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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 15 – Géneros discursivos e/ou textuais e ensino de Língua Portuguesa no Brasil.
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POR UM MÉTODO DE ANÁLISE DISCURSIVA DA CANÇÃO POPULAR
Álvaro Antônio CARETTA1
RESUMO: Um crescente interesse pela canção popular brasileira como tema de aulas, monografias, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses tem sido observado em nossa atividade docente na área de Língua Portuguesa e Linguística. Apesar da extensa bibliografia histórica e sociológica, identificamos uma carência de estudos discursivos que possam orientar um trabalho com o gênero canção popular.
Como o discurso da canção compreende um complexo e rico sistema enunciativo, o presente trabalho tem como objetivo apresentar um método de análise para o gênero canção popular. Esse modelo propõe uma abordagem da canção a partir dos elementos discursivos presentes no enunciado, compreendidos como resultado de um processo de amplificação. O discurso de uma canção pode ser estudado observando-se como o enunciador cria a sua imagem, o seu ethos, como elabora a cena de enunciação e como dialoga com outros discursos.
Por se tratar de um gênero sincrético que relaciona a linguagem verbal e a musical, a canção só pode ser compreendida tendo como princípio essa característica fundamental. Por meio "do modo de dizer" do enunciador, podemos investigar o processo constitutivo da enunciação, que na canção reside na maneira como o cancionista relaciona letra e melodia.
A elaboração desse método de análise tem como finalidade orientar professores e alunos de ensino médio e superior no trabalho com o gênero canção, observando-se as particularidades discursivas e textuais que caracterizam esse gênero discursivo.
PALAVRAS-CHAVE: gêneros discursivos; Análise do Discurso; canção popular.
A amplificação
Partindo do pressuposto de que os gêneros discursivos constituem-se a partir de um
ato de fala, Todorov (1980) propõe o conceito de amplificação para designar o processo de
constituição dos gêneros por meio de elementos retóricos como a narrativização, a
expansão temática e a representação verbal.
1 Universidade de São Paulo; Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas; Departamento de Linguística. Rua Iperoig, 749, apto 114; CEP 05016-000; São Paulo, São Paulo, Brasil; [email protected]
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A nossa pergunta sobre a origem dos gêneros torna-se por conseguinte:
quais as transformações que sofrem certos atos de fala para produzir
certos gêneros literários? (TODOROV, 1980, p. 53).
No caso da canção, um gênero sincrético, composto pela relação entre a linguagem
verbal e a musical, para analisar os processos que constituem a amplificação do ato de fala
na sua enunciação, é necessário que primeiramente observemos os elementos que compõem
a letra e a música e, o mais importante, como se estabelece a compatibilidade entre esses
elementos.
A letra
Toda letra pressupõe uma situação de locução em que alguém está falando algo para
alguém, pois a canção não pode prescindir do seu ato de fala original. Dessa forma, é muito
comum as canções apresentarem gêneros da fala. Vemos, então, letras que representam um
diálogo, como Eu dei, de Ary Barroso; um lamento, como Lamento, de Pixinguinha e
Vinícius de Moraes; um apelo, como Volta, de Lupicínio Rodrigues; um conselho, como O
Mundo é um moinho, de Cartola; etc. A letra pode ainda trabalhar com gêneros da língua
escrita, como Cordiais Saudações, de Noel Rosa, que imita uma carta.
Os tipos de texto também definem a letra de uma canção. Determinadas canções são
mais narrativas, como A banda, de Chico Buarque; outras mais descritivas, como Aquarela
do Brasil, de Ary Barroso e ainda outras mais argumentativas como Desafinado, de Tom
Jobim e Newton Mendonça.
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A letra de canção, apesar de possuir as suas peculiaridades, é um gênero muito
próximo da poesia2. No processo de amplificação do ato de fala, a versificação e a
metrificação dos versos são elementos muito importantes. Ainda que crie uma impressão de
que alguém está falando, a letra não obedece à mesma estrutura da língua falada; pois, além
de ser um gênero artístico, ela deve compatibilizar-se com o elemento melódico que lhe
impõe métrica, ritmo, andamento e estabilização melódica.
As letras de canções exploram bastante as rimas, que são um recurso de coesão
sonora bastante expressivo. Além disso, a fim de trabalhar artisticamente com as palavras,
as suas ideias e seus sons, o letrista lança mão das figuras de estilo como as metáforas, as
inversões, as anáforas, as aliterações, as assonâncias etc.
Todos esses aspectos são responsáveis pela amplificação do ato de fala na letra de
uma canção.
A música
A canção é um gênero discursivo da esfera musical, logo a amplificação do seu ato
de fala original se dá também através de elementos pertencentes à linguagem da música.
Toda canção é construída tendo em vista um estilo musical3 que determina vários
elementos musicais como a melodia, a forma e a instrumentação. O samba é sincopado; a
marcha não. Esta, frequentemente, apresenta um refrão; o samba-de-breque, um breque. O
2 Não discutiremos aqui as diferenças e semelhanças entre poesia e letra de canção. Sobre esse assunto pode-se consultar Costa (2007, p.309). 3 Usamos o termo “estilo musical” para nos referirmos aos gêneros musicais (samba, marcha, valsa, baião etc) a fim de não causar confusões com o termo “gêneros discursivos”.
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baião é interpretado com zabumba, sanfona e triângulo; o choro com flauta, cavaquinho e
violão.
O aspecto rítmico de uma canção é determinado pelo estilo musical. Isso também
acontece com o perfil melódico (a sequência das notas, seus intervalos e durações), como
no samba-canção, em que a melodia apresenta grandes saltos intervalares e extensas curvas
que expandem a tessitura; entretanto, a organização das notas musicais em uma melodia é
regida pelo princípio da diferença, da originalidade; enquanto o ritmo é orientado pelo
princípio da identidade conforme ao estilo musical.
Além de determinar vários elementos da melodia, o estilo musical sugere elementos
da letra como o conteúdo e a escolha lexical. No baião, o tema do sertanejo nordestino é
muito presente; no samba dos anos 30, o do malandro. Um samba-canção não faz uma
crítica política; uma marcha, sim. Com relação ao vocabulário, uma valsa-canção explora o
poético; o samba-de-breque, o prosaico.
Outros elementos musicais como a harmonia, o arranjo e a interpretação também
são muito importantes nesse processo de amplificação. No entanto, devido a critérios
metodológicos, vamos nos deter no aspecto fundamental que define uma canção: a relação
entre a letra e melodia.
Letra e melodia
Para compreender como a enunciação na canção realiza o processo de amplificação
do ato de fala, é preciso analisar os elementos linguísticos e os aspectos musicais.
Entretanto, o mais importante é observar como o enunciador compatibilidade esses
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elementos. Para isso, podemos lançar mão das propostas do semioticista Luiz Tatit, que
desenvolveu um modelo para o estudo da significação na canção popular brasileira
fundamentado nas relações entre o componente linguístico e o melódico. Em linhas gerais,
o modelo apresentado por Tatit (1996) propõe três tipos de estratégias persuasivas
utilizadas na composição das canções: a passionalização, a tematização e a figurativização.
A passionalização propicia ao enunciador apresentar estados passionais na canção.
Nela, a melodia explora o percurso melódico com grandes curvas e saltos ascendentes e
descentes, investindo na duração das notas que incidem nos sons vocálicos, recursos esses
que desaceleram a melodia. As canções românticas que tratam da separação e do
sofrimento amorosos são exemplo de passionalização.
Na tematização ocorre o processo inverso, reduz-se a duração das vogais e
promove-se a reiteração dos motivos rítmico-melódicos, produzindo uma progressão
melódica mais veloz, segmentada pelos ataques das consoantes. A tematização melódica é
compatível com letras que descrevem sentimentos ou acontecimentos eufóricos. Ela
também define gêneros musicais como o maxixe, o samba, a marcha etc., tendo em vista as
particularidades musicais de cada um desses ritmos.
Na figurativização, a melodia submete-se às inflexões da fala, e a letra estabelece a
presença dos interlocutores por meio dos dêiticos de pessoa, “eu-tu”; de tempo, “aqui”; e de
espaço, “agora”, que determinam o momento presente da enunciação. Esse é um processo
em que a voz que fala se sobrepõe à voz que canta, criando um efeito de sentido de situação
locutiva. Um estilo musical exemplar da figurativização é o samba-de-breque.
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As Cenas da Enunciação
O enunciador não só representa o seu papel como também constrói uma cena, um
“palco enunciativo”. Maingueneau (2001b, p.86), propõe que a enunciação constitui-se por
três cenas: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.
A cena englobante é o tipo de discurso a que determinado enunciado está vinculado.
Por exemplo, a cena englobante de um poema é literária; de uma oração, religiosa; no caso
da canção, a cena englobante pode ser compreendida como artístico-musical. Por ser a
canção um gênero do discurso artístico, o enunciador explora os recursos estilísticos da
língua e da música.
A cena genérica é determina pelo gênero discursivo ao qual o enunciado está
vinculado. Maingueneau (2001b, p.86) afirma:
Dizer que a cena de enunciação de um enunciado político é a cena
englobante política, ou que a cena de um enunciado filosófico é a cena
englobante filosófica etc. é insuficiente: um co-enunciador não está
tratando com o político ou com o filosófico em geral, mas sim com
gêneros de discurso particulares. Cada gênero de discurso define seus
próprios papéis: num panfleto de campanha eleitoral, trata-se de um
“candidato” dirigindo-se a “eleitores”; numa aula, trata-se de um
professor dirigindo-se a alunos etc.
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No caso de uma canção, um enunciador assume o papel de cancionista, cantando
para um co-enunciador, o ouvinte. Este espera um enunciado musical, cantado, com uma
letra que lhe provoque um sentimento, uma reflexão, um estímulo corporal – como na
dança - ou simplesmente um momento de lazer.
Não se pode ignorar a importância da cena englobante na constituição do gênero,
pois ela está vinculada à esfera discursiva em que o gênero atua. Por isso, nem todo
enunciado que apresenta a forma e o estilo da canção pode ser chamado de canção popular.
Um jingle, por exemplo, usa a forma canção; porém, como a sua cena englobante é a
publicitária, ele terá outra finalidade, a de vender um produto; ele também se dirige a outro
tipo de co-enunciador, os prováveis consumidores, logo trata-se de outro gênero discursivo.
A cenografia é a situação de enunciação que o enunciador cria a fim de legitimar a
sua fala.
A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso e
aquilo que esse discurso engendra; ela legitima um enunciado que, em
troca deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cenografia da qual vem a
fala é, precisamente, a cenografia necessária para contar uma história,
denunciar uma injustiça, apresentar sua candidatura a uma eleição etc.
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 96).
Em gêneros que oferecem maior liberdade de criação, como a canção, o enunciador
pode utilizar cenografias variadas a fim de conseguir a adesão do ouvinte. São comuns
canções que nos parecem uma declaração de amor, uma confissão, um bate-papo. Nesse
caso, apesar de o ouvinte estar consciente de que está frente a uma canção, o quadro cênico,
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composto pelas cenas genérica e englobante, passa para um segundo plano, dando lugar à
cenografia. Esse processo discursivo é bastante comum em gêneros que procuram seduzir o
co-enunciador, como os da esfera artística e publicitária.
Nem todos os gêneros de discurso são suscetíveis de suscitar uma
cenografia. Certos gêneros, pouco numerosos, mantêm-se em sua cena
genérica, não suscitam cenografias (cf. lista telefônica, os textos de lei
etc.). Outros gêneros exigem a escolha de uma cenografia; eles se
esforçam, assim, para atribuir a seu destinatário uma identidade em uma
cena de fala. É o caso, por exemplo, dos gêneros ligados ao discurso
publicitários: certas propagandas exploram cenografias de conversação,
outras de discurso científico etc. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,
2004, p.97).
Maingueneau propõe ainda o conceito de cenas validadas, estereótipos enunciativos
instalados na memória coletiva que o enunciador utiliza em seu discurso.
De fato, as obras podem basear sua cenografia em cenários de enunciação
já validados, quer se trate de outros gêneros literários, quer de outras
obras, de situações de comunicação de ordem não-literária (cf. a conversa
mundana, a fala da camponesa, o discurso jurídico...). “Validado” não
significa valorizado, mas já instalado no universo de saber e de valores do
público (MAINGUENEAU, 2001a, p.126).
Existem determinados modelos de enunciação disponíveis no universo da canção
que são recorrentemente utilizados; por exemplo, um bate-papo com o garçom no bar,
como em Conversa de botequim, de Noel Rosa e Vadico. Uma cena validada, além de uma
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situação de enunciação, pode ser uma imagem, uma expressão ou um conceito, valorizados
ou desvalorizados no universo social; por exemplo, a imagem do malandro nos sambas da
década de 1930.
O estudo das cenas validadas não se limita à sua simples identificação; pois, além de
serem importantes na construção da cena de enunciação, elas são fundamentais para o
reconhecimento dos vínculos que o enunciador estabelece no interdiscurso.
O Ethos
A Análise do Discurso compreende o enunciado como produto de uma enunciação,
por exemplo, um ato de fala, um diálogo, um texto escrito, cantado etc. Toda enunciação
pressupõe um enunciador, porém o mais importante para a análise não é apenas descobrir
quem ele é, mas definir o seu ethos e compreender como ele foi construído.
O ethos é constituído por um caráter, conjunto de características psicológicas e
ideológicas, e por uma corporalidade, determinada por suas características físicas. Essa
constituição está relacionada ao papel que o enunciador pretende “representar” frente ao co-
enunciador.
Compreendido como um efeito de sentido do discurso, o ethos é uma “maneira de
dizer” que remete a uma “maneira de ser”. Particularmente na canção, essa “maneira de
dizer” é uma “maneira de compor”, estabelecida pelo modo como o enunciador relaciona os
componentes linguístico e musical.
Vejamos, por exemplo, a constituição do ethos malandro no samba Lenço no
pescoço, de Wilson Batista:
Lenço no pescoço
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Meu chapéu de lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio [...]
O enunciador da canção cria para si a imagem de malandro, típica entre os
sambistas cariocas na década de 1930. Esse é o papel que lhe permitirá parecer verossímil
frente ao ouvinte. Conforme Maingueneau (2001b, p.99):
O universo de sentido propiciado pelo discurso impõe-se tanto pelo ethos
como pelas “idéias” que transmite; na realidade essas idéias se apresentam
por intermédio de uma maneira de dizer que remete a uma maneira de
ser, à participação imaginária em uma experiência vivida. [...] O poder de
persuasão de um discurso consiste em parte em levar o leitor a se
identificar com a movimentação de um corpo investido de valores
socialmente especificados.
O ethos do enunciador dessa canção é composto por sua caracterrização física, Meu
chapéu de lado, Lenço no pescoço, Navalha no bolso; seu modo de agir, Eu passo
gingando/ Provoco e desafio; e sua filiação ideológica contrária ao trabalho, Eu tenho
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orgulho/ Em ser tão vadio. Essa apreciação social é expressada em seu estilo, portador de
um tom - uma maneira de dizer - característico do “malandro folgado”.
Visto que o enunciado é uma canção, o ethos do enunciador é constituído pela
relação entre os elementos linguístico e musical. Como assinala Wisnik (2004, p.205),
O ritmo do samba [...] fazendo-nos lembrar aquilo que os gregos
chamavam o ethos da música: o seu caráter, um certo padrão de sentido
afinado segundo um uso, e que fazia com que algumas melodias fossem
guerreiras, outras sensuais, outras relaxantes, e assim por diante. Na teoria
musical que nos chegou dos gregos, o ethos estaria ligado à melodia
musical, embora nada nos impeça de pensar o ritmo como um parâmetro
decisivo de definição do caráter de uma música.
Na esteira das reflexões de Wisnik, no samba Malandro folgado, o explora uma
melodia com ritmo sincopado, que guarda no deslocamento dos acentos uma “ginga”. O
estilo do enunciador, compreendido na relação entre os elementos melódicos e linguísticos
da canção revela um ethos de sambista malandro.
Discini (2003, p. 57) afirma que "Estilo é ethos, é modo de dizer, implicando esse
ethos um policiamento tácito do corpo, uma maneira de habilitar o espaço social [...]", logo
podemos considerar que o estilo do enunciador configura a sua imagem frente ao co-
enunciador.
O gênero exige do enunciador um estilo que corresponderá a um determinado ethos.
Por exemplo, no gênero aula, deve predominar um estilo claro, bem organizado,
exemplificativo etc.; características que determinam uma ethos didático. Como esse gênero
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possibilita ao enunciador uma liberdade na escolha de seu "modo de dizer", permitindo-lhe
optar por um ou outro estilo, uma ou outra cenografia para realizar a sua enunciação, ele
pode assumir ethé diversos, como intolerante, compreensivo, humorístico, disciplinador etc.
Seguindo esse raciocínio, propomos designar “inerente” o ethos exigido pela cena
genérica e “assumido” o ethos pelo qual o enunciador pode optar na cenografia.
Compreendemos também que, a fim de constituir o ethos inerente, o enunciador orienta-se
pelo princípio da identidade em direção ao núcleo genérico, respeitando as regras impostas
pelo gênero no que diz respeito à constituição textual e ao estilo. Entretanto, em gêneros
que permitem uma liberdade de estilos, ao assumir ethé diversos, o enunciador adota o
princípio da diferença e caminha em direção à instância textual determinada pela prática
discursiva.
Pressupondo-se que o ethos é uma modo de dizer que remete a um modo de ser, o
modo de dizer do enunciador nas canções estabelece-se pela manipulação dos componentes
linguístico e melódico. Do ponto de vista discursivo, poderíamos entender que o ethos do
enunciador constitui-se de forma passional, como no samba-canção; temática, como no
samba-enredo; ou figurativa como no samba-de-breque. No entanto, na canção, a relação
entre o modo de dizer do enunciador com o seu ethos apresenta algumas peculiaridades
próprias desse gênero discursivo.
A cenografia na canção é constituída por um gênero da fala. Esse aspecto faz da
canção um enunciado que apresenta duas instâncias enunciativas. A primeira, determinada
pela cena genérica, é estabelecida pela relação entre um enunciador (cancionista) e um co-
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enunciador (ouvinte) através de um enunciado (canção). A segunda, presente na cenografia
da letra da canção, ocorre entre um destinador que fala algo para um destinatário.
Por mais que uma canção receba tratamentos rítmico, harmônico e
instrumental, o ouvinte depara, entre outras coisas, com uma ação
simulada ("simulacro") onde alguém (intérprete vocal) diz (canta) alguma
coisa (texto) de uma certa maneira (melodia) (TATIT, 1987, p. 6).
Esse processo de análise que executamos ao distinguir essas duas instâncias tem
como finalidade demonstrar que o ethos do enunciador na canção é consequência da
interação entre as instâncias do gênero e da cenografia. Dessa forma, os conceitos de ethos
inerente e ethos assumido são pertinentes para compreendermos a formação da imagem do
enunciador na canção, visto que nos permitem discernir a constituição do ethos pela cena
genérica e na cenografia.
Como propusemos anteriormente, o ethos inerente é a imagem que o enunciador
cria de si para o co-enunciador, tendo em vista as exigências do gênero. A canção, por
pertencer à esfera artística, exige que o enunciador apresente um ethos inerente musical,
criativo e poético para que possa validar a sua enunciação frente ao co-enunciador ouvinte.
A imagem que o destinador cria para si frente ao destinatário através da situação de
fala, encenada na cenografia, propusemos designá-la ethos assumido. Como a canção é um
gênero que permite a liberdade de escolha da cenografia, o enunciador pode criar inúmeras
outras imagens para si no discurso. Ele pode, por exemplo, apresentar-se apaixonado como
em Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro, em que é utilizada a estratégia da
passionalização, produzindo um modo de dizer sentimental; pode ser suplicante e
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desesperado, como em Volta, de Lupicínio Rodrigues, que enfatiza ao extremo os aspectos
passionais; ou pode ser também sutilmente malicioso, como na marcha O teu cabelo não
nega, de Lamartine Babo e irmãos Valença, que trabalha a estratégia da tematização para
exaltar a mulata brasileira.
As Relações Dialógicas
O pensador russo Mikhail Bakhtin elaborou o conceito de dialogismo, referindo-se
às relações que todo enunciado mantém com os enunciados que já foram ou que ainda serão
produzidos. Toda canção dialoga não só com outras canções, mas também com outros
enunciados, seja na constituição de um gênero musical, seja na abordagem de algum tema,
seja por uma resposta direta, como seja por uma citação.
Podemos estudar as relações dialógicas que a canção estabelece no interdiscurso
observando os processos de intertextualidade e de interdiscursividade.
De acordo com Fiorin (1999, p. 30-32), “A intertextualidade é o processo de
incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para
transformá-lo”. Podemos observar esse processo na construção da canção Peircing, de Zeca
Baleiro:
Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar
Quero passar com a minha dor
que cita versos da canção A flor e o espinho, de Nelson Cavaquinho:
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Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Já a interdiscursividade, “[...] é o processo em que se incorporam percursos
temáticos e/ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro”. A
interdiscursividade pode estabelecer uma relação contratual, como entre os sambas
Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e Brasil pandeiro, de Assis Valente, que exaltam a
brasilidade. Porém, a relação interdiscursiva pode ser polêmica como acontece no samba
Quem dá mais, de Noel Rosa, que ironiza as belezas do país.
Uma canção pode também estabelecer relações com outros tipos de discurso, por
exemplo o poético, o prosaico, o publicitário etc. Por exemplo, a canção Divina comédia
humana, de Belchior, que cita versos do poema Via Láctea, de Olavo Bilac.
Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso
Eu vos direi no entanto:
Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não
Eu canto
As relações dialógicas no interdiscurso definem posicionamentos discursivos e
constituem uma identidade enunciativa. Vejamos, por exemplo, o tema do amor. Em muitas
canções ele é tratado como um sentimento eufórico, associado à felicidade, como em
Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro.
Vem matar essa paixão
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Que me devora o coração
E só assim então
Serei feliz, bem feliz.
Porém, em muitas outras ele é tratado de forma disfórica, pois só traz sofrimentos,
como em Esses moços, de Lupicínio Rodrigues:
Esses moços, pobres moços
Ah! Se soubessem o que eu sei
Não amavam, Não passavam
aquilo que eu já passei [...]
Vemos, então, dois posicionamentos discursivos antagônicos com relação ao tema
do amor. No entanto, não é pelo fato de estarem em oposição que esses enunciados não
estão dialogando, pelo contrário, para confirmar a sua posição discursiva, um discurso pode
negar o seu oposto, processo conhecido como heterogeneidade constitutiva, no qual o
discurso, compreendido no interdiscurso, constitui-se por meio da alteridade.
A análise discursiva da canção deve considerar tanto o contexto linguístico quanto o
não-linguístico – político, social e cultural. Porém, o contexto não pode ser tomado como
uma moldura que cerca o discurso, pois a canção não é apenas resultado de uma conjuntura
social e cultural em que foi produzida, mas também colabora na constituição dela. Assim, o
discurso é uma atividade condicionada pelo contexto, mas também formadora e até
transformadora dele. Por exemplo, a canção Para não dizer que não falei das flores, de
Geraldo Vandré, é fruto do contexto da ditadura militar no final da década de 1960, mas
também é um enunciado que colaborou na constituição do discurso contrário àquela
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 15 – Géneros discursivos e/ou textuais e ensino de Língua Portuguesa no Brasil.
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situação política, tornando-se um hino da luta contra a repressão, sendo até conhecida como
a Marselhesa Brasileira.
Considerações finais
A proposta de um método de estudo da canção popular brasileira não se limita a
oferecer um instrumental teórico para que o estudante possa realizar análises de canções.
Dentro de um projeto mais amplo, esse método pretende possibilitar e incentivar a
abordagem desse gênero discursivo nas escolas e faculdades.
Tendo em vista o caráter dialógico dos gêneros discursivos, a canção popular
oferece a possibilidade de que várias disciplinas e áreas do conhecimento possam ser
contempladas em um exercício de interdisciplinaridade. Não só o trabalho com a poesia e
com a música, mas também com a história, a sociologia, a filosofia e várias outras áreas é
possível de ser realizado nos cursos de ensino médio. Já no ensino superior, o estudo da
língua portuguesa, da Análise do Discurso, da teoria do Círculo de Bakhtin e da Semiótica
são possíveis, tendo em vista as devidas possibilidades e limitações de cada uma das
teorias.
A aplicação de um método de estudo da canção popular brasileira seria, então,
pertinente pelo fato de oferecer aos professores e estudantes uma orientação para a
abordagem desse gênero discursivo, respeitando as suas principais características artísticas,
que residem no sincretismo entre a letra e a música; e discursivas, que se constituem por
meio do princípio dialógico da comunicação social.
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 15 – Géneros discursivos e/ou textuais e ensino de Língua Portuguesa no Brasil.
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