Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio século de crítica)

download Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio século de crítica)

of 54

Transcript of Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio século de crítica)

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    1/54

    LLLLLLAAANNNSSSOOOLLL

    NNNAAA IIIMMMPPPRRREEENNNSSSAAA PPPOOORRRTTTUUUGGGUUUEEESSSAAA(((MMMeeeiiiooo ssscccuuulllooo dddeee cccrrrtttiiicccaaa)))

    !!""

    UUUmmm ppprrrooojjjeeeccctttooo dddeee

    HHHeeellleeennnaaa VVViiieeeiiirrraaa

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    2/54

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    3/54

    ! !2! !MGL, que em breve estar disponvelonline, porque a anlise de uma obrano pode ignorar as rplicas quegerou.Na leitura que agora fao, procuroencontrar as grandes linhas de inter-pretao que foram sendo estabe-lecidas pelos crticos sobre esta obra, ede que modo se foi desenhando oretrato da autora Maria GabrielaLlansol junto de uma opinio pblicae de uma comunidade de leitores.Desde o espanto desconcertado e umpouco professoral de um Joo GasparSimes, logo em 1962, sobre o livro

    de estreia Os Pregos na Erva, admirao devota e confessa deEduardo Prado Coelho, para citarapenas dois dos muitos crticos que,com regularidade, leram os livros deLlansol e sobre eles escreveram nosjornais portugueses.O arquivo de imprensa constitudo

    sobretudo por notcias e crticas. Somenos as entrevistas, sinal de umtempo onde a crtica se concentravamais nos textos do que nos autores,to diferente de agora.No entanto, importante referir quelogo em 1964, dois anos depois do

    livro de estreia, Maria GabrielaLlansol d uma entrevista a MariaAugusta Seixas, publicada no Jornalde Letras e Artes de 23 Dezembro. E questo da crtica, MGL responde:Quando disseram mal, renovei o actode esperana em mim mesma ou nodom que gratuitamente me foi dado.Quando disseram bem, confirmava-seque j nenhuma desconfiana me im-pediria de continuar a escrever. Quedigam mal e bem o ideal. (...) Nome interessam as referncias crticas sobo aspecto da justia ou da injustia.Interessam-me, e muito, na medida em

    que tive um leitor atento.Um texto em busca de um leitor. Eesta obra teve dos melhores e maisamantes leitores, que fizeram do actocrtico uma pedagogia do fulgor,constituindo-se como lugar de apro-ximao a este universo de sobre-impresses.

    O que foi escrito por cima da escritade Maria Gabriela Llansol criou umlao textual que irei tentar desatarpelos seus ns mais reveladores.

    Helena Vieira

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    4/54

    ! !3! !

    Joo Gaspar SimesOs Pregos na Ervapor Maria Gabriela LlansolDIRIO DE NOTCIAS9 de Agosto de 1962

    Procura-se, sem dvida, entre a gente

    nova, uma frmula indita que lhepermita criar uma literatura de ficoabsolutamente original. Nada maislegtimo. Todos os que chegam aoproscnio das letras tm o direito dese afirmar independentes e pessoais.Alguma coisa claudica, porm, no sentre ns, tambm l fora, nos pases

    de onde em geral recebemos, feitas oupor fazer, as ideias e as frmulasnovas e isso que nos inquieta,

    uma vez que no pode deixar de secorromper uma receita que j de si seno apresenta como um modelo desanidade. Ainda h pouco o dizamos,a propsito do romance, e vamosrepeti-lo a propsito do conto: paraqu adoptar moldes pr-fabricadosnum gnero em que sempre demosprovas de uma orientao manifesta-mente de acordo com a estticaimportada? Tanto o nouveau romancomo os gneros afins, conto enovela, que pretendem, afinal? Negara legitimidade de uma arte da ficoem que o rcit, ou seja, a narrativa, o

    plot ou a intriga, constituam oelemento bsico. De harmonia com oprincpio de que no existe umafrmula geral do romance a arte decontar, para sermos mais explcitos e que o romancista moderno temmais que fazer do que contar umahistria, proclama-se, adentro dos

    redutos do nouveau roman e estticasafins, a morte da intriga e de tudoquanto faa lembrar a tradicionalnarrativa do romance clssico. E estalei nova, recm-descoberta por umgrupo de escritores de fico maisdados especulao crtica do quepropriamente criao literria,

    senha dos jovens portugueses que sequerem iniciar numa arte de ficoabsolutamente original.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    5/54

    ! !4! !Para qu? Sim, para qu importar deFrana uma tcnica em que sempredemos provas de grande habilidade?Pois no se caracteriza a nossa ficomais genuna por uma espcie decompromisso entre a poesia e aobservao, em que a narrativa e tudoquanto diz respeito aco propria-mente dita constituem os elementosmenos cultivados? Desde aMenina eMoa que no fazemos outra coisaque no seja refugiarmo-nos numaliteratura de fico onde tudo permitido, com a condio da intriga o plot no vir estragar o

    quadro. Pode dizer-se que nuncativmos romance clssico que nofosse moldado, graas a um esforocrtico, sobre um tipo de romanceestrangeiro. Ea de Queirs, o maisclssico dos nossos romancistas, tevede adoptar quase ipsis verbisa estticarealista francesa para conseguir

    libertar a nossa literatura de fico dacongnita enfermidade que hoje sereputa a prova mais salutar de umaverdadeira arte do romance. Com oautor de Os Maias ganhou a nossafico o que nunca tivera um ritmoprprio de contar. Menos de cemanos depois j ns no fazemos outra

    coisa seno tentar importar do pasonde ele aprendeu a escrever obras defico com o elemento que faltava ao

    nosso romance uma tcnica que nosdesensine aquilo que to poucotempo tivemos para aprender.Sim, tudo se cifra, afinal, entre osinovadores da nossa moderna fico,em se escreverem romances e contossem intriga, sem aco, sem plot, issomesmo que de certo modo semprefoi, atravs dos tempos, a deficinciainata da nossa fico. Os Pregos naErva (Portuglia), de Mana GabrielaLlansol, tm, em verdade, aconfigurao de contos, mas noso contos, porque, para todos osefeitos, no contam coisa nenhuma.

    este o maior ttulo de glria dajovem autora. Para conseguir estedesideratum, que foi preciso? Abando-nar-se ao fluxo lrico que geralmentemana da inspirao mais livre doescritor portugus? No. E este meparece o erro a tal qualquer coisaque claudica quer dos nossos quer

    dos escritores franceses em cuja escolase integram os moos cultores dochamado nouveau roman. Uma disci-plina nova se impe ao ficcionista noestilo de Maria Gabriela Llansol: achamada disciplina do objecto, dacoisa vista, da realidade visual Em vezde escrever de dentro para fora

    maneira natural ao tipo psicolgicoportugus de feitio subjectivo ajovem escritora escreve de fora para

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    6/54

    ! !5! !dentro. V primeiro e depois quediz; e no para nos fazer ver o queviu, mas para nos obrigar a ver omundo como se ela l no estivesse.O culto da objectividade mais secae frrea determina a jovem autorade Os Pregos na Erva. To seca efrrea, porm, resulta essa objec-tividade que no tem remdioseno introduzir-lhe algo suscep-tvel de personalizar o que sepretendeu impessoal. E a a temosa dar largas a uma forma deescrever que resulta ocontrrio doque se esperava. Sem lirismo de

    criao nem subjectividade deobservao, Maria GabrielaLlansol agarra-se com unhas edentes a um estilo de que esperatudo, inclusivamente o molho deemocionalidade que falta ao mais.Do estilo grifo intencional-mente a palavra espera a jovem

    escritora a salvao de umaliteratura que na sua incoerncia eincongruncia teria de deixarinsatisfeito o leitor. Pois que lhecontam os seus contos? Nada.Dilogos e cenas, episdios emonlogos, fragmentos de dra-mas, pedaos de intrigas, puros

    quadros objectivos de um aconte-cer que se no concretiza ou se noexplicita eis em que se resumem

    os contos de Maria GabrielaLlansol, sem dvida modelados deacordo com uma tcnica novels-tica que tudo fia do leitor: a inte-ligncia do ininteligvel, a coern-cia do incoerente. Desconexos,hermticos, meramente descritivosde situaes ou de condies queao mesmo tempo nos somostradas por dentro e por fora,ou ora por um lado, ora pelooutro. Os Pregos na Erva contamcom o estilo para se persona-lizarem. Atravs dele pensa aautora imprimir na nossa sensibi-

    lidade uma dedada funda, graas qual o lirismo que falta narrativae a secura que caracteriza a aco senos comuniquem e fiquem aressoar dentro de ns. E em ver-dade ficam, em verdade comu-nicam-se-nos no, porm, pelasrazes que a autora supe. Esse

    estilo precisamente o oposto datcnica adoptada na estrutura doscontos.Enquanto esta aspira a uma objec-tividade integral, aquele perde-senuma subjectividade que por pou-co o no malogra. Que espcie desubjectividade? A pior de todas,

    aquela em que o escritor portugusde todos os tempos sempre julgouencontrar a salvao da sua prpria

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    7/54

    ! !6! !vacuidade. De facto, o estilo deMaria Gabriela Llansol, na suapretensa genuinidade, traduz oque de mais vazio e retrico sub-siste nas nossas letras. No umestilo de qualquer modo a ma-neira mais directa e legtima deum escritor se personalizar , umadorno, uma excrescncia, umainchao, como diria Ramalho.Bem certo que a jovem escritorano se d a esta forma de escreverpor um capricho oratrio. Elasabe muito bem que, escrevendoassim, escreve como quer: evitando

    a expresso directa e o termocorriqueiro. Mas nisso se vai omelhor do seu esforo, que, ao fime ao cabo, resulta baldado. Nopode um escritor empenhar toda asua honra de retrico dizendo porpalavras e frases rebuscadas o quetoda a gente diz por palavras e

    frases directas sem incorrer numgrave perigo. A personalizao doestilo da autora de Os Pregos naErva faz-se pelo lado pior: pelotrusmo, pelo pleonasmo, pelopsitacismo, por tudo o que na esti-lstica designa o contrrio de umbom e verdadeiro estilo. Ora

    vejamos, ao acaso; Olhou ascamas, desiguais mas ambas demadeira encerada, perfuradas por

    pequenos bichos que nelas pro-curavam alimento, as cadeiras comassentos de palha que principia-vam a desfazer-se e a cmoda,sobre a qual o po quedara, muitasvezes sem que entre ele e o tampose interpusesse qualquer prato.Ainda: Percebiam-se os vultos dasrvores enegrecidas pelo seu afasta-mento transitrio da luz e in-chadas pelo apartar nocturno daspenas. E ainda: Ana agradecera--lhe com um princpio de conso-lao a gastar-se-lhe nos olhos.Evidentemente que o eufemismo

    intencional. O que h de rebus-cado e retrico neste estilo pro-cura-o a escritora de peito feito.No lhe negamos, mesmo, porvezes, efeitos felizes. H sempremaneira de conseguir impressionaro leitor proporcionando-lhe lavo-res verbais de um certo herme-

    tismo. Muito dificilmente, porm,chegar a ser estilo estilo naverdadeira acepo da palavra semelhante forma de agenciar aspalavras e de conjugar as imagens.Velha pecha portuguesa. Quandoem 1865 Castilho quis ridicula-rizar a escola de Coimbra a

    escola de Antero e Tefilo ,juntou-lhe o rabo-leva de um talVieira de Castro, que escrevia

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    8/54

    ! !7! !pouco mais ou menos assim espcie de discpulo em prosa dospoetas da Fnix Renascida , edos trs era ele quem se lheafigurava o mais talentoso: umtalento verdadeiro, grandioso,exorbitante e dum futuro que meparece cobivel. Se o dizia asrio ou a brincar no o sabemosao certo. Mas a verdade esta: osestilos pleonsticos e delirantescomo o de Vieira de Castrosempre agradaram mais entre nsque os estilos sbrios e concisos.

    Maria Gabriela Llansol, parapersonalizar uma forma novelsticaque se nos afigura por demaisobjectiva, cai no vcio oposto:escreve num estilo por demaispleonstico. Isto no quer dizerque o seu futuro seja to sombriocomo o de Vieira de Castro, nemque eu seja to Castilho que lheregateie os louvores que emverdade merece uma obra comobjectividade visual a mais esobriedade estilstica a menos.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    9/54

    ! !8! !

    Isabel da Nbrega tempo de falar de Gabriela

    EXPRESSO (REVISTA)8 de Setembro de 1980

    tempo de falar. Melhor: tempo defazer duas ou trs perguntas sobre osilncio que tem rodeado Gabriela.Qual Gabriela? A Llansol, claro.O silncio que a rodeia macio,

    indisfarvel. Dura desde 1973,quando, dez anos depois do seu pri-meiro trabalho, surge isso a que me difcil chamar displicentemente se-gundo livro, porque , acima de tudo,lugar de deslocao interior. O silnciodura, e prolonga-se, e, com o passardo tempo, autojustificam-se os res-

    ponsveis, voluntrios ou incons-cientes, uns e outros aproveitando oque for de aproveitar sem escndalo

    excessivo. Parece um enigma policial.Pois seja. E deste se poder dizer quea vtima estava realmente inocente.O livro de Maria Gabriela Llansolno um romance. E, no entanto,quantos nomes prprios, que densi-dade, que viagem to funda! O pontode vista, ou local de aco (queambos aqui se confundem), tanto sera Rua Saraiva de Carvalho, presumo,em Lisboa, como um campo deconcentrao, longe, como umquadro de Picasso, um jardim, jardinsda cidade, jardins do campo, oquintal, o terreiro, o salgueiro na

    fmbria do rio. E, entender-se-, nofica tudo enumerado.

    Memria e esperanaTambm no so novelas. Nemcontos. Ela chama-lhes textos. Acres-cento: lugar de pesquisa e transporte.Talvez por isso descubro que ser

    intil fazer transcries. Uma nochega e demais. Muitas no serosuficientes. Logo, traio.Mas a epgrafe do texto central, aindaassim, explica: a ascese da memrialeva esperana (S. Joo da Cruz).Esta recitao decadente de um textoinspira-se no episdio bblico de Tobias

    que foi levado a Gabelo, em Rags, porum bomem que no sabia que era anjo.Teve vrios ttulos, foi esses ttulos

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    10/54

    ! !9! !exactamente como uma pessoa quaseum nome.Escrita inovadora onde cabem fichas,marcao de tempos (Tempo 2,Tempo 8), dirios, anotaes de so-nhos (mas o voo onrico prolonga-separa outros passos fora do sonho),salmos, orculos; fendas verticais ouhorizontais deixam entrever a expe-rincia psicanaltica. E ao nossoouvido sobem os sons inconfundveisque sustentam, mais do que o papel,as palavras escritas seja em quelngua for, sempre a repercusso delessob o estilo de todo aquele que fre-

    quenta com assiduidade o livro dosLivros. Aqui, tambm a familiaridadecom os msticos. E com a dor doshomens.

    Ningum sempre amigoCitarei, apesar de tudo. Que ela d desi mesma a amostra do que a habita, e

    to pouco vereis: Manuel passou oitodias no bloco disciplinar, consequnciade ter conservado escondido um postal,uma fotografia de um monumento deRoterdo (...) Nas paredes brancas japareceram desenhados desenhos diver-sos, desde um Arcanjo a um pnis, desdeum co a uma tenda. (...) Manuel

    trabalha no talho, ao vermelho dascarnes branquiadas de ossos e nervos.Pensa na morte, recebe-a no seu

    pensamento que , sobretudo, os olhos.Uma pata, um focinho em que amandbula sobressai de dentes, umdorso desarticulado revelam-lhe umamorte a par (uma amostra inferior damorte). (...) A primeira pessoa que sefascinou com o terceiro Arcanjo foiManuel. Ia pr o avental no vestirioquando teve de parar a contempl-lo.Os outros prisioneiros paravam tambmde vestir-se para olharem na mesmadireco. Nesta terceira vez o Arcanjoapresenta-se indescritvel porque v-seque sua volta h noite, sem tintas,sem os sinais caractersticos das estrelas,

    e da lua numa parede branca.Sentado num escabelo come uma peade caa com os olhos desorbitados detristeza. A tnica caiu-lhe para os ps eo seu corpo foi desenhado em murmrio.Tirou as asas e arrumou-as no cho.Tem a espada erecta, ao lado, nohavendo mo que a agarre ou lhe

    toque....Na tmbola, ao nico cego docampo saiu um lpis vermelho. Con-servavam-lhe a vida porque tocavaviolino e violoncelo. Ele gostou da cordo lpis quando lhe disseram.Tempo 10 Odeiam-se em maior oumenor escala, conforme as ocasies, sem

    ficarem nem mais nem menoshumanos; odeiam-se de existir lado alado durante longo tempo; logo,

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    11/54

    ! !10! !odeiam-se, e o pretexto pode ser oespetar de um simples prego no rebocoda camarata (...). Tm-se uns aosoutros e no se tm: ningum sempreamigo.

    Romper o silncioEra-me impossvel, afinal, no trazerestas partculas (outras poderiam ser),mesmo com elas, por escassas,deformando.Ora, quem h a que venha apro-ximar este livro dos nossos olhos? (Osolhos pensam). Quem se declara vo-luntrio, no para a continuao do

    silncio, mas para a destruio dele, orompimento, a fractura; a simplesevidncia do justo e verdadeiro? Porisso direi, mais claramente dizendo:onde esto os estudos crticos da obrade Maria Gabriela Llansol, sequer oanncio, a referncia, os avisos debronze que h tantos anos merece?

    E para correspondermos, emboranoutro plano, a uma murmuradaimplorao escondida numa frase dolivro. Algum fala da ausncia depalavras de terceiro. Diz a voz:...quanto a ti no sei por falta deperspiccia e de ausncia de tuaspalavras tu falas bem pouco da

    ausncia dos outros tua face ser pu-dor eu s vezes gostava bastante que os

    outros me dissessem o lugar que euocupo nas suas vidas.

    J leste? J leu?Por minha parte, lido o livro, logome veio o mpeto de o comunicar aosoutros: J leste? J leu? E escritoreshouve a quem emprestei o volume,colocado em suas mos com a alegriade quem entrega uma coroa.Mas, precisamente, tambm entre osescritores foi mais o silncio que seouviu, e no o eco. O que aumenta omistrio, o enigma e a inocncia davtima. (Quando ainda por cima

    houve em 1977 o renovo d' O Livrodas Comunidades).Dou agora eu uma ficha do livro de1973:Na capa, o ttulo:Depois de Os Pregos na Erva /E que no escrevia /Dez anos de escrita /

    Na folha de rosto diz-se: Depois de OsPregos na ErvaComo ttulo geral, e abaixo:E que no escrevia | Um textodecadente | O estorvoOs textos so impressos ao arrepio daordem cronolgica por que foramescritos: 1971, 1968, 1963. Lovaina,

    Lisboa. Na folha interior, numadisposio grfica muito particular,

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    12/54

    ! !11! !Gabriela d razes, pistas, e remata,sibilina: Maria Gabriela Llansol nasceem 31, de um pai biblifilo, de umame extremosa e de um av queintentona, e deportado. Estudos dedireito. Advocacia rejeitada, para se vira encontrar num dos lugares filosficosdecisivos: viver com midos.

    Outro lugarApetece-me convocar, se no possoexigir, quem tenha fora, capacidadee argcia para analisar estes livros. OLivro das Comunidades, esse faz comque cada pessoa que o l seja mesmo

    arrebatada para Outro Lugar. Noapcrifo. Juro, passam-se coisas.Fenmenos. Nunca, como aqui, o eu,o tu, o ele, o dentro, o fora, seconfundiram, se confundem. Somostransportados, temos aquela suspeitado xtase e vivemos tal comoMnzter, o cavalo Pgaso, S. Joo da

    Cruz, Nietzsche, Mdicis, Eckhart,Ana de Pealosa, o grande exlio daPaisagem.Um (talvez falso) apresentador diz, aabrir: Eu leio assim este livro: h trscoisas que metem medo: a primeira, asegunda e a terceira. A primeira amutao. (...) Este livro uma prosa de

    mutantes, fisicamente escorreitos. umprocesso terrvel. Convm ter medo deste

    livro. H, como disse, trs coisas quemetem medo. A segunda a tradio,segundo o esprito que muda onde sopra.(...) A terceira um corp'a'screver. S osque passam por l sabem o que isso . Eque isso justamente a ninguminteressa.

    Quem aceita o desafio?Aparea agora algum (torno aperguntar: quem?) para aceitar odesafio. Aparea quem seja capaz dereunir l em cima o trio dasmulheres: Gabriela, com Agustina eMaria Velho da Costa. Eu disse o que

    podia, digam os outros o quesouberem, se isso for o que falta. certo que por via indirecta serecolhem indcios para uma com-preenso. Leia o que Ana Hatherlyescreveu numa das suas extra-ordinrias Tisanas: Era uma vez umahistria to impressionante que

    quando algum a lia o livro comeavaa transpirar pelas folhas. Se o leitorfosse muito bom, o livro soltavamesmo algumas pequeninas gotasredondas de sangue.Eu, como leitor bom que me estimoser, j me apercebera de que comcertos livros acontecem coisas assim.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    13/54

    ! !12! !

    Maria Alzira SeixoUm Falco no Punho:Roteiro de leituraJL-JORNAL DE LETRAS,ARTES E IDEIAS23 de Fevereiro de 1987

    1. O ttuloRemete para um tempo revolto,porque passado; e porque, no passadomedieval, mtico, que evoca, praticauma continuidade de uso atravs daidade clssica e da sua considerao

    distante a partir do moderno. Comoem cada fico de Maria GabrielaLlansol, as figuras de vrias pocas(medieval, clssica e moderna) entre-cruzam-se, revolvem o tempo queenvolvem, dialogam, confabulam,determinam-se e centram a narradoranum olhar seguro mas lateral, que os

    tece num texto comum desdra-matizado, e por isso alheio a toda ador. Remete para uma atitude e para

    uma posio a de quem parte, bus-ca, persegue, como nesta viagem emdirio ao longo de si e dos (vrios)seus, escrevendo, punho em riste (aescrita e o medo so incompatveis),essa ordem figural do quotidianoque se tenta captar como entidade vo-ltil numa falcoaria onde os animaisdiversos do o sentido ao ser, con-siderado no seu espao domstico, eonde o cavalo domina como bichopreferido nos vrios cursos empre-endidos mas, sobre todos, a escrita.

    2. O dirio

    Porque tem lugares e dias, aqueles emalternncia, estes em sucesso, opon-do-se ou confundindo-se, anulando--se. Porque reflecte os livros, os que l,os que escreve, os que escreveu, osque projecta. Mas convoca as suaspersonagens, repete e desenvolve osseus percursos, retoma o seu entre-

    tecer. Por isso, mais um livro(reflectindo os outros e reflectindo-sea si mesmo), mais uma fico da suaprpria fico, como os outros eramfico de uma Histria determinada,e este fico da(s) sua(s) prpria(s)histria(s). E, como os outros, criasua abertura de impulso fictivo, com

    uma noo nova o ritmo, a msica e um par diferente Bach e Aoss(Pessoa).

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    14/54

    ! !13! !3.O ritmoDependente dos anteriores: a frasedestituda (aparentemente completaem sua sintaxe, mas, v-se depois,reduzida numa falta ou num excessoa uma incompletude elptica, a umaredundncia metonmica. Por onde selhe chama s vezes prosa potica. Ouento versejada pra-lhe por vezes odiscurso, exclamativo ou suspensivo,criador de clareiras, pausas, lugares deencontro do que se no disse eentendeu. Muito ligada determi-nao do tempo e do espao (a tutelado dirio), submete-se assim ao

    nmero, que clusula e cadncia, eem si mesmo engendra a temticasegunda subjacente do livro, a damsica, segunda potica entrevista,mais determinada e por isso menosapreensvel no recorte mstico-naturaldo seu texto.

    4.Msica e poesiaPessoa encontrou nesse nome omaior obstculo, quando se pretendecontribuir para que um livro sejaum ser; tanta palavra, tantaimagem, tanta mscara, para dizer'no encontrei'. Do oculto ao vazio,dificilmente pode confrontar-se com

    a determinao de Bach, jogandosobre a plenitude e o envolvimentoreligioso. A arte musical o que ?.

    No sabe. Porque s conhece essaespcie de movimento interior dafrase que se alonga, criando suasprprias entidades, agora que seconfessa liberta da escrita repre-sentativa. Tambm isso aprendeu.Dos signos, s os gatos, as rvores,certos pedaos e desgarrados dematria atraindo-se (fascinam-naGiordano Bruno e Spinoza), e certasfiguras do passado: Toms Mntzer,S. Joo da Cruz, Cames, Jorge deSena. Integra o passado no presenteou vice-versa? Faz parte desta dife-

    renciao de tempos o modo lrico--mstico da sua percepo materialdas relaes csmicas. Sempresingulares e midas, sem espectculo,muito mais romnticas que barrocas no fora a forte sensualidade detacteio da palavra. Por isso o som lheescapa, prefere a letra, o seu corpo, e

    por isso empreende magnificamenteuma pedagogia da escrita. Talvez spara turmas-piloto, acrescente-se.Mas por isso tambm a sua prosa uma prosa do desassossego, como aque vem daquele que cita, at pelolixo de escrita que acumula, aquifeliz. Preenche assim um intervalo,

    esse da interrogao entre a msica ea poesia, esse ou S de Pessoa oude sol, de Llansol, nos seus

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    15/54

    ! !14! !costumados trabalhos de sincre-tismo.

    5.A rvoreMas no intervalo surge a rvore.Entre a casa e o jardim, espaosprivilegiados da clivagem do ser,meditaes sobre a viagem, o curso,falco no punho Pessoa chega acasa de Bach dizendo e pedindo:passa, ave, passa, e ensina-me apassar. A rvore-ser, animizao dasrazes que seguram o cho, elevaodo corpo, captao do espao pelasfolhas, impresses vibrteis. Reparo

    que, ao fundo, a rvore um livroque distribuiu as folhas pelos ramosde modo que nenhuma escape aosol; plantar e escrever, o mesmoacto: escrever. Escrever, viajando.Mas no deriva; de l para c, de cpara l.Atravessando aeroportos, no ar,

    um falco no punho; caa de quebicho, com tantos gatos em casa? Oude que presa, tantas rvores bemplantadas, no jardim de Herbais,Prunus Triloba velando? Enviando opensamento de Cames at Copr-nico, com as velas de mar que elegravou e que teria acontecido, se

    estes dois se tivessem encontrado?Animizao integral da natureza, masdiscriminada a aco dos seus ele-

    mentos; materializao excedida dosentimento, que de tanto se con-templar, e analisar, e escrever, se nosente. S o livro fica, vivo.

    6.A letraSentem-se assim as letras, sinais vivose frouxos do sentido, deslizantes.Pontos imponderveis nas folhas darvore, decisivas porm na direcoda alma. A fuso natureza/corpo/almamarca uma atmosfera de identificaoonde os inslitos se harmonizam e osdiversos secretamente se acolhem.Promovendo a noite como a con-

    centrao de uma intensidade (comPessoa ela se evoca, antiqussima eserena); de Mallarm lhe vem,entretanto, essa conscincia do negroindicador e opaco (o negro da escrita)como o deslumbramento do brancoofuscante e vazio (o da pgina). Masos vazios so entretanto aqui espaos

    igualmente diacrticos da leitura,marcaes da cena do escrever ou seudecurso. Decurso que tambm deriva (viagem, passeio), hesitao dosentir afirmada em seus dplicesparoxismos. Por isso a vemos juntode Prunus Triloba, a reflectir que [se]devia perder da literatura para contar

    de que maneira [atravessara] a lngua,desejando salvar-[se] atravs dela.Mstica e heresia juntam-se numa

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    16/54

    ! !15! !glorificao do excesso, comedi-damente considerado, que comunicaao voo destas pginas o sonho deuma desmedida travessia dominadopor mo experiente, reflectida, mer-gulhada numa imensa serenidadealheada. A distncia o meu per-curso, diz, e, como Alice, atravessa

    essa distncia para restituir uma sabe-doria antiga e marginal, esquecidanuma esttica que a absorve. Escreverno s imprimir, uma forma maisprolongada e arguta de contemplar.Tudo o que, com a ave amestrada,passa.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    17/54

    ! !16! !

    Fernando Pinto do AmaralO lugar da almaDIRIO DE NOTCIAS(REVISTA DE LIVROS)23 de Maro de 1988

    El que all llega de vero, / de si mismodesfallesce; / cuanto saba primero / muchobajo le paresce / y su sciencia tanto cresce, /que se queda no sabiendo, / toda scienciatranscendiendo.

    S. Joo da Cruz

    No sei se a escrita do dirio ter a

    sua origem no prolongamento deuma expressividade lrica ou numsimples desejo de fico, mas acredito,

    seja como for, que a experinciapessoal de um dirio costumaassociar-se a uma atitude umbilical deautocontemplao, mesmo que paraisso seja necessrio fechar os olhos epenetrar num labirinto sem sada. talvez dessa vertente mais confes-sional que nos fala Blanchot quandoafirma que o dirio, sendo umacmoda maneira de escapar aosilncio, est ligado estranhaconvico de que podemos observar--nos e conhecer-nos (Le livre venir,Gallimard, col. Ides, pp. 274 e 276).No entanto, se tradicionalmente

    assim sucede, no bem o que sepassa com o dirio de Maria GabrielaLlansol, texto para o qual im-possvel traar objectivos to slidoscomo esses. O saber que o sustenta recusando, por exemplo, a ideia deum mundo interior mais ou menosatormentado que a escrita fosse capaz

    de transmitir exige-nos um olharmais globalizante e uma espcie deinteligncia textual que nenhumateoria conseguir definir.Pode ser que haja nisto uma certadose de exagero, mas a verdade que,perante os textos de Maria GabrielaLlansol no apenas somos perturba-

    dos pela sua vibrao muito particular,como sobretudo somos levados a prem causa as fronteiras entre os

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    18/54

    ! !17! !gneros literrios. At que ponto que, de facto, a obra desta autora oucertos textos de Herberto Helder (porexemplo, Os Passos em Volta ouPhotomaton & Vox) podem serincludos em categorias como apoesia, a fico ou o ensaio, quandoexibem sinais de tudo isso? Noestamos a falar de meras conta-minaes genolgicas, mas sim deumafuso que ocorre em textos cujomodelo vai sendo desenvolvido suaprpria medida e segundo leis novas acada momento. Por isso que Finita inclassificvel: nem memrias, nem

    romance, nem poesia, nem muitomenos isso a que se chama diriontimo. Trata-se de uma escrita quevai pouco a pouco elaborando a suainconfundvel cosmoviso isso oessencial. E embora pudesse ser inte-ressante, j no seria to central saberat onde vai, por exemplo, a sua

    narratividade (comparando-a com ade outros prosadores ou com a dealguma poesia narrativa) ou estudaros fundamentos filosficos sobre osquais assenta o seu deambulante pen-samento. Digamos que o que contano tem o valor de uma verdadeuniversal, estando dependente, acima

    de tudo, da transfigurao obtidapelo texto atravs da leitura esseobscuro estado do entendimento

    entre a evidncia dos enigmas e oenigma das evidncias. Talvez aestrutura fragmentria contribua paraessa captao e permita criar peque-nos focos de sentido autnomos e porisso mesmo mais decisivos. Lembre-mo-nos do Livro do Desassossego oudessa preciosidade recentemente re-editada que O Bailado de Pascoaes,assim como de muitos textos deNietzsche, Blanchot, Roland Barthes,etc. Em todos estes casos, a apreensofragmentria do real passa por umanebulosa diversidade perceptiva, masconduz simultaneamente a uma

    lgica da repetio e da monotonia,que afinal o melhor ponto departida para a infinita atitude refle-xiva que lhes vital. A esse frgilequilbrio interno, a essa coerncia derazes capazes de sustentar umaidentidade chamaramos homeostasia,e talvez a isso que se refere Maria

    Alzira Seixo quando fala de atmos-fera textual homognea a propsitode Maria Gabriela Llansol (A Palavrado Romance, Livros Horizonte, p.229). Seria sem dvida a definiodesse clima muito prprio quetornaria claros os motivos de seduodesta escrita, mas no nos possvel ir

    to longe. Bastar por agora dizercomo toda a obra de Maria GabrielaLlansol tem sabido arrastar consigo o

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    19/54

    ! !18! !brilho das palavras e dos seres (p.139), ultrapassando os limites de umalinguagem tantas vezes cristalizada emanquilosados sentidos, e dando-nosassim a impresso de que foi escritanoutra lngua. claro que a literariedade de M. G.Llansol advm, pelo menos emgrande parte, dessa metamorfose dalinguagem, dessa expanso de senti-dos que se vo invadindo uns aosoutros at se confundirem numanica teia de fogo. Da que sejaconveniente afastarmos, desde logo,quaisquer iluses hermenuticas em

    relao a textos como estes, quenunca ser possvel perceber comple-tamente. Seja qual for o nosso pontode vista, o seu dilogo connoscoassenta apenas numa substnciavirtual, numa nvoa de hipteses queperseguimos sem destino visvel. E,todavia, no h neste dirio um corte

    radical com o mundo dos outros, algoque se exprimisse por um excesso deousadia formal ou por uma vertigemda experimentao e resultasse emautismo. Aqui, parte-se muitas vezesdo real e das suas flutuaes quoti-dianas: uma doena, uma viagem,uma conversa, uma leitura ou uma

    paisagem mais amadas, tudo isso vaiservindo de base a uma construopolifnica habitada por muitos seres,

    cujas vozes se entrecruzam e doconsistncia a um universo de figu-ras familiares onde a Realidade sejogaao nvel textual. Por isso ThomasMntzer ou Ana de Pealosa, Hade-wijch ou Kierkegaard podem ser toreais como uma rua de Lovaina ou ojardim da casa de Jodoigne.Compreende-se, portanto, que noseio de uma rede como esta tudopossa transformar-se em personagemou em histria, gerando-se comsurpreedente facilidade plos diegti-cos que s vezes abrem caminho apequenas narrativas quase mgicas

    (por exemplo, a de Ibn Arab).Trata-se de criar reais-no-existentes,fices que percorremos atravs depalavras e que constituem geografiasespirituais sem suporte exterior linguagem. que, fora do texto, essesreais so evanescentes (p. 22), tudo seresumindo assim experincia-limite

    que a escrita: s graas a ela pode-mos, no apenas perguntar o que sero real, como sobretudo atingir umreal unicamente perceptvel por esseprocesso. Estamos perante uma ideiade escrita como intensidade, comofluxo, como uma energia em que amatria do real se transforma, no

    exactamente velocidade da luz como na equao de Einstein , masao ritmo de uma voz soberanamente

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    20/54

    ! !19! !voltil e inscrita no prprio fluir detudo o que existe. A situao dificilmente conceptualizvel, mastalvez pudssemos olhar os textos deMaria Gabriela Llansol como umtecido intersticial de densidadesvariveis, como algo de infinitamenteaberto, cuja definio topolgica impossvel. E ento qualquer leituraperde as euclidianas coordenadas dotempo, do lugar ou da aco, para seprojectar na estranheza de um espaode Riemann: por isso que h sempreum espao subterrneo, uma fala queperscruta a sua prpria boca aberta;

    todos estes retornos tm, na minha ln-gua, o seu nome; (...) para alm deuma meditao confusa, a sua descriotorna-se impensvel(p. 142).Tudo isto nos leva a uma ideia deindeterminao e a um saber gerado apartir do imprevisvel, do obscuro, domais inacessvel razo comum. Essa

    fuga para os domnios do informeocorre tambm na zona temtica doamor: no h aqui desejos cristali-zados em bons ou maus sentimentos,mas apenas uma espcie de caudalafectivo em permanente deriva numlabirinto de mscaras; no h nin-gum em especial, mas h sempre

    uma presena cujo rosto se perdeu eocupa o lugar do amante (OAmanteno pode ser algum). Mais uma vez o

    mecanismo essencial a nomeao Ouvir o Nome, sem o ligar a uma Face,a um sexo, a uma forma particular (p.175) , identificando-se a linguagemcom a abertura desse espao neutro,dessa presena no sentimental dano-pessoaque o Amante. Assim sechega ao ser pela palavra, o que podecorresponder ontologia propostapor Richard Palmer: Language mightbecome a medium of ontologicaldisclosure in which things take on beingthrough words. (cit. por H. Bertens, inFokkema/Bertens, org., ApproachingPostmodenism, John Benjamins,

    Amsterdam/Philadelphia, 1986, p.22). Segundo esta perspectiva em queo fundamental dizer e no repre-sentar, podemos de facto perguntar,como M. G. Llansol, se o sexo e aescrita no sero os dois nomes damesma aco (p. 19). A questo sempre a mesma e liga-se

    indiferenciao de que falmos: paraque esta escrita se exera, forosoperdermos a conscincia do real a queestamos habituados, porque, comodizia Pessoa/Bernardo Soares, ns no

    possumos as nossas sensaes (Livro doDesassossego, I, p. 306), o que nosmergulha num estatuto inumano em

    que se desvanece a ideia de um serindividual, surgindo, em vez dele,uma estrutura capaz de englobar

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    21/54

    ! !20! !pessoas, animais, plantas, tudo aquiloa que chamaramos uma comunidadee leva ao desfazer de todos os limites no sei dizer o que um ser humano(p. 74). Ora, em face desse devir-mtuo, a vida torna-se um difuso eprecrio equilbrio de paixes, algoque pode ser olhado distncia deum cu interior onde a filosofia seconfunde com uma forma demeteorologia perante a qual ns somosfenmenos atmosfricos: nuvens sonoraspairando (p. 77). E no entanto, paral da aparente inconscincia sugeridapor esta fluidez perceptiva, h aqui

    um saber que se ergue precisamente apartir do abismo. Tal como HerbertoHelder ao escrever: Quem sabe que alto para dentro (Poesia Toda, Assrio& Alvim, p. 415), este livro oferece-nos, no uma ex-altao, mas umain-altao (p. 178). A descobertadesse espao sem dvida a descober-

    ta de uma solido intimamentepovoada (Como este livro belo; (...)algum o escreveu que no sou s eu, p.182), mas tambm a obedincia auma articulao supranatural que fazda vida uma investigao espirituale aproxima a obra daquilo a que,apesar de tudo, chamamos transcen-dente. No sei se este dirio traar oroteiro das catorze vises que MariaGabriela Llansol ter tido, setesculos depois de Hadewijch, mascreio que pode ajudar-nos a ver,mesmo com pouca nitidez, como to difcil e s vezes to fcil criar

    uma alma e como para isso a escrita necessria:A vida da escrita no temsemelhante. (...) O seu entendimentovai arrastando, sempre para alm, adobra do vu: e eu vejo que astransparncias no existem / e que euprpria, / no meio da Voz,/ sou o lugarda alma(p. 140).

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    22/54

    ! !21! !

    Silvina Rodrigues LopesA geometria necessria

    JL-JORNAL DE LETRAS,ARTES E IDEIAS19 de Abril de 1988

    Sabemos como a palavra Fim vaiperdendo o seu potencial de seduo.Temos razes para descrer dos

    grandes Fins do homem ou do seufim. Suponhamos que, improvvel, ohomem se vai realizando nos seus finsem cada instante, isto , na sua forade deciso, na simultaneidade de umagir que Kierkegaard reparte nos est-dios esttico, tico e religioso. Admi-tamos que a simultaneidade exibe a

    nossa heteronmia, o sermos a cadamomento, o encontro inesperado dodiverso, o olhar pelo qual o rosto do

    outro se anima da sua infinitadiferena e o silncio em que nosacolhemos quela centelha da almaque a nossa singularidade ou a nossasubjectividade entendida como liga-o ao anterior e desconhecido (vn-culo religioso).Imaginemos agora que a vocao daliteratura no a de questionar filo-sofias, nem a de as aceitar, propor oudestruir. Nessa experincia inventiva,a que chamamos literatura, desejo epensamento fazem intervir um prin-cpio de complexidade que gera umarealidade do simultneo em que

    inesperadas combinatrias abrem uminfinito dos mundos.O encontro de Giordano Bruno eNietzsche em literatura inteira-mente compreensvel e d a pensar.Em primeiro lugar, porque d a verno moderno ncleos de atraco doanterior que desfazem a sequen-

    cialidade que o caracteriza. Em se-gundo lugar, porque chama a atenopara um modo de desejar-pensar amagia renascentista em que osimultneo afirma a possibilidade,irrealizada, do homem. Mas no oencontro de Giordano Bruno eNietzsche que pretendo referir em

    particular. Do que pretendo falar daalguma estranheza que pode havernas constelaes de nomes prprios

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    23/54

    ! !22! !que se formam nos livros de MariaGabriela Llansol. Leio-a como umgesto que atravessa a modernidade enela encontra uma tradio que secumpre ao lado da Histria e doshistoriadores. Essa tradio, que vemdos finais da Idade Mdia para seafirmar no Renascimento, umatradio mstico-mgica em que opoder da imaginao, de eros e dacincia se harmonizam no conhe-cimentodo mundo e na realizao dohomem.Ao seguirmos Foucault em As Pa-lavras e as Coisas, encontramos

    estabelecidas as quatro operaesprincipais que fazem parte dasemelhana enquanto princpio orga-nizador do saber no sculo XVI:convenientia, aemulatio, analogia esimpatia. O jogo das simpatias aquele que determina a mobilidadeou o fechamento em si. A simpatia

    tende a transformar por assimilao,reduo ao idntico, ao Mesmo. Aantipatia dispersa, acabando porequilibrar o movimento de assimi-lao de modo que as coisas e osanimais e todas as figuras do Mundopermanecem, ao fim e ao cabo, aquiloque so1. No se trata de um sistema

    inteiramente fechado, circulao domesmo ao mesmo, porquanto asimilitude se estabelece a partir de

    marcas que exigem a decifrao.Sendo comum a natureza do signo edo designado, no s a busca dasemelhana se torna uma infinitaderiva onde ser sempre possvelencontrar novas semelhanas, como anoo de linguagem a equipara aosoutros elementos da natureza: agrande metfora do livro que se abre,que se soletra e que se l paraconceber a natureza no mais doque o reverso visvel de uma outratransferncia muito mais profundaque obriga a linguagem a residir nomundo, entre as plantas, as ervas, as

    pedras e os animais2. A adivinhaocoexiste com a erudio, o projectoenciclopdico coexiste com o comen-trio sustentado por uma imparvelinterpretao da interpretao que aconsequncia do desastre Babel , oqual descentra a relao da linguageme do mundo desviando-a de uma se-

    melhana directa das palavras e dascoisas para uma semelhana que setraa entre cosmogonia e mundo. Asrelaes de semelhana so inexaur-veis, a interpretao busca infinita-mente o fundamento de todos ostextos a verdade. Foucault, queassinala para a idade clssica um novo

    estatuto da linguagem o darepresentao , assinala em contra-partida na literatura a partir do sculo

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    24/54

    ! !23! !XIX um retorno que determina a suaautonomia, pois aquela s se des-prendeu de linguagens alheiasquando formou uma espcie de'contra-discurso' e quando passou as-sim da funo representativa ousignificante da linguagem a esse serbruto esquecido desde o sculo XVI3.Todavia no exactamente umretorno do mesmo: Porque agora jno h essa palavra primeira, abso-lutamente inicial, com que se fundavae limitava o movimento infinito dodiscurso: doravante, a linguagem vaicrescer, sem princpio, sem termo e

    sem promessas.4

    A magia do extremo

    Ao abrirmos Finita. Dirio 2,encontramos excertos de uma escritade criana, e em seguida um texto de

    2 de Novembro de 1974 onde setranscreve um fragmento deNietzsche. Nesse fragmento MariaGabriela Llansol sublinha a expressomagia do extremo: (...) No, nemmesmo a verdade nos necessria.Mesmo sem ela, chegaremos pujana e vitria. A seduo que

    por ns combate amagia do extremo,o fascnio que provoca tudo o que extremo. Ns, os imoralistas, ns

    somos os extremos (...) (p.10). indubitvel que a afirmao deFoucault doravante a linguagemvai crescer, sem princpio, sem termoe sem promessa ecoa o fragmentocitado de Nietzsche, deixa porm delado a ideia de um limite ou magia doextremo, como se a autonomia daliteratura correspondesse a um uni-verso de linguagem em expansoilimitada. Mas corresponder o reto-mar do sculo XVI a uma autonomiada literatura? aqui que comea oenredo da minha leitura, na pos-sibilidade de encontrar no sublinhado

    magia do extremo um n desentido. que no texto seguinteMaria Gabriela Llansol interroga: Aomundo que desconhecer a distinoentre a verdade e a aparncia (o quedesde Plato o nosso olhar) como seh-de chamar? E quem poder vivernele? (p. 11). A questo poltica,

    Nietzsche confirma-o: quando dizns, os imoralistas, est a suporuma comunidade para alm do bem edo mal, uma comunidade atpica, apossibilidade de um comum no-lugar. a partir de uma afirmao deordem esttica, a necessidade de pu-

    jana, que decorre a indistino (naleitura de Maria Gabriela Llansol)verdade-aparncia e consequente

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    25/54

    ! !24! !atopia. Mas como se concilia a ideiade atopia com a de extremos? Oextremo, no fragmento de Nietzsche,no pode ter um sentido apocalptico,pois se o pensarmos em relao com afigura do eterno retorno ele s poderser o extremo do possvel, onde sepode ir mais longe sem anulao oudissoluo, o limite, o que nos separadas coisas e a elas nos liga. Como tal,o extremo afirmao de finitude.No ser esta que mantm vivo otrao que une ou separa verdade-aparncia? A magia do extremo ,como a leio no seu sublinhado, uma

    fora que atrai a linguagem fronteira das coisas: nem transpa-rncia, nem dissoluo, nem seme-lhana perfeita, como contacto quea linguagem estabelece circuitos deenergia, mgicos, em que o homem eas coisas, o homem e o exterior, seencontram mutuamente. A condio

    do contacto ou, se quisermos, dapassagem verdade-aparncia afinitude. porque o homem se situanum horizonte de finitude que oeterno retorno como sntese e avalia-o faz sentido, isto , vai gerandodiferenas. No caso contrrio, comoinfinita repetio do idntico, ele

    seria a negao da avaliao e dosentido. A expresso eterno retornodo mtuo leio-a como um modo de

    sublinhar a finitude ou limite, aforma que determina cada ser vivo nasua indeterminao: o que retorna oencontro, a flutuao verdade-aparncia. Tudo o que existe comomtuo ou duplo, sensvel e inteligvel,existe em dobra ou dobrado: em sere porque . O animismo gnstico-mstico da renascena transferidopara uma nova definio de ser vivo(coincidente em Ren Thom com anoo de Logos de uma forma):Tudo o que sinto, em minha volta,se torna sinnimo de ser vivo. Emtoda a forma h vida e movimento,

    compreenso e projecto, percepo esensibilidade (p. 124).Ainda partilhando de concepesrenascentistas em relao ao homem(a forma viva mais capazde penetraro segredo da inacessibilidade do porque ), Maria Gabriela Llansol per-gunta: Quando que o homem, de

    forma mais capaz, se julgou formanica e exclusiva? (p. 125). Admi-tindo que esse momento de antago-nismo homem-natureza coincide coma passagem para uma linguagem darepresentao e com a formao deum projecto tecnolgico, encontra-mos posteriormente uma tradio de

    pensadores e artistas que no seinscrevem nessa ruptura, a doaparecimento de um sujeito que se

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    26/54

    ! !25! !pensa a si mesmo em oposio aoresto, Schlegel, Novalis, Hamman,Kierkegaard, Nietzsche, Musil, Rilke,so alguns dos nomes dessa tradiona qual, e na diferena irredutvel decada texto que a compe, encon-tramos concepes comuns quepoderamos ver a partir deste comen-trio: Foi um momento funesto,porque na dobra no reside s osegredo do nosso destino, das forasque nos reduzem a p sem nossoconsentimento; a reside igualmente osegredo da nossa origem, das forasque nos puseram em movimento (p.

    125).

    Elogio da finitude

    Que na relao do visvel ao invisvela finitude do homem se transcendenum modo de ser mortal e eterno,

    anterior e posterior sua experincia,tal o princpio de ordenao doDirio 2, que justamente se intitulaFinita. A escrita como passagem parauma noite obscura ou retorno a ummundo de metamorfose a possi-bilidade de vencer o temor da morte,uma constante da existncia que se

    vive no exterior da experinciaesttica. Como lemos, de Rilke:Sobre este trabalho poderia contar-

    -vos maravilhas. Por vezes, tenho aimpresso de que, mal acabe, eupoderia morrer: toda a gravidade,toda a suavidade se entrelaam toperfeitamente nestas pginas, a escritasurge nelas, ao mesmo tempo, todefinitiva e to limitada na suametamorfose natural, que tenho osentimento de me perpetuar ampla-mente neste livro, de certeza paraalm de qualquer risco de morte (p.105).

    Finitude e transcendncia articulam--se na percepo esttica ou na

    volpia onde convergem separao eligao, profundidade e superfcie. Ocorpo, finito e mortal, o lugar docontacto, o lugar da conscincia domundo e da sua transformaoatravs do erotismo e do conhe-cimento desencadeados por umaestratgia afirmativa da vida. Mas at

    que ponto fora dessa realidade dapercepo esttica ou do amor, ohomem no se v envolvido por umsentimento de culpa, causa de sofri-mento e autodestruio? Finitacolocaem contraponto com uma vertigemdo infinito, cujo expoente mximo o nome de Giordano Bruno (repe-

    tindo-se em quase todos os livros daautora, ele no aparece neste), umareflexo sobre o finito que traz para as

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    27/54

    ! !26! !pginas do dirio Kierkegaard, oMestre da Culpa.As transcries que iniciam o livro,retiradas de um caderno escrito pelaautora em criana, revelam umaeducao religiosa e uma inquietaoprovocada por uma vivncia da culpa:Perdo para as minhas to grandesculpas (p. 8). Esta aparece com todoo seu peso esmagador atravs deKierkegaard: a culpa que o liga ao Paiobriga-o a romper o noivado comRegina Olsen, apodera-se do seucorpo, condena-o ao sofrimento aoqual a escrita ir opor a construo de

    uma vida como obra de arte:manchas de culpa nos olhos /manchas de tinta nos joelhos. Aculpa aparece como uma perverso doolhar que se pode ler em V (repare--se no nome), personagem onde oerotismo associado a mecanismos desubjugao d origem a uma tristeza

    sensual. Antes oculta pela oposioentre Bem e Mal, a diviso Tristeza /Alegria revela-se agora como a verda-deira resultante da culpa, reconhe-cimento do outro pela sua negao. Apassagem da magia do extremo (docontacto ou passagem) ao poderparalisante do olhar, que institui o

    outro num processo de possesso semretorno, d lugar culpa comoarticulao temporal, desvio de um

    tempo definido no eterno retorno,para um tempo histrico que se de-termina na sucessividade e no conflitode geraes. Referindo-se ao lutera-nismo, Maria Gabriela Llansol suge-re: talvez Kierkegaard suspeitasse,mas sem nunca o dizer, que este, noque , se confirmou nas infelizes edramticas vitrias de Frankenhausene de Mnster: como se fossenecessrio destruir a esperanautpica, a demasia dos possveis, paraque o pensamento possvel continue(p. 78). A esperana utpica associadaa uma tradio apocalptica enuncia-

    -se aqui numa dimenso menosevidente, a da produo de uma de-masia de possveis, consequnciadirecta da vertigem de infinito. Avertigem dos possveis acaba por ser aruptura do contacto, o esquecimentodo aqui e agora de um corpo que sesepara do seu por que para se

    alienar em fundamento ou projecto,relao do microcosmo ao macro-cosmo, multiplicao especular, ouautonomizao de uma linguagemque perde em definitivo a memriadas coisas. A culpa s se ope a estetipo de destruio pela expanso semlimites (pela demasia dos possveis),

    na medida em que um modo de ohomem se confrontar sua finitude;porm esse modo culmina na des-

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    28/54

    ! !27! !truio em sentido oposto, por umaespcie de imploso por escassez dospossveis. a culpa que decide orompimento do noivado deKierkegaard. No entanto, a sua vida uma afirmao de possveis quecomea pela multiplicao hetero-nmica e vai alm de uma proposta desubordinao dos trs estdios aoestdio religioso, proposta ondeparece ganhar primazia a realidade daculpa. Esta absorvida pela escritaque a sublima fazendo do segredouma fonte de exerccio da imaginaoe do pensamento de onde surge a

    narrativa e a experincia que, en-quanto personagem, o autor vive.A relao finito-infnito um dos nspelos quais passa a escrita de MariaGabriela Llansol, animada de umdesejo de cartografar novos possveispara alm da realidade da culpa:Frederico N., fazes o elogio dos

    Prncipes, mas no estes, que no soeles que salvaguardam a maior pujan-a da vida. Olho-te nos objectosherdados e compreendo-te no quecompreendes que, nas foras queneles se combatem, a espcie humanaest suspensa da afirmao, roda pelaculpa (p. 68). A histria assenta so-

    bre a culpa e a atitude da escritaperante ela a de esquecimento ourepdio, embora por vezes se reco-

    nhea que necessrio encarar acontiguidade; nesse caso admite-seque a histria se apresente na escrita,mas transfigurada esteticamente (p.47). Formula-se ento a hiptese daexistncia, no horizonte da histria,de um contnuo de aces ina-cabadas (p. 30) e de uma aptido daescrita para responder a um apeloesttico, um difuso desejo de forma.Essa aptido pode ser, ainda hipo-teticamente, a da polimorfa mulher.Ela de ordem esttica e tende a con-fundir-se com o amor, a causa quetudo ex-stasia (p. 95).

    Heterotopia o ponto da disperso

    Maria Gabriela Llansol entende aescrita como abertura de novoscaminhos que permitam alcanar asfontes da Alegria. Esses caminhos

    irrepresentveis encontram o seutraado na experincia esttica Emnenhum stio h uma geometrianecessria, se no for jubilosa (p.151) , no interior da qual se confereuma grande importncia forapotica da imaginao que transfiguraa experincia na criao de mundos

    possveis. A sua aliana no finitoconsiste em jamais se desvincular daexperincia autobiogrfica no que ela

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    29/54

    ! !28! !implica de disperso, contnua apro-ximao do diverso: As gaivotasvoltaram ao meu horizonte pairandosobre a falsia (nesta plancie verde doBrabante. onde no h falsias, nemgaivotas); personalizam nos seus vooserrantes a minha disperso, de quemtem, contra o tempo presente, milpensamentos em fuga; no sei paraonde fogem estas imagens enlaadasde gaivotas. Deixam-me supor que no ponto da disperso que est onovo lugar (p. 39).Fazer da disperso um mtodo omodo de impedir a autoridade da

    escrita, a da definio de um outrolugar ou Justia, para deixar aintensidade que atrai sem promessa.Como dir Foucault: As utopiasconsolam, porque, se no dispem deum tempo real, disseminam-se, noentanto, num espao maravilhoso eliso; abrem cidades de vastas avenidas,

    jardins bem cultivados, pases fceis,

    mesmo que o acesso a eles sejaquimrico. As heterotopias inquietam,sem dvida, porque minam secreta-mente a linguagem, porque impedemde nomear isto e aquilo, porquequebram os nomes comuns ou osemaranham, porque de antemoarrunam a 'sintaxe', e no apenas aque constri as frases mas tambm aque, embora menos manifesta, faz'manter em conjunto' (ao lado e emfrente umas das outras) as palavras eas coisas5.

    Notas:(1) Michel Foucault, As Palavras e asCoisas, trad. de Antnio Ramos Rosa,Portuglia Editora, Lisboa, p. 44.(2) (3) (4) (5), idem, p. 57, p. 69, p. 69e p. 6.

    (Maria Gabriela Llansol, Finita.

    Dirio 2, Rolim, Lisboa, 1987)

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    30/54

    ! !29! !

    Paula MoroMaria Gabriela Llansol:

    Notas sobre uma fico luminosaLETRAS &LETRASN 29, Maio de 1990

    Uma das questes que se pemquanto ao panorama da actualliteratura portuguesa a oscilao, se

    no mesmo a crise, de modos egneros literrios. O problema vastoe muitas obras podem evocar-se parao comprovar; limitar-me-ei aqui aapontar a tendncia para o versolongo e/ou no rimado aproximando--se do ritmo da prosa, que muitospoetas praticam, ou a contaminao

    entre os gneros dentro da prosa (deque o diarismo / memorialismo deVerglio Ferreira exemplo). No caso

    de Maria Gabriela Llansol, aresistncia a uma classificao geno-lgica torna-se por de mais evidente,e reforada pelo modo como seinstitui, acima e alm dos gneros,uma outra categoria, a da prpriaobra encarada como um organismo,um todo, um sistema.Isto visvel, desde logo, pelo registoparatextual que em cada livro se fazde obras a publicar: por a se verificacomo cada um deles se desmultiplicaem outros ttulos que lhe dosequncia. o que acontece com ostrs volumes de Geografia de Rebeldes,

    que o primeiro deles, O Livro dasComunidades (1977), anuncia, e quese cumprem em A Restante Vida(1982) e Na Casa de Julho e Agosto(1984), com os dirios, de que sepublicaram dois volumes (Um Falcono Punho, de 1985, e Finita, de1987). Mas, alm dos livros existentes,

    convm reter que outros se do emlistas de volumes a publicar; uns,como Herbrio de Faces, ttulo queseria o ltimo de Geografia deRebeldes, caem e vem-se entretantosubstitudos; casos h tambm emque as sries se do em curso deedio como sucede com dois

    volumes do dirio (Dirio do TerceiroEle e Inqurito s Quatro Confi-dncias) previstos desde Finita. H

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    31/54

    ! !30! !tambm ttulos previstos desde hmuito (vejam-se Lisboaleipzig eJoshua: em busca da troca verdadeira,includos a partir de 1985, eQuimera-sobre-o-Mar apontado emFinita). Notar-se- enfim como nalista de obras a publicar includa emCausa Amante, fazem conjunto comeste livro, dado como incio datrilogia O Litoral do Mundo, outrosdois (Contos do Mal Errantee Da Sebeao Ser) que, ao virem a pblico,perderam essa meno; se se esvai emtal movimento uma trilogia, ganha-seno entanto algo mais relevante: a

    coeso de um conjunto-obra, de umaorgnica que ecoa de livro em livro,unindo-os indissoluvelmente como stbuas de um polptico, que compor-tam uma leitura que as isola, mas quepedem a integrao no todo, a visoarticulada e dirigida da srie en-quanto tal.

    Quer dizer: Maria Gabriela Llansolescreve sempre frente, para alm doque publica, o que cria um efeitoreforado de devir e de continuidadeentre os livros, alm de instaurar umaexpectativa de srie que os textosconfirmam, pois a repetio depersonagens, a disseminao de um

    eu que escreve e comenta, aconstncia de temas e situaes, tudocontribui para reforar um ncleo de

    base de que dimana e a que regressa aObra, transcendendo as obrasisoladas.Neste mbito, a questo dos gnerospe-se de modo problemtico; comefeito, se volumes h com a explcitameno de dirio, a maioria noprocura uma qualquer incluso emcategorias formadas. A circulao dosentido entre os livros-painis apontaantes para uma concepo que seserve de caractersticas de vrios g-neros literrios, sem no entanto selimitar a nenhum deles. assim queencontramos frequentes vezes a carta,

    a citao de textos (existentes ouimaginados no contexto ficcional), eque a dominante parece ser omonlogo interior. Mas mesmo assim difcil fixarmo-nos numa taxo-nomia: Maria Gabriela Llansolinteressa-se sobretudo pela escritacomo decorrncia lquida do discurso,

    a que, quando muito, pode chamartexto, mas que de algum modosempre palimpsesto, pois joga namemria escrita, escrevendo-se, deoutros textos, que so por vezesincarnados por personagens: essauma das funes que se atribuem, porexemplo, a Cames/Comuns/o Pobre,

    a Nietzsche, a S. Joo da Cruz; destemodo, a escrita a reactivao detextos j escritos que de novo ganham

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    32/54

    ! !31! !vida, pois deles so depertados novossentidos. Veja-se esta concepo noseguinte passo de O Livro dasComunidades: Leio um texto e vou-ocobrindo com o meu prprio texto queesboo no alto da pgina mas que pro-jecta a sua sombra escrita sobre toda amancha do livro. Esta sobreposio tex-tual tem por fonte os olhos, parece-meque um fino pano flutua entre os olhos ea mo e acaba cobrindo com uma rede,uma nuvem, o j escrito (p. 65).Escrever/ler asim um trabalho deextrema mincia e paixo, um tra-balho que no se compadece com

    uma estratgia de romance, de novela,ou mesmo de dirio tradicional; ostextos so compostos como umafico paradoxal: por um lado, ela intensamente construda (como pro-vam as muitas ligaes de volume emvolume, atravs das transfiguraes depersonagens e seus nomes, quer se

    trate de pessoas, de animais ou deplantas); e por outro, fortementelacunar (quer pelos sentidos suspen-sos que o texto vir a retomar svezes s em outro livro , quer pelouso muito rico dos brancos tipogr-ficos, dos filetes que marcam aausncia de fragmentos do discurso).

    Isto acontece desde os primrdios daobra de Llansol: jOs Pregos na Erva(1962), sendo embora um livro que

    se apresenta estruturado em contos,vai bastante alm da expectativatradicional na leitura desse tipo denarrativas: o que se l so histrias depobres, de gente comum masexcluda, vivendo num universoescasso e essencial, de indiferenciaoentre o masculino e feminino, comose os sentimentos e as palavras quecirculam estivessem para alm decategorias estabelecidas. No serdifcil reconhecer nestes elementos osembries de temas centrais em toda arestante obra da autora, a fazer dassuas primcias um volume surpre-

    endente para o contexto do tempoque o viu surgir, resistindo leituracomum, mas fascinando pela suaestranheza e novidade.Movimento semelhante, alis, depertaDepois de Os Pregos na Erva, de 1973,composto de trs longos textos (Eque no escrevia, Um texto deca-

    dente e O estorvo, este ltimocomposto por dez fragmentos), j demais ousadia de escrita que o livroanterior, jogando com a conjugaoentre o texto torrencial, sem pausas, ea fragmentao do sentido a que, apartir de certa altura, o uso debrancos tipogrficos e de interro-

    gaes retricas do corpo. O termorecitao, na abertura de Um textodecadente, pode bem ajudar a ver o

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    33/54

    ! !32! !modo como se rege o processoficcional: recitao, deriva em tornode um tema-centro, os textos so umprocesso de acumulao de saber emtorno de um ncleo, explodindo nacomplexidade fragmentria; o queexemplarmente mostra este passo:possuo com frequncia o conhecimentoclaro e imediato de verdades (p. 16).Deste modo, a fico liga-se aoconstituir do texto como explorao edescoberta dos profundos laosexistentes entre o escrever e a verdade,situada na rea do ontolgico, muitomais que na de uma realidade

    palpvel; este um universo demetforas (como a pobreza, a ideia decomunidade, o despojamento de queas beguinas so exemplo) que seaproximam do cerne das coisas, doseu ser, atravs da materialidade deum texto que circula: H, pelaltima vez o digo, trs coisas que metem

    medo. A terceira um corp'a'screver. Sos que passam por l sabem o que isso (...) Escrever vislumbra, no servepara consignar (O Livro dasComunidades, p. 10). Assim se obtmpara as palavras uma espcie dedensidade acrescida, um peso quelhes advm de, como se diz a prop-

    sito de Nietzsche, elas serem entoadasconceptualmente (...) antes de asescrever (Finita, p. 43).

    No se busca, portanto, umaconformao ao universo j existentee aos seus moldes (de gneros ououtros), mas a fulgurao de umpensamento original, prprio, diri-gido para a face subliminar das coisase dos seres, que se situam em cadeia,ultrapassando categorias lgicas orga-nizadas. Alis, muitas vezes se retomaeste tema, como se v nestefragmento de Causa Amante: aminha ocupao principal ligar-me auma ideia, e examin-la cuidado-samente; quando um pensamento verdadeiro podem deduzir-se, sem

    interrupo, outros pensamentos verda-deiros (p. 17). A deriva surge aquimuito claramente como modo decrescimento do texto, num processode acumulao em torno de ndulos.O livro citado, CausaAmante, mostraisto mesmo, se repararmos como seorganiza em passos, captulos,

    fragmentos de vria dimenso, a queos brancos tipogrficos do dina-mismo e fora suspensiva; processossemelhantes se empregam na es-truturao dos dirios em textosdatados e localizados explicitamente,criando um efeito de real que adiluio do que dito, sempre de

    fronteiras porosas, vem contrariar,porque a escrita se desenrola a umritmo de suspenso permanente,

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    34/54

    ! !33! !como no falar ((...) conversando. Semracionalizar, mas compondo o pensa-mento, como quem borda em fiorecordaes de factos objectivos e deacontecimentos pessoais: Finita, p.118).Enfim, a obra de Llansol no cabe nasdesignaes consagradas, transcende--se e cria um universo prprio, maisprximo do pensamento posto em

    fico, procurando nas malhas do ser,pois a todas resiste. E se imaginar (...) / aventurar uma representao /numa das suas ltimas verdades(Causa Amante, p. 109), quedemo--nos na sua repetida leitura, tentandoa aproximao desse centro das coisasa que d corpo to luminosa eintrigante fico.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    35/54

    ! !34! !

    Antnio GurreiroCaminhar sem limitesEXPRESSO (CARTAZ)18 de Janeiro de 1997

    H uma pgina deste dirio,datada de 22 de Agosto de 1994,onde podemos ler: Hoje, noposso interrogar sou eu que afirmo:eu poderia escrever sobre os pro-blemas do tempo em que vivemosmas s poderia falar deles a partir domeu, do meu tempo, des-datando,

    que o modo como escovo o fatodessas imagens que, aos que tomameste caminho, lhes falam constante-

    mente da sua irrealidade. O mundo.Mas qual? No meu combatem-seexistentes poderosos contra reaistalvez inviveis o ' assim' doscnicos contra o 'tenhamos um amorcomum', de Eckhart. Basta atravessara rua para encontrar o nosso tempo,basta-me voltar atrs para meencontrar no meu. Algures, no meucorpo, entre atravessar e voltar atrs,houve o embate das imagens.Da televiso que vejo ao texto queescrevo, a distncia incomensur-vel.Tratando-se de um dirio, esta

    uma estranha mesmo paradoxal afirmao. No porventura umdirio, por definio, a escrita deum tempo (um presente) escan-dido em datas? No no dirioque se afirma com evidncia a con-temporaneidade de um Eu emrelao ao seu prprio tempo? A

    escrita diarstica de Maria GabrielaLlansol, de que este Inqurito sQuatro Confidncias j o terceirovolume, abre hipteses insus-peitadas, segue por caminhos quenenhuma conveno de gneroconsegue limitar, alarga o campode possibilidades e exige da leitura

    que esta seja um acto responsvel altura da responsabilidade dotexto.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    36/54

    ! !35! ! preciso ler este dirio a partirdas propostas que ele prprioexplicita. Neste sentido, o que eletem de mais difcil so as suasevidncias, o modo como reafirma,a cada passo, que tudo est nele,sendo a tarefa maior do leitorprolongar-lhe o movimento.Assim, quando na passagem citadase fala da diferena entre o meutempo e o tempo em que vive-mos, preciso compreender quese trata de algo essencial que fundao prprio texto. O meu tempo, otempo deste dirio, liberta-se do

    anonimato das coisas e subtrai-se retrica da alienao que absorvecompletamente a vida e a reduz auma rede de relaes abstractas. um tempo que destitui a soberaniada prosa do mundo e das suasimagens efmeras, apanhadas nacontingncia e na fugacidade. E

    isso feito no custa de umaretirada para os territrios exclu-sivos da intimidade, mas atravsdo acesso ao que poderamoschamar uma percepo original.De resto, a diferena entre ontimo e o no ntimo, entremundo exterior e interior,

    anulada pela fora dissolvente doilimitado. Por isso, a unidadeglobal da experincia e daquele

    que sujeito dela desarticula-senuma linguagem que recusa asformas de saber que fossilizam anatureza e a vida e as congelam nomecanismo da instituio social.Esta questo ocupa um lugarcentral no dilogo com uma figuraque atravessa este dirio, a figura deVerglio Ferreira enquanto compa-nheiro filosfico (e importa dizerfigura porque se trata de um serfigural; ele no representa nadade mundano mas a palavra re-presenta a mais inadequada detodas para falarmos da escrita de

    Maria Gabriela Llansol): Comodizer-lhe que no sei, que o saber--saber entorpece, que receio o saber,os esquemas e as explicaes, que ohomem no dispe de corpo paraimaginar o universo, os fins ltimos eas razes primeiras, mas que estaqui, caminhando no h que h?.

    Daquilo que se trata, nesta rejei-o dosaber-saber, da recusa depercorrer os trajectos estabelecidosque domesticam, adormecem eaprisionam a intensidade e opotencial de aproximao prpriosdo conhecimento e do acto per-ceptivo, tal como eles so aqui

    concebidos.Nestas circunstncias, esta escritano encontra na literatura um

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    37/54

    ! !36! !lugar conveniente e a experincia aque corresponde no satisfaz oreconhecimento de genealogiasliterrias. O texto (para utili-zarmos uma palavra muito fre-quente em Maria Gabriela Llansol,que nada tem a ver com as teoriasque hipostasiam a materialidade eo autotelismo textuais) no pro-cede contra a literatura, masdesenrola-se num relativo desinte-resse por ela. Basta ver o que sepassa no plano formal mais ime-diato: este dirio ainda umdirio? E os romances so ainda

    romances?Na passagem citada no incio, huma afirmao cheia de conse-quncias e evocaes: quando sefala de des-datar como o modocomo escovo o fato dessas imagens. difcil no reconhecer aqui umacoincidncia (at nos prprios

    termos da formulao) com umaclebre condio que WalterBenjamin colocava ao historiadormaterialista: para salvar a verda-deira historicidade do tempohomogneo e vazio a que o histo-ricismo a reduziu, era necessrioescovar a histria acontraplo, isto

    , abandonar a viso da histriacomo sucesso cronolgica defactos cristalizados no passado.

    Ora, em toda a obra de MariaGabriela Llansol h uma filosofiaimplcita da histria que encontrao seu correlato numa formanarrativa em que a verdade dotempo no a da ordem cro-nolgica, mas aquela que traaconstelaes de figuras a partir dosextremos histricos e das multi-plicidades do devir. E aqui quedesempenham um papel importan-tssimo certas palavras de signifi-cado incerto e indecidvel, comometanoite ou luar libidinal: elasso ideias (o que no a mesma

    coisa que conceitos) que salvam oque est disperso, tornando pos-svel o aparecimento da conste-lao da verdade. sob a forma destas ideias, ondealgo de essencial se apresenta, quese acede percepo original doque releva de uma lngua de puros

    Nomes e no apenas de palavras(para continuar a falar em termosbenjaminianos). Com efeito, aescrita de Maria Gabriela Llansoldesvia-se de todo o modelo repre-sentativo exactamente a partir domomento em que a sua concepoda lngua revela uma identidade

    entre a essncia lingustica e ocontedo de verdade ou essnciaespiritual. So muitas as implica-

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    38/54

    ! !37! !es desta concepo da lngua, e amenos importante delas no certamente a possibilidade de umdiscurso que, sem ser uma meta-linguagem, e sem mergulhar noindizvel, diz a prpria linguagem

    e expe-lhe os limites, ao mesmotempo que a repatria para o espaoda verdade a onde seinterrompe a ganga do sentido eda significao.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    39/54

    ! !38! !

    Eduardo Prado CoelhoVerglio e GabrielaPBLICO (LEITURAS)12 de Abril de 1997

    1. No apenas um dos livros maisimportantes sobre a nossa literatura.Porque o Inqurito s QuatroConfidncias, de Maria GabrielaLlansol (na Relgio d'gua) deleque falo conta-nos e pe em cena,ou em figuras, ou em palavras de

    corpos que escrevem, o encontroentre Verglio Ferreira e MariaGabriela Llansol, a morte de Verglio

    (digamos claramente: o livro amorte de Verglio), a relao entredois textos de um espao literrio, oua relao que se equilibra nodesequilbrio (como o azul do verde uma cor em desequilbrio) dessesdois textos entre filosofia, literatura epensamento.Sejamos explcitos: no muitofrequente dois grandes escritoresencontrarem-se. O costume terem--se eles encontrado antes de seremescritores por vezes num movimen-to de gerao, ou de escola. E depoiscontinuarem, por entre correspon-

    dncias mais ou menos desinibidas erivalidades quase secretas. Mas, nocaso de Verglio e Maria Gabriela,podemos dizer que eles, para alm dascircunstncias anedticas a queadiante farei referncia, comearampor se encontrar na delegao mtuados seus prprios textos: Maria

    Gabriela admira os textos de Verglioe Verglio deixa-se intrigar e fascinarpelos textos de Maria Gabriela (aquimuito haveria a dizer: porqueVerglio Ferreira sente-se a si prprionum n de esgotamento, e dele quese alimenta para sobreviver, ou viverpara alm daquilo que se lhe esgotou,

    no continuar-a-escrever, e aqui quesurge o texto-de-Gabriela, como algoque no vai mais longe, mas que se

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    40/54

    ! !39! !inventa noutro lugar, e que destemodo desloca o problema do Ver-glio ou o problema do romance,atravs de uma outra experincia daspalavras, que simultaneamente umaoutra experincia de pensamento,rotao inesperada, e expansiva nassuas consequncias, ao passarmos deHegel a Spinoza).Poderei dizer que sinto uma ponta defelicidade em saber que me inseri nateia dos acasos que permitiram oencontro entre Maria GabrielaLlansol e Verglio Ferreira. Que, naorganizao das Belles Etrangres

    consagradas a Portugal, em Paris, naSorbonne, j l vo dez anos, estivessepresente Verglio Ferreira, era bvio.Mas que Pierre Lglise-Costa e euprprio tivssemos pensado que eraliterariamente justo que Maria Ga-briela Llansol tambm estivessepresente, era talvez menos evidente. E

    nada de mais comovedor (a acres-centar s pedras luminosas queimplacavelmente se sobrepem ainsdias e torpezas) do que saber que,afinal, foi assim: O anfiteatro, togrande, era puro espao de ar livre;mas, negro de pessoas sob focos deluz, e a estranheza das esttuas ao

    longe, fazia-me crer que ia quasedespenhar-se com o meu corpo, e oduplo corpo do meu texto________

    um inconsolvel abismo em que aspedras do fundo e as prximas eram cabeas humanas. Fomosespontneos a confessar, um ao outro,o nosso sentimento de medo einsegurana. E confess-lo trouxe aesse mesmo medo uma espcie deaurola de brilho protector. Esten-deu-se debaixo dos meus ps afirmeza do texto a tnica inconstilda minha mais ntima e exteriorrealidade. Texto e texto. Medo emedo. Estava presente o desconhe-cido mortal no anfiteatro. Mas,envoltos no mesmo sexo que l, a

    adversativa e o adverso encheram-sede luz sabendo eu que luz umapalavra pobre__________ era antesum xaile, um Jade a ensinar crianaqual a misso do Homem ________interrogar, fazer-lhe frente sem armas, imagem avassaladora que vem, enos vai submergir. 'Verglio, no

    fechmos os olhos, lembra-se?', e aimagem re-cuou: Sou vs disse-nos ela: Dizei. E dissemos.

    2. Sublinhemos: encontro feito con-tra o medo, e que se ir prolongarnum encontro meticulosamente teci-do contra a morte (e diga-se j que a

    beleza sufocante deste livro vem doque ele , mas tambm, e de ummodo terrvel, daquilo que ele

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    41/54

    ! !40! !pressupe: algum leva algum aaprender a morrer, esquecendo afilosofia, ou melhor, levando a filo-sofia a ser o que sempre foi, issomesmo). Contra a morte, claro: Seique o meu combate contra a morte (amorte no um substantivo) tecerem texto a perenidade das presenasj impossveis, captar-lhes a pergunta'por que quando estveis vivossenteis tanta nostalgia?' e por quetenho eu agora tanta nostalgia devs?. Mas, acima de tudo, encontro,verdadeiro encontro, isto , comosempre, a mais improvvel das proba-

    bilidades. E ainda: rotao no eixo daverdade, que j no adequao superfcie do mundo e suas rugosi-dades, mas esplendor do encontro,acontecimento no reino da mani-festao, clamor do ser. MariaGabriela traz Verglio para a beira dasnoes fundamentais: a toalha branca,

    onde o torvelinho se dissipa e ascoisas ou palavras se realam comofactos nus (diz Verglio: Passei quasetoda a vida num torvelinho, mas, porvezes, creio que fui toalha branca),ou o xaile da mente que o textopartilhado na Sorbonne desdobrouem terrao de luz.

    3. Do tanto que teramos para dizer(e que noutro lugar no poder deixarde vir a ser escrito), gostaria de

    escolher trs coisas, que me parecemmais urgentes.A primeira que o inesperado desteencontro (lembremos um ttulo deMaria Gabriela: o encontro inespe-rado do diverso) tem a ver com aideia de que entre o texto de VerglioFerreira e o texto de Maria Gabriela adistncia imensa (mas s a distncia,ou a imposio do diverso, permite oencontro, ou a composio do ser).Essa distncia uma distncia queentre eles foi, e neles se indecidiu,mas tambm uma distncia nointerior da literatura portuguesa e

    por isso este encontro reformula aimagem da literatura portuguesa dealto a baixo, no por ser tambm umaobra-prima que se lhe acrescenta, maspor ser um livro que interroga defrente as obras-primas que a confi-guram. E no deixa de ser curiosoque Verglio Ferreira, a quem se

    atribuiu tanta inclinao racionalista,seja aqui o representante de uma certarazo discursiva, enquanto, deslo-cando o problema, Maria Gabrielaconfigura a razo de outras razes.A segunda que Verglio Ferreira te-ve de se desprender daquilo que foi oncleo do seu combate existencial: a

    evidncia irredutvel do eu. Ele no seperde, sobretudo como raiz de liber-dade, mas transpe-se, a comear no

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    42/54

    ! !41! !passo de dana, ou no funambulismolunar, que leva, como numa travessiade Chagall, ao outro de si. Adeclinao da escrita permitir queVerglio Ferreira escreva, no sobre oco ou a morte do co, mas, noempedrado mais rasteiro das palavras,at ser co ponte do tempo sobre oespao: Gabriela! Sim! Ver-nos--emos face a face, daqui a milhes deanos.Os apreciadores da anlise estilsticatero aqui pano para mangas demuitas teses: o salto que se faz napassagem do se me, n da garganta

    mais ntima em que Verglio Ferreirase verbalizou no mundo, criando umaespantosa sintaxe de subjectivao dasevidncias, para o espao do infinitoverbal em que se move o texto deLlansol (a morte no umsubstantivo) o infinito como nvoltil impessoal: no desejo pensar

    conceitos mas fazer ns volteis deimagens, pensamentos, fascnios esinais. A terceira que no h met-

    foras ou comparaes, porque seentra no infinito que se dobra eflecte sem pensar na morte, nemfazer metforas. A democraciaradical de Maria Gabriela Llansolvem de que, como ela escreve apropsito do Augusto, todos somosiguais diante da Natureza solitria, eessa igualdade no permite ahierarquia entre o comparado e ocomparante, entre o real e a metfora.Esta democracia da escrita tem umnico registo: o da comparncia, que o da transparncia infinita dascomparaes, ou o da imanncia

    intransigente das palavras.Da que, s portas do paraso, MariaGabriela diga a Verglio o que qual-quer um de ns poder dizer ao leitorfuturo de Maria Gabriela Llansol (eno se pode ler Maria GabrielaLlansol sem assumir a leitura comouma leitura sempre futura, uma

    leitura por vir): no h segredo, onico segredo entrar.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    43/54

    ! !42! !

    Joo BarrentoTeoria da decepaoPBLICO (MILFOLHAS)

    22 de Setembro de 2001

    Os ltimos livros de Maria GabrielaLlansol, em especial Onde Vais,Drama-Poesia? e agora Parasceve,dizem-me duas coisas essenciais.Essenciais para a compreenso da

    totalidade da sua Obra, ou, sequisermos, do contnuo que o seutexto; e essenciais para mim, seuleitor que quer ser seu legente. Aprimeira que, para alm da grandeviragem que os ltimos livrosindiciam (em termos muito simples,mas de enorme alcance no que se

    refere ao redimensionamento dapossvel universalidade desta Obra: adistncia que vai de um espao de

    escrita ocupado por figuras daHistria, com nomes prprios, a umoutro, em que as figuras passaram ater nomes comuns), aquilo queParasceve nos oferece uma inten-sificao e uma renomeao de umprojecto de escrita e de existncia quevem j do Lugar 1 de O Livro dasComunidades. A segunda coisa essen-cial em Parasceve que este texto, deuma intensidade mpar, me interpelade forma radical para me dizer o queeu julgava saber: no momento emque a escrita se te tornar transparentee o novo conhecvel e conceptua-

    lizvel, no vale a pena leres-me! Seeu, leitor que quer ser legente, algumdia chegar a pensar que possopossuir este texto ou uma qualquerchave que lhe abra todas as portas(como, mais facilmente, posso dizerde outros), ento ter-se- perdido oque nele h de mais prprio e que o

    seu ser-enigma, a sua vontade de serescrita nova, produto de umaprogressiva decepao (eliminaodo narrativo, da metfora, a caminhode um destino final, com a cons-cincia de que no se decepou aindao n do imaginrio, para deixar otexto em carne viva). E ter-se-

    perdido tambm o seu apelo a umaleitura como des-possesso (de umtexto que s ele prprio quando

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    44/54

    ! !43! !entra em perda de sentidos redutorese explcitos), como Silvina RodriguesLopes j mostrou num ensaio seminalsobre esta Obra, em 1988. O fim termo e finalidade da escrita emMaria Gabriela Llansol continua,assim, em aberto, mas cada vez maisprximo daquele momento em queentre mo decepada de tudo oque (lhe) suprfluo e texto nohaver fronteira. O texto vai acaminho, e esse caminho, ainda nototalmente percorrido, j vem a serfeito desde que a Comunidade deAna de Pealosa comeou a copiar o

    texto de Joo (da Cruz).Mas Parasceve que o dia da mortede Jesus e do ritual preparatrio doSbado judaico , no livro, o nomede um rapazinho, delicado, masfirme, a criana que tem o ruah, osopro, a linguagem elementar queainda no temos, que deixmos de ter.

    Parasceve uma promessa: no umfim, mas um comeo. Um novocomeo na obra de Maria GabrielaLlansol. As duas vozes principais dotexto so a da mulher mulher semnome, me de uma nova gerao defiguras sem nome, porque os nomesse tornaram som e fria, e no

    significam nada, mas capaz de pr aspalavras do dicionrio a andar,mulher-hbrida de lobo que busca o

    arcano do esprito bravio, versomais universal dos Rebeldes deoutras geografias textuais e a dopltano que d pelo nome de GrandeMaior, espcie de axis mundi, cidade--rvore cujas folhas falam, lugar dapujana onde no h morte e pontode convergncia dos contrrios que secompletam, o sempre mximo e onfimo, necessidade absoluta e no-uso, verso, reverso e unidade. Essasduas vozes no so j nem sequer asdas figuras-em-devir dos livros ante-riores: so vozes-acontecimento, ma-nifestaes do carbono-Vivo, e por

    isso rejeitam, quer a tentao teo-lgica do inexplicvel e do indizvel,quer a memria (no texto, clara aoposio entre Ser e lembrar-se: terum tronco e equilibr-lo prefervel ater memria). O que aqui, no espaosem tempo e sem distines do textoe dos seus textuantes maiores, se diz,

    diz-se sempre pela primeira vez assim.H mais luz e menos enigma emParasceve do que na primeira trilogiade Maria Gabriela Llansol, porqueagora se trata simplesmente detranspor para a conscincia quoti-diana o que, durante sculos, foraatribudo ao xtase, num livro que,

    apesar da conjectura grave que oorienta, em si leve e jubiloso,como deve e pode ser a vida comum.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    45/54

    ! !44! !Mas, dizia Maria Gabriela Llansol jnum texto de 1994 (por altura de umParlamento Internacional de Escri-tores reunido em Lisboa, e a que nocompareceu), o homem comum estcontinuamente a ser excludo e espo-liado da pujana (pelo poder). Aconjectura grave deste livro a doscaminhos que podem levar resti-tuio dessa pujana.Mas perguntamo-nos: e como, se oslugares do que devia ser pujana estoanmicos, e o poder cada vez maisinsensvel? Parasceve o anncio, noa coisa acabada, que no h. O livro

    um projecto (de escrita), uma utopia(de vida), e as duas coisas no sedistinguem. Esse projecto propostoaqui por meio de um jogo, umconjunto de puzzlesa que no falta asua ironia (Parasceve tem comosubttulo Puzzles e ironias). Opuzzle o esprito bravio a penetrar

    no seu prprio arcano, a ironia queo acompanha esse arcano sermenino. O puzzle a infncia (quetambm pode ser lida como a figuradas origens, um estado de conscincianu e no-trgico, com a sua lin-guagem-princeps do neutro, lingua-gem do lobo que no acreditava no

    indizvel de qualquer linguagem dodesejo) a querer saber o que equem , mas sem ser ainda capaz de

    se perceber comopuzzle; e tambma mulher, obsecada com a figura dainfncia, que sabe saber mas j nopode ser a infncia, resolver opuzzle, por mais que dialogue com oGrande Maior, com o olho darvore. O livro de Maria GabrielaLlansol a escrita desta ironia, entreo ainda-no e o j-no. As nossasvidas passar-se-o mais ou menosnisto, e quando estamos a ponto depenetrar o arcano do ser menino,vem o medo (mesmo a mulher-hbrida de lobo ou precisamente ela sente, a um tempo, a pujana e o

    medo). enquanto busca dessearcano que a existncia umparasceve: eterna preparao de umestado que se nos nega. Nela, o texto,a linguagem, a nica protecocontra as fices, as pateticesromnticas (de que a literatura con-tinua a estar cheia) e a inauten-

    ticidade do mundo impreciso (hmuita nvoa, nessa zona de baixaspresses da vida). Por isso, o livro sefaz com instrumentos de escrita e deexperincia inabituais, como a dece-pao, a marca do vazio, o no-uso.Por isso, o texto se adapta s meta-morfoses da figura (mulher) e vai

    adiante, tem um ponto de vista, montagem precisa e sensvel, que nofaz distines, de cenas A4. Cenas-

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    46/54

    ! !45! !fulgor ainda e sempre, lugares ondealguma coisa emerge e pede para ser

    vista. Mais nada. O resto (tudo) texto.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    47/54

    ! !46! !

    Antnio Guerreiro

    O mundo reencantadoEXPRESSO (ACTUAL)8 de Novembro de 2003

    No final de Setembro, realizou-se noConvento da Arrbida um Encontrosobre e em torno de a Obra de

    Maria Gabriela Llansol, que gozahoje de uma recepo crtica, dembito sobretudo universitrio, quefaz dela uma das mais estudadas daliteratura portuguesa contempornea.Ao mesmo tempo, saam dois novoslivros da autora, O Jogo da Liberdadeda Alma(Relgio D'gua) e O Come-

    o de Um Livro Precioso (Assrio &Alvim), este ltimo com desenhos deIlda David, e era reeditado Na Casa

    de Julho e Agosto (Relgio D'gua;publicado pela primeira vez em 1984,na Afrontamento), com um posfciode Joo Barrento e o texto integral deuma entrevista dada a Joo Mendes,parcialmente publicada no Pblico de18 de Janeiro de 1995. Este maisrecente dilogo entre os textos de M.G. Llansol e os desenhos de IldaDavid no um caso nico. Htambm algumas leituras interes-santes vindas da rea da msica, dovdeo, do teatro e da performance.Esta fecunda relao com outras artese saberes no acontece apenas por

    uma convergncia de acasos e degostos. H uma razo interna prpria obra de M. G. Llansol, a que necessrio prestar ateno. De todasas artes, a msica aquela que vemocupar o lugar mais essencial. Se aleitura aqui um motivo to impor-tante, porque a revelao deve ser

    ouvida, no basta o espao surdo daescrita. E o modo acstico do olhar ,para M. G. Llansol, a leitura (em OJogo da Liberdade da Alma h umapassagem, logo na segunda pgina,onde se estabelece uma corres-pondncia entre legente, amantee musicante). A escrita nasce do

    esprito da msica, como a tragdia num aceno nietzschiano que noutroslivros bem explcito.

  • 7/28/2019 Llansol na Imprensa Portuguesa (Meio sculo de crtica)

    48/54

    ! !47! !O Jogo da Liberdade da Almapode sercolocado sob a gide do pensamentode Espinosa. um desafio buscaraqui os motivos desta relao. Semdvida que podemos identificar alinguagem de Espinosa em passagensonde se fala de conhecimentointuitivo, de causa interior, desubstncia; e at o Deus sive naturado sistema espinosiano aparecedeclinado como Deus sive legens (p.83). Mas, como sempre acontece nostextos de M. G. Llansol, a figuratutelar apresenta-se e, ao mesmo tem-po, retira-se. O texto no , obvia-

    mente, uma articulao de filoso-femas, pois a narrao uma funodo infinito jogo do mundo e nouma apreenso de tipo conceptual. Etemos de estar dispostos a aceitar umtexto que no segue os protocolos deuma narrativa e que coloca as paixeshumanas e as propriedades da natu-

    reza no lugar das aces. Digamosque no estado de suspenso histricaem que M. G. Llansol apreende omundo, este ganha a dimenso deuma escrita animada pelo furor deconstruo de uma ordem que no a ordem dada e facilmente reconhe-cvel nas suas estruturas conven-

    cionais. H aqui um olhar alegrico,em profundidade, que transformaaquilo a que chamamos natureza

    num texto, fechado em caracteresmisteriosos. Trata-se, no de umapotica que excede os seus limites,dilatando as suas intenes progra-mticas em princpios fundamentais,ou estruturas ontolgicas, at cons-tituir-se como metafsica, mas antesde uma metafsica que d lugar a umapotica, como se fosse o seu resultadonatural: uma metafsica da legibi-lidade do mundo, para dizer comoBlumenberg, do mundo que desdesempre livro, desde sempre palavradita na origem.Essa palavra que est no princpio,

    puro objecto de discurso que no precedido de nada, a que vamosencontrar nos 365 curtos textos de OComeo de Um Livro Precioso. Sotantos os textos como os dias do ano.Mas no se trata de um dirio,estamos aquibem distantes do registodiarstico do quotidiano. Cada texto