wicox, Hannah Gray, E. B. Fryde, Cesare Vasoli

e Gian Mario Anselmi, bastante cuidadosos em suas abordagens críticas,

procuraram atenuar a hipótese central do historiador alemão sobre a

“historiografia” humanista – a saber, a idéia de uma ruptura desta com certos

padrões antigos e medievais –, alicerçada na premissa da secularização e

independência dos eruditos do Quattrocento em relação às autoridades religiosas.

Ao mesmo tempo, estes estudiosos rejeitaram determinados aspectos teleológicos

da argumentação de Fueter, como a consideração do princípio da imitatio como

127 Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.27. “A more balanced understanding of the humanists emerged only in the early years of the twentieth century in what has become a classic work on historiography: Eduard Fueter’s Geschichte der neueren Historiographie. Fueter points out the humanists’ secularism and independence from authority, their use of history to embellish cultural

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subserviência intelectual aos modelos clássico, a rejeição de algumas conclusões

das histórias humanistas que, para o historiador alemão, careciam de melhor

comprovação documental, além da afirmação de certas ausências estruturais,

como o tratamento marginal destinado aos assuntos econômicos.128 Embora não

tenham se recusado a atribuir um caráter inovador e moderno à ars historica

humanista, os autores referidos sublinharam de forma unânime a necessidade de

compreender as histórias humanistas como peças retóricas que seguiam regras,

padrões e convenções estabelecidos em tratados como o De Oratore ciceroniano e

o Actius de Pontano. Nesse sentido, segundo palavras de Donald Wilcox, a ars

historica humanista deve ser compreendida como uma efetiva “concepção retórica

da escrita histórica”129, ou uma “teoria retórica da história”130 que visava

primordialmente à fixação de lições úteis para seus leitores.

Pode-se dizer que, desde a década de 1970, as tendências predominantes no

debate crítico acerca da ars historica do Quattrocento e do Cinquecento têm

oscilado entre a afirmação de uma suposta originalidade humanista, quase sempre

vinculada à conjectura da emergência de uma nova consciência histórica nos

séculos XIV e XV, e a constatação de um certo grau de convencionalidade

retórica nas histórias humanistas – concepções que muitas vezes se entrelaçam

numa mesma argumentação. Em The Language of History in the Renaissance

(1970), Nancy Struever defende que “a nova consciência da linguagem dos

Humanistas italianos envolve necessariamente uma nova consciência da

história”.131 Hipótese similar é defendida por E. B. Fryde em “The Revival of a

‘Scientific’ and Erudite Historiography in the Earlier Renaissance” (1973),

incluído em Humanism and Renaissance Historiograph. Para o autor, mudanças

significativas teriam se dado entre os séculos XIV e XV, decorrentes do

“despertar, nesse período, de um senso mais aguçado da mudança história”.132

Também Cesare Vasoli destaca a emergência de uma nova consciência da

ideals, their superior narrative and stylistic techniques, and, finally, the extent to which they made critical use of sources”. 128 Cf. Idem. 129 Idem. Ibid., pp. 28-29. 130 Idem. Ibid., p.30. 131 STRUEVER, Nancy. Op. cit., p. 144. “The basic assumption of this study is that the new awareness of language of the Italian Humanists necessarily involves a new awareness of history”. 132 FRYDE, E. B. Op. cit., p.3. “My way of attempting to do this Will be to focus attention on certain significant changes in historiography that took place in Italy in the fourteenth and fifteenth centuries. Historiography, strictly speaking, means only the actual writing of history. But I shall be also concerned with the awakening in that period of a more acute sense of historical change”.

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linguagem, embora rejeite quaisquer atribuições de modernidade ou proto-

modernidade à ars historica dos humanistas italianos.133

No que diz respeito às Istorie Fiorentine de Maquiavel, Felix Gilbert e

Andrea Matucci argumentam pela existência, no texto, de um contraste entre o

conceito humanista de história e uma aproximação pragmática do passado134;

segundo esse viés, as Istorie comportariam uma revolução não levada plenamente

ao seu limite, onde a força das abordagens políticas de Maquiavel seria de certo

modo tolhida pelas amarras de uma concepção retoricizante da escrita da história.

Gian Mario Anselmi, por sua vez, pressupõe a presença, nas Istorie, de uma

“concepção de história” que se constitui como entrelaçamento contínuo entre

iniciativa do sujeito e os processos objetivos da realidade.135 Sobre a Storia

d’Italia de Guicciardini, Felix Gilbert destaca o “realismo psicológico”

guicciardiniano136, a saber, sua tentativa de perscrutar as motivações dos

principais agentes envolvidos nos processos decisórios de Repúblicas, principados

e monarquias – aspecto que segundo Donald Wilcox já se fazia presente nas

Histórias de Leonardo Bruni.137 Outro suposto elemento inovador destacado por

Felix Gilbert acerca da Storia de Guicciardini diz respeito à aplicação rigorosa de

métodos críticos e à amplitude histórica das análises do florentino.138 Nesse

sentido, a Storia d’Italia seria, para o historiador norte-americano, a última grande

obra de história segundo os padrões clássicos e a primeira grande obra da

historiografia moderna.139 Andrea Matucci vai ainda mais longe, ao dizer que

Guicciardini foi efetivamente o fundador da ciência histórica moderna.140

133 Cf. VASOLI, Cesare. “L’humanisme rhétorique en Italie au XVeme siècle”, p.45 ; “Modelli teorici della storiografa umanistica”. In : Op. Cit., p. 213. Op. cit., pp. 211-213. 134 Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 237; MATUCCI, Andrea. Op. cit., p.219 135 Cf. ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p.199. “[…] riconoscere la portata innovatrice di un discorso che, come quello machiavelliano, assume la realtà come oggettività da verificare, la natura come materia, la storia quale intreccio continuo fra le iniziative dei soggetti e i processi, oggettivi nella loro naturalità, ad essi esterni”. 136 GILBERT, Felix. Op. cit., p. 292. 137 Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., p.57. “Bruni’s treatment of human motivation tends to bring out the psychological element of his historical vision; in his assessment of individual character, on the other hand, the political nature of his historical writing emerges most sharply”. 138 Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., pp. 290-291. 139 Cf. Idem. Ibid., p. 301. “Guicciardini’s History of Italy is the last great work of history in the classical pattern, but is also the first great work of modern historiography”. 140 Cf. MATUCCI, Andrea. Op. cit., p. 246. “È dalle Cose fiorentine in poi, dunque, che si parla di Guicciardini come del fondatore della ‘scienza storica moderna’: di colui, cioè, che ha dato rigre scientifico, e procedimenti extra-letterati, a quel lavoro preparatorio che, di soliro invisibile, è sempre il primo passo verso il finale risultato letterario di un’opera storiografica”.

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Penso que este tipo de abordagem, embora possua inegável valor, não

considera de forma apropriada o caráter convencional das Istorie Fiorentine e da

Storia d’Italia. Mesmo autores que, como Felix Gilbert, Gian Mario Anselmi e

Guglielmo Barucci, atribuíram importância significativa ao exame dos preceitos

retóricos propostos pelas “autoridades” antigas e humanistas sobre a ars historica

para a compreensão das histórias renascentistas acabaram por vezes tratando tais

preceitos como aspectos puramente formais, “convenções literárias” em grande

medida descoladas de um conteúdo inovador, pensado como concretização de

intenções de ruptura manifestas ou sub-reptícias, especialmente no que diz

respeito às Istorie Fiorentine de Maquiavel e à Storia d’Italia.141 Nesse sentido,

defendo que, embora certas tensões com as tradições clássica e humanista possam

ser delineadas nestes escritos, eles não devem ser tratados como tentativas de

renovação do gênero histórico. Muito pelo contrário: proponho uma interpretação

das histórias compostas por Maquiavel e Guicciardini que, ao explicitar e

examinar o caráter convencional destas, segundo os preceitos ciceronianos e as

concepções humanistas sobre a ars historica, permita atestar os pontos de tensão

destes escritos em relação às reflexões antigas e humanistas, aspectos que,

heuristicamente, mas nunca pelo critério do verossímil histórico, podem até

mesmo conformar figurações avant-la-lettre de certas preocupações específicas da

historiografia moderna – o que, devo dizer, não é a linha argumentativa

privilegiada nas próximas páginas, focadas inicialmente no exame do caráter

retórico das Istorie Fiorentine e da Storia d’Italia, para, em seguida, examiná-las

como performances letradas do bom juízo alicerçadas por um sentido de

prudência distinto do usual entre os humanistas do Quattrocento.

141 Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 274. “But if in its formal aspects the History of Italy corresponds to humanist prescriptions, these are not the features which the reader considers as determining the character of the book. Rather it is a work which bears the imprint of the author’s personality and mind, and as such it is a reflection of the Florentine political tradition and of the political experiences of the age”.

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4.3 Maquiavel: o sabor e o sentido das histórias.

Considerações gerais. Do suposto caráter inovador das Istorie Fiorentine de

Maquiavel: breve estado da questão. O proêmio geral: as críticas às histórias de

Leonardo Bruni e Peggio Bracciolini. Da convencionalidade retórico-poética das

Istorie. A história como performance letrada da prudência: a questão dos efeitos.

O ano de 1520 marcou o início da aproximação oficial de Maquiavel com os

Medici. Após compor, nos três anos anteriores, peças letradas que tiveram boa

circulação e contribuíram para a formação de uma sólida reputação de homem de

letras engenhoso e hábil em vários gêneros – na comédia (Mandragola), na fábula

(Belfagor), na poesia (Asino), no diálogo (Arte da Guerra), em gêneros históricos

como a Vita di Castruccio Castracani, isso para não falar dos Discorsi e do

Príncipe, um pouco anteriores e bastante difundido nos círculos eruditos

florentinos142 –, Maquiavel recebe do Cardeal Giulio de’Medici, futuro papa

Clemente VII, a incumbência de “escrever os anais, ou em verdade a história das

coisas feitas pelo estado e cidade de Florença, a partir da data que lhe pareça

conveniente, e em língua latina ou toscana, como preferir”, na formulação por ele

mesmo sugerida em carta a Francesco del Nero – o qual, juntamente com o

Cardeal Giulio, presidia o Studio Fiorentino.143 Em seguida, foi agraciado com o

salário de cem florins di studio – equivalente a cinqüenta e sete florins di suggello,

“pouco mais da metade do que ganhava regularmente nos bons tempos como

chanceler da Senhoria”, nas palavras de Roberto Ridolfi.144

Muitos já notaram proximidades importantes entre as Istorie Fiorentine e as

histórias humanistas. Segundo Felix Gilbert, Maquiavel “modelou sua história de

acordo com os padrões humanistas aceitos”: a história é dividida em livros, cada

qual iniciando com reflexões de caráter geral; “a narrativa é salpicada com um

vasto número de discursos cuidadosamente trabalhados”; “eventos importantes

142 Cf. RIDOLFI, Roberto. Biografia de Nicolau Maquiavel, pp. 191-201. 143 Carta de Nicolau Maquiavel a Francesco del Nero, 10 de setembro de 1520. “Sai condotto per anni ecc. con salario ecc. con obligo che debba e sia tenuo scrivere gli annali o vero le istorie delle cose fatte da lo stato e città di Firenze, da quello tempo gli parrà più conveniente, et in quella lingua o latina o toscana che a lui parà”. 144 RIDOLFI, Roberto. Op. cit., p.210.

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são anunciados por sinais dos céus, e as cenas de batalhas são dolorosamente

relatadas”.145 Porém, prossegue Gilbert,

existem indícios de que Maquiavel considerava as prescrições humanistas mais

como convenções literárias que como uma forma apropriada para a escrita da

história. Após descrever a batalha de Anghiari na maneira ornada requerida pela

teoria histórica humanista, ele comentou que nessa longa e famosa batalha apenas

um homem havia sido morto e ele não teria morrido em conseqüência de ação

inimiga, e sim ao cair do seu cavalo e bater com a cabeça no chão. Com esta

observação ele satirizou as elaboradas peças de batalha dos historiadores

humanistas.146

E conclui: “o modelo humanista era, para Maquiavel, uma estrutura onde ele

expunha, quase que arbitrariamente, sua mensagem política”.147

Há, em Gilbert, a presunção de dois domínios distintos atuando

conjuntamente nas Istorie, com fronteiras claramente demarcadas: a forma, que

pode ser satirizada e usada de maneira instrumental, e o conteúdo, dono de uma

mensagem que se cola a uma moldura retórica que lhe dá suporte. Posição similar

é sustentada por Harvey Mansfield, que afirma haver uma incerteza quanto ao

caráter do escrito do secretário, se ele deve ser entendido como obra de ciência

política ou como uma história148 – dito de outra forma, tratar-se-ia de uma

incerteza quanto ao aspecto fundamental das Istorie, se sua forma usual ou seu

conteúdo inovador.149 Segundo Donald Wilcox, as considerações tecidas no

145 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini, p. 237. “He framed his history according to the accepted humanist standards. […] Machiavelli divided his work into a number of books, and each began with general reflections on a topic to which the events described in the following chapter referred. The narrative is studded with a large number of carefully wrought speeches. Important events are announced by signs from the heavens, and battle scenes are painstakingly related”. 146 Idem. Ibid., p.237. “But there are indications that Machiavelli considered the humanist prescripts as a literary convention rather than as an appropriate form for the writing of history. After he described the battle of Anghiari in the ornate manner required by humanist historical theory, he commented that in this long and famous struggle only one man was killed and he did not die from enemy action but from falling from his horse and landing on his head. With this remark he satirized the elaborate battle pieces of the humanist historians”. 147 Idem. Ibid., p. 238. “The humanist pattern was for Machiavelli a framework onto which he hung, almost arbitrarily, his political message”. 148 Cf. MANSFIELD, Harvey. Machiavelli’s Virtue, p. 131. “Besides the uncertainty as to whether his work is history or political science, and in addition to the concentration on politics, Machiavelli shares with humanist historians the device of inventing speeches”. 149 Trata-se de questão das mais debatidas entre os estudiosos de Maquiavel, a saber, o caráter da mobilização e circulação de muitas das hipóteses defendidas nos Discorsi nas Istorie. Cf. SASSO, Gennaro. Niccolò Machiavelli, vol II. La storiografia, p.47. “Ed è così importante che non a torto

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proêmio geral das Istorie sobre Lenardo Bruni e Poggio Bracciolini, que analisarei

adiante, constituem uma crítica ao conteúdo das histórias humanistas, embora

Maquiavel, nas palavras de Wilcox, imite a “elegância formal” dos seus

predecessores.150

Penso que tais considerações, embora não deixem de ressaltar a

proximidade das Istorie em relação aos modelos antigos e humanistas da ars

historica, comportam alguns equívocos. O primeiro diz respeito à já referida

pressuposição da separação entre forma e conteúdo; o texto das Istorie, nesse

sentido, seria o marco de uma tensão irresoluta entre análise política efetiva e

rigidez retórica formal, hibridismo que só não teria sido implodido por Maquiavel

pelo fato de que ele fora contratado pelos Medici e, por essa razão, precisaria, em

alguma medida, prestar contas com a tradição, o que teria feito pela imitação da

forma humanista, não sem deixar registros de sua lucidez analítica, especialmente

nos proêmios dos oito livros. “A história de Maquiavel”, afirma Andrea Matucci,

“apenas aceita a retórica em seu primitivo sentido ‘oral’ de força de persuasão”,

organizando “sua matéria de modo a sempre fazer sobressair o significado

político, tornando possível passar com facilidade da ‘narração’ ao ‘discurso’”.151

O segundo equívoco que gostaria de destacar diz respeito à proposição de

um antagonismo entre Maquiavel e os humanistas, que parece deixar em segundo

plano a evidência de que a ars historica do Quattrocento voltava os olhos para os

mesmos modelos emulados por Maquiavel, como Tito Lívio – não apenas nas

Istorie, mas também nos Discorsi –, Salústio e Cícero. Muitas das questões vistas

como centrais em Maquiavel, como a antiga virtus e o exame do caráter benéfico

de certos conflitos internos, são articuladas pelo secretário a partir do tratamento

destes auctores. Finalmente, o terceiro equívoco que gostaria de destacar está

potrebbe essere indicata come la questione stessa, per eccelenza, delle Istorie Fiorentine, – quella che concerne il significato, non solo storico, di quest’opera, ma altresì teorico-politico: il sigificato, insomma, che, variamente intrecciat con il primo, costituirà l’oggetto specifico della ricerca che sta per prendere il suo avvio”. 150 Cf. WILCOX, Donald. Op. cit., pp. 20-21. “Machiavelli goes on, however, to criticize the content of both histories of Florence, noting that Poggio and Bruni tended to neglect domestic affairs in their accounts of the wars and foreign relations of the city. Machiavelli’s determination to imitate the formal elegance rather than the factual accuracy of his predecessors cannot be wholly explained by his preferences for vernacular sources”. 151 MATUCCI, Andrea. Op. cit., p. 192. “La storia di Machiavelli, infatti, accetta la retorica solo nel suo primitivo senso ‘orale’ di forza di persuasione; evita ogni coinvolgimento emotivo con i personaggi e le loro vicendi/ organizza la sua materia in modo da farne risaltare sempre il significato politico, così da potere facilmente passare dalla ‘narrazione’ al ‘discorso’, e costringere il lettore a un continuo confronto fra i fatti e le idee”.

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diretamente associado ao anterior, e diz respeito à atribuição de uma intenção de

ruptura supostamente articulada no proêmio geral das Istorie, a assim chamada

“crítica à historiografia humanista” – associada, para Gian Mario Anselmi, à

tentativa de “instaurar um discurso científico que restitua à história, na sua

objetividade, também as lutas sociais”, o que incidiria numa “indubitável fratura

em relação a todas as tradições historiográficas precedentes”.152 O fundamento

desta concepção reside na dicotomização entre adesão plena e rejeição total dos

cânones humanistas, abordagem que deixa pouco espaço para a proposição de

possíveis modos mais sutis de relação do secretário com a ars historica

humanista.

As Istorie levaram cerca de quatro anos para serem compostas – de 1521 a

1525. Na já referida carta a Francesco del Nero, Maquiavel deixa em aberto

diversas possibilidades, da remuneração à escolha do idioma, passando pelo ano

em que a narrativa deveria ter início. O comentário do secretário no proêmio geral

das Istorie sobre a delimitação do ponto inicial de sua narrativa é crucial para a

compreensão do entendimento de Maquiavel sobre a utilidade da história – ou,

como ele chamara nos Discorsi, o verdadeiro conhecimento das histórias.

No proêmio, provavelmente redigido após a composição dos quatro

primeiros livros153, Maquiavel afirma sua aspiração inicial de começar seu relato a

partir do ano de 1434:

Quando deliberei escrever as coisas feitas pelo povo florentino, dentro e fora de

Florença, minha intenção era começar a narração pelo ano 1434 da era cristã,

quando a família dos Medici, graças aos méritos de Cosimo e de Giovanni, seu pai,

ganhou mais autoridade que qualquer outra em Florença.154

152 ANSELMI, Gian Mario. Op. cit., p. 96. “Machiavelli tenta di instaurare un discorso scientifico, che restituisca alla storia nella sua oggettività anche le lotte sociali. I limiti in proposito del suo discorso sono i limiti sotoricamente determinati dai tempo (le nuove classi si erano appena affacciate alla storia): resta l’indubbia frattura operata rispetto a tutta la precedente tradizione storiografica”. 153 Cf. SASSO, Gennaro. Op. cit., p.11, nota 10. “Che il Proemio si riferisca in realtà ai primi quattro libri, si deduce agevolmente da quel che si legge nelle sue linee conclusive [...]. Sembra in effetti evidente che, mentre i primi quattro libri sono anteriori alla stesura del Proemio, che può perciò descriverli con precisione e indicarne i termini cronologici, i restanti appartengono al futuro; e, a parte l’ambiguità che si coglie nell’espressione ‘questi nostri presenti tempi’, Machiavelli evita, non a caso, di specificare quanti libri gli ocorrano per pervenire al traguardo”.

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Em seguida ele expõe os motivos que o teriam levado a desistir dessa idéia:

messer Lionardo d’Arezzo e messer Poggio, dois excelentes historiadores

[istorici], já haviam narrado, com particularidades, todas as coisas sucedidas até

aquele ano. Mas, depois de ler diligentemente seus escritos, para ver com que

ordem e com que modo procediam, a fim de que, imitando-os, nossa história

recebesse melhor aprovação dos leitores, percebi que foram muitíssimo diligentes

na descrição das guerras travadas pelos florentinos contra os príncipes e os povos

estrangeiros, mas que, no que se refere às discórdias civis e às inimizades internas,

bem como aos seus efeitos, eles calaram de todo uma parte e descreveram a outra

com tanta brevidade que nela os leitores não podem encontrar utilidade nem

prazer algum. Creio que assim fizeram por acharem que aquelas ações eram tão

pouco importantes que as consideraram indignas de entrar para a memória das

letras, ou então porque temiam ofender os descendentes daqueles que, naquelas

narrativas, se houvesse de caluniar. Duas razões são essas que (seja dito em boa

paz) me parecem de todo indignas de grandes homens; porque, na história, se

alguma coisa há que deleite ou ensine, é a descrição das particularidades, e se

alguma lição há que seja útil aos cidadãos que governam as repúblicas, é aquela

que demonstra os motivos dos ódios e das divisões das cidades, para que, diante do

perigo em que incorreram outros, eles possam ganhar sabedoria e manter-se

unidos. [...] Não sei, portanto, qual a razão de não serem tais divisões dignas de

descrição particularizada. E, se aqueles nobilíssimos escritores se tiverem contido

para não ofenderem a memória daqueles de quem deviam falar, enganaram-se e

mostraram que pouco conhecem a ambição dos homens e o desejo que têm de

perpetuar seu nome e o dos antepassados; e não se lembraram que muitos, por não

terem tido ocasião de conquistar a fama com alguma obra louvável, empenharam-

se em conquistá-la com coisas vergonhosas; e não consideraram que as ações que

têm em grandeza, como são as dos governos e dos estados, seja qual for o modo

como são tratadas, seja qual for o seu fim, sempre conferem aos homens mais

honra que reprovação. Então, depois de considerar tais coisas, mudei de propósito e

decidi começar minha história pelo princípio de nossa cidade. E como não é minha

intenção ocupar o lugar alheio, descreverei com particularidades, até 1434,

somente aquilo que ocorreu dentro da cidade, e sobre as coisas de fora só direi o

154 MAQUIAVEL, Nicolau. História de Florença, p.7.

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que for necessário ao entendimento das de dentro; depois, passado o ano de 1434,

escreverei com particularidades ambas as partes (grifos meus).155

Este trecho é um dos mais citados nas análises críticas das Istorie de

Maquiavel, não somente pelas menções explícitas aos humanistas Leonardo Bruni

e Poggio Bracciolini, como também pela reafirmação de algo que Maquiavel já

defendera nos Discorsi: a importância da análise cuidadosa das lutas internas e

facções de um povo para uma compreensão apropriada das suas instituições,

costumes e hábitos político-militares. Para a maior parte dos analistas, como Felix

Gilbert, Gian Mario Anselmi, Andrea Matucci, Eric Cochrane, entre outros, o

proêmio geral deve ser interpretado como uma crítica direta à “historiografia

humanista”. Embora seja evidente que Maquiavel apresente uma crítica em

relação às abordagens de Bruni e Poggio, creio ser preciso tomar alguns cuidados

na interpretação desta passagem, para que ela não seja tratada como um manifesto

de ruptura de uma suposta “historiografia crítica nascente” em relação a uma

“historiografia retórica arcaizante”, cujo pressuposto implícito seria a separação

entre esfera formal e retórica da história e análise efetiva da realidade, afastada de

todo tipo de tratamento convencional. Defendo que as críticas de Maquiavel não

têm por objeto as “tradições historiográficas precedentes”, como diz Anselmi;

dirigem-se, isto sim, a um aspecto particular da análise de Bruni e Poggio, a saber,

o tratamento inadequado da questão da discórdia civil, diretamente associado ao

modo com que os humanistas consideravam a relação ente prudência, justiça e

concórdia.

Isto não quer dizer, contudo, que Maquiavel não visse Bruni e Poggio como

homens prudentes: “e como não é minha intenção ocupar o lugar alheio”, diz

Maquiavel, “descreverei com particularidades, até 1434, somente aquilo que

ocorreu dentro da cidade, e sobre as coisas de fora só direi o que for necessário ao

entendimento das de dentro”: há, aqui, o reconhecimento da acuidade de “dois

excelentes historiadores”, no que diz respeito ao tratamento das contendas de

Florença com outros povos – aspecto decisivo, como analisei no capítulo 1, para a

afirmação da segurança e grandeza do stato; logo, para a sustentação da liberdade

em pelo menos um dos seus aspectos constitutivos, a ausência de dominação

155 Idem. Ibid., pp. 7-10.

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externa. Para Maquiavel, os leitores que se dedicarem às histórias de Bruni e

Poggio extrairão lições dignas e úteis no que diz respeito aos assuntos militares e

às guerras florentinas, alcançando prazer com o relato e sentindo-se incitados a

agir valorosamente na guerra e a buscar a glória verdadeira. Porém, no que diz

respeito aos assuntos internos, suas análises revelam-se insatisfatórias,

especialmente pela brevidade do tratamento ou mesmo ausência total de

considerações acerca das discórdias civis. Nesses momentos, segundo Maquiavel,

as histórias de Bruni e Poggio revelam-se incapazes de incitar à ação imitativa,

por carecerem de conhecimento da matéria.

O direcionamento do olhar para as lutas internas revela um princípio

orientador distinto daquele perceptível em Bruni e Poggio, princípio que, todavia,

não é excludente em relação à atribuição de importância às guerras, às conquistas

citadinas e ao fortalecimento do stato. Como percebe Mikael Hörnqvist, “pela

metade do século XIV, quando a República Florentina começou a emergir como

um estado imperialista em sua aspiração à hegemonia na Toscana, os termos

libertas e libertà eram freqüentemente agrupados a conceitos como imperium e

signoria”.156 Esta associação predominou também nos séculos XV e XVI,

fazendo-se presente, de acordo com os argumentos de Hörnqvist, nos escritos do

secretário:157 “uma cidade que vive livre”, diz Maquiavel nos Discorsi, “tem dois

fins, um é conquistar, o outro manter-se livre”.158 Porém, no que concerne à tópica

da concórdia, o tratamento de Maquiavel distancia-se, embora não totalmente, dos

preceitos ciceronianos.

Como analisei no primeiro capítulo, o secretário propõe uma distinção entre

dois tipos de conflitos internos: aqueles naturais, entre os grandi e o universale,

que quase sempre incidem em boas leis, e as contendas facciosas, quando os

“humores naturais” dividem-se entre si, como se resultassem de adustão

perniciosa, responsável por desregular completamente o sempre difícil equilíbrio

156 HÖRNQVIST, Mikael. Machiavelli and Empire, p.40. “By the middle of the fourteenth century, when the Florentine republic began to emerge as an imperialist state in its own right aspiring to Tuscan hegemony, the terms libertas and libertà were often coupled with the concepts imperium and signoria, denoting dominion over internal or external subjects”. 157 Cf. Idem. Ibid., p.72. “When Machiavelli in his Discourses on Livy (c. 1514-18) lays down the basic tenet of Roman and Florentine republicanism, he draws on and summarizes this more than century-long tradition: ‘a city that lives free has two ends – one to acquire, the other to maintain itself free”. 158 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos, I, 29, p. 95. Adaptação da tradução. No original: “avendo una città che vive libera duoi fini, l’uno lo acquistare, l’altro il mantenersi libera”.

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do corpo político. A concórdia – entendida como tensão de humores distintos que,

em equilíbrios provisórios, incidem na saúde do corpo político, como o fazem no

corpo humano são – constitui, nas Istorie, horizonte regulatório que nunca esteve

perto de se consumar efetivamente na cidade de Florença. Daí as constantes lutas

que incidem no enfraquecimento do stato e que põem em xeque a segurança da

República, afastando os homens da liberdade, tornando-os servos de seus apetites

e, ainda pior, das forças estrangeiras que dispõem da cidade como bem entendem.

A desatenção às contínuas repetições do facciosismo ao longo dos tempos fez dos

florentinos vítimas de si mesmos, da própria incapacidade de alcançar o desejável

equilíbrio provisório entre grandi e universali – cujas tensões, em Roma, tomada

como modelo comparativo pelo secretário, incidiam quase sempre no

fortalecimento do corpo político –, pela reprodução de divisões internas fundadas

em interesses mesquinhos e ambição desmedida. Não é de se estranhar, portanto,

que as conquistas externas tão louvadas por Bruni e Poggio se tornem, no século

XVI, meras lembranças, ante a constatação da incapacidade dos florentinos de

reaver domínios perdidos e manter os poucos ainda existentes.

As Istorie procuram iluminar este aspecto crucial; se a afirmação da

liberdade inata ao povo florentino constitui uma espécie de fio condutor das

Histórias de Bruni, a atenção ao facciosismo é o ponto de ordenamento da

descrição maquiaveliana das coisas acontecidas em Florença. Tratam-se não

somente de pontos de vista distintos. Maquiavel afirma no proêmio que, “depois

de ler diligentemente” as histórias de Bruni e Poggio, “para ver com que ordem e

com que modo procediam”, é obrigado a atestar a inefetividade destes relatos no

que concerne ao deleite e à produção de lições úteis acerca da dinâmica interna da

cidade de Florença. Ao realizar uma variação de foco analítico, Maquiavel opera,

também, uma significativa mudança de “modos e ordens” – o que não implica,

porém, uma ruptura com a prática humanista da ars historica, ou, como defendem

alguns, um afastamento no que diz respeito ao conteúdo das histórias

quatrocentistas associado à atinência formal à vera storia humanista.

O procedimento analítico que orienta a análise maquiaveliana das coisas

acontecidas em Florença – seus “modos e ordens”159, expressão recorrente nos

159 Como nota J. Patrick Coby, “Modes and orders (modi ed ordini) is Machiavelli’s preferred phrase for describing the principles and operations of government”. COBY, J. Patrick. Machiavelli’s Romans. Liberty and Greatness in the Discourses on Livy, p. 195.

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escritos do secretário, sempre indicando um método particular de inferência

prudencial da realidade, alicerçado na atenção à verità effetualle della cosa – tem

dois fundamentos: (a) a ênfase nos resultados efetivos das ações dos agentes e na

antecipação de possíveis deliberações e condutas destes, através do exame

prudente da realidade e (b) o exame das particularidades das coisas ocorridas,

verdadeira condição, segundo Maquiavel, para a produção de deleite e, logo, de

lições úteis a partir da leitura das histórias. Nesse sentido, pode-se dizer que a

apreciação minuciosa das coisas ocorridas fundamenta a observação aguda da

dinâmica entre diversidades substanciais e acidentes, sem a qual o analista

prudente não poderá, com o mínimo de segurança, orientar a formulação dos seus

juízos.160 Esta é a premissa essencial para que as ações de outros homens do

passado possam ser incorporadas como experiências particulares – uma

estabilidade ou recorrência de certos aspectos das coisas humanas.

Fundamentalmente, está em jogo uma concepção de prudência distinta

daquela mobilizada por Bruni e Poggio. Se, para estes, a prudência consistia na

decisão correta segundo as virtudes morais e a justiça, Maquiavel associa a

prudência ao bom juízo efetivo – seja ele de um conselheiro de príncipe, de um

embaixador em missão oficial, de um orador atuando nas instâncias deliberativas

da República ou de um magistrado ocupando cargo oficial – daqueles capazes de

interpretar apropriadamente os movimentos da realidade.

Numa passagem do livro IX de suas Histórias que trata do movimento dos

Ciompi, Leonardo Bruni refere-se ao nobre Piero de Filippo degli Albizzi como

“homem famoso por sua prudência”; já a Michele de Lando, homem de baixa

extração que por seus méritos se torna gonfaloniero, Bruni não atribui esta

qualidade.161 Maquiavel, em sua análise do mesmo movimento, confere a um

plebeu não identificado as seguintes palavras, num discurso do livro III das

Istorie: “confesso que essa decisão é audaz e perigosa, mas, quando se é premido

pela necessidade, a audácia é considerada prudência” (grifo meu).162 Já a Piero

degli Albizzi ele atribui uma deliberação desastrosa, responsável pela eleição de

Salvestro de’Medici, “nascido de nobilíssima família do povo”, para o cargo de

160 Sobre esta questão, conferir o capítulo 1, item 1. 161 BRUNI, Leonardo. Op. cit., IX, p.19. 162 MAQUIAVEL, Nicolau. Op. cit., III, 13, p. 186.

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gonfaloniero, acirrando ainda mais os conflitos entre grandi e populares.163

Prudente, para Maquiavel, teria sido Michele de Lando, homem de extração baixa

mas que, no comando da República, soube tomar decisões apropriadas ao

momento de crise: “Michele aceitou a Senhoria; e, como era homem sagaz e

prudente, cujos dotes devia mais à natureza que à fortuna, decidiu apaziguar a

cidade e pôr fim aos tumultos”.164 Bruni, embora considere uma “sorte divina”

que o gonfalão tenha parado nas mãos de Michele “naqueles tempos turbulentos”;

ainda que ateste sua “autoridade natural”; conquanto reconheça a relevância de

sua atuação para o apaziguamento dos conflitos naquele ano de 1378, não o

qualifica em momento algum como prudente.165

A nobreza da extração familiar, para o secretário, não é garantia de bom

juízo; somente a argúcia analítica, a atenção à variedade das coisas do mundo e a

tentativa de antever as possíveis ações de outros agentes, critérios necessariamente

associados à eloqüência, conformam premissas capazes de alicerçar um juízo

prudencial efetivo. Assim, pode-se dizer que em Maquiavel a utilidade do relato

histórico é associada não à produção de lições gerais moralizantes, mas a análises

particulares que levem em conta as condições dos tempos, as minúcias da

realidade e seus efeitos; nesse sentido, as lições maquiavelianas têm mais a

ensinar sobre seu próprio modo de inferência que acerca dos produtos finais dos

ajuizamentos, frutos de considerações alicerçadas no exame das particularidades,

mesmo quando mobilizam sentenças gerais, como analisarei adiante. O olhar

agudo e penetrante de Maquiavel, atento mais aos efeitos das ações humanas que

a deontologias rígidas, opera o reexame da trajetória do povo florentino, não pelo

163 Cf. Idem. Ibid., III, 9, pp. 173-174. “Corria então o ano de 1378, e o mês era abril; messer Lapo não achava bom diferir a ação, afirmando que nada prejudica tanto o tempo quanto o tempo, sobretudo para eles, já que na próxima Senhoria Salvestro de’Medici facilmente seria gonfaloneiro, e, como sabiam, ele era contrário à facção deles. Piero degli Albizzi, por outro lado, achava bom diferir, porque julgava que precisavam de forças, que não seria possível reuni-las sem chamar a atenção, e, se fossem descobertos, correriam sério perigo. [...] Tomaram, portanto, essa decisão, ainda que messer Lapo concordasse de má vontade, considerando nocivo diferir a ação, pois nunca será inteiramente conveniente o momento de executar uma ação, de modo que quem espera todas as conveniências ou não tenta coisa alguma, ou, se a tenta, na maioria das vezes o faz para a própria desvantagem. Advertiram o Colégio, mas não conseguiram impedir que Salvestro se tornasse gonfaloneiro, porque, quando os Oito descobriram a manobra, impediram que fosse feita nova votação. Com isso, para gonfaloneiro foi sorteado o nome de Salvestro, filho de messer Alamanno de’Medici. 164 Idem. Ibid., 16, p.193. 165 BRUNI, Leonardo. Op. cit., IX, p. 11. Posição similar é defendida por Guicciardini em suas juvenis Istorie Fiorentine, onde o governo dos Ciompi responsável por “muitas coisas brutas”. Cf. GUICCIARDINI, Francesco. Istorie Fiorentine, p.78.

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viés na monumentalização da liberdade, e sim pela rígida perscrutação da herança

de corrupção dos costumes, abandono da antiga virtude e decadência.

Pode-se notar, nesse sentido, uma proximidade de Maquiavel em relação ao

modelo polibiano da “história pragmática”. Diz Políbio:

Sem dúvida, a partir do entrelaçamento e comparação de todos os feitos entre si,

levando-se em conta suas semelhanças e diferenças, somente assim poder-se-ia

alcançar, no tempo apropriado, o deleite e o proveito proporcionados pela

história.166

Note-se que Políbio, assim como Maquiavel, entrelaça utilidade e deleite: somente

pela exposição das particularidades a narrativa histórica pode produzir um efeito

retórico de presença como os defendidos por Cícero e Luciano; apenas um relato

bem construído, detalhado, ornado, capaz de prender a atenção – em suma, o

produto do engenho aguçado de um homem de letras prudente, capaz de dominar

as convenções ético-retóricas exigidas no tratamento de sua matéria –, mostra-se

apto a mover o leitor no sentido da ação imitativa. Esta parece ser a questão em

jogo na famosa passagem dos Discorsi:

No entanto, na ordenação das repúblicas, na manutenção dos estados, no governo

dos reinos, na ordenação das milícias, na condução da guerra, no julgamento dos

súditos, na ampliação dos impérios, não se vê príncipe ou república que recorra aos

exemplos dos antigos. E creio que isso provém não tanto da fraqueza à qual a atual

religião conduziu o mundo, ou do mal que um ambicioso ócio fez a muitas regiões

e cidades cristãs, quanto do fato de não haver verdadeiro conhecimento das

histórias, de não se extrair de sua leitura o sentido, de não se sentir nelas o sabor

que têm. Motivo por que infinitas pessoas que as lêem sentem prazer em ouvir a

grande variedade de acontecimentos que elas contêm, mas não pensam em imitá-

las, considerando a imitação não só difícil como também impossível; como se o

céu, o sol, os elementos, os homens tivessem mudado de movimento, ordem e

poder, distinguindo-se do que eram antigamente (grifos meus).167

166 POLÍBIO. Histórias, I, 4. 167 MAQUIAVEL, Nicolau. Discorsi, I, proêmio, pp. 6-7.

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Como analisei anteriormente, o gênero epidítico visava fundamentalmente o

deleite da audiência, que na história não constituía fim em si mesmo, na medida

em que se supunha que o relato deveria incidir na fixação de lições úteis. Também

já foi dito que a partir de meados do século XV as fronteiras entre os gêneros

epidítico e deliberativo tornam-se cada vez mais tênues, o que reforça ainda mais

a associação entre deleite e utilidade. Na passagem dos Discorsi citada acima,

Maquiavel associa o “verdadeiro conhecimento das histórias” a uma leitura capaz

de extrair delas sentido e sabor, ou seja, uma leitura que se consume plenamente

tanto no deleite – o sabor –, quanto na utilidade, o sentido revelado na imitação de

ações dignas e virtuosas dos grandes romanos do período republicano. Entretanto,

argumenta Maquiavel, os homens de seu tempo recusavam-se a imitar as grandes

ações dos homens do passado, talvez por terem desaprendido o modo diligente de

ler as histórias.

Há, assim, uma estreita proximidade entre o deleite, a imitação e a ação: o

primeiro produz disposição favorável, a segunda escolhe o modelo apropriado,

através de leitura cuidadosa, enquanto a terceira produz os resultados e efeitos

desejados. Este é, para Maquiavel, o verdadeiro conhecimento das histórias. Este

é, também, o princípio ordenador de suas Istorie, conhecimento efetivo que busca

tanto nas particularidades das coisas quanto na leitura atenta e diligente de

histórias antigas e, como nota Riccardo Fubini, das crônicas do Trecento e do

Quattrocento,168 elementos capazes de conformar bons juízos, urdidos com

eloqüência a partir de matéria abundante. Ao mesmo tempo, tais lições precisam

ser efetivas e persuasivas, pois o verdadeiro conhecimento das histórias é o que se

materializa em ações imitativas; sem isso, o conhecimento será incompleto, e não

poderá ser chamado de prudente.

Pode-se dizer, portanto, que o verdadeiro conhecimento das histórias em

Maquiavel consuma-se com uma performance prudencial do bom juízo com viés

utilitário, a ação imitativa, cuja condição de possibilidade reside na leitura atenta e

diligente das histórias, especialmente as antigas. Nas Istorie, a leitura atenta e

diligente também constitui condição de possibilidade do verdadeiro conhecimento

168 Cf. FUBINI, Riccardo. “Machiavelli, i Medici e la storia di Firenze nel Quattrocento”. In: Op. cit., p. 204. “Pur nell’ambizione di una storiografia ad elevate pretese letterarie, e soprattuto inquadrata nella storia generale d’Italia così come era stata suggerita dai suoi modelli umanistici, Machiavelli aderisce in pari tempo alle prospettive comunali e private di autori quali Villani,

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das histórias, aquele efetivo, sem revelar, contudo, um viés utilitário tão explícito,

uma vez que os modelos a serem imitados são raros e pouco se destacam em

cenários marcados pela corrupção dos costumes e estranhamento da antiga virtù.

Nesse sentido, pode-se dizer que a opção pelo tratamento das lutas internas nas

Istorie revela-se o produto da leitura diligente realizada por Maquiavel das

crônicas e histórias dos séculos anteriores; ao mesmo tempo, ela visa à produção

de efeitos persuasivos capazes de deleitar seus ouvintes e em seguida movê-los, se

não a imitar bons modelos, em função da quase ausência desses, a emular o modo

de ragionamento exposto nas Istorie. Aqui há uma diferença importante em

relação aos Discorsi, onde os padrões de referência são os romanos do período

republicano, ápice da antiga virtus. Nas Istorie, os exemplos são florentinos: os

modelos para a imitação, se existem, encontram-se perdidos em meio à

degradação geral.

Com base no que foi dito, pode-se atestar a indissociabilidade entre ars

dicendi e rerum cognitione nas Istorie. O deslocamento do foco analítico operado

por Maquiavel é retórico em todos os seus momentos, estando diretamente

atrelado à reconfiguração do conceito de prudência operada em seus escritos. A

história, assim, deixa de ser concebida como um monumento, passando a

constituir uma forma de performance letrada do bom juízo, evento cuja

atualização por ouvintes e leitores dependerá fundamentalmente da observação e

imitação não das ações, mas do modo cuidadoso de inferência. Isto não implica

atestar um distanciamento da convencionalidade ético-retórica: os fins últimos das

Istorie são o útil e o honesto. Porém, diz ele sobre seu tempo, “nos príncipes não

há apetite de glória verdadeira, e nas repúblicas não há nenhuma ordenação que

mereça louvor”.169 Os homens, argumenta o secretário, sequer são capazes de ler

diligentemente as histórias antigas. Por esse viés, as Istorie, focadas na corrupção

dos tempos, nos erros dos homens, nas condutas impróprias e imprudentes, na

incapacidade decisória, não apenas ensinam pelo viés da negatividade como

oferecem o próprio mecanismo do ajuizamento prudente. As Istorie, nesse

sentido, ensinam a pensar; suas lições são pouco tangíveis, mas nem por isso

Cavalcanti, Giovanni di Carlo”. Conferir também: PHILLIPS, Mark. The Memoir of Marco Parenti. A Life in Medici Florence, pp. 217-240. 169 MAQUIAVEL. Op. cit., II, 1, p. 77.

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menos eficientes. Elas não fornecem ensinamentos morais de validade indistinta,

mesmo quando produzem sentenças – por sentença, entenda-se “um fraseado

tirado da experiência que mostra brevemente algo que acontece ou deveria

acontecer na vida”, segundo definição da Retórica a Herênio.170

Como analisei no primeiro capítulo, as sentenças, quando dispostas

esparsamente, “contribuem muito para o ornamento e necessariamente o ouvinte

dará seu assentimento tácito, quando vir que se acomoda à causa um princípio

indiscutível, tomado da vida e dos costumes”.171 As sentenças se espalham pelas

Istorie: “em muitas empresas a tardança te tolhe a ocasião, e a celeridade as

forças”;172 “mas, como nas ações perigosas, quanto mais se pensa, menor é a

vontade de executar, sempre são descobertas as conjurações cuja execução

demora certo tempo”;173 “sem dúvida, maior é a indignação e mais graves são as

feridas de quem recupera a liberdade do que de quem a defende”.174 Embora

sejam apresentadas como princípios indiscutíveis, ela não constituem julgamentos

morais; a finalidade aqui é menos a produção da lição que a construção do deleite,

através da ornamentação adequada – uma “quebra” da narrativa através da

articulação ocasional da descrição das coisas com reflexões advindas da

experiência. Elas não são conclusões naturais das histórias, e sim princípios

tácitos mobilizados para a produção de efeitos persuasivos.

Não há, portanto, a delimitação de lições universais moralizantes. O

ensinamento das Istorie diz respeito à educação do olhar no sentido da prudência.

Este é precisamente o ponto de conexão entre o escrito maquiaveliano e a Storia

d’Italia de Guicciardini. Embora os produtos do juízo prudencial sejam

completamente distintos, a lição legada diz respeito à necessidade de

aprimoramento das faculdades analíticas.

170 AD. Retórica a Herênio, IV, 24, p. 235. 171 Idem. Ibid., 25, pp. 235-237. 172 MAQUIAVEL, Nicolau. Op. cit., II, 22, p. 112. 173 Idem. Ibid., II, 32, p. 128. 174 Idem. Ibid., II, 37, p. 146.

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207

4.4 Guicciardini e os limites da prudência.

Da atinência à verità effetualle. Os limites da análise prudencial da realidade. Os

retratos de Guicciardini.

Se os manuscritos políticos de Guicciardini foram redescobertos apenas no

século XIX, sua maior empreitada literária, a Storia d’Italia, teve ampla

repercussão já no século XVI. Publicada vinte e um anos após a morte do autor,

foi rapidamente traduzida para o inglês, francês, latim, espanhol e alemão.175

Considerada por muitos o registro mais importante da crise dos valores que

caracterizaram o apogeu da Renascença, a Storia d’Italia impressiona pela riqueza

dos seus retratos e pela análise aguda da situação política italiana, ao enfatizar o

papel de destaque adquirido por França e Espanha na região.

Redigida entre 1535-1540, a história apresenta uma análise das “coisas

ocorridas na Itália” a partir da morte de Lorenzo de’Medici e da chegada dos

franceses – chamada por ele e por muitos dentre seus contemporâneos de calamità

(calamidade) italiana –, com vistas à edificação de um relato exemplar, a partir

dos preceitos ciceronianos sobre a ars historica.176 Na Storia d’Italia, porém, as

análises das personagens envolvidas na dinâmica política italiana no período da

calamidade não são exclusivamente construídas a partir da mobilização de

lugares-comuns retóricos de elogio ou censura, sustentados por amplificações de

virtudes ou vícios. Embora lance mão destas tópicas em diversos momentos,

Guicciardini se propõe a realizar uma análise atenta e penetrante das motivações

dos agentes e das sutilezas da realidade – no que se revela em acordo com o

princípio da verità effetualle della cosa.177

Se no Dialogo Guicciardini argumenta que aqueles que queiram tomar o

passado como modelo devem ser muito perspicazes na leitura das histórias,

175 Cf. RIDOLFI, Roberto. Studi Guicciardiniani, p.18. 176 Cf. BARUCCI, Guglielmo. I segni e la storia. Modelli tacitiani nella Storia d’Italia del Guicciardini, p.15. “La Storia d’Italia, prima opera storiografica del Guicciardini concepita per la pubblicazione, è infatti decisamente impostata sul principio ciceroniano dell’opus oratorium maxime e sulle sue esigenze di decorum riflesse nel profilo classicheggiante costituito dall’atenzione agli eventi militari, la scansione annalistica, il largo impiego di orazioni, suggerendo così un impianto tipicamente, ma anche genericamente, liviano”. 177 Cf. GILBERT, Felix. Op. cit., p. 292. “The conventional method which historians used to describe a personality (and which Guicciardini used in his first Florentine History), was to view

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porque mínimas variações nas situações podem produzir conseqüências

enormemente diferentes – “tudo aquilo que foi no passado, parte é no presente,

parte será em outros tempos e algum dia retornará a ser, mas sobre aspectos

exteriores diferentes e várias cores, de modo que quem não possui os olhos muito

bons o toma por novo e não o reconhece”178 –, conformando assim uma

possibilidade de cálculo relativamente seguro da dinâmica da realidade, e se na

máxima 117 dos Ricordi os “olhos bons e perspicazes”, atentos a “cada mínima

variedade”, podem orientar um ajuizamento prudente sobre as coisas do mundo,

na Storia d’Italia Guicciardini argumentará que “é sem dúvida muito perigoso

governar-se com os exemplos se não concorrem, não só em geral mas em todos os

particulares, as mesmas razões, se as coisas são reguladas com a mesma

prudência, e se, como nos outros fundamentos, não haja uma mesma fortuna”.179

Aqui, as possibilidades de uma análise prudencial segura da realidade são

reduzidas a patamares mínimos.180 A atenção às minúcias da realidade, nesse

sentido, configura-se não mais como modo possível de atestar padrões de

estabilidade associados às diversidades substanciais das coisas, como no Dialogo

ou mesmo nos Ricordi. O controle dos resultados das intervenções no mundo

definitivamente fugiram ao controle dos prudentes. Assim, até mesmo a

exemplaridade do processo de ajuizamento, mais que das lições gerais em si –

segundo o modelo das Istorie Fiorentine –, torna-se de difícil consecução: embora

o leitor da Storia d’Italia se veja recorrentemente diante de diversos percursos de

ajuizamento prudente, a efetividade dessas análises é posta em xeque, uma vez

que enredadas em teias quase imperscrutáveis de “erros vãos”.

Tome-se o caso de Ferdinando, rei de Nápoles, a quem Guicciardini atribui

imensa habilidade de interpretação das coisas do mundo, especialmente por sua

aptidão para antecipar possíveis desenlaces das ações de outros agentes

the individual in relation to the recognized scheme of virtues and vices so that the moral qualities of the individual in question would be clearly discernible to the reader”. 178 GUICCIARDINI, Francesco. Dialogo del Reggimento di Firenze, p.36. 179 GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, I, 14, p. 98. “Ma è senza dubbio molto pericoloso il governarsi con gli esempli se non concorrono, non solo in generale ma in tutti i particolari, le medesime ragione, se le cose non sono regolate con la medesima prudenzia, e se, oltre a tutti gli antro fondamenti, non v’ha la parte sua la medesima fortuna”. 180 Cf. JASMIN, Marcelo. “Política e historiografia no Renascimento italiano”, p.200. “Mas a História da Itália de Guicciardini radicalizara de tal modo as exigências da análise empírica que acabou por negar o império da repetição (e com ele o da virtù) para afirmar aquele da fortuna (e com ele o da discrezione).

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políticos.181 Tal capacidade, contudo, não foi suficiente para impedir sua ruína:

cercado pela corrupção dos costumes e dos valores, rodeados por condottieri e

príncipes ineptos, não há muito que o prudente possa fazer – o que se relaciona

diretamente à maneira com que Guicciardini concebe a dinâmica das “coisas do

mundo”, especialmente a ênfase atribuída ao papel da Fortuna, que se torna, na

Storia d’Italia, uma força praticamente incontrolável que a tudo arrasta: “é

grandíssimo (como todos sabem) em todas as ações humanas o poder da

fortuna”.182

Assim, embora afirme na abertura da Storia que “do conhecimento de tais

fatos, tão graves e variados, todos poderão adquirir muitos ensinamentos salutares,

para si e para o bem público”, o máximo de generalização que tais “ensinamentos

salutares” comportam é a afirmação de que “por exemplos inumeráveis, ficará

evidente toda a instabilidade que se impõe às coisas humanas”. Nas palavras de

Felix Gilbert, “na História da Itália de Guicciardini praticamente inexistem

exemplos que possam ser imitados”183, o que o escritor florentino afirma logo no

proêmio:

quão perniciosos são, quase sempre a si mesmos mas sempre ao povo, os maus

conselhos proferidos por aqueles que governam, quando, por erros vãos ou cupidez

imediata, vislumbram apenas o que está diante dos olhos, não se recordando das

freqüentes variações da Fortuna; e valendo-se, em detrimento alheio, do poder a

eles concedido pela coletividade, fazem-se, ou por pouca prudência ou por

demasiada ambição, autores de novos tumultos.184

181 GUICCIARDINI, Franceco. Op. cit., I, 2, pp. 11-12. “[...] e, tra gli altri, è manifesto cge il re di Napoli, benché in publico il dolore conceputo dissimulasse, significò alla reina sua moglie con lacrime, dalle quali era solito astenersi eziandio nella morte de’figliuoli, essere creato uno pontefice che sarebbe perniciosissimo a Italia e a tutta la republica cristiana: pronostico veramente non indegno della prudenza di Ferdinando” (grifo meu). 182 Idem. Ibid., II, 9, p. 193. “Ma è grandissima (come ognuno sa) in tutte l’azioni umane la potestà della fortuna”. 183 GILBERT, Felix. Op. cit., p. 282. “The humanists believed that history taught by example. In Guicciardini’s History of Italy there are hardly any examples which ought to be imitated”. 184 GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., I, 1, p. 5. “[...] quanto siano perniciosi, quasi sempre a se stessi ma sempre a’popoli, i consigli male misurati di coloro che dominano, quando, avendo solamente innanzi agli occhio o errori vani o le cupidità presenti, non si ricordano delle spesse variazioni della fortuna, e convertendo in detrimento altrui la potestà conceduta loro per la salute comune, si fanno, o per poca prudenza o per troppa ambizione, autori di nuove turbazioni”.

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A narrativa das “coisas ocorridas na Itália segundo nossa memória”185

constitui, nesse sentido, uma seqüência de erros, oriundos da má interpretação da

realidade pelos governantes “italianos”. Agindo com “pouca prudência” e

“demasiada ambição”, eles teriam levado Repúblicas e principados à ruína. Como

afirma Mark Phillips, “Guicciardini percebe claramente que os acontecimentos

eram ainda mais trágicos por não serem inevitáveis”:186 a queda dos estados

italianos, da situação de estabilidade nos últimos decênios do século XV para a

calamità, decorre fundamentalmente dos “maus conselhos” dos governantes.

Diante deste quadro, o leitor dificilmente poderá extrair modelos afirmativos

de conduta; no máximo, aprenderá a não agir como os protagonistas da Storia

d’Italia. É certo, porém, que seus leitores, como aqueles das Istorie Fiorentine,

poderão se educar num modo de inferência alicerçado no exame minucioso da

realidade, atento aos efeitos das ações dos agentes envolvidos em processos

decisórios – somente os prudentes, donos de “olhos bons e perspicazes”,

possuidores de vasta experiência e erudição nas histórias antigas e modernas,

podem, segundo ele, destrinchar as diversas nuances envolvidas na dinâmica da

realidade. Os prudentes, porém, não são muitos, como argumenta Guicciardini; e

mesmo eles precisam recorrer a conselhos:

nada é certamente mais necessário nas deliberações árduas, nenhuma coisa de outra

parte mais perigosa, que solicitar conselho; tampouco existe dúvida de que o

conselho é menos necessário aos homens prudentes que aos imprudentes; e não

obstante, que os sábios obtêm muito mais utilidade ao se aconselharem. Pois quem

é dono de prudência tão perfeita que sempre considere e conheça as coisas por si

mesmo? E nas razões contrárias discirna sempre a melhor parte? E que certeza tem

aquele que demanda o conselho de ser fielmente aconselhado? Porque quem dá o

conselho, se não for muito fiel ou devotado a quem o demanda, não somente

movido por interesses notáveis mas pensando em sua pequena comodidade e

satisfação ligeira, dirige seu conselho ao fim que mais lhe convém, ou de que pode

se beneficiar; e sendo esses fins no mais das vezes desconhecidos de quem pede os

conselhos, este não notará, se não for prudente, a infidelidade do conselho.187

185 Idem. “cose accadute alla memoria nostra in Italia”. 186 Cf. PHILLIPS, Mark. Francesco Guicciardini: the Historian’s Craft, p. 121. “Guicciardini’s clear perception that what happened was the more tragic because it was not inevitable”. 187 GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., I, 16, pp. 108-9. “Niuna cosa è certamente piú necessaria nelle deliberazioni ardue, niuna da altra parte più pericolosa, che’l domandare consiglio; né è

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Somente a deliberação pública pode incidir em ajuizamentos seguros,

porque fundamentados em debate in utramque partem, calcados na vasta

exploração dos diversos lados de uma questão e resultantes do consenso

prudencial. Esta é precisamente a situação esboçada no Dialogo del Reggimento

di Firenze, redigido entre 1521 e 1526, que apresenta um colóquio ocorrido no

ano de 1494, supostamente narrado a Francesco Guicciardini por seu pai, um dos

interlocutores. O homem particular, contudo, dificilmente será capaz de não

cometer os equívocos de julgamento que a deliberação pública acaba evitando. Na

segunda metade da década de 1530, período de composição da Storia d’Italia,

debates republicanos como o esboçado no Dialogo constituíam meras memórias

fugidias.188 Florença se transformara num ducado, e as instâncias de debate davam

lugar, cada vez mais, aos conselheiros privados, muitas vezes mais interessados

em manter a própria influência que na saúde da res publica. Cercado por homens

imprudentes, interessados apenas na realização das próprias ambições, resta ao

prudente pouco mais que a lamentação do desenlace da calamità, erigida como

narrativa detalhada de erros e falhas estratégicas. Como nota B. A. Haddock,

Guicciardini

manteve o uso de discursos formais, cuidadosamente emparelhados, para explicar

os motivos e intenções das partes antagônicas e explorou com grande efeito o

tradicional estudo de caráter que se inseria no texto a seguir à morte de uma figura

proeminente. Enquanto estes artifícios tinham sido utilizados em dias mais

otimistas para realçar as lições políticas ou morais, Guicciardini recorreu a eles

para exemplificar a futilidade das esperanças, ambições e planos dos sucessivos

chefes face a uma fortuna hostil. Há uma certa sabedoria que se pode ganhar aqui;

mas o motif predominante é mais a resignação à mutabilidade dos assuntos

dubbio che manco è necessario agli uomini prudenti il consiglio che afli imprudenti; e nondimento, che molto più utilità riportano i savi del consigliarsi. Perché chi è quello di prudenza tanto perfetta che consideri sempre e conosca ogni cosa da se stesso? E nelle ragioni contrarie discerna sempre la migliore parte? Ma che certezza ha chi domanda il consiglio d’essere fedelmente consigliato? Perché chi dà il consiglio, sen non è molto fedele o affezionato a chi’l domanda, non solo mosso da notabile interesse mas per ogni suo piccolo comodo, per ogni leggiera sidisfazione, dirizza spesso il consiglio a quel fine che più gli torna a proposito o di che piú si compiace; e essendo questi fini il piú delle volte incogniti a chi cerca d’essere consigliato, non s’accorge, se non è prudente, della infedeltà del consiglio”. 188 Cf. LUGNANI, Emanuella Scarano. Guicciardini e la crisi del Rinascimento, p.86. “In realtà all’approdo definitivo alla storiografia spingono in maniera determinante soprattuto le esperienze politiche sucessive al 1530”.

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humanos do que qualquer concepção do conhecimento dos fundamentos da história

como chave para o êxito neste mundo.189

Como resultado deste conjunto de preocupações, a história acaba sendo

configurada como uma investigação focada na percepção e compreensão dos

movimentos e variações das “coisas do mundo” – trata-se, nas palavras de

Gennaro Sasso, de uma “discrezione historiográfica” fundada na “prudência

crítica” e capaz de penetrar e as complexidades de um tempo de crise.190 Como

nota Franco Gaeta, “na Storia d’Italia” a tragédia italiana é narrada sob a insígnia

do poder da fortuna e da falácia dos homens”.191 A dinâmica das transformações

da realidade passa ao primeiro plano, e a descrição do ethos dos agentes, embora

possua força persuasiva, é menos importante que os efeitos produzidos pelas

ações desses mesmos agentes. Veja-se, por exemplo, o retrato do papa Alexandre

VI traçado por Guicciardini:

Porque em Alexandre sexto (assim foi chamado o novo pontífice) havia solércia e

sagacidade singulares, excelente consiglio, maravilhosa eficácia na persuasão, e em

todas as questões graves solicitude e destreza incríveis; mas estas virtù eram

acompanhadas em grande medida por vícios: costumes muito obscenos, nem

sinceridade nem vergonha nem verdade nem fé nem religião, avareza insaciável,

ambição imoderada, crueldade mais que bárbara e ardente cupidez ao exaltar de

qualquer maneira seus filhos, que eram muitos.192

A mobilização dos vícios atua, neste trecho, como elemento para a

construção retórica do caráter, o ethos de Alexandre VI. No entanto, as

habilidades analíticas do papa Borgia são destacadas e vistas como aspectos

189 HADDOCK, B. A. Uma introdução ao pensamento histórico, p.27. 190 Cf. SASSO, Gennaro. “I volti del ‘particulare’”. In: Per Francesco Guicciardini. Quattro Studi, p.3. “Che, più di quello machiavelliano, questo ‘sistema’ di pensiero, così sapientemente fondato sulla prudenza critica, sulla ‘misura’ politica, sulla ‘discrezione’ storiografica, sia fatto per piacere a culture perplesse e in crisi, stanche di valore assoluti e, nel nome del libero esperimento, poco disposte, ormai, a intraprendere la via che conduce al ‘fondamento’, si può comprendere”. 191 GAETA, Franco. “Il percorso storiografico di F. Guicciardini”, p. 159. “Nella Storia d’Italia la tragedia italiana è narrata all’insegna della potenza della fortuna e della fallacia degli uomini”. 192 Idem. Ibid., I, 2, p.12. “Perché in Alessandro sesto (cosí volle essere chiamato il nuovo pontefice) fu solerzia e sagacità singolare, consiglio eccellente, efficacia a persuadere maravigliosa, e a tutte le faccende gravi sollecitudine e destrezza incredibile; ma erano queste virtù avanzate di grande intervallo da’ vizi: costumi oscenissimi, non sincerità non vergogna non verità non fede non religione, avarizia insaziabile, ambizione immoderata, crudeltà più che barbara e ardentissima cupidità di esaltare in qualunche modo i figliuoli i quali erano molti”.

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responsáveis por levá-lo a uma posição de destaque no cenário italiano. Nesse

sentido, pelo critério dos efeitos, Alexandre foi bem-sucedido, pois conseguiu

obter muitos dos resultados que desejou; embora não possa ser chamado de

virtuoso em sentido moral, a qualificação de prudente se aplica a ele – note-se, por

exemplo, a mobilização das tópicas da solércia (solerzia ou soltertia) e do

consiglio, associadas por Pontano à prudentia.

Os retratos esboçados por Guicciardini tornaram-se famosos, sendo

considerados por diversos analistas como descrições “psicológicas” dos

agentes.193 Penso, porém, que eles se mostram adequados às convenções ético-

retóricas associadas ao gênero epidítico. Não existe, da parte de Guicciardini, uma

inquirição acerca da subjetividade dos agentes; trata-se do exame minucioso dos

modos de agir destes, a partir da mobilização de tópicas convencionais de forma

bastante engenhosa, que resultam na construção do ethos coerente. Ao minimizar

as amplificações, por perceber que virtude e vício, num momento de corrupção,

acabam se confundindo, Guicciardini produz exames que, para os leitores

modernos, parecem menos rígidos e “estereotipados” que, por exemplo, os de

Leonardo Bruni, ou de historiadores antigos como Tito Lívio e Salústio, embora

constituam mobilizações de lugares-comuns da retórica epidítica e deliberativa.

Tome-se, por exemplo, a famosa comparação entre os dois papas Medici, Leão X

e Clemente VII.

Leão X, para Guicciardini, foi “homem de suma liberalidade”. No que diz

respeito a seu pontificado, demonstrou grande “magnificência, esplendor e ânimo

verdadeiramente real”.194 Ao mesmo tempo, ele possuía uma profunda capacidade

de simulação, “com a qual enganou a todos no início do seu pontificado, e o fez

parecer um príncipe ótimo”.195 Sobre seus modos, diz ele: “não digo de bondade

apostólica, porque nos nossos costumes corrompidos a bondade do pontífice é

louvada quando não ultrapassa a malícia [malignità] dos outros homens”. Ao

193 Cf. PHILLIPS, Mark. Op. cit., p.130. “But Guicciardini’s historical understanding is distilled from his sense of the particulars, especially of personalities. Psychology and self-interest guide the flow of events in the Storia”; GILBERT, Felix. Op. cit., p. 290. “more intensive psychological explanations of human motivations”. 194 GUICCIARDINI, Francesco. Op. cit., XVI, 12, p. 1666. “Lione [...] fu uomo di somma liberalità; se però si conviene questo nome a quello spendere eccessivo che passa ogni misura. In costui, assunto al pontificato, apparí tanta magnificenza e splendore e animo veramente regale che e’sarebbe stato maraviglioso ezidiando in uno che fusse per lunga successione disceso di re o di imperadori”. 195 Idem. “A questa tanta facilità era aggiunta uma profondissima simulazione, con la quale aggirava ognuno nel principio del suo pontificato, e lo fece parere principe ottimo”.

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mesmo tempo, “era reputado clemente”.196 “Nos primeiros tempos de

pontificado”, diz Guicciardini, “acreditou-se que fosse castíssimo; mas descobriu-

se oportunamente que se dedicava excessivamente, e a cada dia com menos

vergonha, àqueles prazeres que com honestidade não se pode nomear”.197 Note-se,

aqui, a oposição entre os “primeiros tempos”, onde a dissimulação foi efetiva, e a

revelação progressiva do caráter de Leão X. Pode-se remeter, nesse sentido, à

máxima 44 dos Ricordi, ela mesma um diálogo com O Príncipe de Maquiavel:

“façam tudo para parecer bons, pois serve para infinitas coisas: mas, já que as

opiniões falsas não duram, dificilmente conseguirão parecer bons por longo tempo

se não o forem realmente”.198 Já o papa Clemente VII, primo de Leão, “era de

natureza grave, diligente, nos negócios, alheio aos prazeres, moderado e

parcimonioso em todas as coisas”.199 Este, nos tempos de cardinalato, havia de tal

modo superado os “contratempos e dificuldades que teve”, que, ao ser eleito papa,

apenas dois anos após a morte de seu primo, despertou um “juízo universal de que

seria o maior pontífice e de que faria coisas que jamais alguém havia feito

antes”.200 Este juízo, porém, não veio a se confirmar, simplesmente porque as

habilidades decisórias e a prudência de Leão X superavam e muito as de Clemente

VII: “em Leão havia mais habilidade que bondade”.201 Já Clemente,

embora tivesse intelecto muito capaz e possuísse maravilhoso conhecimento de

todas as coisas do mundo, todavia não correspondia na resolução e na execução;

porque, impedido não somente pela timidez do ânimo, que nele não era pequena, e

da cupidez de não gastar mas também de uma certa irresolução e perplexidade que

196 Idem. “non dico di bontà apostólica, perché ne’ nostri corrotti costumi è laudata la bontà del pontefice quando non trapassa la malignità degli altri uomini; ma era riputato clemente, cupido di beneficiare ognuno e alienissimo da tutte le cose che potessino offendere alcuno”. 197 Idem, Ibid., XVI, 12, p. 1667. “Credettesi per molti, nel primo tempo del pontificato, che e’fussi castissimo; ma si scoperse poi dedito eccessivamente, e ogni dí piú senza vergogna, in quegli piaceri che con onestà non si possono nominare”. 198 GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi, máxima 44, p. 71. Sobre esta questão, afirma Newton Bignotto: “a tendência dos homens de julgar pelas aparências, mesmo quando elas encontram forte apoio na realidade, se mostra falha exatamente por não recompor a complexidade do real e por conter a pressuposição de que é possível analisar a história a partir de proposições universais e abstratas”. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e Realismo. Um perfil de Francesco Guicciardini, p. 63. 199 GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia, XVI, 12, p. 1667. “Perché essendo Giulio di natura grave, diligente, assiduo alle faccende, alieno da’piaceri, ordinato e assegnato in ogni cosa”. 200 Idem. Ibid., XVI, 12, p. 1668. “dove entro con tanta espettazione che fu fatto giudizio universale che avesse a essere maggiore pontefice e a fare cose maggiori che mai avesse fatte alcuni di coloro che avevano insino a quel dí seduto in quella sedia”. 201 Idem. “Perché in Lione fu di grande lunga piú sufficienza che bontà”.

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lhe eram naturais, manteve-se quase sempre incerto e ambíguo quando era

conduzido à efetivação do que havia há muito previsto, considerado e praticamente

resolvido.202

Aqui, como na análise de Alexandre VI, a capacidade de deliberar

adequadamente e executar as decisões com celeridade é o ponto central na

caracterização dos agentes, que são julgados mais pelo critério dos efeitos de suas

ações que pela bondade ou amor à res publica. Existe, porém, uma tensão

irresoluta neste tipo de abordagem, uma vez que o ideal guicciardiniano

permanece atrelado à concepção ciceroniana de bom governo. Daí a melancolia de

suas reflexões e a resignação diante do imponderável, associadas à constatação da

imensa variedade das coisas do mundo e da quase impossibilidade de controlar as

próprias ações. Os que são prudentes possuem vícios de caráter; os que são graves

e bons têm medo de tomar decisões. Não existem, na Storia d’Italia, modelos de

homens prudentes que tenham podido controlar plenamente os resultados de suas

intervenções, exceção feita a Lorenzo de’Medici, cuja morte constitui exatamente

o ponto de partida de Guicciardini. Ao mesmo tempo, a prudência, como valor

máximo de orientação no “mar agitado pelos ventos”, não só não é

descaracterizada como constitui o efetivo fio condutor da Storia d’Italia – como

se Guicciardini precisasse afirmar a diritta via mesmo sabendo que os valores que

sempre defendera já não podiam se realizar.

202 Idem. “E ancora che avesse lo intelletto capacissimo e notizia maravigliosa di tutte le cose del mondo, nondimeno non corrispondeva nella risoluzione ed esecuzione; perché, impedito non solamente dalla timidità dell’animo, che in lui non era piccola, e dalla cupidità di non spendere ma eziandio da una certa irresoluzione e perplessità che gli era naturale, stesse quasi sempre sospeso e ambiguo quando era condotto alla determinazione di quelle cose le quali aveva da lontano molte volte previste, considerate e quali risolute”.

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5. Considerações Finais.

Uma possível história do conceito de prudência na Época Moderna

confundir-se-ia com uma narrativa das tentativas humanas de controle das

próprias ações, determinação dos seus resultados e realização plena dos fins

desejados. Nessa história, Maquiavel e Guicciardini possuiriam um lugar de

destaque, por representarem simultaneamente o ápice das possibilidades

calculativas da prudência – modo de antevisão das deliberações e dos efeitos das

ações dos agentes envolvidos nos processos decisórios de Repúblicas,

principados, monarquias e estados papais – e a constatação dos seus limites, nas

Istorie Fiorentine maquiavelianas e principalmente na Storia d’Italia, onde a

tópica da história mestra da vida passa a conformar pouco mais que uma

exemplaridade negativa e as possibilidades de intervenção bem calculada perdem

espaço ante a constatação da completa indeterminação das ações de homens pouco

afeitos ao exame cuidadoso e prudente da realidade.

A força do juízo prudencial, expressa sobretudo em textos como O Príncipe

e os Discorsi de Maquiavel e o Discorso di Logrogno e o Dialogo del Reggimento

di Firenze de Guicciardini, advém da possibilidade de extrair das contínuas

variações da realidade alguns princípios de recorrência e estabilidade, com vistas

a tornar a análise da dinâmica das “coisas do mundo” mais segura, fornecendo

princípios de orientação para a “navegação” do bom timoneiro. Entendida como

bom juízo, agilidade decisória e aguçada capacidade de examinar as sutilezas das

coisas humanas, a prudência constitui categoria central nos escritos de Maquiavel

e Guicciardini, conformando um modo de análise dos fenômenos políticos

revelador de duas dimensões absolutamente interligadas: um caráter calculativo –

a capacidade de análise dos resultados práticos das intervenções dos agentes

políticos e de antevisão de suas possíveis deliberações e ações – e performativo –

a prudência só pode ser reconhecida publicamente como produto discursivo

regrado segundo preceitos ético-retórico-poéticos estabelecidos em tratados

antigos e humanistas de arte retórica.

Neste estudo discuti os alicerces do modo prudencial de análise da política

delineado nos textos políticos e históricos de Maquiavel e Guicciardini, assim

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como a redefinição do conceito de prudência, resultante do seu distanciamento do

quadro tradicional das virtudes cardeais, da rejeição de sua subsunção à justiça e

da ênfase atribuída ao princípio da efetividade – chamado pelo secretário de verità

effetualle della cosa. Isto não quer dizer, porém, que em Maquiavel e Guicciardini

a prudência adquira um caráter meramente instrumental: seus fundamentos

residem tanto (a) na possibilidade de separar diversidades substanciais e acidentes,

condição para que o analista da realidade possa examinar tudo aquilo que remete a

certos padrões gerais – como a natureza humana, ciclos de ascensão e queda das

cidades e formas de governo, padrões de condutas prováveis conformados pela

experiência e pela leitura atenta das histórias antigas e modernas – e diferenciá-los

das obras do acaso, da contingência e do fortuito, movimentos imperscrutáveis por

remeterem aos caprichos da Fortuna ou aos desígnios da Providência, quanto (b)

na articulação do juízo prudencial segundo os preceitos de decoro dos gêneros

retóricos, regras de conveniência que operam em todos os momentos do cálculo

prudencial e conformam as práticas letradas – trata-se de condição para o

reconhecimento da prudência do orador ou do homem de letras, seja no debate

público nas esferas deliberativas da República ou em domínios mais restritos,

como as cortes de príncipes ou monarcas.

Em função deste duplo caráter, avaliei não apenas os fundamentos do

cálculo e medida da dinâmica da realidade, como também o processo, lento e

descontínuo, de formação de uma representação letrada – a imagem do litterati –

nos escritos de Maquiavel e Guicciardini. Na medida em que os registros que

possuímos são precisamente aqueles deixados na forma de produtos letrados

associados a alguns dos gêneros em circulação no Renascimento – como os

diálogos, os espelhos de príncipes, os comentários, as histórias, entre outros –, o

exame da prudência nos autores em questão não pode deixar de lado a análise da

construção textual de efeitos persuasivos: somente pela mobilização das

convenções associadas aos gêneros retóricos deliberativo e epidítico os produtos

dos juízos prudenciais poderão adquirir efetividade, sendo aceitos como

performances letradas convenientes e decorosas. É precisamente nesse sentido que

as Istorie Fiorentine de Maquiavel e a Storia d’Italia de Guicciardini são

analisadas, como “eventos” que ensinam a refletir, que apresentam os caminhos

de um modo particular de inferência pautado no exame atento das coisas do

mundo e dos efeitos das ações dos principais agentes envolvidos nos processos

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decisórios: nesse sentido, as lições que os leitores devem extrair destas histórias

dizem respeito menos à delimitação de modelos gerais de conduta, táticos ou

morais, que à definição de um modo particular de ragionamento que deve incidir

em ações imitativas, segundo o “verdadeiro conhecimento das histórias”, como

definido por Maquiavel, ou na prudência crítica, um tanto resignada, com que

Guicciardini procura compreender as complexidades de um tempo de crise e

corrupção.

Se, como afirmei anteriormente, Maquiavel e Guicciardini seriam

protagonistas em uma história da prudência, isto se deveria, também, à

constatação dos limites do modo prudencial de ajuizamento, decorrentes menos

das incertezas quanto a efetividade do procedimento empregado que da

constatação de mudanças tão severas na realidade que as ferramentas cognitivas

disponíveis, de caráter ético-retórico, embora adaptadas às condições do tempo, a

“navegação” num mar agitado pelos ventos, tornam-se incapazes de compreender

adequadamente todas as nuances envolvidas nas significativas transformações das

coisas do mundo – horizonte de expectativa forçosamente descolado do espaço de

experiência. Muitos analistas falaram em aceleração do tempo, em nova

“consciência histórica” e em transformações estruturais nas esferas sócio-

políticas, com a entrada em cena dos poderosos exércitos das monarquias do

Norte e de seus modos particulares de organização. São temas para a história do

conceito de prudência ainda não escrita, que talvez possam lançar luz sobre um

aspecto não examinado neste estudo: se, como nota Reinhart Koselleck, “a

história dos conceitos tem por tema a confluência do conceito e da história” 1,

como essa confluência se sedimenta nas transformações da concepção de

prudência no Cinquecento, das quais Maquiavel e Guicciardini, muito em função

de suas habilidades e do engenho como homens de letras, são menos artífices que

expoentes?

1 Cf. KOSELLECK, Reinhart. “História dos Conceitos e História Social”. In: Futuro Passado, p.110.

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