Livro+Tarrafal+-+V%C3%A1rios+Autores - ci.uc.pt · Caxias, pelo Aljube de Lisboa, pela Fortaleza de...

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Título: TARRAFAL-Testemunhos Autor: Vários Capa: Gil Teixeira Lopes Arranjo gráfico: Jorge Simões Revisão tipográfica: João Loureiro Editorial Caminho, SARL, Lisboa, 1978 Composição e impressão: Antunes & Amilcar, Lds. Tiragem: 4500 exemplares Acabou de se imprimir: Em Fevereiro de 1978 Trabalho colectivo de sobreviventes coordenado por Franco de Sousa. Aníbal Bizarro António Dinis Cabaço António Gonçalves Coimbra Armando Martins de Carvalho Armindo Amaral Guimarães Augusto Costa Valdez Francisco Miguel Henrique Ochsemberg João Faria Borda João Rodrigues João da Silva Campelo Joaquim Amaro Joaquim Gomes Casquinha Joaquim Ribeiro José Barata Júnior José Gilberto Florindo de Oliveira José Neves Amado José Santos Viegas Josué Martins Romão Manuel Baptista dos Reis Manuel da Graça Miguel Wager Russell Oliver Branco Bártolo Reinaldo de Castro

PREFÁCIO Sobre o Campo de Concentração do Tarrafal, que o fascismo criou e manteve durante 19 anos, já se tem dito e escrito alguma coisa, mas nunca se dirá nem escreverá tudo o que sobre tão sinistra prisão haverá para dizer. Alguns livros já existem de pessoas que viveram no Tarrafal, mais ou menos anos. Outros livros pessoais poderão ainda ser escritos sem que contudo essa dura e criminosa realidade fique suficientemente descrita. Tão grande foi o crime da sua existência. Tantas foram as violências lá praticadas. Foi tendo em conta esta realidade e atendendo à necessidade, politica e pedagógica, de mostrar a todos os portugueses, de todas as idades, o que foi o Campo de Concentração do Tarrafal, que um grupo de comunistas sobreviventes desse Campo da Morte Lenta - alguns que foram dos primeiros a lá chegar e lá passaram mais de 17 anos seguidos; outros que, indo lá pela segunda vez, foram os últimos a sair, em 1954 - empreenderam a elaboração deste livro. Com excepção do camarada Franco de Sousa, que foi o coordenador dos trabalhos parcelares apresentados, escritos ou gravados, os colaboradores do livro não são escritores e nada mais quiseram fazer que mostrar, com fidelidade, como foi e o que foi o Tarrafal, como lá trabalharam e sofreram, como lá viram morrer 9 muitos dos seus camaradas e companheiros de prisão. Este livro não é um produto da nossa imaginação, nada tem de inventado, nada tem de ficção. E a verdade do que nós vivemos, é o Tarrafal descrito por vários daqueles mesmos que o fascismo para lá mandou para morrerem, como muitas vezes os próprios directores e seus subordinados se compraziam em nos dizer. Temos a consciência de que este livro, apesar de colectivo, não dirá tudo o que foi o Tarrafal nos seus muitos aspectos. Mas estamos certos de que tudo o que dizemos é verdadeiro e indiscutivel. É este, pensamos nós, um dos méritos deste trabalho que entendemos ser nossa obrigação realizar. Protagonistas da tragédia que foi o Tarrafal, não foi a situação pessoal de cada um de nós o que nos preocupou; o que tivemos em vista foi dar a conhecer a situação dificil que todos vivemos; e a que muitos não resistiram. O Campo de Concentração do Tarrafal, como ao longo deste livro fica dito e demonstrado, foi criado pelo governo fascista de Salazar para suprimir fisicamente os antifascistas mais combativos e para, ao mesmo tempo, atemorizar todos os que, ansiosos de liberdade, combatiam a tirania salazarista. O Tarrafál não foi nunca, e também não o deverá ser agora, um assunto que só dissesse respeito aos que por lá passaram. Muito pelo contrário, é necessário ver o Tarrafal como ele realmente foi, em todas as suas facetas e como uma parte da grande prisão que era Portugal dominado pelo fascismo. Sem essa apreçiação correcta do que foi o Tarrafal não poderíamos compreender toda a enorme responsabilidade dos governantes que o criaram e o mantiveram durante 19 anos (1936-1954). As gerações de hoje e as futuras devem saber que o Tarrafal existiu e porque existiu, qual foi 10 a sua história e o seu verdadeiro significado. Devem saber que na nossa história, como país e como povo, houve uma noite que durou cerca de meio século e que no centro dessa longa noite se situa essa mancha ainda mais negra, que foi o Campo de Concentração do Tarrafal. O conhecimento dessa verdade que lamentamos e sofremos, é necessário para nos couraçar contra as manobras criminosas dos que pretendem fazer-nos voltar ao passado, a esses tempos em que o Tarrafal existiu. Foi um mal termos vivido tempos tão negros e suportado na carne tantos crimes. Mas temos razões para estarmos orgulhosos de nem a existência do Tarrafal e

muitos outros crimes terem sido suficientes para parar a nossa luta pela liberdade. O Tarrafal foi a morte para muitos antifascistas, mas o objectivo que o fascismo tinha em vista com a criação do Tarrafal não foi atingido. A nossa luta não parou. A vitória coube aos antifascistas portugueses que não pararam na sua acção. Mesmo nos períodos mais difíceis, mesmo praticando as maiores violências, mesmo quando cada um de nós admitia como provável não voltar mais a Portugal e ficar lá sepultado, mesmo assim, a imensa maioria dos presos do Tarrafal, manifestando uma elevada consciência política e revolucionária, nunca cedeu à vontade dos carcereiros fascistas e sempre se manteve fiel aos ideais de liberdade e de justiça, pondo acima de tudo os interesses do nosso povo explorado e oprimido pelo mesmo fascismo. O Tarrafal não foi um sonho mau; foi um crime tremendo, friamente meditado e friamente executado. Todos nós que vivemos no Tarrafal, os que morreram e os que ainda estão vivos, sempre pensámos, e muitas vezes o dissemos uns para os outros, que uma vez derrubado o fascismo no nosso país; todos os criminosos com responsabi- 11 lidade na criação do Tarrafal e nos crimes que aí se praticaram, seriam julgados em tribunais comuns e justamente condenados. Lamentavelmente não tem acontecido assim. Até agora nenhum desses criminosos compareceu perante a justiça. Todos andam em liberdade como se nada de mau tivessem feito. Mas vítimas do Tarrafal aí estão, recordando os sofrimentos a que foram submetidas durante muitos anos. Nas vítimas do Tarrafal, nos que trabalharam anos seguidos sem nada ganharem, para si nem para o seus, porque estavam presos; ainda ninguém pensou. Há quem fale muito na injustiça e nos direitos da pessoa humana, ainda diga sobre a justiça a fazer às muitas vítimas dos crimes do fascismo. Estranho sentido de justiça é ainda o que permite e explica que as coisas se passem assim. Enquanto o Tarrafal existiu, duas coisas aconteciam paralelamente no tempo: nesse Campo da Morte Lenta trabalhavam e morriam assassinados os antifascistas mais combativos e os que melhor representaram os interesses dos trabalhadores, como Bento Gonçalves, secretário-geral do PCP, como Mário Castelhano, sindicalista destacado. Em Lisboa, por todo o país e nos territórios então ainda colónias, os fascistas amassaram grandes fortunas à custa da exploração e da opressão do povo. A violência - queremos aqui afirmá-lo uma vez mais - só existe quando há quem a pratica. Se houve crimes também houve criminosos. E a justiça só existe, de facto, quando e onde os criminosos recebem as condenações que merecem. Dizer ao povo que o que se está fazendo é justiça e é democracia, leva ao cepticismo e dá uma imagem errada desses dois valores que sempre devemos defender. É preciso que o povo, os trabalhadores, vejam e saibam o que é a justiça. 12 O estudo do passado deve servir-nos para melhor compreendermos o presente e prever o futuro. Se com este livro não dizemos e não demonstramos tudo o que foi o Tarrafal, nós pensamos que teremos deixado uma boa base para o conhecimento do que foi o fascismo e, deste modo, ajudarmos as gerações mais novas a não se deixarem iludir e tomarem medidas no sentido de não permitir que ao nosso País volte o fascismo em nenhuma das suas versões. Lendo este livro os antifascistas ficarão sabendo o que foi o Campo de Concentração do Tarrafal e o que ele representou como prisão e local destinado a matar os mais activos opositores ao fascismo salazarista. Lendo este livro os antifascistas, todos os portugueses, poderão ver e compreender melhor os fins criminosos que os fascistas tinham em vista ao adoptarem tais métodos de repressão, quais os seus objectivos e qual é por consequência a responsabilidade desses governantes de então e de todos os que, neste ou naquele posto, desempenharam funções de carrascos dos antifascistas lá encarcerados.

A existência do Campo de Concentração do Tarrafal foi um crime e os criminosos foram muitos. Não é preciso absolver de culpas os simples guardas para reconhecer nos chefes e nos directores maiores responsabilidades. Não é preciso diminuir em nada as responsabilidades dos que nos torturavam e assassinavam directamente no Tarrafal para se atribuir a Salazar e a todos os governantes de então a principal responsabilidade em todos os crimes de que fomos vitimas. Se neste livro dedicamos muitas páginas à conduta de ladrão do "Manuel dos Arames", que tão descaradamente nos roubava no Tarrafal, isso não significa que os nossos piores inimigos não fossem 13 os que, desde o Terreiro do Paço, governavam o País. Os Manuel dos Arames como os outros militares que aceitaram ser carcereiros dos presos políticos no tempo de Salazar eram, em todos os casos, os elementos inferiores, moral e profissionalmente, do nosso exército. Nenhum desses militares foi ou opoderia se capitão de Abril. De facto, derrubando o fascismo numa madrugada histórica de 25 de Abril de 1974, as forças armadas lavaram essa sujidade com que o fascismo também as tinha manchado. No Tarrafal morreram dezenas de antifascistas, muitos outros morreram já cá fora, prematuramente em consequência directa das violências e maus tratos que lá sofreram. O Tarrafal foi uma prisão de tipo especial, onde, isolados do mundo, os antifascistas eram assassinados. Mas o Tarrafal esteve sempre integrado, fez sempre parte do sistema de repressão brutal que atingiu na própria carne todos os democratas. Para além do Tarrafal, antes e depois do Tarrafal, milhares de antifascistas passaram pelo Forte de Peniche, por Caxias, pelo Aljube de Lisboa, pela Fortaleza de S. João Baptista, nos Açores, prisões que muitos de nós conhecemos directamente e que em 1936 os fascistas já consideraram insuficientes perante o desenvolvimento da luta do povo português pela liberdade e pela democracia. Todo o nosso povo tenha o direito e o dever de exigir que justiça seja feita, quer reparando até onde é possível reparar os danos causados às vitimas do fascismo, quer punindo adequadamente os criminosos. Reclamar que seja feita justiça é já uma parte da grande luta que travamos em defesa da democracia e da liberdade. Não é subtraindo à acção da justiça os criminosos fascistas que defenderemos e protegeremos os direitos da pessoa humana. 14 Ao escrevermos este livro, e com ele chamarmos a atenção para o que foi o Tarrafal, nós fizemos o que o 25 de Abril, no seu espirito, reclama de nós. Pondo no conhecimento do povo português o que foi o Tarrafal, nós apresentamos elementos concretos, rigorosamente verdadeiros, que permitirão fazer justiça, como manda a própria essência da democracia. Quem não passou pelo Tarrafal pode conhecer o que foi esse Campo da Morte Lenta lendo este livro. Antifascista, democrata, homem progressista: quando pensares nos direitos da pessoa humana não esqueças o Tarrafal. Se queres defender a liberdade e construir e consolidar a verdadeira democracia, faz alguma coisa para que o fascismo não possa voltar mais à terra Portuguesa. O Tarrafal simboliza 48 anos de política criminosa. Nós, povo português, não podemos permitir que este crime se repita. FRANCISCO MIGUEL 15

ACHADA GRANDE DO TARRAFAL 1936. Tinha começado a Guerra Civil de Espanha. 1939 seria o início da mais criminosa guerra da História, que terminou a 8 de Maio de 1945, com a derrota do nazismo e dos sonhos de Milénio do seu império. O fascismo português acompanhou esta ascensão e queda, marcada pela ferocidade da sua repressão. Quanto mais triunfalistas eram as arengas de Hitler e de Mussolini, mais a perseguição aos antifascistas portugueses era desapiedada, visando o seu aniquilamento. Mas quando as esperanças de vitória se desvaneceram, quando Von Paulus caiu prisioneiro em Estalinegrado e o exército alemão, que se proclamava invencível, recebeu o golpe de morte de que não mais se recomporia, quando a aviação de Goering foi batida no céu de Londres e a esquadra alemã na batalha do Atlântico, quando pela Itália e pela Normandia avançavam as tropas aliadas e o Exército Vermelho arrancava vitória após vitória e já força alguma o poderia impedir de ocupar a Berlim do III Reich, então, também em Portugal os carcereiros fascistas perdiam arrogância e procuravam fazer esquecer todas as atrocidades cometidas de que o nazismo triunfante pelos campos de guerra da Europa fora durante muito tempo certeza de impunidade. 17 O campo de concentração do Tarrafal foi o verdadeiro reflexo desta época. Não houve em Portugal prisão onde os fascistas mais se mostrassem como na realidade são, nem onde as reacções dos carcereiros melhor correspondessem ao fascismo vitorioso e ao fascismo derrotado, temerosos de que a sorte de Mussolini, julgado e executado pelos guerrilheiros, ou o Tribunal de Nuremberga tivessem em Portugal os seus equivalentes. E isto, ao abalar o moral dos salazaristas, determinou que o campo do Tarrafal, criado em 1936, para a morte dos mais corajosos adversários do Estado Novo, fosse discretamente fazendo-se esquecido até ser encerrado em 1954. Ainda que decretado em 1936, a história do campo de concentração do Tarrafal começa verdadeiramente em 1934, depois do 18 de Janeiro. É nesta data, com a acção da luta de classes que o regime salazarista sente a uma repressão mais dura, que a situação política na Alemanha e na Itália encorajava. Na ilha de São Nicolau, no arquipélago de Cabo Verde, existira já um campo de concentração. Durou poucos meses. Os prisioneiros da Revolução da Madeira, em 1931, eram na sua maioria oficiais do exército. O Governo fixou residência a uns, em localidades das ilhas, concedeu-lhes subsídios e permitiu que outros regressassem à Metrópole ou partissem para o exílio. Ficaram desabitadas as barracas que, segundo se dizia, faziam parte das indemnizações de guerra pagas pela Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial. Eram bem diferentes - ou não houvesse uma política de classe - daquelas que os prisioneiros do Tarrafal viriam a conhecer. Eram de madeira, com bom isolamento do calor, bem defendidas dos mosquitos, quase confortá- 18 veis. Vieram depois, no Campo, a servir para instalações da secretaria, alojanento dos guardas, comando militar, oficinas, etc. É este campo de São Nicolau que origina o antecedente justificador da colónia penal, criada pelo Decreto 26 539, de 23 de Abril de 1936. É, porém, o movimento de 8 de Setembro de 1936, a Revolta dos Marinheiros, que vem precipitar a instalação do Campo em Santiago. Vivia-se a Guerra Civil espanhola. O Afonso de Albuquerque tinha regressado da sua missão de observação, a pretexto de proteger súbditos e interesses portugueses em Espanha. Porém, boa parte da tripulação negara-se a desembarcar em portos franquistas e não escondera a sua repugnância por Franco e a sua

simpatia pelos republicanos. Fundeados no Tejo, considerados revolucionários, foram presos e imediatamente destituídos muitos homens da Armada. O 8 de Setembro foi um protesto contra aquelas expulsões da Marinha de Guerra e também contra o apoio que Salazar prestava a Franco. Foi uma revolta de marinheiros e nela não tomou parte um só oficial. O Movimento do 8 de Setembro enfureceu Salazar e tanto mais quanto o assustou. Em Espanha, a guerra civil estava indecisa, de modo algum se vislumbrava como certo o triunfo de Franco, e uma república democrática, em país tão próximo e com tão extensa fronteira comum, era fonte de muitas apreensões para o fascismo português. Ordenou que a revolta fosse sufocada da forma mais violenta. Os navios foram bombardeados os revoltosos presos, julgados, condenados a pesadas penas e rapidamente se preparou o campo de concentração na ilha de Santiago. 19 Entre as ilhas do arquipélago de Cabo Verde, Santiago é a maior, uma das mais próximas do Equador e aquela que tem a zona de pior clima - a Achada Grande do Tarrafal - situada a norte, no extremo da ilha oposto ao da Cidade da Praia, a que está ligada por uns setenta e cinco quilómetros de estrada, desolada e triste, que desemboca na ampla Baía do Tarrafal, voltada para a ilha do Fogo. A paisagem é montanhosa. Levanta-se a norte o escuro perfil do Monte da Graciosa, onde não se avista casa nem árvore. O recorte eleva-se bruscamente, não longe do oceano, desce serenamente, quase na horizontal, para novamente se erguer numa segunda carcova que vem descair em pequena planície. Mais baixos, em degraus, pequenos morros. A leste levanta-se outro monte, nu, em declive suave. Mas logo se formam tochas, em cadeia que não se interrompe, em altos e baixos, que por fim caem verticalmente sobre o mar. Litoral rochoso e, aqui e além, pequenas praias de areia negra, amontoada pela mó das vagas contra a pedra vulcânica. De sul para o oeste, a linha do horizonte é o oceano claro ou escuro ora verde ora azul, ora cinzento, mas sempre deslumbrante pelo pôr do Sol. No extremo sul da baía encontra-se a povoação da Ribeira da Prata, com uma pequena praia, coqueiros, uma mancha verde a alegrar a aridez. A norte é a sede do concelho, a Vila do Tarrafal, que começa junto ao mar e se alonga pelo sopé do Monte da Graciosa. E afundada entre montes, rodeada por dunas perto da costa, há uma pequena planície com uns três quilómetros de comprimento por uma largura, limitada a norte pela Vila do Tarrafal e a sul pela Ribeira do Chambão. É esta a zona de pior clima do arquiplélago: chuva, vento, calor, pântanos e paludismo. 20 As chuvas são cíclicas em Cabo Verde. Passam-se anos consecutivos sem que chova. E então é a fome e os mortos são aos milhares. Começam em Agosto as chuvadas. Em Setembro é o vendaval desfeito, chapadas de água que tudo inundam. Em Outubro ainda chove. Pelo final de Novembro entra de soprar o nordeste que arrasta os mosquitos e turbilhões de poeira arrancada aos morros queimados pelo sol. Depois, por Dezembro, a paisagem modifica-se. As montanhas já não estão nuas, pardas, agressivas. Cobrem-se de verdura e os vales perdem a sua desolação. Cresce o capim e o vento faz ondular aquele mar verde. Os bois e as cabras têm abundância de pasto. Mas vem Janeiro, vem Fevereiro e os campos onde o capim cresceu até um metro de altura, tornam-se amarelos, ressequidos pelo sol, cobertos por uma erva seca, onde se abrigam milhões de larvas e insectos. Chega Junho muito quente, sem vento. Em Agosto não corre aragem e o céu parece metal fundido a abrasar plantas, bichos e homens.

Quando chove floresce o milho e será ano bondoso, como dizem os cabo-verdianos, que terão a sua cachupa. Se não chove é a fome. Mas na Achada Grande do Tarrafal, ano de chuva é também ano de paludismo. Em Setembro, quando das grandes chuvadas, é como se um manto de águas se rasgasse e correm torrentes que vêm das vertentes dos montes, velozes, redemoinhantes e tudo arrastam, cabanas e gado, no seu caminho para o mar. A Achada Grande transforma-se num lago, para dias depois ser um pântano, com lagoas nas baixas e junto ao areal negro da praia. O sol, muito quente, pesa sobre as águas que apodrecem e fermentam. Germinam as larvas de mosquitos aos milhões, no pântano, nos regatos, nos poços e até na folhagem 21 das plantas, nas gotas do caçimbo que cai pela noite. A baía do Tarrafal, entre Julho e Novembro, quando o nordeste não sopra, é zona de paludismo. O mosquito anófele alimenta-se com sangue e é nos glóbulos vermelhos que se reproduz e se completa o ciclo evolutivo do plasmódio, causa do paludismo. O mosquito é o transmissor. Na Achada Grande há pântanos, mosquitos e paludismo. A Achada Grande é a zona mais temida pela gente de Cabo Verde. Na Achada Grande do Tarrafal montou o governo fascista o campo de concentração. Na ilha que o mar guardava melhor que o arame farpado e as armas dos carcereiros, o mosquito seria um executor discreto. Dispunha a cumplicidade do director, do médico, dos guardas do campo, pois sem possibilidade de ferver a água inquinada, sem mosquiteiros, sem medicamentos, com má alimentação, trabalhos pesados, espancamentos, semanas de frigideira, todas as resistências orgânicas se desmoronavam abrindo caminho fácil ao paludismo e às biliosas. As mortes dos antifascistas do Campo do Tarrafal foram premeditadas. Estas intenções certamente não eram confessadas em documentos oficiais, mas tão claro era o objectivo que o director do Campo não o escondeu. Afirmou-o Manuel dos Reis para que todos os presos soubessem a que estavam destinados. - Quem vem para o Tarrafal vem para morrer! E muitos morreram e lá ficaram no cemitério que tão perto estava do Campo. Mas pelo Decreto nº 26 539 de 23 de Abril de 1936, o fascismo usava uma linguagem que não era a de Manuel dos Reis. Ao campo de concentração chamava Colónia Penal. Perante possíveis protestos 22 internacionais denunciando a verdade terrível ali vivida, o decreto serviria de desmentido. Dentro do Território nacional, a Censura impediria de sair na imprensa toda e qualquer noticia que pudesse descrever como se vivia no Campo. Que entre portugueses se segredasse do inferno que por lá havia, que o medo se generalizasse e desencorajasse atitudes de oposição ao regime, isso só seria uma vantagem. A polícia política não só prende e tortura, como procura criar à sua volta uma publicidade que amedronte, que iniba, que crie a passividade tão do agrado dos ditadores. O Campo do Tarrafal tinha também esta função. A linguagem do decreto era serena, objectiva, nela nada transparecia das verdadeiras intenções do fascismo. "Depois de um reconhecimento cuidadosamente feito por técnicos a diferentes ilhas do arquipélago de Cabo Verde, chegou-se à conclusão de que o lugar do Tarrafal, na ilha de Santiago, reunia as condições necessárias à instalação, sob o ponto de vista higiénico, de vigilância e de recursos naturais de comunicação indispensáveis ao seu bom funcionamento." E reunia efectivamente as condições necessárias, de acordo com os objectivos do governo fascista. O Tarrafal não tinha água, não tinha comunicações. No Tarrafal havia pântanos, febres, morte.

Eram estas as condições de higiene que o fascismo desejava. Mas não as exprimia, escondia-as numa linguagem que; interpretada por homens de boa vontade, parecia bem intencionada. "Sendo os estabelecimentos penais do Ultramar, como este, simples elementos do sistema penal da Metrópole, justo era que se confiasse a sua direcção e fiscalização a um Ministério a que incumbem em conjunto os serviços prisionais e por isso ao Ministério da Justiça. 23 Oficialmente era assim, mas, na realidade, esteve sempre directamente dependente da Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado. Estaria subordinada ao Ministério da Justiça se fosse uma colónia penal. Mas não era. "A colónia penal ... destinar-se-á a presos por crimes políticos que devam cumprir pena de desterro ou que, tendo estado internados em outros estabelecimentos penais, se mostrem refractários à disciplina desses estabelecimentos ou elementos perniciosos para os outros reclusos" - e continuava o decreto - "Poderão igualmente ser internados nesta colónia, em secção separada, os condenados a penas maiores por crimes praticados por fins políticos, sujeitos por lei ao regime prisional comum e ainda, em caso de necessidade, detidos preventivamente pelos crimes a que se refere o Decreto-Lei nº 23 203 e que o Governo detiver ou quizer julgar fora da Metrópole". Contudo, no Campo do Tarrafal; os presos, na sua grande maioria, não tinham sido julgados ou de há muito haviam cumprido a sua pena. Em Março de 1946, trinta e seis presos condenados a penas que, somados os anos de prisão das sentenças, atingiam cerca de cento e vinte anos, cumpriam já um tempo de encarceramento correspondente a trezentos e trinta anos! O caso de Manuel Alpedrinha era um exemplo. Condenado a dois anos de prisão correccional, estava preso havia doze anos e meio! Em quarenta presos sem terem sido julgados, o tempo total de detenção aguardando julgamento somava trezentos e quatro anos! Os presos preventivos, sem culpa formada, cerca de sessenta, permaneciam em cativeiro um tempo que atingia duzentos e trinta e quatro anos! Apenas cento e trinta e seis homens - porque muitos mais passaram pelo Campo do Tarrafal - 24 representavam quase novecentos anos de prisão. Homens que eram energia consciente dirigida para a felicidade do povo de que faziam parte, uma energia a aplicar em todos os dias e horas e ali se mantinha reprimida, para que lentamente fosse destruida. Novecentos anos de vida lançados para um campo de paludismo e morte! 25 MAR E ARAME FARPADO Pela madrugada de 18 de Outubro de 1936 saíram da Penitenciária de Lisboa trinta e quatro marinheiros. Éramos considerados como os mais responsáveis pela revolta dos navios de guerra Afonso de Albuquerque, Bártolomeu Dias e Dão. Meteram-nos em carros celulares que, pela cidade adormecida e em silêncio, seguiram até ao cais da Rocha de Conde de Óbidos, onde havia grande concentração guerreira de carros de assalto da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana. Agentes da polícia política dirigiam as operações. Ouvíamos motores, vozes de comando. Atracado ao cais estava o Luanda que nos iria levar. Deram-nos ordem para formarmos em fila indiana e dirigimo-nos para o navio, em silêncio, naquela angústia de quem vive momentos decisivos que para sempre nos marcam; aquela angústia de quem vai por caminho com portas que se

fecham nas nossas costas e por onde não poderemos voltar a passar. Então, no ar frio da manhã e em nós, ficou a vibrar uma voz de mulher: - Adeus, Josué! Não te esqueças de escrever! Seguia a bordo uma força da Guarda Nacional Republicana, comandada por um tenente; um pequeno destacamento de marinheiros, postado junto à ponte de comando e uma brigada da Polícia de 27 Vigilância e de Defesa do Estado, dirigida pelo chefe de brigada Gomes da Silva. Connosco seguiam presos de Caxias, do Aljube, de Peniche, alguns portugueses residentes em Espanha. Tinham sido expatriados por suspeita de simpatia pelos republicanos. Confraternizámos. As canções revolucionárias surgiram naturalmente. Pelo que éramos e para nos encorajarmos naqueles porões de vigias tapadas, a cheirar à tinta do cavername e onde abafávamos. Mas logo nos gritaram do convés: - Ou se calam já ou mando montar mangueiras com água a ferver! Comandava a força da GNR o tenente Adelino Soares, a quem tinham dito ser preciso ter mão firme, pois iria guardar perigosos cadastrados. E durante a viagem provocou-nos e insultou-nos tentando intimidar-nos. - Se for preciso, estoiro-lhes os miolos! No Funchal, o velho cargueiro embarcou camponeses destinados à prisão de Angra do Heroísmo. Eram culpados pela greve dos lacticínios, da luta travada contra o preço arbitrário do leite e a sua entrega total exigida pelos senhores industriais do Grémio. A 23 de Outubro, numa manhã húmida, aportámos à ilha Terceira. A muralha da fortaleza estava negra e coberta de musgo. Os presos foram saindo das casamatas e formaram diante dos portões ainda fechados. Na frente, de armas perradas, as praças da GNR, comandadas pelo tenente, muito hirto e duro: - Garanto-lhes que não hesitarei em os fuzilar a todos se, a bordo, durante a viagem, notar o mais pequeno sinal de insubordinação. E porque notou num preso uma expressão que lhe pareceu de riso, avançou para ele e esbofeteou-o. 28 Entre os presos embarcados em Angra do Heroismo encontravam-se Beato Gonçalves, secretário-geral do Partido Comunista Português, e Mário Castelhano, dirigente anarquista. Connosco embarcara também o capitão Manuel Martins dos Reis. Iríamos conhecê-lo mais tarde. Abandonara a direcção da Fortaleza de São João Baptista por ter sido nomeado director do Campo do Tarrafal. O rumo era agora Cabo Verde e as provocações do tenente continuavam. Chegou a agredir com um pontapé um camarada que se encontrava no topo da escada do porão e que foi cair em baixo. Decidimos constituir uma comissão de três ex-marinheiros conhecidos do Comandante de Bandeira para lhe falarem de vários problemas e entre eles o comportamento do tenente da Guarda. Uma das nossas reivindicações, até ali sempre recusada, era o recreio no convés. Garantíamos que tudo se iria dar em perfeita ordem, pois éramos homens conscientes e responsáveis. E nos últimos seis dias de viagem vínhamos, por turnos, respirar o ar livre do mar. É certo que longe dos portos de escala já não lhes parecíamos tão perigosos. Quanto ao tenente, deixámos de o ver. Já no Tarrafal, procurou aproximar-se de nós. Elogiava-nos e tentava ser agradável. Confessava-se arrependido. - Tinham-me dito tantas coisas a vosso respeito! Pensei estar a lidar com verdadeiros criminosos e inimigos da Pátria. Não, não éramos inimigos da Pátria, nós, os marinheiros do 8 de Setembro, os militantes do 18 de Janeiro. Nem Mário Castelhano! Nem Bento Gonçalves! Não nos considerou como criminosos o comandante Soares de Oliveira. Agradeceu-nos a maneira como nos tínhamos comportado a bordo. Ao de- 29

sembarcarmos saudou em especial os marinheiros e vimos que estava comovido. Pelo começo da tarde de 29 de Outubro de 1936, o Luanda ancorou na pequena baía do Tarrafal. Depois de onze dias de viagem, em que nem por um momento as metralhadoras deixaram de estar apontadas contra nós, prontas a disparar à primeira ordem, começou a chamada para o desembarque. Fomos para terra em embarcações com cabo-verdianos aos remos e logo formámos a dois e dois para percorrermos, debaixo de escolta, os três quilómetros até ao Campo. Pelo caminho, pedregoso e poeirento, encontrávamos a gente de Cabo Verde, esfarrapada e faminta, a olhar-nos surpreendida. Juntava-se para nos ver passar. Éramos terríveis criminosos e havia ordens rigorosas para impedir qualquer contacto connosco. Mas apesar de tudo conseguimos comprar-lhes laranjas com que matámos a sede. Causava-nos tristeza a paisagem. Aqui e além, ao longo do caminho, viam-se pequenas e fracas purgueiras, árvores frequentes na ilha. E pelas encostas dos montes espalhavam-se, negras e miseráveis, as palhotas sempre a fumegar pelos telhados de junco. Perto, magríssimos, pastavam burros e cabras. Em volta do Campo não se avistava casa, apenas as barracas que serviam de dormitório aos guardas e, um pouco mais afastadas, as casernas dos militares que tinham a seu cargo a guarda exterior do Campo. Quando chegámos a vedação era o arame farpado preso a uns toscos troncos com cerca de dois metros de altura, mais tarde substituidos por tubos de ferro. O Campo era um rectângulo de duzentos por cento e cinquenta metros. Víamos 30 o mar, a pequena aldeia de Chambão, toda a Achada Grande. Ano e meio depois da nossa chegada a vedação que, na opinião dos carcereiros, não oferecia bastante segurança, foi reforçada com um fosso. Abriu-se uma vala com três metros de profundidade, de corte em V e da terra que dali se tirou fez-se um talude com a mesma altura a cercar o Campo. O isolamento era agora completo. Por cima do talude passava uma estreita vereda, que os soldados angolanos, de arma ao ombro, constantemente percorriam. A cada canto construíu-se uma rotunda em cimento, muralhada, para que, se necessário fosse, servisse de trincheira aos soldados e guardas e ali se colocassem metralhadoras. A porta de acesso ao Campo tinha um torreão de cada lado, em cimento armado, de frente curva, rasgada por duas ordens paralelas de seteiras de combate. Mais tarde ficaram unidas por uma passarela, também com parapeitos, munida de um reflector que, de noite, pudesse iluminar o Campo. Externamente, adquiriu assim o aspecto que manteve até ao encerramento. Internamente, houve muitas alterações. Chegados ao Campo, passados os portões de arame farpado, logo fomos divididos em grupos de doze. Cada grupo ocupou a sua barraca de lona, montadas antes da nossa chegada. Cada barraca assentava em estrados de madeira. Distribuíram-nos uma cama de ferro, tipo quartel, um colchão de palha, dois lençóis, uma fronha, uma manta de algodão, dois pratos de esmalte, um púcaro, um garfo, uma colher, de que éramos responsáveis pela boa conservação. - Quem estragar paga! E porque ainda não tinham chegado os nossos fardamentos de presidiários, fomos autorizados a 31

usar a roupa e o calçado que trazíamos. Só mais tarde nos distribuíram dois fatos de caqui, duas camisas, dois pares de cuecas, um chapéu de palha e umas batas. Não nos deram peúgas, nem toalhas, nem muitas outras coisas. Com o tempo, os toldos das barracas foram apodrecendo. O vento encheu-os de rasgões. Em noites de chuva tínhamos de desarrumar as camas para nos defendermos da água que caia nas barracas. Só muito mais tarde foram construidos alojamentos em pedra e cal, com telhados de fibrocimento. A cozinha era um telheiro. A retrete, quatro paredes de pedra solta, sem telhado, com cinco buracos no chão por onde se enfiavam outros tantos latões. Não existia ainda a enfermaria, nem posto médico, nem refeitório. E como nas barracas só havia espaço para as camas, comíamos ao ar livre, em rústicas mesas de pinho. E como também não existia balneário, o banho era tomado cá fora, com um litro de água, porque esta era uma das grandes carências de que padecíamos. Não havia luz eléctrica. A iluminação fazia-se com petromax colocados em certos pontos do acampamento, junto da cerca de arame farpado. As barracas não tinham luz. Não podíamos ler, não podíamos escrever. Os carcereiros proibiam-nos de andar à noite pelo Campo. A falta da electricidade só tinha para nós uma vantagem. Como os guardas não se aproximavam das barracas durante a noite, estávamos à vontade para as nossas reuniões, quando camaradas mais cultos nos falavam de problemas políticos e da história das lutas do proletariado. De noite, mais nos pesava o Campo, os clarões dos petromax, os brados das sentinelas landins, o vento soprando por vezes com violência durante a estação seca que vai de Novembro a Julho. Os ferros entortavam, partiam-se, rangiam toda a 32 noite. Arrastava poeiras que entravam por toda a parte e tudo sujavam. A lona rasgava-se. E quando deitados ouvíamos os uivos do vento ou a chuva e nos pesava o desconforto e a solidão, chegavam as recordações de quanto tínhamos deixado tão longe. Porém sempre a luta trouxe sacrifícios e tínhamos de fazer frente às ameaças de Manuel dos Reis. - Quem entra por aquele portão perde todos os direitos e só tem deveres a cumprir. 33 O POÇO DO CHAMBÃO Sem água não é possível a vida e não há memória de cidade nascida distante de um rio. No Campo do Tarrafal, a água que nos estava destinada vinha de um poço, situado a uns setecentos metros. Ali se juntavam mulheres e crianças. Vinham de bem longe com as suas vasilhas. Carregavam-nas à cabeça e seguiam para suas casas. Era pouco fundo o poço. Não se podia dizer que fosse murado, pois o que tinha como muro era muito baixo e esboroado e a água, puxada a balde e corda, escorria pelas pernas das mulheres, com chagas que pareciam de lepra, envoltas em trapos e ligaduras sujas, pelos pés imundos e com matacanhas, e novamente ia cair no poço. Era esta a água que bebíamos. Estava contaminada com excrementos de cabras e burros lazarentos que ali iam beber todos os dias. Pelo tempo das chuvas, raras mas torrenciais, as enxurradas que desabavam das montanhas arrastavam consigo burros, cães, aves mortas. O poço ficava no caminho das torrentes e com a sua água bebíamos também a outra, a das chuvadas que corriam para o oceano. Ficava o poço a uns duzentos metros do mar que se infiltrava e tornava integralmente salobra a água que bebíamos. Pelas marés vivas mais salgada era ainda.

35 A água é fonte de vida, mas também o pode ser de morte quando está inquinada e é causa de diarreias e febres intestinais. Sabia-o o fascismo e o poço do Chambão fazia parte do plano de morte a que nos condenara. Dizia-se - não temos a certeza - que, de Lisboa,, onde a água fora analisada, viera, através da PVDE, a resposta: - Excelente. Tão boa como a de Vidago. Quanto mais beberem melhor. Mas tão excelente água não era a que o director e os guardas bebiam. Esses abasteciam-se na Ribeira da Prata, a alguns quilómetros do Campo, de onde facilmente uma camioneta nos poderia trazer a sua água puríssima. Não bastava aos carcereiros que fosse má, era também pouca, para que tivéssemos sede, para que não nos pudéssemos lavar. Chegámos a ter de aproveitar a chuva acumulada nos toldos de lona das barracas. Inicialmente, chegava ao Campo numa camioneta.. Todos os dias eram descarregados três a, cinco bidões de duzentos litros. Mas nem cheios vinham e tinham de chegar para todos os gastos do Campo. E assim houve dias em que não pudemos matar a sede. Muitas foram as vezes em que para cada um de nós por dia, apenas cabiam dois púcaros de água. E contudo o poço não era distante e a camioneta, se o director assim o entendesse, poderia trazer os bidões necessários para a lavagem da roupa e das barracas, da louça e mesmo para tomarmos banho. Pedíamos que nos deixassem ir à praia e durante algum tempo, três vezes por semana, com numerosa escolta armada, tomávamos banho do mar, embora correndo o risco dos tubarões que já por ali tinham sido avistados. Porém com água 36 salgada não era possível lavarmo-nos convenientemente. Três meses depois de termos chegado, a camioneta da água avariou-se e passámos a ser nós a transportá-la. E todos os dias pela manhã passou a haver uma nova formatura. Servíamo-nos de latas de folha de flandres, que antes tinham servido para gasolina, com uma capacidade de vinte litros. ïamos em linha de oito homens, de modo a que cada um de nós agarrasse duas latas pelas pegas de madeira atravessadas nas bocas. Cada linha transportava assim sete latas. Os que seguiam nas pontas ficavam com uma mão livre. Dada a ordem de marcha, escoltados por agentes da PIDE e por soldados angolanos, saíamos o portão e seguíamos. O caminho pelo restolho era fatigante. Só mais tarde, em princípios de 1937, se abriu um troço de estrada que unia o Campo ao poço. Estas caminhadas repetíam-se de manhã umas sete a dez vezes e outras tantas durante a tarde. Antes de chegarmos os agentes policiais afugentavam os naturais da ilha. Diziam-lhes que éramos terríveis criminosos, embora os cabo-verdianos não tardassem em ver de onde partiam os actos de banditismo e as violências. Enquanto enchíamos as latas, os soldados formavam um amplo círculo para que ninguém pudesse aproximar-se de nós. Acontecia, por vezes, que homens ou mulheres atravessassem a barreira. Não lhes faziam qualquer aviso, logo recebiam furiosas coronhadas. Mais tarde os soldados ficavam postados ao longo do caminho e andávamos à vontade no transporte da água. Era sistema mais eficiente e evitava atritos com os guardas. Era um trabalho duro. O sol escaldava. Pousávamos as latas duas ou três vezes para descansar e chegávamos encharcados em suor. 37

Enquanto as latas, os paus e as cordas aguentaram o trabalho foi-se fazendo. Mas quando se estragaram tivemos de entrar em conflito com Manuel dos Reis, que nos chamava estragados e malandros. Eram discussões diárias e como a direcção do Campo não fornecia novas latas, tínhamos de tapar os buracos com sabão. Tudo isto nos desesperava enquanto íamos esperando por nova forma de trazer água para o Campo. Só dois anos mais tarde, o transporte passou a ser feito por meio de um sistema decauville, montado por nós. Colocaram-se os carris e a água vinha em vagonetas e em bidões sobre plataformas rodadas, puxadas por um boi, a quem chamávamos o Pinto, animal enorme, mansarrão, sempre em luta com enxames de moscas. Fora comprado pela direcção do Campo. Mas encher as vagonetas e bidões, baldear depois a água nos depósitos continuava a ser um trabalho extenuante. E para que quem tivesse de realizar esta tarefa não fosse escolhido pelos guardas e não ficasse à mercê das antipatias e perseguição dos carcereiros, organizámos um sistema de inscrições diárias, tanto para o transporte da água como para outras brigadas. Todas as manhäs, o camarada Caldeira, com a sua ardósia, percorria as barracas apontando os nomes dos que se encontravam em condições de trabalhar. Da água que trazíamos, uma parte destinava-se à cozinha, outra, às nossas necessidades. Porém cada bidão de gasolina de duzentos litros tinha de bastar aos homens de duas barracas. Cravada na terra uma estaca de madeira com um braço transversal para ali suspendermos uma pequena lata de azeitonas ou de azeite, com o fundo cheio de buracos. Mas não muitos, para que o gasto fosse mínimo. Eram os lavatórios e os nossos chuveiros. 38 Porque tivemos de aprender a tomar banho apenas com um litro de água. Era operação que exigia auxiliar. Um camarada colocava-se em plano mais elevado e, segurando o chuveiro, regulava-o com precisão. Procedia-se como um duche vulgar. A diferença essencial estava na quantidade de água. Primeiro, a molhadela do corpo, apenas com um terço do que continha a latinha com furos no fundo. Seguia-se a ensaboadela e, por fim, os consoladores sete decilitros para arrastarem toda a espuma do sabão. A água preocupava-nos não só por ser pouca mas também por estar impura. Para lhe retirarmos as impurezas imaginámos filtros. Um dos nossos camaradas, canteiro de profissão, o João Diniz, que a cinzel gravou tantas inscrições nas lápides destinadas às sepulturas dos nossos mortos e também lá ficou no cemitério do Tarrafal, preparou os filtros de que nos servíamos. Era abundante na ilha uma pedra vermelha, porosa e leve, de origem vulcânica. Era a matéria-prima para os nossos filtros. Escolhíamos pedras grandes com mais de meio metro de altura. Eram desbastadas e esculpidas em forma de bolotas mais ou menos cónicas ou com o feitio de pirâmides. Por dentro escavavam-se os depósitos, onde vertíamos a água para beber. E através das paredes porosas daquelas pedras se filtrava gota a gota a água suja do poço. Os filtros estavam suspensos de cavaletes de madeira de metro e meio de altura, e mesmo mais altos. Os depósitos ficavam defendidos por uma tampa e na extremidade por onde a água da pingando colocávamos panos, para que as poeiras trazidas pelo vento não inutilizassem todo o nosso trabalho. Apareceram muitos outros filtros, porém o mais eficaz era constituído por um bidão de chapa de ferro contendo uma camada de areia, outra de 39 carvão, uma terceira de osso queimado e por fim uma de seixos, que periodicamente eram lavadas. Bem mais difícil foi ferver a água. A direcção do Campo dificultava-nos quanto queríamos fazer em defesa das nossas vidas. Mas tinham morrido camaradas e decidimos que a água passaria a ser fervida.

Trazíamos lenha da cozinha e por vezes à vista dos soldados angolanos. Muitos deixavam-nos seguir, outros diziam-nos para não voltarmos. Fazíamos a fogueira entre duas barracas, de modo a não serem vistas as chamas nem o fumo. Em vinte minutos fervia-se uma lata de água. O forno servia para todo o Campo, umas horas para uns, outras para outros. Faltavam as latas, não havia lenha. Tínhamos de as comprar na vila, porque aquelas de que nos servíamos para ir ao poço não entravam nas barracas. Proibiram-nos de as comprar e decidimos fazer um depósito para a água. Fomos tirando cimento das obras, estacas, arame farpado e, com tudo isto, numa noite fez-se uma parte, depois outra e, passados seis dias, estava pronto o depósito e resolvido o problema das latas. Faltava-nos lenha e fomos arrancando os barrotes dos estrados. Só mais tarde conseguimos autorização para ferver a água mas, por condição imposta pelo director, tínhamos de pagar a lenha que a gente da ilha vinha vender ao Campo. Na secretaria, os carcereiros, do dinheiro que éramos obrigados a entregar, retiravam uma parte destinada à sua compra. Fervíamos a água. Depois de fervida, era preciso esperar que arrefecesse. Enchíamos terrinas que colocávamos ao ar livre para que esfriasse. Muitas vezes a sede nos forçava a bebê-la morna ou mesmo ainda quente. Só muitas horas depois 40 arrefecia. Fria só a bebíamos após uma noite passada ao relento. A lavagem de roupa era uma outra causa de mal-estar. Porque era na verdade desesperante - e isto era o que os carcereiros pretendiam - sentir por todo o corpo o pó da terra depois de um dia na pedreira, o cheiro a suor, a roupa suja que não podíamos substituir por outra lavada. Passavam-se os dias e não aparecia solução. A roupa imunda amontoava-se, as barracas e as camas tinham um cheiro repugnante. Encontrou-se uma solução temporária para a lavagem de roupa. Cabo-verdianas se encarregavam de a lavar. Mas, passada uma semana, vimos não ser possível manter-se aquela despesa e tentámos resolver a situação, embora. Faltasse água e um lavadouro. A nossa ração mensal de sabão era de quatrocentos gramas. - Não há mais! Não há mais! Esse chega! - Era o que nos diziam. A água salobra não fazia espuma e quase sempre tínhamos de esfregar a roupa com casca de coco ou rama de palmeira. Faltava a água muitas vezes durante dias seguidos e era a sede, a roupa dos empaludados fedendo a suor e a doença, era a completa ausência de asseio. O poço secava ou ficava quase seco e com as febres constantes, o calor sufocante da ilha, era o drama. O cheiro dos lençóis empestava o ar das barracas e era com extrema repugnância que à noite nos deitávamos nas camas imundas. A lavagem da roupa que vestíamos era difícil. Camisolas e cuecas quase já não as usávamos. Seguiamos nas diferentes brigadas de trabalho com os chapéus de palha, as calças e os casacos de caqui amarelo meio apodrecidos. Não havia roupa que pudesse resistir 41 ao sol, ao suor que constantemente escorria de todos nós com os trabalhos forçados a que nos submetiam. Seguíamos para a pedreira com os casacos em tiras ou com as calças tão rasgadas que nem o sexo escondiam. Sem água, as retretes mais repugnantes se tornavam. Sem tecto, expostos os latões ao sol, as moscas eram aos milhares e a pestilência espalhava-se por todo o Campo. Primeiro, foram dois serventes cabo-verdianos que iam despejar ao mar os nossos dejectos. Depois, passámos a ser nós a levá-los num latão, enfiado numa vara e carregado aos ombros. Duas vezes por dia, de manhä e à noite, se devia fazer

aquele trabalho. No regresso, o latão vinha cheio de água para a limpeza das latrinas. Era sempre o mesmo camarada o encarregado das sentinas. Tomara-as a seu cargo pois não tinha olfacto. Chamava-se António Lúcio Bártolo. Todas as manhäs, excepto quando estava doente - teve duas biliosas - lá da carregado com o latão dos dejectos, acompanhado por um outro camarada, para serem despejados no mar. Seguíamos sob escolta de dois agentes da PIDE. Do Campo à praia era quase um quilómetro de caminho com pedregulhos e buracos. O sol queimava e tínhamos de pousar o latão muitas vezes para descansar. Já tinham sido avistados tubarões, na zona da praia onde se vazava o latão. A uns dez netros os agentes sentavam-se vigiando. Encharcados em suor, cansadíssimos, despíamo-nos e levantando o latão acima das cabeças, entrávamos no mar atentos às vagas. Quando a água nos chegava aos ombros era altura de vazar. - Agora! Vai! Era preciso escolher o bom momento e fugir imediatamente arrastando o latão vazio, pois por vezes acontecia, para divertimento dos agentes, que 42 o mar nos devolvesse as imundícies que lhe atirávamos e os nossos próprios excrementos nos caíssem sobre as cabeças. Não era tarefa fácil a do camarada Bártolo. As retretes ficavam distantes das barracas. De noite, tínhamos de sair quentes das camas e expor-nos ao cacimbo. Por vezes um camarada sentia-se mal e desmaiava. As diarreias, as cólicas violentas muitas vezes não permitiam reter as fezes e era frequente ter de limpar sangue, pus e dejectos fora das latrinas. Se não havia água, as moscas e varejeiras eram aos enxames. Quando nos servíamos das sentinas, pousavam em nós e enchiam-nos de larvas que, se não eram arrancadas com pinças e alfinetes, punham-nos as costas em carne viva, pois que em nós se alimentavam. Para nos limparmos servíamo-nos da palha dos colchões, do papel das sacas de cimento ou dos farrapos das camisolas e cuecas. Durou dois anos aquela situação. Abriu-se por fim uma fossa junto às latrinas e fez-se um depósito de água anexo para as baldeações. A falta de água originava provocações dos guardas. Meses depois da nossa chegada ao Campo, Manuel dos Reis veio anunciar-nos a chegada das barracas de madeira destinadas ao nosso alojamento. Era preciso trazê-las para o Campo. - Depressa! E no vosso interesse! Não era, como depois se viu. Seguimos formados para a vila com grande escolta de soldados e guardas. Trouxemos portas, vigas, painéis vários. E tudo aquilo era muito pesado e exigia grande esforço. Quando partimos para a segunda viagem - e o cais distava três quilómetros do Campo - pedimos água ao guarda Paco. Negou e quis forçar-nos a 43 seguir. A nossa indignação assustou-o e correu a chamar Numa Pompílio, o comandante da Companhia Indígena. Que nos recusávamos a ir, queixou-se ele sem explicar a razão. - melhor não provocarem a intervenção da Companhia. Esta é a quinta vez que lido com degredados e deportados e sei muito bem como se deve tratar convosco. Um camarada quis falar-lhe, mas foi interrompido. - Não estou aqui para conversas! Gritámos então que tínhamos sede e não nos deixavam beber. - Pois se querem água, bebam!

Só então se apercebeu da manobra do guarda. Do Campo trouxeram uma lata, saciámos a nossa sede e só depois seguimos. O poço do Chambão fazia parte do plano de morte que o fascismo concebera e Manuel dos Reis exprimia muitas vezes com vingativa satisfação: - Hão-de cair como tordos! Lutámos muito para que assim não acontecesse e nem sempre triunfámos. Foram muitos os camaradas que lá ficaram. Foi este um dos aspectos da luta que travámos pela nossa sobrevivência no Campo do Tarrafal. 44 A COZINHA DE CAMPO A cozinha estava instalada muito perto da vedação de arame farpado. Era, quando chegámos, a única construção de pedra. Os fogões, construídos em tijolo, tinham cavidades onde entravam os caldeiröes em que se cozinhava o rancho. Não havia condições de higiene, nem utensílios, nem mesas onde os alimentos se preparassem. Na frente dispunha de uma espécie de balcão, aberto, voltado aos ventos dominantes. A poeirada entrava à vontade. Só muito depois se levantou uma parede e se abriu uma porta lateral. O pessoal era cabo-verdiano. Um cozinheiro e um ajudante preparavam a comida de cento e cinquenta presos. Os géneros eram despejados para os caldeiros sem qualquer asseio, cozinhados sem grandes apuros. Era cozinheiro o João, homem envelhecido, a coxear dos calos e com muito medo do director Manuel dos Reis, sempre a ameaçar espancá-lo se se atrevesse a falar connosco. E porque tínhamos de descascar batatas e era necessário este contacto com a cozinha, éramos vigiados pelos guardas, que tinham ordens rigorosas para impedir qualquer diálogo com o João e o ajudante. Só mais tarde, quando o capitão José Júlio da Silva substituiu Manuel dos Reis, que regressou a Lisboa, conseguimos ser nós a preparar as refei- 45 ções. Foi assunto devidamente ponderado e colocado a todos os camaradas, ficando decidido que se falasse com José Júlio da Silva. Ouviu-nos mas não nos deu logo a resposta. Dias depois transmitia-nos que o pedido fora atendido. Era para nós muito importante dirigir a cozinha. A saúde dependia do que comíamos. Era possível vigiar os géneros tanto na quantidade como na qualidade. E havia ainda a vantagem de podermos ferver a água e verificar se os alimentos estavam em boas condições para consumo. Passámos a preparar as refeições. O calor dos fogões era perigoso para a saúde de quem já sofria as consequências do clima e do paludismo, mas as vantagens eram muitas e além disso os nossos camaradas marinheiros, mais jovens e em melhores condições fisicas, encarregaram-se desta tarefa. Todas as manhäs se fazia a chamada para o serviço do rancho. O número de auxiliares da de três a sete, conforme o que havia para fazer. Descascávamos as batatas, preparávamos as abóboras, depenávamos as galinhas, amanhávamos o peixe e tínhamos de despiolhar as couves. A hortaliça em certas épocas do ano estava tão roída pelas lagartas que ficava reduzida aos talos. Além disso as folhas de couve estavam cobertas por piolho branco e tanto que resistia a muitas lavagens. Era preciso usar escovas de unhas e os resultados não eram satisfatórios. A sopa nas terrinas trazia ainda uma película branca de piolho que retirávamos com as colheres. Com a chegada de João da Silva, o fascismo voltou a servir-se da comida para nos enfraquecer. A alimentação, a água, os trabalhos forçados eram diferentes meios para o mesmo objectivo: abater-nos.

46 As cáries dentárias eram frequentes. Faltava-nos o cálcio de que a água fervida era uma das causas. Todos nós fomos atingidos no fígado, no coração, nos intestinos. E tanto assim era que o próprio João da Silva não o escondia. A quantidade de alimentos era reduzida e quando o nosso camarada Taborda lhe dirigiu uma reclamação nesse sentido, respondeu-lhe ser isso precisamente o que pretendia e, a partir daquele instante, talvez desse ordem para que diminuíssem mais ainda as rações. Quanto ao nosso camarada foi mandado para a frigideira por se ter atrevido a queixar-se. Os protestos contra o rancho eram castigados com dez, doze e mais dias de frigideira. João Silva que todos os dias provava o rancho que lhe levavam em bonitas travessas e terrinas e onde colocavam os melhores bocados, afirmava tratar-se de reclamações por sistema e era preciso acabar com tais actos por meio de uma repressão severa. E contudo aquele provar do rancho era muitas vezes motivo para gracejos entre João da Silva, o Seixas e Esmeraldo Pais Prata. - Prove, doutor, e diga de sua justiça - insistia o director. Riam com muitos cumprimentos e gestos de convite. O médico, com o garfo, remexia enojado num arroz de albacora que lembrava vomitado de bébedo. Todos os dias cabia a um de nós levar a amostra do rancho e assistíamos assim àqueles divertimentos. - Prove, prove! Esmeraldo Pais Prata não se atrevia. Experimentava então a sopa e levava a colher à boca. Mas chegava-lhe ao nariz um cheiro que lhe parecia detestável, hesitava e também não a provava. 47 - Está óptimo! - dizia por fim. E os três davam grandes gargalhadas. Quando João da Silva chegou ao Campo, Franco era já claramente o triunfador da Guerra Civil de Espanha. Precisamente por isso e porque Hitler e Mussolini representavam a força preparada para esmagar a Europa, foram aqueles os tempos mais difíceis que vivemos. A possibilidade de vigiar a alimentação foi-nos fugindo. O chefe da cozinha passou a ser o ex-sargento Canelas, um canalha e um sabujo. Deixámos de escolher o arroz ou de descascar a fajoca. - Comam com casca. É uma boa vassoura para o intestino. O regime alimentar no Campo consistia no café pelas 6 da manhä, acompanhada por pão, que era o melhor que nos davam. Ao almoço, pelas 10 e 45, um prato de arroz com carne. Ao jantar pelas 17, sopa de arroz ou de legumes secos e um prato de arroz ou massa, com carne ou peixe. O arroz era a base da alimentação. A sua abundância no rancho tinha uma explicação. Cabo Verde era zona de fome no mundo. Quando não chovia era como um flagelo a dizimar milhares de cabo-verdianos, que morriam pelas valetas. Um ano bondoso, como diziam na ilha, era aquele em que chovia de Julho a Novembro, na altura mais benéfica para a principal cultura do arquipélago - o milho. Muitas vezes víamos os trabalhadores cabo-vérdianos trazerem para o Campo tudo quanto comiam durante um dia de trabalho: sete decilitros de leite e uma maçaroca de milho que, depois de comidos os bagos, servia de rolha à garrafa. Felizmente comiam também amendoins, ricos em vita- 48

minas do grupo B, pois de contrário as avitaminoses de que seriam vítimas não lhes permitiriam sobreviver. A cachupa, milho cozido, era o prato tradicional do homem pobre da ilha. Preparava-a com sal, misturava-lhe leite. Existia uma cachupa rica, prato abundante em carne, onde o milho era como um pretexto. Porém, só os ricos a comiam. A grande maioria da população da ilha sofria de fome crónica e, desesperados, esfomeados, chegámos a vê-los comer o que atirávamos para a barrica dos restos, onde despejávamos terrinas e travessas do mau rancho que recusávamos. O cabo-verdiano não comia pão, nem batata, nem peixe, nem carne. Não lhe era possível. Só de quando em quando, para variar, comia milho torrado ou em cuscus, uma espécie de bolo. No arquipélago de Cabo Verde o milho era a cultura predominante, mas pode dizer-se que grande parte dos géneros alimentares consumidos no Campo, por nós, era de origem local (carne, peixe, feijão, fruta, leite, hortaliças, café, banha, batata doce, etc. ). Os guardas, o director, o médico e outros carcereiros (com a excepção dos soldados angolanos) faziam largo consumo de produtos importados da metrópole, pois a sua alimentação era cuidada e rica. O arroz que vinha da Guiné era barato e do agrado dos soldados landins da "Companhia Indígena de Angola". E o arroz passou a ser, semanas, meses, anos seguidos, o prato de todos os dias: arroz de peixe, arroz de carne, sopa de arroz, arroz ao almoço, arroz ao jantar e sempre arroz e por vezes só arroz. Durante o ano era consumido às toneladas, da pior qualidade, muito partido, numa massa, que ficava leitosa por não ser lavado. E sempre a saber a mofo. 49 Todo o arroz servia. Numa madrugada de muito nevoeiro, o Lourenço Marques encalhou. Para libertar o navio foi preciso lançar carga pela borda fora e assim para o mar sacas e sacas de arroz. Desencalhado, o navio seguiu rumo e a população da ilha, correu à pesca dos salvados. Aquele arroz foi parar à mão de que era proprietário um tal Branco, antigo deportado, que deve ter enriquecido com a venda de géneros ao Campo. Também João da Silva não perdeu a óportunidade que aquele arroz lhe oferecia. Era uma economia. Comprou-o a cinco tostões o quilo e não tardou que no rancho nos aparecesse aquele arroz bafiento, a que não havia forma de arrancar o gosto a mofo. Tínhamos de o despejar na barrica das sobras. Para o comermos, só em bolas empurradas com grandes goladas de água. Tudo fizemos para que nos fosse possível comê-lo. Saía das sacas aos torrões, que púnhamos a secar ao sol. Foi inútil. A carne era fornecida pelo gado que a população da ilha vinha vender ao Campo para abater: porcos, cabras, bois. Depois de abatidos, os animais eram examinados pelo médico do Campo, que raramente considerava a carne como incapaz para ser consumida. E, contudo, muito daquele gado sofria de doenças contagiosas. No Campo, um dos nossos camaradas, Amado dos Santos, era o magarefe, e não poucas foram as vezes que dos pulmões dos bois abatidos vimos escorrer pus. Nos porcos, eram frequentes os casos de triquinose. A triquina, alojada nos músculos do animal, quando transmitida ao homem pode provocar-lhe lesões graves, paralisia, invalidez e até a morte. 50 Esmeraldo Pais Prata observava e dizia-nos com a sua pronúncia de Santa Comba: - Nam, icho nam tem importânchia. Explicava que em salmoura o bicho morria e mandava salgar a carne de porco com triquinose. Não a comíamos.

Para nos tentarem serviam-nos aquela carne com um magnífico acompanhamento de boa feijoca, pedacinhos de cenoura. O cheiro que se espalhava era delicioso. Mas resistiamos e da tudo para a barrica dos restos, que nesses dias se enchia até às bordas. Só no tempo de Olegário Antunes conseguimos que a carne das reses doentes fosse atirada ao mar. Enfiávamos então os animais esquartejados em tubos de ferro e dirigíamo-nos para a praia. A população espiava-nos e, apesar da vigilância dos guardas, conseguia arrancá-la aos tubarões a que era destinada. Naquela noite, a fome saciava-se. Os bodes abatidos não eram capados. A carne era intragável com um gosto e um cheiro insuportáveis a bodum e muitos camaradas só a conseguiam comer com torcidas de algodão enfiadas nas narinas. O peixe que mais frequentemente comíamos era a albacora. Albacora desfeita, mal cozinhada, guisada com batatas, albacora frita em banha, sopa de albacora, arroz de albacora. É um peixe da família do atum. Se for cozinhada pouco depois de ser pescada não é desagradável. Mas não era aconselhada na dieta de quem sofria de males de fígado, motivados pelo paludismo e pela água salobra. Depois de salgada, era difícil de digerir e de sabor desagradável. O mar do arquipélago era abundante em peixe mas, porque a população não tinha grandes possibilidades de o comprar, não havia indústria de 51 pesca, nem sequer mercado. Apenas alguns cabo-verdianos iam ao mar nuns frágeis barquinhos construídos com as tábuas de caixotes de sabão e calafetados com os restos de algodão usado na enfermaria do Campo. Se havia ondulação, mesmo fraca, não se atreviam a enfrentá-la com embarcações tão leves e ficavam deitados na praia, ao sol, a meterem pelas narinas as suas pitadas de tabaco queimado, que reduziam a pó. Iam vender a pesca ao Campo, que lhes comprava uma ou duas albacoras a cinco tostões o quilo. Um caixote de bom peixe era pago a dez escudos. A dificuldade e a incerteza de pesca originava o consumo da carne e a salga da albacora, quando aparecia em quantidades que diariamente não seriam consumidas. Na verdade, quando chegámos ao Tarrafal, a alimentação, embora se apoiasse no arroz, de quando em quando substituído pela massa ou pelo feijão, era, relativamente abundante em carne de vaca. A carne era barata. Custava dois escudos e cinquenta o quilograma. Um vitelo vendia-se entre cem e duzentos escudos. Mas, com a chegada do Regimento de Infantaria 11, de Setúbal, que durante a guerra ali permaneceu em missão, agravou-se o custo de vida no arquipélago, sem quaisquer condições para manter alguns milhares de soldados portugueses. O encarecimento da carne originou que, no Campo, quase desaparecesse da nossa alimentação. O bacalhau entrava também, por vezes, no rancho. Manuel dos Reis mandava cozer cinco quilos para cento e cinquenta presos, o que não chegava a trinta e cinco gramas por cabeça. Vinha às farripas, soterrado no feijão frade, com um olho 52 de azeite aqui e outro além. Era servido numa bandeja que com o tempo se enchera de ferrugem. É, como da cozinha ao refeitório eram uns trinta metros e se levantavam remoinhos de poeira, quando chegava ali nos parecía vir coberto com uma camada de pimenta. Primeiro tínhamos de juntar todos os fiapos de bacalhau, algumas vezes ardido e com uma cor avermelhada, depois todos os olhinhos de azeite, para que fosse possível uma distribuição equitativa pelos camaradas. Também a galinha fazia parte do rancho. Eram compradas à gente da ilha por um preço muito baixo. Pelos domingos e feriados matavam-se uns quinze a vinte galináceos magríssimos, que davam uma canja rala, a que chamávamos chá de galinha.

Do arroz que vinha em terrinas de lata ferrugenta retirávamos então a pouca carne destinada a vinte homens. Mas só dois a comiam. Os restantes teriam de esperar a sua vez segundo uma escala anteriormente estabelecida. Assim, havia dois pelo menos que comiam galinha. Os ovos eram baratos. Vendiam-se a dez tostões a dúzia. Quantas vezes uma gemada e pão foi o nosso almoço! Quando o arroz de bode cheirava de maneira insuportável, quando nos serviam porco com triquinose, quando a carne era podre e com manchas esverdeadas ou quando nos aparecia aquele feijão pequeno e tão amargo que lhe chamávamos feijão quinino, nestes dias também nos socorríamos de alguma lata de conserva, reservada preciosamente para aquelas dificuldades, do tomate da nossa minúscula horta atrás da barraca, comido com pão, do que comprávamos na cantina de Manuel dos Reis ou aos cabo-verdianos. Na pedreira se faziam trocas e compras. Dávamos mais do que recebíamos. Os vendedores 53 eram muito pobres. Depois de abandonarmos o trabalho por lá ficava dinheiro e as nossas ofertas: pão, carros de linhas, botões, peças de roupa que podiam ser remendadas. A gente da ilha passava depois por lá, retirava o dinheiro e deixava ovos, fruta que lá íamos encontrar pela manhä. E, como a pedreira ficava perto da estrada, enquanto trabalhávamos conseguíamos comprar grande quantidade de fruta - laranjas e bananas principalmente - aos cabo-verdianos, assim como ovos e frangos. Muitos guardas não levantavam dificuldade. É era nesses momentos que se combinavam as trocas, as compras e eles nos agradeciam as nossas ofertas. - Vocês são bons. Era mentira o que nos disseram! O que as nossas famílias nos enviavam era também um precioso auxílio. Quanto ao leite, tão indispensável para os doentes, tínhamos dificuldade em comprá-lo. De quilómetros de distância vinham mulheres vender, por vezes, apenas um litro de leite. Recebiam dez tostões. O leite era despejado num caldeiro à medida que iam chegando as fornecedoras. Quando atingia a quantidade estabelecida, seguia para a cozinha onde era fervido e refervido. Quem chegasse mais tarde voltava para suas casas, tão distantes por vezes, com o leite recusado. Era destinado à alimentação dos doentes em regime de "dieta láctea". Litro e meio de um leite muito mau e aguado, seis bananas; um pão e um caldo de arroz mal temperado. O encarecimento da carne dé vaca e a economia dos directores do Campo tornou-a rara no rancho. As massas e as leguminosas desapareceram quase completamente, excepto a favona. As doses de arroz tornaram-se maiores. 54 Piorava o rancho. Passou a ser mais pobre e menos abundante. Era intragável. Temperavam-no com uma estranha banha fabricada no interior da ilha. Nunca descobrimos de que era feita. A cor variava. Víamo-la cinzenta, amarela, de um tom escuro, verde, branca, consistente umas vezes, pastosa outras, ou quase líquida, ora mais espessaora mais fluida ... Mas, fosse qual fosse a cor, o rancho cozinhado com aquela gordura tornava-se repugnante. Em Janeiro de 1945 chegou o capitão Prates da Silva. A guerra iria acabar em Maio com a ocupação de Berlim pelo Exército Vermelho e o suicídio de Hitler. Os tempos eram outros. E a alimentação, que reflectira os momentos de esperança do fascismo na sua vitória pelo mundo e em que nós antifascistas éramos inimigos a abater, ou os interesses de directores que procuravam roubar e enriquecer, melhorou. O rancho passou a ser suportável. Salazar queria fazer esquecer o Campo do Tarrafal, queria mostrar à Europa, onde o fascismo fora duramente vencido, que Portugal era também uma democracia. 55

DEZ PANCADAS NO CARRIL O campo despertava às cinco da manhä. O guarda de serviço ao portão dava dez pancadas num troço de carril suspenso por arames. Ainda no ar da manhä repercutiam as badaladas e já um segundo guarda da batendo com as chaves nas portas das barracas. - Vamos! Acima! - gritava. Saltávamos da cama, enfiávamos as calças, calçávamos as botas sem meias e encaminhávamo-nos para as retretes. Seguíamos depois para as nossas lavagens com os trapos que nos serviam de toalhas. Naqueles primeiros tempos; quando tudo estava por organizar, lavávamo-nos cá fora. Depois, tivemos um "balneário". Era uma barraca de madeira, com chão de cimento. Estava dividida em duas partes; numa tomávamos duche, na outra lavávamos a roupa. De dois arames esticados entre as paredes mais afastadas estavam suspensas pequenas latas com buracos no fundo por onde caía a água com que tomávamos banho. Pelas cinco e meia, de novo ouvíamos as pancadas no carril. Era o toque para o café. Às seis tocava para a primeira formatura. Ao local onde formávamos chamaríamos mais tarde "Avenida das Acácias". O nome foi dado por nós e tinha a sua razão. Quando chegámos, dentro ou 57 fora do Campo, não se via uma árvore. Tempos depois tínhamos plantado acácias rubras. Nos primeiros tempos, havia ainda a formatura tanto para o içar como para o arriar da bandeira. Nós, sem chapéus, enquanto os guardas e os soldados em sentido faziam a continência. Como nos acusavam de estar ao serviço da União Soviética, aquelas formaturas em honra do estandarte nacional, assim pensariam os guardas, deviam humilhar-nos. Quando compreenderam que a bandeira portuguesa nos era querida, a cerimónia foi caindo em desuso. Apenas os clarins anunciavam quando a bandeira subia ou descia no mastro do Campo e, se estivéssemos fora das barracas, devíamos ficar em sentido. Uma vez formados, entrava no Campo o chefe dos guardas, armado e com o seu séquito de subordinados, tantos quantas fossem as brigadas de trabalho a organizar naquele dia. - Tirar chapéus! - comandavam. Pelo regulamento eram obrigatórios aqueles cumprimentos quando o chefe entrava no Campo. E também aos guardas, ao comandante Nuno Pompílio, aos oficiais e sargentos da Companhia Indígena e a outras autoridades do Campo. Resistiamos. Sentíamo-nos vexados. Quando vieram os tempos mais duros não tirar o chapéu de palha significava muitos dias de frigideira, por que o guarda participava imediatamente. Chegava a fazê-lo mesmo quando o cumprimentávamos. Se o director entrava no Campo tínhamos de ficar em sentido, de cabeça descoberta. Vingávamo-nos como nos era possível. Quando a caminho do trabalho nos cruzávamos com um burro, sempre um de nós comandava: - Tirar chapéus! Burro também é gente! E divertíamo-nos quando o asno zurrava como se nos correspondesse. 58 Terminado na formatura o cumprimento ao chefe dos guardas, começava a distribuição pelas diferentes brigadas. - Brigada da pedreira! - Brigada da água! - Brigada da estrada! E outras. Mais tarde haveria também a "brigada brava", que marcou uma das épocas mais duras do Tarrafal.

Passávamos pelo depósito onde íamos buscar as ferramentas e seguíamos então formados para fora do Campo. No Campo ficavam os faxinas as casernas, escolhidos geralmente entre os mais fracos. O seu primeiro trabalho era despejar o latão que ficava durante a noite e onde só urinávamos. Varrian, lavavam a louça do colectivo, davam ajuda, quando necessário, aos camaradas em serviço na cozinha, lavando couves ou descascando batatas. Cada barraca tinha um chefe, eleito por nós ou nomeado pelos carcereiros, conforme a repressão era menos ou mais dura. Era responsável pelo que de mau pudesse acontecer. Havia quem levasse a tarefa a sério e quem não lhe concedesse qualquer importância o que por vezes irritava os guardas. Com o tempo, muitos de nós iriam ficar no Campo, nas oficinas, quando os carcereiros se interessaram pelo trabalho mais rendoso da serralharia, carpintaria e outras. Não estávamos sob constante vigilância, mas todos os dias o director e o chefe dos guardas iam ver o estado de limpeza das barracas e do Campo e ver como corriam as coisas nas oficinas. De manhã, fora do Campo, o trabalho era menos pesado para nós que o da tarde. Não porque fosse mais brando o ritmo imposto pelos carcereiros com as suas constantes ameaças, mas por haver menos calor e não estarmos tão fatigados. 59 Para fumar, beber água ou urinar era preciso pedir autorização ao guarda e era para nós humilhante ter de pedir licença a homens por quem sentíamos desprezo. Havia camaradas que nada pediam e preferiam não fumar ou não beber. Pelas 10, novamente batiam no carril. No Campo cessavam todos os trabalhos. Nas brigadas, os guardas comandavam: - Alto ao trabalho! Regressávamos trazendo ao ombro as picaretas, as pás, as alavancas, que deixávamos à entrada do Campo, depois de os guardas fazerem a contagem das ferramentas entregues. Vóltávamos então às barracas, suados, sujos. Mas apenas havia tempo para lavar a cara e as mãos. Quando não faltava água. O toque para o almoço não tardava. Os faxinas encaminhavam-se para a cozinha, nós para o refeitório, um barracão grande onde cabiam cerca de duas dezenas de mesas. Eram para dez pessoas e cada uma tinha o seu chefe, encarregado de distribuir a comida pelos pratos. Depois de almoço era altura de se lavar os pratos, travessas e terrinas. Havia então um periodo de repouso até às 2 horas. Enquanto descansávamos não era permitido falar alto, fazer barulho ou ir a outras barracas para conversar com camaradas. Era um período de silêncio, que nós próprios estabelecíamos para que o repouso se tornasse possível. Nos primeiros tempos, os carcereiros não nos impunham regulamentos rigidos nem se preocupavam muito com a disciplina. E nada diziam quando, fora do Campo, durante o trabalho, comprávamos géneros e fruta à gente da ilha. Podíamos cozinhar para reforçar o rancho. E também os trabalhos não eram excessivamente pesados. Limpeza, capinagem, transporte da água, pouco mais havia para fazer. 60 Nem nos tiravam os livros. Mas à medida que a Guerra Civil de Espanha se decidia pelos franquistas a repressão no Campo tornava-se sempre mais dura. Pelas 2 horas novamente ouvíamos as dez pancadas no carril. Era a formatura da tarde e fazia-se então a entrega da correspondência, a leitura das "ordens de serviço" que anunciavam castigos ou simples alterações aos regulamentos do Campo. E outra vez seguíamos formados, com escolta, para um trabalho agora mais penoso, suportando o calor que em certas épocas do ano chegava a atingir os 40 graus. O sol e a dureza do trabalho eram a causa de que, de quando em quando, um camarada desmaiasse.

De todos os trabalhos - e não tinha chegado ainda o tempo da brigada brava - o mais penoso era o da pedreira. A pedra era arrancada a picareta e com pesadas alavancas de aço. Ficávamos com os pulsos abertos e sem força. Todos os dias eram sete horas de trabalho, excepto aos sábados e domingos. Era extremamente duro e contudo não era, isto o que mais nos desesperava. Sabíamos serem esforço e sofrimento inúteis. Trabalhávamos por castigo. Pelas cinco: - Alto ao trabalho! Formávamos a dois e dois, ferramentas ao ombro, a caminho do Campo. Chegávamos às casernas extenuados, imundos e íamos tomar duche. Se houvesse água. Tomávamos banho aos dez e aos quinze de cada vez com as latas furadas como chuveiros. Às cinco e meia, as pancadas no carril. O jantar. Os faxinas das várias barracas formavam à porta do refeitório com as terrinas nas mãos e ali esperavam a chegada do guarda, para depois seguirem 61 em formatura para a cozinha. Pelos telhados esperavam os corvos e os jagudis. Terminado o jantar, lavávamos os pratos e juntávamo-nos em pequenos grupos segundo as nossas amizades e afinidades ideológicas. Entre o jantar e o recolher era o período de convívio. Falávamos, líamos e estudávamos. Pelas nove ouvíamos o toque de recolher. Formávamos em frente das camas e perfilados esperávamos o chefe dos guardas. Fazia-se então a contagem. O corneteiro tocava a silêncio e pelas casernas ouvia-se ainda o murmurar de conversas e, de quando em quando, pelo Campo, os brados das sentinelas: - Sentinela alerta. - Alerta está. - Passo palavra. Aos sábados e domingos não havia trabalho fora do Campo. Estes dias eram destinados à lavagem da roupa e limpeza das casernas. Fora uma reivindicação nossa. Pedíamos reforço de água e colocavam um bidão à entrada de cada barraca na sexta-feira à tarde. Três camaradas, por escala, encarregavam-se da baldeação. Pelas manhäs de sábado, logo depois do toque de alvorada, púnhamos ao ar camas, roupas, prateleiras, enfim, quanto tínhamos nas casernas. Era o dia da batalha contra os parasitas. Os percevejos eram no Campo, depois dos carcereiros e dos mosquitos, os inimigos mais ferozes. Insecticidas não tínhamos, mas queimávamos os ferros das camas com os fogareiros a petróleo. Um outro inimigo eram as matacanhas, uma espécie de pulga que se aloja nos pés. Enterra-se na pele e forma casulo. Provoca uma comichão desesperada e é necessário descarnar em volta para arrancar o casulo completo com a matacanha lá 62 dentro. Alguns camaradas especializaram-se naquela operação. Se o não fizéssemos, a matacanha reproduzia-se e podia originar. Infecções que por vezes conduziam a amputações de dedos ou mesmo de um pé. E havia muitas na ilha, tantas que chegavam a cegar galinhas. E na baldeação, na lavagem da roupa e no acabar com os percevejos se passava o sábado. O domingo era o dia de descanso, enbora a alvorada continuasse a ser às cinco e fôssemos obrigados a levantar-nos. Se tínhamos livros, era o nosso dia de leitura e de estudo em conjunto. Falávamos de vários problemas culturais e políticos. Quando nos levavam os livros, conversávamos ou fazíamos pequenos objectos, como estatuetas de osso, caixas de madeira, jogos de xadrez, afiadores de läminas e outras pequenas coisas.

Era também no dia de escrever à família, se a chegada do navio estivesse próxima. Nos tempos mais duros íamos para o refeitório e sob a vigilância dos guardas escrevíamos as nossas cartas e postais. No final devíamos devolver os lápis e o papel que sobrasse. Entretanto o Canpo transformava-se. Quando chegámos existiam treze barracas de lona, montadas em duas filas no sentido do comprimento do Campo e com um espaço central de uns cinquenta metros. Existiam ainda três barracas que serviam de refeitórios. A entrada, mas fora do portão, encontravam-se os alojamentos para a GNR, que ficou até ser substituída pela "Companhia Indígena", cuja chegada se esperava então para muito breve. Igualmente havia barracas para os guardas, que inicialmente eram uns dez. Iam-se construindo novas barracas e quando João da Silva chegou como novo director estavam já levantadas as construções de pedra e cal, com 63 um reboco de cimento, caiadas, por dentro, a branco e, por fora, a ocre, com rodapé cinzento. O campo com aquilo a que chamavam pavilhões ganhou um aspecto diferente. Dois daqueles pavilhões ficavam a meio do rectângulo, no sentido da largura, com dimensões de uns quarenta metros de comprimento por uns dez de largura. Entre eles havia um corredor de doze metros de largo, que da dar ao portão de entrada. Dois, de iguais dimensões, perpendiculares aos primeiros, estavam portanto alongados no sentido do comprimento do Campo. Num dos extremos, para o lado do mar, a cozinha e a casa da carne formavam bloco. No sentido oposto, pelo alinhamento dos dois primeiros pavilhões, encontravam-se as barracas desmontáveis de madeira. Serviam de oficinas e uma delas de balneário e lavadouro. As sentinas mantinham-se no mesmo ponto. Os dois pavilhões mais próximos do portão estavam divididos em duas dependências separadas. Os que se encontravam logo à esquerda e à direita da entrada do Campo estavam divididos ao meio no sentido longitudinal. No da esquerda instalaram as oficinas e o refeitório; no da direita, aquilo a que chamávamos a mitra e o porta-aviões. A mitra era o depósito de doentes e convalescentes. O porta-aviões, o alojamento dos presos que, cedendo às pressões dos carcereiros, renunciavam aos seus ideais julgando abreviar assim o tempo de prisão. Os dois pavilhões perpendiculares às oficinas, refeitório, mitra e porta-aviões estavam divididos transversalmente em cinco dependências. A esquerda o B, à direita o C. As dependências em que estavam divididos eram designadas por: B-1, B-2, B-3, B-4, B-5, C-1, C-2, C-3, C-4 e C-5. No pavilhão C uma das dependências era destinada à enfermaria. No 64 B, uma outra dependência servia da arrecadação. Lá se encontravam as nossas malas, a que não tínhamos acesso. Todas as restantes eram os nossos dormitórios. Entre os pavilhões B e C, em frente do portão do Campo, ao fundo; havia uma construção diferente de todas as outras. Era o consultório do médico. Mas também servia de casa mortuária, o que estava perfeitamente de acordo com um clínico que mais gostava de assinar certidões de óbito do que de tratar dos doentes.. Assim, à direita de quem entrasse no Campo, paralelamente à mitra e ao porta-aviões, ficava a carpintaria, depois, numa segunda barraca, o balneário e o lavadouro e, por fim, já perto da vedação do Campo, uma terceira barraca para a alfaiataria, barbearia e reparação de automóveis. Os pavilhões foram construídos com mão-de-obra cabo-verdiana, miseravelmente paga. Um oficial de pedreiro ganhava quatro escudos por doze horas de trabalho. Foi José Júlio da Silva quem orientou a construção do Campo. Quando Manuel dos Reis estava ausente, substituía-o. Era mais humano e sempre que vinha ao Campo procurávamos resolver com ele qualquer problema, mas sem resultado, pois

não tinha poderes para isso. As novas construções tinham vindo substituir as antigas barracas, em muito mau estado. Algumas tinham abatido com o vento. Um funcionário viera verificar o estado em que se encontravam e trouxeram barrotes para as escorar. A partir daí decidira-se a construção de novas instalações. Contudo as obras arrastavam-se. Aproximava-se o período das chuvas e em Abril de 1937 tudo estava suspenso: da "enfermaria" apenas existiam os pilares onde se apoiaria uma daquelas barracas alemãs que trouxemos da vila do Tarrafal. 65 Muitos de nós estavam doentes. O posto clínico não existia ainda. Esmeraldo Pais Prata, nomeado médico em Setembro de 1936, apareceu pela primeira vez no Campo em Fevereiro de 1937. Vinha acompanhado por Manuel dos Reis e José Júlio da Silva. Esperávamos consulta mas não a tivemos. Esmeraldo Pais Prata falava na montagem de uma enfermaria, porque só então poderia dar consulta e fazer tratamentos. Mas, montada a barraca, em Março continuava sem aparecer. A sua vinda tinha apenas como finalidade demonstrar que o Campo dispunha de médico e logo não podia faltar assistência aos presos. Apareceu em Maio. Quisemos consulta, medicamentos, mas nada conseguimos. A enfermaria estava em fase de acabamento, mas parada. Era preciso comprar tinta para as paredes interiores e não havia dinheiro. Andavam a compartimentá-la, de modo a haver alojamento para doentes, uma sala de tratamentos e um gabinete médico. Esmeraldo Pais Prata considerou não existirem ainda condições que lhe permitissem a actividade clínica. Um dos aspectos da vida do Campo era também quanto observávamos acerca dos cabo-verdianos. Víamos a população da ilha esfarrapada, miserável, as crianças com os ventres dilatados por uma fome nunca saciada. Eram espancados pelo branco, que os tratava como animais. Extrema era a sua miséria. Ignorantes, doentes, atacados pelo paludismo, a morte prematura era frequente entre eles. Perto de nós, a cerca de um quilómetro do Campo, ficava o cemitério do Chambão. Talvez esta proximidade fosse também um dos motivos da escolha do local para campo de concentração. 66 Enquanto o Campo não teve vala, víamos muitas vezes passar os enterros, acompanhados por uma música de grandes búzios, em numerosa orquestra. Os sons eram monótonos, repetidos. Na frente da um estandarte branco. O corpo era transportado aos ombros de quatro homens, num caixão tosco, de tábuas ligadas entre si. À frente tinha qualquer coisa para defender a cara do morto do sol ou da chuva. De longe, já ouvíamos os búzios e o coro ululante da carpideira. Corríamos extremo norte do Campo, que, mais próximo da estrada, nos permitia ver o enterro. No regresso, a música continuava a tocar, mas trazia uma guarda avançada de cavaleiros. Depois do funeral havia banquete. Mas também os enterros obedeciam a questões de mais ou menos posses. Se a família do morto era pobre não havia música nem carpideiras. Também não eram felizes os soldados landins da "Companhia Indígena", chegados ao Campo, a 16 de Novembro de 1936. A mais pequena falta era duramente castigada. Faziam guarda constantemente sem folgas e sem se atreverem a queixas. Os oficiais e sargentos tratavam-nos a cavalo-marinho. Para os menos brutais, o argumento era a bofetada, o pontapé e principalmente as palmatoadas. Se estavam de guarda, aproveitavam-nos ainda para outros serviços nos quartos de folga. Não tinham momentos livres. Para eles se inventavam os trabalhos mais absurdos e

todos os dias trabalhavam, mesmo aos domingos. A alimentação era miserável. Nas noite em que furtivamente nos aproximávamos do arame farpado contavam-nos que passavam muita fome. Além de espezinhados por serem negros, existiam ainda pelos quartéis os que governavam com o rancho. Os géneros entravampor uma porta e saíam por outra para alimentar os familiares de sargentos e oficiais. 67 Víamos os soldados angolanos limparem o terreno em volta do arame farpado a fim de terem caminho aberto para a guarda e a ronda. Por vezes assistiamos a incidentes entre os soldados. Certa vez presenciámos uma discussão que não entendemos. Uma das sentinelas queria ser rendida no ponto em que se encontrava; a que a vinha render entendia que o local era outro. Então chegaram a acordo e ficaram as duas, cada uma delas sem arredar pé do ponto que fixara. Dada a volta ao Campo e rendidas todas as sentinelas, o cabo da guarda participou e voltou com o cabo branco para levar os teimosos e os conduzir ao oficial de dia. Ouvimos depois gritos dos soldados, castigo com palmatoadas e pontapés. Meteram-nos numa cerca de arame farpado e ali passaram o dia e parte da noite. Entre os oficiais havia um que particularmente se distinguia pela sua crueldade. Não lhes dava descanso, inventava trabalhos. Era o tenente Samuel. O pré de um soldado angolano não da além de um escudo por dia. Eram frequentes os incidentes na Companhia. O tenente Eurico metia raparigas no aquartelamento e aquilo dava origem a escândalos. O próprio comandante tinha uma apenas para si, que certa vez lhe fugiu para a Cidade da Praia onde foi novamente buscá-la. De quando em quando havia toques a formar companhias para o serviço de vigilância ao Campo, sempre reforçada quando o Guiné chegava e nos dias em que permanecia no porto. As noites eram mais vigiadas. Para nós eram lúgubres. Acabado o trabalho queríamos ler e não nos era possível com os petromax suspensos em postes junto da cerca de arame farpado. Improvisámos então candeeiros. Assim conseguíamos ler. Também fabricámos fogareiros. Pretendíamos evitar os gastos de petróleo 68 não nos servindo dos fogareiros que tínhamos trazido da fortaleza de São João Baptista. Fomos fazendo reserva de combustível, pois poderia acontecer que nos cortassem a compra. A 12 de Junho de 1937, novos camaradas entraram no Campo. Chegaram no Lourenço Marques. Eram quarenta e um. Com que impaciência esperámos pelo fim da distribuição de roupa e das buscas nas malas. Queríamos saber notícias. Como da a frente de Madrid, estaria o governo republicano a bater os fascistas, Como seguiam as coisas em Portugal... E quando por fim entraram e nos abraçámos e nos reunimos nas barracas, as perguntas não acabavam mais. De um grupo passávamos a outro para nada perdermos do que se dizia. Durante dias arrancámos quanto pudemos dos camaradas recém-chegados. Ao Campo não chegavam notícias. Os jornais e revistas eram-nos proibidos. O que conseguíamos ir sabendo com muito esforço e engenho chegava atrasado. A correspondência era censurada, borrada a tinta negra, depois cortada à tesoura, e pouco nos chegava de Portugal e do mundo que nos encorajasse como revolucionários com notícias de vitórias do nosso combate. Éramos agora cento e noventa e dois. A vida no Campo retomou o seu curso. Mas construía-se a frigideira, projectávamos uma fuga e tempos bem mais difíceis se aproximavam. 69

O MANUEL DOS ARAMES Manuel Martins dos Reis era capitão de artilharia. Foi ele o denunciante do movimento dos rolões, assim conhecido pelo nome do seu dirigente, o chefe integralista Rolão Preto, originando a prisão dos oficiais conjurados quando, pela madrugada de 9 de Setembro de 1935, se dirigiam para o Castelo da São Jorge. Como traidor foi recompensado. Porque sempre o fascismo recompensou os que traem para sua vantagem. Não só para encorajar novas traições como ainda por neles encontrar bons colaboradores. Tornam-se os piores inimigos daqueles com quem compartilhamos ideais e uma mesma luta. Estão igualmente empenhados em que o lado em que participaram não tenha triunfo, pois a vitória significará que lhes serão pedidas contas pelas suas traições. Manuel dos Reis pertencia àquele tipo de homem, consciente da própria mediocridade, e tão profundamente egoísta que queria satisfazer os seus interesses fosse como fosse, servindo-se de todas as baixezas, não respeitando quaisquer escrúpulos. O fascismo, para este tipo de gente, representa a porta das oportunidades. Se lha abrirem, roubarão, cometerão crimes. Homens como Manuel dos Reis não têm ideais políticos. Quando se dizem 71 salazaristas ou franquistas, quando vestem as camisas castanhas, negras ou verdes dos vários fascismos que têm aparecido, não fazem mais do que apoiar os regimes que lhes permitem todos os abusos de poder ou obter pela violência o que não conseguiriam legalmente e pelo valor do próprio esforço. Nem sequer pertencem à classe dominante que a tudo recorre para não perder bens e privilégios. São a sua matilha de cães de guarda. Manuel dos Reis tinha consciência de quem era e desta consciência lhe viria principalmente o ódio sentido a todos os antifascistas, por quantos lutavam por uma sociedade onde já não fossem possíveis homens como ele. O ódio de Manuel dos Reis era despeitado. Era o ódio do cobarde pelo corajoso, do medíocre pelo que tem valor, do egoísta pelo revolucionário que se bate, arriscando liberdade e vida, para que a humanidade venha a ser livre e feliz, quantas vezes sabendo que morrerá muito antes do tempo em que a sociedade sem classes, humana e justa, terá de ser uma realidade. O fascismo conhece bem os Manueis dos Reis e deles faz directores de prisões. Sabe que irão roubar, sabe que irão ser brutais... Por isso mesmo os nomeia. Que importa que roubem? Dar-lhes a possibilidade de roubar é a recompensa pelas violências que irão cometer contra os seus inimigos. Como director da Fortaleza de São João Baptista, em Angra do Heroísmo, Manuel dos Reis distinguiu-se a roubar no rancho, a mandar espancar presos e até a disparar contra eles, como aconteceu a um preso que chegou às grades para pedir água. Um soldado disparou ferindo-o num braço, de que ficou paralítico. Manuel dos Reis, repetindo o sistema sempre usado pelo fascismo, recompensou a sentinela dando-lhe dez dias de licença. 72 Espancamentos, constantes castigos no "calejão" e na "poterna", calabouços húmidos de onde se saía com reumatismo, foram certamente as melhores referências para a sua nomeação como director do Campo de Concentração do Tarrafal. No Tarrafal lamentava-se por não ter "segredos" como em São João Baptista. E como não os tinha quis montar fora do Campo uma cerca de arame farpado para ali nos meter e nos deixar ficar ao cacimbo, durante a noite, e à torreira do sol, durante o dia. Seria um acto criminoso, pois significaria a morte de quem fosse castigado daquele modo. Os oficiais da "Companhia Indígena", que assim

castigavam os soldados angolanos, opuseram-se a que o mesmo castigo nos fosse aplicado. Mandava-nos então para a prisão da vila, a pão e água, enquanto ia construindo a "frigideira". Mas nunca cessava de nos ameaçar: - Vais para os arames! Vais para os arames! E daqui veio a alcunha que lhe demos, Manuel dos Arames. Tinha por nós um ódio que não se cansava e se exprimia numa ameaça muitas vezes repetida: - Hão-de cair como tordos! Nunca perdia oportunidade para um castigo colectivo, que simultaneamente fosse ao encontro dos desígnios do salazarismo para aniquilamento dos antifascistas. Podíamos escrever muito sobre Manuel dos Reis, sobre a forma como dirigia o Campo, como roubava, mas diremos apenas o que mais o caracterizou como figura que só o fascismo pode criar. Para abastecimento próprio tinha o Campo o seu rebanho de cabras e vacas, guardado por um cabo-verdiano. Disse-lhe um dia o pastor: 73 - Eu ter medo de roubarem um bezerro a mim. Manuel dos Reis enfureceu-se: - Se me desaparecer algum animal, mando-te pendurar numa árvore, meu malandro! Os bois tens de os guardar, ouviste? Tens de os guardar! Ficou amedrontado o pastor e para lhe serenar a fúria foi dizendo: - Mas aqui quem roubar bezerro dá vaca. Acalmou imediatamente a ira do director do Campo e entre alegre e incrédulo perguntou: - Dá vaca? - Quem roubar bezerro dá vaca. Vaca grande! - Então deixa roubar. Deixa roubar! Era ele quem impunha os preços aos fornecedores do Campo, que muitas vezes chegavam a ser agredidos. Como aconteceu a um cabo-verdiano que chegou montado no seu burricó. Vinha de longe, trazia galinhas para vender. Manuel dos Arames ficou-lhe com o burro. Só lho devolveria quando trouxesse as galinhas de que precisava. - Estas não chegam. Vai buscar mais! Um outro vendedor trazia dez galinhas, Manuel dos Arames chamou-o e perguntou o preço: Eram a quinze tostões cada uma. Ofereceu-lhe dez. O homem não quis aceitar, pôs as galinhas às costas e dispôs-se a seguir o seu caminho, Manuel dos Arames fê-lo parar. - Quero as galinhas a dez tostões. Esbofeteou-o e meteu-lhe dez escudos na mão. Também nos lembrávamos de certa vez em que comprou um bezerro. Feita a venda, pediu o cabo-verdiano que lhe devolvesse a corda com que viera puxando pelo animal: - Se comprei o bezerro também a corda é minha: Teimou o vendedor na sua. Manuel dos Arames como resposta espancou-o. 74 Fazer dinheiro era a sua preocupação constante e para o conseguir todos os processos lhe serviam. Tinham-nos dito que a água que transportássemos seria para nosso uso, que não tínhamos de a dar à cozinha. O próprio guarda Cruz nos dissera: - A água para a cozinha não é convosco. Mas, ao despedir os cabo-verdianos encarregados daquele trabalho e servindo-se de nós como de mão-de-obra gratuita, não deixou de debitar como despesa quanto pagava àquelas que antas carregavam a água. As próprias latas de gasolina de que nos servíamos as tivemos de pagar a cinco escudos cada uma.

Não hesitava em nos exigir um grande esforço se assim lhe fosse possível evitar uma pequena despesa. Quando nos mobilizou para o transporte das barracas alemãs, desmontáveis, Manuel dos Arames bem mais rápido e facilmente o poderia ter feito utilizando um caminhão. Mas porque não se serviria ele de nós para um trabalho pesado, se tinha instruções para usar connosco a extrema dureza? Éramos presos antifascistas a aniquilar. Para obter da nossa parte algum entusiasmo pelo trabalho foi-nos tentando com a promessa de que as barracas iriam ser destinadas ao nosso alojamento. - E depressa! É no vosso interesse! Nunca aquelas barracas seriam para nós. Eram demasiado confortáveis. Do Campo à Vila eram três quilómetros. As peças desmontáveis, pesadíssimas. Um painel tinha de ser carregado por seis homens. De quando em quando era preciso fazer alto para descansar. Numa dessas paragens apareceu Manuel dos Arames. 75 - Que estão esses homens aí a fazer parados? Respondemos-lhe que a carga era pesada, que eram três quilómetros de caminho e tinha de se fazer alto para descanso. - Patifes! Deixem estar que hão-de cair como tordos! Fizemos naquele dia vários percursos. Nem sequer faltou uma grande chuvada que, em instantes nos encharcou completamente. Só teve a vantagem de nos podermos lavar no Campo com a bátega de água que continuava a cair. Para o Manuel dos Arames o dia mais feliz foi aquele em que inaugurou a cantina. Isto aconteceu pelos primeiros dias de Janeiro de 1937, data tão de festejar que concedeu feriado ao Campo. Não trabalhámos. Sabia ter ali uma excelente fonte de receita, pois todo o dinheiro que os nossos familiares nos enviavam lhe passava pelas mãos. Cobiçava-o para si, vendo com pena como da parar a outros comerciantes. Assim acontecia quando fazíamos requisições do que pretendíamos comprar, quando da à Cidade da Praia. É certo que algum ganho tirava. Devia obter descontos e a nós cobrava-nos duzentos escudos por conta da gasolina, desgaste dos pneus, etc. Instalou a cantina junto da cozinha, o que era muito cómodo para quem vendia parte dos géneros destinadas ao rancho. Tinha à venda artigos que realmente nos faziam falta e a preços ligeiramente mais baixos que os da vila. Andava radiante com a inauguração e Manuel dos Reis, que nunca nos olhava de frente, sempre de cara torcida, atendia-nos com sorrisos e convidava-nos a ir ao seu estabelecimento. Faltava mercadoria, mas prometia-nos que mandaria vir e até nos falou em vinho quinado para fortalecer. 76 Tanto o absorvia, a sua cantina que no dia da inauguração se esqueceu de fornecer o feijão pedido pelo cozinheiro para o almoço, que acabou por ser servido uma parte à hora habitual e a outra só duas horas depois. Na cantina punha ele a essperança de nos apanhar os escudos da Metrópole. Interesse que também movia os guardas, uma vez que o dinheiro de Cabo Verde estava desvalorizado em cerca de dez por cento em relação ao do Continente. E, se a chegada do correio era por ele detestada, passou depois a esperá-lo ansiosamente. As cartas vindas de Portugal tornavam o director ainda mais insuportável. Provocava, insultava, ameaçava... Certamente recebia correspondência em que se via desmascarado, em que portugueses lhe faziam recordar o castigo que merecia e sobre ele recairia quando o fascismo caísse e chegasse o dia de o povo português exigir justiça. Para nós a sua ira dava-nos alegria. Não porque Manuel dos Reis a manifestasse, mas por adivinharmos a causa, por sabermos não estar esquecidas.

Era ele quem censurava a correspondência, e a sua entrega demorava sempre alguns dias. E não havia dúvida de que muito do que lia não lhe agradava pois, certa vez, chamou José de Sousa e Armando Callet, para lhes dizer ter recebido a notícia das suas mortes. Corria que o bandido Manuel dos Reis os assassinara. Armando Callet respondeu-lhe que efectivamente havia na notícia um nadinha de exagero. As cartas que escrevíamos também não traziam satisfação ao Director. Chamava-nos, devolvia-nos correspondência que devia ter seguido para os nossos familiares, gritava: - Vocês não me conhecem, mas ainda me vão conhecer! 77 E isto acontecia porque uma das suas grandes preocupações era querer descobrir como comunicávamos com o exterior, uma vez lá fora tudo se saber de quanto ali acontecia. Era problema que muito o preocupava. Pensava que as coisas se faziam através da cozinha e afirmava que a iria colocar fora do Campo, para não termos contacto com os cabo-verdianos que ali trabalhavam. Acreditava que também o podíamos fazer pelo correio e ameaçava-nos com guardas que nos vigiassem enquanto escrevêssemos. Com as nossas cartas fazia investigações muito espeçiais. Metia-as em água, passava-as a ferro de engomar para ver se descobria alguma coisa escrita a tinta simpática. Com a abertura da cantina, para nosso benefício, começámos a jogar com aquela sua ânsia pelo nosso dinheiro. Durante uns dias cortávamos nas compras e logo o Manuel dos Arames suava angústias. Queria saber porque não comprávamos, e nós, combinados, dizíamos não ter dinheiro e só depois de escrevermos às nossas famílias elas poderiam saber das nossas dificuldades e mandar aquilo de que precisávamos. Manuel dos Reis permitia então correspondência extraordinária e, contra os seus hábitos, quando o correio chegava entregava-nos imediatamente as cartas registadas, onde vinha o dinheiro; para que corrêssemos à cantina a fazer compras. Só cuidava da sua cantina. Passava lá o dia, e todos atendendo, gabando muito a mercadoria. Queria demonstrar-nos quanto era difícil obter certos artigos, o que podia ser verdade, pois a ligação regular com Lisboa fazia-se pelo navio Guiné que aparecia de quarenta em quarenta dias. Para nós era divertido ver aquele capitão ganancioso, que tanto nos odiava; a tentar naqueles momentos tornar mais humanas as suas relações 78 connosco, apenas para que lhe comprássemos a mercadoria e lhe deixássemos no balcão o dinheiro que os nossos familiares nos enviavam de Portugal. E muitas vezes íamos à cantina sem intenção de comprar, apenas para nos divertirmos um pouco, para o ouvirmos nos seus pregões de feirante. - Perguntem aos marinheiros, que são pessoas viajadas, se o tabaco Abdula Imperial não é bom! Mas aqueles que elogiava logo podiam ser alvo da sua zombazia, se a venda da mercadoria assim o exigisse. E de uns lenços um tanto berrantes dizia: - São bons para os parolos dos marinheiros! Vendia tudo. Chegou a vender a adriça da bandeira. Faltavam-nos cordas para o estendal da roupa e tivemos de falar com ele. A sua primeira reacção ao pedirmos-lhe qualquer coisa era enfurecer-se e insultar-nos. Mas logo ao carcereiro se sobrepôs o comerciante ladrão e resolveu vender-nos as cordas que de Lisboa lhe tinham enviado para prender as barracas de lona. Quando um dia o capitão José Júlio da Silva passou pelo Campo, ao ver a roupa nas cordas, perguntou-nos como as tínhamos conseguido obter.

- Foi o senhor director que as vendeu. E ouvimos o seu comentário para o capitão Numa Pompílio que o acompanhava: - Então o raio do homem não vendeu as espias das barracas! Mas o director do Campo também nos vendera a adriça da bandeira. Para fazer o seu comércio todos os recursos lhe serviam. Certa vez ouvimo-lo em grandes berros com o João. O almoço era aquele horroroso bode guisado com massa e o cozinheiro limpava a carne, tirava- 79 lhe as peles e o sebo. Foi esta a razão por que o Manuel Arames se indignou. - Que estás a fazer? E o João, que era bom homem, explicou que estava a tirar o sebo, porque de outro modo não ficava bom, dava muito mau gosto; - Qual quê, meu estúpido! Isso é gordura! Põe na panela! Manuel dos Reis fazia assim uma economia que ainda lhe trazia outra vantagem. Aquele sebo punha realmente um gosto intragável na comida e ele, precisamente na cantina, tinha à venda frascos de molho inglês. Chamava-nos e dizia: - Isto é muito bom. Pões três pingos no prato e faz um bom paladar. Ah, aquele director, fardado de capitão, a vender açúcar, batata-doce, latas de conserva, pijamas japoneses... - Olha este bonito pijama,! São sessenta escudos! É barato! Ou quando nos pesava açúcar: - Vá... vá ... vai bem pesadinho. E à porta da cantina à espera da freguesia; - Então não querem mais nada? Olhem que vou fechar! O azeite que nos vendia, já pago pelo Estado para ser destinado à nossa alimentação, mas, dizia ele, do melhor, do mais puro. - É superior ao que têm no rancho - afirmava ele muito convicto, atrás do balcão, junto ao guarda que lhe servia de marçano. E tudo era de primeira qualidade, o chouriço, o toucinho, a carne... - Comprem! É muito bom! Muito bom! Sempre o rancho fora mau. Manuel dos Arames, que roubava nos géneros para abastecer a cantina, ainda o tornava pior. Ele próprio o anunciava e, 80 quando íamos à cozinha para trazer as terrinas e as travessas, ouvíamos-lhe a voz de falsete: - Venham cá! Venham cá! A comida não presta. Tenho aqui bom chouriço, latas de conserva... Apesar de tudo tínhamos de recorrer à cantina, porque éramos nós a comprar os frangos, o azeite, os ovos para alimentação dos doentes. Uma cebola ou um punhado de arroz que se pedisse ao cozinheiro João tinha um preço fixado pelo Manuel dos Arames e era preciso pagar adiantadamente, embora fossem géneros destinados ao rancho. E víamo-nos forçados a tratar da nossa alimentação quando adoecíamos porque para a "enfermaria" mandava um frango para seis ou sete doentes, embora nos livros de contabilidade do Campo figurassem despesas equivalentes a oito ou nove galinhas. E quando comprava um boi por quatrocentos e cinquenta escudos contabilizava-o por mil ou mais. Na cantina também se vendia papel, tinta, lápis. Comprávamos. Mas um dia, a pretexto de que passávamos mensagens para fora do Campo, fizeram uma busca às barracas e além de tudo o que tínhamos comprado levaram também dinheiro e dois relógios. Nas buscas pilhava-nos o papel que nos vendera, que, nalguns casos, era aquele que nos tirava das encomendas enviadas pelas nossas familias. Para abastecer a cantina recorria a tudo. Retinha o papel certamente com a intenção de o vender, pois logo a seguir nos dava orden para que escrevêssemos.

Neste sentido, fornecia-nos o papel indispensável. Mas se o fôssemos comprar vendia-nos todo aquele que pedíssemos. Um camarada aproveitou para pedir a devolução de um caderno que lá tinha. 81 - Não dou. Isto aqui não é escola de intelectuais. E portem-se bem para se irem embora antes de tempo. Darei boas referências de vocês. Quando forem para a Rússia terão tempo para estudar. Manuel dos Reis nunca perdia oportunidade para uma provocação. Nas encomendas, que sempre abria, encontrava uma outra fonte para se abastecer. O roubo das onças de tabaco era frequente. Se reclamávamos ameaçava-nos com o calabouço da Vila. Se nos tirava o dinheiro, dizia que era do Socorro Vermelho. Se a encomenda era de mais valor igualmente fora enviada pelo Socorro Vermelho. O Socorro Vermelho era o seu pretexto para nos roubar. Contudo a cantina não lhe trazia o que mais lhe interessava. Não lhe ficava na caixa, e nosso dinheiro da Metrópole e para isso montara ele o seu negócio. Na verdade, eram os guardas e também os sargentos da Companhia os beneficiados. Manuel dos Arames era desorganizado, o que, em certos aspectos, nos era benéfico. Com a sua maldade também hostilizava os guardas e a tal ponto que os levava a não cumprirem as ordens ou a desempenharem-nas mal. E, como toda a orientação dos carcereiros visava tornar-nos vítimas, era evidente que com isso só beneficiávamos. Podíamos assim comprar laranjas, ovos, tabaco... Os guardas fechavam os olhos às nossas transacções com os cabo-verdianos e por vezes estavam mesmo interessados em não fazerem as compras. Acontecia que o serviço interno era feito por dois turnos de guardas. Mas o segundo, não se sabia qual a razão, era formado pelos mais sabujos. Do primeiro faziam parte o Teixeira, o Grito, o Carneiro e o Rafael. O segundo, pelo Paco, pelo Poejo, pelo Manuel Padeiro e pelo Catraia. 82 Com o primeiro grupo de guardas conseguíamos obter algumas coisas vindas de fora, como tabaco e alimentos que tornassem a nossa alimentação mais rica. O interesse dos guardas coincidia com o do director, obterem dinheiro de Portugal. Nós, como tínhamos de o gastar, preferíamos que em vez de ir para o Manuel dos Reis fosse para eles, com quem contactávamos mais e de quem poderíamos obter o que certamente nunca seria possível vir do director do Campo. Nenhum preso político consciente procura hostilizar deliberadamente o guarda. Pelo contrário, tanto quanto possível, tenta servir-se dele, pois sempre são possíveis da sua parte pequenas infracções aos regulamentos, simpatias, que permitam uma vida prisional mais fácil e, através disto, o que é bem mais importante, maior liberdade para os passos necessários a uma luta política que na cadeia está bem longe de ter cessado. Fugas houve de camaradas das prisões da Metrópole que foram feitas com estes pequenos auxílios prestados pelo guarda e mesmo com a sua cumplicidade. Manuel dos Reis andava desconfiado. Suspeitava que alguém beneficiava do nosso dinheiro da Metrópole. Na cantina começou a roubar o mais que podia. A onça de tabaco Superior vendia-a a dois escudos e cinquenta. Como não queríamos comprar por aquele preço, dizia-nos que enquanto não o vendesse não havia outro e ficaríamos sem fumar. O tabaco em folha, que fora do Campo se vendia em pequenos molhos de trezentos e quatrocentos gramas e custava três escudos, punha-o ele à venda a quinze e mesmo a quarenta escudos o quilo. 83 Como não comprávamos fez constar que iria ficar com o dinheiro que nos era enviado, abrindo conta-corrente para cada um de nós.

As perguntas que nos fazia eram frequentes. - Que fazes ao dinheiro que recebes? - Recebi em vale ultramarino. - Mas os teus camaradas; que fazem ao dinheiro? - Não me interessa o que eles fazem e não estou interessado em que me trate por tu. Enfurecía-se. - Fora! Não te quero ver mais aqui dentro! Se não fosse a necessidade de comprar certos produtos para as dietas dos doentes havia muito que teríamos acabado com as compras na cantina. Além disso a situação quanto ao tabaco agravava-se, pois só entrava no Campo aquele que mandava vir. O fumo originava muitos problemas. Já depois de a cantina ter sido fechada e de se ter voltado ao sistema das requisições, o Manuel dos Arames roubou a Carlos Galan, que chegara na segunda leva, um volume de onças de tabaco. Depois da busca, ao verificar que lho tinham tirado apresentou queixa. Foi castigado com doze dias de prisão no calabouço da Vila. Dali saíu muito abatido depois do tratamento a pão e água em dias alternados, para vir reconhecer as onças roubadas no tabaco que fora requisitado. Manuel dos Reis também comprava aos cabo-verdianos tabaco em folha por preço insignificante, mas que nos vendia com grande margem de lucro. Durante algum tempo vendeu-o já cortado e bastante caro. Dizia-se que o come era feito em sua casa pela mulher e pela criada. O tabaco tornou-se assim um dos nossos grandes problemas. Antes éramos nós que o comprávamos em rama, à população da ilha. Depois de 84 bem lavadas, as folhas eram enroladas e cortadas à faca, como quem miga couve para o caldo verde. Mais tarde usávamos uma máquina concebida e construída por Hermínio Martins e António Gonçalves Coimbra, a que se juntou mais tarde uma outra, de Bento Gonçalves, com um sistema de corte mais aperfeiçoado, e tão disputada que se tornou necessário estabelecer uma escala. Uma das tarefas dos sábados e domingos era a preparação do tabaco. Juntávamos-lhe cachaça, quando a conseguíamos encontrar, uma raspa seca de laranja, atirávamos uns salpicos de chá ou púnhamos um pauzinho de baunilha para lhe dar o aroma e paladar. Umas vezes o tabaco entrava no Campo, outras não o conseguíamos. Se em certos momentos havia que fumar podiam então faltar as mortalhas que vinham da Vila e tínhamos de nos servir do papel que encontrássemos ou íamos aos colchões para tirar a carapela mais fina com que enrolar o cigarro. Mas com as medidas do Manuel dos Arames a falta de tabaco colocou muitos de nós numa situação de irritabilidade e de mal-estar que os carcereiros exploravam. Esmeraldo Pais Prata, com todo o seu ódio por nós, depois de duas ou três fumaças lançava fora o cigarro para logo o espezinhar. E fazia tudo isto acintosamente à nossa vista. Houve camaradas que, enfurecidos por aquela espécie de escravidão ao tabaco, deixaram de fumar. Acabámos por comprar o tabaco da cantina, mas o dinheiro com que pagávamos continuava a ser o de Cabo Verde e Manuel dos Reis decidiu-se a nova arbitrariedade. Um dia fez-se a chamada dos que tinham cartas registadas. O dinheiro ficou depositado e abriram- 85 se contas,correntes. Chamou-nos à secretaria por temer a nossa reacção.

Cada camarada chamado protestava e considerava o que se fazia como um roubo, mas o director ouvia imperturbável, sempre acompanhado por dois agentes. À noite avisou-nos ter recebido uma nota da polícia para não o entregar e que assim procedia de acordo com as ordens recebidas. Mas na verdade tomara aquela decisão por termos limitado as compras ao mínimo. Pela nossa parte, indignava-nos ver que mesmo os géneros destinados à nossa alimentação, vindos do Continente, eram postos à venda na cantina. A outra decisão do Manuel dos Arames consistiu em modificar a composição dos turnos dos guardas, que passaram a ser chefiados pelos dois maiores sabujos que ali prestavam serviço, o Poejo e o Manuel Padeiro. Assim impedia que pudéssemos abastecer-nos fora do campo como fazíamos até ali. Entre os que prestavam serviço no Campo também criavam muito mal-estar. O turno dos guardas que nos dava ajuda nas compras guardava o segredo cuidadosamente. Suspeitava-se e aqui residia a causa de que entre os dois grupos de guardas houvesse intrigas de toda a espécie. Uns não se davam com os outros. E, como as nossas relações, muito naturalmente, eram melhores com um dos grupos, o outro sentia-se despeitado. Aqui tiveram origem as intrigas do Paco, tentando criar situações falsas aos outros guardas, para que as do segundo turno surgissem como os mais zelosos e cumpridores. Este Paco tinha um passado assustador. Fora marinheiro, desertara, alistara-se na Legião Estrangeira, voltara a Portugal, entrara ao serviço da Po- 86 lícia de Vigilância e de Defesa do Estado que, por aquele tempo, não hesitava em admitir ladrões e cadastrados. Pois mesmo assim Paco foi expulso. É certo que não tardou em ser readmitido. Acabou por abandonar o Campo. Uma manhã, quando formávamos para a água, disse que podíamos dar vivas. Havia um guarda que voltava ao Continente. Era ele. Manuel dos Reis também o roubara. Às suas roubalheiras ninguém escapava. Um dos guardas teve de lhe pagar a passagem da mulher, dos Açores para Cabo Verde, embora o navio viesse fretado por conta do Estado. A mulher do guarda Rafael tinha chegado e o director que se encontrava na Praia, com carro, veio trazê-la. Mas no fim do mês o guarda viu que no seu vencimento lhe faltavam cem escudos. Era a conta das despesas em gasolina. Começou a ser detestado pelos guardas. Dois tinham sido castigados com a perda de dez e cinco dias de vencimento por os ter surpreendido fora do Campo à procura de um cachimbo perdido. Foram os dois a casa dele, à Vila, para, reclamarem. Quis pô-los na rua: foi o capitão José Júlio da Silva que serenou os ânimos. Pelas suas atitudes, já nem pelos guardas era respeitado. Um deles chegou a dizer-lhe sentir vergonha por o ter como director do Campo. Mas as relações entre Manuel dos Reis e os oficiais da Companhia não eram melhores. Tinham sido dadas às sentinelas ordens rigorosas para que ninguém passasse pelo topo sul do Campo, junto aos arames. Uma noite, o guarda Teixeira teimou em passar e a sentinela bradou às armas. Num instante se viu rodeado de soldados. O guarda Costa, que era metorista e tratava da iluminação do Campo, também não foi mais bem sucedido. Disparou contra a sentinela ou para o ar e 87 criou alarme por todo o Campo. Mas, chegado o director, aquelas ordens foram confirmadas, pois as fizera extensivas a si próprio. Tudo isto tinha causa na rivalidade existente entre os guardas e os soldados angolanos. O Manuel Padeiro certa vez foi encontrar uma sentinela adormecida e desarmou-o. O soldado foi duramente castigado, mas também o guarda foi censurado pelo

sargento de dia que não levou a bem tais intromissões no seu serviço e fez com que a Companhia lhe levantasse um auto por se ter intrometido naquilo a que era estranho. Este e outros choques originaram um ambiente de hostilidade em que muito influía Manuel dos Reis. Um dia em que os soldados angolanos andavam a limpar o terreno em volta do arame farpado, para terem caminho por onde seguir quando em ronda ou de guarda, chegou o diretor. Criticou o tenente dizendo-lhe que devia ter-lhe dado conhecimento do caso, pois não queria os soldados ali. No dia seguinte, seríamos nós, presos, quem faria aquele trabalho. Um tenente e um cabo vigiavam, mas Manuel dos Reis mandou colocar um guarda no interior do Campo em vigilância. Temia os contactos e de todos desconfiava. Mas tudo isto originava despeitos mútuos entre os oficiais, o director e os guardas. Manuel dos Reis queria mandar em tudo, os da "Companhia Indígena" desejavam uma esfera de maior influência, Numa Pompílio, que em Malanje era senhor absoluto, sentia-se diminuído. Entre ele e o director os incidentes davam-se com frequência. E por certo foi este ambiente de hostilidade que originou a vinda de Antão Nogueira. Vinha fazer uma inspecção e Manuel dos Reis em pleno Campo gritava: 88 - Roubaram-me o livro das contas. Eu sei que não foram vocês, os comunistas, que estão aqui presos. Mas como vou eu dar contas sem o livro? Tantos foram os seus atropelos e roubos que certamente os relatórios enviados pelos oficiais da Companhia e talvez também pelos próprios guardas fizeram que em Maio de 1937 viesse ao Campo do Tarrafal, em missão de inquérito, o capitão Antão Nogueira, homem de confiança da Polícia, director do Aljube e director-geral das prisões políticas. O rancho, como era de prever, foi razoável nesse dia. Antão Nogueira percorreu as barracas, sempre acompanhado pelo médico e por Manuel dos Reis. À tarde voltou. A mercadoria foi retirada da cantina, que foi encerrada por sua ordem. A suprema vitória de um carcereiro fascista é levar um preso a repudiar as suas ideias. Tem a alegria vingativa dos medíocres ao verificarem que mesmo entre aqueles que se batem por uma sociedade mais justa, e no íntimo de si mesmos admiram, existem também os que se parecem com eles. Manuel dos Reis tentava igualmente fazer-nos renegar, mas os seus processos eram, não podiam deixar de o ser, os do comerciante trapaceiro, a burla, a tentativa de engano, de querer que assinássemos papéis sem que antes os lêssemos. Um dos nossos camaradas, Henrique Ochsemberg, que já cumprira a sua pena, resolveu escrever a sua mãe pedindo-lhe que procurasse o advogado, a fim de se darem os passos necessários à sua libertação, pois já tinha cumprido a pena havia um ano. E assim se fez. Meteu requerimento e certo dia o director chamou-o à secretaria. 89 - Queres ir para a liberdade? Respondeu que sim, que já tinha cumprido a pena. - Então assina este papel. Quis o nosso camarada ler primeiro e verificou tratar-se de um documento de repúdio às suas ideias, consideradas como criminosas por irem contra as leis fundamentais da sociedade. E também ali se elogiava o Estado Novo e a política de Salazar. Não assinou. Enfurecido, Manuel dos Reis gritava-lhe que nunca iria para a liberdade. E para o guarda ordenou: - Leva-o daqui.

O documento seguiu as suas vias. Muitos anos mais tarde teve oportunidade de ler o despacho escrito à margem: indeferido por ser considerado perigoso. As provocações, aos vexames dos carcereiros opúnhamos a nossa firmeza. Bando de gente sem escrúpulos, nunca perdiam um pretexto para castigos colectivos ou mesmo para agressöes. Era um ambiente de terror bem planeado que visava destruir-nos o moral, mas que sempre encontrava a nossa oposição. Conhecendo as suas intenções, sabendo quem éramos e pelo que nos batíamos, não nos deixávamos abalar. Manuel dos Reis apercebia-se da nossa força e tinha acessos de ira. - Malandros, eu vos direi! Hão-de levar porrada que os cago! A sua linguagem era bem nossa conhecida e mais ainda dos camaradas que o tiveram como director em Angra do Heroismo. Por Manuel dos Reis só podíamos sentir desprezo e logo a partir dos primeiros dias do Tarrafal quando, depois de ter dado ordem para o cumprimentarmos, se pos- 90 tava perfilado e ridículo na frente das formaturas e ele próprio comandava: - Tirar chapéus! Era o alvo da nossa chacota e, quando o víamos vir para o Campo, quase em cima do volante do velho Chrysler, que segundo se dizia, fora roubado a um antifascista, já com os seus ameaçadores acenos de cabeça, soltávamos a exclamação zombeteira: - Lá vem ele! Lá vem ele! E contudo ainda não o conhecíamos completamente. Falava-nos verdade quando aneaçava: - Vocês não me conhecem, mas ainda vão conhecer-me! E na verdade, quando os primeiros seis camaradas morreram durante o periodo agudo, como era grande a satisfação de Manuel dos Reis ao ir sabendo das suas mortes: - Morreu mais um bandido! E, quando os caixões eram feitos pelos nossos camaradas carpinteiros com a madeira que iam buscar às mesas do refeitório e lhe foram falar no pano preto com que os forrar, respondia: - Se querem luxos, paguem-nos! A sua cara mais odienta, a que exprimia todo o seu ódio por nós, como antifascistas, revelou-se quando da tentativa de fuga e durante o período agudo, em que a morte rondava pelo Campo. 91 A GRANDE CAVALGADA A vida era bem dura no Campo e cada momento dos dias que lentamente se iam passando nos fazia sentir a änsia de liberdade. Constantemente pensávamos no que faríamos se estivéssemos em liberdade. Pelo mundo, as forças da democracia tinham de se bater num combate feroz, que não podiam evitar, pois estava em jogo a própria sobrevivência, numa guerra que já se travava pelas terras de Espanha e não tardaria em cair sobre a Europa com metralha, sangue e morte. Vivia-se uma época trágica. Nem um antifascista podia recusar-se a tomar parte na batalha. Também nós, encerrados no arame farpado do Campo de Concentração do Tarrafal e tendo como principal barreira aquele mar que nos cercava, pensávamos na forma de nos evadirmos, de voltarmos ao trabalho revolucionário. Havia assim na fuga que projectávamos uma força a empurrar-nos, a querer fender a muralha de isolamento em que nos tinham fechado, numa ilha distante da terra portuguesa onde dominava um fascismo de que éramos inimigos e ansiávamos combater. Não podíamos aceitar passivamente, nós, condenados a muitos anos de prisão, ou com as penas já cumpridas ou aguardando julgamento, que a liberdade viesse depois de cumprida a pena ou que

93 o fascismo, quando nos aniquilasse através das duras condições de clima e de vida que nos impunha, acabasse por libertar os sobreviventes como adversários destruídos que já não ofereciam qualquer perigo. Foi este estado de espírito que nos levou a preparar a fuga que preparávamos, mas que não nos impediu de encarar fria e lucidamente os grandes obstáculos que se nos deparavam e as formas como os superar. Eram grandes as dificuldades. Estávamos numa ilha a dois dias de viagem do continente africano e não dispúnhamos de qualquer apoio que nos facilitasse a evasão. Além disso não bastava fugir do Campo. Era preciso evadir-nos da ilha, que não oferecia qualquer refúgio e onde facilmente seríamos localizados entre a população cabo-verdiana. Mas havia circunstâncias favoráveis para uma fuga colectiva se conseguíssemos dominar as forças militares e policiais existentes. Porque bem víamos que não bastava cortar o arame farpado, era preciso dominar a ilha de Santiago, garantir, livres de qualquer ataque, o caminho para o porto e aí apoderarmo-nos de navios que nos transportassem para onde nos acolhessem como asilados políticos e de onde pudéssemos partir novamente para a luta contra o fascismo. Mas nunca chegaríamos ao porto se antes não dominássemos a companhia de soldados landins e outras forças. Era uma fuga arrojada que, depois da saída do Campo, se alguma coisa corresse mal, trazia o risco de sermos abatidos pelas espingardas e metralhadoras da companhia comandada por Numa Pompílio. Tornava-se necessário conhecer as forças do inimigo. Ora, no caminho para a pedreira, a qui- 94 nhentos metros do Campo, e onde arrancávamos pedra à força de marretas, guilhas e alavancas, para depois a transportarmos aos ombros até às obras de alvenaria que se construíam, tínhamos nás oportunidade de ir obtendo conhecimentos. Depois do café começava o trabalho na pedreira e o transporte da pedra. Encurtando caminho, vínhamos em fila e atravessávamos a parada do aquartelamento. A vigilância de soldados e guardas, postados a certa distância e nos locais mais favoráveis para impedir qualquer tentativa de fuga, não nos impedia a observação. Passávamos e com todo o rigor íamos fazendo o inventário das forças inimigas. Poucas semanas bastaram para sabermos com exactidão o número de soldados, de serviço, de folga ou doentes, de quantas espingardas e metralhadoras dispunham, onde estavam localizados os depósitos de armamento, quais os homens de serviço e de licença, as plantas dos edifícios, as distâncias entre as diferentes instalações e o tempo necessário para as percorrer, além de muitos outros dados. À tarde, quando de regresso ao Campo e até à hora de recolher, havia uma outra tarefa a cumprir de que alguns camaradas se encarregavam. Era preciso ganhar a confiança dos soldados angolanos enquanto faziam os seus quartos de sentinela. Era trabalho lento, de paciência. Mas dava bons resultados. As informações que nos iam prestando completavam as que obtínhamos pela nossa própria observação. E o plano foi surgindo ao longo de reuniões, devidamente defendidas por camaradas que, fora das barracas, estavam de vigilância. Corria o mês de Junho, ventoso, com noites de belo luar, o que não nos ajudava. Duas sentinelas estavam dispostas a favorecer a fuga, porém era 95 necessário que ficassem de serviço na mesma noite, no mesmo período de guarda e ocupassem os dois postos, cada um a seu canto na parte do Campo por onde se deveria dar a evasão. Situação difícil de conseguir, pois só o auxílio dos

soldados poderia criar a coincidência de, por escalonamento, ocuparem os dois os postos desejados e no devido momento. Passavam os dias, as semanas, e as dificuldades iam sendo vencidas, evitando-se toda e qualquer imprudência que denunciasse os preparativos de fuga aos olhos atentos dos carcereiros. Por razões de segurança, na nossa maior parte não estávamos a par do que se preparava. E era bem difícil de conseguir, pois numa prisão homens que têm de conviver as vinte e quatro horas de cada dia conhecem-se profundamente e qualquer atitude pouco habitual é imediatamente notada. Por meados de Julho, o plano de fuga estava preparado em todos os seus pormenores. A fuga seria colectiva. Não ficaria um preso no Campo. Dominadas as forças militares existentes na ilha de Santiago, seriam mobilizados todos os transportes marítimos ancorados nos portos, para a passagem dos presos até Dakar. Uma vez no Senegal, recolhendo-nos as autoridades francesas como refugiados políticos, muitos de nós iriam combater entre as tropas republicanas contra os franquistas, outros regressariam a Portugal para, na clandestinidade, continuarem a sua luta contra o salazarismo. Nas operações a realizar tornava-se indispensável o corte imediato das comunicações da ilha, ocupação dos locais de administração pública e o esclarecimento à população acerca de quem éramos e das razões da nossa evasão. E, uma vez que o armamento existente na ilha estivesse nas nossas mãos, nem o governo local nem mesmo o metro 96 politano dispunham de forças com que imediatamente nos pudessem fazer afastar dos nossos objectivos. Além disso, os camaradas marinheiros tinham os conhecimentos militares e navais que permitiam dar realidade à fuga projetada. Organizámo-nos em sete grupos. Cada um deles, uma vez vencida a barreira de arame farpado, com a conivência das sentinelas, a coberto da noite, ocuparia a posição estabelecida e, dado o sinal, entrariam em acção dominando as forças inimigas colhidas de surpresa. Munindo-nos de ferros, facas. Dois camaradas com as tesouras corta-arames, por nós fabricadas nas oficinas, tinham a seu cargo a barreira farpada. Faltava marcar a data. A 2 de Agosto, já noite, com a maior naturalidade, em pequenos grupos de dois ou de três, passeávamos como era habitual. Porém os nossos passos sempre se alongavam mais até à cozinha, ponto de concentração. Um a um, sem darmos nas vistas, íamos entrando. A concentração planeada para as 22 e 30 terminara com cinco minutos de avanço. Os grupos estavam formados, as sentinelas amigas encontravam-se nos seus postos e o arame a cortar ali bem perto, apenas a uns três metros. Estávamos todos em silêncio e já os dois camaradas empunhavam as tesouras e se preparavam para entrar em acção, já a primeira coluna constituída por marinheiros, mais jovens e fortes, com treino militar, tomavam posição, pois seriam os primeiros a sair para o assalto ao aquartelamento da "Companhia Indígena", quando... Abriam o portão do Campo. Entrava um guarda, o Manuel Padeiro e um servente do armazém, um preso ao serviço dos carcereiros, a quem chamávamos o Falinhas. Trazia uma saca às costas. 97 Naquela noite, o capitão José Júlio da Silva só tarde se lembrou do almoço para o dia seguinte e ordenou então que levassem para a cozinha um saco de grão a pôr de molho.

Da cozinha observámos os dois vultos que se aproximavam. Já era tarde para abandonar o local e passar a um barracão ao lado onde se encontrava o Chrysler do director em reparação. - Alto! - segredámos. O guarda de nada suspeitava. Entrou despreocupadamente, o servente pousou a saca. Talvez tudo se passasse sem que nos vissem, mas quando se preparava para sair a luz da lanterna iluminou um vulto. - Que está aí a fazer? E logo viu que entre a parede e um caldeiro se encontrava mais alguém que não reconheceu por estar de costas. Manuel Padeiro não hesitou, correu pelo Campo, meteu o apito à boca, disparou a pistola. As sentinelas bradaram às armas. Estava dado o alarme. A fuga tinha falhado e só nos restava dispersar e tentar defender-nos o melhor que nos fosse possível. Corremos para as barracas e cerca de setenta homens que estavam descalços por razões de segurança, correndo pelo Campo fizeram um barulho espantoso. Foi esta a razão por que lhe chamámos a Grande Cavalgada. Na nossa correria abandonámos pelo caminho os ferros com que íamos armados. Junto dos pavilhões em construção houve tropeções, quedas e quem se ferisse. As sentinelas, disparavam. No quartel, os soldados acordados em alarme corriam para os seus 98 postos. Ao fogo das espingardas juntou-se o de uma metralhadora. Nas barracas, também nós - e éramos muitos os que nada sabiam do que se passava - acordávamos em sobressalto. Ouvindo toda aquela fuzilaria, o matraquear seco das metralhadoras, vendo camaradas erguer colchões em barricada, tentávamos defender-nos e agarrávamos em pratos, travessas e terrinas que enfiávamos na cabeça ou púnhamos em escudo sobre o coração para nos defendermos das balas que caíam sobre o Campo como saraivada. Alguns de nós meteram-se nos bidões da água. O tiroteio durou uns dez minutos, depois tornou-se intermitente e por fim parou. Nós espreitávamos pelas aberturas da lona das barracas e víamos luzes que se deslocavam na parada do aquartelamento da Companhia e movimentação de tropas e guardas. Pela estrada do Tarrafal aproximava-se um automóvel. Chegava o director acompanhado pelo médico. Decorreu meia hora. Nós não dávamos sinal de vida. Ouvíamos o capitão Numa Pompílio falando com Manuel dos Reis, que denotava grande agitação. De armas em punho, percorriam pelo lado de fora toda a cerca de arame farpado. Compreendíamos que eles nada sabiam do que se passara e que o completo silêncio no Campo os surpreendia. Assustava-os aquela tranquilidade e hesitaram muito antes de darem a ordem de entrada. Por fim, abriram o portão e duas colunas de soldados avançaram comandados por sargentos, logo seguidos pelo capitão, pelo director, pelo médico, pelos guardas, todos de pistolas empunhadas, trémulos e muito cautelosos ao aproximarem-se das nossas barracas. 99 Numa Pompílio, mais sereno, dirigia-se a nós: - Vamos, meus senhores! Vamos a formar! Sei que são homens corajosos e que assumem as vossas responsabilidades! Com uma lanterna eléctrica iluminava o interior das barracas. Manuel dos Reis também gritava ordens: - Todos cá para fora! Saiam como estiverem! Simulando toda a serenidade que nos era possível íamos saindo, quase nus, como se tivéssemos sido apanhados de surpresa por tão estranha atitude dos carcereiros. - Formem todos na cabeceira do Campo!

Formámos. À nossa volta, de armas apontadas para nós, víamos muitos soldados e guardas. Manuel dos Reis vociferava insultos e ameaças. Formados dois a dois fez-se a contagem. O segundo comandante-adjunto, o capitão José Júlio da Silva, verificando que ninguém faltava, fez uma tentativa para que tudo aquilo ficasse por ali. - Posso mandar destroçar? Mas Manuel dos Reis parecia ter enlouquecido. - Agora vão saber quem eu sou! Os de Angra já me conhecem! Agora vão saber os de Peniche e os outros! Voltou-se para o guarda que nos surpreendera na cozinha: - Aponte lá os que viu! Mas o Manuel Padeiro, ainda atordoado pelos acontecimentos, gaguejava sem nada conseguir dizer. - Vamos, aponte! Que podia ele ter visto? A noite estava escura. Vira todos aqueles vultos emcorreria, ouvira 100 aquele barulho que o atarantara, distinguira um que tinha .. - Vi que tinham barbas ... E tanto bastou para que Manuel dos Reis mandasse sair da formatura todos os barbudos, mesmo aqueles que momentos antes dormiam tranquilamente sem nada saberem do que se passava. Eram José de Sousa, João Borda, Luís Taborda, Joaquim Dias, Eduardo Neto, Alvaro Duque, Joaquim Santos, Gabriel Pedro, Correia Pires, Neves Amado, Carlos Ferreira e outros que também tinham deixado crescer a barba. Feita a escolha, deu-nos ordem para recolhermos às barracas, enquanto os nossos camaradas barbudos seguiam em formatura para o portão do Campo. Mas, antes de saírem, Manuel dos Reis pediu a Numa Pompílio um pelotão. Seguíamos de noite, acompanhados de perto pelos soldados, de armas aperradas, em grande aparato guerreiro. Pensámos que íamos ser fuzilados e alguns camaradas exortavam-nos: - Morrer com digmidade! A marcha continuava. Na frente Manuel dos Reis, de cuecas, tal como tinha saltado da cama, com o dólman enfiado à pressa ainda por abotoar, sapatos calçados sem as peúgas, de pernas tortas, empunhando uma pistola niquelada a tremer-lhe na mão. Não, não íamos ser fuzilados, encaminhávam-nos para aquilo que iríamos conhecer bem dolorosamente e que sempre designaríamos por frigideira. 101 A FRIGIDEIRA A frigideira era uma caixa de cimento, construída perto do aquartelamento dos soldados angolanos. Tinha uma forma rectangular. O tecto era uma espessa placa de betão. Uma parede dividia-a interiormente em duas celas quase quadradas. Tinha cada uma delas a sua porta de ferro, perfurada em baixo com cinco orifícios onde mal se podia enfiar um dedo. Por cima, junto ao tecto, havia um postigo gradeado em forma de meia lua com menos de cinquenta centímetros de largura por uns trinta de altura. Estava exposta ao sol de manhä à noite. Lá dentro era um forno. Aquela prisão merecia o nome que lhe tínhamos dado. O sol batia na porta de ferro e o calor ia-se tornando sempre mais difícil de suportar. Iamos tirando a roupa, mas o suor corria incessantemente. A frigideira teria capacidade para dois ou três presos por cela. Chegámos a ser doze numa área de nove metros quadrados. A luz e o ar entravam com muita dificuldade pelos buracos na porta e em cima pela abertura junto ao tecto.

Quatro passos era o percurso de uma parede a outra. Dentro havia uma constante penumbra. A porta quando se abria ou fechava rangia, e aquele 103 rangido repercutia pelas paredes rebocadas a cimento. A água que nos davam para beber nunca chegava. Traziam-na de manhã numa pequena bilha de lata e tálvez não chegasse a uns quatro litros. Se éramos mais de dois não bastava para compensar os líquidos perdidos com o calor e sofríamos constantemente a sede. A comida que nos forneciam era um pão. Em dias alternados apresentávam uma sopa rala. Lavarmo-nos era impossível e ao fim de poucas horas o cheiro a suor repugnava. O latão que servia de urinol e de pia estava destapado e só de manhã o podíamos despejar. Espalhava-se pela cela um cheiro pestilencial misturado com o das substâncias amoniacais da urina que nos faziam arder os olhos. Quando éramos muitos a respiração condensava-se no tecto e caíam gotas de água, mas não representavam um alívio e sim um tormento mais. Iamos de rastos até à porta para respirar o ar mais fresco que entrava pelos buracos. Abafávamos. De noite era a praga dos mosquitos, o chão de cimento como cama, onde maldosamente tinham espalhado uma leve camada de areia que se incrustava na pele. E era também o frio, um frio que nos punha a tiritar, pois o cacimbo, depois do pôr do Sol, arrefecia o bloco de cimento. Vinha o silêncio e, se estávamos sozinhos, apenas ouvíamos a chuva e o correr das águas da ribeira para o mar, os batuques, noite fora, das danças cabo-verdianas, os brados das sentinelas, os sons dos animais que pastavam. Pela manhä, abriamos a porta e chegava o guarda com o pão para todo o dia e a água para despejar na bilha que já tínhamos. Depois era o momento de ir despejar o latão. 104 Aproveitávamos para passear os olhos em volta. O que se via era uma desolação. Nem uma folha verde. Só pedras. E uma planta rasteira de que ignorávamos o nome. Não tardámos em lhe dar um. Reproduzia-se todo o ano. Eram umas bagas pequenas, do feitio de castanhas quando ainda dentro dos ouriços que as envolvem. Quando se ia por ali, descalço, pois nos tiravam as botas, o cinto e o chapéu, não tardávamos, dados dois passos, a parar. - Arre! Porra! Levantávamos os pés para ver e arrancar o que mais parecia alfinetes enterrando-se. - Arre! Porra! Foi o nome que lhe demos. Pouco depois de o sol nascer já o ar se tornava abafado, irrespirável. Despíamos a roupa e estendíamo-la no cimento para nela nos deitarmos. O sol da erguendo-se sobre o horizonte e o calor aumentava, aumentava e suávamos, suávamos. Sentíamos sede, batíamos na porta a pedir água, mas não tínhamos resposta. A água da bilha não tardava em ficar quente. Havia momentos em que a sede era tanta que passávamos a língua pela parede por onde escorriam as gotas da nossa respiração que ali se condensava. Os dias pareciam infindáveis. Suspirávamos pela noite, pois o frio nos era mais fácil de swportar. Mas pelo entardecer também a séde aumentava. A excessiva transpiração não era devidamente compensada. A frigideira matava. Ainda nos recordamos de ver Pedro Soares caminhando para o Campo, descalço, tronco nu, sem óculos, cambaleando com o esforço para dominar o extremo cansaço. Vinha muito magro, muito sujo. Também nos lembramos de Luís Taborna, com o corpo todo numa chaga, de Gabriel Pedro, que nos

105 primeiros cinco anos foi quem mais tempo passou na frigideira, tão perseguido pelos carcereiros para o fazerem fraquejar e repudiar os seus ideais através de constantes castigos que, num momento de desespero, cortou as veias dos pulsos no rebordo do latão. A frigideira foi inaugurada na noite em que tentámos a evasão. Éramos dezassete, dez numa cela, sete noutra. Não podíamos deitar-nos. Não havia espaço para que todos o pudessem fazer. Na primeira noite, sem conhecermos a prisão, tacteávamos no escuro à procura de lugar. Esbarrávamos uns nos outros e não conseguimos dormir. Entretanto, no Campo, Manuel dos Reis continuava sem saber quem tinha participado na fuga. Mandou fazer uma busca à cozinha onde nos concentráramos e ao barracão contíguo e foi encontrar sapatos, um de Júlio Fogaça, outro do José Soares. Henrique Ochsemberg foi denunciado pelo Manuel Padeiro. - Também vi o homem do requerimento. - Ah! O homem do requerimento! Já sei quem é! O Henrique Ochsemberg! Vai saber quem eu sou! Na manhã seguinte, Júlio Fogaça, José Soares e Henrique Ochsemberg foram levados para o armazém fora do Campo e brutalmente espancados. O chefe dos guardas, o Teixeira, comandava uma equipa constituída por Poejo, Costa, Manuel Padeiro, Grifo e outros, encarregádos do espancamento. Mas será justo falarmos aqui de tais guardas. O Grifo fingia bater. E devemos ainda dizer que nenhum de nós tinha razão de queixa pela maneira como tratava connosco. Veio a morrer de paludismo a 14 de Agosto. O outro guarda chamava-se Sérgio e era cabo-verdiano. Mandaram-no substi- 106 tuir um deles já cansado de tanto espancar. Recusou-se - Tenho exame de instrução primária. Não bato em ninguém. Preferiu aceitar as consequências da sua recusa a sujar as mãos em tão imundo trabalho. Manuel dos Reis não assistia. Passeava cá fora. De quando em quando aparecia à porta e perguntava: - Já confessaram? Não, não tinham confessado, respondiam-lhe. E o espancamento continuava com réguas e sarrafos. Não confessaram. Foi com dificuldade que estes três camaradas conseguiram chegar à frigideira. As costas, as pernas estavam inchadas e roxas. Deitaram-se no cimento, voltavam-se, mas não tinham posição em que encontrassem alívio. Durante os espancamentos, o ódio e a tensão nervosa quase nos tornam insensíveis à dor, mas na frigideira como a sentíamos! Não era, possível dormir. Nessa manhã, pelas onze horas, já o calor era muito. O ar só entrava por cima. De fora tinham tapado os buracos da porta com um taipal. Pela tarde o calor aumentou. A porta de ferro já ninguém conseguia encostar-se. Pela madrugada era fria e nela refrescávamos as costas e o peito. Era alívio que não durava muito. Os dias iam passando e começávamos a cair doentes. Luís Taborda além de erupção na pele tinha sintomas de intoxicação. José Correia Pires exclamava: - Daqui já não saímos vivos! O seu estado e o de Henrique Ochsemberg era grave. Não tinham qualquer assistência médica. 107

Pelo corpo aparecia-nos uma borbulhagem, que devia ser provocada pelo suor, pela sujidade, pela falta de ar. Pedíamos aos guardas que tirassem dali camaradas doentes, mas nada faziam. A Comissão de Campo, de que faziam parte Bento Gonçalves e Mário Castelhano, responsabilizava o director pelo que pudesse acontecer. Como resposta, Manuel dos Reis ameaçava: - Vejam se também querem lá ir parar! Todos estávamos atentos ao que se passava na frigideira. Sentíamo-nos inquietos. Só Manuel dos Reis dava mostras de alegria. - Queriam fugir? para saberem! Hão-de cair como tordos! Uma noite o calor aumentou. Sufocávamos. Gritámos, batemos na porta. A sentinela ameaçou-nos. Continuámos a bater e a gritar e os nossos gritos ecoavam e as pancadas na porta ressoavam na noite. Estendidos no cimento; completamente nus para melhor suportarem o calor, aqueles três camaradas já não davam acordo de si. Apareceu Numa Pompílio e ao ver o estado em que se encontravam tomou a iniciativa de os levar para a enfermaria. Dizia-se que havia dias teimava com Manuel dos Reis para que nos libertasse da frigideira. A indignação no Campo poderia originar uma sublevação e não se responsabilizava pelas consequências. Manuel dos Reis não cedia. Dias depois saíamos. Tínhamos de nos apoiar uns aos outros. A luz do Sol depois de tantos dias quase na escuridão cegava-nos. Vínhamos escaveirados, com furuncoloses; muito abatidos e doentes. Reclamávamos consulta médica, mas sempre nos era recusada. 108 - Se morrerem - dizia Manuel dos Reis - são uns bandidos a menos. Com excepção dos três camaradas doentes, estivemos na frigideira quinze dias. Só Joaquim Dias saiu quatro dias antes. Joaquim Dias nunca se queixava. Fizera parte da revolta dos marinheiros. Logo que entrou no Campo deixara crescer a barba. Não teve qualquer participação na tentativa de fuga. Não porque não nos merecesse confiança. Bem pelo contrário. Simplesmente por não servir para os preparativos a fazer. Mas, por ser um dos barbudos do Campo, foi incluído entre os castigados à frigideira, ele que dormia tranquilamente quando o alarme se deu e começou o tiroteio. Ao voltar da frigideira, com borbulhas por todo o corpo, muito sujo, combalido e magríssimo, via-se que fazia um imenso esforço para manter a serenidade. Deixou-se cair na cama e assim se preparava para ficar. Foi quando o camarada Josué Martins Romão lhe disse: - Deixa-te estar aí quietinho, que eu vou ver se te arranjo um banho quente e roupa lavada. Lavou-o, vestiu-o e Joaquim Dias sempre sem uma palavra. Josué Romão que dele cuidava pegou então num pente e começou a pentear-lhe o cabelo e a barba. E foi aqui que Joaquim Dias interrompeu o seu silêncio: - Camarada, dás-me licença que chore um bocado? - Pois com certeza, amigo, chora à tua vontade. E Joaquim Dias chorou, soluçou por muito tempo e deixou correr todas as lágrimas que trazia sufocadas. 109 O PERÍODO AGUDO O ódio de Manuel dos Reis não se satisfazia. As barracas, depois de nos afastarem para os pavilhões em construção, e revistadas. Levaram livros, papel, tinta e tudo o que encontraram de cor

vermelha, principalmente roupas. A seguir, meteram tudo aquilo em caixotes, pegaram-nos à nossa vista e numa camioneta os levaram para o armazém. A busca prolongou-se até às três da tarde e só então almoçámos. Nem os que estavam de cama puderam ficar nas barracas. A água foi limitada. Foram proibidos os banhos de mar. Continuávamos sem balneários. As compras que semanalmente estávamos autorizados a fazer e com que nos era possível enriquecer a nossa alimentação eram proibidas. Durante seis meses não poderíamos escrever nem receber cartas. Debalde os nossos familiares nos escreviam. Manuel dos Reis retinha a correspondência. Retratos que nos eram enviados iam parar às mãos dos carcereiros que deles se serviam como motivo de zombarias. As ameaças e insultos dos guardas tornaram-se frequentes mesmo por parte daqueles que até ali tinham sido menos incorrectos. 111 As encomendas que nos mandavam e traziam alimentos e remédios eram devolvidas ou apreendidas. A 20 de Agosto, logo pela manhä, os guardas entraram pelas barracas. - Vamos a sair! Cá para fora! Ninguém que pudesse levantar-se pôde ficar. Já antes tínhamos ouvido dizer que se da abrir uma vala em volta do Campo, com um talude formado pela terra escavada. E na verdade, quando íamos para o serviço da água, notávamos grande movimento na secretaria. Armazenavam-se pás e picaretas. Não nos apanharam pois completamente de surpresa quando, no dia 20, nos fizeram formar junto da secretaria. Lá estavam também o médico e Numa Pompílio. - Vai abrir-se uma vala - começou o Manuel dos Reis - agora é que vão saber o que isto custa. E olhem que já dei ordens para os que quiserem safar-se. Está aqui o senhor doutor para que vocês não se finjam doentes. Lá fora estão as picaretas e as pás. Aqui não há oficios. Todos têm de trabalhar. E Esmeraldo Pais Prata começou a sua inspecção médica: Olhava-nos para a cara, media-nos a pulsação. Dos sessenta presos que já nessa altura estavam com os primeiros sintomas de paludismo, só cinco puderam ficar nas barracas. Esmeraldo Pais Prata considerou que todos os outros estavam aptos. - Apto para o trabalho! Passávamos para o grupo de guardas e serventes que distribuíam pás e picaretas. Protestávamos, mas era inútil. O médico não passava de um carcereiro mais e nessa manhã se iniciou a marcação do corte da vala. 112 Mandaram-nos pôr em fila e o trabalho começou sob a vigilância dos guardas. O sol de Agosto queimava, a terra escaldava e os que já não tinham botas tinham de saltitar para evitar a terra abrasada. E nem uma aragem. Nem uma sombra. Chegou a hora do almoço. Pelas duas horas, quando devíamos voltar para, muitos camaradas já não puderam ir. A febre começava a abater-nos. Durante a tarde o trabalho foi mais fatigante ainda. Soprava um bafo de fornalha. Cada pazada de terra, cada golpe de picareta parecia ser aquele que nos faria tombar de exaustão. De regresso às barracas mais camaradas caíram com paludismo. E o trabalho na vala continuou pelos dias seguintes. Manuel dos Reis espicaçava os guardas para que nos fizessem trabalhar em pleno rendimento mas, de dia para dia, era maior o número dos que ficavam de cama com acessos febris. Tínhamos começado a viver um dos períodos mais brutais do Tarrafal. Chamámos-lhe o "período agudo". Os primeiros camaradas iriam tombar para sempre.

Corriam os últimos dias de Agosto de 1937, muito quentes e sufocantes. Manuel dos Reis vinha ver como a obra seguia e exasperava=se por ver que cada vez éramos menos na vala. Joaquim Faustino de Campos suportava-lhe mal os gritos e os insultos e acabou por responder-lhe: - Aqui somos todos trabalhadoras dignos! Foi levado aos empurrões até à frigideira, de onde saiu amparado, mal conseguindo arrastar as 113 pernas. Só depois de muitos dias de cama se recompôs. Todas as manhäs os guardas entravam pelas barracas para ver quem estava em condições de ir para a vala, quem - na opinião deles - se fingia doente para lhe fugir. - Vamos a levantar! Vamos ao trabalho! Se os acessos febris se davam de dois em dois dias, como por vezes acontecia, tínhamos de voltar às pás e picaretas debaixo daquele sol de Agosto. Começaram as chuvas. Cargas de água que caíam e pareciam fervilhar na terra, de onde se soltava um bafo húmido e quente a envolver-nos, a deixar-nos viscosos. As chuvadas interrompiam os trabalhos na vala. Mas logo o Céu se abria, voltava o sol, aquele calor pesado de chumbo, e mais uma vez nos forçavam a cavar a terra. Durante a noite desabavam tempestades. O céu parecia baixo, todo toldado de nuvens arroxeacias, e soprava um vendaval furioso. As lonas, nos pontos de junção do tecto com as partes laterais, havia grandes rasgões abertos pelo vento durante a estação seca. A água corria dali como bica de fonte e as lonas estralejavam à ventania como velas de barco. Tínhamos de afastar as camas, o chão alagava-se... E por toda a ilha, no poço, nos charcos deixados pela chuva, no cacimbo que caía pela madrugada, germinavam mosquitos aos milhões. Os nove primeiros meses que vivemos no Tarrafal foram de seca e, apesar da alimentação tão má que nos davam, da água inquinada do Chambão, dos trabalhos violentos a que nos obrigavam, resistíamos com aquela rebustez da juventude, pois quase todos nós éramos homens entre os vinte e os trinta anos. 114 O paludismo mal dera sinal de si. Houvera, é certo, um caso de biliosa - Adoecera o Garradas. Mas, ainda saudável, venceu-a sem grande dificuldade. O Garralas era um velho militante das lutas sindicais. Era rijo, vaidoso da bigodeira que penteava muitas vezes no espelho suspenso do apoio central da barraca. Adoeceu, e Alvaro Duque, que dormia perto dele, ao notar-lhe os sintomas febris, procurou o único termómetro do Canpo e viu-lhe a temperatura. Estava muito próximo dos quarenta e um graus: Preocupado, limpou o termómetro, guardou-o no tubo de cartão. A doença parecia grave, não havia medicamentos, do médico todos sabíamos nada haver a esperar... O velho Garradas observava-lhe a preocupação. - Ó ålvaro, quantos tenho? - Pouco. Não chega a trinta e nove. - Sim? E quantos pode um homem aguentar? - perguntou o Garradas, que não era grande entendedor de febres e medicinas. - Aí uns quarenta e cinco ou mais! - Ah! - suspirou o Garradas, mais aliviado.- Então ainda tenho muitos cartuchos! O Garradas, homem corajoso, tinha realmente uma saúde ainda com muitos cartuchos e resistiu à biliosa.

Sentíamo-nos confiantes. Parecia-nos que a nossa juventude a tudo resistiria. Se o Garradas, mais velho do que nós, se curara, com mais razão seríamos capazes de enfrentar paludismos e biliosas. O paludismo apanhou-nos assim de surpresa. Havia entre nós um ou outro que já passara pelas deportações, porém quase todos nós não tínhamos qualquer experiência do clima africano e das precauções a tomar contra a malária. 115 Ninguém nos forneceu mosquiteiros e também nós não nos apercebemos da sua falta. A nossa robustez fizera-nos passar os primeiros meses no Campo sem grandes sobressaltos quanto à saúde. Mas, quando o vento deixou de soprar e as primeiras chuvas vieram, chegou o paludismo. Os mosquitos eram uma praga. Deixavam-nos na pele manchas avermelhadas, empaladas, que nos causavam grande prurido. E dias depois... Uma dor de cabeça, muitos bocejos, as pernas moles, o corpo a pedir cama... Era o paludismo. Entrava em nós um frio que nem roupas nem mantas nos traziam calor. Enrolávamo-nos com os joelhos encostados ao queixo e ficávamos a tremer, a tremer, as camas tremiam connosco, e só desejávamos que nada nos dissessem, que nos deixassem estar ali imóveis e em silêncio enquanto o febrão durasse. Assim se passavam duas horas. Depois, vinha o calor e começávamos a sacudir o cobertor, a despir a roupa, e suávamos, suávamos até encharcar lençóis e colchões. Chegava então a sede, e, naquele silêncio que se fizera na barraca, ouviam-se as interrupções feitas pelas nossas vozes, uma primeiro, a seguir outra e outra, fracas, muito fatigadas. - Dá-me água, camarada. E sentíamo-nos tão sem forças que qualquer movimento nos parecia impossível. Entrávamos no mês de Setembro. A repressão no Campo continuava com a mesma dureza. A 2, um mês depois da fuga frustrada, houve novo alarme e mandaram-nos formar entre muitos gritos dos guardas. Avançou então um soldado angolano que apontou para José Trovisco Malarranha. Levaram-no para a frigideira. E tudo isto por se ter aproximado mais do arame farpado. No dia 4, Manuel dos Reis decidiu que teríamos de ser nós, precisamente quando o número de im- 116 paludados aumentava, a fazer os despejos das sentinas e levar os latões ao mar, o que até ali fora feito por serventes cabo-verdianos. As chuvas tinham feito crescer o capim e os montes antes escalvados justificavam agora o nome do arquipélago. Das camas, nas barracas com as lonas levantadas, avistávamos para além da vedação os montes inteiramente verdes, ouvíamos os mugidos do gado, na pastagem, e recordávamos com tristeza, os campos da terra portuguesa tão afastada de nós. Mas reagimos e repetíamos como gracejo as palavras do Garradas: - Aqui ainda há muitos cartuchos! Do rancho nem o cheiro suportávamos. Estava pior ainda, se tal era possível. Pela tarde, a sopa era um pouco melhor, mas por essa altura atacava a malária com mais força e não conseguíamos comer. Leite só estava autorizado pelo médico aos doze doentes que se encontravam na barraca de madeira a que chamavam enfermaria. A febre impossibilitava-nos de nos alimentarmos. Os camaradas que se mantinham de pé faziam-nos sopas de pão em água quente, com um fio de azeite, um raminho de hortelã, que alguns cultivavam em volta das barracas, um ovo escalfado. Estes ovos ia-os Alvaro Duque tirando a uma galinha que todos os dias passava o arame farpado e vinha pôr no Campo. E nós, que nada podíamos receber das famílias, por estarmos castigados, andávamos sempre atentos àquela galinha que nos regalava com os seus ovos que depois dávamos a algum camarada mais fraco.

O apetite desaparecera. A comida enrolava-se na boca e não a engolíamos. De manhã, com muita dificuldade, lá comíamos o miolo do pão molhado no café. E era tudo. 117 Um dia, Manuel Alpedrinha e outros camarada que ainda não tinham caído com o paludismo cozinharam-nos um bacalhau guisado muito apuradinho e cheiroso, com a esperança de que o nosso apetite aguçasse. Mas não, não conseguimos saborear o que nos tinham trazido com tanto gosto. Íamos definhando. O rancho muitas vezes não chegava a ser levantado na cozinha para não termos o trabalho de o despejar na barrica dos restos. Neves Amado, um dos camaradas mais dedicados, preparava-nos caldos de farinha, torrava pão e com o grão e o feijão do rancho fazia-nos puré. Usava uma lata barrada de barro vermelho, muito abundante por ali, que lhe servia de fogão. Só nos apeteciam coisas frescas, mas onde iríamos encontrá-las? E as sezões atacavam sempre e deixavam-nos magríssimos, exaustos, com uma cor amarelo-esverdeada. Novos camaradas caíam à cama. Vinha a febre, o frio que nos fazia bater o queixo e tremer convulsivamente, o febrão de quarenta e um graus e décimos, o suor às bagas. As roupas suadas eram postas aos pés das camas para as vestirmos logo que secassem. Já não era possível lavá-las. Dava-nos a malária uma sede insaciável. A água sabia-nos a fumo e amargava. Quem bebesse muita piorava, porque os vómitos eram mais terríveis. Mas nem sempre se podia resistir à sede e de noite, a cambalear, apoiando-nos às camas, íamos até à lata da água e bebíamos púcaros e púcaros cheios. Logo a febre não tardava em subir. Na vala éramos cada vez em menor número. Os guardas continuavam a entrar todas as manhãs pelas barracas para ver quem fugia ao trabalho. - Vamos a levantar! Nada de ronha! Mas o que viam não dava lugar a dúvidas. Eram os arrancos dos vómitos, os nossos camaradas 118 ainda sãos a correrem com uma lata para onde pudéssemos vomitar. Por vezes eram tantos que não sabiam qual socorrer primeiro. E as latas enchiam-se de bílis; água e a comida que ainda conservássemos no estömago. Ouviam os gemidos dos que estavam com cólicas intestinais ou de fígado. Virgílio de Sousa, acompanhado pelos seus auxiliares, corria com latas de água fervida para os clisteres. Muitos de nós, com o desgaste sofrido, depois de noites e noites sem dormir, já não sentiam o corpo. Parecia-nos que só o coração ainda batia que só o cérebro ainda pensava. Mas desesperados por não conseguirmos pegar no sono. Vinha a noite de insónia e também cães que uivavam. Doentes como estávamos, debilitados pela febre, sabendo que a morte estava ali e convivia connosco, muitos não conseguiam afastar velhas superstições ligadas a uivos na noite a anunciar desgraça. Chegavam a juntar pedras a um canto da barraca para os afastar à, pedrada. E eram também os mosquitos, o cacimbo que escorria pelas lonas, os vendavais que se levantavam e traziam terra que nos entrava para os olhos e chegava a cobrir completamente as mantas. Era desesperante. O vento chegava em rajadas e os ferros das barracas rangiam e ameaçavam vergar e cair sobre nós. Agarrávamos os tubos, ou vínhamos cá fora para segurar as espias e ali ficávamos suportando as chuvadas de um céu de nuvens avermelhadas, enquanto o vendaval não serenasse. De dia para dia aumentava o número de impaludados. Mal começávamos com os bocejos, sabíamos que não tardariam os arrepios. Procurávamos então uma lata que virávamos com o fundo para cima e assim colocávamos ao alcance da mão um 119

prato de esmalte cheio de água fria. Esperávamos pelo febrão e encharcávamos lenços que púnhamos no ventre e na testa. Dali a monentos estavam quentes e voltávamos a ensopá-los. Os camaradas que ainda se mantinham de pé estavam esgotados. Traziam a água do Chambão, despejavam-na nos bidões, lavavam lençóis e a roupa, faziam os despejos, trazian o rancho da cozinha e cuidavam dos doentes. Eram quinze, não tardou que fossem dez, e por fim nove. O Virgílio de Sousa, bom profissional de enfermagem, Vale Domingos, Silvino Leitão e Leonião Felizardo levemos não ter sido maior o numero de vítimas do paludismo. Todas as manhãs percorriam as barracas. Tratavam-nos como era possível, com clisteres e compressas de água fria. De nada mais dispunham. Não havia no Campo um comprimido de quinino. Como podia explicar-se que não houvesse medicamentos nem fossem tomadas quaisquer medidas numa ilha africana onde a malária teria fatalmente de aparecer? Como se podia justificar a ausência do médico quando cerca de duzentos presos ardiam em febre? Só uma resposta era possível. O salazarismo desejava a nossa morte. Não nos matava de frente, deixava-nos morrer de paludismo. Como explicar de outro modo que os medicamentos e encomendas que os nossos familiares nos enviavam se acumulassem na secretaria? Manuel dos Reis afirmava que estávamos castigados. Mas deste modo não nos entregava o que nos podia curar. Nós, que não ignorávamos a falta de medicamentos, sentíamo-nos abandonados, sem qualquer esperamça de auxílio. 120 Dizia-se que estava para chegar um barco com medicamentos, mas o navio não entrava no porto e os médicos não apareciam. Pedíamos injecções, qualquer coisa que nos curasse. Virgílio de Sousa enchia seringas com água. - Isto vai pôr-te bom! E fingia injectar. Sentíamo-nos melhores. Mas aqueles que assistiam e compreendiam o bem-intencionado engano sentiam-se enraivecidos contra os carcereiros que nos deixavam morrer. A 14 de Setembro foram interrompidas as obras na vala. Não havia gente para trabalhar. O Campo era um hospital. O pequeno número que ainda não adoecera continuava a ir buscar água, a fazer os despejos. Manuel dos Reis não fazia qualquer esforço para resolver a angustiante situação que vivíamos. E foi numa dessas idas ao poço do Chambão que fomos avisados por um motorista das Obras Públicas, com todas as precauções para que os guardas não ouvissem, que devíamos ferver a água. Quando o soubemos, acreditámos que o mal de todos nós fosse provocado pela água e quantos o podiam fazer se lançaram para a pilha da lenha da cozinha. Vieram os guardas dizer-nos: - Voltem a lá pôr a lenha! O senhor director não autoriza! Gritávamos: - Querem matar-nos. Mas desta maneira não nos matam. Não deixamos! Acendíamos fogueiras e as primeiras latas de água fervida foram conseguidas com luta. - Apaguem as fogueiras! - A água tem de ser fervida! Está inquinada! 121

Junto da lenha colocaram sentinelas. Arrancámos os barrotes dos estrados. E às ordens dos guardas para que não o fizéssemos respondíamos que não podíamos deixar-nos matar sem nada fazer em defesa. Na Cidade da Praia pensavam haver entre nós uma epidemia de tifo. E tais eram as condições do Campo que o engenheiro das Obras Públicas, Bernardo Faria, mandou retirar todo o pessoal a trabalhar na construção dos pavilhões pelo receio de que a epidemia se espalhasse por toda a ilha, e em vários pontos do Campo mandou colocar latas com enxofre a arder. E, como já nos era impossível o abastecimento de água, foi, ainda este engenheiro que tomou essa tarefa a seu cárgo pondo em serviço uma camioneta cisterna. A situação agraváva-se. De cerca de duzentos presos, apenas uns oito estariam de pé a tratar de todos os outros. Quase não descansavam. Viam as temperaturas, davam água;, acudiam aos que queriam vomitar, aos que gemiam com cólicas, aos que deliravam com febre e se imaginavam em casa entre os seus. O pão que não comíamos empilhava-se cá fora. Nos primeiros tempos ainda o dávamos aos trabalhadores cabo-verdianos, mas tínhamos de o fazer sem que os guardas vissem. As bananas compradas antes da tentativa dé fuga eram muitas é apodreciam. Viam-se pelo Campo bandos de corvos que tinham comida farta e fácil no rancho que não comíamos. Todo o dia crocitavam no topo das barracas, muito negros, como prenúncio de morte. No barracão a que chamavam enfermaria e onde só havia a vantagem de se estar mais defendido do vento e da poeira, eram cada vez em maior número os camaradas em estado grave. Uma das dppendências era reservada aos que estavam na agonia, para 122 que os restantes doentes não ficassem impressionados. Jaime Francisco e Zuís Leitão chegaram a ser transportados para a câmara mortuária, que era o gabinete de Esmeraldo Pais Prata. Já estavam dados como mortos. Aplicava-se então o escalda-pés como último recurso e felizmente reagiram tão bem que momentos depois pediam comida. Alvaro Ferreira, João Campelo, Armando Callet, João Rodrigues, Casimiro Ferreira, João Borda e outros quase passaram pelo escalda-pés. Quando não se reagia, era a morte. Porque morreram camaradas. A 20 de Setembro morriam Pedro de Matos Filipe e Francisco José Pereira; a 21, Augusto da Costa, da Marinha Grande, a 22, Francisco Domingos Quintas e Rafael Tobias, a 24, Cândido Alves Barja. Só então aparecia Esneraldo Pais Prata da vê-los quando estavam a morrer. Os camaradas mentiam-nos quando algum de nós era levado das barracas. Diziam-nos que iam ser hospitalizados. Acreditávamos. Parecia-nos impossível que nos deixassem morrer sem nada fazer para nos salvarem. Sentíamo-nos mais tranquilos por eles e imaginávamo-los no hospital da Cidade da Praia, numa enfermaria clara e higiénica, entre médicos e enfermeiras de batas muito brancas, onde teriam todos os tratamentos necessários. E muitos os invejavam. Mas Rafael Tobias jazia na sala mortuária e ainda estava vivo. Pensava-se que não duraria mais que momentos e a sua agonia prolongou-se até ao dia seguinte. Ouviam na enfermaria o seu estertor os camaradas que estavam melhor. Ouviam e faziam perguntas embaraçosas. Respondiam-lhes que a camioneta que o levaria ao hospital ainda não chegara, que só viria à tarde. Pelo Campo, ouviam-se serras, plainas e martelos, dia e noite. Mas não pensávamos que fossem 123 os carpinteiros serrando e aplainando a madeira das mesas do refeitório, pregando as tábuas dos caixões. De noite, aquelas marteladas ecoavam pela planície.

Não imaginávamos que os camaradas sãos, quando vinham prestar-nos assistência, tivessem acabado de lavar, de vestir os que tinham morrido, que tivessem sido os últimos a vê-los antes de se fecharem os caixões. Não imaginávamos que viessem do cemitério. Iam sempre oito. Quatro pegavam nas cordas, pelos cantos. Os outros levavam caixotes vazios onde, de quando em quando, o ataúde era colocado para descansarem e se revezarem. Não imaginávamos que as mãos que momentos antes nos tinham dado água tivessem aberto o coval onde fizeram descer o caixão e sobre ele tivessem deixado cair as pazadas de terra. Não o imaginávamos, mas sentíamos a morte bem perto de nós. E, embora o estoicismo e a coragem fossem os traços daquele período horrível, a amgústia dava-nos os seus sacões quando ouvíamos os soturnos taques dos búzios e os gritos das carpideiras nos enterros da gente da ilha. A morte viera ao Campo e Esmeraldo Pais Prata satisfazia o seu ódio ao passar as certidöes de óbito. - Em vez de seis, podia muito bem ter assinado quinze. Manuel dos Reis lastimava-se: - Vocês têm pacto com o diabo! Eu esperava que já, tivessem morrido mais de uma dúzia e só foram seis! - dizia a um dos elementos da Comissão do Campo que lhe fora colocar as nossas reivindicações. Porque fora criada uma Comissão do Campo, que abrangia os representantes das organizações políticas existentes: comunistas anarco-sindicalistas e republicanos. 124 aos carcereiros a responsabilidade de quanto se estava a passar. Tinham sido nomeados camaradas responsáveis em cada barraca, após reuniões. Foram discutidos e aprovados os problemas e resoluções que deviam ser tomadas para fazer frente a novas situações que tivéssemos de enfrentar. Depois destas reuniões, onde foram analisados em todos os aspectos os momentos graves que vivíamos, foi decidido lançar um apelo de socorro, utilizando todos os meios, para que até nós chegassem antipalúdicos e desinfectantes intestinais e, acima de tudo, a arma mais eficaz - o mosquiteiro. As nossas famílias enviaram-nos remédios e alimentos, e também aqui a Comissão do Campo teve de travar grande luta com Esmeraldo Pais Prata e Manuel dos Reis, que retinham os medicamentos, apesar de saberem que as nossas vidas estavam em perigo. E, quando lhe fizemos sentir a responsabilidade que sobre ele pesava como médico, respondeu: - Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbito. E se não as assinou em maior número foi porque em muito o contrariou a nossa inventiva. Construímos um forno onde se introduzia uma lata cheia de água, que atingia o ponto de ebulição em cinco minutos, aproveitando a energia dos gases em combustão. Nas oficinas, fabricámos aparelhos de grande utilidade para os tratamentos. De uma lata de azeite, de litro, fizemos um irrigador, que se completou com um tubo de borracha e uma cânula que vieram da Vila. Fabricámos suportes para os frascos de soro, uma mesa móvel para que os doentes pudessem comer deitados, um escarrador largo, onde fosse possível vomitar, um destilador para água, que também bidestilava e permitia fabricar soros fisiológicos, oloreto de cálcio injectável endovenosamente, cacodilato de sódio, 125 medicamento precioso, quer para o restabelecimento dos atacados pelas biliosas quer dos que tinham suportado febres altas, pois era grande a destruição de glóbulos vermelhos. Este aparelho construído por António Coimbra e Hermínio Martins servia depois para a composição de medicamentos que, uma vez pasteurizados, nos eram ministrados. Assim se salvaram as vidas de muitos camaradas.

Mas nas oficinas fabricámos também pinças, sondas, estiletes, bisturis e até uma cânula de circulação de água para tratamentos à próstata. Porque o médico não fornecia as dedeiras necessárias. Dizia que se podia fazer com bexiga de porco. Nem só a Comissão do Campo exercia pressão sobre o director e o médico. Sofriam outras. Em Portugal havia um importante movinento de solidariedade, que recolhia medicamentos e fazia sentir a sua pressão sobre os carcereiros. Conhecia-se na ilha de Santiago e mesmo no arquipélago o nosso caso e a desumana situação vivida. Assim se viram forçados a ceder e apareceu por fim um garrafão com soluto de quinino. Este medicamento podia Esmeraldo Pais Prata, se quisesse, tê-lo fornecido nais cedo, antes das seis mortes que o paludismo originou. Eis porque se tornou o seu principal responsável. Foi a partir do garrafão milagroso, como lhe chamámos, que começámos a melhorar. Amargava como fel, mas bebíamo-lo sôfregos, às colheres, duas vezes ao dia. Abríamos a boca e a colherada escorregava, quase com prazer, só pela esperança de cura, de amor à vida. E chegou-nos então uma fome insaciável. Comíamos tudo. Guardávamos para o dia seguinte aquele empastado arroz de albacora que tragávamos de manhã, pois o café não nos bastava. Debaixo 126 da cama deixávamos comida de reserva. De noite acordávamos com fome. Só os pratos de feijão frade a formar montanha nos satisfaziam. O pão, tínhamos de o comer de uma só vez. Não resistía mos. Nunca o dividíamos por todo o dia. Uma terrina de rancho que devia chegar para doze era devorada por seis. Depois vinha o suor às bagadas. O nosso estado de fraqueza ressentia-se com o esforço daquelas digestões. O corpo queria sobreviver, exigia a recuperação de quanto perdera. Os nossos pensamentos giravam em torno dos pratos de que mais gostávamos e a água crescia-nos na boca. Até o fedorento guisado de bode tinha o gosto das iguarias que imaginávamos. Numa tarde de forte nortada, agarrados aos ferros que rangiam e vergavam à força do vento, ouvimos o toque no carril para o rancho. E, então, vimos aparecer uma bandeja com joaquinzinhos e batatas cozidas. Que regalo! Nós que quase só comíamos albacora como peixe fresco! Como saboreámos, como fizemos render aqueles pequenos carapaus fritos! Naquele dia, o Manuel dos Reis não estivera no Campo. Por ele nunca os teríamos comido. Lentamente, recuperávamos. Os menos combalidos voltavam ao serviço da água. À vala já não iríamos. Acabou por ser aberta por uns duzentos trabalhadores cabo-verdianos, aos gritos de um capataz feroz que nem os deixava respirar. Recuperávamos e soubemos então que os camaradas que julgávamos no hospital da Cidade da Praia tinham morrido. Só então avaliámos o perigo que tínhamos corrido. A vida continuava e era preciso prosseguir a luta, resistir aos carcereiros, sobreviver para manter vivo o combate. 127 Havia muito a fazer, a limpar. Era preciso enterrar todo aquele pão que se acumulara sobre as mesas, já esverdeado de bolor, lavar toda aquela roupa impregnada de suor e doença. Algumas peças tinham apodrecido e tivemos de as queimar. Lançámo-nos à lavagem e desinfecção das barracas com creolina, para evitar o surto de epidemias, tanto mais que nos empurraram para um dos topos do Campo, para que o outro ficasse livre para a construção dos pavilhões em pedra e cal. Sabíamos que o paludismo nos marcara. Tínhamos de nos defender. Chegavam os medicamentos e gaze com que fazer mosquiteiros. O fascismo criara as condições

para a nossa morte, fizera-nos seis baixas. Atribuíra-as ao clima, ao paludismo; enfim, as causas naturais de que ninguém era responsável. Era preciso evitar que o mesmo voltasse a acontecer. As forças voltavam e já nos levantávamos um pouco. Saíamos das barracas e íamos deitar os olhos pelo Campo. O capim crescera. Em volta tudo era verde. As barracas tinham as lonas levantadas e acenávamos uns aos outros. Estávamos vivos. E, contudo, viamo-nos abatidos, sem cor, barba crescida, a cara e as pernas inchadas. E todos estavam assim, como o camarada Abatino, antes tão forte e saudável e que víamos então macilento, magríssimo, olhos encovados e mortiços. - Nem já parecemos nós! Sorríamos uns aos outros, alegres por vivermos, embora víssemos que nunca mais seríamos tão jovens e sãos como quando tínhamos entrado no Campo. 128 O "TRALHEIRA" Esmeraldo Pais Prata, nomeado médico do Campo de Concentração do Tarrafal por finais de 1936, só em Abril de 1937 se apresentou para dar consulta. Tracheira foi a alcunha com que o conhecíamos e aquela que merecia quem afirmava: - Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito. A dor dos doentes do Campo deixava-o indiferente. Pela calada da noite vinha assistir aos espancamentos. O muito ódio que tinha por nós era frio; a medicina, a arma com que nos feria. E como médico podia atingir-nos de muitas formas. Não aparecia. Conhecendo os perigos do clima africano, nada fez para abastecer a farmácia do Campo com os medicamentos necessários para combater a malária e as disenterias que fatalmente teriam de surgir. Quando vinha era de fugida, dava consulta a dois ou três doentes, para justificar o seu papel de médico, e desaparecia com promessas de voltar no dia seguinte. Mas não cumpria. Geralmente nada receitava. - Isso passa. Isso não é grave. Junto do Posto Médico juntávam-se por vezes muitos doentes. 129 - Estão todos mal? - perguntava. - Sim, senhor doutor. Olhava-nos e dizia zombeteiro: - Coitados. O seu receituário era modesto. Um dos seus medicamentos preferidos era aquela excelente água do Chambão, em aplicações frias no peito, nas costas, na barriga, de baixo para cima, de cima para baixo e para casos de tuberculose, de reumatismo, de males intestinais ou hepáticos. O salicilato gozava também da sua preferência. Uma manhä, o nosso camarada Manuel da Graça foi queixar-se. Sentia-se muito engripado. Os brônquios estavam atacados, doía-lhe o peito, tinha febre. Esmeraldo Pais Prata olhou-o e com a sua habitual gravidade, depois de um silêncio prolongado, disse-lhe com a sua voz pausada e os "ches" de natural de Santa Comba Dão: - À noite, antes de se deitar, cheire o salicilato. Parecia apoiar muito as suas esperanças de cura nas propriedades terapêuticas do salicilato. No salicilato e nas ventosas. - Doem-lhe as costas? - Sim, senhor doutor. Sinto-me muito fraco. O rancho é mau... O Tralheira ouvia muitos queixas contra o rancho e atalhou: - Sim... E a dor é interna ou externa? O doente, perplexo, voltou a explicar o que sentia. O Tralheira escutava numa atitude de muita concentração e dizia por fim para Virgílio de Sousa:

- Ponha-lhe umas ventosas e dê-lhe o salicilato. Ou a tintura de iodo. Foi um camarada queixar-se de ter todo o corpo com manchas vermelhas. Era um caso de urticária. Mas quando esperava qualquer medicamento, como o hipossulfito de magnésio de que já lhe tinham 130 falado como sendo um dos remédios indicados, ouviu-lhe a receita: - Dê-lhe umas pinceladas de tintura de iodo diluída em água a dez por cento. Todas estas prescrições eram antecedidas de um silêncio a que dava solenidade. E parecia divertir-se com o contraste entre a sua gravidade sabedora e a ineficácia das suas prescrições clínicas. Havia porem receitas que muito nos surpreendiam. Certa vez, a um camarada que se queixava de cólicas no fígado e se recusava ao sulfato por lhe irritar o intestino respondeu: - Isso é um erro. A reacção só o beneficia. Olhe, eu quando estou mal do fígado, como um bocado de chouriço ou qualquer outra coisa assim picante. Tenho uma cólica forte e, depois da descarga, alivio! Admirador da Alemanha nazi, convicto da sua vitória, entusiasta das suas qualidades de organização e poder realizador, sentia um ódio muito grande pelos comunistas. Parecia ter uma perversa satisfação em nos desanimar, em nos criar o desespero por sabermos que dele não obteríamos qualquer auxílio. O ódio de um Manuel dos Reis manifestava-se em berros e insultos, o de Esmeraldo Pais Prata era frio, tratava-nos pelo nome e por senhor. Era uma forma cortês de tratamento com que nos brindava, sem que isso significasse menos ódio por nós. Estávamos presos, e esse facto era já uma vitória da facção a que pertencia. Éramos seus inimigos, e não o escondia ao dizer-nos não estar interessado na nossa saúde e que só as certidões dos nossos óbitos lhe traziam contentamento. Ouvia imperturbável as nossas críticas e acusações. Porque era culpado da morte de camaradas, porque retinha os medicamentos que nos manda- 131 vam e nos poderiam curar. Não tinha a intenção de ceder, mas agradava-lhe fazer-nos sentir que não o fazia por imcompetência, por ser mau médico, mas porque deliberada e conscientemente assim o pretendia. Uma vez, quando a crítica se alongou e o nosso ataque se tornou mais duro, interrompeu: - Não se canse. Já mijei o medo há muito tempo. Escutava a censura para que ficasse bem claro em nós que ele não desconhecia a deficiência da assistência médica, pela simples razão de ser essa a sua vontade. Também o Peque lhe fez os seus ataques. Peque, desde criança, vivera em Espanha. Era português de origem, mas em tudo espanhol. Embora rude e ignorante, pois tivera de trabalhar desde muito novo e nunca lhe fora possível ir à escola, tinha muita consciência de classe e batera-se valorosamente em Espanha. Finda a guerra veio para Portugal. Mas, mal passou a fronteira, foi preso e poucos meses depois, sem julgamento, estava no Tarrafal. Era fraco e as febres não o largavam. Febres baixas que o iam minando. Havia muito que trabalhava sem poder. Pedia nas consultas que lhe desse baixa, mas sem o conseguir. Para o Tralheira, isto só podia trazer satisfação. Era desesperar um homem, fazê-lo trabalhar estando doente, fazê-lo esperar uma baixa que não pensava em conceder. Peque, indignado, pediu ao guarda que o levasse à consulta e, ao ver o médico, em vez de se queixar, dos seus males, começou a acusá-lo numa língua que não era a portuguesa nem a espanhola, e com tal violência que Esmeraldo Pais Prata não conseguiu manter a sua habitual serenidade. - Mas afinal o senhor vem para aqui invectivar-me? 132

Peque ficou um tanto desorientado com aquela palavra desconhecida. Mas ao notar a irritação do Tralheira deduziu que as suas acusações tinham originado o efeito pretendido e respondeu: - Estoy de acuerdo. E saiu sem pedir baixa. Quanto mais desesperado via um doente, maior era a alegria daquele módico criminoso. Nesses momentos não resistia a fazer humor. Jacinto de Almeida, que viria a morrer pouco depois da sua libertação, por quanto sofrera no Tarrafal, também já não podia suportar o trabalho no Campo. Pedia baixa, mas sempre o Tralheira a recusava. Foi mais uma vez à consulta. Na cara viam-se manchas provocadas pelo fígado, já tão dilatado que lhe era difícil suportar as dores e os vómitos. Sofria de horríveis dores de cabeça. - Estou realmente sem forças, nas pernas e em todo o corpo. Esmeraldo Pais Prata olhava duas vezes para nós, a primeira quando entrávamos no consultório e a segunda quando dava a consulta por terminada. Entre estas duas miradas, tinha os olhos no tampo da secretária e escutava. Quando Jacinto de Almeida acabou de lhe falar de todos os seus males, levantou os olhos e disse: - Sabe o que lhe digo, senhor Jacinto? Que é preciso ter muita saúde para aguentar tanta doença. Mas quando lhe surgimos como inimigos perigosos, quando tentámos a fuga, também o Tralheira insultou e ameaçou. Henrique Ochsemberg estava cheio de equimoses depois de o terem espancado. Sentia dores fortes nas costas e queria dormir. Exigiu o médico e pediu-lhe um comprimido para passar de um sono nem que fosse uma só noite. 133 Olhou-o o Tralheira de alto a baixo e disse: - Seu malandro, eu não lhe fazia isso, eu dava-lhe três tiros nos miolos! E afastou-se sem lhe prestar qualquer assistência. Mas as dores violentas que sentia tinham uma causa grave. Anos mais tarde, já em liberdade, depois de tirar uma radiografia - continuava a sentir dores na região cervical - viu-se que tinha três vértebras calcificadas. Não era difícil saber qual fora a causa daquela lesão. Os tratamentos de Esmeraldo Pais Prata eram estranhos e logo se via haver neles uma intenção criminosa. Nenhum médico faria aquela operação a uma otite sem ter como finalidade o mal do doente. Pela porta da enfermaria entravam nuvens de poeira. Ia cair no golpe que lhe fizera atrás da orelha. O Tralheira laqueava veias, cortava veias e sempre sem qualquer desinfecção ou anestesia. Aníbal Barata - era ele o doente - suportou tudo aquilo sem um gemido. Uma oútra vítima foi o Felicíssimo. Era um pobre homem que se dizia poeta e grande pintor, mas não passava de um diminuído mental. Fora preso na fronteira, quando queria fugir aos franquistas. Fizeram-no seguir para o Tarrafal como perigoso comunista. Era contudo homem honesto e sempre manteve uma posição digna. Tinha a boca em péssimo estado. Os dentes estavam já sem as coroas e resolveu arrancar as raízes que o faziam sofrer muito. Sem anestesia, o Tralheira enterrava as pontas da turquês nas gengivas doridas. Os gritos do Felicíssimo ouviam-se por todo o Campo. Foi horrível o que suportou. E inutilmente, por perversidade de Esmeraldo Pais Prata, pois, quando anos mais tarde abandonou o Campo, verificou-se que dispunha de ampolas de novocaína, 134 anestésico indispensável a qualquér dentista ao extrair um dente.

Porque Esmeraldo Pais Prata era também estomatologista e sempre que queriamos tratar dos dentes tínhamos de nos inscrever e aguardar o dia em que trouxesse todos os seus instrumentos. Além de médico do Campo, era delegado de saúde e administrador do concelho do Tarrafal. Por todos estes cargos recebia boas remunerações e neles se manteve durante várias comissões de serviço. Tinha como primo Mário Pais de Sousa, então ministro do Interior. Era natural, tal como Salazar, de Santa Comba Dão. Atacar o regime fascista, como nós fazíamos, era abalar o estado da sua prosperidade. O guarda à entrada do Campo pegava num ferro e batia num pedaço de carril suspenso de um arame ferrugento. As pancadas anunciavam a chegada do médico para a consulta. Esmeraldo Pais Prata caminhava com passos lentos, de olhos no chão, muito pensativo. Atravessava a pequena passarela sobre a vala, passava o portão já aberto e seguia para o posto clínico, que lhe ficava em frente, no outro lado do rectângulo ao campo. Chegava ao posto clínico, um pequeno pavilhão de paredes caiadas a ocre e janelas em cantaria vermelha. Entrava no gabinete, arrastava as grandes botas pelo cimento e sentava-se à sua secretária. O enfermeiro oficial do Campo, cabo-verdiano, o Júlio, seguia-o e ficava de pé a contemplar o Tralheira, sentado, taciturno, a fumar um cigarro. Tudo caía em silêncio. Ouviam-se zumbir as moscas. Nós esperávamos que a consulta começasse. 135 A biliosa fizera já as suas vítimas. Sentíamo-nos inquietos. Quem seria o próximo? E víamo-nos doentes, à morte, já nos tiravam as medidas, já uma mesa do refeitório iria seguir para a carpintaria e pelo Campo voltariam a ouvir-se as serras, as plainas e os martelos a fazerem o caixão. Porque se a biliosa fosse anúrica não haveria qualquer esperança. Ficaríamos na Mitra, de onde passaríamos à enfermaria, última escala antes do cemitério. Dávamos o nome de Mitra ao depósito de doentes. Era um barracão onde chegaram a estar quarenta homens, em camas encostadas umas às outras, dispostas em duas filas com um estreito intervalo entre elas. Não tinham mosquiteiros. Lá dentro, com os suores das sezões que encharcavam lençóis e colchões, com os vómitos de bílis, com as urinas, o ar era denso, azedo, cheirava a couves fermentadas, a imundície, a doença e a morte. Ouviam-se gemidos, as vozes fracas dos que deliravam, viam-se cabeças descarnadas, com uma pele cor de limão, que rolavam sobre os travesseiros e eram já máscaras de morte. Vivíamos no receio de que uma manhä urinássemos sangue, que a urina saísse negra. Iniciava-se então um ciclo quase sempre sem regresso. Era a Mitra, os purgantes, os clisteres, todas as tentativas para que o doente não deixasse de urinar. Quando não se urinava era a morte e mais uma certidão de óbito para contentamento do Tralheira. Esperávamos a consulta. Rangia a porta do gabinete do médico, na abertura víamos a bata branca do Virgílio de Sousa, que sempre acompanhava as; consultas e em quem confiávamos como bom profissional. - O primeiro para a consulta. Entrávamos. 136 - Então que temos? Era a inevitável pergunta do Tralheira. - Senhor doutor, sinto-me mal. Dói-me o fígado. Estou doente, senhor doutor. Seis anos a comer este rancho. - Sim, sim - interrompia Esmeraldo Pais Prata. - Vamos ver isso.

Calava-se e ficava em grandes meditações. Virgílio de Sousa esperava, corria os olhos pela secretária do médico, via mais uma vez o termómetro no seu tubo de cartão, o grande livro de registo dos diagnósticos e prescrições, e acabava por tossir para acordar o Tralheira. - O senhor doutor vai estudar o caso. - Sim, é isso... Vou estudar o seu caso. E o doente saía. - Outro! - chamava o Virgílio de Sousa. - Então que temos Era um caso de tuberculose. - Está tuberculoso? Tenho muita pena. Vou estudar o seu caso. Vou, sim... Junto da porta, sabendo que a consulta estava terminada, Virgílio de Sousa chamava: - Outro! - Então que temos? O doente queixava-se. - O senhor tem dores? - Sim, senhor doutor. - Evacua bem? - Não, senhor doutor. Caía em novos pensamentos, batia com o lápis no tampo da secretária e parecia em grande esforço para estabelecer o diagnóstico. Por fim, chegava a prescrição: - Dez gramas de sulfato... Virgílio de Sousa abria o livro dos receituários, escrevia o nome do doente, a receita, e recomendava que passasse pela enfermaria para levar o remédio receitado pelo senhor doutor. 137 - Mas, senhor doutor . . - insistia o doente - eu queixo-me... Era inútil, e Virgílio de Sousa da à porta. Outro! O doente que entrava sofria do coração. - Sim, sim, é cardíaco... Pois, é cardíaco... Vou estudar o seu caso. O doente saía. - Outro! Mas também podia acontecer visitar-nos na frigideira. Olhava em volta, via as paredes soturnas, sentia aquele cheiro do latão e respondia distraidamente, sem interesse, com pressa de sair dali. - Não quer comer? Assim é pior! É pior, acredite! O doente queixava-se, mas o Tralheira continuava com os olhos num ponto que particularmente o parecia interessar. - Não, não posso fazer nada. E já da a sair quando se voltou e apontou ao guarda a parede ao fundo da frigideira. - Mandem tirar aquela teia da aranha que ali está. Eram assim as consultas de Esmeraldo Pais Prata. Quando o doutor Manuel Baptista dos Reis chegou ao Campo, depois de se ter batido em Espanha contra o fascismo e conhecer em França o campo de concentração de Argelés, já nós tínhamos vivido os tempos da "brigada brava". Os espancamentos, os castigos eram menos frequentes. O abandono à doença sem qualquer assistência médica já não era completo, nem já Esmeraldo Pais Prata afirmava ter vindo para ali apenas para pôr a sua assinatura nas certidões de óbito. 138 A ruptura do campo imperialista originado pelo pacto germano-soviético, a confiança a perder-se no milénio fascista, a propaganda da BBC escutada pelos carcereiros, abalara-o. Já não ameaçava com tiros na cabeça, já se entregava a

simulacros de consulta médica e de tratamento. Do mesmo modo, a repressão no Campo abrandara. Na farmácia já havia quinino, embora na forma injectável, a de ministração mais dolorosa. E outros medicamentos para receituário do Tralheira, com a água do Chambão como excipiente. As camas já estavam protegidas com mosquiteiros feitos com a gaze enviada pelos nossos familiares. Contudo, as condições para uma eficaz assistência médica não se tinham alterado. Sem análises, sem raios X, toda a enfermidade que exigisse internamento hospitalar ou intervenção cirúrgica só podia significar a morte. De três tuberculoses renais que no Campo tinham sido diagnosticadas, só uma se curou. Mas porque entretanto a guerra chegou ao seu termo e o doente foi posto em liberdade a tempo de ainda poder ser operado em Lisboa. A intervenção cirúrgica era então a única possibilidade de cura para a tuberculose renal. E se foi possível o tratamento de um caso de mal de Pott foi por se ter improvisado um colete de gesso, feito de duas partes ajustáveis, fixadas com correias. Para se conseguir o gesso, quanta luta e sacrifício! Diziam-nos não o terem. Mas sabíamos, por um camarada que trabalhava no armazém, haver por lá gesso reservado para estuques em casa do director. Tudo isto originou que o Dr. Manuel Baptista dos Reis fosse castigado com vinte dias de frigideira, por se negar a dizer como obtivera a informação. 139 Nunca até aí veio ao Campo um médico especialista, nunca se deu a transferência de qualquer doente para hospital ou centro clínico onde o seu caso pudesse ser estudado, diagnosticado e tratado. Ao chegar ao Campo, embora como preso, o Dr. Manuel Baptista dos Reis apresentou-se a Esmeraldo Pais Prata para lhe oferecer o seu auxílio como médico. Foi autorizado a prestar serviço e assistia às consultas. Apresentava ao Tralheira os casos de doença e cautelosamente sugeria-lhe a medicação a prescrever. As biliosas tinham morto já vinte camaradas, e o Dr. Manuel Baptista dos Reis sabia existir um medicamento novo que as poderia evitar. Pouco antes do começo da guerra de 1939 lançava a Bayer no mercado mundial a Atebrina, um novo antipalúdico, de que mantinha o exclusivo de fabrico. Os ingleses e americanos, que os japoneses, ao ocuparem as ilhas da Malásia, tinham impedido de chegar às suas fontes de quinino, viram-se forçados a fabricar a Atebrina, para a fornecerem aos seus exércitos em campanha na Asia e em África, zonas de paludismo. Ora, o amplo consumo que do produto se fazia permitiu provar que não sobrevinham biliosas quando a malária era tratada com a Atebrina. A febre biliosa hemoglobinúrica era uma gravíssima sequela do paludismo tratado pelo quinino e matava mesmo nas melhores condições de assistência médica, o que de modo algum correspondia à realidade do Campo. Com a Atebrina não se verificavam biliosas. Ninguém no Tarrafal estava a par deste facto. Assim, o fascismo, ao prender Manuel Baptista dos Reis e ao enviá-lo para o campo de concentração, fez involuntariamente o melhor que poderia fazer por nós, antifascistas, ali encerrados. 140 E, embora no Campo o Dr. Manuel Baptista dos Reis tivesse uma função subalterna - só Esmeraldo Pais Prata o reconhecia como médico -, embora sugerisse tratamentos durante as consultas e fosse depois prestar serviço de enfermagem juntamente com Virgílio de Sousa, embora tivesse enfrentado muitas dificuldades, a sua campanha no sentido de se conseguir a Atebrina teve por fim êxito.

E certo que nunca este produto fez parte do formulário do Campo, mas chegou através dos nossos familiares e depois que a começámos a tomar foram menos frequentes os casos de biliosa. Hoje, a biliosa é um mal do passado. A Atebrina está esquecida. Novos medicamentos nascem, mais eficazes, com menos efeitos secundários. Foi substituída pela Cloroquina e outros produtos. Foi ainda em nome do Dr. Manuel Baptista dos Reis que decidimos apresentar à direcção do Campo uma exposição acerca das condições sanitárias existentes. Esmeraldo Pais Prata, apesar de se opor e até de nos ameaçar, viu-se forçado a entregá-la ao capitão Filipe de Barros. Nada conseguimos a não ser colocá-lo na impossibilidade de alegar ignorância. Quanto ao Dr. Manuel Baptista dos Reis foi castigado com a frigideira e proibido de prestar assistência na Mitra. Pouco tempo depois voltava a acompanhar o Tralheira nas suas consultas. Mas o tempo passava e nas frentes de batalha da Europa viviam-se acontecimentos que não eram de molde a encorajar os fascistas. O Tralheira modificava-se. Francisco Miguel recusara-se a cumprir uma ordem do director e fora castigado com vinte dias de frigideira. Negou-se alegando as más consequências que teria para a sua saúde. As suas razões não foram atendidas e, cumprido o castigo, saía, mas 141 a ordem era renovada. Novamente se recusava a cumpri-la e voltava à frigideira por novo período de vinte dias. Assim tinham decorrido quase cem dias. A sua vida estava em perigo. Foi apresentada a questão a Esmeraldo Pais Prata. Que não. Que era assunto do senhor director e que o senhor director por razões de prestígio não cederia. Respondemos-lhe que, como médico, sabendo estar uma vida em perigo, era seu dever mandar suspender o castigo e internar Francisco Miguel na enfermaria. Se o não fizesse, as consequências motivadas pela sua recusa seriam da sua responsabilidade. E o Tralheira cedeu. Na frente russa, os nazis começavam a bater em retirada, e Esmeraldo Pais Prata, que afinal não tinha mijado o medo, receava por si. Bem se recordava que não recusara carne de porco com triquinose destinada ao rancho, que dera como aptos para trabalhos extremamente pesados homens depauperados pelas febres e por muitos e muitos dias de frigideira, que não queria deixar-nos ferver a água que sabia estar inquinada, que nos deixara morrer sem qualquer assistência durante o período agudo, que não requisitara quinino, que não nos entregara os medicamentos que nos podiam curar, que quando pedíamos soro fisiológico para camaradas a morrer com biliosas nos dizia que o fôssemos buscar ao mar, por ser igualmente um composto de água e sal, que nunca escondera o seu ódio por nós nem a sua alegria ao passar certidões de óbito, pois nunca ali fora médico para curar, mas médico para matar. E certamente recordaria alguns que entre nós tinham morrido. Como Fernando Alcobia. Fernando Alcobia passara muitas vezes pela frigideira. Pela primeira vez em Outubro de 1938. E a 142 sua saúde sofreu o primeiro abalo. Foi depois a brigada brava, de onde certa vez o trouxeram em braços. Numa outra altura meteram-no na frigideira com um abcesso no ouvido. Passou toda uma noite com dores agudas a pedir a vinda do médico. Não veio o Tralheira. Queriam que trabalhasse e não o podia fazer e toda uma manhã ficou sentado numa pedra gemendo com dores. De volta ao campo, levaram-no para a frigideira e ali esteve vinte dias, sempre com um abcesso, sempre sem que Esmeraldo Pais Prata o tratasse. Trabalho, frigideira, frigideira, trabalho, foi o que Fernando Alcobia teve de sofrer até 15 de Dezembro, quando adoeceu com uma

biliosa. O estado de fraqueza em que se encontrava quebrou-lhe todas as resistências à doença. Esmeraldo Pais Prata veio enfim vê-lo. Estava na agonia. Acendeu uma lanterna e os olhos de Fernando Alcobia não reagiram. A morte já não tardaria muito. Fernando Alcobia tinha vinte e quatro anos e da morrer assassinado. - Se estiver pior amanhä, mandem-me chamar. - E que tratamento lhe devo fazer, senhor doutor? - perguntou Virgílio de Sousa, que só depois de muito insistir conseguira que o Tralheira fosse ver o doente. - Tratamento? Sim! Olhe, ponha-lhe umas compressas de água fria na testa. Fernando Alcobia morreu pelas dez da manhã. Morria muito jovem, devido à frigideira, ao trabalho da "brigada brava", às mãos daqueles que o fizeram sofrer tudo isto e tudo lhe negaram. Esmeraldo Pais Prata está em liberdade. Foi preso em 1975, em São Joaninho, e aguardava julgamento numa pequena prisão de Santa Comba Dão, à ordem do Tribunal de Coimbra, quando fascistas assaltaram a prisão e exigiram 143 à GNR que o libertasse. E a GNR, ali comandada por um tenente tão fascista como os assaltantes da cadeia, entregou o Tralheira. Dizia-se muito bem de Esmeraldo Pais Prata, que dava consultas gratuitas aos pobres, que se levantava de noite para ir ver os seus doentes, que lhes fornecia os remédios... Mas não vemos também como nos tribunais são louvados os agentes da PIDE, que torturaram e mataram? Não vemos ser-lhes concedida a liberdade? 144 SEGUNDA FUGA FALHADA A 17 de Novembro de 1937, Manuel dos Reis abandonou o Campo, sem ter completado os dois anos de comissão de serviço. Era demitido, acusado de irregularidades de administração. O capitão José Júlio da Silva substituiu-o. Antes da partida do Manuel dos Reis tínhamos feito uma reunião para análise da nossa situação prisional e das medidas de defesa a tomar. Levados os resultados da discussão a todas as barracas, viu, a Comissão do Campo ser necessária uma entrevista com o director. E foi já com José Júlio da Silva que, depois de muito se insistir, conseguiu ser recebida. As nossas reivindicações foram apresentadas com serenidade, mas firmemente. Se não fossem aceites, então... - Morrer por morrer, preferimos outra forma mais de acordo com o nosso direito de presos e a dignidade de homens. José Júlio da Silva não deixava de ser um carcereiro, mas não tinha por nós aquele ódio que caracterizava Manuel dos Reis. Mostrava-se receptivo aos problemas que lhe colocávamos e tentava resolvê-los. Se não lhe era possível, explicava-nos as razões porque não o podia fazer. As nossas reivindicações foram parcialmente satisfeitas. A Farmácia acabou por ser abastecida 145 com quinino injectável. Esmeraldo Pais Prata disfarçou um pouco mais o seu ódio e passou a vir ao Campo com mais frequência. As dietas melhoraram, porém o leite era tão fraco que o densímetro mergulhava até ao fundo da vasilha. Foi levantada a proibição de escrever e receber cartas. As encomendas que se amontoavam na secretaria foram-nos entregues e com elas os remédios que familiares e amigos nos tinham enviado. E ainda muitos metros de tule para os mosquiteiros.

Na alimentação igualmente beneficiámos. Aliás, ainda no tempo do Manuel dos Reis e quando ele se ausentava, José Júlio da Silva procurava melhorar o rancho. E tivemos certa vez um almoço que entre nós ficou conhecido pelo "quatrocentos". Estávamos no Tarrafal havia já meses e nem uma só vez tínhamos comido bacalhau cozido com batatas. Era caro, dizia-nos. Era uma refeição para quatrocentos escudos. Coube a cada um de nós cem gramas de bacalhau, meio quilo de batatas e vinte milímetros de azeite, que distribuímos com a ajuda de uma pequena medida de lata, fabricada por nós. O capitão José Júlio da Silva forneceu-nos esta refeição, mas nele sentíamos um certo embaraço. Sabia que a sua "generosidade" iria ser severamente censurada por Manuel dos Reis. Propusemos-lhe que fôssemos nós a preparar o rancho, e concordou. Nem todos estavam de acordo. Mas, se de qualquer modo forçoso era trabalhar, não seria então melhor fazê-lo em nosso benefício, vigiando pela higiene da cozinha, pela quantidade e qualidade dos géneros? Significava igualmente a água fervida na devida altura. Seríamos nós a abater as reses, o que nos permitia verificar se a carne estava em condições. 146 Além disso, para nós que continuávamos a sentir aquela fome instintiva de vida a querer sobreviver, ter a cozinha à nossa guarda só podia ser uma vantagem. Melhor podíamos cuidar da nossa alimentação numa altura em que tínhamos de nos recompor, de criar forças para resistir. A vontade de viver fazia-nos pensar muito em comida. A vida, mesmo no Campo, voltava a ganhar sabor, a ser fonte de alegria. Recordávamos episódios passados, vividos. - Que fazias se estivesses em liberdade? E, com a resolução de voltar à luta, igualmente nos ocorriam outros pensamentos, ligados com a nossa vontade de viver. Imaginávamos por exemplo, um passeio a Sintra, pela tarde, a regalar os olhos em todo aquele arvoredo, passear à sombra de grandes árvores, colar a boca a uma bica saída da rocha e beber água muito pura e fresca, ir depois a algum restaurante à beira da estrada, num sítio bonito, e comer peixe frito com uma saladinha de alface... Aqui levantavam-se sempre várias e saborosas sugestões, a saudade por petiscos havia muito não saboreados. Sentávamo-nos a conversar de tudo isto e um dos lugares preferidos era a cama do camarada Oliver Bártolo, já conhecida pela "cama do Pirão", o nome de um dos cães nossos amigos, e tão desengonçada com o peso de tantos camaradas que nela se sentavam. Não nos abandonava a esperança, nem conseguiam abater-nos. Enquanto nos revezávamos na escalha do arroz, fazíamos "campeonatos de bilhar". As bolas eram de madeira, feitas por João Dinis. Jogávamos nas mesas onde comíamos e com tal entusiasmo que nos esquecíamos do arroz. 147 Não, não nos abandonava a alegria. Foi ela que nos levou a fazer aquela célebre pega de caras. Éramos nós a abater o gado. Como magarefes tinham sido destacados o Amado dos Santos, o Joaquim Ribeiro e o Josué Romão. Os animais que entravam no Campo quase sempre eram mansos, mas, certa vez, apareceu um de porte orgulhoso, a escavar a terra com a pata, a baixar os cornos disposto a marrar. Entrou o portão, demos uns puxões à corda que o segurava e aí veio ele, em corrida, para investir contra as silhuetas que se recortavam negras na luz forte do Sol. - Eh touro! - gritámos nós de longe, com passos pimpões de bons pegadores e olhos postos à cautela em abrigo para onde nos safarmos. O animal investia, mas o vulto que os cornos lhe buscavam fugia-lhe e logo outra sombra lhe aparecia na frente, mais distante. - Eh touro!

Acabou por se aborrecer o bicho e deixou de investir. Ficou parado, bem firme nas pernas, a gozar o sol e a sacudir as moscas com a cauda. - Eh touro! Nada! Não se mexia. E foi então que um se lembrou: - Ó Josué, tu que és do Ribatejo... Pega-o de caras. Nós cá fazemos o resto! Mas o camarada não parecia sentir tão grande confiança e hesitava. - Anda lá, Josué! - animávamos nós. Estava hesitante, mas de repente decidiu-se, avançou, deu a corrida, esticou o peito, bateu palmas e... o animal arrancou. Só teve tempo de abrir os braços e de agarrar. Corremos à cernelha, ao rabo... e a pega estava feita. Esta alegria não nos perdoavam os guardas e começavam a murmurar contra o capitão José 148 Júlio da Silva, que nos deixava fazer quanto queríamos. Mas não, o director era apenas um carcereiro que nos concedia o que lhe parecia ser justo. Reconhecia, por exemplo, que o transporte da água era trabalho pesado e tornava-o mais suave. Com Manuel dos Reis muitas vezes nos deitávamos sem podermos lavar os pés sujos de terra. Fazíamos várias caminhadas por dia, mas tínhamos de a entregar na cozinha, mesmo quando dela já não havia necessidade. Ficávamos apenas com uma ou duas latas por barraca, o que praticamente não dava para nada. O capitão Jocé Júlio da Silva mandou fazer um carro e comprou um boi para o puxar. E já não nos faltava a água. Deixámos de trabalhar na pedreira. Fazíamos o despejo dos latöes das latrinas e o trabalho na horta, ïamos muito cedo, antes do café. Voltávamos para comer, íamos trabalhar novamente e pelas nove da manhä estávamos já no Campo. E isto era muito mais agradável e evitava-nos aquele sol africano. Assim nos sobrava muito tempo para ler e estudar. Porque os livros que nos tinham sido apreendidos em Agosto voltaram às nossas mãos. Quase todos, que a leitura de autores como Zola, Górki, Dostoievski não nos foi permitido. Voltámos a poder fazer requisições de compras individuais. Eram entregues na secretaria. Quando o director ou o subchefe Ferreira iam à Cidade da Praia traziam o que pedíamos e nos era permitido, com a vantagem de ser mais barato que na Vila. Fora também um problema que o capitão José Júlio da Silva resolvera quase inteiramente. Os comerciantes enviavam-nos sempre muitos artigos que não tínhamos requisitado. Insistiam que os trouxessem para o Campo. 149 - Podem interessar aos presos. - E se não interessarem? - perguntava o subchefe Ferreira. - Se não interessarem, eles os devolverão. E foi o próprio José Júlio da Silva quem confessou a um dos nossos camaradas: - Os senhores têm todo o crédito na Praia, mas à Colónia não fiam cinco réis. Pagávamos contra a entrega da mercadoria. Mas já não dispúnhamos do dinheiro que as nossas famílias nos enviavam. José Júlio da Silva não anulou a manobra de Manuel dos Reis que nos abria contas-correntes na cantina. Mandou imprimir cédulas apenas para uso no Campo. Eram em papel branco impressas a vermelho. Tinham os valores de meio, um, dois, cinco, ceis e vinte e cinco tostões e de cinco, dez, vinte e cinquenta escudos. No verso eram carimbados: "Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado-Colónia Penal de Cabo Verde" e, numa outra edição, "Colónia Penal - Cabo Verde". Com estas cédulas pretendiam facilitar as compras. O preço dos produtos pedidos era pago por nós com as cédulas que nos entregavam dentro do mesmo valor das

importâncias que nos chegavam da Metrópole; depois, a direcção do Campo efectuava o pagamento aos fornecedores com o nosso dinheiro em depósito. Havia porém uma vantagem exclusivamente do interesse dos carcereiros. Aquelas cédulas fora do Campo nada valiam, não seriam aceites por ninguém, o que evidentemente era um obstáculo para qualquer fuga. E uma outra, essa fraudulenta, pois muitos anos mais tarde, quando fomos libertados e tiveram de nos devolver o dinheiro depositado, não se encontrou a moeda portuguesa, mas o dinheiro emitido pelo Banco Nacional Ultramarino para Cabo Verde. 150 As condiçöes de vida do Campo tinham realmente melhorado e isto não agradou à maioria dos guardas e a muitos oficiais da "Companhia Indígena". Censuravam a direcção de José Júlio da Silva. - Não presta para lidar com presos políticos. Deixa fazer o que eles querem. E não é gente que se poupe! Ou eles ou nós! Era preciso ter mão dura, fazer-nos trabalhar ao sol, carregar-nos com as pedras da pedreira... Mas o capitão José Júlio da Silva não manifestava por nós o mesmo ódio. Oficial do quadro auxiliar da Administração Militar, podia ter roubado e não o fez. É bem natural que a hostilidade provocada por ele entre guardas e oficiais tivesse origem na inveja daqueles que, se ocupassem o seu lugar, não deixariam de meter as mãos no saco azul. Todas estas críticas e mau ambiente o azedavam. Nem sempre nos atendia bem. Com as mãos sobre o ventre gordo acolhia-nos com o humor de momento, muitas vezes influenciado pelos oficiais que o queriam ver usar de maior dureza connosco. Recebia-nos com impaciência quando lhe íamos colocar algum problema de que esperávamos solução. Se reconhecia o pedido como justo, não via como o pudesse recusar. Mas, acedendo, bem sabia o que guardas e oficiais iriam dizer. - É um banana! As contas dos produtos que comprávamos eram feitas com um escrúpulo que pretendia afastar qualquer suspeita sobre a sua honestidade. Neste aspecto era particularmente susceptível. E o mesmo acontecia com o subchefe Ferreira. O descontentamento dos oficiais deve ter dado origem a relatórios e foi certamente o que explicou nova visita de Antão Nogueira. 151 Antão Nogueira, que de quando em quando ia até África em turismo, mas com ajudas de custo, chegou a 12 de Março. A 16 esteve no Campo e tudo inspeccionou. As nossas roupas, calçado e enxergas estavam extremamente estragadas. Mais parecíamos pobres andrajosos. Fáltava roupa. Muita tivera de ser queimada. Estava podre ou manchada com vómitos de bílis. Mas Antão Nogueira certamente não vinha averiguar se as condições do Campo eram razoáveis. Trazia consigo o capitão João da Silva, e este, como iríamos verificar, só estava interessado em nos tornar a vida bem mais dura e difícil. Era mais natural que Antão Nogueira viesse investigar as razões por que não se verificavam mais óbitos. Tinham morrido havia pouco dois camaradas: Francisco Esteves e Arnaldo Simões Januário. Embora a farmácia estivesse já abastecida com quinino injectável para tratamento da malária, o Tarrafal continuava a fazer mortes. De 17 de Novembro de 1937 a 20 de Outubro de 1938, períado em que o capitão José Júlio da Silva foi director, foram atacadas por biliosas Hermínio Martins, Boaventura Gonçalves, Carlos Sovela, Alfredo Caldeira, Américo de Sousa e outros, e alguns mais de uma vez, como foi o caso de Herminio Martins. Mas, apesar de tudo, a vida no Campo era melhor que no tempo de Manuel dos Reis. Pelo Natal, fomos autorizados a compras extraordinárias. E cantámos. E houve alegria. E, ao lembrarmo-nos dos nossos, confortava-nos saber que àquela mesma hora todos nós estaríamos presentes nas suas recordações, e na consoada muitos

olhos amigos se voltariam para a cadeira que à mesa habitualmente ocupávamos. Haveria brindes para que a saúde 152 não nos abandonasse, para que a liberdade viesse bem cedo. Estávamos confiantes. Apesar de Hitler estar no Poder, de Mussolini ter conquistado a Etiópia e ameaçar as democracias com os seus quatro milhões de baionetas, de o socialista Léon Blum trair em França os republicanos espanhóis. Sabíamos que viriam maus tempos para todos os democratas, mas estávamos confiantes. A grande fortaleza do socialismo, a União Soviética, continuava firme e vigilante. Nela confiávamos. E também brindámos, nesse Natal de 1937, pelas forças da paz, da justiça entre os homens. Estávamos no cativeiro, mas não havia cárcere nem carcereiro capaz de nos arrancar a liberdade de brindar pelo triunfo da Democracia. Celebrámos o primeiro de Maio, o 7 de Novembro. No Campo, os carcereiros festejavam o 28 de Maio. Na secretaria, de onde nos chegava o bater das palmas aos discursos que se faziam, suspenderam os retratos de Carmona e Salazar. Com a presença dos guardas e de Almeida Júnior, que pela mão dos carcereiros entrara no bom caminho e se tornara chefe do armazém de géneros. Um outro preso virado para o fascismo era o Canelas. Viria a ser o chefe da cozinha para ali pôr e dispor, dar e tirar dietas segundo as suas simpatias e embirrações. Era um bandalho, um intriguista, um denunciante. Chegou a coar a sopa dos que estavam na frigideira, sem que os carcereiros lho pedissem, apenas por ódio; para tornar ainda mais fraca uma alimentação que já era pobre. Tomás Rato e Fernando Vicente, por lhe terem chamado canalha, foram castigados com oito dias de frigideira. E denunciou muitos outros que igualmente sofreram castigos. 153 Houve infelizmente presos sabujos com os guardas. Pretendiam demonstrar que nada tinham a ver com os comunistas e os anarco-sindicalistas. Logo nos primeiros meses, ficaram alguns fora da cerca de arame farpado. Ali estavam, numa barraca, naquilo a que chamámos a "aldeia dos pinguins", e sempre observávamos com repugnância as suas curvaturas de espinha para os guardas que sorriam envaidecidos. Tudo faziam para obter a liberdade, nenhuma vileza lhes parecia indigna. Colaboravam com os carcereiros, denunciavam. E por vezes conseguiam. Vieira Marques, assim se chamava um deles, regressou ao Continente. A vida no Campo seguia com José Júlio da Silva sem grandes sobressaltos. Passámos para as casernas em pedra e cal. Foi depois inaugurada a Mitra, abriram-se as oficinas, e camaradas profissionais de serralharia, de carpintaria, alfaiataria, sapataria nelas começaram a trabalhar. Junto da vala, a cerca de arame farpado foi reforçada com grossos tubos de ferro, solidamente fixados a blocos de cimento, e o campo adquiriu então a configuração definitiva que já descrevemos. Abriam-se os regos onde seriam colocados os cabos eléctricos. Fora construía-se a central. Passou a haver uma formatura pelas oito da manhä para se efectuar a contagem, o que veio criar embaraços a certos guardas mais boçais. As contas por vezes não lhes batiam certas. - Então, isso acaba ou não? - perguntava ao guarda Buque o subchefe Ferreira, já impaciente. - São setenta e dois pares e meio! - Mas quantos são ao todo? - São setenta e dois pares e meio! - teimava o guarda. - Mas quais pares! Que raio de maneira de contar! Conte lá como deve ser e diga-me o número certo. 154

Vermelho com aquela vergonha por que estava a passar à nossa frente, o Buque tanto contava que quase suava com o esforço. - Então? - São cento e... - São cento e quarenta e cinco homens! Uma coisa tão fácil! Diabo de azelha você me saiu! Eram assim os guardas. De quando em quando o clima do Tarrafal também os matava. O Manuel Henriques, a quem chamávamos o Manuel Padeiro, que chegou a ser detestado pelos próprios colegas, pois deles se queixava a Manuel dos Reis, veio a morrer a bordo do Guiné, quando regressava à Metrópole. A tripulação do navio, que parecia estar tão informada acerca daquele passageiro, não se preocupou muito com tratamentos, e quando morreu e o lançaram pela borda levava lastro duplo às pernas. Eram homens ignorantes e maus que nos odiavam. Todos os pretextos serviam para provocações e queixas que nos levassem à frigideira. E José Júlio da Silva não era para nós tão feroz quanto desejariam. - É um banana! E entendiam dever contrariar-nos, como o José Maria que, estúpido e vingativo, nos perseguia. - Ouça lá, porque não vai por ali com o carro? - E para que hei-de dar uma volta tão grande? - era a resposta. - Comigo, enganam-se. Comigo, vocês não fazem o que querem. Era a alusão indirecta ao director, de quem menos ainda suportaram a atitude tolerante quando de uma segunda tentativa de fuga. Foi a 2 de Agosto, precisamente um ano depois da frustrada evasão colectiva. 155 Nessa noite, quando nos deitámos, houve gracejos. - Lembram-se? Faz hoje um ano... O tempo fizera com que muitas coisas daquela grande cavalgada já nos fizessem rir, como aquele camarada que enfiara uma terrina na cabeça como capacete que o defendesse das balas ou um outro que se atirara a eito para o bidão da água. Dormíamos, e eis que novamente na noite estrondearam tiros de espingarda e mais uma vez se ouviu uma metralhadora. Acordámos em sobressalto. - Deve ser um pesadelo! - ouvimos nós de um camarada. Mas não. Os gritos dos guardas não tardaram. - Todos cá para fora! Formatura! Formámos. José Júlio da Silva, com a sua barriga e um dedo metido no casaco entre dois botões, não empunhava pistola e falava serenamente: - Não vou exercer quaisquer represálias, pois penso que todo o preso tem o direito de tentar a fuga. Mas, como director desta colónia, certamente me reconhecem o dever de a evitar. E, como não pretendo o castigo de inocentes, espero que os comprometidos na tentativa se acusem, arcando com a responsabilidade dos seus actos. As sentinelas que tinham bradado às armas disseram ter visto três homens. Apresentaram-se quatro: Manuel Alpedrinha, João Borda, Oliver Bártolo e Gilberto Oliveira. José Júlio da Silva afirmou-se satisfeito com a atitude tomada e mandou dispersar. E só no dia seguinte se procedeu a um breve interrogatório na secretaria, mas sem insultos nem espancamentos. Foram castigados com a frigideira mas por poucos dias. Não estiveram a pão e água e foi-lhes permitido levar os colchões. 156

Mas as barracas que antes ficavam abertas passaram a ser fechadas. Ao toque de recolher, os guardas percorriam as casernas, faziam a contagem e fechavam depois as portas a cadeado. Dentro, pendurado da porta, ficava um balde fabricado na serralharia, para servir de urinol. E, para justificar estas e outras medidas, o director mandou afixar no refeitório: Tendo-se dado, na noite de 2 para 3 de Agosto, uma tentativa de fuga, foi grato à Direcção verificar a maneira leal como se apresentaram, como culpados, quatro reclusos. Contudo não é crivel que a evasão dos presos que se dizem culpados não fosse conhecida ou, ainda mais, preparada pela maioria dos presos. A fuga de quatro individuos isolados não tem nenhuma possibilidade de êxito, em virtude de estarmos numa ilha relativamente pequena e com escassos meios de transporte. Tudo leva a crer que era uma fuga preparada em grande escala, com todas as consequências de uma fuga de muitos individuos que se vêem livres e podem dar vazão a todos os sentimentos de represália. É convicção da Direcção que alguns reclusos desconheciam completamente o que se estava a dar. Contudo, é impossivel destrinçar culpados e inocentes. Pelo que fica dito, não pode a Direcção deixar de punir o Campo e, como não dispõe de outro meio senão cercear regalias 157 já concedidas, determina que, até se esclarecer completamente o caso, se observe o seguinte acerca da correspondência: os presos só podem escrever uma carta de meia folha ou um postal em cada viagem de carreira normal para esta ilha. Logo que se esclareça o caso, passar-se-á ao regime anterior. Colónia Penal, 8 de Agosto de 1938. O director José Júlio da Silva Capitão Este castigo veio desmentir a afirmação de que não exercia represálias. José Júlio da Silva não se adaptou ao cargo. Terminada a sua comissão de serviço não a quis renovar. - Não sirvo para isto.; Falava-se já de João da Silva, e o subchefe Ferreira dizia-nos com vingativa satisfação: - Com esse que aí vem não fazem vocês o que querem. Agora é que as vão amargar. Sim, tempos bem difíceis iam chegar. 158 O FARAÓ Por Outubro de 1938 tomava posse o capitão João da Silva. Com ele vinham Duarte Osório Fernandes, Henrique de Sá e Seixas e os guardas Epifânio Mateus, Travessa e Carlos Silva. João da Silva era o homem da repressão organizada. Tinha uma teoria para nos regenerar, simples e feroz. Ou renegávamos e nos voltávamos para o Estado Novo ou faria do Campo um inferno. O capitão Osório, como subdirector, ameaçava-nos:

- Um dia entro no Campo e, com uma metralhadora, varro-os à bala! O Seixas, como chefe dos guardas, repetia o que já ouvíramos a Manuel dos Arames: - Quem vem para o Tarrafal vem para morrer! João da Silva trazia concepções tendentes a transformar o Campo à imagem dos campos de concentração nazis, que visitara e observara. No entanto, dizia-nos vir na disposição de melhorar as nossas condições de vida. Os trabalhos ao sol terminariam, a alimentação seria excelente, escutaria todas as nossas reclamações. - De futuro, a Direcção e os presos poderão vir a ser uma grande e unida família. Não quero que lá fora se diga que os maltratamos. Mas não perdoarei faltas de disciplina. Os regulamentos são para se cumprirem. 159 E os regulamentos determinaram que o trabalho passasse a começar às 6 e 15 da manhã, terminasse pelo sol-posto e houvesse apenas um pequeno intervalo para o almoço. A água, como sempre acontecia nos períodos mais duros, faltou-nos. O carro que o capitão José Júlio da Silva mandara fazer foi posto de parte. O boi tinha uma pequena ferida no pescoço e João da Silva entendia que devia, ser tratado e não podia fazer o transporte da água. Passámos a ser nós, mesmo doentes, a trazê-la para o Campo. Éramos vinte, e de manhä à noite carregávamos a água do Chambão. Não parávamos. De regresso ao Campo não a tínhamos nem para lavar as mãos. José Neves Amado queixou-se e logo foi castigado com uma semana de frigideira. A alimentação piorou. O Canelas foi nomeado chefe da cozinha e acabaram-se os nossos pequenos recreios no refeitório enquanto escolhíamos o arroz e a feijoca. As encomendas dos nossos familiares, que tanto contribuíam para o reforço do rancho foram reduzidas. Só podíamos receber três. Para além deste número eram apreendidas. João da Silva mandava chamar-nos. - O senhor é rico? - Não, senhor director, sou pobre. - Então como explica todas estas encomendas que lhe enviaram? Entregava três. As restantes eram apreendidas. Em sua convicção só podiam vir do Socorro Vermelho. E tudo era aberto. Papel, lápis, tinta, quanto servisse para escrever ficava retido. Escrevíamos as nossas cartas com lápis de tinta que nos obrigavam a devolver. Não o fazer era a frigideira. Os guardas vigiavam e as cartas eram- 160 lhes entregues abertas para censura. Seguiriam para os seus destinatários se não contivessem matéria subversiva. Por "matéria subversiva" entendia-se quanto dissesse respeito à realidade que se vivia no Campo. Os regulamentos ordenavam ainda que devíamos trazer o grosso casaco de caqui do uniforme e cortar o cabelo à escovinha. O uso do chapéu de palha era obrigatório. - Estas ordens são para se cumprirem. Quem não as acatasse, esperava-o a frigideira. - As ordens são sagradas! - gritava-nos o Faraó. Assim lhe chamávamos por ser o senhor absoluto daquele pequeno império. Criaram-se oficinas rudimentares de serralharia e carpintaria, de sapataria e de alfaiataria. As percentagens por depreciação de ferramenta e os orçamentos dependiam inteiramente da Direcção do Campo.

Os clientes eram raros, pouco compensadores; e a maior parte do trabalho realizado destinava-se ao Campo e ao João da Silva. Foi para a sua residência que fizemos uma mobilia, numa daquelas belas madeiras que existem na Guiné. Nada recebemos, mas o director contabilizou-a como tendo sido paga. Os trabalhos que fazíamos para fora desmentiam as calúnias dos carcereiros: - São uns vadios, uns falhados sem eira nem beira. Não sabem fazer nada. Não prestam para nada. Ora o nosso trabalho demonstrava o contrário, que éramos bons operários e tanto esta opinião acabou por se generalizar que nos procuravam para; darmos solução a problemas que os meios da ilha; não resolviam. 161 O trabalho nas oficinas só abrangia um número diminuto de presos e tinha a vantagem, para os que nela trabalhavam, de estarem abrigados do sol. Dos guardas não conseguíamos fugir. E também o Seixas por lá entrava em fúria: - Eu arranco-lhes o coração! E gritava na sua voz cava cheia de rancores: - Rebento-os à porrada se os vejo a fazer cera ou a discutir política! Na nossa maior parte trabalhávamos fora do Campo. Muitas vezes trabalho inútil. E contudo quanto não poderíamos ter feito pela ilha e pela sua gente! Podíamos ter construído bebedouros para o gado que chegava a morrer de sede. Podíamos ter erguido bairros para abrigar tantos cabo-verdianos que viviam em palhotas. Havia entre nós bons pedreiros, como Tomás Aquino, Silvério e Mateus e outros. Depois da alvorada e do café havia a formatura e a distribuição pelas diferentes brigadas. As portas das casernas eram fechadas. Só a da enfermaria ficava aberta. Eram muitos os trabalhos. O que fazíamos na pedreira era um dos mais duros. Uns arrancavam a pedra com guilhos e cunhas de ferro que iam entrando a golpes de marreta - e uma delas pesava treze quilos - outros transportavam-nas para vagonas que empurravam. Na capinagem, tínhamos de andar curvados a arrancar o capim com a enxada. E era preciso limpar grandes extensões de terreno cortando a erva rente ao solo. Ficavam-nos os rins a doer durante muitos dias. Poucos tinham já trabalhado com enxada. Havia a terraplenagem e a construção de estradas em volta do Campo. Por vezes mandavam-nos destruir o que antes tínhamos feito ou removíamos terra e pedras daqui para o levarmos para outro lado nos carros de mão. Levantámos muros, nivelámos o Campo. 162 Um dos trabalhos mais duros foi a garagem e a estrada de acesso à casa do Faraó. Foram abertas na rocha. Certos trabalhos eram manuais e particularmente pesados. Tínhamos de desentulhar a vala que rodeava o Campo. As grandes chuvadas enchiam-na das terras e pedras que arrastavam consigo. O entulho era transportado em latas para longe do Campo, até que novas chuvadas arrastassem do talude terra para a vala. Um outro trabalho de todos os anos era a capinagem dentro da cerca. Enredados entre o arame, de enxada na mão, muitas vezes nos feríamos nas farpas. Era impossível evitá-lo e o sangue corria-nos dos braços e das pernas. Mas bem mais grave era não haver no Campo soro antitetânico quando um soldado angolano que se ferira no arame farpado já ali morrera de tétano. Eram muitas as brigadas e todas elas tinham tido um chefe nomeado pela direcção. Era uma tentativa para nos dividirem, pois os camaradas nomeados, quase sempre os politicamente mais responsáveis, eram dispensados de trabalhar. Estavam ali para dirigir. Foi habilidade inútil. Nunca nos prestámos a tais manobras. João da Silva escolhia precisamente para os trabalhos mais pesados os camaradas mais combativos e conscientes. Acabou con o sistema em que nos cabia indicar quem iria participar nas brigadas. Não lhe convinha. Passaram a ser os guardas a escolher para os trabalhos mais duros aqueles que tinham a intenção de aniquilar.

Contudo, havia trabalhos que não nos desagradavam. Plantámos árvores. Papaieiras e acácias. Mas tratava-se apenas de propaganda fascista. João da Silva preparava-se para receber as autoridades máximas de Cabo Verde, que, num domingo, visitaram o Campo. 163 Mas, depois da visita do governador da, colónia, João Silva não se preocupou mais com as árvores. As papaieiras morreram antes de dar fruto e se as acácias rubras vingaram foi porque nós não as abandonámos. Um outro trabalho útil foi o belo troço de estrada que abrimos. Era o único em todo o arquipélago, onde não havia por ali mais que caminhos de pedras queimados pelo sol, descarnadas de terra pela nortada. Também construímos caminho para a água. Colocámos as chulipas e os carris por onde rolaria depois o carro que o Pinto puxaria. Mas todo o trabalho visava o nosso enfraquecimento, quebrar a resistência à malária. E a esperança dos carcereiros era de que ela nos fosse, matando um a um. E, como o trabalho parecia não chegar, não tardaram os castigos. O Seixas era bem claro: - Se estão aqui é para morrer e ou trabalham ou vão para a frigideira, onde morrem mais depressa. Para castigos havia sempre motivos. Era razão entrar numa barraca que não fosse a nossa sem pedir autorização ao guarda de serviço, ou ir à cozinha para trazer agua quente, ou quando nos demorávamos na realização de certos trabalhos e procurávamos justificar-nos, ou quando os guardas nos acusavam de respostas nenos correctas. Se nos encostávamos à parede da barraca era motivo de castigo. Tirávamos a cal com o roçar da roupa. Custódio Ferreira e Artur Trindade, porque não viram um oficial da Companhia e não tiraram os chapéus: dez dias de frigideira. 164 Na formatura, o Seixas lia as ordens de serviço: - Sua Excelência, o Senhor Director, determina e manda publicar que sejam punidos com dez dias de degredo, com ração reduzida em dias alternados os reclusos Custódio Ferreira e Artur Trindade, por não terem cumprimentado um oficial da "Companhia Indígena". O castigo era lido na presença do preso punido, que devia sair da formatura. Depois de saber o número dos dias na frigideira e as suas condições, era acompanhado por um guarda. porta tiravam-lhe o chapéu, o cinto e as botas e depois de revistado era metido na frigideira. E hoje um, amanhä dois. sempre houve gente castigada. Durante a comissão de serviço do Faraó nunca a frigideira esteve vazia. Tomás Ferreira lato, por não ter cumprimentado o guarda Velhinho, foi espancado pelo Seixas e pelo Teixeira, ficou uma noite de pé entre os arames da cerca e dali passou à frigideira, onde esteve quinze dias. Pedro Soares foi castigado com vinte dias. Adolfo Pais, por ter perdido uma peça de roupa, que aliás teve de pagar. Bento Gonçalves, por se ter negado a dar informações sobre um incidente ocorrido na sua barraca. Chamado ao João da Silva, respondeu-lhe: - O facto de ter sido nomeado pela Direcção como chefe de caserna não quer dizer que tenha de me tornar carcereiro ou bufo dos meus companheiros. A perseguição dos guardas intensificava-se. Entravam pelas barracas e, se três camaradas conversavam, queriam saber o que diziam, mandavam-nos dispersar, insultavam-nos. Forçavam os doentes a trabalhar, iam queixar-se de que não os cumprimentávamos. 165

Alguns tinham andado em Espanha como viriatos - mercenários portugueses que combateram ao lado de Franco -, outros tinham sido legionários ou da Brigada Naval, ou marginais ou vadios sem, profissão certa. Tinham-nos ódio. Rancorosos, pareciam ter sido treinados especialmente para aquela imunda tarefa. Quando nos falavam faziam-no com gestos e palavras provocadoras. E era preciso da nossa parte um grande esforço para aguentarmos as suas provocações. Nem sempre o conseguíamos. Foi o que aconteceu com Faustino de Campos. Joaquim Faustino de Campos era conhecido pelo Faustino das Fragatas. Homem robusto, tinha uma força espantosa. Naquele dia foi o Seixas quem entregou a correspondência, o que habitualmente era feito pelos guardas. Faustino de Campos sabia, como todos nós, que as nossas cartas estavam a ser queimadas e as que nos chegavam às mãos vinham tão mutiladas que nada entendiamos do que os nossos familiares nos escreviam. Vieram avisar-nos para a formatura junto do portão e vimos aparecer o Seixas apenas com cinco cartas. Era impossível que para cerca de duzentos presos apenas fosse aquele o correio. O Seixas aproximou-se e com vagares e ares divertidos foi dizendo: - Tiveram sorte. Chegaram estas cinco. E para o camarada Faustino, que havia muito andava provocando: - Tu não merecias isto... Mas, mal lhe tocou com a carta no queixo logo foi esbofeteado e com tamanha gana que cambaleou. Como não trazia arma, pois não era permitido andar-se armado dentro do Campo - não fôsse-mos nós arrancar-lhes as pistolas -, correu para 166 o guarda do portão. Estava de serviço o Cardoso que, justiça lhe seja feita; lha recusou e lhe virou as costas. Joaquim Faustino foi levado à coronhada para a frigideira e ali foi espancado por seis guardas. Resistiu-lhes enquanto pôde até ficar caído no cimento. Nunca mais o Seixas o provocou. - Aquele homem estava doido - iria dizer depois.- Tenho pena dele. Cheio de filhos! Quando as cartas me passam pelas mãos palavra que tenho dó dele! Eram constantes as provocações do Seixas. Num 28 de Maio, procedeu-se à cerimónia do, içar da bandeira. Tivemos de assistir em formatura, em sentido. Não era a bandeira que nos humilhava, mas a data. Então, da entrada do Campo, o Seixas lançou foguetes, mas inclinados, rasteiros ao chão. Vieram rebentar por cima de nós e junto dos pés, para divertimento dos guardas. Henrique Seixas viera do Porto, onde à noite entrava pelas salas para provocar os presos: - Seus cabrões, destapem lá as cabeças. Estão a ouvir, seus cobardes miseráveis! Dizia-se ter assassinado presos entre 1936 e 1938. Um dos assassinados teria sido o major Areosa Feio. Fora mandado para o Tarrafal, castigado, assim se dizia, mas na verdade apenas por se ter distinguido pela sua ferocidade, considerada um pouco exagerada em Portugal, mas de modo nenhum no Tarrafal; onde visava o nosso extermínio. E assumia realmente um ar assustador - e ridículo também - quando punha o seu crachá da Polícia e se preparava para ir buscar presos que tinham chegado à Cidade da Praia. Muito alto e forte, com umas patilhas que quase lhe chegavam à boca, de botas altas nos grandes pés - e como 167

as mãos eram também enormes chamámos-lhe o Patolas -, de capacete colonial amarelo, duas pistolas no cinto, cassetete e um molho de algemas, entrava no barco e gritava: - Onde estão os presos? Entre os passageiros, as mulheres sentiam-se assustadas e lastimavam-nos: - Pobres homens, o que eles vão sofrer! O Seixas era o melhor argumento do Faraó nas suas pretensões a "regenerar-nos". E conseguiu alguns resultados que o animavam. Antonino Francisco, depois de sair da frigideira, pediu para lhe falar. - A partir de hoje, abraço a causa nacionalista e considero Vossa Excelência como meu chefe espiritual. Estou arrependido do que fiz e pensei e aqui me tem para ser útil ao Estado Novo no que puder. Era a imundície que tinha para dizer e, a partir daí, para obter a liberdade perdeu toda a dignidade. Tornou-se denunciante, e muitos foram os camaradas castigados pelas denúncias que fez a João da Silva. O tenente Piçarra seguiu este mesmo caminho. Denunciou a organização republicana de que fazia parte dentro do Campo. Mas, quando João da Silva já não lhe encontrou utilidade, abandonou-o. Piçarra quis então fazer a greve da fome, mas não a levou a termo. Teve medo de morrer e maior foi o peso do desprezo dos carcereiros. Albino Coelho também denunciou a troco de promessas de liberdade. Isidro Felizberto Canelas, que já antas do Faraó prestara bons serviços, ascendeu à chefia desse grupo de novos "nacionalistas" de que faziam parte Custódio Ferreira, Joaquim Luís Machado, Manuel Pereira dos Santos, Joaquim Pais, além de José Borges Seloiro e de José Maria de Almeida Júnior, que especialmente se evidenciaram. 168 Borges Seleiro começou por discursar aos berros, citando nomes. Os carcereiros escutavam-no e ele sabia-o. Muitos antifascistas foram assim presos. Almeida Júnior era o decano dos rachados. Empregado no armazém de géneros, ali fazia central de informações que lhe chegavam de outros bufos, que depois canalizava, com algumas achegas suas, até ao João da Silva. Era ele quem nos fornecia os géneros. Mas nunca os entregava nas quantidades regulamentares exactas. Roubava sempre, e o que lhe acrescia figurava como pago nos livros de contas do Campo. Os bois comprados entre cem e duzentos escudos eram contabilizados a quinhentos e seiscentos. Estes furtos somavam mensalmente uns milhares de escudos, que se juntavam a muitos outros dos roubos de que João da Silva se encarregava. Estava fixada como média diária por preso, para alimentação e remédios, a importância de vinte escudos. Nem três se gastavam. Mas nas contas João da Silva, evitando cair nos exageros do Manuel dos Reis, verbava dezoito. Como poderiam acusá-lo de ladrão se poupava diariamente dois escudos por preso? Almeida Júnior, recompensado com o regresso à Metrópole, foi substituído por José Maria Alpoim. Ambos participavam nestes "ganhos". Não muito João da Silva apenas lhes consentia os pequenos roubos, para obter a sua colaboração nos grandes. Deixava-os vender a um escudo e vinte o litro de leite que compravam a oito tostões. E tinham ainda os trezentos escudos mensais com que o Faraó lhes remunerava os serviços. Havia no entanto outros lucros para João da Silva, ou antes, despesas a que se poupava. Durante os seus dois anos no Tarrafal nada gastou com a alimentação. Os géneros eram-lhe fornecidos... 169 pelo Alpoim, para quem isto lhe parecia tão natural que quando Olegário Antunes veio substituir o capitão Osório, também graciosamente fornecido pelo armazém de

víveres, não queria de modo algum debitar-lhe as contas da mercearia. E dizia em sorrisos de lacaio rasteiro e voz com entoações de subentendidas cumplicidades: - É costume, senhor director. - Será, mas eu não sou desses. Está a entender? - gritou-lhe enjoado o Olegário Antunes. João da Silva, como administrador, foi homem de grande imaginação e muitos recursos. O camponês cabo-verdiano, além da palhota miserável em que vive, pode ser dono - o mais remediado - de um porco, de uma vaca ou de um boi, que pastavam livremente pela planície. João da Silva, depois de inteirado destas realidades socioeconómicas, verificou que muito o poderiam beneficiar. Junto à praia ficava a horta do Campo. E, como os animais pastavam em liberdade e a horta não tinha cancela nem sebe, entravam os bois, as vacas e os porcos. João da Silva considerava ter havido violação da propriedade privada e o gado ficava cativo e só era devolvido mediante resgate. Fixava vinte escudos por cabeça. Mas muitas vezes onde tinha aquela gente tão pobre da ilha os vinte escudos com que resgatar o seu gado? Dois dias depois, os animais eram abatidos. Iam para o rancho e, como era evidente, figuravam no livro de contas, como reses compradas a quinhentos e seiscentos escudos. Tinha João da Silva a sua vivenda sobranceira ao Campo, na encosta de um monte. Era uma daquelas barracas de madeira vindas da Alemanha, dividida em saletas, quartos de cama, casa de banho, cozinha, e toda ela pintada a esmalte e muito bem mobilada com móveis de boa madeira, por 170 nós feitos na marcenaria do Campo. Havia uma varanda de onde o Faraó contemplava uma bela paisagem. Em baixo, via a estrada de acesso, aberta por nós e uma rotunda. Álvaro Duque, que ele tratava por engenheiro, fora o encarregado dos traçados. Mas João da Silva não estava inteiramente satisfeito. - Ó engenheiro - disse ele com a sua voz pausada - temos de enfeitar aquela rotunda com qualquer coisa. Álvaro Duque não estava a ter ideias. Foi quando João da Silva teve uma daquelas frases que tão bem demonstravam quantera homem inculto. - Olhe, ponha ali um cilindro quadrado. Como não há-de o fascismo ter tal gente a seu lado? Todos estes candidatos a ladröes, não os arrombadores de portas ou cofres, mas de cofres e portas já abertas de que lhes confiam a guarda! Tornavam-se então os grandes defensores do salazarismo, não pelo fascismo em si, mas pelas possibilidades de roubo, pela impunidade que ele lhes oferecia. E como odeiam quem queira extirpar os podres de onde comem! João da Silva queria regenerar-nos. Ele compreendia perfeitamente os Almeida Júnior, os Alpoim, os Canelas. Estava convicto de que nós, antifascistas; não poderíaos ter tão grande força de carácter que preferíssemos suportar espancamentos, frigideira, trabalhos forçados a renegar a nossa causa de revolucionários. Logo, desencorajando-nos, esmagando-nos com todo o peso da brutalidade, não poderíamos deixar de ceder, de enfileirar com ele, a troco da liberdade, do repúdio, da traição, para nos libertarmos do inferno em que transformou o Campo. 171 E contudo, apesar dos espancamentos, da frigideira, de trabalhos forçados, via, que nos mantínhamos firmes, convictos da vitória; sempre corajosos, sempre mais dispostos a aceitar a morte do que a trair os ideais da nossa luta: João da Silva não compreendia homens como Alfredo Caldeira. Este camarada, que deixou uma grande vaga no Comité Central do Partido Comunista Português, morreu a 1 de Dezembro de 1938, depois de doze dias de agonia em que sempre conservou a sua luçidez e a absoluta certeza de que ia morrer.

Adoecera com uma segunda biliose e deixou de urinar. Era a morte para o grande revolucionário que dedicara toda a sua vida para que os Portugueses vivessem numa sociedade justa e livre. João da Silva vinha vê-lo. - Você está em perigo de vida. - Se vem para me desanimar é melhor não vir. E na verdade João da Silva queria ver se a morte não faria fraquejar no último momento um homem cuja vida era exemplo de dignidade, de coragem, de inteligência, de dedicação a uma causa. Alfredo Caldeira adivinhava-o e respondia: - Verá que sei morrer como um revolucionário. E morreu realmente com a coragem e a confiança no futuro de que sempre em vida dera provas. Pouco antes da sua morte, João da Silva trouxe uma garrafa de champanhe, bebida muito diurética, mas que bem sabia já não poder faser qualquer efeito. O seu objectivo era justificar aquilo que iria dizer mais tarde: - Não lhe faltou nada. Até champanhe lhe demos. João da Silva não entendia. A nossa superioridade moral punha-o louco de raiva. Concluía então que não usara ainda da dureza bastante para 172 quebrar a nossa resistência e o seu ódio com mais fúria ainda caía sobre nós. Eram porém as convicções do Faraó que saíam abaladas, não as nossas. Sempre que nos via, nos falava, nos ouvia, mais se convencia de que a nossa firmeza não fracassaria. Tentava então desanimar-nos com os acontecimentos no mundo. A Catalunha caíra diante da Espanha franquista. E João da Silva, que não nos permitia a leitura de um farrapo de papel impresso, mandou entregar-nos os jornais. E pensava: - Aguentem! Vejam o futuro que os espera! Líamos, devolvíamos os jornais, mas nem um de nós deixou de pensar que o fascismo teria de ser vencido. Simples questão de tempo. A queda do Governo Republicano não era mais do que uma; batalha perdida na grande luta pela liberdade que os povos travavam em todo o mundo. Sabíamos que tempos difíceis viriam, que o fascismo iria vencer mais batalhas, mas a convicção de que a vitória final seria nossa, essa nenhum João da Silva nos conseguiria arrancar. Ficou muito desiludido o Faraó, e dias depois dizia-nos: - Não compreendo como não sentem o ridículo da vossa posição. Agora que o eixo Berlim-Roma-Tóquio irá dominar o mundo... E João da Silva teimava nas suas, promessas de liberdade. Todo aquele que se arrependesse do seu "mau passado" dele teria referências de "bom comportamento" e a liberdade que não tardaria. Pela correspondência que lia e censurava, ia notando os sinais de fraqueza deste ou daquele preso que não tardava em ser tentado para o porta-aviões. Assim chamávamos ao barracão destinado aos rachados, pois dali lhes prometiam levantar voo para a liberdade. 173 Aos rachados - assim conhecíamos os que renegavam a sua luta, e na verdade a sua integridade de homens fendia-se de alto a baixo - prometia o Faraó as delícias do seu paraíso. Saíam aos Domingos, e aqueles em que os carcereiros mais confiassem podiam mesmo sair e entrar no Campo quando quisessem. Guiavam o Pinto na sua tarefa de carregar água ou iam até à horta ou à praia onde apanhavam mariscos, sem guardas a vigiá-los. Era o cão do João de Silva e talvez por isso mesmo um preso que enlouquecera não o podia ver aproximar-se, rodeado pelos guardas, com a calva brilhando ao sol, sem logo gritar: - Olha o São Pedro! Olha o São Pedro!

Havia de facto quem rachasse, mas não ganhava a amizade dos carcereiros. Só obtinha o seu desprezo. - Vocês estão desmoralizados - dizia-lhes o Seixas. - São uns desgraçados. Já não são capazes de se partirem como os outros. Os comunistas e os anarquistas são homens que sabemos estar ali para nos fazer frente. Vocês não valem nada! E não valiam. Não eram eles os que João da Silva mais gostaria de ter no porta-aviões. Para nós, os que continuávamos "irrecuperáveis", os que não rachavam, havia o inferno, e nele imperava o Seixes. Muito alto, com as suas enormes patilhas, os olhos esbugalhados em furores, aos berros, aos insultos, às ameaças, que seriam ridículas se não partissem de um homem perigoso. - Ouviste, Borda? A ti arranco-te o coração pelas costas! Como seus auxiliares tinha os guardas que, ou cumpriam ou os queimava. Do guarda Costa, que antes se caracterizava pela sua humanidade para 174 connosco, fez um bandalho; o ex-chefe Cruz; por se recusar a participar nos espancamentos; foi forçado a reformar-se. O guarda Conceição manteve-se no Campo, mas porque sempre se negou à tomar parte em quaisquer violências contra nós; sofreu muitos vexames do Seixas. Nunca ou Queremos aqui prestar homenagem à sua dignidade e ao seu carácter. Mas o mesmo não acontecia com o Zé Maria, branco e brutal, nem com o Travessa, entroncado e forte, tipo de fadista valentão, nem com o Carlos Silva; antigo aluno da Casa Pia, sempre sioso por fazer mal; por nos apanhar em falta, nem com o Teixeira, com um aparente ar inofensivo, mas pérfido e sem quaisquer escrúpulos, capaz de tudo, nem com o Adelino, escriturário na secretaria, mas que nunca se negava a "bater nas sessões da sala de bailes", nem com o Bobby, um rapazola inbecil de quem o Seixas fizera um fantoche e sempre participava com o Travessa, o José Maria e o Teixeira nas encenações de fuzilamento, tão ao gosto do Seixas. Pela noite, noite alta; vinham buscar-nos, frigideira. punham-nos de caras voltadas para a parede, enquanto atrás de nós ouvíamos o engatilhar de armas. Depois vinha o berro do Seixas: - Fogo! E logo a seguir eram as gargalhadas, as graçolas. Alguns dos guardas tinham sido viriatos e, por vezes, entre eles, escutávamos frases como esta: - Tu matavas para lhes tirares os anéis e os dentes de ouro. Tentavam "converter-nos" pela violência. Ou cedíamos ou - Daqui só saem para o jardim das tabuletas! 175 E cada tentativa falhada traduzia-se em dias e, dias de frigideira para o irrecuperável. José Correia Pires por lá passou muitas vezes por esta razão. Manuel Alpedrinha foi também uma das tentativas de João da Silva, feita através do Seixas: - Você é uma pessoa doente. E este clima é mesmo mau. Se tirasse essas ideias da cabeça livrava-se do trabalho pesado e de outras coisas - e insistia com voz de muitas promessas.- Olhe que um pedido do senhor director... Manuel Alpedrinha cansou-se e virou-lhe as costas. - Ainda não perdi o juízo. Não teve de esperar muito pelas consequências da sua resposta. No dia seguinte, apontaram-lhe um saco cheio de legumes. - Leve isso! Era tão pesado que não o conseguiu levantar. - Leve isso! Não ouviu? - Não posso!

- Não pode? Não quer é trabalhar! E por se negar ao trabalho esteve vinte dias na frigideira. Alberto de Araújo era natural de Almada. Esteve onze meses incomunicável, foi espancado, escarram-lhe na cara. Professor do Liceu Passos Manuel, foi proibido de leccionar. Nada lhe abalou a firmeza. Estivera dois anos no Sanatório da Guarda por sofrer de uma tuberculose renal. Chegou ao Campo por finais de Junho de 1939, com Augusto Valdez e Carlos Matoso. E, juntamente com eles, começou a trabalhar na horta em regime semelhante ao da Brigada Brava. Foi imediatamente um dos que mais sofreu a persuasão de João da Silva. O Faraó sonhava com 176 transformar aquele intelectual brilhante e firme antifascista num fiel adepto do Estado Novo. E com esta finalidade, para lhe quebrar a resistência, lançou Alberto de Araújo na Brigada Brava, ele que vinha já tão fraco que mal podia levantar a enxada. Salvou-o ter escorregado no cimento do balneário e deslocar um osso do cotovelo. Contrariado, Esmeraldo Pais Prata teve de lhe dar baixa. O Seixas ficou furioso. - Salvaste-te da Brigada Brava, mas da frigideira não te livras. E não tardou que arranjasse um pretexto. Alberto de Araújo passou vinte dias na frigideira e de lá saiu para a enfermaria. Mas ali estava sob a alçada do Tralheira. Não esperou muito para lhe dar alta. Voltou a todos os trabalhos violentos que o Seixas lhe destinava. Carregou pedra, descarregou sacas de cimento, foi cavador, foi calceteiro e novamente voltou à enfermaria. Viria a morrer em liberdade, da tuberculose renal que se agravou no Tarrafal. O mesmo ódio perseguia Augusto Valdez, Carlos Matoso, António Guerra, António Nunes, Tomás Rato, Joaquim Almeida, Gabriel Pedro... João da Silva não podia perdoar a Gabriel Pedro toda a sua abnegada militância pela classe operária, a sua força moral, a luta infatigável que conduzia. E como nem admitia a hipótese de o fazer trair, Gabriel Pedro era um homem para abater. No trabalho havia sempre sobre ele uma vigilância cerrada. Os guardas Travessa, Mateus, Costa e Carlos Silva nem por um instante o perdiam de vista. As provocações eram constantes. Por qualquer pretexto o metiam na frigideira, onde os guardas o espancavam até o deixarem sem acordo de si. 177 João da Silva não escondia as suas intenções. Quando se tratava de novo castigo a Gabriel Pedro dizia: - Agora damos-lhe vinte, depois mais vinte e mais vinte... Há-de acabar por desaparecer deste mundo. Está bem entregue. A porta da frigideira abriu-se muitas vezes para Gabriel Pedro, e mesmo quando João da Silva abandonou a direcção do Campo, em Junho de 1940, não deixou de se abrir. Ficara o capitão Duarte Osório Fernandes, que sentia o mesmo ódio. E como os períodos de vinte dias não o tinham aniquilado, o novo castigo foi de quarenta dias. Condenavam-no à morte. Uma manhã ao abrirem a porta para lhe entregarem o pão e a água encontraram-no banhado em sangue. Cortara os pulsos. Felizmente as veias tinham ficado laqueadas ao cortá-las numa aresta do latão. A perseguição só findou quando da chegada de Olegário Antunes como novo director. As perseguições dos guardas não tinham interrupção.

- Quando não há por onde se pegar - explicava o Travessa ao Carlos Silva - prega-se uma pisadela. O tipo refila, dá-se-lhe logo nas ventas e ala para a frigideira! Nos primeiros dias de Maio de 1939, estávamos na frigideira doze presos, quatro num lado, oito noutro. Numa das celas da frigideira havia um pequeno buraco onde os ratos faziam ninho. Já tínhamos avisado que seria aconselhável tapá-lo. Alguém arrancara depois pedras mal unidas pela argamassa. Certamente não o fizera para uma fuga que bem poucas probabilidades teria. 178 Uma noite, o Seixas, numa das suas habituais rondas, com a sua lanterna eléctrica deu com o buraco. - Quem foi? - berrava. E todos os que nos últimos tempos por lá, tinham passado começaram a ser chamados à "sala de baile". Eram espancados com os cabos dos cassetetes. Pedro Soares, que então se encontrava na frigideira, foi levado à caserna dos guardas. descalço, já sem óculos. - Depressa! Mexe esses pés! Faziam-no pisar aquela planta rasteira cheia de espinhos, a que chamávamos arre-porra. Foi espancado durante mais de uma hora até cair inanimado. Voltaram a metê-lo na Frigideira, mas adoeceu e teve de ser levado para a enfermaria onde esteve internado quarenta dias. Também António Nunes foi espancado e metido entre os arames durante a noite. O que em Manuel dos Reis não passara de ameaça, fazia-o agora o João da Silva. Era terrível para a saúde ficar exposto ao cacimbo. Carlos Galan foi também espancado. Pela noite, rangiam os gonzos da porta da frigideira, faziam-na bater com estrondo, tiniam cadeados e chaves e ouvíamos as vozes dos guardas que nos iam chamando para os espancamentos. Um domingo de manhã levaram-nos, esfarrapados e sujos, de barba crescida, para a Brigada Brava. Na encosta do monte, onde se encontrava a casa do Faraó, era preciso abrir uma vala. Pelas 6 e 30 chegou a brigada: enfraquecidos pelos muitos dias de frigideira, tínhamos de trabalhar com enxadas e picaretas. 179 Começara o mês de Junho e o sol queimava. O terreno era rochoso. O Seixas gritava: - Aqui não há doentes nem fracos. Aqui tudo trabalha! E quem não trabalhar já sabe... As picaretas batiam na rocha, o ferro repercutia na pedra e aquela vibração propagava-se dolorosamente pelos braços e por todo o corpo. Dois, três golpes de picareta e pensávamos que as mãos não aguentariam, não conseguiriam agarrar com firmeza os cabos das ferramentas. O suor corria pelas costas, sentíamos as gotas correrem pela pele, a camisa, já encharcada, agarrava-se ao tronco. - Água! Pode-se beber? - Uma vez! E já passa a mais! O pó levantava-se da terra, voava das pás, entrava-nos pela boca a arfar e punha-nos a garganta acre e seca. O peito parecia estalar, nos ouvidos latejava o sangue, ouvíamos as pancadas surdas e rápidas do coração, nos olhos caía uma névoa. Nas mãos, formavam-se bolhas que aumentavam, rebentavam e ficavam em chaga. Uma hesitação no levantar e baixar das enxadas e já o guarda gritava: - Vamos a desembaraçar as mãos! Ainda entra o cassetete! Responder a isto ou aos insultos era o regresso à frigideira e aos espancamentos.

Pela Brigada Brava passaram António Nunes, Carlos Galan, Gabriel Pedro, António Guerra, João Borda, José Correia Pires, João Lopes Dinis, Joaquim Amaro, António Marreiros, José Tavares de Almeida, José Júlio Ferreira, Manuel dos Santos e muitos outros, para quem aquele trabalho brutal significou a saúde arruinada e mesmo a morte. A Brigada Brava destinava-se a reforçar o terror e tentar levar mais presos a "rachar". - É preciso acabar com esta praga dos Comunistas! - dizia João da Silva. 180 E o Seixas com rosnidos de rancor: - Vamos a trabalhar! Se estão aqui é para morrer! Depois de almoço, voltávamos. O calor era agora sufocante. Na terra, nas pedras havia cintilações de luz que cegavam. As moscas atraidas pelo suor zumbiam à nossa volta, colavam-se pegajosas. Ouviam-se aquelas pancadas surdas no silêncio da tarde e os ferros tinham relampejos ao sol. De quando em quando, um tinir metálico. Era uma enxada a bater na rocha. E nós abafávamos uma praga contra aquela repercussão pelo cabo que nos atingia as mãos e parecia fender-nos os pulsos. Sentíamos como que uma ânsia de vómito, a terra parecia oscilar em balanço de navio. O coração pulsava pulsava, e o sangue latejava nos dedos, enclavinhados nos cabos das pás e picaretas, nas bolhas já em sangue das palmas das mãos. A luz parecia tornar-se amarela, a escurecer-nos nos olhos... Caíam camaradas inanimados. Corríamos mas logo vinha o berro do guarda: - Alto! Ninguém larga o trabalho! Ali ficavam sem acordo de si, ao sol, até recobrarem os sentidos ou terminar a jornada de trabalho para enatão os socorrermos e os ampararmos no regresso ao campo. Durante a noite acordávamos naquela ansiedade pelo dia de inferno que nos esperava. O sono era agitado. Na Brigada Brava não sa podia fumar, urinar só uma vez, beber só uma vez! Queríamos ir ao médico, mas o Tralheira não nos atendia e tínhamos de continuar. 181 As bolhas infectavam, criavam pus. - Mijem nas mãos que isso passa! - aconselhava o Seixas. Ou ria-se: - Ora vês, como te vais habituando ao trabalho! E para os que sabia nunca terem pegado em ferramentas: - Agora a tua caneta é esta. Apontava a picareta. Os camaradas mais fortes e resistentes tentavam ajudar os mais fracos. Punham-se a seu lado e iludiam a vigilância dos guardas, cravando a enxada na terra por eles e pelos camaradas que amparavam. Vinha ver-nos todos os dias o Faraó. O guarda gritava: - Alto ao trabalho! Tirar chapéus! Só então se perfilava e fazia a continência regulamentar. Era para nós um instante de alívio. Endireitávamos o tronco e sentíamos então quanto cada músculo estava dorido. Durou oito dias o trabalho da vala, mas logo começou a cava da horta. Era pior ainda. Quatro horas de manhã, quatro horas da tarde. Era a Brigada Brava, nome que lhe fora dado pelo Seixas. O único conforto era a assistência que os camaradas nos prestavam quando chegávamos ao Campo. Preparavam-nos roupa lavada e alimentos que nos compensassem naquele tremendo desgaste. Quarenta e cinco dias durou a Brigada Brava.

Só António Guerra e João Borda aguentaram até ao fim. O orgulho e a dignidade levaram-nos a fazer frente a todas as tentativas dos carrcereiros para os quebrarem. Quebrou a Brigada Brava, que não podia continuar apenas com dois homens. 183 Uma manhã apareceu o Seixas e disse com uma gargalhada: - Acabou-se a Brigada Brava! Vocês julgavam que isto nunca mais tinha fim? Estava a tornar-se demasiado conhecida em originando - Portugal, no arquipélago, era muita indignação e protestos. Mas António Guerra ficou ferido de morte. Duas vezes passou pelo Tarrafal. Na segunda ficou lá. Morreu com tuberculose. O tempo mais duro do Tarrafal aproximava-se. Adoeceu então o Seixas com paludismo, e era curioso ver aquele sólido defensor do salazarismo, de ascendência nobre que vinha já de feroz antepassados visigodos - era ele que o dizia -, aquele e não teria descanso enquanto os mais destacados comunistas não fossem entusiastas e fiéis defensores da bandeira da Legião Portuguesa - também nos falava destas suas por desistir de tão honrosa missão por se apavorar com a ideia da morte. - Santa Virgem Maria, livra-me das biliosas! Tira-me deste sofrimento! E beijava as medalhinhas que trazia ao pescoço. Não quis ficar. Exigiu que o transferissem, Voltou à PIDE para torturar presos políticos ainda durante muitos anos, a ao 25 de Abril de 1974. O Faraó ainda ficou. Mas Junho de 1940... Andavam os nossos camaradas Miguel Russell e Aníbal Bizarro a trabalhar na calçada que dava acesso à, vivenda do João da Silva, quando o viram passar. Levava má cara. Seguiram-no com os olhos. Encaminhava-se para a secretaria. Junto à entrada do Campo estavam o Manuel Alpedrinha, o José Barata e o Saul Gonçalves, que 183 trabalhavam na brigada de jardinagem. E viram os gestos furiosos com que a estes camaradas se dirigia. - Que teria acontecido? - perguntou o Anibal Bizarro. E não se conteve. Pegou numa lata e seguiu para o Campo a pretexto de que a da encher. Soubemos então. Chegara uma ordem para libertar cerca de três dezenas de presos. Mas apenas seis eram rachados. Contrariamente ao que João da Silva esperava, os presos que sempre se tinham recusado ao porta-aviões foram postos em liberdade, enquanto os seis rachados foram ainda cumprir tempo de prisão em Caxias. Foi um violento golpe nos planos do Faraó. Ele que prometera a liberdade aos que odiassem a luta... - Agora com que cara lhes apareço! Gesticulava furioso pela secretaria. Queixava-se da incompreensão da polícia pela inteligência da sua táctica. - Umas bestas! - berrava ele com patadas ao soalho. E decidiu partir para a Metrópole. Durante dez anos foi ainda o director do Forte de Caxias, onde continuou a maltratar antifascistas e a roubar no rancho. Montou um seco de táxis, com motoristas admitidos depois de escolha muito especial. Tinham também por tarefa escutar as conversas dos familiares dos presos, quando vinham visitá-los. Veio a morrer atropelado na Avenida da Liberdade. 184

O ARREDA Transferido do cargo de director do Forte de São João Baptista, José Olegário Antunes chegou ao Campo do Tarrafal no Verão de 1940. Pela Europa iam caindo os países à passagem das Panzer nazis. En Portugal, pelas botoeiras dos entusiastas do Estado Novo viam-se os emblemas da Legião, da União Nacional e mesmo cruzes suásticas. A arrogância fascista não tinha limites. Foi o tempo em que se escutava a BBC com o som muito baixo, de ouvido colado ao altifalante, portas e janelas fechadas com receio do vizinho. Falar nos cafés a favor da Inglaterra, na sua ilha, disposta a resistir, era perigoso em Portugal, onde se apregoava neutralidade mas se colaborava com a Alemanha de Hitler. Assim, era de prever um director muito semelhante aquele que saíra. A PIDE tinha então como chefes dos seus agentes oficiais do Exército, como os cadetes do Sidónio, dos mais reaccionários que era possível encontrar. Nada de bom esperávamos. Reunimos no refeitório. O novo director entrou com o capitão Osório e o corpo de guardas. Deu um passo em frente e declarou não ter vindo ao Tarrafal para nos perseguir. 185 - Considero uma cobardia bater nos presos. Olegário Antunes afirmou mesmo ver baixeza moral nos que abusando do mando humilhavam, batiam, torturavam presos cansados à sua guarda. Aquele ar furibundo do novo director parecia ser dirigido ao capitão Osório e aos guardas, que também o ouviam em silêncio, com evidentes sinais de mal-estar. Nós não nos sentíamos impressionados. Ouvíramos já frases semelhantes em direcções anteriores. Usando de maior ou menor dureza, todos eles eram fascistas e tinham aceitado aquele feio encargo de directores do Campo de Concentração do Tarrafal. A razão estava connosco. O capitão Olegário Antunes era um neurótico. Dele eram frequentes os acentuados períodos depressivos. Nesses dias, insultava-nos com os palavrões mais imundos, por vezes sem qualquer motivo. Os insultos e palavrões dizia-os ele à frente fosse de quem fosse, da mulher e da filha, que, disfarçadamente, nos faziam sinais para que o desculpássemos. Fora ferido na Primeira Grande Guerra Mundial, e alto, muito magro, quando caminhava descaía-lhe o ombro direito que avançava primeiro ao jeito de quem quisesse afastar um obstáculo com violência. Foi esta a razão por que lhe chamámos o Arreda. Racista, era brutal com a gente da ilha e os soldados angolanos. Certa vez, estavam na cozinha o camarada Manuel da Graça e um cabo-verdiano. O Arreda passou tão de repente que não tiveram tempo de o cumprimentar. Voltou atrás e foi apenas ao cabo-verdiano que se dirigiu em ameaça. - Precisavas já dessa cara cheia de bofetadas - e apontando a pele branca do seu braço - : Então isto não é nada? 186 Era gesto muito frequente nele. - Isto não é nada? Sempre assim começava antes de espancar homens ou mulheres naturais da ilha. Arrogante por carácter, julgando-se muito acima de todos, não tardou em desmentir as palavras iniciais preferidas no refeitório. Em Maio de 1941 tivemos um período em que não havia muito para fazer. Mas entendiam os guardas que devíamos trabalhar, e inventavam tarefas absurdas. Enfurecia-nos vermo-nos forçados a fazer o que sabíamos ser de todo inútil. Fomos para fora do Campo, uns com carros de mão, outros com picaretas e pás, fizeram um risco no chão e ordenaram-nos que cavássemos. E uns retiravam terra com que enchiam os carros enquanto outros a transportavam e a despejavam a uns

dez metros dali. Mas, feitos os buracos, o guarda ordenou-nos que os tapássemos com aquela mesma terra que antes tínhamos carregado. Refervíamos numa ira que contínhamos só para não cedermos à provocação. Não nos apressávamos. Enchido o carroíamos empurrando-o lentamente, e aquilo que podia fazer-se em dois minutos levava meia hora. - Vamos a andar mais depressa! - dizia-nos o guarda Travessa. Fingíamos não o ouvir. - Vamos a andar mais depressa! Ouviram ou não? Continuávamos com o mesmo passo, mas numa ira que um pequeno nada tornaria impossível de controlar. Foi quando o guarda sacudiu o camarada Josué Romão pelo ombro e o ameaçou: - Quer andar mais depressa ou quer que o leve ao director? 187 A ira sufocada em todos nós transbordou pela boca do camarada Josué. - Você leva-me ao raio que o parta! E não me diga mais nada! Mais depressa para quê, sua besta? Vendo-o de cabeça perdida, o guarda acobardou-se. Nada mais disse, mas encaminhou-se para a secretaria e deixou-nos sós durante meia hora. Quando voltou, ordenou que o camarada Josué largasse o carro de mão e pegasso numa picareta. Assim fez, mas manteve-se de pé recusando-se a um trabalho inútil, até o guarda nos mandar formar a dois e dois e nos ordenar que seguíssemos para o Campo- Mas ao camarada Josué disse: - Venha comigo. Josué Romão era homem calmo. Ao entrar na secretaria logo se apercebeu de que se preparavam para o espancar. Olegário Antunes com a perna a tremer de fúria contida agitava o pingalim. O Teixeira passava a mão por uma pesada régua, enquanto o Travessa, com expressão de quem se sentisse muito ofendido, já empunhava o cassetete. As janelas vóltadas para o Campo, tal como acontecia quando ali se davam espancamentos, estavam fechadas. O Arreda berrava: -Onde julga que está? Nalguma colónia de férias? Não se impressionou o nosso camarada. Deixou-o falar. Interrompê-lo precipitaria tudo. Ouviu-o dizer que era muito grave a atitude tomada da ser castigado para que tais coisas não voltassem a repetir-se, mas antes queria que lhe confirmasse, na frente do guarda, se era ou não verdade ter dito palavras agressivas. - Se me permite, senhor director, eu começarei pelas causas, pois duvido muito que tivesse tido ordens para um trabalho sem utilidade 188 que só por maldade se pode mandar fazer, e relatarei depois o que o senhor director me pede. E aqui Olegário Antunes começou a perguntar: - Mas que trabalho inútil era esse? Contou-lhe que fizera buracos, levara terra para voltar a trazê-la e tapar os buracos feitos. - Isto para quê, senhor director? Se há tanto trabalho útil a fazer no Campo? O director, que na verdade não dera tais ordens, começava a encarar o guarda com maus olhos. Mas apesar de reconhecer a nossa razão entendeu dever dar castigo por desobediência a uma ordem. Como é evidente o nosso camarada negou ter chamado besta ao guarda e que avançasse para ele em jeito de o querer estrangular. O Travesa, ainda iniciou um protesto, mas o medo pelo director fê-lo deter-se. Além disso bem via que o preso da ser castigado. - Não lhe dou uma tareia porque me apanha bem disposto, mas vai oito dias para o segredo a pão e água.

O sistema repressivo montado pelo Faraó não fora posto de parte pelo capitão Olegário. Limitou-se a afrouxá-lo. Mas aquele que considerava ser prova de baixeza moral bater nos presos não deixou de o fazer. A José Galinha mandou tirar os óculos para depois o esbofetear. Ferreira da Costa, médico otorrinolaringologista, que continuava usando barba contra a vontade do director, que detestava peras, bigodes e outros ornamentos de pêlo, foi amarrado a uma cadeira para lhe cortarem a barba. E como já era mais arrancar que barbear e tivesse a cara ferida, pediu tratamento. Esmurraram-no no estômago e meteram-no na frigideira. José Olegário Antunes viera da antiga Escola do Exército, onde se incutia aos futuros oficiais 189 o espírito de casta. Tinha-o bem desenvolvido. Sentia-se diminuído se alguém o enfrentava com dignidade e altivez. A sua reacção era a bofetada, de que nem os próprios guardas escaparam. Assim aconteceu com o Carlos Silva, que não tardou em ser enviado para Portugal. - Gosto das coisas direitas! - dizia. E, na verdade, houve aspectos da vida do Campo que melhoraram. A alimentação conheceu maior abundância de carne. Na correspondência, onde se verificavam abusos de censura feita às nossas cartas, afirmou aos guardas: - O que se lê esquece-se! E ainda dentro do seu conceito das coisas direitas havia muito que o exasperava. Faltavam roupas de cama, faltavam-nos botas. As fardas estavam em farrapos. As nossas reclamações eram insistentes. Elaborávamos listas do muito que não tínhamos e entregávamos aos guardas. Quando chegava alguma remessa, formávamos bicha à porta do armazém esperando pela distribuição de roupas, de botas, de pratos, de colheres... Alguns de nós andavam de tal modo andrajosos que não nos deixava sair do Canpo por o consíderar vergonhoso. Olegário Antunes via-nos andar pelo Campo como um bando de maltrapilhos e perdia a paciência contra as demoras das autoridades da Metrópole. Metia-se então na carrinha e seguia para a Cidade da Praia onde comprava por qualquer preço o caqui ou os poucos géneros que encontrasse à venda. Nas oficinas de alfaiataria e sapataria já nada se podia fazer. Havia roupa que não aguentava mais remendos e botas tão estafadas e podres que nenhum concerto consentiam. Olegário Antunes tinha então desabafos de fúria que seriam bem desagradáveis aos ouvidos dos seus chefes da PIDE. 190 - Quem não tem dinheiro não monta campos de concentração em åfrica! Fazia-nos algumas concessöes, que retirava para voltar a conceder, conforme as suas disposições. A assistência médica melhorou. A nossa solidariedade com o auxílio que nos chegava permitia-nos mais reforços alimentares e pelo fim da tarde tínhamos todos o nosso chá. Os guardas faziam menos provocações. A frigideira continuava em funcionamento, mas com menos frequência. Podiamos levar a enxerga e não nos tiravam as botas. Raramente era imposta a ração reduzida. Autorizou aulas tanto de dia como de noite, e pouco se importava que nos reuníssemos quer nas barracas quer cá fora, ou que visitássemos camaradas noutras casernas. O trabalho não parou, mas não era tão pesado. Continuava a limpeza anual da vala. Era preciso desentulhá-la depois da época das chuvas. E eram toneladas de terra e pedras. Depois tinham de ser consolidadas as paredes do fosso e lançávamos pazadas de lama que escorria para o fundo apesar das lascas de pedra que espetávamos nos taludes para a reter. Terminado o desentulhamento da vala e seguia-se a capinagem, que parecia não mais, acabar. Apesar de tudo a vida no Campo melhorava. A situação era menos dura. Organizávamos a nossa vida prisional. Cada caserna tinha criada a sua escala de trabalho - lavagem das barracas, serviços auxiliares na cozinha, limpeza das

latrinas, para que houvesse uma rotação entre todos. O chefe de grupo em cada uma das casernas era eleito por nós. Todas as sextas-feiras; junto de cada camarata ficavam dois grandes bidões cheios de água. Sábado pela manhã, e bem cedo, os três escalados para a balicação começavam a limpeza, depois de 191 colocarem cá fora as nossas camas. E enquanto o pavimento secava íamos lavando lençóis, mosquiteiros e roupas. Era também aos sábados que conseguiamos - nem sempre - autorização para arejar as nossas roupas, guardadas numa arrecadação, onde os grilos, as baratas e as traças as iam devorando. Puxávamos uma vagoneta que sempre ficava cheia com os restos deixados por toda aquela bicharada e que já não tinham qualquer salvação. Os livros foram-nos devolvidos. E como éramos muitos, a nossa biblioteca tinha uns setecentos volumes. Alberto de Araújo foi o bibliotecário. Mas primeiro tivemos de construir uma grande estante de boa madeira, uma enorme mesa de leitura e dois bancos corridos. E tudo isto devia ser primorosamente fabricado. Era uma das características do capitão Olegário Antunes, o excesso de arrumação, de higiene, de perfeição. Ia ao exagero. Em sua casa, por exemplo, a vivenda antes ocupada por João da Silva, instalou um armário todo envidraçado, onde em prateleiras de vidro, mais indicadas para pratos e copos, colocou todo o calçado, o seu, e da mulher e o da filha, rebrilhante de graxa. E quando nos permitiu a prática de voleibol e de basquetebol igualmente tivemos de preparar o terreno, fazer a vedação com arame e tubos pintados a esmalte, os postes para os cestos e a rede, tudo com excelente acabamento, sempre sujeito às suas recusas quando ainda não achava a seu gosto. Levou-nos muitos meses de trabalho; mas ficou por fim pronto e foi inaugurado. Mas poucos dias depois da inauguração, numa das suas bruscas oscilações de humor, gritou-nos que desmontássemos tudo. E lá seguiram os livros, as estantes, as mesas, os bancos, os postes, os cestos, a rede, as bolas para o armazém. E muitas 192 semanas se passaram antes que a Comissão do Campo lhe arrancasse autorização para que tudo aquilo nos fosse devolvido. A vida ia melhorando no Campo, mas não era fácil. Foi-nos autorizada a compra de papel, lápis, tinta e canetas. As nossas cartas já não estavam limitadas a duas folhas de papel. Também conseguíamos receber livros da familia, mas para que nos fossem entregues era preciso vencer muitas dificuldades. A entrega podia, durar semanas e meses, e nisto se manifestava o despeito dos carcereiros pela nossa vontade de estudar. Jaime Tiago dedicava-se ao estudo das Matemáticas superiores. Pediu a sua família que lhe enviasse um Tratado de Álgebra e Análise. O livro chegou e o director mandou-o chamar. - Qual era a sua profissão lá fora? - Operário da indústria gráfica. - Um operário não precisa de estudar Matemáticas Superiores. Estás a ouvir? Eu, que sou Oficial do Exército, não estudei essas Matemáticas. Ponha-se a andar! Não tem nada que levar o livro! Não lho dou! E muitos meses tiveram de passar até Jaime Tiago conseguir a restituição do livro que a familia lhe enviara. Era seu e com ele pretendia aprofundar os seus conhecimentos, direito que não queriam reconhecer-lhe por ser operário. Deu-se durante a sua comissão de serviço uma tentativa de fuga. Com bastante dinheiro e muita arrogância, chegaram ao Campo dois alemães. Nunca entendemos muito as razões do seu aparecimento no Tarrafal. Racistas, logo nos consideraram como raça inferior. E não o escondiam. 193

Para melhor resistirem ao clima batiam gemadas de dez ovos e muito açúcar e em cima devoravam bananas às meias dúzias. Faziam-se na ilha uns queijos que, só pelo aspecto não pareciam ser atraentes nem muito limpos, eram na verdade saborosos. Curados ao ar livre, a poeira cobria-os e dava-lhes a cor da terra. Bastante grandes, depois de bem raspados, com gosto os comíamos. Eram baratos e cada queijo dava perfeitamente para quatro ou cinco pessoas. Fred comia um sozinho e com frequência acabava por sofrer de desarranjos intestinais por estes e outros exageros. Com lealdade, avisámo-los de que tais excessos só os prejudicavam. Além disso, a prudência impunha que se defendessem durante a noite com mosquiteiros. Riam-se com a muita superioridade de homens certos de pertencerem a uma raça pura. - A alemão forte não faz mal. Português, sim, não aguenta. Não tardou que o Fred caísse com paludismo e chorasse com medo da biliosa. Foi quando um de nós lhe perguntou se já, vira algum desses portugueses fracos a chorar com temor da doença e da morte. O outro era o Willy. Louro, de olhos azuis, robusto, daquele tipo tão enaltecido pelo doutor Goebells como o da raça ariana, era reservado e frio. Não conseguia esconder a sua tristeza pelas derrotas nazis. Também se desgastava muito com as atitudes de Fred, que já não parecia tão ariano. De pele e cabelo mais escuro, abrutalhado no aspecto e nas maneiras, mas mais comunicativo, conseguiu falar e compreender um pouco da nossa língua. Tinha muito de infantil. Willy procurava arrancá-lo ao nosso convívio, pois compreendia que muitas vezes nos divertíamos com as suas fan- 194 farronices, principalmente quando Rommel e o Áfrika Korps levavam de vencida os aliados, no Norte de África. Estavam ambos no porta-aviões e, podendo sair do Campo e ir até à praia, meteram-se num daqueles pequenos barcos dos pescadores cabo-verdianos, feitos com a madeira dos caixotes de sabão, e fizeram-se ao largo, numa aventura tola. Não chegaram a percorrer quinhentos metros. Dado o alarme, outro barco saiu em perseguição. De regresso ao Campo, o Arreda recebeu-os a cavalo-marinho. E irritado com a Alemanha, que lhe parecia não estar a conduzir a guerra da melhor maneira, a sua fúria desabou sobre o Fred e o Willy. - Vocês são uns parvos. Têm a mania da superioridade e ainda acabam por perder a guerra. Os Russos é que vos hão-de ensinar. Depois de espancados, mandou-os para a frigideira. Numa outra leva, entrara no Campo o sargento-ajudante Pires, que fora da PIDE. Mas porque conspirou contra Agostinho Lourenço foi mandado para o Tarrafal. E ali viu-se obrigado a trabalhar a nosso lado no empedramento da vala. Foi o que mais o feriu. Não se conformava ver-se misturado com comunistas. Queixava-se, chorava, e era do Tralheira que, conhecedor das suas façanhas pelo fascismo, o salvava de trabalhos pesados e o fazia baixar à Mitra. Não tardou que o considerassem homem de confiança e o pusessem à frente da cozinha. Então o seu ódio por nós imediatamente se manifestou e se satisfez. A morte continuava no Campo. Morreu Mário Castelhano, com uma fébre intéstinal. 195 Olegário Antunes tomou então a atitude de pretender afastar de si toda a responsabilidade pela morte do dirigente anarco-sindicalista. Recebemos ordem para formar em quadrado deixando um dos lados livres para o director, o médico e os guardas. E começou então a cerimónia a que pretendeu dar

aspecto de julgamento. Acácio Tomás de Aquino e o enfermeiro Virgílio de Sousa foram chamados e depois de darem dois passos em frente dele ficaram como réus. Muito teatral, muito grave, Olegário Antunes falou de si, das suas atitudes, para concluir que nem ele nem o médico tinham a mais pequena culpa da morte de Mário Castelhano. Depois, recusando todo o direito de defesa, responsabilizou Acácio Aquino e Virgílio de Sousa por aquela morte. Humilhou-os, insultou-os, acusou-os de terem dado informações que não correspondiam à doença que abatera Mário Castelhano, privado assim do tratamento mais indicado. Mas, terminada a formatura, a nossa resposta ao Arreda e ao Tralheira foi demonstrar a nossa amizade e solidariedade por aqueles que na verdade tudo tinham tentado para salvar a vida de Mário Castelhano. E dois anos depois morria Bento Gonçalves, com uma biliosa anúrica. Olegário Antunes foi vê-lo, e numa dessas visitas, Carlos Matoso ao notar aquela imobilidade, aquela qualquer coisa que logo nos fazia distinguir a vida da morte; pegou num pequeno espelho e aproximou-o à boca de Bento Gonçalves. Já não havia sopro de vida, e Carlos Matoso não pode conter toda a sua mágoa e toda a sua revolta. 196 - Assassinos! O capitão Olegário fitou-o demoradamente e não tardou que o chamasse à secretaria para o esbofetear. - Nunca os pântanos podem dar rosas. Foi depois disto o seu comentário pretensioso. O homem que armava ser baixeza moral bater nos presos que lhe estavam confiados, suspendia, nos braços do seu cadeirão os símbolos do seu poder: dois grandes cassetetes. 197 A BILIOSA Com o tempo das chuvas de Julho a meados de Setembro - começava aquele tempo de sobressalto, das febres e, pelos finais de Outubro, um mais terrível ainda, o das biliosas. Distinguíamos as febres em frias, quentes, lentas, terças, quartas. Todas elas eram formas de paludismo e minavam-nos. Havia sempre paludismo, mas pela época das chuvas era o seu período. Tal como durante todo o ano se podiam dar biliosas, embora o final de Outubro fosse a sua altura. Mas por que razão se verificavam mais no fim de Outubro? Seria a biliosa a fase final do paludismo crónico? A consequência de uma série de acessos febris quebrando resistências até sobrevir a biliosa? Seria sequela da medicação pelo quinino? A verdade era aparecer sempre naqueles que anteriormente já tinham sido vítimas do paludismo. E também era verdade que aqueles que substituiram o quinino pela atebrina deixaram de se verificar biliosas. Mas antes quantas mortes! A biliosa aparecia de repente. Não era pressentida. E a todos nós assustava e nos fazia vigiar ansiosamente a urina. Porque quando se urinava sangue, quando a urina trazia um tom de café, era a biliosa. 199 E o camarada a quem isto acontecia, procurando dominar a sua angústia, vinha dizer-nos: - Estou com uma biliosa. Bem sabíamos todos nós o que aquilo significava. Toda a nossa solidariedade era encaminhada para aquele camarada e com ele nos íamos bater mais uma vez contra a morte. Dali a momentos, na sua cama, transportado por nós, seguia para a enfermaria, e por todo o Campo corria a notícia como um arrepio de frio.

- Mais uma biliosa! Durante dez horas a vida estava dependente de a biliosa ser ou não anúrica. - Já urinou? - Ainda não! Esperávamos em volta da enfermaria. - Urinou! O sangue vem mais claro! A morte atravessara o Campo e passara. Era a vida. A solidariedade que nos reuniu junto da Mitra sentia-se mais tranquila. Dispersávamos, voltávamos às aulas, ao trabalho das oficinas, aliviados. Mas quando as dez horas passavam e... - Já urinou? - Não! Então era a morte que viera ao Campo e ali ficara. Para o camarada doente era a consciência de que ia morrer. Mais três, quatro dias sem urinar e a intoxicação iria progredindo lentamente e seria o fim. Não tínhamos a possibilidade de iludir o nosso camarada, de lhe dar esperança, pois todos sabíamos o que representava a biliosa anúrica. Quando o rim paralisava... Introduzia-se a algália e se corriam alguns centímetros cúbicos era, a esperança. Ríamos, dávamos-lhe pancadinhas no ombro. 200 - Temos homem! E o camarada sorria-nos, animado. - Parece que ainda me safo desta! Mas quando da algália nada corria... - Ainda é cedo. Daqui a pouco experimentamos outra vez. E levavamos-lhe água e injectávamos-lhe soro e mais soro. Mas o camarada não se iludia. A morte estava com ele. Sorria com amargura e preparava-se para morrer com a mesma coragem com que vivera. E donhinava a sua angústia para dar exemplo de boa morte. Assim víramos morrer Alfredo Caldeira. Assim morrera Ernesto José Ribeiro, em quem a lucidez se mantivera também até uma hora antes da morte. Mandara chamar os amigos mais íntimos porque deles se quis despedir. -Tenho pena de morrer e de os deixar! Morrer agora que tão grandes dias sa aproximam! A derrota do fascismo! A vitória da Democracia! São os dias que irão viver. Peço-lhes que sejam dignos deste tempo que já não será para mim! E não se esqueçam! Digam lá aos rapazes do meu bairro que morri como comunista. Assim morreu o homem que vivera inteiramente para a causa do proletariado, Bento Gonçalves, Secretário-Geral do Partido Comunista Português, Bento Gonçalves fora operário do Arsenal, mas ganhara tal cultura, tais conhecimentos técnicos, que conseguia o que a engenheiros parecia impossível. E isto trazia-nos prestígio perante a gente de Cabo Verde, o que tinha para nós grande importância. Desmoronavam-se conpletamente as calúnias dos carcereiros de que éramos gente desqualificada, sem quaisquer aptidões. 201 Bento Gonçalves dirigie a oficina de serralharia e entre nós encontravam-se operários altamente qualificados. Só assim se explica que tenham sido realizados trabalhos tão complexos com ferramentas improvisadas e construídas por nós. Com as dificuldades de abastecimento provocadas pela guerra aumentou o número de encomendas à serralharia do Campo. E não nos limitávamos a reparaçães, fabricávamos objectos. Usávamos então a chaparia dos bidões de gasolina. Era a nossa matéria-prima. A madeira vinha da Guiné em troncos que colocávamos sobre cavaletes para serrar. Faustino de Campos era um dos serradores, a braço, com uma serra de lenhadores, o que exigia grande esforço.

As reparações e revisões do grupo gerador diesel pequena central eléctrica do Campo estavam a cargo dos camaradas da serralharia. O electricista era pouco competente e muitas vezes deixava queimar peças do motor que Bento Gonçalves tinha de ir tornear para a Cidade da Praia. Nas condições de clima de Cabo Verde fazia-se sentir muito a falta de gelo, essencial para tratamento de febres intestinais, de apendicites ou de outras doenças em que fosse de aplicar. Bento Gonçalves concluiu que era possível construir a máquina desde que pusessem à sua disposição os materiais necessários. E com a nossa colaboração a máquina apareceu e com ela o gelo, perante a admiração dos que não queriam acreditar: Quando se soube foi um acontecimento, e muito contribuiu para o nosso prestígio. De Bento Gonçalves foram os cálculos e os desenhos, e também foi ele quem, na Cidade da Praia, nas oficinas das Obras Públicas, onde existiam as máquinas e as ferramentas indispensáveis, fabricou os elementos fundamentais - o compressor com as paletas de arrefecimento, o pistão, os segmentos, 202 a cambota, as complexas válvulas e torneiras de passagem - de materiais escolhidos de un monte de sucata que existia na cidade. Toda a tubagem - serpentina de arrefecimento, etc. - foi feita com os tubos de ferro das nossas antigas barracas de lona. Num pequeno edifício de alvenaria, também construído por nós, atrás da central eléctrica, ficou instalada, a máquina de gelo. E uma noite, já na fase experimental, veio ao Campo o director das Obras Públicas de Cabo Verde. - Só vendo eu acredito - dizia ele. Parecia-lhe impossível que tivéssemos construído tal máquina de técnica tão especializada e entre tantas carências que se faziam sentir na ilha. Mas teve de acreditar. A máquina produzia gelo. Viu os desenhos e os cálculos de Bento Gonçalves e felicitou-o. Era frequente Bento Gonçalves ser conduzido à Cidade da Praia para ali realizar qualquer trabalho que a falta de ferramentas no Campo não consentia de sempre acompanhado por um guarda. Dormiam no mesmo quarto da Pensão onde se hospedavam. Nem por um instante o guarda abrandava a sua vigilância. Aliás, também o encarregado da oficina de reparações de automóveis se deslocava por razöes semelhantes à Cidade da Praia. Deu-se um outro caso em que o auxílio prestado por Bento Gonçalves foi muito comentado. Tinha Olegário Antunes recebido um telefonema do Banco Ultramarino da Praia. Fora comprado no estrangeiro uma complicada porta de segredo para a nova casa-forte. Fechava-se automaticamente e as chaves ficaram lá dentro esquecidas. Não conseguiam abrir a casa-forte e o director do Banco via-se em grandes dificuldades. Dinheiro, 203 letras, tudo lá estava guardado, mas sem que lhe pudesse tocar. Olegário Antunes chamou Bento Gonçalves à secretaria para o consultar sobre a situação em que se encontrava o Director do Banco Ultramarino. Bento Gonçalves depois de o ouvir comentou com ironia: - Eu não sou um arrombador de cofres e receio que mais tarde ainda venham a acusar os comunistas de terem tentado um assalto ao Banco. Mas atendendo aos trabalhadores que precisam de receber a sua féria, aos pequenos comerciantes certamente em apuros... E concordou em ir à Cidade da Praia para tentar abrir aquela complicadíssima porta de segredo. Seguiu imediatamente na camioneta do Campo.

Já muita gente o esperava. Observou a porta, e na oficina das Obras Públicas procurou um broquim eléctrico e mais algumas ferramentas. Depois, perante a surpresa dos que assistiam, tudo se limitou a um pequeno furo na porta. Fez vários movimentos, várias tentativas com um arame que introduziu no orifício, o volante moveu-se e a porta abriu-se. O director do Banco Ultramarino oscilava entre a admiração por Bento Gonçalves e a desilusão por aquela porta em que gastara tanto dinheiro para afinal se abrir com um furo e um arame. Mas o trabalho mais ambicioso que projectávamos era a construção de um barco em ferro, com motor a gasolina. O motor de automóvel teria de ser adaptado. Seria demasiado rotativo. O cavername estava já construido. Destinava-se a ser utilizado em serviço de cabotagem entre o Tarrafal e a Cidade da Praia, para transporte de mercadorias de abastecimento ao Campo e, secretamente, para uma outra viagem que nos levaria para bem longe do Tarrafal. 204 Uns meses antes de se iniciar a construção do barco houve um acontecimento que nos lançou em alvoroço. Entre nós foram escolhidos dez que deveriam ir à vila do Tarrafal para um trabalho de descarga. Fomos e encontrámos um excelente veleiro com motor auxiliar. Trazia mercadorias paro armazém do Campo. Quando soubemos que aquela viagem se iria repetir, porque as estradas de acesso à Cidade da Praia ficavam interrompidas com o tempo das chuvas, preparámo-nos para nova fuga. Foi escolhida a equipa que deveria fazer a próxima descarga, mas com o objectivo de se apoderar do barco. Tinhamos já preparado, por meios Clandestinos, um salvo-conduto, caso no nosso caminho encontrássemos algum navio aliado em patrulha por aquela área. Mas o veleiro não voltou. Lançámo-nos então à construção de um barco, que nunca ficaria concluído porque, entretanto... Uma manhã, Bento Gonçalves entrou na oficina muito macilento, curvado. Trazia a gola do casaco levantada. Aproximou-se da banca de trabalho e - Tens frio? Olhou-nos e disse com ar de quem pedisse desculpa: - Acho que estou com elas. Era a frase habitual entre nós quando o paludismo nos atacava. Com ele trabalhavam o Manuel Rodrigues da Silva, o Russell, o Herminio, o Coimbra. Pediram-lhe que se fosse deitar, que se tratasse. Não quis. Dava-lhe grande alegria o trabalho. Muitas vezes víamos o seu sorriso de satisfação, ouvíamos o seu cantarolar alegre quando a peça lhe ia saindo a seu gosto. 205 Fixou no torno o que ia limar com a lima murça e começou. O ferro rangia ao passar da lima e a limalha caía. Mas aquela cor de limão acentuava-se. A febre subia. Pousou a lima na bancada e disse: - Parece-me que tenho de ir para a cama. Naquele momento não ficámos muito em cuidado. Bento Gonçalves era de saúde robusta e já tinha passado por muitos ataques de paludismo. Ainda na véspera tomara banho na praia. Para o conseguir lá seguira numa brigada que fora deitar ao mar a carne de um boi abatido e que estava doente. E lá andara à beira da água, por causa dos tubarões, sorridente, muito magro, quase ruivo e cheio de sardas. Não parecia estar doente. Ficámos na oficina e íamos trabalhando. De quando em quando entrava um camarada aproveitando um momento em que o guarda, no seu giro, voltava as costas. Não era permitido. Iludindo a vigilância lá nos íamos visitando. Mas naquela manhã entrou o Joaquim Amaro que nos gritou a má nova: - O Bento está com uma biliosa! Corremos à caserna. Bento Gonçalves estava já a ser levado para a enfermaria. E com aquele seu ar meio despreocupado, meio sorridente, disse-nos:

- Mais um, camarada! Preparem outra mesa! E, na verdade, tudo parecia que teríamos de fazer mais um caixão. As notícias que começaram a vir da enfermaria eram desalentadoras. Estava muito agitado, o pulso mal perceptível e nenhum trabalho dos rins. Não tardou a cair em coma, com uma cor arroxeada e uma respiração difícil. Bento Gonçalves adoecera com a forma mais grave da biliosa, aquela a que chamamos permiciosa e para a qual não havia esperança. Na enfermaria, num arfar sempre mais difícil, a sua vida escoava-se rapidamente. 206 Durou três dias. Cá fora, a todo o momento esperávamos que nos dessem a notícia da sua morte. A 11 de Setembro de 1942, Olegário Antunes, por quem Bento Gonçalves se fizera respeitar, acompanhado pelo doutor Moreira, que temporariamente substituíra o Tralheira, em gozo de férias, e demonstrou ser médico competente e humano, verificou o óbito. Tinha norrido um homem excepcional. Dois anos antes, também em Setembro, morrera Mário Castelhano, outro valoroso antifascista, dirigente anarco-sindicalista de prestígio. Conversavam muito os dois, a sós, procurando soluções unitárias que estabelecessem uma acção comum das duas organizações. O Tarrafal causou a morte de homens como Bento Gonçalves, Alfredo Caldeira, Mário Castelhano, António Guerra. Apenas estas quatro mortes - e houve muitas outras - já justificariam aos olhos do salazarismo a criação do Campo. Em volta da casa mortuária nos encontrávamos em pequenos grupos. Falávamos em voz baixa. A morte de Bento Gonçalves era uma grande perda para nós. - Mais um que mataram! - dizíamos. Tocou para o rancho, nós não comemos. Soava-nos tão triste aquele bater da louça de alumínio em cima das mesas de madeira, de que não tardariamos em tirar a madeira! Tocou a recolher, mas não dormimos. Na casa mortuária vestiam Bento Gonçalves. Com dificuldade lhe encontrámos uma camisa. Tudo dava dinheiro recebido dos trabalhos que fazia para fora ia inteiramente para o colectivo. Era assim no Campo. Quanto se recebia, fosse dinheiro, medicamentos, comida ou roupas; tudo 207 se confiava ao colectivo, que o distribuía conforme as necessidades. No Campo, iluminou-se a carpintaria. Um grupo de camaradas encaminhou-se para o refeitório e escolheu uma mesa. E, na noite, começámos a ouvir as primeiras marteladas para a desconjuntar. Ressoavam por todo o Campo, repercutiam em nós. Já distinguíamos todos aqueles sons. Não tardávamos em ouvir os rangidos das serras cortando tábuas, depois novamente o martelar, mas dos pregos, ora mais apressado, ora mais lento. E por fim o silêncio. Estava feito o caixão. Na caserna não dormíamos. Havia o lampejo de un fósforo a acender um cigarro, o choro abafado de um de nós a recordar gestos ou palavras da vida de Bento Gonçalves, ouviam-se palavras que a revolta, no silêncio, transformava em gritos: - Miseráveis! Assassinos! Durante toda a noite, de hora a hora, vinha o guarda abrir as portas das casernas para os diferentes turnos de vela ao corpo de Bento Gonçalves. Foi uma noite serena e quente. Entravam borboletas e voavam em volta da lâmpada da casa mortuária. De quando em quando ouvíamos os brados das sentinelas, que se sobrepunham ao som distante do motor da central eléctrica. Tocou à alvorada. Os últimos turnos eram mais breves e neles participavam mais camaradas. Para que chegasse a vez a todos. O funeral tinha de ser pouco depois do amanhecer. Com aquele clima a decomposição era mais rápida.

Tocou para a formatura. Formámos em duas filas, uma em frente da outra ao longo do corredor que dá do Posto de Socorros ao portão do Campo. Chegou a camioneta com panejamentos pretos. Ela nos trazia ao campo, ela nos levava ao cemitério quando morríamos. 208 Na casa mortuária fechava-se o caixão, e os camaradas mais íntimos transportavam-no até à camioneta, enquanto o chefe dos guardas se sentava ao lado do condutor. Subiam para acompanhar o corpo dez camaradas que tínhamos escolhido, um de cada caserna. Perfilávamo-nos nas duas alas que formáramos, os chapéus caíam nas mãos que desciam, quando o caixão saía e era colocado na carrinha. Começava o desfile. Sempre assim era quando um camarada morria. A camioneta arrancava e rodava lentamente e, à medida que avançava, íamos desfazendo as alas e caminhando atrás. Assim seguíamos até ao portão do Campo. A carrinha ficava então oculta por nós, para só se verem os dez camaradas de pé, rodeando o caixão. Abria-se o portão e a camioneta seguia, depois de uns instantes de paragem em cima da passarela sobre a vala. Era a última despedida. Ali ficávamos imóveis, todos nós, magros, esverdeados pelo paludismo, na nossa farda de caqui amarelo, com a mesma expressão de revolta por mais um camarada que o Tarrafal matara. Arrancava a camioneta e rodava então veloz até ao cemitério da Achala, onde não havia registo, nem toque de sineta, nem flores, nem palavras, mas apenas os dois coveiros cabo-verdianos, à beira do coval aberto no talhão que nos estava destinado. Caía a terra sobre o caixão e nós cerrávamos o punho na últina saudação ao camarada morto e para ele e para nós murmurávamos: - A luta continuará, camarada! 209 O ABÓBORA Olegário Antunes, segundo se disse, deixou uma grande dívida ao comércio que abastecia o Campo. Os directores sucediam-se. Estavam dois anos e voltavam à Metrópole, onde os esperavam os louvores pelos bons serviços prestados. Foi substituído pelo capitão Filipe de Barros. Chegou em Janeiro de 1943. Pesado, com aquele ar bonacheirão dos gordos, lento no andar, sempre fardado, cavalo-marinho entalado no sovaco, fez-nos o seu discurso de tomada de posse, mastigando e remastigando frases que lhe saíam difíceis e embrulhadas. - Não sou um algoz, mas também não esperem ver em mim uma pomba. Foi o que nos repetiu muitas vezes. E não tardámos a ver quanto era de natureza brutal, agindo muito ao vento dos impulsos e do que lhe diziam. Quando vinha ao Campo, logo lhe colocávamos muitas das nossas reclamações, ligadas aos castigos, à devolução de livros, à alimentação, e ou nos respondia com uma negativa rude ou nos dizia: - Hei-de ver isso. Raramente nos dava um sim. E se acedia aos nossos pedidos, bem podia acontecer voltar atrás e dizer-nos não ter dito o que antes afirmara. Fazia-nos lembrar o Manuel dos Arames, na maneira 211 como mudava de opiniões e de atitudes de um dia para outro. Manhoso, reservado, sempre em desconfiança, sempre a julgar-se vítima de enganos, continuava a perseguir-nos, e se não o fazia como nos tempos mais duros

era por o fascismo já não oferecer promessas de impunidade. Na frente leste, a máquina de guerra nazi conhecia a derrota da batalha de Estalinegrado. Mas alguma coisa o fascismo ainda permitia ao capitão Filipe de Barros; a possibilidade de roubar muito durante aqueles dois anos de comissão de serviço. O rancho piorou. A alimentação passou a ser o feijão quinino já bem nosso conhecido, mas agora muito mais frequente. E aquele feijão miudinho, tipo feijão frade, muito amargo, assim como vinha nas travessas, assim o despejávamos na barrica dos restos. O peixe e a carne foram muito reduzidos. O rancho atravessou muitas fases segundo as diferentes direcções do Campo. Nunca foi bom, mas com o capitão Filipe de Barros atingiu o seu nível mais baixo. Dedicou-se o novo director a uma pequena horta, situada muito perto do poço de captação de água do mar, e tentou a cultura da batata-doce, da abóbora, de couves e de alguns outros vegetais cultivados em Portugal. Foi bem sucedido. A mão-de- -obra era barata, e nós não tardámos em ver o arroz de carne substituído pelo de couve e de outros produtos da horta. Tão habitual passou a ser a sopa e o arroz de abóbora que já nos referíamos ao director como o Abóbora. O regime alimentar, com o capitão Filipe de Barros, passou a ser: pelas seis, café e pão; ao almoço, arroz de couves e uma batata-doce cozida, ao jantar, sopa ou arroz de abóbora ou de batata-doce e carne salgada de porco ou albacora. 212 Enriquecia o director. No Campo comíamos abóbora e batata-doce, mas das contas enviadas! Para Lisboa figuravam os gastos de muitas galinhas e vitelas. O rancho minguava tanto quanto o saco azul inchava. O número de reses abatidas, em quilos de carne, era inferior às quantidades consumidas. Nos mapas enviados, chegaram a figurar dois mil quilos de carne gastos no rancho, quando na conta corrente do Campo era contabilizada a compra de seis vitelas, com um peso total de mil quilos. Tinhamos comido uma tonelada de carne que não existia. Os roubos do Abóbora foram descobertos, mas como apresentou duzentos contos que lhe tinham aparecido a mais no cofre sem saber bem como, entenderam em Lisboa "que a sua honra ficou salva". Havia muita carne nas contas do Campo, mas faltava no rancho, e quando uma rês era abatida podia acontecer ter de ser lançada à água aos tubarões, sem que tivéssemos outra em troca. Aliás a melhor carne sempre dá para os guardas. Abateu-se uma vaca que estava tuberculosa. Ao passar pelas trazeiras da cozinha, o director foi; abordado pelo nosso camarada Manuel Amado dos Santos, que era o magarefe e queria saber se viria outra. - E agora, senhor director? - Agora, mija na mão e deita fora! E foi-se sem outra resposta. Era uma atitude habitual para fugir a embaraços. A Comissão do Campo procurava reclamar contra o abuso da abóbora, mas o director, para evitar aqueles encontros incómodos, não aparecia. Quase não era visto na secretaria. Andava pelas proximidades, ia à vila do Tarrafal ou ficava em casa com raparigas naturais da ilha, onde a mi- 213 séria e a fome as forçava à prostituição. Organizava grandes orgias, que terminavam em bebedeira com os guardas mais sabujos, para irem depois dormir às cubatas das cabo-verdianas. Em Cabo Verde, aquele ano de 1943 foi trágico. Foi ano de seca e morreram de fome milhares de pessoas. Não se via uma folha verde, tudo estava torrado pelo calor. Do Campo víamos morrer burros e bois e sobre eles logo caíam jagudis, milhafres e corvos, que começavam a devorá-los, por vezes ainda vivos. Crianças entre os sete e os dez anos esperavam à porta do Campo, e quando nos viam sair com a barrica dos restos corriam e com as mãos tiravam as sobras, comiam como animais, com a sofreguidão de uma fome de dias. Foi por esse tempo que deu à praia um cachalote, precisamente onde íamos despejar os latões das latrinas. Gente de todos os lados da ilha, homens e

mulheres, velhos e crianças, chegavam com facas e machados e, na rebentação das vagas, retalhavam, esquartejavam o animal morto e consigo levavam grandes nacos de carne. Dias e dias, sangue e gordura flutuaram no vaivém das marés, enchendo a praia, à tona da água, sendo chamariz para pássaros e peixes, que a iam limpando. Mas também lá tinham estado os tubarões, e um camarada ao encher o latão de água viu o guarda tirar a arma do coldre. Ouviu gritos, correu para a praia. O guarda fazia fogo. Foi já da areia que, na transparência das águas, viu um tubarão que por ali nadava, precisamente onde momentos antes despejara os latões. A fome na ilha levava muitos pais a venderem as filhas, por vezes apenas com doze anos, a comerciantes da vila, e eles próprios as levavam às casas dos compradores. Vendiam-nas a duzentos e cinquenta escudos. 214 A quarta tentativa de fuga que se deu no Campo veio demonstrar que o Capitão Filipe de Barros era tão brutal como qualquer dos directores anteriores. Cinco presos, entre eles o Tomás Rato, conseguiram sair do Campo. Foram poucos os dias de liberdade. Iam sendo capturados. Tomás Rato durante uma semana andou pela ilha, caminhou muitos quilómetros pelas serras, sempre seguido de longe por um observador a soldo do Campo. E quando esfarrapado, a cair de cansaço, de fome e de sede, o apanharam, fizeram-no seguir para o Campo onde logo deu entrada na frigideira a pão e água, por muitos e muitos dias. Todos os fugitivos foram espancados com a mesma brutalidade nossa conhecida dos tempos do Manuel dos Reis e do João da Silva. Ainda que os tempos fossem outros, a ferocidade dos carcereiros manifestava-se de quando em quando. O camarada Francisco do Nascimento Gomes, um dos que participou na fuga, foi uma vítima do capitão Filipe de Barros. Veio a morrer com uma biliosa em fins de 1943, depois de dois meses de castigo na frigideira. Foi espancado pelos guardas, que primeiro lhe perguntaram onde tinha os furúnculos de que sofria, para precisamente nesses pontos o ferirem com os cassetetes. Depois daqueles sessenta dias levaram-no para a enfermaria completamente esgotado e já com o paludismo que o levaria à biliosa e à morte. Contudo o fascismo recuava. A Wehrmacht desagregava-se na frente leste e o fascismo português já não tinha ilusões. Também o capitão Filipe de Barros as não tinha. Queria roubar o máximo, gozar quanto podia antes que tudo se desmoronasse. Os guardas, depois da Batalha de Estalinegrado, tratavam-nos com menos dureza. Alguns procuravam agradar-nos transmitindo-nos notícias 215 da guerra, escutadas pela rádio. E faziam-no com ares de cumplicidade, como se sempre tivessem estado do nosso lado. Embora menos duro, o trabalho continuava na horta, na capinagem, e criara-se mesmo uma nova brigada para abater árvores e preparar um terreno onde o director pretendia plantar milho. Perderam-se árvores numa ilha onde a vegetação era tão pobre e sem que o milho vingasse. Mas o director assim o queria para nos alimentar com mais batata-doce e abóbora e fazer mais dinheiro para levar terminada a comissão de serviço. Podia já não ter tempo. A história mostrava-se favorável à Democracia. Os dias que vivíamos tornavam-se para nós menos opressivos. A esperança de libertação já não era vaga, ganhava contorno e volume. As nossas festas no final de cada ano eram sempre mais alegres. Montávamos espectáculos teatrais e na encenação das peças corríamos às oficinas de sapataria, alfaiataria e carpintaria. Mas nem sempre. Só o pudemos fazer naquele tempo em que a repressão foi menos dura. O rancho era detestável, apenas os recursos da Caixa de Solidariedade nos permitiam reforçar um pouco a alimentação dos camaradas mais doentes.

Mas o que mais nos alegrava era saber que em Portugal e no estrangeiro eram cada vez mais insistentes, as campanhas pela nossa libertação e se denunciava a terrível história do Campo do Tarrafal. Estas notícias provocavam o boato. Acreditávamos que o governo de Salazar seria forçado a mandar-nos regressar sob prisão ou a promulgar uma ampla amnistia. 216 E o boato corria pelo Campo: - Agora é que é certo! A ordem já está na secretaria! São oitenta e quatro os que estão na lista para irem no próximo Guiné! Um momento depois já havia quem tivesse lido a lista. - Vão libertar quem já tenha acabado a pena e mais todos os "ferro-velhos". Chamávamos ferro-velhos aos do grupo de presos por uso de velhas armas muito antiquadas. - Não! Aí há qualquer coisa mal. Vamos sair todos! Assim é que é! A guerra é uma questão de dias! E na verdade, pelo nosso grande mapa, naqueles finais de 1944, constantemente tínhamos de alterar a posição dos alfinetes e do retrós vermelho, tão grandes eram os avanços das forças aliadas. Sim, a guerra já não duraria muito e seria a derrota do nazismo e das ditaduras fascistas. Assim acreditávamos. - O Tarrafal vai acabar! Nem pode ser de outra maneira! O Exército Vermelho só pára em Berlim! E não vai demorar muito! Mas o Guiné chegava, partia, e não levava ninguém. - Ninguém foi porque não havia lugares. Estava já tudo ocupado com passageiros. O caminhar da guerra trazia-nos novas esperanças. - Vais ver como vamos passar o Natal a casa! A justificar o boato, em Janeiro de 1944 foram postos em liberdade os dois alemães, Willy e Fred, um judeu polaco, Israelvski, o italiano Bartolini, o sargento-ajudante António Augusto Pires, da PIDE, mas também Cândido de Oliveira, António Guerra e outros. O médico Ferreira da Costa seguira já num outro navio. 217 - No próximo Guiné vamos todos! No Tarrafal não fica ninguém! O boato insinuava-se facilmente. Os mais vulneráveis eram os presos politicamente menos conscientes, e por vezes tornava-se doentio e perigoso. Era então necessário lutar contra ele. Mas sempre que estava próxima a chegada do Guiné, o boato espalhava-se e circulavam então as esperanças mais absurdas. E os próprios carcereiros o lançavam tentando criar o desânimo, depois de noticias que não se confirmavam. Não nos desanimavam. Sentíamos, isso sim, a impaciência pela liberdade. Desânimo, não! Nem naquele Novembro de 1942 o sentimos. Hitler estava então no auge do seu poder. A Alemanha ocupava ou dominava dezasseis países da Europa. A Wehrmacht estava ás portas de Estalinegrado, de Leninegrado e do Cairo. A sua aviação bombardeava Londres, os seus submarinos fechavam o Mediterrâneo aos navios aliados e estavam prestes a cortar as ligações marítimas entre a Inglaterra e os Estados Unidos, a enfrentar com dificuldade um Japão enfileirado no Eixo. Mas em Outubro de 1942, apesar de tudo, já os acontecimentos indicavam que os destinos da guerra iriam pender para as Forças Aliadas. Os alemães eram batidos em El Alamein. Em Novembro, os americanos desembarcavam no Norte de África. A 1 de Fevereiro de 1943, o Exército Vermelho vencia em Estalinegrado e passou a empurrar os nazis para fora da terra soviética. Em Setembro, americanos e ingleses expulsavam os alemães de África e foram-nos perseguindo pela Sicília e pela Itália. Em Junho de 1944 dava-se o desembarque na Normandia e pelo Natal já os ingleses e os americanos estavam no Reno. Foi por meados de 1944 que conseguimos obter autorização para a assinatura de jornais. As notí-

218 cias chegavam-nos agora com regularidade, embora atrasadas. Porém existiam outras fontes de noticiário, e estas eram mais actuais. Ouvidos no Campo escutavam a rádio e transmitiam-nos. Tínhamos assinado vários jornais, e um dia chegaram-nos por fim às mãos, o Século, o Diário de Noticias, o Primeiro de Janeiro, o Diário Popular. Que dia grande! Que duro combate travado de que por fim obtínhamos a vitória! Nós, que na nossa ânsia de notícias tínhamos sido leitores dos pedaços de jornal usados nas latrinas dos guardas! Que alegria! Que ansiedade! Todos queríamos ler. E estabelecemos que o refeitório seria a sala de leitura. Líamos tudo. Terminado um jornal pegávamos noutro que também líamos de ponta a ponta. Lembramo-nos ainda de algumas como "depois das nove", "comentários", "peço a palavra". Nem um artigo ficava sem leitura, principalmente se estivesse relacionado com a guerra. Quando o jornal nos caía nas mãos liamos em voo os grandes títulos: "A frota aérea que protegeu as tropas de invasão, "Guerra nos cinco continentes", "Na Normandia, o inimigo tentou reforçar os testas de ponte; mas não se realizou qualquer novo desembarque. Era um comunicado do Quartel-General Alemão. "Comunicado do Grande Quartel-General Russo: ao norte e noroeste de Jassy repelimos novos ataques inimigos com grandes massas de infantaria e de tanques", "Colónia intensamente bombardeada". E naquela ânsia de ler esbarrávamos de quando em quando em frases que eram como que tropeções na nossa familiaridade com jornais havia tanto tempo interrompida. Líamos: "Os 3500 contos da Lotaria de Santo António" ou "O Crime da Meia Noite" folhetim de... 219 - Não interessa! - dizíamos nós com impaciência: "Continuam bem as operações, segundo os planos estabelecidos e os horários previstos". - Interessa! E mergulhávamos na leitura e acompanhávamos ansiosos os avanços dos Aliados pela Normandia. Não nos cansávamos de ver as fotografias de aviões em formação de combate, de soldados páraquedistas a pintarem-se de negro, a camuflarem-se com a noite, de oficiais que acertavam os relógios para e "Hora H". Nem nos fatigavam os mapas tracejados, com grandes setas apontando as direcções das ofensivas, as linhas marcando as frentes de batalha, que percorriamos com a unha do indicador, avaliando distâncias, o que faltava percorrer a ferro e fogo para esmagar o nazismo que tanta morte e destruição lançara por toda a Europa. Tínham-nos chegado os jornais de 22 de Junho. Não descansávamos. Era preciso ler tudo. Doíam-nos os olhos, mas sorríamos felizes uns para os outros: os jornais passavam de mão em mão. O avanço dos Aliados continuava. A leste avançava o Exército Vermelho, que em Abril de 1945, no Elba, iria encontrar as primeiras patrulhas americanas. E a 30 de Abril, já com Berlim ocupado pelas tropas soviéticas, Hitler suicidar-se-ia. O nosso Natal de 1944 foi alegre. A vitória estava próxima: - É o último Natal que aqui passamos! - diziam os mais optimístas. Nos carcereiros pesava o desalento. Filipe de Barros, com os bolsos cheios, terminava a sua comissão de serviço com louvores. 220 ÚLTIMOS ANOS Numa manhã de Janeiro, pelas seis horas, os chefes de caserna foram chamados ao portão para lhes ser comunicado que o novo director ia passar revista ao Campo.

Devíamos portanto ter as camas feitas, tudo muito arrumado, sendo mesmo obrigatório vestir a roupa em melhores condições. Era o que sempre acontecia quando um novo director chegava, e, uma hora depois, já as casernas tinham perdido aquele aspecto de armazém de ferro-velho. Toda aquela incrível variedade de objectos que iamos acumulando, porque nos eram úteis, se escondera por baixo das camas, onde também os lençóis sujos e esfarrapados estavam ocultos pelas mantas ou o que delas sobrevivia. Só o nosso vestuário não era possível esconder. Quando o capitão David Prates da Silva, homem alto e forte, entrou acompanhado pelos guardas e pelo médico, logo parou junto do primeiro casaco esfarrapado. - O senhor não tem outro casaco? - Tenho, sim, senhor director. - Porque não o vestiu? - Ainda está mais roto que este. - Mais roto ainda? Há quanto tempo lho deram? - Há dois anos e meio, senhor director. 221 Voltou-se o capitão Prates da Silva para o chefe dos guardas. - Não há um período de duração para as roupas que se entregam aos reclusos? - Saiba Vossa Excelência que há, senhor director. - E qual a duração calculada para um casaco de cotim? - Oito meses, senhor director. A visita não decorria como anteriormente era habitual. O capitão Prates da Silva fazia perguntas, interrogava o chefe dos guardas, queria saber as razões de todas as deficiências que observava. - Mas não há mantas na Colónia? - Não há, senhor director. Mas não há porquê? E o chefe dos guardas gaguejava explicações, tinha gestos vagos. A impressão que o capitão Prates da Silva nos causou foi favorável. O tempo confirmou a nossa opinião. Foi um director humano, tal como antes o fora José Júlio da Silva, e durante nove anos se manteve dirigindo o Campo, até 1954, quando foi encerrado. Foi encerrado como Colónia Penal. O fascismo de modo algum queria confessar agora que se tratava de um campo de concentração. Porém houve um tempo em que nas cartas enviadas aos nossos familiares escrevíamos "Campo de Concentração da ilha de Santiago, em Cabo Verde". Para nós isto tinha alguma importância. Era uma forma de fazermos confessar - uma vez que o aceitavam não se tratar de uma colónia penal, mas sim de um campo de concentração. A PIDE ao consentir visava um fim repressivo, espalhava o terror que os campos de concentração traziam em si, ao estabelecer-se analogia com os da Alemanha nazi. Permitiu-o enquanto o fascismo vencia pela Europa. 222 Quando as derrotas na frente leste abalaram as esperanças salazaristas na vitória do nazismo, então nas nossas cartas impunha-se a designação de colónia penal. Em Janeiro de 1945 era já evidente que a guerra não iria durar mais que alguns meses. Terminou a 8 de Maio, com a rendição incondicional da Alemanha. Sentimo-nos participantes naquela tão grande vitória, tão carregada de consequências históricas. Era também nossa, pois no Tarrafal tínhamos travado batalha contra o fascismo e venceramos. E sabermos como o povo português se manifestara no Dia da Vitória comovia-nos até às lágrimas. O salazarismo tentou então mascarar-se com humanidade na pessoa do capitão Prates da Silva. Três camaradas regressaram ao Continente para que tivessem a

devida assistência médica. O rancho melhorou. A água era-nos fornecida em melhores condições. Líamos livros e jornais sem receio de buscas. O trabalho duro foi posto de parte e fazía-mos apenas aquilo que nos era necessário. O que aliás se impunha dado o estado de saúde geral. Mas o que foi inteiramente novo foi ser-nos permitido ouvir a rádio. Só as emissoras nacionais, com guarda sempre presente, vigiando o camarada por nós nomeado. Ouvir postos estrangeiros era proibido e teria como consequência ser-nos tirada a regalia. Instalarmos um aparelho nosso não era consentido, e a solução foi colocar-se o aparelho na casa da guarda, sobre o talude. Todas as tardes, sentados ou de pé, à entrada do Campo, escutávamos a Emissora Nacional, mas tão limitada pela Censura que preferíamos ouvir os noticiários transmitidos pelo Rádio Clube de Moçambique. A 8 de Outubro de 1945 formou-se o Movimento de Unidade Democrática. Para nós era arrebatador 223 saber que continuava bem viva a luta contra o regime salazarista. Salazar tinha montado a sua resposta a uma Europa nova. Prometera eleições tão livres como na livre Inglaterra. Porém a Emissora Nacional não estava aberta às vozes da Oposição, e nós, no Campo, ouvíamos António Ferro e Júlio Botelho Moniz e as mesmas afirmações fascistas de que Portugal é nosso e de que ninguém o arrancaria ao seu domínio nem a votos nem a tiros. E ouvimos ainda, nós, prisioneiros do Tarrafal, o que nos deixou boquiabertos de espanto: em Portugal não existiam presos políticos. Por meados de 1945, dias depois da chegada do navio da carreira, saiu da secretaria um guarda com uma lista. Bateu as pancadas no carril para a formatura e começou a fazer a chamada. E aqueles que chamava saíam da forma e faziam uma segunda formatura junto de um dos pavilhões à entrada do Campo. Éramos uns quarenta e seguiríamos sob prisão para Portugal no primeiro navio que aportasse a Santiago. O capitão Prates da Silva apareceu para nos felicitar. - Será bem melhor do que viver no Campo. Em Portugal, certamente as condições prisionais seriam melhores, mas todos nós continuávamos a esperar que em breve teríamos de sair em liberdade. Assim aconteceu para a grande maioria da população prisional do Campo. Em Outubro, Salazar viu-se forçado a decretar uma amnistia. A situação interna, à beira de eleições, e a situação política externa, depois de uma guerra vitoriosa para as democracias europeias, forçavam o ditador a, não querer que o vissem como uma sobrevivência ao que acabara a 8 de Maio de 1945. 224 E mais uma vez houve toque para formatura e discurso do director. Eramos cento e dez os abrangidos pela amnistia, incluindo os quarenta da lista anterior que esperavam pelo Guiné. - A partir deste momento - dizia-nos Prates da Silva - podiamos sair do Campo em liberdade. Mas teríamos de nos manter à nossa custa até embarcarmos para Lisboa. Estava próxima a liberdade e contudo não nos alegrava tanto aquele momento como das muitas vezes em que o imaginávamos. Sempre tínhamos pensado que iríamos todos. O fascismo português resistia. Camaradas ficavam. O Tarrafal não cedia facilmente. Mesmo os que, já estavam amnistiados não podiam abandonar o Campo. Quase todos nós continuámos detidos, pois não tínhamos a possibilidade de nos sustentarmos. E assim continuámos até 25 de Janeiro de 1946. Que madrugada! Iamos passando pela secretaria. Entregavam-nos o dinheiro que ali tínhamos depositado, revistavam as malas, que também não tinham resistido a tantos anos. Da roupa com que ali entrámos pouco restava, e a solidariedade mais uma vez se manifestou. Os que ficavam cediam o que das suas coisas ainda se salvara. - Leva esta camisa. - E para ti?

- Aqui acabava por se estragar. A solidariedade era isto. Aceitávamos. - Mando-te outra de lá. Erguia-se o punho em mensagem de firmeza e confiança entre os que ficavam e os que iam continuar a luta, entre os que partiam e os que no Campo iriam continuar tão firmes quanto o tinham sido até ali. Chegou o momento da partida, aquele doloroso instante dos abraços de despedida, das lágrimas que se contrariam, que fungávamos e engolíamos 225 com raiva, das vozes que a comoção apertava na garganta apesar de toda a força que fazíamos para que se soltassem sonoras e límpidas. Mas não conseguíamos. - Vai ver a minha gente. - Logo que chegue. E o abraço desfazia-se quase sem nos olharmos, um tanto envergonhados pelas lágrimas que queríamos esconder de olhos tão marejados como os nossos. Íamos saindo do Campo. - Até breve! - Até breve! - respondiam os camaradas junto do portão vendo-nos partir. Em sucessivas viagens a camioneta foi-nos transportando até à vila. Era muito cedo, e a gente cabo-verdiana que nos via em liberdade alegrava-se por nós. Por ali andárnos muitas horas, livres, sem guardas armados. Ali tínhamos desembarcado havia muitos anos, ali iríamos embarcar para a viagem de regresso. Fomos à praia, sentámo-nos junto dos coqueiros à beira-mar, com os olhos correndo pelo oceano que nos era familiar depois de todos aqueles anos. Já o sol descia para a ilha do Fogo quando o Guiné fundeou ao largo. Uma lancha ia-nos levando para bordo. Da amurada, passageiros assistiam ao nosso embarque. O Guiné largava e ficámos ainda no convés a ver o recorte da ilha, o monte da Graciosa... Aquela hora, no Campo.. E todos sabíamos o que estariam fazendo os camaradas que tinham ficado. Viajávamos em terceira classe. Mas não Esmeraldo Pais Prata, que também seguia para Portugal, terminada a sua comissão de serviço. E com os passageiros com os quais logo estabelecemos relações nos apressámos em dizer-lhes como 226 era o Tarrafal, quem era o Tralheira e como exercia clínica. Foi geral o repúdio dos passageiros. Até ao fim da viagem ninguém lhe desejou o convívio. A 1 de Fevereiro, pelo nascer do Sol, já todos nós estávamos no convés. Ainda distante, o casario pelas encostas de Lisboa reflectia os tons avermelhados da alvorada. Ao cais de Alcântara onde embarcámos viera muita gente. E não eram só os nossos familiares. Apesar da repressão policial o povo veio saudar-nos. Lembramo-nos de uma operária, que arquejando por ter corrido, receando já não nos encontrar, furava pela multidão e perguntando: - O camarada veio do Tarrafal? E quando acertava, abraçava-nos, sorria. - Trago-lhes as saudações dos operários daquela fábrica além! E novamente se lançava para outro remoinho de gente onde calculava ver movimentos de abraços em torno de alguém que regressara. E ouvíamos a sua voz: - O camarada veio do Tarrafal? Que alegria! Que alegria aquela mulher nos trouxe! A melhor que poderíamos esperar! O Tarrafal continuava. O fascismo em Portugal não fora derrubado. Tremera a 8 de Maio com as grandes manifestações populares pela vitória dos Aliados. Salazar

definia Portugal como uma democracia orgânica. Formara-se o Movimento de Unidade Denocrática, mas a Oposição, sem possibilidades de concorrer às urnas, abstivera-se nas eleições legislativas. Foi depois das eleições que recebemos cartas, livros, alimentos, remédios vindos de Cesina Bermudas, Maria Lamas, António de Macedo, Mário 227 Cal Brandão e outros militantes do MUD. Não podíamos esquecer a alegria que nos causou a sua assistência e camaradagem antifascista. Em 1946 deu-se a Revolta da Mealhada, Henrique Galvão denunciou na Assembleia Nacional que em Angola o trabalho assumia para a população angolana a forma de escravatura. A 10 de Abril de 1947, uma dezena de oficiais de alta patente do Exército e da Marinha eram presos. Na base aérea de Sintra eram sabotados aviões. Foram demitidos professores da Universidade. Em Lisboa, os estudantes manifestavam-se contra o fascismo. Os operários dos estaleiros navais entravam em greve. A Comissão Central do Movimento de Unidade Democrática era presa e, em 1949, a Oposição numa frente unida, apresentava Norton de Matos como candidato à Presidência da República. Mas mais uma vez a Oposição desistia à boca das urnas por falta de garantias indispensáveis a eleições livres. A 4 de Abril Portugal aderia à Organização do Tratado do Atlântico Norte, e Salazar sabia estar a salvo num mundo onde se travava a guerra-fria. O Partido Comunista Português continuava a ser o primeiro objectivo da repressão fascista, e para o Tarrafal foram enviados vários operários das construções navais que participaram nas greves de 1947. Ficaram separados dos outros presos políticos, que lhes prestaram toda a solidariedade possível. Também Guilherme da Costa Carvalho para lá teve de partir, e mais tarde, em 1951, pela segunda vez, Francisco Miguel. No Campo, éramos agora bem poucos. Prates da Silva foi portador de uma longa exposição dirigida a Cavaleiro Ferreira; ministro da Justiça e o criador das "medidas de segurança", pelas quais um preso, sem ser condenado a prisão perpétua, 228 pena que não existia na legislação portuguesa, podia passar toda a vida encarcerado se o governo fascista continuasse a reconhecer-lhe "perigosidade". Neste documento era solicitada uma redução de quatro anos no nosso tempo de pena, uma vez que tendo tomado parte no Movimento de 8 de Setembro tínhamos sido condenados a prisão maior, e não a degredo. Porém, a resposta do ministro foi um "arquive-se", o que fez regressar ao Campo o capitão Prates da Silva, desiludido com aquele "que fazia o favor de ser seu amigo". A vida no Campo era bem menos difícil e pais de Guilherme da Costa Carvalho vieram visitar o filho e foi-lhes permitido tirar fotografias e falar conosco. De regresso a Portugal quase tiveram de percorrer o país para pessoalmente darem notícias de todos nós aos nossos familiares. Íamos saindo em liberdade. Mas, por vezes, a ordem de libertação trazia-nos novas dificuldades. Assim aconteceu com o nosso camarada José Viegas, operário litógrafo, condenado a doze anos de prisão por ter participado no 18 de Janeiro e preso havia dezassete anos. Em Dezembro de 1949 chamaram-no à secretaria, onde o subdirector - Prates da Silva estava de férias - lhe disse: - Acabo de receber ordem para o pôr em liberdade. Mas a passagem não lhe é paga e eu também não o posso fazer.

O orçamento do Campo não previa tais casos. Se quisesse partir teria de ser por sua conta. Entretanto passar-lhe-ia uma ressalva prisional para que pudesse circular livremente pelas ilhas do arquipélago. Depois de dezassete anos de prisão era liber tado. Mas como servir-se da liberdade? Como ficar em Cabo Verde, onde ninguém o conhecia, sem dinheiro, com a saúde abalada pelo paludismo? Só 229 encontrou uma solução: foi pedir ao subdirector que o autorizasse a continuar preso, junto de nós, até que a sua família lhe mandasse o dinheiro necessário para a viagem. O pedido foi satisfeito, mas sem direito ao rancho. No orçamento do Campo também não estavam previstas tais situações. Dos pais de Guilherme da Costa Carvalho, que ainda se encontravam em Cabo Verde, e de nós veio o auxílio necessário. Faltava a roupa. Aquela que trouxera durante todos aqueles anos fora comida pelas baratas, pelos grilos e traças na arrecadação do Campo. Mas também esta dificuldade se resolveu. O camarada Josué Romão era da mesma estatura e cedeu-lhe um casaco de fazenda que se aguentara e, com a camisa, as calças e as botas cardadas da farda do Campo, embarcou pelo Natal de 1949, acompanhado pelos pais de Guilherme da Costa Carvalho. Em Lisboa, depois das formalidades alfandegárias e sanitárias, acabou por almoçar com Cândido de Oliveira e Heliodoro Caldeira, irmão de Alfredo Caldeira, que morrera no Tarrafal. Encontravam-se na gare esperando o desembarque do pai de Guilherme da Costa Carvalho. Almoçaram num hotel, onde o vestuário do nosso camarada despertou muita curiosidade. Não tardou que empregados e pessoas que ali almoçavam os rodeassem e fizessem perguntas sobre o Tarrafal. Entre elas estava uma senhora que era a telefonista do hotel e lhe perguntou: - Eu só queria saber como está meu pai. Há tantos anos que nada sei dele! E soube que o pai fora o Albino de Carvalho. Republicano, antifascista, exilara-se em Espanha, onde, quando rebentou a Guerra Civil, se bateu contra os franquistas. De regresso a Portugal, fora 230 preso e enviado para o Tarrafal onde morrera a 22 de Outubro de 1941, com cinquenta e seis anos. - Sim, minha senhora, conheci muito bem seu pai. Estava comigo no Tarrafal... - E já, não está? O nosso camarada não sabia que dizer. - Não a avisaram? Ninguém a tinha avisado de coisa alguma, e ela insistia em saber. - Morreu a 22 de Outubro de 1941. Com uma biliosa. Ficou imóvel, a olhá-lo como que atordoada, e a seguir afastou-se, quase a correr, com os ombros sacudidos pelos soluços. Foi triste o almoço. Mas quantos assistiram avaliaram bem ao vivo o que era o fascismo. Íamos saindo em liberdade. Em 1952, no Campo, já eramos apenas vinte e dois presos. A libertação continuava a ser difícil, criavam-se dificuldades. Já por finais de Setembro foram libertados Joaquim Ribeiro, Josué Romão, Marques Figueiredo, Joaquim Dias e João da Silva Campelo. Mas só vinte e quatro horas antes do Ana Mafalda aportar à Cidade da Praia os avisaram da hora certa do embarque. A direcção do Campo negou-se a transportá-los; que esperassem um mês até à chegada do próximo navio. Mas quem, depois de dezasseis anos no Tarrafal, queria esperar mais trinta dias? Da vila do Tarrafal à vila de Santa Catarina eram quarenta quilómetros a subir e descer por montes e vales, sem estradas e sempre por maus caminhos. De Santa

Catarina à Cidade da Praia havia estrada e carreira diária de camioneta. Decidiram formar uma brigada, contrataram um guia e lá seguiram, dispostos a percorrer aqueles quarenta quilómetros em doze horas. Nem imaginavam 231 as dificuldades que iam ter e mesmo o perigo a que se arriscavam. Cometeram o erro de querer fazer o caminho a cavalo. Mas não encontraram selas e tiveram de os montar em osso. Dois quilómetros andados e preferiram ir a pé, mas embaraçados agora a puxar os cavalos pela arreata em vertentes da serra, escorregadias das chuvadas de Setembro e onde os cascos dos animais resvalavam constantenente, mais do que as botas cardadas. Quando o terreno era mais íngreme aguentavam com o dorso as cabeças dos cavalos, e cada escorregadela era um sobressalto, o perigo de se despenharem por aquelas encostas rochosas. Na frente, seguiam os quatro rapazes cabo-verdianos, que levavam as malas à cabeça, mas corriam e trepavam por vertentes e ladeiras com uma ligeireza que invejavam. Para Joaquim Dias, muito envelhecido por todos aqueles anos de Tarrafal e que apesar da má alimentação engordara muito, aquela caminhada estava para além das suas forças. Por fim já não conseguia dar mais um passo. - Eu não arranco daqui. Sigam vocês e deixem-me ficar. Não posso mais! Ninguém no Campo abandonaria um camarada. Com a roupa das malas improvisou-se uma albarda e o Joaquim Dias lá seguiu. Foram doze horas duras, mas chegaram à vila de Santa Catarina. A camioneta de carreira levou-os à Cidade da Praia a tempo de embarcarem no Ana Mafalda. Em Junho de 1953 foram transferidos para Peniche os marinheiros que ainda se encontravam no Tarrafal. No Campo ficou apenas Francisco Miguel. 232 Tinha voltado ao Tarrafal no inicio de 1951. Ia castigado com um mês de cela disciplinar e acompanhado com esta recomendação do director de Peniche: é homem de mau carácter e com tendência para estragar a fazenda nacional. Era esta a forma como se exprimia o uso dado por Francisco Miguel a dois lençóis e uma manta, transformados em sacos onde meter a terra cavada para abrir galeria pór onde fugir. A fuga era certamente uma prova do seu mau carácter. Era a segunda vez que Francisco Miguel era enviado para o Tarrafal. De Junho de 1940 a Janeiro de 1946, encontravam-se então no Campo uns duzentos presos. Daquela segunda vez seríamos uns vinte. Havia muito mais silêncio. Os carcereiros não faziam a vida tão dura. Estudávamos, fazíamos pequenas estatuetas de chifre, e nisto era mestre o camarada Casquinha. Tão cheios de vida eram os seus papagaios e cegonhas que os guardas nos pediam que os fizéssemos para eles. Não fizemos. Eram ofertas para as nossas famílias. Eram objectos de adorno, mas na pequena base de madeira a que as fixávamos, numa cavidade bem dissimulada, seguiam escritos nossos, longas cartas. Assim seguiu em letra minúscula um relatório de Francisco Miguel destinado ao Partido Comunista Português. Depois de dactilografado transformou-se em vinte e duas páginas cerradas, a um espaço. Íamos assim quebrando o nosso isolamento apesar de todos os esforços dos carcereiros. Mas também nós acabámos Por ser transferidos, nós os marinheiros do 8 de Setembro, os "sócios fundadores" do Tarrafal, como muitas vezes dizíamos em gracejo. Francisco Miguel ficou. A noite tinha a companhia de dois camaradas anarquistas. Pratas e José Alexandre, que trabalha- 233

vam fora, do campo e recolhiam pelo fim da tarde. Quando em Dezembro de 1953 partiram para Portugal, para o Forte de Peniche, Francisco Miguel passou a ser o único preso do Campo. Pela madrugada de 26 de Janeiro de 1954, precisamente três anos depois da sua segunda chegada ao Campo, seguiu no Alfredo da Silva, com rumo a Lisboa. O Campo de Concentração do Tarrafal estava encerrado. OS VENCEDORES DO CAMPO Todo o militante antifascista sabe que a prisão é um risco a correr. E ao ser preso terá de se preparar para interrogatórios brutais, para espancamentos, para a tortura, uma vez que para todas as polícias ao serviço dos regimes fascistas o milihante preso representa uma potencial fonte de informações. Tudo tentará para lhas arrancar. Se o consegue, obtém nomes, moradas, muitos dados que lhes permitisse novas prisões. É evidente que se todo o militante antifascista não resistisse aos interrogatórios em bem pouco tempo o partido a que pertencesse estaria totalmente encarcerado. E esta é a razão por que um partido na ilegalidade tem de adoptar normas conspirativas e impõe como dever a cada um dos seus quadros e filiados que nada declare à polícia, mesmo quando submetido a tortura, mesmo quando a sua vida esteja ameaçada. Porque um partido em luta contra o fascismo, causa de miséria e morte para milhões de seres humanos, pretende alcançar finalidades que estão bem acima de quaisquer considerações de interesse pessoal. E todo o filiado num partido deste tipo o sabe e já o sabia ao ter a grandeza de enfileirar num combate que não pode deixar de ser perigoso. Mas na prisão não deixa o militante antifascista de continuar a sofrer os ataques dos carcereiros. 235 Nunca abandonarão as tentativas para o destruir para que não volte a constituir perigo para quem o aprisionou. E é preciso que resista. Para resistir terá de lutar para se manter tanto quanto possível saudável e vigoroso, apesar de quanto o carcereiro possa fazer para o enfraquecer. Terá pois de se bater por melhores condições de vida prisional. E só o poderá fazer solidariamente com todos os outros militantes antifascistas que com ele estejam encarcerados. Travam-se então as lutas com a direcção da prisão tão conhecidas de quem conheceu as cadeias políticas, por um rancho melhor; por mais tempo de recreio ao ar livre, pela prática do desporto, por uma assistência médica mais eficiente. Para resistir não pode o militante antifascista perder a visão da luta que o seu partido trava e onde continua a participar embora preso. Porque tem de fazer frente ao fascismo, no seu aspecto mais duro, o das prisões, e nunca lhe será tão necessária a convicção de quem é, de soldado revolucionário no combate por uma sociedade nova. E assim é necessário não se alhear da batalha onde se batem os seus camaradas em liberdade. Tem de quebrar o isolamento que os carcereiros querem fechar à, sua volta, tem de conhecer o que se passa no seu país e no mundo, onde outros camaradas se batem no mesmo combate, onde outros já triunfaram e têm agora pela frente as grandes tarefas das sociedades progressistas. O militante antifascista deve pois ler atentamente os jornais, os livros, fazer análises dos acontecimentos políticos nacionais e internacionais, estudá-los com os seus companheiros de prisão. Mas deve fazer mais o militante antifascista. Deve aproveitar o tempo de prisão para se tornar mais sabedor, mais apto politicamente. Porque assim como o total de uma soma será tanto mais 236

elevado quanto maiores forem os valores das suas parcelas, assim também um partido será tanto mais forte quanto maior for o valor dos seus militantes. E eis porque os presos políticos organizavam cursos, estudavam línguas, aprofundavam os conhecimentos do seu próprio idioma para desenvolverem as suas capacidades de expressão. Quando saíam em liberdade eram melhores militantes, mais sabedores, mais experientes. Eis o que procurávamos fazer no Campo de Concentração do Tarrafal. Existiam no Campo três grupos políticos. De início, para o Tarrafal; seguiam, com raras excepções, apenas os comunistas e os anarquistas. Entre 1935 e 1940, a polícia política vibrou profundos golpes nas organizações revolucionárias, que não tinham tido tempo de se recompor das sérias baixas depois do 18 de Janeiro de 1934. O Partido Comunista Português, em Novembro de 1935, com as prisões de Bento Gonçalves, José de Sousa e Júlio Fagaça sofreu um rude golpe que repercutiu na actividade partidária dos anos seguintes. Porém o Partido já tinha em si a vitalidade necessária para superar a crise através de novos quadros. Em Abril de 1936 constituiu-se um Comité Central de que faziam parte Alberto Araújo, Manuel Rodrigues da Silva, Alvaro Cunhal e Pires Jorge, entre outros. Nesses anos destacam-se, na actividade partidária Francisco Miguel, José Gregório, Manuel Guedes, Augusto Valdez, Matoso; Ludgero Pinto Basto, Sacavém e outros. O Partido Comunista Português continuava a sua luta. O mesmo não aconteceu com os anarco-sindicalistas. As prisões de dirigentes como, Arnaldo Simões Januário, Mário Castelhano, Correia Pires, e do sindicalista Carlos Ferreira, enfraquecera muito o movimento a que estavam ligados. 237 Deflagrou a Segunda Guerra Mundial, e Salazar, depois de ter contribuído para o qual para o triunfo de Franco muito concorreu, auxiliava agora a Alemanha nazi com a sua neutralidade colaborante. Tinha esperança na vitória do fascismo, na derrocada da URSS, ferida pela vaga de ferro da Wehrmacht. E este período que vai do final da Guerra Civil Espanhola até à queda militar da França e de muitos países da Europa, em que a vitória do fascismo parecia inevitável, foi o tempo mais feroz vivido no Tarrafal, Mas o Partido Comunista Português caminhava para grande partido nacional; nós, no Campo, resistíamos e a esperança fascista na morte da luta revolucionária em Portugal desvanecia-se. Foi por esta altura que novos presos de tendência republicana foram igualmente enviados para o Tarrafal. E também gente de uso ilegal de contrabando e mesmo de delito comum. Muitos eram analfabetos e alguns caracterizavam-se pelo seu mau carácter. Nunca compreendemos as razões por que os internaram em os Aqueles homens - assim o deduzimos - que politicamente não representavam qualquer perigo para o salazarismo, representavam para a Polícia uma tentativa de desorganizar a nossa vida no Campo. Além disso facilmente os carcereiros os transformavam em instrumentos ao seu serviço. A nossa atitude para com eles foi a da solidariedade. Ensinámos a ler os analfabetos e íamos explicando as razões por que ali estávamos. Alguns foram atraídos para o nosso lado em liberdade eram homens diferentes, politicamente conscientes e mais cultos. Com outros nada foi possível, e foram de facto manobrados contra nós. 238 Com a queda da França, quantos se encontravam no Campo de Concentração de Argèles acordaram uma manhã sem guarda a vigiá-los. Eram milhares. Ali os tinham encerrado depois de atravessarem os Pirenéus, vindos de Espanha, onde tinham combatido os franquistas.

Os portugueses que combateram contra o fascismo dirigiram-se ao Consulado de Portugal e obtiveram salvo-condutos. O regime era bem perigoso em Portugal, não regressar não o era menos. Atravessar a Espanha até à fronteira portuguesa era a possibilidade de mau encontro com um pelotão de fuzilamento, mas ficar e cair nas mãos dos nazis era igualmente a morta ou bem pior. Os que chegaram à fronteira portuguesa foram presos e enviados para o Tarrafal. E assim, entre nós, tivemos também os antifascistas que se bateram em Espanha. Entre eles, Mário e Manuel Baptista Reis, dois irmãos, o Mário, como capitão de artilharia, o Manuel, como capitão médico, o Miguel Ramos, que com Mário Reis frequentara cursos intensivos de artilharia e como ele comandara baterias em várias frentes de batalha, o Alípio, que fora tanquista, o Castro, que na cidade de Valência fora feito prisioneiro e se salvara do pelotão de fuzilamento por conseguir convencer os fascistas de que era espanhol, além de outros. Por eles, pelos seus relatos, pelas palestras feitas; muito soubemos da Guerra Civil de Espanha. Naqueles anos de guerra, o número dos que ali se encontravam no Campo chegou a ir além de duzentos e quarenta. Mais de metade eram comunistas ou simpatizantes. A seguir vinham os anarquistas. Muito menos numerosos eram aqueles a quem chamávamos republicanos. Profissionalmente, quase todos éramos operários. Os intelectuais eram bem poucos. A média 239 das idades oscilava entre os vinte e cinco e os trinta anos. Por 1942, chegou nova leva de democratas. Entre eles, Cândido de Oliveira, jornalista de grande mérito, considerado o maior técnico português de futebol, homem de ideias progressistas, firme e generoso, o ex-capitão Correia, o médico Ferreira da Costa e outros. Com excepção de Ferreira da Costa, todos foram alojados fora do Campo por ordem da Polícia, que não estava interessada no seu contacto connosco. E ainda bem, pois os nossos processos para furar o isolamento melhoraram muito com o auxílio de Cândido de Oliveira. Por seu intermédio, enfrentando grandes riscos, recebíamos um noticiário sempre actualizado. Era esta a constituição do Campo, e a par da organização imposta pelos carcereiros existia uma outra, a nossa. Cada grupo político - comunista, anarquista, republicano - acordou em ser necessária uma organização entre todos os presos do Campo; que os representasse e colocasse à direcção os problemas por nós vividos e a que fosse necessário dar solução. Cada barraca elegia um chefe de grupo. Os chefes de grupo eleitos designavam entre si a Comissão do Campo, composta por cinco elementos. As reuniões ao nível de barraca eram frequentes, ali se discutiam todos os nossos problemas, que, pelos chefes de grupo, eram levados à Comissão do Campo. Sabiam os carcereiros desta organização, e embora tentassem surpreender e impedir as nossas reuniões, viam-se forçados a receber os nossos representantes. Não era pequena esta vitória, só alcançada graças à nossa unidade e à nossa consciência política. 240 A solidariedade era a nossa resistência às intenções criminosas dos carcereiros. Assim; defendemos muitos camaradas de saúde abalada pelo paludismo, pela alimentação do Campo, pelo trabalho forçado, pela frigideira. A nossa solidariedade estava organizada em comunas. Quanto chegava dos nossos familiares, fossem alimentos ou dinheiro, era entregue na comuna; que o distribuia ou reforçava a alimentação daqueles cuja saúde mais risco corria de fraquejar. E aqui é de salientar a actividade infatigável dos camaradas José Neves Amado, João Faria Borda e Luís da Cunha Taborda.

Quantas vezes nas cartas nos perguntavam: - Gostaste do doce que te mandei? Respondiamos: - Gostei. Estava muito bom. Mas nem o tínhamos provado. Fora distribuído pelos camaradas mais fracos e doentes. Os carcereiros sabiam que nem só as nossas familias nos enviavam alimentos e dinheiro. Sabiam existir uma solidariedade organizada como o Socorro Vermelho Internacional (SVI). E assim nos tempos mais duros do Campo nunca os guardas perdiam oportunidade para castigos colectivos, em que ficávamos impedidos de receber quanto de Portugal nos enviavam. Entre nós, só os comunistas e os anarquistas estavam organizados e dispunham de comunas. Entre a dezena de republicanos não se tinham estabelecido as nossas normas de solidariedade. E compreendia-se que assim fosse. Eram os homens dos "putchs" militares planeados, entre alguns civis e oficiais. Uniam-se para o derrubamento do Governo, nem normas conspirativas. Aliciavam militares, faziam confidências a amigos de inteira 241 confiança, mas tudo isto acabava por chegar aos ouvidos da polícia, que pacientemente esperava o amadurecimento do fruto e, na devida altura, prendia os conjurados. Destes homens, os mais combativos foram enviados primeiro para Timor, Guiné, Angola, São Nicolau, em Cabo Verde, e por fim para o Campo do Tarrafal. Nunca a nossa solidariedade foi tão preciosa como durante aqueles dias terríveis da Brigada Brava. Era nomeado um controlador do acampamento que tinha por principal tarefa, por intermédio dos responsáveis de cada barraca, recompor os camaradas exaustos por aquele trabalho brutal com uma alimentação reforçada, repouso, roupa limpa. Fazíamos quanto nos era possível para que resistissem melhor ao trabalho do dia seguinte. E isto era tanto mais necessário quanto João da Silva nos arrancara a possibilidade de sermos nós a indicar aqueles que estavam em melhores condições de energia e de saúde para suportar os trabalhos mais pesados. João da Silva, empenhado na nossa destruição, não queria perder a oportunidade de ser ele a indicar para os trabalhos extenuantes aqueles precisamente em que mais estava interessado em provocar o esgotamento. Quebrar-nos a resistência física era via para também nos fazer fraquejar como militantes, e os mais atingidos eram aqueles que tinham demonstrado ser mais corajosos, mais aguerridos como dirigentes revolucionários. Era uma guerra de crueldade, sem repouso, que nos moviam. Tínhamos de resistir, manter a saúde do corpo e da mente. E porque lutávamos pela nossa saúde nunca deixámos de colocar as nossas reclamações à direcção do Campo para que o rancho fosse melhor, para que a assistência médica fosse eficiente, para que pudéssemos praticar desporto... 242 Conseguíamos por vezes. Mas enfraquecidos devíamos primeiro ser observados pelo nosso camarada médico Manuel Baptista dos Reis. Praticávamos voleibol, basquetbol, futebol. A prática de desporto no Campo teve altos e baixos. Quando pelo mundo a vitória começou a fugir aos fascistas, os carcereiros autorizaram-nos a fazer desporto. E tivemos um campo e equipamentos. Umas camisolas eram brancas; outras tingimo-las de vermelho. Os desafios travavam-se entre civis e marinheiros. Houve um desafio de futebol que ficou para sempre lembrado entre nós. Disputámos um troféu. Era o Popee, o marujo dos desenhos animados, feito em madeira por Armando de Carvalho e pintado por João Rodrigues, litógrafo. Devia ser oferecido à mãe de Oliver Bártolo, como prova de amizade e de reconhecimento, pois nunca em sua casa fora negado auxilio às mulheres, mães e filhas de antifascistas.

Devia ser o nosso camarada a levá-lo para que ele próprio o entregasse a sua mãe. Não o pôde fazer. Ao chegar a Lisboa soube da sua morte, um mês antes. Foi um desairo renhido e nem brancos nem vermelhos arrancavam a vitória. Então, Fernando Vicente recebeu a bola e numa grande jogada, sem defesa possível, fez o golo do triunfo. E por entre as nossas vozes ouviu-se o grito de alegria do camarada Oliver: - O boneco é meu! Quando a repressão era dura, e sempre a dureza coincidiu com aqueles anos de 38 a 40, quando o nazismo não parecia ter adversário que o pudesse bater e os carcereiros queriam isolar os "ferros em brasa", como nos chamavam; isolar-nos de tudo e de todos, reduzir-nos aos próprios pensamentos, amachucar-nos, então tínhamos de recorrer ao jogo de berlinde: 243 Demonstrávamos aos guardas. que não nos venceriam, que nunca nos veriam acabrunhados, que de nós não conseguiriam expulsar a alegria. Berlindes não tínhamos, mas os nossos camaradas canteiros faziam-nos em pedra. Escavávamos no chão as pequenas covas, formávamos equipas, discutíamos as jogadas e exagerávamos um pouco a nossa animação para lhes fazer ver que não nos tinham atingido privando-nos de livros; de papel, de quanto pudesse cultivar-nos ou distrair-nos. Os guardas afastavam-se. Sentiam-se sem argumentos. Nos regulamentos do Campo, nas ordens do director não havia qualquer referência a berlindes: mas não todos, um entendeu dever impedir-nos o jogo. - Os senhores têm autorização para jogar? - É preciso autorização para jogar o berlinde? - sim, senhor. Não podem jogar sem autorização do senhor director. Passámos a fazê-lo às escondidas, e quando o tal guarda se aproximava metiamos os berlindes no bolso. Na verdade eram os carcereiros que ficavam perturbados. Os seus golpes pareciam resvalar em nós sem nos ferir. Tínhamos imaginação, e o que nos retiravam, logo encontrávamos com que o substituir. Nem tudo nos podiam tirar. Era impossível. Como o pôr do Sol. E ali ficávamos em contemplação. Um grupo de homens com as calças e as camisas rasgadas, de tairocas de madeira, ar doentio do paludismo, de olhos no Sol, que mergulhava lá para trás da ilha do Fogo. Que cores extraordinárias as das nuvens! Havia tons que nunca tínhamos visto e nos levavam a dis- 244 cussões em que vinha à baila Júlio Verne e o raio verde de que falou num dos seus livros. Mas, além daqueles belíssimos poentes, tínhamos outros recursos. Com que entusiasmo plantávamos e víamos crescer os ips de manjericó! E como defendíamos do vento uns adoendros por nós plantados dentro do Campo! com que alegria olhávamos as poucas acácias rubras e as de bolinhas amarelas, a que chamávamos arábicas por causa da resina, e de que cuidáramos desde a sementeira! Também não nos podiam tirar o motivo de distracção que eram os animais do Campo. Fizeram por vezes grandes batidas às aves e aos cães, mas sempre sem resultado. A barrica dos restos era um chamariz a atraí-los. Era muito variada a fauna do Campo, principalmente em insectos e pássaros. Pela manhã assistíamos ao render dos animais nocturnos. Voavam os morcegos e os mochos para os seus sombris abrigos defendidos da luz do Sol, e regressavam os corvos, os jagudis, os bicos-de-lacre e os milhafres. Eram animais úteis; comiam os restos que a nossa higiene do Campo pudesse deixar esquecidos; comiam ratos.

Os milháfres planavam lá no alto, sempre atentos. O doutor Manuel Baptista dos Reis punha-lhes à prova a rapidez de voo. Juntava pedaços de gordura, restos de comida que lançava para o ar servindo-se da colher como de catapulta. Vinham então em voo picado, muito velozas, e com as garras apanhavam a comida no ar para logo ganharem altura. E de tal modo se habituaram aquele exercício que um dia um camarada, ao atravessar o Campo com o prato de sopa numa mão e na outra um de arroz com carne, para levar a um de nós que estava 245 doente e não podia ir ao refeitório, foi assaltado. De repente, qualquer coisa passou veloz na sua frente, o prato fugiu-lhe da mão, mas não a carne das garras do milhafre que lá do alto caíra e para o alto voltava. De uma outra vez estávamos na cozinha a descascar batatas quando ouvimos um piar de ave em perigo. Olhámos. Um milhafre voava ainda a baixa altura com um pinto nas patas. Atirámos-lhe pedras, e ele largou a presa. Era um pinto de galinha do mato, com alguns ferimentos ligeiros. Levámos a ave para uma das casernas, lavámos-lhe as feridas e íamos apanhar gafanhotos e grilos para o irmos alimentando. Em pouco tempo estava curado, mes não inteiramente, pois abanava muito a cabeça. Cresceu, afeiçoou-se a nós. Era a galinha maluca, como lhe chamávamos. Sempre que nos via ir atrás de alguma barraca, onde sempre se encontravam muitos gafanhotos e grilos, seguia-nos a bicar-nos os calcanhares para nos fazer lembrar que estava ali e queria comer. As aves mais abundantes eram os corvos. Nunca abandonavam o Campo. Nos telhados das barracas crocitavam sempre, esperando o momento do despejar dos restos do rancho na barrica. Eram às dezenas. Também os corvos entraram no nosso convívio. Certa vez um deles partiu uma asa. Lá o curámos, o alimentámos, e ele foi-se deixando ficar seduzido com a nossa companhia. Mas nem sempre se mostrava muito grato. Uma vez roubou o lápis a um camarada. Vivíamos então os tempos duros do João da Silva e do Seixas, e quando escrevíamos cartas tínhamos de devolver os lápis. Não as entregar era a frigideira. Quando se apanhava sozinho no refeitório, a nossa sala de estudo, podia mesmo causar- 246 -nos prejuízos. Os tinteiros entornavam=se, os cadernos voavam atirados pelas suas bicadas, as folhas dos livros rasgavam-se. Depois, sabendo quanto nos iria desagradar o que fizera, desaparecia e ia esconder-se em qualquer canto. Os jagudis eram pássaros grandes, feios, pelados no pescoço, com uma plumagem sem graça nem brilho, de um branco-acinzentado ou de um amarelo-escuro. Pesados, eram lentos é banboleantes a caminhar, tal como os patos. Para vóarem; tinham primeiro de correr, de dar pulos, primcipalmente quando o papo, cheio na barrica das sobras; lhes pesava. Eram porém aves úteis. Eram como uma brigada de limpeza da ilha, e avia disposições camarárias proibindo que os matassem. Por vezes, os jagudis até nos vinham comer às mãos. Mas entre todas as aves os bicos-de-lacre, que conhecíamos pelos necas, eram as nossas preferidas. Saíamos do Campo e logo de ramo em ramo nos acompanhavam sempre com os seus trinados, chamando-nos a atenção. Esperavam os grilos e as baratas. Levantávamos a mão e aí vinham eles, para logo a seguir levarem os insectos nos bicos e ficarem pelas ramadas com os seus cantos a pedirem-nos mais. Eram umas aves pequenas e bonitas, de plumagem vistosa. No arame onde ficavam presos os mosquiteiros, mesmo por cima da cama do Abatino, logo que o Sol descia para o oceano, ali vinham pousar, para dormir, dois bicos-de-lacre. Uma manhã, o

Abatino viu que um dos necas não levantava voo para o bem voado dia em busca da sobrevivência. E às suas perguntas, "então que tens tu?" "Conta-me lá" viu que o passarito continuava mono, de olhos fechados, sem sinais de interesse pela vida. Saltou da cama e, com o bico-de-lacre bem acon- 247 chegado na mão; levou-o à enfermaria para consulta médica. Decidimo-nos por um clister, e com um conta-gotas procedeu-se ao tratamento. Dali a momentos, muito mais aliviado, abriu os olhos, cantou e voou para as suas caçadas de baratas e grilos. Mas não nos podemos esquecer do Pascoal, um pardal do telhado, que bebia leite e comia açúcar e nos pousava nas mãos para as guloseimas que lhe dávamos. Também os insectos nos distraíam. Eram muitos e, alguns, estranhos. Como os "fanfans", que lembravam formigas gigantes e construíam ninhos de lama, com muitos alvéolos, onde metiam aranhiços, e aranhas para alimento das suas larvas. Por toda a parte faziam aqueles estranhos ninhos: atrás das prateleiras, debaixo das camas e até dentro das; nossas botas. As borboletas eram lindíssimas, grandes, pequenas, com asas de estranho recorte e belos desenhos coloridos. As aranhas também não faltavam, havia-as grandes e pequenas, de formas e cores bizarras. Entre os animais do Campo havia um bode, o Jeremias. Tinha lá entrado ainda cabrito, destinado a uma noite de Natal. Mas, fosse por falta de temperos, fosse por qualquer outra razão, nunca o comemos, e de cabrito passou a bode e de bode a Jeremias e a fazer-nos companhia. Tomava banho conosco, comia do nosso rancho, ia dormir a sesta nas camas que lhe pareciam mais confortáveis. Mas verdadeiros amigos foram os muitos cães que vieram até nós durante todos aqueles anos do Tarrafal. Na ilha, onde a fome era uma presença constante; aquela barrica das sobras atraía-os de muito longe e por ali ficavam. Os seus inimigos eram, tal como para nós, os guardas do Campo. Muitos foram vítimas da afeição que por nós mostravam. 248 Lembramo-nos do Mangonha, o primeiro a aparecer. Nosso amigo, ficou até o notarem. Era um rafeiro grande, malhado de castanho e preto, novo ainda e muito brincalhão. Quando tocava para a formatura vinha formar também. E lá estava na frente esperando a ordem de marcha. Corria depois, mas nunca se afastava muito, sempre atento, não fôssemos nós parar. Queria estar conosco, quer quando trazíamos água do Chambão quer quando trabalhávamos na pedreira. Um dia, o Manuel Padeiro, o Mata-Cães, como passámos a chamar-lhe, e que sempre nos dizia, para enxotarmos o cão porque... - punha a mão no coldre da pistola -, apanhou o animal a seu jeito junto dos feixes de lenha à entrada do Campo. Empunhou a arma e disparou. O Mangonha não morreu logo. Ganiu muito, arrastou-se tentando chegar junto de nós, mas uma segunda bala matou-o. Quando viu a nossa indignação, o Mata-Cães ficou branco de cera e correu para os portões, onde se sentiu em segurança. Lembramo-nos da Andorinha, que, por também se afeiçoar a nós, foi desterrada para a outra ponta da ilha, a uns oitenta quilómetros. Dois dias depois aparecia-nos, muito magra, ferida pelos espinhos da caminhada, mas contente por voltar a ver-nos. Com tanta alegria a recebemos! Tivemos o Bob. Fora-nos oferecido pela mulher de um oficial. Iam voltar à Metrópole e não o podiam levar, por causa das despesas da viagem. Como sabia que o trataríamos bem, confiou-nos o Bob. Chorou ao despedir-se do cão.

Era um bicho bonito, de pêlo comprido, às malhas pretas e brancas, muito vivo. Mas não podia suportar os guardas. Mal via um capacete branco rosnava. Tínhamos de estar muito atentos para evitar que se atirasse às canelas dos carcereiros. 249 Era precisamente o José Maria aquele que o Bob mais detestava. Rosnava, mostrava os dentes, e com dificuldade o aguentávamos: - Quieto, Bob! Quieto! O José Maria ameaçava-o com a biqueira da bota, e mais o animal se enfurecia. Suspeitava o guarda de que lhe aculávamos o cão; o que não era verdade, pois bom trabalho tínhamos em o segurar pela coleira. - Não prendam o cão, não, que um dia lhes digo como é. Uma tarde, um servente da Polícia apanhou o Bob e prendeu-o ao tronco de uma purgueira. O José Maria queixou-se, o cão mordera-o numa perna, e o animal foi levado do Campo. Mas à tarde, no refeitório, o Bob apareceu-nos cheio de sangue e trazendo ainda ao pescoço a corda com que o tinham levado. O José Maria alvejara-o a tiro, mas não o conseguira matar. As balas resvalaram nos ossos, uma delas saiu por entre as orelhas, a outra, extraímo-la nós do pescoço. Fomos escondê-lo. Arranjámos-lhe um caixote com palha e numa das casernas o fomos tratando. Tempo depois estava curado. Mas, apesar de nos terem autorizado o cão, o Bob estava condenado. O José Maria acabou por matá-lo. Contou-nos um cabo-verdiano que lhe ataram uma pedra ao pescoço e o atiraram para o fundo da baía. Chegámos a ter seis cães. Só um se salvou, mas porque raramente entrava no Campo. Só quando a fome o apertava muito. Fizeram-lhe o cerco os guardas, mas o animal soube fugir-lhes. De quando em quando víamos-lhe a cabeça lá no cimo do talude. De dia não ousava entrar no Campo, mas à noite vinha comer o que deixávamos guardado para ele. 250 Também os cães estavam submetidos à mesma regra. Em tempo de repressão eram perseguidos e abatidos pelos guardas. Quando os tempos se tornaram menos duros, os animais voltaram a poder alegrar muitos dos nossos momentos. Na verdade, era a nós que pretendiam atingir. Das oficinas, criadas para tirarem vantagem do nosso trabalho, também soubemos retirar motivos para nossa satisfação. Eram muitos os objectos que íamos construindo para nosso uso e alegria. Muitos se perderam, e foi pena, pois formariam uma ampla colecção, digna de ser exposta ou formar toda uma grande secção num museu do que foi a repressão fascista em Portugal. Fizemos caixas de costura com embutidos em marfim, com gravações a estilete e pinturas a tinta-da-china, caixas de selos com gravações em baixo relevo ou embutidos em alumínio e marfim, molduras trabalhadas, jogos de xadrez em forma de livro, com as pedras de madeira entalhada, escovas para o cabelo, pincéis para a barba, canetas de tinta permanente, cigarreiras de tartaruga com dobradiças e fechos de prata, malas para a roupa, estatuetas de osso .. Quantas coisas! E sempre com o risco da frigideira se os guardas notassem. Armando Martins de Carvalho e Rodrigo Ramalho construíam guitarras, violas, bandolins. Tentávamos construir nas oficinas quanto pudesse facilitar o nosso trabalho no Campo. Fabricávamos velas de lona para as vagonetas, o que nos facilitaria o

trabalho de as empurrar quando carregadas de pedra. O vento soprava com força na ilha. As velas foram talhadas, a primeira, por Joaquim Casquinha e José Neves Anhado, e, a segunda, de modelo diferente, por Joaquim Faustino de Campos. As velas foram na verdade úteis e deram pleno resultado. 251 E, para saltarmos aquela parede com que nos isolavam dos acontecimentos do mundo, decidimo-nos a construir um aparelho de telefonia. Se o conseguíssemos, poderíamos captar os postos emissores e ouvir todos os noticiários de guerra. Mas aqui não fomos felizes. Não era possível experimentar o aparelho sem que os carcereiros o notassem. Era construído à base de bobinas e disjuntor, ligado a auscultadores. Nunca ouvimos mais que ruídos. Todo o preso, como homem e como militante antifascista, tem o dever de estudar. Uma das nossas reclamações, apresentada pela Comissão do Campo, era o direito à leitura e ao estudo. E, como nos negavam inteiramente este direito ou não nos era satisfeito inteiramente, tínhamos de o conseguir pelos nossos meios, iludindo a vigilância dos carcereiros. O nosso contacto com os livros viveu dois períodos: clandestino e autorizado. Quando nos tiraram os livros pela primeira vez, muitos escaparam à busca e ficaram para sempre em nosso poder, livros que eram necessários à nossa formação política: mas não chegavam para todos nós e deles tirámos cópias, escondendo os originais entre a palha dos colchões, no telhado das barracas ou enterrados na pequenina horta, enfim, em toda a parte que pudesse constituir esconderijo seguro. Porque, de quando em quando, entravam-nos os guardas pelas casernas: - Todos os livros para a secretaria. - É proibido escrever. - Entreguem toda a tinta, todo o papel, todos os livros. Alguns salvaram-se no último instante, como a gramática inglesa do camarada Oliver Bártolo, que 252 durante uma busca ele conseguiu enfiar na manga de um casaco de caqui a secar no estendal da roupa. E contudo os livros voltavam a aparecer e também aparecia tinta e aparecia papel. Como? Fabricámos lápis com carvão. Como tinta servíamo-nos do mercuriocromo da enfermaria e do vieu-chène da carpintaria. De papel tínhamos ampla provisão, obtida dos sacos do cimento, utilizado na construção dos pavilhões do Campo. Cada saco era formado por umas cinco camadas de papel encorporado. Foi este o papel para os nossos livros. Neles trabalhávamos de noite. Não tínhamos luz, mas improvisámos pequenos candeeiros de petróleo. Aproveitávamos pequenos frascos vazios de medicamentos enviados pelos nossos familiares. Furávamos a rolha, por onde passava a torcida; e colocávamos a pequena tampa de aluminio de um tubo de comprimidos. Aplicada a chaminé, feita com o tubo de vidro a que cortáramos o fundo, estava completo o candeeiro. De petróleo possuíamos uma reserva, e lá o íamos obtendo. A luz era fraca, mas mesmo assim podia ser avistada pelos guardas. Era preciso usar de muitas precauções. Assim iamos copiando obras ou livros de estudo que tinham centenas de páginas. Escolhíamos os de melhor caligrafia. Os aparos e canetas eram de nosso fabrico. Também traduzíamos do francês obras de matemática, de física e de outras ciências. Era o material didáctico para as aulas.

Liamos, estudávamos em pequenos grupos, e mesmo enquanto caminhávamos íamos discutindo e esclarecendo-nos mutuamente. E chegavam os guardas a seguirnos de perto, para ouvirem quanto dizíamos, ou iam pelas traseiras das barracas, tentando escutar as nossas conversas. 253 Organizávamos o ensino. Os mais instruídos ensinavam quem menos soubesse. As aulas chegavam a ser dadas cá fora, estando nós sentados no chão. Quando se fez o barracão destinado ao refeitório, houve períodos em que nos foi permitido utilizá-lo para os nossos estudos. Ali estudávamos e líamos entre o jantar e o recolher. Mas também houve tempo em que nos esteve vedado. Tínhamos aulas de matemática, de francês, de inglês, de economia política e de outras matérias. Os comunistas ficavam ao fundo do refeitório, e ali chegavam a juntar-se sessenta a setenta alunos. Também ali se reuniam os anarco-sindicalistas. Ficavam ao centro os republicanos, menos numerosos, instalavam-se à entrada. E muitos que no Campo entraram como analfabetos saíam sabendo ler e escrever, com conhecimentos de francês e inglês, e com uma formação política que lhes iria permitir interpretar correctamente os acontecimentos nacionais e os do mundo. Quantas vezes na pedreira, enquanto carregávamos pedra, fomos fazendo perguntas uns aos outros sobre vocabulário francês ou inglês, ou conjugávamos verbos. Decidíramos estudar oitenta vocábulos por dia. E quando íamos à água ou de lá vínhamos aproveitámos o tempo a decorar palavras. Mas que alegria quando começámos a ler os primeiros livros em francês e em inglês! Por fim conseguimos que os livros que nos tinham tirado nos fossem restituídos. Eram setecentos, e construímos uma estante, que foi colocada no refeitório. No refeitório funcionava uma verdadeira universidade popular, onde estudaram camaradas que quase analfabetos à data da sua prisão, aprenderam o francês e o inglês. Ali se formou um núcleo 254 que se dedicou a matemáticas superiores, um outro que se entregou ao estudo da filosofia e da literatura, e outro ainda às ciências económicas e financeiras. Um grupo de marinheiros aprofundou os conhecimentos náuticos e a construção de instrumentos de navegação, e entre eles se notabilizou Oliver Bártolo, a quem passámos a chamar, em gracejo, o Almirante. Um dia, o governador de Cabo Verde, em visita ao Campo, entrou no refeitório, passou os olhos pelas lombadas dos livras da nossa biblioteca e, ao ver A Crítica da Razão Pura, a obra do idealismo transcendental do grande filósofo alemão, comentou com surpresa e também com alguma ironia: - Ah, lêem Kant! Para os guardas que espreitavam as nossas aulas, aqueles símbolos matemáticos, o X e o Y da Álgebra, a trigonometria, com as suas tangentes e co-tangentes, secantes e co secantes, as rectas e planos da geometria a alvejarem a giz na negrura do quadro, só podiam ser os sinais com que disfarçávamos as nossas conjuras revolucionárias. E iam queixar-se daquilo que a sua ignorância não lhes permitia compreender. E muitas vezes certos direetores, oficiais tarimbeiras, quase tão ignorantes como eles, os apoiavam e nos dificultavam as aulas. Olegário Antunes, capitão formado pela Escola do Exército, foi aquele que, no relativo ao estudo, mais liberdade nos concedeu. O nosso isolamento era quase completo. Ilha. Mar em volta. E contudo, lá longe, trava-se uma grande batalha em que já tínhamos participado, a que para sempre ficaríamos ligados, mas de que nada sabíamos.

As cartas não abriam brecha naquele paredão de silêncio feito à nossa volta. A censura do Campo 255 borrava a tinta negra quanto pudesse dar-nos qualquer indicação do que se passava em Portugal e no mundo. Depois, como por vezes contra a luz conseguíamos ler uma ou outra palavra, passaram a usar a tesoura e mutilavam as cartas. Desaparecia o que entendiam ter de ser cortado e também o que estava escrito do outro lado da folha. Jornais não entravam no Campo. Tentávamos tirar conclusões pelo silêncio carrancudo ou pela alegria dos guardas. Era bem pouco: Mas o tempo passava e nós íamos imaginando processos que nos trouxessem o conhecimento dos acontecimentos históricos pelo mundo. Pouco a pouco fomos esburacando a muralha do nosso isolamento. Por mais feroz e atento que seja o carcereiro fascista, não pode lutar contra a imaginação do preso político. Bate-se por razões muito nobres, tem por ele o entusiasmo, a dedicação, e não há risco que não corra pelo triunfo do combate em que se bate. A batalha de que o cativeiro nos afastara estava a dar-se em terras de Espanha, iria passar à Europa, nela estávamos também envolvidos e queríamos saber para que lado pendia a vitória e, se possível, contribuir para a derrota das forças fascistas, pela fuga ou, se esta não fosse possível, pela firmeza da nossa convicção, pois que abalava os carcereiros. Se não permitiam que as notícias chegassem até nós, tínhamos de as obter contra a vontade da direcção do Campo. Havia guardas venais. A troco de dinheiro conseguíamos saber o que se passava. Mas, sabendo nós também que a certeza das vilezas para connosco, de que eram autores, trazia a muitos deles inquietações por um tempo que poderia estar distante mas chegaria, e em que nos tornaríamos seus 256 acusadores e juízes, prometíamos-lhes a nossa compreensão futura. Deste modo íamos conseguindo notícias. Uma outra fonte de noticário era o soldado angolano, que também não se recusava a uma peça de roupa ou a uns escudos. E de noite, rastejando, lá íamos até ao arame farpado, junto do posto de uma sentinela, a comprar noticias do mundo. Por vezes tudo isto falhava, mas não a nossa persistência, que não tardava em encontrar outra forma. Naquele tempo em que transportávamos água em latas, sempre íamos atentos a papéis. O vento arrastava pedaços de jornal de que os guardas se serviam nas suas retretes e deixava-os presos ao capim ou pela berma da estrada. Enquanto enchíamos as latas ou no caminho do Campo para o poço do Chambão sempre ölhávamos em volta. E quando avistávamos um pedaço de jornal: - Arreia! Pousávamos as latas para descansar as mãos, para nos revezarmos, e um de nós, sem que o guarda o visse, apanhava o papel e logo o enfiava no bolso. De regresso ao Campo, íamos impaçientes pela leitura. Por vezes eram de páginas de anúncios e não valiam o risco corrido, mas, outros, compensavam-nos bem. Eram então confiados aos camaradas dos serviços de informação, muitos com excelente caligrafia, que tratavam de compilar o noticiário, que passava a circular entre nós. E, como aqueles pedaços de jornal apresentavam de modo bem evidente aquilo para que eram usados, chamávamos ao nosso noticiário "Rádio Merda". Era grande o risco. Saul Gonçalves sofreu as suas consequências. Andava na brigada de jardi- 257

nagem fora do Campo com Manuel Alpedrinha e José Barata Júnior. Ora o camarada Saul prestava solidariedade ao Daniel, que estava no porta-aviões, mas que considerava bom homem, e sem qualquer auxílio da família. Daniel puxava o Pinto no seu transporte da águia, e os guardas viram-no a conversar com Saul. Imaginaram haver ligação entre eles, servindo o Daniel de "correio". Armaram ratoeira. Atiraram uma folha de jornal para a granja, junto de uma vala, e ficaram de atalaia. Mas estava um dia de vento, o jornal foi levado para longe, e logo os carcereiros se convenceram de que o Saul o tivesse apanhado. Acareados, o Daniel negou, e Saul foi espancado a perder acordo de si. Todo o corpo lhe ficou negro. Muito tempo esteve de cama e veio mais tarde a sofrer de tuberculose. A "Rádio Merda" tinha como fonte informativa o papel das latrinas dos guardas. Às nossas não era fornecido. E esta era uma das nossas reclamações, e mais insistente pela nossa finalidade oculta do que por aquela que apresentávamos. Quando o conseguimos, foi grande o nosso contentamento e logo transmitimos que se reunissem todos os recortes possíveis. Mas, quando, certa vez, já tínhamos colado as folhas cortadas do jornal e íamos enfim poder ler as notícias, embora atrasadas, entrou um guarda. Pediu-nos as folhas e tirou-nos os nomes. Foi uma tentativa que falhou e nos custou muitos dias de frigideira. De quando em quando chegavam novos camaradas ao Campo. Durante dias saciávamos a nossa fome de novidades. E até por noite alta se ouvia pelas barracas o nosso murmurar. Escutávamos, fazíamos perguntas, trocávamos de grupo nada perder. De manhã, mal acordávamos, tínhamos novas interrogações a pôr ou íamos ouvir mais 258 uma vez o que na véspera nos dera mais prazer escutar. A chegada ao Campo de camaradas que tinham combatido em Espanha permitiu-nos saber em pormenor a luta heróica do povo espanhol contra o fascismo internacional. Houve palestras, o que aliás sempre acontecia quando novas levas de presos chegávam. Depois, quando os amigos terminavam, era a nossa vez de fazer perguntas. Enquanto não nos contassem tudo não havia descanso para os que tinham chegado até nós. Mas os recém-chegados, mal entravam no Campo, caiam dentro do paço de silêncio e em breve estavam em tão grande ansiedade por notícias como nós. Os nossos processos clandestinos eram o único recurso. Cândido de Oliveira, que, por deteção da Polícia, ficou numa barraca fora do Campo, com outros democratas, foi um ponto-chave na transmissão de notícias. Todos os dias nos preparava minúsculos comunicados de guerra que mantinham o Campo ao corrente do que se passava nas frentes de batalha, Cândido de Oliveira e outros democratas estavam numa situação favorável para esta missão. Facilmente comunicavam com a população cabo-verdiana e não tinham qualquer dificuldade em saber o que se dizia nos noticiários da rádio. O problema era transmitir-nos tódas estas informações. Não era fácil. Havia vigilância. Os que entravam e saíam do Campo eram revistados. Mas nunca os guardas poderiam evitar os processos que a nossa imaginação criava. Comunicávamos com uma letra minúscula, em papel muito bem enrolado. Os "envelopes" eram 259 variados. Servíamo-nos, por exemplo, de um velho pedaço de madeira, antes preparado na oficina de carpintaria, oco, habilmente tapado. Em caso de emergência podíamos deixá-lo cair sem que se suspeitasse do seu conteúdo. Também usávamos um livro de mortalhas. As notícias iam escritas nas folhas intermédias e seguiam no bolso juntamente com a onça de tabaco. A manobra consistia em se sair do Campo com um livro de mortalhas e voltar com outro e... noticias. Servia

também um cigarro esvaziado de tabaco no meio para dar lugar ao pequeno rolo de papel com o noticiário. Mas por vezes era preciso fazer entrar um jornal ou uma revista ou mesmo um livro de teoria marxista, um frasco com medicamentos ou uma garrafa de petróleo para os candeeiros do nosso fabrico, que iluminavam o nosso trabalho nocturno. Era tarefa mais difícil. Tinha de estar à porta um guarda menos vigilante para que a "encomenda" pudesse ficar ao nosso alcance. Chegaram a entrar no Campo cargas bem volumosas, e nas nossas manobras havia algo de contrabandistas. Tudo consistia em desviar no momento oportuno a atenção de guardas ou aproveitar a presença de outros. O contacto com estes guardas era controlado pelos camaradas mais responsáveis. Eram assuntos que, como é evidente, não deviam ser do conhecimento de todos. As notícias conseguidas eram, depois de analisadas pela direcção do Partido no Campo, levadas ao conhecimento de todos nós, acompanhadas por comentários que permitissem ensinamentos políticos. Como as notícias circulavam entre nós nunca os carcereiros souberam. Nunca foi apanhado um papel. Eram lidos dentro de livros; quando deita- 260 dos, por baixo dos mosquiteiros. Porém não era fácil toda esta manobra clandestina O trabalho com os guardas tinha de ser bem defendido. Os seus turnos eram de duas horas, seguidas por quatro de folga. Se, por exemplo, entrava de serviço às dez da noite só voltari aàs quatro da manhã. Era durante os turnos da noite que estabelecíamos as ligações, por haver muito mais segurança. Assim o guarda entrava de serviço, o camarada encarregado de estabelecer contacto dirigia-se ao local combinado, para lhe entragar ou receber o que fosse necessário, e isto sem que mais alguém o visse. Um dos locais - não eram muitos os que ofereciam segurança - era a casa da lenha, onde se serravam e rachavam troncos para os fogões da cozinha. À hora combinada lá ia um de nós e, em completa escuridão, espereva que o guarda amigo pudesse aproximar-se. Acontecia por vezes que as circunatâncias não eram favoráveis e então muito tinha de esperar. Se não era possível naquele turno, o guarda saía, e o camarada tinha de esperar mais quatro horas até que ele regressasse, e isto sempre na escuridão, em silêncio, escondendo-se de quem de ali se aproximasse. Mas havia um outro processo. o camarada encarregado da tarefa ficava numa caserna e junto de uma janela que dava para aquele corredor entre os pavilhões, que is desembocar na entrada do Campo. Escondido com o mosquiteiro, esperava a hora marcada. Não podia adormecer antes de o guarda passar, para imediatamente lançar mão ao pacotinho com as notícias que lhe colocava ao canto da janela. mas quantas vezes este camarada teve de esperar seis horas sem dormir, imóvel, em 261 silêncio, para que os outros camaradas não se apercebessem e estranhassem a insónia. Era difícil, mas tinha de ser feito. Era tarefa do Partido e considerada como honrosa pela confiança que representava. Assim circulavam clandestinamente os documentos escritos. Nunca perdíamos oportunidade para obter mais notícias e, quando nos era possível entrar na caserna dos guardas ou na residência do director para realizar qualquer trabalho, toda a nossa preocupação era descobrir jornais ou revistas, mesmo atrasados. Emergíamos daquele poço de silêncio de muitas maneiras e por vezes recebíamos directamente de Portugal, enviados pelo Partido Comunista Português e pelas organizações antifascistas, noticiários e outros documentos. Em letra pequeníssima, os relatórios entravam e saíam do Campo, trazendo e levando informações.

Tudo isto nos era indispensável não só para nos manter o moral como para nos orientarmos na nossa actividade política no Campo e reforçarmos a nossa resistência contra as manobras dos carcereiros. E, como as notícias chegavam com mais frequência devido ao aperfeiçoamento do nosso aparelho clandestino, vimos que nos fazia falta um mapa da Europa onde pudéssemos acompanhar o andamento das campanhas contra a Alemanha nazi. Constituiu-se um grupo de trabalho que começou por fazer um pantógrafo de madeira, com o qual foi possível ampliar o mapa da Europa de um pequeno atlas que possuíamos. Durante um mês este grupo de trabalho dedicou-se a desenhar o mapa, que, finalmente, foi afixado na parede de uma das casernas. Íamos agora acompanhando os avanços e os recuos das ofensivas e contra-ofensivas. E com que 262 mágoa víamos recuar o Exército Vermelho, que suportava quase toda a fúria e ódio dos nazis. Mas nunca deixámos de confiar na vitória da União Soviética. Dizia-nos Bento Gonçalves: - Camaradas, é agora que vamos ver qual é o aço mais duro, se o do Rur, se o dos Urales. E um dia chegou-nos a notícia de que centenas de milhares de fascistas estavam cercados em Estalinegrado. O Exército Vermelho passara à ofensiva e só iria parar em Berlim. O nosso mapa passou a ter uma linha a retrós vermelho a marcar o avanço da frente russa. Todos os dias os alfinetes eram espetados mais em frente, a prender o retrós, que ia empurrando, apertando, encurralando os nazis. Ao nosso entusiasmo correspondia agora o desalento dos guardas. Vinham procurar-nos, tentavam desculpar-se. - Eu estava desempregado... - Pensava que isto fosse outra coisa. - Enganaram-me. - Nunca persegui ninguém... Que diferença daqueles guardas que nos recusavam toda e qualquer notícia! - Vocês lêem os jornais ao contrário! Assim exprimiam o sabermos ler nas entrelinhas da imprensa fascista. Mas como estavam diferentes os guardas que tínhamos conhecido quando da queda de Barcelona, ou naqueles anos duríssimos de 38, 39 e 40, em que acompanhando as vitórias nazis o terror campeava pelo Tarrafal com o Seixas e o João da Silva! A partir de Estalinegrado e sempre que o Exército Vermelho conquistava centros importantes, dias antes ainda tão longínquos e logo abandonados pelos nazis, varridos pela arrancada dos soldados soviéticos, nós o festejávamos com os cigarros fal- 263 cões que nos eram dados pela caixa de solidariedade. - Há cigarros falcões? - perguntávamos sempre ansiosos por mais vitórias. Como estavam diferentes os guardas! Bem nos lembrávamos de quanto nos diziam, despeitados pela inferioridade sentida em relação a nós, mas certos de terem a força pelo seu lado: - Lá fora vocês podem saber mais e ser mais do que nós, mas aqui somos nós a mandar! Aquele paredão de isolamento foi caindo aos poucos, derrubado por nós. Um dia conseguimos autorização para jornais diários. O material era agora abundante e organizámos um grupo de trabalho de investigação económica. Elaborámos um ficheiro das grandes empresas e das grandes famílias do capitalismo português. Íamos registando todas as notícias económicas, sociais e mundanas, e por fim dispúnhamos dos elementos para uma análise. E que conclusões

curiosas dali retirámos. Era o quadro de uma economia monopolista inteiramente nas mãos de um número reduzido de grandes capitalistas. Obtínhamos novos dados, e como eles se iam ajustando perfeitamente no quadro, completando-o, tornando-o claro e evidente. Este ficheiro saiu do Campo através do nosso aparelho clandestino. Veio a PIDE, mais tarde, a apoderar-se dele e um jornal que então se referiu àquele estudo comentava: "... e o mais grave é que todas as informações desse ficheiro estão certas". Não conseguimos construir um aparelho de telefonia para captar noticias. Mas já terminada a guerra foi instalado no Campo um aparelho de rádio onde todos os dias podíamos ouvir o noticiário. 264 O nazismo caíra e com ele também o isolamento a que no Tarrafal nos tinham condenado. Na nossa vida prisional o trabalho político era-nos essencial. Eramos antifascistas e essa era a razão por que estávamos presos. Era tarefa obrigatória para nós, que não abdicávamos como lutadores contra o fascismo nem do combate com que pretendíamos dar-lhe fim. O Tarrafal, como muitas outras prisões políticas, foi escola de quadros. Os grupos de estudo eram orientados por camaradas politicamente mais experientes e sabedores. E os resultados tornaram-se evidentes. As nossas provas consistiam na redacção de trabalhos sobre acontecimentos revolucionários, que no Campo comemorávamos: o aniversário da Comuna de Paris, as datas de nascimento de Marx e Engels, a figura de Ténine, o 7 de Novembro de 1917, o 1 de Maio, o 31 de Janeiro, o 5 de Outubro... O camarada orientador sugeria os dados que devíamos recolher, como relacioná-los com a história portuguesa. A princípio parecia-nos impossível. Os conhecimentos eram poucos, conhecíamos mal a nossa própria língua... Mas as aulas de português, de francês, de inglês, de matemática, de ciências naturais, de história, de economia política iam-nos tornando mais aptos. Por fim já dominávamos o nosso nervosismo, a sensação de incapacidade para dar forma a uma ideia a expor. Os guardas tinham conhecimento desta actividade e tudo tentavam para nos surpreender em flagrante. Não o conseguiam. Não tinham forma de vencer a nossa determinação e vigilância, a nossa solidariedade e disciplina. Aproximavam-se, rondavam para ver se ouviam. Estávamos prepa- 265 rados para tais manobras e imediatamente o tema de conversa passava a ser outro. Que desapontamento! Por vezes não conseguiam esconder o seu despeito. Esta preparação de quadros teve períodos mais fáceis e outros bem mais difíceis, mas nunca foi interrompida. E ainda hoje nos recordamos com admiração dos nossos professores, de Bento Gonçalves, de Alberto Araújo, de Alfredo Caldeira, de Manuel Rodrigues da Silva, de Militão Bessa Ribeiro, de Pedro Soares, de Júlio Fogaça, de Francisco Miguel, de Manuel Alpedrinha, nosso orientador em filosofia. E de outros. De quando em quando fazíamos teatro. Miguel Russell era o ensaiador. Aníbal dos Santos Barata criava o guarda-roupa, os cenários, e com os poucos meios de que dispunha fazia pequenas maravilhas. Nunca os carcereiros do Campo de Concentração do Tarrafal nos venceram. Houve rachados, é certo, mas foram bem poucos. A grande maioria resistiu às medidas regeneradoras do João da Silva. É muito grande a força de um homem que se bate por razões justas que o engrandecem e não quer abdicar do respeito por si próprio. No Tarrafal éramos muitos os que assim pensavam e sentiam, e mútuo era o amparo e mútuas as palavras de encorajamento.

Cercaram-nos de arame farpado, de mar, de muitas muralhas de isolamento, e todas elas derrubámos. Mas a que construímos com a nossa firmeza, a nossa convicção num futuro que iria abater os fascistas, essa não a demoliram os carcereiros. Os vencedores fomos nós. Nós que pelo 1º de Maio, arriscando-nos aos espancamentos e à frigi- 266 deira, de costas para as paredes das oficinas, ali estávamos esperando pela alvorada. E quando o Sol se erguia por cima dos telhados das casernas levantávamos então o punho em saudação. Saudação ao Sol que um dia amanheceria numa Pátria livre. 267 DOCUMENTO 1 Decreto-Lei nº 26 539 - Cria-se uma colónia penal para presos politicos e sociais no Tarrafal, da Ilha de Santiago, no Arquipélago de Cabo Verde. PRESIDêNCIA DO CONSELHO DECRETO-LEI Nº 26 539 É necessário dar execução imediata ao disposto nos decretos nº 23203, de 6 de Novembro de 1933, e 24112, de 29 de Junho de 1934, que prevêem a instalação de uma colónia penal para presos politicos e sociais no ultramar. Depois de um reconhecimento cuidadosamente feito por técnicos a diferentes ilhas do Arquipélago de Cabo Verde, chegou-se à conclusão de que o lugar de Tarrafal, da Ilha de Santiago, reunia as condições necessárias à instalação desta colónia, sob o ponto de vista higiénico, de vigilância e de recursos naturais de comunicações indispensáveis ao seu bom funcionamento. Sobre esses dados, e aproveitando-se os ensinamentos da ciência e prática penitenciária, foi elaborado o respectivo projecto da colónia, que se desdobrará em diferentes pavilhões para instalação apropriada dos respectivos serviços, agrupamento dos presos e separação dos diferentes grupos entre si. Urge pôr em prática este projecto e dar às respectivas obras a unidade de direcção, continuidade e rapidez de execução necessárias. Para este fim, confia-se a construção da colónia ao Ministério das Obras Públicas e Comunicações, conferindo-se-lhe os poderes necessários para 271 levar a cabo a sua missão. Como para outros se fizera; dá-se a este Ministério uma certa latitude e atribuições que lhe permitem abreviar e simplificar os trâmites legais a bem do interesse colectivo e sem ofensa dos interesses individuais. Sob este ponto de vista o presente decreto-lei não faz senão aplicar à construção urgente desta colónia o que para outros casos se legislara em diplomas anteriores, como na Lei de 26 de Julho de 1922 (artigos 2º e 20º), e no decreto nº 19465, de 11 de Março de 1931. Além das disposições sobre a instalação definitiva da colónia, prescrevem-se estas permitindo a sua instalação provisória, a exemplo daquilo que no País e no estrangeiro tantas vezes se tem feito, quer para obviar à necessidade urgente de internamento de reclusos, quer para aproveitar o trabalho destes na construção das obras necessárias à colónia. Sendo os estabelecimentos penais do ultramar, como este, simples elementos do sistema penal da metrópole, justo era que se confiasse a sua direcção e

fiscalização a um Ministério a que incumbem em conjunto os serviços prisionais e por isso ao Ministério da Justiça. Assim se legisla no presente decreto-lei. Nestes termos, usando da faculdade conferida pela 2ª parte do nº 2º do artigo 109º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo o seguinte: Artigo 1º É criada uma colónia penal para presos politicos e sociais no Tarrafal, da Ilha de Santiago, no Arquipélago de Cabo Verde. Artigo 2º A colónia penal a que se refere o artigo anterior destinar-se-á a presos por crimes politicos que devam cumprir a pena de desterro ou 272 que, tendo estado internados em outro estabelecimento prisional, se mostrem refractários à disciplina deste estabelecimento ou elementos perniciosos para os outros reclusos. 1º Serão considerados crimes politicos, para os efeitos deste decreto-lei, os previstos no decreto-lei nº 23203, de 6 de Novembro de 1933. 2º Poderão igualmente ser internados nesta colónia, em secção separada, os condenados em penas maiores por crimes praticados com fins políticos, sujeitos por lei ao regime prisional comum, e ainda, em caso de necessidade, os detidos preventivamente pelos crimes a que se refere o decreto-lei nº 23203 e que o Governo decida deter ou fazer julgar fora da metrópole. Artº 3º A colónia terá instalações necessárias para uma lotação de 500 presos. Artº 4º As obras a fazer para a instalação ou futuras modificações da colónia e os demais serviços a realizar para este fim, incluindo os da aquisição de terreno, formação de povoações, no todo ou em parte, aquisição e aproveitamento de águas e outros arcálogos, ficarão a cargo do Ministério das Obras Públicas e Comunicações. 1º O projecto de instalação definitiva da colónia será o aprovado pelos Ministérios das Obras Públicas e Comunicações e da Justiça, com prévio parecer da Comissão das Construções Prisionais. 2º O Ministério das Obras Públicas e Comunicações poderá nomear um ou mais técnicos, cujos vencimentos serão fiados por este Ministério, que no lugar dirijam e fiscalizem as obras e serviços a que se refere este artigo e os seguintes. 273 Artº 5º Para a execução dos serviços a que se refere o artigo anterior é concedida ao Ministério das Obras Públicas e Comunicações a faculdade de simplificar, dispensar ou substituir quaisquer formalidades legais, nos termos do artigo 1º do decreto-lei nº 19465, de 11 de Março de 1931. Artº 6º Todos os materiais que se torne necessário importar para a construção da colónia gozarão do benefício da redução da um quinto dos respectivos direitos. Artº 7º A colónia será instalada nos terrenos denominados do Chão Bom, Achada Grande e Ponta da Achada, situados no concelho do Tarrafal, podendo utilizar-se ainda outros terrenos, se for necessário. 1º A área de terreno ocupado inicialmente será aproximadamente de 1700 hectares, podendo ampliar-se esta área por determinação do Ministério da Justiça, caso as necessidades ulteriores da colónia o exijam.

2º O terreno a que se refere o parágrafo anterior será determinado e marcado no lugar pelo representante do Ministério das Obras Públicas e Comunicações a que se refere o 2º do artigo 4º, de harmonia com as instruções deste Ministério. Artº 8º Para os efeitos do artigo 7º passarão desde já para a posse do Estado e serão postos à disposição do Ministério das Obras Públicas e Comunicações, mediante o pagamento da indemnização que for fiada, os bens municipais que se encontrem dentro da área destinada à colónia. Serão postos à disposição do Ministério e para o mesmo fim, sem qualquer indemni- 274 zação, os bens pertencentes à colónia de Cabo Verde e situados nessa área. Artº 9º Se houver bens de dominio particular dentro dos terrenos destinados à colónia, proceder-se-á à sua expropriação e será declarada de utilidade pública e urgente, observando-se as respectivas disposições legais. 1º O Ministério das Obras Públicas e Comunicações poderá tomar posse imediata dos edifícios e terrenos a expropriar, mesmo antes de iniciado o processo de expropriação, quando esta medida seja indispensável para se não interromperem as obras da instalação da colónia penal, pondo desde logo à disposição dos interessados a indemnização que se fixar por acordo ou, na falta de acordo, a que conste da matriz predial e, se o prédio nela não estiver inscrito, a determinada por um perito nomeado por aquele Ministério ou seu representante, com poderes para tal. 2º O disposto no parágrafo anterior não obsta a que, na falta de acordo, se sigam, quanto ao mais, os termos do processo de expropriação por utilidade pública urgente e ai se fie definitivamente o quantitativo da indemnização, satisfazendo o Estado a diferença ou recebendo o excesso do que houver pago nos termos do 1º. Artº 10º Será fixada pelo Ministério da Justiça uma zona de isolamento em torno da colónia penal, destinada a evitar o contacto dos reclusos com a população livre. 1º Na zona a que se refere este artigo não poderá haver bens do dominio particular ou que os particulares possam fruir directamente. 2º Para a constituição da zona de isolamento a que se refere este artigo será aplicado o disposto nos artigos 7º e 8º deste decreto. 275 Artº 11º A colónia penal criada por este decreto poderá instalar-se provisoriamente, antes de realizadas as obras previstas no respectivo projecto, utilizando-se para a instalação provisória os meios adequados e entre eles os destinados ao campo de concentração da Ilha de S. Nicolau. Artº 12º O pessoal da colónia será nomeado pelo Ministério da Justiça nos termos em que o é o dos estabelecimentos da mesma natureza da metrópole. 1º O pessoal a que se refere este artigo será constituido por um director, um capelão, um médico, um farmacêutico e três enfermeiros, um secretário, um ecónomo, um regente agrícola e um a três mestres de oficina, um escriturário, três empregados de expediente, três empregados de contabilidade, um chefe de guardas e setenta guardas, sendo quinze de 1ª classe, quinze de 2ª classe e

quarenta de 3.a classe, um cozinheiro, dois ajudantes, dois motoristas, um ajudante e quatro serventes. 2º O pessoal a que se refere este artigo será nomeado à proporção que as necessidades da colónia o exigirem. Artº 13º Além do pessoal a que se refere o artigo anterior haverá na colónia uma companhia Indígena, com os respectivos oficiais europeus, à disposição do director da colónia, que poderá ser o próprio comandante da força. Artº 14º O regime prisional a observar na colónia será o prescrito na lei para estabelecimentos desta natureza. O Ministério da Justiça, por intermédio da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, exer- 276 cerá, em relação ao pessoal e serviços da colónia, as mesmas atribuiçöes de direcção superior, fiscalização e administração que a lei lhe confere quanto aos estabelecimentos prisionais da metrópole. Artº 15º Pelos Ministérios da Guerra, Marinha e Colónias serão postos à disposição dos Ministérios das Obras Públicas e Comunicaçães e da Justiça os elementos indispensáveis respectivamente para instalação e funcionamento da colónia penal. Publique-se e cumpra-se como nele se contém. Paços do Governo da República, 23 de Abril de 1936. - António Oscar fragoso Carmona Chegaram ao Tarrafal António Fernandes Baptista António Guerra António Carlos Castanheira António Teodoro António Marreiros António Jesus Branco António Dinis Cabaço António Nunes António Gonçalves Saleiro António Gonçalves Coimbra António Fernandes Almeida Jor. António Franco da Trindade António Gato Pinto António Jorge Marques António Vicente Carvalho António Enes Faro António S. Marcelino Mesquita Augusto Costa Arnaldo Simões Januário Alfredo Caldeira Armindo Amaral Guimarães Armindo Fausto Figueiredo Acácio José Da Costa Acácio Tomás Aquino Américo Fernandes Américo Gonçalves de Sousa

Ariosto Mesquita Afonso Pereira Artur Esteves Álvaro Duque da Fonseca Álvaro Gonçalves Álvaro Ferreira 281 Anibal dos Santos Barata Adolfo Teixeira Pais Abatino da Luz Rocha Armando dos Santos Callet Abílio Gonçalves Abílio Gonçalves Garradas Adelino Alves Bento António Gonçalves Bernardino Augusto Xavier Bernardo Casaleiro Pratas Boaventura Gonçalves Candido Alves Borja Casimiro Ferreira Carlos Martins Sovela Carlos Ferreira Custódio Rodrigues Ferreira Custódio da Costa Domingos Rodrigues Quintas Ernesto José Robeiro Eduardo Valente Neto Edmundo Pedro Francisco Domingues Quintas Francisco Augusto Belchior Francisco Silvério Mateus Francisco José Pereira Fernando Alcobia Fernando Quirino Fernando Vicente Fernando Cruz Franklim Ferreira De Azevedo Felicíssimo Ferreira Filipe José Da Costa Gabriel Pedro Gavino Rodrigues Henrique Val Dom. Fernandes Henrique Ochsenberg Herminio Martins Isidoro Felisberto Canelas João Lopes Dinis João Faria Borda João da Silva Campelo João Maria João Galo Gomes João Garrido João Machado João Martins Leitão João Gomes Jacinto João Rodrigues Joaquim Gomes Casquinha Joaquim Marreiros Joaquim dos Santos

Joaquim de Sousa Teixeira Joaquim Ribeiro Joaquim da Cruz Dias Joaquim Jacinto Joaquim Pais Joaquim Luís Machado Joaquim Faustino De Campos Joaquim Pedro Joaquim Duarte Ferreira Joaquim Montes José Neves Amado José Barata Júnior José António Filipe 283 José Bernardo José Soares José Maria Videira José Luis Marques Lebroto José Maria de Almeida Jor. José Tavares Almeida José de Sousa Coelho José Gilberto F. Oliveira José de Almeida José Severino Melo Bandeira José Ramos Vargas José Borges Celeiro José Ramos dos Santos José Ferreira Galinha José dos Santos Viegas José Alexandre José Ventura Paixão José Jacinto de Almeida Jaime de Sousa Jaime Tiago Jaime Francisco Rosa Jolio Ferreira Júlio de Melo Fogaça Josué Martins Romão Jacinto e Melo F. Vilaça Luís Marques Figueiredo Luís Pires Luis Martins Leitão Luis da Cunha Taborda Leonildo Anunc. Felizardo Mário Santos Castelhano 284 Manuel Amado dos Santos Manuel Rodrigues Manuel da Graça Manuel Henriques Rijo Manuel Rodrigues da Silva Manuel Rosa Alpedrinha Manuel Pessanha Manuel Augusto da Costa Militão Bessa Ribeiro Oliver Branco Bertolo Pedro de Matos Filipe

Pedro dos Santos Soares Patrício Quintas Rafael Tobias Pinto Silva Raul Vieira Marques Rodrigo Ramalho Silvino Leitão Fern. Costa Sérgio de Matos Vilarigues Tomás Baptista Marreiros Tomas Ferreira Rato Virgilio Martins ? Miranda ? Rebelo Manuel Pereira dos Santos 2ª leva António Augusto Russo António Lúcio Bartolo António Joaquim António Rodrigues da Silva António Sebastião Rosinha Antonino Francisco Artur Crescêncio Teixeira 285 Artur Trindade Anibal da Silva Bizarro Alfredo Garcia Armando Martins De Carvalho Américo Martins Vicente Benjamim Inácio Garcia Carlos da Conceição Galan Domingos dos Santos Damasio Martins Pereira Edmundo Gonçalves Francisco Baptista Francisco Esteves Fernando Macedo de Sousa Filipe Piçarra Herculano Marques Gouveia José Manuel Alves dos Reis José Ricardo do Vale José Trovisco Malarranha José Gomes Joaquim Amaro José Correia Pires Joaquim Manuel da Costa José Salazar Joaquim Fernandes Teixeira Jaime Ferreira Luis Lima Dr. Luis Figueiredo Luis Duarte Miguel Wager Russel Manuel Albino Manuel Gomes Rui Cardoso Gomes 286 Tomás Garcia

Virgilio Sousa 3ª leva Albino Coelho Adelino Fonseca Eurico Pinto Mateus João da Cruz Cebola José Júlio Ferreira Manuel dos Santos 4ª leva António Guedes Oliveira Silva Abilio Guimarães Carlos Guedes Leal Daniel Evaristo dos Santos Domingos de Oliveira Eurico Martins Pires Francisco Nascimento Gomes Jaime Augusto de Carvalho Joaquim Zacarias José Maria de Alpoim Joaquim Marques Manuel Francisco Candeias Saul Gonçalves. 5ª leva Domingos Tavares Ernesto Marques 287 6ª leva Alberto Emílio de Araújo Augusto da Costa Valdez Albino de Carvalho Carlos Luis Correia Matoso João Mpntlet. Cardoso João da Silva José Ventura Manuel Afonso 7ª leva António Baptista Herculano Jorge Bragança Joaquim Ferreira Sebastião Viola Júnior 8ª leva António Faria de Ataíde e Melo Basílio Lopes Pereira Francisco Barbas José Ferreira José De Sousa José Duarte Joaquim Fernandes Rocha Joaquim Diogo João Pedro Leitão Júlio Marques Penkos Isra Shy Reinaldo Vítor 288

9ª leva Augusto Alves De Macedo Alberto Grimja Cândido Francisco Pólvora Francisco Miguel Duarte Fred João Rodrigues da Silva Luis Manuel Dizy Arquelles Miguel Fontes Paulo José Dias Wlly 10ª leva António Augusto Russo Domingos Martins José Ricardo do Vale 11ª leva António Gonçalves Calça Augusto Damas Alfredo Augusto das Neves José Marques Levindo Manuel da Costa Vitorino Domingos 12ª leva Albino Afonso Da Rocha António Lopes De Sousa Augusto Joaquim Raimundo João Garcia Ribeiro Joaquim Roque 289 Luis Pires de Mendonça Manuel Maria Silva Pinho Pedro José da Conceição 13ª leva António Sebastião Torres António Cisneiros Ferreira Constantino Costa Candido Conceição Vieira Silva Firmino Lopes de Matos João Guerreiro José Simão Manuel Maria Manuel António Boto Manuel Baptista Reis Miguel Francisco Ramos Manuel Borges do Canto Reinaldo de Castro 14ª leva Abílio Ferreira Ramada António Augusto Pires António Dias Mendes Alipio Dos Santos Rocha

José Agostinho Candido José de Almeida José Rodrigues Reboredo João Paulino De Sousa Jûlio Mateus Farinha Manuel Francisco Almaço Manuel Molina Bailó Mateus Pedroso Manuel Rodrigues 290 15ª leva Miguel Óscar António Amorim Francisco Maria Dias 19 Soldados Carlos Pereira Ribeiro José Lopes Dinis Luís Valente De Matos 16ª leva Armando De Azevedo Artur Inácio Bastos Júlio Mascarenhas Virgilio Bartolini 17ª leva Pedro Foyos Teixeira Alexandrino Rodrigues Américo Cunha Artur Rodrigues Paquete Candido de Oliveira Francisco Rato Hernani Pinto João António Pires Josué Fernandes Manuel Firmo Manuel Martins Betencourt Mário Baptista Reis Sebastião Encarnação Júnior Júlio Monteiro Macedo 291 António Ferreira Da Costa Francisco Baptista da Silva Gil Cornélio Gonçalves Hélio de Amorim José Correia Sebastião Palma Outras levas Abílio De Macedo Kan Carvalho António Teodoro S. Salvador Augusto Da Cruz Francisco Manuel Ferreira José Gomes Gomes João Manuel Gil

Abecm Chuman José Gomes da Silva Rui Pereira Vicente Guilherme da Costa Carvalho Francisco Miguel Duarte LEVA DE OPERÁRIOS GREVISTAS Em Janeiro de 1947 chegaram 27 grevistas que ficaram separados por um muro dos restantes prisioneiros e que estiveram no campo 6 meses. Quatro desses grevistas ficaram com residência fixa na Cidade da Praia durante mais cerca de um ano. EXPOSIÇÃO ENVIADA AO DIRECTOR SOBRE A SITUAÇãO SANITÁRIA NO CAMPO DOCUMENTO 3 Exposição enviada pelo camarada médico Manuel Baptista dos Reis, ao director, capitão Filipe Barros, acerca da situação sanitária existente no Campo (Maio de 1944?): Ex.mo Sr. Director: O aspecto verdadeiramente grave que o estado físico e sanitário dos presos nesta Colónia Penal está tomando, força-nos a dirigir a V. Ex.a este escrito. Por ele pretendo pôr V. Ex.a inteiramente ao corrente de uma situação que, se ainda não é catastrófica, vai assumindo formas progressivamente mais dolorosas e cada vez menos remediáveis. Tem V. Ex.a por ocasiões várias, manifestado intenções de se interessar pela regularização de aspectos anormais que a nossa vida aqui comporta. Ainda ultimamente, V. Ex.a teve ocasião de declarar-me todo o seu empenho em que fossem retirados para o Continente os doentes em estado grave e, aqui, incurável, presos na CP. Infelizmente, até este momento, nenhuma providência ou indício dela se manifestou e pouca esperança podemos alimentar de que venha a surgir. Para mais, senhor director, o problema da defesa da vida e da saúde dos presos no Tarrafal, não pode confinar-se à evacuação para o continente dos doentes em perigo de vida que aqui se encontram. Limitar a isso as medidas a tomar, o mesmo seria que continuar e, deixar aos acasos do tempo, do clima, da compleição física de cada um, e das vicissitudes da vida da CP a saúde e a existência de todos nós. Uma só excepção surgiria: aqueles a quem a infelicidade ou a boa dita concedes- 295 sem uma doença grave, de feliz aspecto crónico, embora terrivelmente torturante, poderiam alimentar a santa esperança de que ainda voltariam a ver os seus (e quem sabe?) a recobrar um pouco da saúde que aqui tinham, impotentemente, visto desfazer-se. Os outros (todos os outros!) continuariam a esperar o impaludamento progressivo, a biliosa traiçoeira, quando não a tuberculose ou a loucura, transformados, terrivelmente, no único meio de libertação. Há um ano, quando da inspecção feita a esta CP, pelo Sr. Major Antão Nogueira, muitos de nós se lhe dirigiram, expondo a situação em que se encontravam e nos encontrávamos. Concebemos, então, a possibilidade de que fossem tomadas medidas que minorassem, se não liquidassem, os aspectos de verdadeira anormalidade em que a nossa vida está decorrendo. Um ano se passou, e nada vimos que nos indicasse que se iria entrar na liquidação de tudo o que, verdadeiramente, e anormal ou, até, ilegal, na vida desta Colónia.

Pelo contrário, nós vemos que os sete anos e meio em que a maioria de nós aqui vive, vai dando os seus resultados maléficos e de terrível pertinácia. Um novo caso de loucura veio ensombrar a pouca boa disposição de alegria em que nos podemos encontrar. Casos de destrambelhamento nervoso, resultado do intensíssimo desgaste que esta vida em todos nós opera, vão surgindo. Transtornos do coração aparecem, a juntar-se à verdadeira legião de doenças do figado, que, dia a dia, vão fabricando, a permanência neste clima, o paludismo insuficientemente tratado e nunca prevenido, a alimentação inconveniente que aqui temos. Existe, em todos nós, um definhamento progressivo, de que é prova bem frizante, a incapacidade, progres- 296 sivamente maior que todos nós temos para qualquer trabalho, e o número de presos que o Ex.mo Clínico da Colónia Penal se vê forçado a dispensar de todo o esforço físico. Neste ano e meio da direcção nesta CP, V. Exª já terá notado como, sucessivamente, tem ido a diminuir o número dos que se encontram aptos para o trabalho. Se fizermos confronto entre as possibilidades físicas, há cinco e seis anos, da maioria dos presos, e as actuais, ficaremos verdadeiramente edificados. Homens que aqui exerceram as mais fatigantes tarefas, homens cuja robustez lhes era motivo de sadio orgulho e serena confiança no futuro, estão hoje - ainda os mais fortes - incapazes de um esforço prolongado, senão mesmo de o tentarem. E isto, sr. director, não é uma situação a que chegámos e que, aqui, se imobilize. É uma situação que tende a agravar-se e cada vez mais. É uma situação, cuja gravidade cresce muito mais depressa que o tempo marcha, em virtude da acumulação de males anteriores, e do agravamento de algumas das condições de vida nesta CP. Por terrível experiência à nossa custa obtida, sabemos como, um ano após outro, a época das febres e das biliosas - a que já nos habituámos a chamar período agudo - vem dar forte empurrão na nossa saúde, quando não nas nossas vidas. Porque isso assim é, e porque a natureza da actividade que exerço me põe em estreito contacto com todos os aspectos que a vida aqui comporta, resolvi, escrevendo a V. Ex.a salientar alguns dos mais flagrantes da vida que aqui vivem todos os presos. Antes que chegue a época das chuvas, com todas as suas consequências, é necessário que se actue, que alguém actue. Evidentemente, que de 297 tudo o que há a tratar, muito não depende directamente de V. Exª. Porém, impossibilitados como estamos de nos dirigir a outrém, enquanto a isso não formos autorizados, será a V. Ex.a a que teremos de nos dirigir, representante, como é, aqui, da PIDE, a cuja ordem, na maioria, nos encontramos presos. Para mais, medidas há, e imediatas, que dependem, directamente, de V. Exª ao menos nas diligências a ordenar a tal respeito. Dependem de V. Ex.a como director, todos os serviços de abastecimento, todos os pedidos de fornecimentos feitos à PIDE, a direcção superior de todos os sectores da actividade desta CP. Isso me diz que de V. Exª poderá depender bastante do que é imediatamente possível realizar no sentido de atenuar, enquanto não se solucionar, as condições anormais e perigosas em que a nossa vida aqui se encontra. Passo a considerar, em particular, algumas dessas anormalidades a que me refiro, confiado em que V. Exªa tentará resolver as que de si dependem, e empregará os convenientes esforços para que as restantes - e, infelizmente, fundamentais sejam relegadas às entidades que na sua resolução devem interferir.

SITUAÇÃO SANITáRIA - É bastante anormal a situação sanitária dos presos da CP. O número de doentes das mais variadas doenças é relativa e permanentemente elevado, como V. Exª muito bem sabe. Infelizmente, não só as doenças são muitas, como os meios de as tratar são escassos e, cada vez mais. Está a chegar o período das febres e das biliosas e a carência geral de medicamentos, na colónia, toma, nesta época, e sob este aspecto, uma extensão que a torna particularmente grave. 298 No ano passado, que não foi, de forma alguma, um ano mau, registando em seis meses (Julho a fins de Setembro), uma população de duzentos e vinte e seis homens, os seguintes e expressivos números: 498 casos de paludismo com um total de: 1743 dias de febre, dos quais 547 com temperaturas superiores a 38º. Para a grandeza altamente anormal destes números, contribuem, muito do clima, as condições que as condições penúria de çs de vida que suportamos e a medicamentos da colónia. Deverei recordar, ainda frecuência de castigos em pésimas condições higiénicas. Se bem que o seu número se tenha reduzido em relação ao passado e, em muitos casos, tenham melhorado um pouco as condições em que são sofridos, não deixam de ser péssimos, e, muitas vezes, sem qualquer justificação, como o patenteia um caso recente. A comparação da morbilidade e da mortalidade por paludismo, na CP, com as da população europeia e do arquipélago, deve demonstrar as considerações acima de forma assaz expressiva. (Lembro a V.Exª que se não fosse o uso quase geral de mosquiteiros adquiridos pelos presos, muito pior seria a nossa situação sanitária. Isto aliás, põe o problema de a colónia auxiliar na aquisição de mosquiteiros ou no concerto dos danificados, todos os presos que, para isso, não tenham posses. Isto evitará uma generalização de ataques palustres com todas as consequências conhecidas). De há certo tempo para cá, a colónia unicamente fornece já declarada para cada caso de febre palustre, já declarada, 0,5 g de quinino diário, metade da dose habitual, e mesmo essa dose, insuficiente, é 299 retirada logo três dias depois do último dia de febre. Entre outras consequências, isto motiva que as recaídas sejam extremamente frequentes (não deveremos esquecer, também, que já estivemos, e talvez voltemos a estar, na iminência de nem 0,5 g de quinino obtermos). Por outro lado, a existência de trabalhos pesados (muitos no passado e alguns no presente), exigindo um esforço físico considerável (boa porção dele à torreira do sol), durante a estação dos calores, das chuvas e das febres - tem sido e ainda é outro factor que vem agravar o primeiro e, além disso, contribui largamente, para a frequência, ainda mais anormal, da biliosa, que entre nós se regista. Em sete (7) anos de existência do campo do Tarrafal, registamos um total de 67 biliosas, das quais faleceram 14 indivíduos, a maioria deles aqui presos desde o primeiro ano da existência do campo. A estes 14, há ainda a juntar, no primeiro ano de vida do campo, mais 8 mortos por perniciosa, mortes devidas a absolulta falta de tratamento antipalúdico. O total de mortos por paludismo eleva-se, assim, a 22, o que representa uma mortalidade por paludismo, de 9,7 %. (Salienta-se que a média real deve ser um pouco maior, visto que toma por referência a população actual do campo, manifestamente superior à população média nesse período.) Este quadro não ficará completo se lhe não associarmos o número das pessoas de entre nós que, como consequência do paludismo crónico e da frequência dos acessos febris, sofrem de afecções do fígado.

Tomando só as manifestações, perfeitamente evidentes, da pele e mucosas, dores, icterícias, 300 encontraremos 56 casos, número tremendo para uma população de 226 homens. Isso explica que se mantenham, permanentemente, a dieta, mais de 80 pessoas, das quais cerca de 40 a leite, ou a leite e caldos. Passando a outros aspectos da vida sanitária dos presos desta CP, encontraremos: Tuberculose óssea - 1, e tuberculoses renais - 3. Qualquer destes doentes necessita tratamento que só se poderá fazer no continente. A sua permanência aqui significa uma verdadeira condenação à morte, porquanto um período mais adiantado, nem a sanatorização terá valor para o primeiro caso, nem serão operáveis os restantes. Úlceras gástricas - 6 Hérnias - 8 ( quatro delas não contidas por falta de fundos) Fístulas ano-rectais - 2 Apendicite - 1 Leucoplasia (perigo de cancro) e ptose generalizada - 1 Todos estes casos são operáveis e só se prejudicarão com a permanência aqui. Haja em vista o que aconteceu com o doente de apendicite aqui operado, cujo estado o fez sofrer, durante um longo ano, e chegou quase ao limite em que a vida correria o mais sério risco. Temos, além disso: doentes hepáticos - 56, sifilíticos - 78 301 três caso de psicopatia tendem a agravar-se, fortemente com a permanência aqui. Gaseados da guerra - 2 Doentes pulmonares - 35 (com lesões pleurais - 17) Com lesões pulmonares, mais ou menos extensas, 18 dos quais já tiveram hemoptises 11. Dois destes doentes pulmonares encontram-se em estado particularmente grave e sujeitos a morte certa, se aqui continuarem. Se passarmos da consideração do estado actual de saúde do campo, para o da mortalidade até aqui ocorrida, encontramos um total de 28 mortos, que subdividirei assim: por biliosas - 14, perniciosas - 8, tuberculose pulmonar - 2, cancro - 1, vários - 3. Referidos à população actual (superior à média, já o vimos), teremos: mortalidade em 7 anos, por paludismo 9,73% (22), por outras causas 2,65% (6), um total de 12,38% (28). 302 As tábuas de mortalidade, para a Alemanha elaboradas por Kuiezynsky (1924-1926), indicam que, em 5 anos, a população sofre um desgaste de: nas idades compreendidas entre 30 e 35 anos, 1,75%. Nas idades compreendidas entre 35 e 40 anos, 1,92 %. A idade média, no acampamento, esteve sempre entre os 30 e os 35 anos e, sempre, também, com muito forte predominância dos números baixos. Portanto, fazendo redução dos números obtidos, de 7 anos, à média de 5, teremos: média de mortalidade em 5 anos Por paludismo - 6,95 % Por outras causas - 1,89 % Total - 8,84 %

Feita a comparação com os resultados de Kuczynsky, vemos como o paludismo ( 6,95 % ), principalmente pela frequência de biliosas nas condições particularmente desfavoráveis em que nos encontramos, carrega o quadro da mortalidade geral ( 8,84 % ) que, sem elas, já estaria carregado ( 1,89 % ) e acima da mortalidade geral na Alemanha para as mesmas idades dos 30 aos 35 ( 1,75 % ). A uma situação em que as taxas de mortalidade e mobilidade se manifestaram e manifestam tão elevadas, não correspondeu uma intensificação de tratamentos pela CP, antes pelo contrário. Se não fossem os remédios de nossas famílias recebidos que, em número avultado para as suas possibilidades, cada vez menores, são escassíssimos para as nossas necessidades - mais e mais doenças e mortes teríamos a registar. 303 Contudo, o agravamento da penúria existente farmácia da Colónia, o paupérrimo racionamento de medicamentos que nos é feito - motivam que a situação se torne cada vez mais apertada, e possa assumir, em breve, proporções nefastas. Assim, vemos que a própria tintura de iodo para desinfecção de golpes e para outros fins praticamente não existe. Cálcio injectável, tão necessário para os doentes pulmonares e para todos os debilitados (e eles são muitos numa população em que o paludismo faz os estragos que já apontei), praticamente não é dado. Arrenol - Este medicamento de bastante eficácia no tratamento do paludismo, quando associado ao quinino, não é, há muito tempo, fornecido pela Colónia aos doentes. Os tratamentos anti-sifilíticos por conta da Colónia são feitos, sobretudo, com iodeto e benzoato de mercúrio, preparados na farmácia da Colónia e de tal modo dificilmente suportáveis pelos doentes que muitos preferem não fazer tratamento a sofrerem as dores e transtornos que motivam. Os desinfectantes pulmonares são dados escassamente e a escassíssimos doentes. Existe uma grande falta de tónicos, cardíacos, necessários em todos os casos graves, particularmente no descanso do tratamento das biliosas. Medicamentos para doentes do fígado, poucos são dados e de pouca eficácia, em muitos dos casos. Fortificantes gerais, poucos são dados. Desinfectantes intestinais e laxantes têm sido dados com rigorosa e deficiente parcimónia. Teobromina injectável e outros diuréticos enérgicos injectáveis (único processo útil de os ministrar aos doentes que vomitam, como acontece em quase todas as biliosas) não são dados. São medi- 304 camentos absolutamente indispensáveis nas biliosas. Soro fisiológico - o que a Colónia fornece é fabricado na farmácia daqui, tem-se revelado, nos últimos tempos, particularmente doloroso, em contraste com o das ampolas de proveniência particular, que tem sido usado em alguns doentes. A atebrina, que é, na actualidade, o antipalúdico mais eficaz e que não envolve risco de biliosa como a quinina, não é dada pela Colónia, apesar de ser, hoje, mais barata e de mais fácil obtenção no continente que qualquer outro antipalúdico. Devo salientar que, nos trés últimos anos, só foram aqui usadas injecçöes de atebrina da CP em três casos e, nalguns destes, num terço da dose diária. Chamo, em particular, a atenção de V. Exª para esta falta de atebrina que, se é muito necessária para todos os casos de paludismo rebelde, constitui, injectável, o único antipalúdico que se pode ministrar sem perigo durante as biliosas. Sulfamidas-Este medicamento, de grande eficácia em doenças como as bronco-pneumonias, não tem existido sequer na farmácia da CP.

Em suma, Sr. Director: os medicamentos que a Colónia tem e fornece são absolutamente deficientes em quantidade e qualidade, para ocorrer às necessidades motivadas pelas doenças mais vulgares. Se nos lembrarmos que as mais variadas doenças podem, acidentalmente, surgir, veremos que, a este respeito, também a situação não é nada tranquilizadora. Alimentação de doentes - Alguns progressos têm sido feitos neste capítulo. Há uma dieta, infelizmente só utilizada por três doentes, que é satisfatória. As outras deveriam ser mais cuidadas, menos rígidas, tendo-se em conta, em particular, as necessidades dos dietéticos que trabalham. 305 Ocorrerá perguntar, Sr. Director: qual será a justificação de mais de duas centenas de homens aqui se encontrarem nesta situação e com tais perpectivas? Em que condições decorre a sua existência? A isto procurarei responder como se segue: SITUAÇÃO JURÍDICA - Como as fichas policiais em seu poder rapidamente indicarão, é bastante grande o número de presos que, aqui, se encontram contra as determinações da lei. É bastante grave tão injusta situação, que condena à permanência, aqui, com todos os riscos, um número bastante grande de pessoas que não têm culpa formada; jé cumpriram há muito as suas condenações; não foram julgados ou estão condenados a prisão correcional. Não esqueçamos, inda, que alguns dos que aqui têm as penas cumpridas (e até que aqui morreram) estavam condenados a prisão correcional, portanto a pena de nunca aqui os deveria ter trazido. Quando no fim do passado ano o governo decretou um indulto e amnistia a presos políticos, fez, também, uma declaração sobre o reduzidissimo número de presos políticos que continuariam, de momento, privados de liberdade. Afirmou-se, então, que seriam, apenas, umas escassas dezenas. Julgámos, por essa altura, que, finalmente, iria regularizar-se um estado de coisas que, por incompatível com a lei fundamental do país e com as declarações de alguns actuais dirigentes do Estado português - era e continua sendo uma verdadeira contradição. Julgamos que o cumprimento da lei e a excução das promessas contidas na amnistia, no indulto e na declaração ministerial reduziriam a número tão insignificante os presos desta CP que ela não teria condições para sobreviver, e uma ultima determinação de regresso para prisões do continente dos presos ainda subsistentes acabaria com uma prisão que não tem quaiquer condições ou motivos que, ou motivos que, humana e legalmente, determinem ou sequer justifiquem a sua existência. Porém, a realidade foi inteiramente outra. Tirada uma escassa meia dúzia de presos que seguiu para o continente, e de que muito poucos foram postos em liberdade - tudo ficou como antes nesta Colónia, agravada a situação com o tempo que vai passando, deixando os seus estragos e fazendo que o irreparável de muitas mortes anos de vida destroçados e saúdes abaladas - vá crescendo, não sabemos até onde nem até quando. Permito-me chamar a atenção de V. Exª e para os números e considerações que seguem, dada a sua extraordinária importância. Dos duzentos e vinte e seis presos que aqui se encontram, 127 (56% do total) estão numa situação inteiramente ilegal. Destes, 72 (31% dos presos) não foram julgados, apesar de muitos se encontrarem detidos há longos anos; e outros nem matéria para julgamento, pelo que mais devem ser considerados presos sem processo sem culpa formada. Cinquenta e cinco (24% do total) terminaram as penas, a maior parte, há vários anos (a quantidade de tempo em excesso de pena, cumprida pelos presos da CP, TOTALIZA MAIS DE DUAS CENTENAS DE ANOS!

Isto representa uma ileglidade e injustiça tão evidentes que eu julgo, Sr. Director, que o conhecimento desta situação deverá levar quem de direito a proceder conforma mandam os tribunais e as leis portuguêsas. Não será de mais esperar que os que têm a seu cargo a excução e a defesa das leis vigentes lhe dêm efectivo cumprimento, fazendo cessar tão irregular e ilegal situação que a ninguém é pro- 307 veitosa, antes prejudica os presos e suas famílias, ao mesmo tempo que mantêm um aspecto de coisas inconvenientes e, até, desprimoroso para as entidades encarregadas de estabelecer o acordo entre as leis e as acções dos vários organismos do Estado. Alimentação - É este um assunto bastante importante, a considerar em particular, se aqui ainda havemos de permanecer mais tempo. Dela depende a robustez que possamos obter para resistirmos às doenças; dela depende a rapidez, maior ou menor, de recomposição física, após cada ataque de paludismo ou de qualquer das tantas doenças e achaques a que estamos, constantemente, sujeitos. Também, do modo como a alimentação seja constituída, assim resultará um menor ou maior número de doentes do fígado ou dos intestinos, o que, no primeiro dos casos, é coisa de grande e gravíssima importância como já apontei a V. Exª. Ora, o que acontece? Tirando a inclusão de algumas refeições temperadas com azeite, a alimentação continua com a mesma monótona e deficiente constituição. A banha, de péssima qualidade, um dos nossos mais permanentes e discretos inimigos, continua a ser o tempero fundamental que, constantemente, nos ataca o fígado, cada vez em pior funcionamento. Também o peixe ( quando há ) continua a ser gasto ( em boa parte dos casos ) no dia ou dias seguintes a ser preparado, o que tem os piores inconvenientes, sob o ponto de vista higiénico. Os escabeches ou ceboladas em que possa ser apresentado, se são agradável meio de estimular o paladar, não podem desfazer os inconvenientes que, num clima como este, e para pessoas no nosso estado, tem a alimen- 308 tação de peixe, quando este não é consumido imediatamente, após ser preparado. Os ovos continuam a ser um elemento usado com bastante frequência na organização do rancho; quando a verdade é que, salvo raras excepções nunca deveriam entrar na nossa alimentação. Contra a monotonia e deficiência do rancho, lutam muitos dos presos, adquirindo ora um pouco de fruta ora qualquer alimento com que compensam as falhas da sua alimentação. Nem todos o podem fazer; quase nenhuns o podem fazer sempre. Por outro lado, as dificuldades que pesam sobre suas famílias cada vez mais impossibilitam o envio, por estas, de algum dinheiro, com que ocorriam a essas despesas, aliás insuficientes para a obtenção do que necessitam. Há, pois, uma situação absolutamente anormal: chocante até, porque não é de admitir que sejam os próprios presos (muitos deles até ilegalmente detidos) quem haja de ocorrer às despesas da sua alimentação, senão no todo, pelo menos em parte. Esta situação, evidentemente, só se pode remediar pela aquisição da variedade e quantidade de alimentos necessários para a constituição sã e equilibrada. Só a utilização simultânea dos recursos locais e dos géneros que só se obtêm (como se obtiveram noutros períodos) no continente - poderá, julgo, proporcionar o meio de resolver todo este problema. Roupas - Apesar de uma ou outra distribuição de roupas, continua a notar-se uma escassez de vestuário, com todas as consequências higiénicas e morais que são fáceis de avaliar.

Muitos presos (os que tinham roupas, tiveram necessidade e a isso se dispuseram) gastaram e continuam a acabar de gastar as suas roupas interiores, abafos e calçado. Outros continuam a so- 309 frer as consequências da penúria a que se vêem reduzidos. Deixaram, praticamente, de serem dadas camisas; continua a mesma falta de calças e casacos. Aos doentes, ou aos que, pelo seu debilitamento, deixaram de poder trabalhar, foram tiradas as botas, inovação extraordinariamente perigosa para os que, com mais facilidade, serão atacados pelos mosquitos, além de terem de sofrer tantas das consequências do uso das sandálias de pau que, agora, lhes são distribuídas. Por outro lado, nunca nos foram dadas toalhas (apesar de terem sido pedidas ao Sr. Inspector major Nogueira), o que põe, a muitos, a necessidade de as pedirem a suas famílias, além de tudo o mais que já eram forçados a pedir-lhes. Deverei recordar, ainda, que muitos de nós têm de utilizar mantas ou abafos seus para se cobrirem de noite, porquanto as mais das mantas da CP estão desfeitas por um longo uso, sem que sejam substituídas, como, oportunamente, o deviam ter sido. Julgo conveniente lembrar ainda, neste capítulo do vestuário, que a muitíssimos de nós se têm estragado todas as roupas que para aqui tinham trazido em bom estado. Muitos de nós, quando formos postos em liberdade, não terão que vestir. E os que ainda têm, se forem forçados, como até agora, a manterem os seus fatos fechados na arrecadação - ficarão sem nada. Eis, Sr. Director, a nossa situação, que é bem dolorosa e cheia de perigos para que necessite de considerações mais longas. Está a abrir-se um novo período de doenças em que as péssimas condições em que vivemos, as deficiências de toda a ordem que nos assaltam irão ser mais vivamente sentidas. Vai entrar-se, novamente, numa época em que a normali- 310 dade má da nossa vida, aqui, vai ser terrivelmente agravada pelo irremediável de mais saúdes aniquiladas, de mais algumas vidas perdidas. A injustiça flagrante, que acima demonstrei, de se manterem aqui presos dois centos e tal de pessoas, sem motivo legal grande parte delas, sem condições higiénicas todas - vai, neste momento juntar-se o desfazer das últimas energias, que, teimosamente, têm conseguido guardar. Irá esquecer-se, mais uma vez, tudo isto? Irão as autoridades de que esta CP deve pensar que esta situação pode manter-se? Eu julgo que a atenção e intenção dadas à existência desta Colónia pelas entidades respectivas, tal situação não pode continuar. Todos nós assim o julgamos. Por isso mesmo entendi que deveria dirigir esta exposição a V. Exª visto que é justa, legal, e até imprescindível que se actue imediatamente. A V. Exª cabe tomar as providências necessárias para que toda a actividade da nossa vida aqui seja devidamente considerada pelas entidades a quem tal diz respeito. Urge que sejam determinadas medidas de rápida evacuação de todos os presos daqui para o continente e subsequente regularização da situação ilegal em que muitos se encontram detidos. Urge que, entretanto, sejam adoptadas as medidas convenientes de fornecimento, à Colónia Penal, de remédios, alimentos e roupas, que tanta falta nos fazem. Urge, se se julga que a PIDE não tem possibilidades de obter todos os medicamentos necessários à defesa das nossas saúdes e vidas (o que parece inacreditável), nos seja dada, imediatamente, autorização para nos dirigirmos a organizações que, como a Direcção-Geral de Saúde, Assistência Nacional aos Tuberculosos, Cruz 311

Vermelha Portuguesa e outras, por sua natural funçao têm possibilidades de nos valer. Importa, ainda, que a acção de V. Exª, informando a PIDE, seja completada pelos nossos esforços e de nossas famílias. Por isso, vos peço, Sr. Director, autorização para que possamos expor a S. Exª o ministro do Interior, as dificuldades prementes da nossa vida aqui. Por isso, vos peço, também que os de nós que o queiram fazer sejam autorizados a expor, livremente, por carta, a suas famílias, as diligências que deverão empregar, no continente, para que seja resolvida a sua situação, como é legal e de justiça. Sobre V. Exª, Sr. Director, pesam, nesta momento, não só as dificuldades imediatas do exercício do vosso cargo, mas as muito mais delicadas e espinhosas de empregar todos os esforços para que não se multipliquem as consequências, em grande parte, infelizmente, irreparáveis, da manutenção de um estado de coisas manifestamente avesso a tudo o que é justo, às decisões dos organismos judiciais e, até, aos princípios que orientam a lei fundamental em vigor no país. Espero, Sr. Director, que V. Exª terá em devida conta quanto expus e tomará, directa e imediatamente, quantas medidas sejam adequadas a resolver um estado de coisas que, humanamente, não se pode prolongar mais. Subscrevo-me com toda a consideração. Manuel Baptista dos Reis 312 PRESOS POLÍTICOS FALECIDOS NO TARRAFAL DOCUMENTO 4 Francisco José Pereira Pedro de Matos Puipe Francisco Domingos Quintas Rafael Tobias Augusto da Costa Candido Alves Barja Abilio Augusto Belchior Francisco Esteves Aldo Simões Januário Alfredo Caldeira Fernando Alcobia Jaime de Sousa Albino Coelho Mário dos Santos Castelhano Jacinto de Melo Faria Vilaça Casimiro Ferreira Albino António de Carvalho António Guedes de Oliveira e Silva Ezo José Ribeiro João Lopes Dinis Henrique Vale Domingues Bento António Gonçalves Damásio Martins Pereira António de Jesus Branco Paulo José Dias Joaquim Montes Manuel Alves dos Reis Francisco Nascimento Gomes Edmundo Gonçalves Manuel da Costa

Joaquim Marreiros António Guerra 315 CRONOLOGIA 28.5.1926 - Golpe de Estado militar que instaura em Portugal a ditadura fascista. 7.2.1927 - Tentativa de revolta militar contra a ditadura. É esmagada com dezenas de mortos. 27.4.1928 - Salazar é nomeado ministro das Finanças. 8.7.1930 - É decretado o Acto Colonial que proclama os princípios coloniais fascistas. 30.7.1930 - Criação do partido único, União Nacional. 25.2.1931- Manifestações em Lisboa contra o desemprego. 1.5.1931- Grande manifestação do 1 de Maio em Lisboa, tendo como principal palavra de ordem a luta contra a ditadura. A polícia ataca a tiro os manifestantes, no Rossio. 1931-1932 - Desenvolve-se em Portugal um forte movimento reivindicativo dos trabalhadores marcado por importantes greves: 2500 operários da construção naval em Lísboa (1 mês); 500 marinheiros de Setúbal (3 meses); na Companhia Nacional de Navegação (2 meses), com apoio de uma greve de solidariedade dos estivadores de Lisboa; greve dos marinheiros de Lisboa (15 dias); dos vidreiros da Marinha Grande; dos estudantes das Faculdades de Direito e Medicina de Lisboa. 5.7.1932 - Salazar ocupa o cargo de chefe do Governo. 30.1.1933 - Hitler é nomeado chanceler do Reich. 1.2.1933 - Hitler manda dissolver o Parlamento da República Alemã. 27.2.1933 - Goering chefe nazi, manda incendiar o Reichstag, para justificar o desencadeamento duma feroz repressão contra os comunistas. 19.3.1933 - Promulgação da Constituição fascista elaborada por Salazar. 317 29.9.1933 - Salazar publica o Decreto Nº 23053, que proibe os sindicatos livres da classe operária e cria a organização corporativa. 19.10.1933 - A Alemanha abandona a Sociedade das Nações. 1.1.1934 - Entra em vigor o decreto fascista de Salazar que proibe os sindicatos operários. Entra em vigor também o Estatuto do Trabalho Nacional elaborado segundo o modelo da "Carta del Lavoro", de Mussolini. 18.1.1934 - Eclode o Movimento Revolucionário de "18 de Janeiro" contra as leis anti-sindicais fascistas. Os principais centros deste movimento são Marinha Grande, Silves, Coimbra e a zona operária de Setúbal e de Lisboa. 25.7.1934 - Em Viena, os nazis assassinam o chanceler austríaco, Dollfuss. 8.9.1934 - São deportados para Angra do Heroísmo para a Fortaleza de S. João Baptista, os antifascistas presos durante o "18 de Janeiro". 16.3.1935 - Hitler decreta o serviço militar obrigatório rompendo com os tratados que proíbem a Alemanhã de ter exército regular. 21.5.1935 - É promulgada a lei que obriga os funcionários públicos a assinar uma declaração anticomunista, e que permite suspender ou demitir das suas funções, por simples decisão do Conselho de Ministros os que não derem provas de aceitação dos Princípios da Constituição fascista. Na sequência desta legislação foram demitidos milhares de funcionários públicos. 10.9.1935 - Tentativa de revolta na Marinha de Guerra portuguesa. É rapidamente sufocada pela polícia política (PIDE). 30.10.1935 - A Itália fascista declara guerra à Abissínia (Etiópia). 318

11.11.1935 - É preso Bento Gonçalves secretário-geral do Partido Comunista Português, no desenvolvimento de uma violenta vaga repressiva em que são presos destacados dirigentes do PCP e de outras organizaçöes antifascistas. 16.2.1936- Em Espanha a Frente Popular vence as eleições e leva ao Parlamento 278 deputados contra 134 das forças de direita. 7.3.1936- Hitler ocupa militarmente a Roménia. 23.4.1936- Sai o Decreto Nº 26539, que cria o Campo de Concentração do Tarrafal. 5.5.1936- Esmagada militarmente, a Abissínia torna-se colónia italiana. 5.6.1936- Em França, toma posse o governo de Frente Popular, chefiado por Leon Blum. 17.7.1936- As guarnições militares estacionades Marrocos e comandadas por Francisco Franco revoltam-se contra a República Espanhola. 18.7.1936- Começa a Guerra Civil de Espanha. As forças rebeldes são apoiadas desde o início pelos regimes fascistas da Alemanha, Itália e Portugal. 27.7.1936- Salazar declara estar ao lado de Franco. Pelas fronteiras portuguesas como a entrar o auxílio alemão e italiano. 8.9.1936- Revolta dos marinheiros dos navios Dão, Afonso de Albuquerque e Bartolomeu Dias contra o regime salazarista. 20.9.1936- Criação da Legião Portuguesa. 13.10.1936- Julgamento dos marinheiros implicados no Movimento de 8 de Setembro, no Tribunal Militar Especial de Lisboa. 319 18.10.1936 - Partida da primeira leva de presos políticos para o Campo de Concentração do Tarrafal, a bordo do navio Luanda. 23.10.1936 - O navio Luanda aporta à ilha Terceira, para embarcar presos do Forte de São João Baptista com destino ao Tarrafal. 25.10.1936 - É assinado o pacto "Eixo Roma-Berlim". 29.10.1936 - É inaugurado o Campo de Concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, tendo como director o capitão Manuel Martins dos Reis. Entram neste dia os primeiros 150 presos. 25.11.1936 - É assinado entre a Alemanha e o Japão o pacto Anticomunista. 1936 -1937 - Desenvolve-se em Portugal uma grande campanha de protesto contra a intervenção fascista em Espanha e de solidariedade com os democratas espanhóis. 28. 2.1937 - Esmeraldo Pais Prata é nomeado médico do Campo de Concentração do Tarrafal. 26. 4.1937 - A aviação alemã, por ordem de Goering, destrói a povoação espanhola de Guernica. É o primeiro ataque aéreo na História contra uma população civil. 12. 6.1937 - Chegada duma nova leva de presos ao Campo de Concentração do Tarrafal. 7. 7.1937 - As forças progressistas chinesas obrigam o Governo à unidade para resistir à invasão japonesa iniciada em 1931. 17. 7.1937 - As forças fascistas de Franco entram na cidade de Bilbau. 20. 7.1937 - Abertura da vala em volta do Campo do Tarrafal. 2.8.1937- Tentativa de fuga colectiva dos presos do Tarrafal. 320 3.8.1937-Iniciam-se no Tarrafal os castigos na Frigideira acabada de construir. Por este lugar sinistro passou a quase totalidade dos presos antifascistas do Tarrafal. O recorde de dias de castigo na Frigideira pertence a Gabriel Pedro e a Joaquim Faustino, com 135 e 108 dias respectivamente. 14.9.1937- O paludismo atinge todos os presos. São interrompidos os trabalhos na vala. 20.9.1937- Morre o primeiro antifascista vitimado pelo paludismo. Outras mortes se seguirão.

17.11.1937- José Júlio da Silva substitui Manuel dos Reis na direcção do Campo do Tarrafal. 1.12.1937 - Começam a circular as cédulas que substituem o dinheiro entre os antifascistas presos no Tarrafal. 12.1.1938 - Mudança dos presos do Tarrafal para os pavilhões de alvenaria construidos para substituirem as barracas de lona. 11.3.1938- A Alemanhã nazi ocupa militarmente a Austria. 28.4.1938- O Governo português reconhece o Governo de Franco. 2.7.1938- Dado o grande número de doentes é criada a cemitra no Tarrafal. 2.8.1938- Nova tentativa de fuga de alguns presos do Tarrafal. 29.9.1938 - É assinado o Pacto de Munique entre a Alemanha Itália, França e Inglaterra. Segundo as cláusulas deste Pacto, a região dos Sudetas (da Checoslováquia) é cedida à Alemanha nazi. 1.10.1938 - Começa a ocupação pela Wehrmacht da região dos Sudetas. 321 20.10.1938- João da Silva - o director dos tempos mais duros do Campo do Tarrafal - toma posse como novo director. 19.12.1938- É ordenada a proibição absoluta da entrada de jornais no Campo do Tarrafal. 27.1.1939- O exército fascista de Franço ajudado pelas forças alemãs e italianas, ócupa a cidade de Barcelona. 15.3.1939 - A Alemanha ocupa militarmente a Checoslováquia. 17.3.1939- É assinado o Pacto Ibérico entre Salazar e Franco. 31.3.1939- As forças franquistas entram em Madrid. 31.3.1939- Fim da Guerra de Espanha. 29.4.1939- João da Silva cria no Campo do Tarrafal o "porta-aviões". 29.5.1939- Com o fim de liquidarem fisicamente os presos do Tarrafal, é decidido pelos torcionários da PIDE João da Silva, director do Campo, e Seixas, chefe dos guardas, criar a célebre "Brigada Brava". 1.9.1939- A Alemanha invade a Polónia. Começa a Segunda Guerra Mundial. 2.9.1939- Salazar define a neutralidade portuguesa, que foi de facto uma política de colaboração com os países do Eixo. 3.9.1939- A Inglaterra e a França declaram guerra à Alemanha. 17.9.1939- O Exército Vermelho entra na Polónia para defender as fronteiras da URSS do exército alemão. 27.9.1939- O exército Alemão ocupa Varsóvia. 322 21.1.1940- No Campo de Concentração do Tarrafal os carcereiros tiram os mosquiteiros com que os prisioneiros antifascistas se defendem dos mosquitos e do paludismo. Só os devolvem em Junho. 9.4.1940 - Hitler invade a Dinamarca e a Noruega. 10.5.1940 - Hitler invade a Bélgica, Holanda e Luxemburgo. 7.6.1940 - João da Silva, despeitado pelo fracasso dos seus planos de divisão entre os presos do Campo do Tarrafal, parte para Lisboa. O capitão Duarte Osório Fernandes substitui-o como director interino. 10.6.1940 - A Itália entra na guerra ao lado da Alemanha. 12.6.1940 - São evacuados do continente europeu os últimos soldados do corpo expedicionário britânico, que embarcaram em Dunquerque. 14.6.1940- As tropas alemãs entram em Paris 18.6.1940- Começa a batalha aérea da Inglaterra. 22.6.1940- A França capitula perante o exército nazi. 29.6.1940- Encontro de Salazar com Franco. 31.7.1940- Hitler declara: "A Rússia será esmagada em 5 meses". 7.8.1940- O capitão Olegário Antunes toma posse como novo director do Campo do Tarrafal. 27.9.1940- É assinado o Pacto Anti-Soviético entre a Alemanha, Itália e Japão.

13.4.1941- É assinado entre a União Soviética e o Japão um Pacto de Não-Agressão. 17.4.1941- A Alemanha ocupa militarmente a Grécia. 22.6.1941 - Violando o Tratado de Não-Agressão, a Alemanha invade a União Soviética. 323 26.6.1941- A Finlândia declara guerra à União Soviética. 31.7.1941- Os chefes nazis decidem a liquidação total dos judeus. Principia a Solução Final, que leva à liquidação da 4,5 milhöes de seres humanos. 16.9.1941- Keitel, comandante do exército alemão na União Soviética, ordena: por cada alemão morto, morrerão 50 a 100 comunistas. 23.9.1941- Os nazis fazem as primeiras experiências de assassínios nas câmaras de gás, no Campo de Concentração de Auschwitz. 28.9.1941- Em Kiev, capital da Ucrânia Soviética os nazis assassinam 4 mil judeus. Começam os fuzilamentos em massa das populações civis. Só na União Soviética as unidades especiais nazis, em pouco mais de 6 meses, liquidaram um milhão de seres humanos. 12.10.1941- As tropas alemãs chegam às portas de Moscovo. 5.11.1941- Inicia-se na Covilhã uma greve geral dos operários têxteis, que marcou o início de uma nova grande vaga de acções de massas dos trabalhadores portugueses contra a ditadura fascista. 28.11.1941- Começa na Frente Central a contra ofensiva do Exército Vermelho. 7.12.1941- O Japão ataca Pearl Harbour. 11.12.1941- As forças do Eixo-Alemanha, Itália e Japão declaram guerra aos EUA. Dezembro de 1941- Manifestações massivas dos estudantes de Lisboa contra os aumentos das propinas. 1941-1942 - As massas camponesas, em Penafiel, Oliveira de Azeméis e outras regiões de Portugal, levantam-se contra o envio de géneros alimentícios para a Alemanha nazi. 324 6.1.1942 - A União Soviética apresenta a primeira nota sobre os crimes de guerra alemães. 15.1.1942 - As Nações Aliadas declaram: "Os criminosos de guerra serão castigados". 10.6.1942 - Os nazis alemães arrasam Lidice pequena aldeia checa e matam toda a sua população, numa operação de represálias massivas. 15.8.1942- Começa a Batalha de Estalinegrado. 11.9.1942- Morre no Campo de Concentração do Tarrafal Bento Gonçalves, secretário-geral do PCP. 7.10.1942- É criada a Comissão Internacional de Crimes de Guerra. Outubro/Novembro de 1942 - Vaga de greves de 20000 operários de Lisboa e arredores contra o congelamento de salários. O governo fascista é obrigado a publicar uma série de "contratos colectivos" para "actualizar" os salários. 7.11.1942- Desembarque das tropas anglo-americanas no Norte de África. 12.11.1942- O exército alemão completa a ocupação de França. 19.11.1942- Começa em todas as frentes a grande ofensiva soviética com particular realce na Frente de Estalinegrado. 30.11.1942- Toma posse como director do Campo de Concentração do Tarrafal o capitão Filipe de Barros. 31.1.1943- Capitulação das forças alemãs cercadas em Estalinegrado. Mudou a face da guerra. A iniciativa na guerra passa, a partir de então às forças militares soviéticas. 325 13.5.1943- Termina a batalha da Tunísia com a vitória dos Aliados.

11.6.1943- Hitler ordena a liquidação total dos judeus. 5.7.1943- Começa a batalha dos salientes de Kursk e Orel. 8.7.1943 - Bombardeamento de Colónia pela aviação anglo-americana, que intensifica os bombardeamentos aos centros industriais da Alemanha. 10.7.1943- As tropas anglo-americanas desembarcam na Sicília. 13.7.1943- O Exército Vermelho passa ao ataque em Orel. O seu avanço só se deterá em Berlim. 25.7.1943- Queda do fascismo italiano. É preso Mussolini. 26.7.1943- Iniciada pelos operários da construção naval desenvolve-se em Lisboa uma vaga de greves que abrange, no terceiro dia, 50000 trabalhadores. O movimento alarga-se a Silves, S. João da Madeira e outras regiões. A polícia ocupa militarmente as empresas e prende milhares de grevistas. Agosto de 1943 - Milhares de camponeses da região de Coimbra saem à rua em manifestação contra a falta de géneros. Nos meses seguintes desenvolve-se no país um movimento de marchas de fome, com grande participação das mulheres. 18.8.1943- Portugal cede a base dos Açores à Inglaterra. 3.9.1943- A Itália assina o armistício com os Aliados. 10.9.1943- Os alemães invadem a Itália. 12.9.1943- Os nazis alemães libertam Mussolini. 29.9.1943- Inicia-se a batalha pela linha do Dnieper. 326 13.10.1943- A Itália declara guerra à Alemanha. Novembro de 1943 - O Partido Comunista Português realiza o seu primeiro Congresso clandestino (III do Partido), que dá um grande impulso ao desenvolvimento de toda a luta antifascista. 1.11.1943- "Declaração de Moscovo" sobre o castigo dos "criminosos de guerra". 6.11.1943- Kieve libertada pelo Exército Vermelho. 24.12.1943- Inicia-se a terceira grande ofensiva soviética para a libertação total do território nacional. Janeiro de 1944- É formado o Movimento Nacional Antifascista (MUNAF), em cujo Conselho Nacional estão representadas as principais forças e sectores políticos portugueses em luta contra a ditadura de Salazar. 29.1.1944- Os alemães vêem-se forçados a abandonar Leninegrado depois de um cerco de cerca de dois anos. 16.2.1944- Aniquilamento das forças alemãs - 100000 soldados - na bolsa de Kerson. 10.3.1944- Rende-se a guarnição alemã de Uman: 6 divisões Panzer. 8.4.1944- O Exército Vermelho liberta a Crimeia. 10.4.1944- É libertada Odessa. 8/9.5.1944- Poderosa vaga de greves dos trabalhadores da zona de Sacavém, Vila Franca, Lisboa, Barreiro, Loures, Pêro Pinheiro. As greves, a que aderem mais de 25000 trabalhadores, são acompanhadas de manifestações com grande participação de camponeses. 4.6.1944- As tropas anglo-americanas ocupam Roma. 327 6.6.1944- Começa a invasão da Normandia pelas forças militares anglo-americanas. 22.6.1944- Pelo terceiro aniversário da invasão da URSS, O Exército Vermelho desencadeia nova ofensiva. 3.7.1944- É libertada Minsk, capital da Bielorrússia. 20.7.1944- Atentado contra Hitler. 14.8.1944- Novo grande desembarque das forças aliadas no Sul de França. 21.8.1944- Conferência para a criação das Nações Unidas. 25.8.1944- As tropas aliadas entram em Paris. 31.8.1914- O Exécito Vermelho entra em Bucareste. 4.9.1944- A Finlândia assina a paz com a URSS.

20.10.1944- As forças patrióticas jugoslavas, com o apoio do Exército Vermelho, libertam Belgrado. 11.1.1945- O Exército Vermelho entra em Varsóvia. 26.1.1945- As tropas soviéticas entram no Campo de Concentração de Auschwitz. 14.2.1945- O Exército Vermelho liberta Budapeste, capital da Hungria. 12.4.1945- Morre Roosevelt, presidente dos Estados Unidos. 13.4.1945- O Exército Vermelho liberta Viena, capital da Áustria. 18.4.1945- Na bolsa de Ruhr são aprisionados 325000 soldados alemães e 30 generais. 25.4.1945- Junção das forças americanas e soviéticas no Elba, us povoação de Torgau. 328 28.4.1945 - Mussolini é preso, julgado e fuzilado pelos guerrilheiros italianos. 30.4.1945 - Hitler suicida-se no Bunker da Chancelaria, em Berlim. Salazar decreta luto nacional. 1.5.1945- É içada a bandeira soviética no edifício do Reichstag, em Berlim. 2.5.1945- O Exército Vermelho toma Berlim, capital da Alemanha hitleriana. 8.5.1945 - A Alemanha nazi capitula incondicionalmente. 8/9.5.1945 - Em Lisboa, Margem Sul, Porto, Coimbra, Viana do Castelo, Marinha Grande, Alentejo e muitas outras regiões do País e povo vem para a rua, em grandiosas manifestações, festejando o fim da guerra e a derrota do nazismo, reclamando eleições livres e a libertação dos presos políticos. A extinção do Tarrafal aparece, em todas as manifestações, como uma das principais reclamações do povo português. 26.6.1945- É assinado o acordo que cria as Nações Unidas. 6.8.1945- Truman, presidente dos Estados Unidos, manda lançar sobre a cidade japonesa de Hiroshima a primeira bomba atómica da História. 15.8.1945- Rendição do Japão. Fim da Segunda Guerra Mundial. 6.10.1945- Salazar, pressionado pelas forças antifascistas portuguesas, decreta uma amnistia-burla. 7.10.1945- É criado o Movimento de Unidade Democrática (MUD), que encabeça a luta unitária de toda a oposição ao regime salazarista, no plano legal. 20.11.1945- Começa em Nuremberga o julgamento dos grandes criminosos de guerra. 329 Outubro//Dezembro de 1945- Mobilização de milhares de trabalhadores para as eleições nos sindicatos fascistas e vitórias das listas democráticas unitárias em mais de 50 sindicatos. Formam-se em todo o país comissões do MUD. Desenvolve-se por todo o país um grande movimento nacional reclamando o imediato encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal e a libertação dos antifascistas aí condenados à morte lenta. Outubro/Novembro de 1945 - Poderosas manifestações e comícios da Oposição Democrática marcam a campanha eleitoral que Salazar é forçado a conceder sob a pressão da opinião pública nacional e internacional. "Amnistia" e extinção do Tarrafal são duas das principais reclamações apresentadas na campanha. 18.11.1945 - O MUD boicota as eleições-burla, por não terem sido concedidas as condiçöes mínimas para regularidade do acto eleitoral. 26.1.1946 - Embarcam com destino a Portugal os presos amnistiados do Campo de Concentração do Tarrafal. Ficam ainda no Tarrafal 52 presos politicos. 31.1.1946 - Grandes manifestações pela liberdade em Lisboa (70000 pessoas) e no Porto. 5.10.1946 - Grandes manifestações antifascistas em Lisboa e Porto. 10.10.1946 - É dominada na Mealhada uma tentativa insurreccional promovida por sectores militares liberais.

12.11.1948 - Termina em Lisboa o julgamento dos 108, com a condenação de cerca de uma centena de antifascistas, entre os quais Francisco Miguel, que é enviado para o Tarrafal donde será o último preso político a sair. 330 Janeiro de 1949 - Desenvolvem-se grandiosas manifestações populares de apoio à candidatura do general Norton de Matos, apresentada pela Oposição Democrática nas eleições para a Presidência da República. A extinção do Tarrafal é uma das reclamações apresentadas na campanha que recebe maior apoio popular. 13.2.1949 - A Oposição Democrática boicota a votação como protesto contra a farsa eleitoral. Os representantes da Oposição não podem sequer participar na contagem dos votos. 4.4.1949 - O governo de Salazar é admitido na NATO. 11/12.12.52- Vários oficiais implicados numa tentativa de golpe de Estado são julgados em Conselho de Guerra. 1952-1953 - A luta pela Amnistia torna-se uma das principais frentes de acção e unidade das forças democráticas portuguesas. 31.1.1953 - O último preso politico português no Tarrafal, Francisco Miguel, é transferido para a cadeia do Forte de Caias. 26.1.1954 - Encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal. 331 BIOGRAFIAS ANIBAL BIZARRO, operário-pintor, militante do Partido Comunista Português desde 1933, trabalhou durante dois anos numa tipografia clandestina do jornal Avante! Preso em Maio de 1936, foi enviado em Julho de 1939 para o Campo de Concentração do Tarrafal. Libertado em 1944, voltou à luta contra o fascismo. ANTÓNIO DINIS CABAÇO, marinheiro da Armada, membro do Partido Comunista Português desde 1935, foi preso a 8 de Setembro de 1936, quando da revolta dos navios Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão. Condenado a 16 anos de desterro, é enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, foi libertado em 1952. ANTÓNIO GONÇALVES COIMBRA, alistou-se na Armada em 1933, encontrando-se a bordo do Bartoloméu Dias quando da Revolta de 8 de Setembro de 1936. Condenado a 16 anos de desterro pelo Tribunal Militar Especial segue para o Tarrafal onde cumpriu todo o tempo da sua pena. ARMANDO MARTINS DE CARVALHO, carpinteiro, militava desde 1932 no movimento sindical. Responsável em 1933 por uma célula de Juventude Comunista, preso após o 18 de Janeiro de 1934, cumpriu quinze meses de prisão. Em Maio de 1936 é preso de novo no Barreiro. Julgado e condenado, cumpre os quatro anos da sentença no Campo de Concentração do Tarrafal. Libertado, volta à actividade política. ARMINDO DO AMARAL GUIMARÃES, alistou-se como voluntário na Armada em 1933. Participa na Revolta dos Marinheiros e é condenado a 16 anos de desterro. Cumpre 333 no Campo de Concentração do Tarrafal 12 anos e 6 meses e na Penitenciária de Lisboa, 2 anos e meio. Foi libertado a 12 de Julho de 1951. AUGUSTO COSTA VALDEZ, membro do Partido Comunista Português desde 1934, foi preso pela primeira vez em Maio de 1935. Em 1936 teve de passar à clandestinidade, trabalhando numa tipografia do Avante!. Preso em Janeiro de 1938 evade-se de Caxias em Março de 1939. Volta ao trabalho da tipografia

clandestina e novamente a polícia o prende em Maio de 1939. Deportado para o Campo de Concentração do Tarrafal em Junho desse ano, é libertado em Janeiro de 1946. De novo nas tipografias clandestinas em Julho de 1947, volta à legalidade em 1948, por razões de saúde. É preso uma vez mais em Julho de 1959. Manteve-se sempre em actividade política. FRANCISCO MIGUEL DUARTE, membro do Partido Comunista Português desde 1932, foi preso quatro vezes e julgado trÊs. Passou nas prisões fascistas 21 anos e 2 meses. No Tarrafal esteve duas vezes e 5 anos e meio quando da primeira, 3 da segunda. Foi o último preso a ser libertado do Campo de Concentração. Evadiu-se quatro vezes das prisões fascistas e viveu muitos anos na clandestinidade. Membro do Comité Central do PCP desde 1939, foi deputado à Assembleia Constituinte pelo distrito de Beja. É deputado da Assembleia da República pelo mesmo distrito. HENRIQUE OCHSEMBERG, alistou-se na Marinha e militou na Organização revolucionária da Armada (O.R.A.) e na Juventude Comunista. Foi preso em Maio de 1935, a bordo da fragata D. Fernando. Enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, ali permaneceu 4 anos. Libertado em 1940, continuou a sua actividade política. JOÃO FARIA BORDA, dirigente da Organização Revolucionária da Armada (O.R.A.), foi condenado a 20 anos de degredo por ter participado na Revolta dos Marinheiros, a 8 de Setembro de 1936. Passou 16 anos e 3 meses no Campo de Concentração do Tarrafal e mais um ano no Forte de Peniche. Em Outubro de 1959 volta a ser preso, cumprindo mais 8 meses de prisão. É autor de A Revolta dos Marinheiros. 334 JOÃO RODRIGUES, litógrafo, membro do Partido Comunista Português desde 1933, foi preso por ter participado no 18 de Janeiro de 1934. Julgado pelo Tribunal Militar Especial, foi condenado a 14 anos de prisão, que cumpriu na Trafaria, Angra do Heroismo Peniche e Tarrafal. No Campo de Concentração esteve 13 anos e 5 meses, de um total de 16 anos e 6 meses. Libertado, voltou a lutar contra o fascismo, na clandestinidade. Por ocasião do 25 de Abril encontrava-se em França, onde ainda trabalha. JOÃO DA SILVA CAMPELO, alistou-se na Armada, como voluntário em 1931. Aderiu ao Partido Comunista Português em 1935. Militante da Organização Revolucionária da Armada, foi preso em 1936 pela sua actuação na Revolta dos Marinheiros. E condenado a 16 anos de prisão, cumpridos inteiramente no Campo de Concentração do Tarrafal. JOAQUIM AMARO, operário da construção civil, militante antifascista desde 1931. De 1931 a 1933 foi deportado para Timor. Em 1935 filiou-se no Partido Comunista Português. Em Abril de 1937 é preso e, sem julgamento, enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal. Libertado em Janeiro de 1946, voltou a ser preso em Abril de 1963, só sendo libertado em Julho de 1968. JOAQUIM GOMES CASQUINHA, alistou-se na Armade como voluntário. Militante de O.R.A., tomou parte na Revolta dos Marinheiros. Julgado pelo Tribunal Militar Especial é condenado a 20 anos de prisão. Depois de 17 anos no Campo de Concentração do Tarrafal foi transferido em Agosto para o Forte de Peniche, até 24 de Dezembro de 1953. JOAQUIM RIBEIRO, alistou-se em 1930 na Armada, onde aderiu à O.R.A. Em 1934, filia-se no PCP. A 8 de Setembro de 1936 é preso por participação na Revolta dos Marinheiros. Condenado a 16 anos de degredo é enviado para o Tarrafal de onde só é libertado em Agosto de 1952. Sofre ainda prisões em Março de 1962 e Julho de

1966. Depois do 25 de Abril foi candidato pelo PCP a deputado à Assembleia Constituinte. É autor de "No Tarrafal, Prisioneiro". JOSÉ BARATA JÚNIOR, alistou-se na Armada, como voluntário, aos 16 anos. Participa na revolta dos Mari- 335 nheiros. Condenado a 16 anos de degredo, esteve preso 14 anos, 4 meses e 8 dias dos quais, no Campo de Concentração do Tarrafal, 10 anos e 11 meses e o tempo restante nas prisões da Penitenciária, Limoeiro, Peniche. JOSÉ GILBERTO FLORINDO DE OLIVEIRA, foi preso pela primeira vez em Janeiro de 1933, como dirigente da Juventude Comunista. Sai em liberdade em Março de 1935. Participou no VII Congresso da Internacional Comunista e no VI Congresso da Internacional Juvenil. Em Julho de 1936 volta a ser preso. Enviado para o Tarrafal, ali fica preso até Janeiro de 1946. Participou no II Congresso ilegal do PCP. Viveu vários anos na clandestinidade. JOSÉ NEVES AMADO, marinheiro da Armada desde 1932, foi a 8 de Setembro de 1936, um dos participantes na revolta dos navios Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão. Condenado a 17 anos e 6 meses de prisão maior é enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal. Ao fim de 16 anos foi transferido para a Penitenciária de Lisboa, onde ainda fica um ano. É, finalmente, libertado em 1953. JOSÉ DOS SANTOS VIEGAS, operário, aderiu ao PCP em 1933. Participa no 18 de Janeiro de 1934. Preso, é condenado pelo Tribunal Militar Especial a 12 anos de prisão. Passa pelas prisões de Lisboa e Faro, pelo Presídio Militar da Trafaria pelo Forte de São João Baptista e finalmente pelo Campo de Concentração do Tarrafal, onde esteve 13 anos e 2 meses. Libertado em 1949, volta a ser preso e encarcerado em Caxias. Passou nas prisões fascistas 19 anos e 2 meses. JOSUÉ MARTINS ROMÃO, alistou-se na Armada como voluntário e tomou parte na Revolta dos Marinheiros. Condenado a 16 anos de prisão, passou-os completamente no Campo de Concentração do Tarrafal. No Tarrafal, em 1939, filia-se no PCP. Libertado em 1952, continuou a lutar contra o fascismo. MANUEL BAPTISTA DOS REIS, médico, foi preso pela primeira vez em 1932. Combateu na Guerra Civil de Espanha até ao seu termo, como médico. Terminada a guerra foi internado num campo de concentração em França, onde tentou refugiar-se. Com a ocupação do território francês pelas tropas hitlerianas evade-se do Campo e regressa a Portugal. Preso na fronteira pela polí- 336 cia fascista portuguesa é enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, em 1941. É libertado em 1946. Exerce clínica em Grândola. MANUEL DA GRAÇA, operário, filiou-se no PCP em 1927. A 18 de Janeiro de 1934 faz parte do Comité Revolucionário de Setúbal. Julgado à revelia pelo Tribunal Militar Especial, acaba por ser preso. Passa pelas prisões do Governo Civil, Aljube, Peniche. Julgado em segundo processo, a pena é agravada de 3 para 6 anos de desterro. Em Outubro de 1936 é enviado para o Campo do Tarrafal, de onde é libertado em 1946. Em 1949, quando da candidatura de Norton de Matos à Presidência da República, é novamente preso e encarcerado em Caxias. MIGUEL WAGER RUSSEL, aderiu ao PCP em 1931 e nesse mesmo ano é preso. Sai em liberdade em 1932, passando a exercer actividade partidária clandestina. Preso em Abril de 1937, é enviado sem julgamento para o Campo do Tarrafal, onde

permanece preso de Junho de 1937 a 25 de Janeiro de 1946. É autor de "Recordações dos Tempos Difíceis". OLIVER BRANCO BÁRTOLO, alistou-se na Armada em 1927. Militou na O.R.A., de que foi um dos dirigentes, desde o seu início, em 1931. Preso em Maio de 1935, é condenado a 23 meses de prisão correccional pelo Tribunal Militar Especial, que iriam transformar-se, de facto, em 10 anos e 8 meses de prisão. Deste tempo, 9 anos e 3 meses foram passados no Campo do Tarrafal, e o restante nas prisões do Aljube, Governo Civil e Peniche. REINALDO DE CASTRO, foi preso pela primeira vez em Agosto de 1931 e deportado para Timor. Regressando dois anos depois, em 1933, volta à luta contra o fascismo. Parte depois para Espanha, onde combate na Guerra Civil, nas brigadas Internacionais. Feito prisioneiro, continua em Espanha até Dezembro de 1940, submetido a trabalhos forçados. Entregue na fronteira à polícia portuguesa, é enviado para o Campo do Tarrafal por meados de 1941. Sai em liberdade em Janeiro de 1946. 337

ÍNDICE I - Achada grande do Tarrafal................ 9 II - Mar e arame farpado ..................... 17 III - O poço do chambão ....................... 27 IV - A cozinha do Campo ...................... 45 V - Dez pancadas no carril .................. 57 VI - O Manuel dos Arames ..................... 71 VII - A grande cavalgada ...................... 93 VIII - A frigideira ............................ 103 IX - O período agudo ......................... 111 X - O "Tralheira" ........................... 129 XI - Segunda fuga falhada .................... 145 XII - O "Faraó" ............................... 159 XIII - O "Arreda" .............................. 185 XIV - A biliosa ............................... 199 XV - O "Abóbora" ............................. 211 XVI - Últimos anos ............................ 221 XVII - Os vencedores do campo .................. 235 TESTEMUNHOS DE: ANÍBAL BIZARRO, ANTÓNIO DINIS CABAÇO, ANTÓNIO GONÇALVES COIMBRA, ARMANDO MARTINS DE CARVALHO, ARMINDO AMARAL GUIMARÃES, AUGUSTO COSTA VALDEZ, FRANCISCO MIGUEL, HENRIQUE OCHSEMBERG, JOÃO FARIA BORDA, JOÃO RODRIGUES, JOÃO DA SILVA CAMPELO, JOAQUIM AMARO, JOAQUIM GOMES CASQUINHA, JOAQUIM RIBEIRO, JOSÉ BARATA JUNIOR, JOSÉ GILBERTO FLORINDO DE OLIVEIRA, JOSÉ NEVES AMADO, JOSÉ SANTOS VIEGAS, JOSUÉ MARTINS ROMÃO, MANUEL BAPTISTA DOS REIS, MANUEL DA GRAÇA, MIGUEL WAGER RUSSEL, OLIVER BRANCO BÁRTOLO, REINALDO DE CASTRO COORDENAÇÃO DE FRANCISCO DE SOUSA Digitalizado e Corrigido por José Miguel Santos e Maria da Conceição Santos em 1999