Lorca - Dona Rosita, A Solteira

78
DONA ROSITA, A SOLTEIRA OU A LINGUAGEM DAS FLORES FEDERICO GARCIA LORCA PERSONAGENS DONA ROSITA A AMA A TIA 1 ª MANOLA 2 ª MANOLA 3 ª MANOLA 1 ª SOLTEIRONA 2 ª SOLTEIRONA 3 ª SOLTEIRONA MÃE DAS SOLTEIRONAS 1 ª AYOLA 2 ª AYOLA O TIO O SOBRINHO O CATEDRÁTICO DE ECONOMIA DOM MARTIN

Transcript of Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Page 1: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

DONA ROSITA, A SOLTEIRA

OU

A LINGUAGEM DAS FLORES

FEDERICO GARCIA LORCA

PERSONAGENS

DONA ROSITA

A AMA

A TIA

1 ª MANOLA

2 ª MANOLA

3 ª MANOLA

1 ª SOLTEIRONA

2 ª SOLTEIRONA

3 ª SOLTEIRONA

MÃE DAS SOLTEIRONAS

1 ª AYOLA

2 ª AYOLA

O TIO

O SOBRINHO

O CATEDRÁTICO DE ECONOMIA

DOM MARTIN

Page 2: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

O RAPAZ

DOIS CARREGADORES

UMA VOZ

PRIMEIRO ATO

Cômodo abrindo para uma estufa.

TIO

E minhas sementes?

AMA

Estavam aí.

TIO

Pois não estão mais.

TIA

Heléboro, brinco-de-princesa, crisântemos, Luís Passy arroxeada, altair branca e prateada,

com pontas cor de heliotrópio. . .

TIO

Vocês precisam cuidar das flores!

AMA

Se o senhor está dizendo isso por minha causa. . .

TIA

Cale a boca. Não responda.

TIO

Estou dizendo para todos. Ontem encontrei as sementes da dália pisadas no chão (Entra na

estufa.) – Vocês não fazem idéia do que é minha estufa. Desde 1807, quando a condessa de

Wandes obteve a rosa musguenta, nenhuma pessoa mais em Granada conseguiu outra, a não

ser eu. Nem o botânico da Universidade! É preciso que vocês tenham mais respeito a minhas

plantas!

AMA

Pois então eu falto com o respeito a elas?!

TIA

Page 3: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Silêncio! Dos dois, não sei qual o pior.

AMA

Está bem. Mas não sou eu quem diz que de tanto regar as flores, e com tanta água pelos

quatro cantos, acaba pulando sapo no sofá!

TIA

Mas na hora de cheirá-las, você gosta bem, não é?

AMA

Eu, não senhora. Para mim, flor cheira a menino morto, freira no convento, altar de igreja. . .

Cheira a coisa triste. Eu sou capaz de trocar todas as rosas deste mundo por uma boa laranja

ou um marmelo bem maduro. Mas aqui nesta casa. . . é rosa pela direita, alfavaca pela

esquerda, e tome petúnias e anêmonas e salvas, e essas flores que estão na moda, esses tais de

crisântemos, despenteados que nem cabeleira de cigano! Ah, que vontade eu sinto de ver

plantados neste jardim uma cerejeira, um caquiseiro, uma boa pereira!

TIA

Para a senhora comer, não é?

AMA

Ué, quem tem boca. . . Como diziam na minha terra:

Boca serve é pra comer,

perna serve é pra dançar,

e há uma coisa da mulher. . .

(Interrompe-se e chega para perto da Tia, falando-lhe ao ouvido.)

TIA

Jesus! (Faz o sinal-da-cruz.)

AMA

São bobagens de lugar pequeno. . .

(Também faz o sinal-da-cruz.)

ROSITA

(Entrando rapidamente, com um vestido cor de rosa a 1900, de mangas de presunto e cheio

de fitas.) – E meu chapéu? Onde está meu chapéu? Já deram as trinta badaladas em São Luís!

AMA

Botei em cima da mesa.

ROSITA

Page 4: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Pois não está lá, não. (Procuram.)

(Sai a Ama.)

TIA

Você olhou no armário?

(Sai a Tia.)

AMA

(Entrando.) – Não encontrei, não.

ROSITA

Será possível que ninguém saiba onde está meu chapéu?

AMA

Bote aquele azul, com margaridas.

ROSITA

Você está louca?

AMA

Mais louca anda você.

TIA

(Voltando.) – Pronto, olhe ele aqui.

(Rosita pega e chapéu e sai correndo.)

AMA

Essa menina quer tudo voando. Hoje, ele já está querendo que seja depois de amanhã! Solta

as asas e ninguém pode pegá-la. Quando ela era pequenina, eu tinha de lhe contar todo santo

dia a história de quando ela fosse velha: “Minha Rosita já está com oitenta anos. . .” E assim

tudo mais. Quando foi que a senhora viu Rosita sentada, fazendo encaixe de lançadeira,

fazendo frivolité ou festonné, desfiando a linha para bordar um corpete?

TIA

Nunca.

AMA

Até parece que tem bicho-carpinteiro!

TIA

Quem sabe se você não está enganada?

AMA

Page 5: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Se eu me enganasse, a senhora não teria ouvido nada de novo.

TIA

É verdade que eu jamais quis contrariar Rosita. Quem teria coragem de afligir uma menina

que não tem pai nem mãe?

AMA

Nem pai nem mãe nem sino que toque tantantan, mas que tem um tio e uma tia que valem um

tesouro! (Abraça a Tia.)

TIO

(Lá dentro.) – Isto é o cúmulo!

TIA

Maria Santíssima!

TIO

Pisarem minhas sementes, vá lá, mas o pé de rosa de que eu gosto mais, com as folhinhas

quebradas, isso também não! A rosa de que eu gosto mais ainda do que da musguenta, da

peluda, da pomponiana, da damascena, do que da própria rosa selvagem da Rainha Isabel! (À

Tia.) – Venha, venha aqui e veja .

TIA

O pé está partido?

TIO

Não, não lhe aconteceu nada demais, mas podia ter acontecido

AMA

Ah, que susto!

TIO

Eu gostaria de saber: quem foi que derrubou esse vaso?

AMA

Não me olhe assim desse jeito!

TIO

Fui eu, então?

AMA

E não há gatos, e não há cachorros, e não há golpes de vento que entram pela janela?

TIA

Page 6: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Ande, vá varrer a estufa.

AMA

Puxa, mas nesta casa não se deixa nem uma pessoa falar!

TIO

(Entrando.) – É uma rosa que você nunca viu em sua vida! Uma surpresa que eu lhe preparei.

É incrível! Você conhece, não é? A “rosa declinata”, de capulhos caídos. . . E a “rosa

inermis”, que não tem espinhos, hein? Que maravilha! Nem um espinhozinho! E a

“mirtifólia”, que veio da Bélgica? E a “sulfurata”, que brilha na escuridão? Pois esta aqui

vence a todas pela raridade! Os botânicos lhe deram o nome de “rosa mutabilis”, quer dizer,

volúvel, que vive mudando de cor. . . Aqui neste livro tem a descrição e a figura, olhe só!

Abre o livro.) – De manhã ela é vermelha, à tarde fica branca, e à noite se desfolha. . .

De manhã cedo, ao abrir-se,

rubra como sangue está.

O orvalho não se aproxima,

tem medo de se queimar.

Aberta no meio-dia,

é forte que nem coral.

O sol chega até os vidros

para vê-la relumear.

Quando nos ramos começam

passarinhos a cantar

e já desfalece a tarde

sobre as violetas do mar,

torna-se branca, do branco

de um rosto feito de sal.

Quando a noite vem soprando

alva trompa de metal,

quando as estrelas avançam,

e os ventos vão recuar,

no limite da escureza

principia a desfolhar-se. . .

TIA

Page 7: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Já deu flor?

TIO

Deu uma, que está desabrochando.

TIA

Dura um só dia?

TIO

Um só. Mas esse dia, eu quero passar junto dela, para ver como embranquece.

ROSITA

(Entrando.) – Minha sombrinha!

TIO

A sombrinha dela.

TIA

(Gritando.) – A sombrinha!

AMA

(Aparecendo.) – Está aqui a sombrinha!

(Rosita pega a sombrinha e beija os tios.)

ROSITA

Que tal?

TIO

Um primor.

TIA

Não há outra igual!

ROSITA

(Abrindo a sombrinha.) – E agora?

AMA

Pelo amor de Deus, feche essa sombrinha! Não se faz isso dentro de casa, dá azar!

Pela roda de São Bartolomeu!

Pela varinha de São José!

Pelo santo ramo de louro,

Page 8: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

vai-te embora, capeta,

pelas quatro esquinas de Jerusalém!

(Todos riem. Sai o Tio.)

ROSITA

(Fechando a sombrinha.) – Pronto!

AMA

Não faça mais isto! Caar. . . amba!

ROSITA

Ui!

TIA

Que é que você está dizendo?

AMA

Não acabei de dizer, não senhora!

ROSITA

(Saindo, às gargalhadas.) – Até logo, até logo!

TIA

Com quem é que você vai?

ROSITA

(Com a cabeça aparecendo.) – Com as manolas.

AMA

E com o noivo.

TIA

Mas ele não estava ocupado?

AMA

Não sei qual dos dois me agrada mais, ela ou ele. (Senta-se a Tia, e começa a fazer renda de

bilro.) – Um par de priminhos desses que a gente tem vontade de colocar na prateleira de

doces, e se um dia eles morressem (Deus me livre!), embalsamar e botar numa redoma de

cristal e neve. . . De qual deles a senhora gosta mais? (Põe-se a limpar.)

TIA

Gosto de todos dois, como sobrinhos.

AMA

Page 9: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Dela pelos bonitos olhos, dele pelos olhos bonitos. . .

TIA

Rosita foi criada por mim. . .

AMA

É exato. Mas eu é que não acredito nessa história de sangue. Para mim isso é amor. O sangue

corre dentro das veias, mas não se vê. A gente gosta mais de um primo em segundo grau que

está aí todos os dias, do que de um irmão que mora longe. Porque será, não sei.

TIA

Mulher, continue limpando!

AMA

Já vou. Nesta casa não deixam nem a gente abrir a boca! Vá uma pessoa criar para isto uma

menina bonita. Deixar seus filhinhos num casebre, tremendo de fome. . .

TIA

Não será de frio?

AMA

Tremendo de tudo, para um dia alguém lhe dizer: “Cale a boca!” Eu, como sou uma criada,

não posso fazer outra coisa senão me calar, e é o que eu faço. Não posso responder e dizer. . .

TIA

Dizer o quê?

AMA

Que a senhora pare com esses tiquitis desses bilros, senão minha cabeça vai

estourar de tanto tiquiti!

TIA

(Rindo.) – Vá ver quem está chegando aí.

(Silêncio, durante o qual se ouve o bater dos bilros.)

VOZ

Macelaaaa finaaaa da serraaaa!

TIA

(Falando sozinha.) – Carece comprar macela outra vez. Há ocasiões em que falta. . . Outro

dia eu compro. Trinta e sete, trinta e oito. . .

VOZ DO VENDEDOR

Page 10: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Longe ) - Macelaaaa finaaaa da serraaaa!

TIA

(Colocando um alfinete.) – E quarenta.

SOBRINHO

(Entrando.) – Titia!

TIA

(Sem olhar para ele.) – Olá! Não quer sentar? Rosita já foi.

SOBRINHO

Foi com quem?

TIA

Com as manolas. (Pausa. Olhando para o Sobrinho.) – Há alguma coisa com vocês?

SOBRINHO

Há, sim senhora.

TIA

(Inquieta.) – Estou quase adivinhando. Tomara que eu me engane!

SOBRINHO

Não. A senhora leia.

TIA

(Lê.) – Aí está, era de se prever. Por isso é que eu fui contra o seu namoro com Rosita. Eu

sabia que mais cedo ou mais tarde você teria de ir embora com seus pais. Ora, ali pertinho!

São quarenta dias de viagem, daqui a Tucumã. Se eu fosse homem e moço te daria uma

bofetada!

SOBRINHO

Não tenho culpa de gostar de minha prima. A senhora pensa que eu vou satisfeito? Pelo

contrário, quero ficar aqui, e venho para isso.

TIA

Ficar?! Ficar?! Seu dever é ir-se embora. São muitos alqueires de terra, seu pai está velho.

Tenho de obrigar você a tomar o vapor. Mas você me deixa a vida amargurada. Quanto à tua

prima, nem quero falar. Você vai cravar uma flecha com laço de fita roxa no coração dela. . .

Agora ela ficará sabendo que os panos não servem só para fazer flores, servem também para

enxugar lágrimas!

SOBRINHO

Então, que é que a senhora me aconselha?

Page 11: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIA

Que vás embora. Lembre-se de que seu pai é meu irmão. Aqui você não passa de um boa-

vida, passeando na praça, lá será um fazendeiro.

SOBRINHO

Mas eu queria tanto. . .

TIA

Casar? Está maluco? Só quando tiver seu futuro assegurado. E queria levar Rosita,

não é? Você teria de passar por cima de mim e de seu tio!

SOBRINHO

Isso é um modo de falar. Sei perfeitamente que não posso. Mas quero que Rosita fique me

esperando, porque eu volto logo.

TIA

Se você não se enfeitiçar por alguma moça de Tucumã. . . Antes minha língua tivesse ficado

presa no céu da boca, na hora em que eu consenti nesse noivado! Porque essa menina vai

ficar sozinha entre quatro paredes, enquanto você irá livre pelo mar a fora, por aqueles rios,

aqueles pomares de toranjas, e minha menininha aqui, todos os dias na mesma coisa, e você

por lá, a cavalo, de espingarda, caçando faisão!

SOBRINHO

Não há motivo para a senhora me falar dessa maneira. Dei minha palavra e hei de cumpri-la.

Por honra da palavra é que meu pai está na América, e a senhora sabe perfeitamente...

TIA

Cale-se.

SOBRINHO

Eu me calo, mas a senhora não confunda respeito com falta de brio.

TIA

(Com ironia andaluza.) – Desculpe, desculpe! Tinha me esquecido de que o senhor já é um

homem. . .

AMA

(Entrando, lacrimosa.) – Se fosse um homem, não iria embora!. . .

TIA

(Enérgica.) – Silêncio!

(A Ama continua a chorar, soluçando copiosamente.)

SOBRINHO

Page 12: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Bem, eu volto daqui a pouco. Diga isso a Rosita.

TIA

Não se preocupe. Os velhos é que têm de agüentar com os momentos difíceis.

(Sai o Sobrinho.)

AMA

Ah, coitadinha de minha menina! Coitadinha! Coitadinha! Esses homens de agora são assim!

Pois eu cá, mesmo que tenha de pedir esmola na rua, ficarei junto desta jóia. . . As lágrimas

entraram outra vez nesta casa! Ah, minha senhora! (Reagindo.) – Tomara que a serpente do

mar o engula!

TIA

Deus é grande!

AMA

Pelo gergelim,

pelas três santas perguntas

e pela flor da canela,

sua noite seja ruim

e pior sua colheita!

Pelo poço de São Nicolau,

encontre veneno no sal!

(Pega de um jarro de água e faz uma cruz no chão.)

TIA

Não rogue praga! Vá cuidar do seu serviço.

(Sai a Ama. Ouvem-se risadas. A Tia também sai.)

1ª MANOLA

(Entrando e fechando a sombrinha.) – Ai.

2ª MANOLA

(Fazendo o mesmo.) – Ai, que fresquinho.

ROSITA

Page 13: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Fazendo o mesmo.)

Para quem são os suspiros

de minhas lindas manolas?

1ª MANOLA

Para ninguém.

2ª MANOLA

Para o vento.

3ª MANOLA

Para o moço que me ronda.

ROSITA

Que mãos irão recolher

os suspiros dessas bocas?

1ª MANOLA

A parede.

2ª MANOLA

Algum retrato.

3ª MANOLA

As rendas de minha colcha.

ROSITA

Também quero suspirar.

Ai, amigas! Ai, manolas!

1ª MANOLA

Quem os recolhe?

ROSITA

Dois olhos

Page 14: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

que branca tornam a sobra.

Suas pestanas são vasos

onde se derrama a aurora.

E apesar de negros são

duas tardes com papoulas.

1ª MANOLA

Põe fitinha no suspiro!

2ª MANOLA

Ai!

3ª MANOLA

Ditosa és tu.

1ª MANOLA

Ditosa!

ROSITA

Não me enganam, pois me consta,

sobre vocês, um rumor. . .

1ª MANOLA

Rumores são saramagos. . .

2ª MANOLA

São estribilhos das ondas.

ROSITA

Eu vou dizer. . .

1ª MANOLA

Pois começa.

3ª MANOLA

Os rumores são coroas.

ROSITA

Page 15: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Granada. Rua de Elvira,

onde moram as manolas,

três ou quatro, que no Alhambra

vão passeando sempre sós.

Esta vestida de verde,

outra de malva, aquela outra

de corselete escocês

e fitas roçando o solo.

Garças, as que vão à frente;

a que as acompanha, pomba;

abrem pelas alamedas

musselinas misteriosas.

Mas, que escuridão no Alhambra!

Onde é que vão as manolas

enquanto sofrem na umbria

o repuxo como a rosa?

Namorados a esperam?

Sob algum mirto repousam?

E que mãos roubam perfumes

a seus dois caules redondos?

Ninguém com elas, ninguém:

duas garças e uma pomba.

Mas no mundo há namorados

que se escondem sob as folhas.

A catedral vai largando

à brisa o timbre dos bronzes.

Genil faz dormir seus bois,

Douro, suas mariposas.

Vem a noite, carregando

Page 16: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

suas colinas de sombra.

Uma entremostra os sapatos

por entre rendas e adornos;

a maior seus olhos abre

quando a menor os recolhe.

Quem serão aquelas três,

busto em pé, e cauda longa?

Por que acenam com os lenços?

Onde é que irão a essas horas?

Granada. Rua de Elvira,

onde moram as manolas,

três ou quatro, que no Alhambra

vão passeando sempre sós. . .

1ª MANOLA

Deixa que o rumor envolva

Granada nas suas ondas.

2ª MANOLA

Nós temos noivos?

ROSITA

Nenhuma.

2ª MANOLA

Digo a verdade?

ROSITA

Sim, toda.

3ª MANOLA

Enfeitam rendas de escarcha

nossas camisas de noiva.

ROSITA

Page 17: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Mas. . .

1ª MANOLA

Gostamos é da noite.

ROSITA

Mas. . .

2ª MANOLA

Pelas ruas em sombra,

nós subimos no Alhambra,

nós três ou nós quatro, sós.

3ª MANOLA

Ai!

2ª MANOLA

Cala-te.

3ª MANOLA

Por quê?

2ª MANOLA

Ai!

1ª MANOLA

Ai Jesus, ninguém nos ouça!

ROSITA

Alhambra, jasmim de pena

por onde a lua repousa. . .

AMA

Menina, sua tia está chamando. (Muito triste.)

ROSITA

Você estava chorando?

Page 18: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

AMA

(Dominando-se.) – Não. É que eu estou sentindo assim uma coisa. . .

ROSITA

Não me assuste. Que é que há?

(Sai, depressa, olhando para a Ama. Depois que ela saiu, a Ama começa a

chorar em silêncio.)

1ª MANOLA

(Alto.) – Que é que está acontecendo?

2ª MANOLA

Conte para a gente!

AMA

Fiquem quietas.

3ª MANOLA

(Baixo.) – Más notícias?

(A Ama leva-as para a porta e olha na direção em que saiu Rosita.)

AMA

Agora é que ela está sabendo!

Page 19: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Pausa. Todas ficam à escuta.)

1ª MANOLA

Rosita está chorando. Vamos embora.

AMA

É melhor. Eu contarei a vocês. Agora deixem a menina. Podem sair pela portinha.

(Saem.)

(A sala fica vazia. Em um piano distante, tocam um estudo de Czerny.

Pausa. Entra o Primo; chegando ao centro, detém-se ao ver Rosita. Os

dois se quedam contemplando-se. O Primo aproxima-se e enlaça-a

pela cintura. Ela inclina a cabeça no ombro dele.)

ROSITA

Por que teus olhos traidores

com os meus se misturaram?

Por que tuas mãos trançaram

em minha cabeça flores?

Que luto de beija-flores

deste à minha juventude,

pois sendo norte e saúde

o teu calor e aparência,

rompe tua má ausência

cordas de meu alaúde?

PRIMO

(Levantando-se para um sofá vis-à-vis, onde se sentam.)

Prima, ai, ai, minha riqueza!

rouxinol entre a nevada,

conserva a boca cerrada

à imaginária frieza;

refreia tua estranheza,

que embora atravesse o mar,

a água tem de me emprestar

nardos de espuma e de calma

Page 20: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

para refrescar minh’alma

quando eu comece a queimar.

ROSITA

Uma noite, adormentada

em meu balcão de jasmins,

vi baixar dois querubins

sobre a rosa enamorada;

ela tornou-se encarnada,

e branca era sua cor;

como delicada flor,

as pétalas incendidas

foram caindo, feridas

por esse beijo de amor.

Assim eu, primo inocente,

em meu jardim de begônias

dava ao ar minhas insônias

e minha alvura à corrente.

Terna gazela imprudente,

alcei os olhos, te vi

e em meu coração senti

agulhas estremecidas

que estão me abrindo ferias

sangrentas como aleli.

PRIMO

Prima, então não voltaria

para levar-te a meu lado

em barco de ouro equipado

com as velas da alegria?

Page 21: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Luz e sobra, noite e dia,

dentro em mim serás medalha.

ROSITA

Mas o veneno que espalha

amor n’alma sem ninguém,

de terra, de onda e vaivém

tecerá minha mortalha.

PRIMO

Quando meu cavalo lento

pastar grama com rocio,

quando a neblina do rio

turvar o muro do vento,

e quando o verão violento

puser o chão carmesim

e a escarcha deixar em mim

alfinetinhos de estrelas,

te juro que morro pelas

glórias de amar-te sem fim.

ROSITA

Anseio ver-te chegar

uma tardinha em Granada

com toda essa luz salgada

em nostalgia de mar;

limoeiro a amarelar,

jasmineiro dessangrado,

entre pedra enredado,

impedirão teu caminho

Page 22: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

e nardos em redemoinho

endoidarão meu telhado.

Voltarás?

PRIMO

Volto, na certa!

ROSITA

E que pomba iluminada

me avisará da chegada?

PRIMO

A minha fé, de asa aberta.

ROSITA

Ficam bordando a coberta

das bodas os dedos meus.

PRIMO

Pelos diamantes de Deus

e os cravos de seu costado,

juro que volto a teu lado!

ROSITA

Adeus, primo!

PRIMO

Prima, adeus!

(Abraçam-se no sofá. Ouve-se o piano, longe. Sai o

primo. Rosita fica chorando. Aparece o Tio, que cruza a

sala até a estufa. Ao vê-lo, Rosita pega o Livro das

Flores, que está ao alcance da mão.)

TIO

Que é que você estava fazendo?

ROSITA

Page 23: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Nada.

TIO

Estava lendo?

ROSITA

Page 24: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Estava.

(Sai o Tio, lendo.)

De manhã cedo, ao abrir-se,

rubra como sangue está.

O orvalho não chega perto

tem medo de se queimar.

Aberta no meio-dia,

é forte que nem coral.

O sol chega até os vidros

para vê-la relumear.

Quando nos ramos começam

passarinhos a cantar

e já desfalece a tarde

sobre as violetas do mar,

torna-se branca, do branco

de um rosto feito de sal.

Quando a noite vem soprando

alva trompa de metal,

quando as estrelas avançam

e os ventos vão recuar,

no limite da escureza

principia a desfolhar-se. . .

P a n o

Page 25: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

SEGUNDO ATO

Sala em casa de Rosita. Ao fundo, o jardim.

O SENHOR X

Pois eu cá serei sempre um homem deste século.

TIO

O século que estamos começando será um século materialista. . .

O SENHOR X

Porém de muito mais progresso do que o século passado! Meu amigo, o Sr. Longoria, de

Madri, acaba de comprar um automóvel no qual ele se atira à velocidade fantástica de trinta

quilômetros à hora! E o Xá da Pérsia, que sem dúvida nenhuma é um homem

agradabilíssimo, comprou um Panhard Levassor de vinte e quatro cavalos!

TIO

Pois eu lhe digo: aonde é que eles vão com tanta pressa? O senhor já soube do que aconteceu

com a corrida Paris-Madri, que acabou antes da hora porque antes de chegar a Bordéus todos

os automobilistas tinham morrido?!

O SENHOR X

O Conde Zboronski, morto no desastre, e Marcel Renault, ou Renol, que de ambas as

maneiras se costuma e se pode dizer, também morto no desastre, são mártires da ciência, e

hão de ser entronizados no altar, no dia em que vier a religião do positivo! Renol eu conheci

bastante. Coitado!

TIO

É, mas o senhor não me convence. (Senta-se.)

O SENHOR X

(Com o pé na cadeira, e brincando com a bengala.) – Superlativamente! Embora um

catedrático de economia política não possa discutir com um cultivador de rosas. . . Mas hoje

em dia, creia-me o senhor, já não se admitem quietismos nem idéias obscurantistas. Hoje, o

Page 26: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

que influi é um João Batista Say, ou Sê, pois de ambas as maneiras se costuma e se pode

dizer, ou um Conde Leão Tolstoá, vulgo Tolstoi, tão elegante na forma como profundo no

conceito. Eu me sinto na Pólis vivente: não sou partidário da Natura Naturata.

TIO

Cada um vive como sabe ou como pode, neste mundo de Deus.

O SENHOR X

Claro que a terra é um planetazinho medíocre, mas temos de ajudar a civilização. Se Santos

Dumont, em vez de estudar meteorologia comparada, houvesse dedicado seu tempo a plantar

roseiras, o aeróstato dirigível estaria ainda no seio da Brama!

TIO

(Aborrecido.) – A botânica também é uma ciência.

O SENHOR X

Sim, mas aplicada. Serve para estudar sucos de Arthemis Olorosa, de ruibarbo, da

extraordinária pulsátila, o narcótico de Datura Stramonium. . .

TIO

(Ingênuo) – O amigo se interessa por essas plantas?

O SENHOR X

Não tenho suficiente volume de experiência sobre elas. Interesso-me pela cultura, o que é

diferente. Voila! (Pausa.) - E. . . Rosita?

TIO

Rosita? (Pausa. Em voz alta.) – Rosita!

VOZ

(Lá dentro) – Ela não está.

TIO

Não está.

O SENHOR X

Sinto muito.

TIO

Eu também. Como hoje é dia de Santa Rosa, com certeza saiu para rezar os quarenta creio-

em-deus-padre.

O SENHOR X

Entregue-me em meu nome este pendantif. É uma torre Eiffel de nácar, sobre duas pombas

que levam nos bicos a roda da indústria.

Page 27: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIO

Ela vai ficar muito agradecida.

O SENHOR X

Estive quase trazendo para ela um canhãozinho de prata, através de cujo orifício se vê a

Virgem de Lurdes, ou Lourdes, ou então uma fivela para cinto, com uma serpente e quatro

libélulas, mas achei que isto é de mais bom gosto.

TIO

Obrigado!

O SENHOR X

Encantado pelo seu acolhimento gentil.

TIO

Obrigado!

O SENHOR X

Ponha-me aos pés da senhora sua esposa.

TIO

Muito obrigado!

O SENHOR X

Ponha-me aos pés de sua encantadora sobrinhazinha, a quem desejo mil venturas em seu

festivo onomástico.

TIO

Mil vezes obrigado!

O SENHOR X

Considere-me seu fiel servidor.

TIO

Um milhão de vezes obrigado!

O SENHOR X

Torno a repetir. . .

TIO

Obrigado, obrigado, obrigado!

O SENHOR X

Até sempre! (Sai.)

Page 28: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIO

(Aos berros.) – Obrigado, obrigado, obrigado!

AMA

(Entra rindo.) – Não sei como o senhor tem paciência! Com esse homem e mais aquele outro,

Dom Confúcio Montes de Oca, batizado na loja maçônica n.º 43, um dia esta casa pega fogo.

TIO

Já disse que não gosto de você ficar escutando as conversas.

AMA

Isto é o que se chama ser mal-agradecido! Eu estava atrás da porta, sim senhor, mas não era

para escutar, era para botar uma vassoura com o cabo para baixo, a fim desse homem ir-se

embora!

TIA

(Entrando.) – Ele já foi?

TIO

Já. (Sai.)

AMA

Esse também pretende casar com Rosita?

TIA

Mas por que você fala em pretendentes? Não conhece Rosita!

AMA

Mas conheço os pretendentes.

TIA

Minha sobrinha está comprometida.

AMA

A senhora não me obrigue a falar! A senhora não me obrigue a falar! A senhora não me

obrigue a falar!

TIA

Pois então cale a boca.

AMA

A senhora acha direito que um homem vá-se embora e deixe jogada durante quinze anos essa

florizinha de manteiga que é uma mulher? Rosita precisa casar. Já estou com as mãos

calejada de tanto guardar jogos de renda de Marselha e jogos de cama enfeitado de guipure e

Page 29: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

centros de mesa e colchas de gaze com flores estampadas! Ela tem de usar e de estragar essas

coisas, mas não vê como o tempo passa. Ficará e cabelos brancos e ainda estará pregando

fitas de cetim liberty na camisola de noiva!

TIA

Mas por que você se mete no que não é de sua conta?

AMA

(Espantada.) – Não me meti, estou metida.

TIA

Eu tenho certeza de que ela é feliz.

AMA

É o que a senhora pensa. Ontem passei o dia inteiro fazendo companhia a ela na entrada do

circo, porque cismou que um dos titeriteiros parecia com o noivo!

TIA

E parecia mesmo?

AMA

Era lindo como um noviço quando vai celebrar a primeira missa. . . Mas quisera eu que o seu

sobrinho tivesse aquele feitio, aquele pescoço de nácar, aquele bigode. . . Não parecia nada.

Na família da senhora não há homens garbosos!

TIA

Obrigada, mulher!

AMA

São todos baixotinhos, meio caídos de ombro. . .

TIA

Ora, já se viu?!

AMA

É pura verdade. O que aconteceu é que Rosita gostou do saltimbanco, como eu também

gostei e até a senhora gostaria. Mas ela fica pensando é no outro. Às vezes me dá vontade de

lhe jogar um sapato na cabeça. Porque, de tanto olhar para o céu, ela acaba com olho de vaca!

TIA

Page 30: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Bem, ponto final. Está certo que o rústico fale, mas que não ladre.

AMA

Pelo menos a senhora não me lançará na cara que eu não gosto dela.

TIA

Às vezes me parece que não gosta.

AMA

Eu tirava o pão de minha boca, e o sangue de minhas veias, se ela precisasse deles!

TIA

(Rude.) – Conversa! Conversa fiada!

AMA

(Rude.) – É fato! Já dei provas disso. No duro! Gosto dela mais do que a senhora gosta!

TIA

Isso é mentira!

AMA

(Enérgica.) – É verdade!

TIA

Não levante a voz comigo!

AMA

(Alto.) – Para isso tenho campainha na língua!

TIA

Cale essa boca, malcriada!

AMA

Passei quarenta anos a seu lado!

TIA

(Quase chorando.) – Você está despedida!

AMA

(Berrando.) – Graças a Deus que a senhora vai sumir da minha vista!

TIA

Page 31: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Chorando.) – Rua, imediatamente!

AMA

(Rompendo em pranto.) – Rua!. . . (Dirige-se, chorando, para a porta; ao sair, cai-lhe um

objeto. As duas estão debulhadas em lágrimas.)

TIA

(Limpando as lágrimas, docemente.) – Que foi isso que caiu de você?

AMA

(Chorando.) – Um porta-termômetro, estilo Luís Quinze. . .

TIA

É?

AMA

É, sim senhora. (Choram.)

TIA

Para quê?

AMA

Presente para Rosita, no dia de Santa Rosa. . . (Aproxima-se.)

TIA

(Engolindo as lágrimas.) - Mas é uma preciosidade!

AMA

(Com voz de choro.) – No meio do terciopelo, tem uma fonte, feita com caracóis de verdade.

Em cima da fonte, uma pracinha de arame, com rosas verdes. A água do tanque é um feixe de

lantejoulas azuis, e o repuxo é o próprio termômetro. As poças d’água em redor são pintadas

com azeite, e nelas bebe um rouxinol todo bordado a fio de ouro. Eu queria que ele tivesse

corda e cantasse, mas não pôde ser. . .

TIA

Não pôde ser.

AMA

Mas não faz mal não cantar. No jardim nós temos eles vivos.

TIA

É verdade. (Pausa.) – Por que você está mexendo nesse assunto?

AMA

Page 32: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Chorando.) – Eu daria tudo por ela. . .

TIA

Você gosta mesmo dela como ninguém!

AMA

É, menos do que a senhora. . .

TIA

Não. Você deu a ela o seu sangue.

AMA

A senhora lhe sacrificou a sua vida.

TIA

Mas eu fiz isso por obrigação, você fez por generosidade.

AMA

(Mais alto.) – A senhora não me diga isso!

TIA

Você mostrou que gosta dela como nenhuma outra pessoa.

AMA

Fiz o que qualquer uma faria no meu lugar. Sou uma criada. Os patrões me pagam, e eu sirvo.

TIA

Nós sempre consideramos você uma pessoa da família.

AMA

Uma humilde criada que dá o que tem, e mais nada.

TIA

Por que você diz assim: e mais nada?

AMA

Pois eu sou outra coisa?

TIA

(Irritada.) – Você não pode dizer isso aqui. Vou-me embora para não ouvir.

AMA

Page 33: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Irritada.) – E eu também. (Saem rápidas, cada qual por uma porta.)

(Ao sair, a Tias esbarra com o Tio.)

TIO

De tanto viverem juntas, para vocês duas as rendas se tornaram espinhos.

TIA

Ela quer sempre dizer a última palavra!

TIO

Não precisa me explicar, sei tudo de cor e salteado. E apesar dos pesares você não pode

passar sem ela! Ontem eu ouvi você explicando a ela com todas as minúcias a nossa conta no

banco. Você não sabe pôr-se no seu lugar. Então isso é conversa própria para uma criada?

TIA

Ela não é uma criada.

TIO

(Com doçura.) – Chega, chega, não quero brigar com a senhora. . .

TIA

Mas será que comigo não se pode falar?

TIO

Poder, pode, mas eu prefiro fechar o bico.

TIA

Embora guardando suas palavras de reprovação.

TIO

Para que iria eu dizer alguma coisa a essa altura? Para não discutir, sou capaz de fazer minha

cama, lavar minha roupa com sabão de pau e mudar o tapete do meu quarto.

TIA

Não é justo que o senhor tome esses ares de homem superior e mal servido, quando tudo

nesta casa está subordinado à sua comodidade e aos seus gostos.

TIO

(Doce.) – Pelo contrário, filha.

TIA

Page 34: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Séria.) – Completamente. Em vez de fazer renda, eu vivo podando as plantas. E que é que

você faz para mim?

TIO

Desculpe. Chega um momento em que as pessoas que viveram juntas por muitos anos fazem

das menores coisas motivo de aborrecimento e inquietação, para dar intensidade e desejo ao

que está realmente morto. Aos vinte anos, não tínhamos dessas conversas. . .

TIA

Não tínhamos não. Aos vinte anos a gente quebrava cristais. . .

TIO

E o frio era um brinquedo nas mãos da gente.

(Aparece Rosita. Está vestida de cor-de-rosa. Já não estão na moda as

mangas de presunto a 1900. Saia boca de sino. Atravessa rapidamente

a sala, com uma tesoura na mão. No centro, detém-se.)

ROSITA

Já passou o carteiro?

TIO

Passou?

TIA

Não sei. (Gritando.) – Passou o carteiro? (Pausa.) – Não, ainda não.

ROSITA

Ele passa sempre a essa hora.

TIO

Não é de hoje que devia ter passado.

TIA

Às vezes ele se distrai por aí.

ROSITA

Outro dia, ele estava jogando úni-úni dóli-dóli com três garotos, e o monte de cartas no chão.

TIA

Ele vem já.

ROSITA

Me avisem.

Page 35: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Sai rapidamente.)

TIO

Onde é que você vai com essa tesoura?

ROSITA

Vou cortas umas rosas.

TIO

(Estupefato.) – Como?! E quem lhe deu licença?!

TIA

Eu. Hoje é dia de Santa Rosa.

ROSITA

Quero botar nas jardineiras e na floreira da entrada.

TIO

Cada vez que vocês cortam uma rosa é como se me cortassem um dedo. A mesma

coisa (olhando para a Tia). – Não quero discutir. Sei que elas duram pouco (Entra a Ama.) –

Assim diz a valsa das rosas, uma das músicas mais bonitas de agora, mas não posso abafar o

desgosto que sinto ao vê-las em jarras de barro.

ROSITA

(À Ama.) – Passou o correio?

AMA

Pois a única coisa para que servem as rosas é para enfeitar os quartos.

ROSITA

(Irritada.) – Eu perguntei se o correio já passou.

AMA

(Irritada.) – Será que eu fico com as cartas, quando elas chegam?

TIA

Ande, vá cortar as flores.

ROSITA

Tudo nesta casa tem uma gotinha de vinagre.

AMA

Page 36: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Topamos com rosalgar pelos cantos.

TIA

Você está satisfeita?

ROSITA

Não sei.

TIA

Como não sabe?

ROSITA

Quando não vejo ninguém, estou satisfeita, mas como tenho de ver. . .

TIA

Claro que tem! Não gosto dessa vida que você leva. Seu noivo não exige que você seja um

caramujo. Sempre me diz nas cartas que você deve sair um pouco.

ROSITA

Mas é que na rua eu noto como o tempo passa, e não quero perder minhas ilusões. Fizeram

outra casa nova na pracinha. Não quero tomar conhecimento de como o tempo passa!

TIA

E compreendo. Quantas vezes eu aconselhei você a escrever a seu primo e se casar aqui com

outro? Você era uma moça alegre. Eu sei que há rapazes e homens maduros que gostariam...

ROSITA

Ora, titia! Meu sentimento tem raízes fundas, muito bem enterradas no coração. Se não visse

ninguém, era capaz de dizer que faz apenas uma semana que ele viajou. Continuo esperando

como no primeiro dia. Além disso, que vale um ano, dois, ou cinco?

(A campainha toca.) – Correio!

TIA

Que é que ele terá escrito a você?

AMA

(Entrando.) – Estão aí as solteironas ridículas!

TIA

Maria Santíssima!

ROSITA

Mande entrar.

Page 37: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

AMA

A mãe e as três filhas. Por fora, filó, filó; por dentro, molambo só. . . Que boa palmada eu

lhes daria no. . . (Sai.)

(Entram as três Solteironas, com a Mãe. Vêm com imensos

chapéus de plumas baratas, vestidos exageradíssimos, luvas

até o cotovelo, com pulseiras por cima, e leques pendurados a

longas correntes. A Mãe veste-se de preto ruço e usa chapéu

de fitas roxas, já velhas.)

MÃE

Felicidades! (Beijam-se.)

ROSITA

Obrigada.

(Beija as solteironas.) – Amor! Caridade! Clemência!

1ª SOLTEIRONA

Felicidades.

2ª SOLTEIRONA

Felicidades.

3ª SOLTEIRONA

Felicidades.

TIA

Como vão esses pés?

MÃE

Cada vez pior. Se não fosse por causa delas, eu nem sairia de casa.

(Sentam-se.)

TIA

A senhora não faz fricções com alfazema?

1ª SOLTEIRONA

Todas as noites.

2ª SOLTEIRONA

E cozimento de malva.

TIA

Page 38: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Não há reumatismo que resista.

(Pausa.)

MÃE

E seu marido?

TIA

Vai bem, obrigada.

(Pausa.)

MÃE

Sempre com suas rosas, hem?

TIA

Com suas rosas.

3ª SOLTEIRONA

As flores são tão bonitas!

2ª SOLTEIRONA

Lá em casa, nós temos uma roseira de São Francisco, no vaso.

ROSITA

Mas rosa de São Francisco não cheira.

1ª SOLTEIRONA

Cheira muito pouquinho.

MÃE

A mim, o que mais me agrada é esponjeira.

3ª SOLTEIRONA

As violetas também são lindíssimas.

MÃE

Vocês trouxeram o cartão?

3ª SOLTEIRONA

Trouxemos, sim. É uma menina vestida de cor-de-rosa, que ao mesmo tempo serve de

termômetro. O frade de capucho está muito batido! Conforme o grau de umidade, as saias da

menina, que são de papel fininho, se abrem ou se fecham.

Page 39: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

ROSITA

(Lendo.)

De manhãzinha no campo

garganteava um rouxinol

e em seu cântico dizia:

Rosita é um raio de sol.

Oh, por que foram se incomodar?. . .

TIA

É de muito bom gosto!

MÃE

Gosto não me falta, falta é dinheiro!

1ª SOLTEIRONA

Mamãe!. . .

2ª SOLTEIRONA

Mamãe!. . .

3ª SOLTEIRONA

Mamãe!. . .

MÃE

Filhas, esta casa é de confiança. Ninguém nos ouve. Mas a senhora sabe perfeitamente que

desde que faltou o meu saudoso falecido, eu faço verdadeiros milagres para viver com a

pensão que nos tocou. Ainda estou ouvindo o pai destas meninas, tão generoso e

cavalheiresco, a me dizer: “Henriqueta, vá gastando, vá gastando, que eu ganho setenta

duros!” Mas os bons tempos se foram. Apesar de tudo, nós não baixamos de classe. E que

angústias tenho passado, minha senhora, para que estas meninas continuem usando chapéu!

Quantas lágrimas, quantas tristezas por causa de uma fita, de um amarrado de cachos! Estas

plumas, estes arames me têm custado muitas noites em claro. . .

3ª SOLTEIRONA

Mamãe!. . .

MÃE

Page 40: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

É a verdade, minha filha. Não podemos fazer a menor coisa fora do limite. Quantas vezes eu

pergunto a elas: “Que é que vocês querem, filhas de minh’alma: ovos no almoço ou cadeiras

no passeio?” E as três respondem ao mesmo tempo: “Cadeiras!”

3ª SOLTEIRONA

Mamãe, não comente isso! Granada inteira já sabe!

MÃE

Claro, que é que elas podiam me responder? E lá vamos nós, com umas batas e um cacho de

uvas no estômago, mas com capas de mongólia ou sombrinhas estampadas, blusas de

popeline, todos os matadores! Porque não há outro jeito. Mas a mim me custa a vida! E

enchem-se-me os olhos d’água quando eu as vejo ter contato com as que podem. . .

2ª SOLTEIRONA

Você hoje não vai a Alameda, Rosita?

ROSITA

Não.

3ª SOLTEIRONA

Lá nos encontramos sempre com as Ponce de Leon, as de Harrasti e com as filhas da

Baronesa de Santa Matilde. O que há de mais fino em Granada!

MÃE

Page 41: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Claro! Foram colegas no Colégio da Porta do Céu.

TIA

(Levantando-se.) – Vamos tomar alguma coisa.

(Todas se levantam.)

MÃE

A senhora tem mãos de fada para doce de pinhão e pastéis de nata!

1ª SOLTEIRONA

(À Rosita.) – Tem notícias?

ROSITA

A última carta me prometia novidades. Vamos ver esta.

3ª SOLTEIRONA

Você já terminou aquele jogo de rendas valencianas?

ROSITA

Pois sim! Até fiz outro de nanzuque, com borboletas em aquarela.

2ª SOLTEIRONA

No dia em que se casar, você leva o melhor enxoval do mundo, hem?

ROSITA

Ah, eu penso que tudo isso ainda é pouco! Dizem que o homem enjoa da mulher

quando ela usa sempre o mesmo vestido.

AMA

(Entrando.) – Estão aí as de Ayola, o fotógrafo.

TIA

Você queria dizer: as senhoritas de Ayola.

AMA

Estão aí as ilustríssimas e excelentíssimas senhoronas filhas do senhor Dom Ayola,

fotógrafo de Sua Majestade e medalha de ouro na Exposição de Madri! (Sai.)

TIA

Temos de agüentá-la, mas às vezes me bole com os nervos. (As Solteironas vêem uns panos

com Rosita.) Estão impossíveis.

MÃE

Page 42: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Arrogantes! Eu tenho uma rapariga que arruma a casa, de tarde. Ganhava o que sempre

ganharam: uma peseta por mês e a sobra da comida, o que já é bem bom nestes tempos. Pois

outro dia ela me aparece sem mais nem menos me dizendo que queria ganhar um duro! E eu

não posso pagar isso!

TIA

Não sei onde vamos parar!

(Entram as senhoritas de Ayola, que cumprimentam

alegremente Rosita. Seguem a moda exageradíssima da época

e estão ricamente vestidas.)

ROSITA

Vocês não se conhecem?

1ª AYOLA

De vista.

ROSITA

Senhoritas de Ayola, senhoras e senhoritas de Escarpini.

2ª AYOLA

Nós já as vimos sentadas em suas cadeiras, no passeio. (Disfarçam o riso.)

ROSITA

Sentem-se. (Sentam-se as Solteironas.)

TIA

(Às Ayola.) – Aceitam um docinho?

2ª AYOLA

Não, obrigada. Comemos ainda há pouco. Imagine que eu comi quatro ovos com molho de

tomates, e quase não podia me levantar da cadeira!

1ª AYOLA

Ela é engraçada! (Riem.)

(Pausa. As Ayola são tomadas de riso irreprimível, que se comunica a

Rosita; esta se esforça por contê-las. As Solteironas e sua mãe estão

sérias. Pausa.)

TIA

Que crianças!

Page 43: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

MÃE

É a mocidade!

TIA

Idade feliz!

ROSITA

(Andando como se arrumasse coisas.) – Pelo amor de Deus, fiquem quietas! (Calam-se.)

TIA

(À 3ª Solteirona.) – E como vamos de piano?

3ª SOLTEIRONA

Eu agora tenho estudado menos. É tanto trabalho!

ROSITA

Há muito tempo que não ouço você tocar.

MÃE

Se não fosse eu, os dedos dela já teriam endurecido. Ah, mas eu estou sempre buzinando

perto!

2ª SOLTEIRONA

Desde que papai morreu, coitado, ela não sente mais vontade. Ele gostava tanto!

2ª AYOLA

Eu me lembro que às vezes ele começava a chorar. . .

1ª SOLTEIRONA

Quando ele tocava a tarantela de Popper.

2ª SOLTEIRONA

E a oração da Virgem.

MÃE

Ele tinha tanta sensibilidade!

(As Ayola, que procuravam conter o riso, caem na gargalhada.

Rosita, voltando as costas às Solteironas, ri também, mas

domina-se.)

TIA

Page 44: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Que meninas!

1ª AYOLA

Nós estávamos rindo porque, antes de chegar aqui. . .

2ª AYOLA

Ela tropeçou e quase deu uma cambalhota!

1ª AYOLA

E eu então. . . (Riem mais.)

(As Solteironas esboçam um risinho fingido, de tom cansado e triste.)

MÃE

Bem, nós já vamos.

TIA

Absolutamente!

ROSITA

(À todas.) – Pois vamos comemorar o fato de você Ter caído! Ama, traga os ossos de Santa

Catarina!

3ª SOLTEIRONA

Ih, que delícia!

MÃE

No ano passado nos deram meio quilo de presente.

(Entra a Ama, com os doces.)

AMA

Isso é coisa para gente fina. (Para Rosita.) – Lá vem o carteiro, junto aos alamozinhos.

ROSITA

Vá esperá-lo na porta.

1ª AYOLA

Eu não quero comer. Prefiro uma pombinha de anis.

2ª AYOLA

E eu uma pombinha de suco de uva.

ROSITA

Page 45: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Você gosta de um pilequinho, hem?

1ª AYOLA

Quando eu tinha seis anos, vinha aqui e o noivo de Rosita me acostumou a bebê-las. Você se

lembra, Rosita?

ROSITA

Não!

2ª AYOLA

A mim, Rosita e o noivo me ensinavam o A B C. . . Há quanto tempo foi isso?

TIA

Quinze anos!

1ª AYOLA

Sabe de uma coisa? Eu quase que já esqueci a cara de seu noivo. . .

2ª AYOLA

Ele não tinha uma cicatriz no lábio?

ROSITA

Cicatriz? Titia, ele tinha uma cicatriz?

TIA

Mas você não se lembra, filhinha? Era a única coisa que o prejudicava um pouco. . .

ROSITA

Mas não era cicatriz; era uma queimadura, um pouquinho rosada. Cicatriz é funda.

1ª AYOLA

Eu tenho tanta vontade de ver Rosita casada!

ROSITA

Meu Deus!

2ª AYOLA

Ora deixe disso. Eu também tenho!

ROSITA

Por quê?

1ª AYOLA

Para ir ao casamento. Eu, logo que puder, me caso.

Page 46: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIA

Criança!

1ª AYOLA

Com qualquer um. Não quero ficar para tia.

2ª AYOLA

Eu também penso assim.

TIA

(Para a Mãe.) – Que é que a senhora acha?

1ª AYOLA

Ah, Se eu sou amiga de Rosita é porque sei que ela tem noivo! Mulher que não arranja noivo

fica desbotada, murcha, e todas elas. . . (Ao reparar nas Solteironas.) – Bem, todas não,

algumas. Enfim, todas ficam enfezadas!

TIA

Oh! já é bastante.

MÃE

Deixe, deixe.

1ª SOLTEIRONA

Muitas não se casam porque não querem.

2ª AYOLA

Isso eu não acredito.

1ª SOLTEIRONA

(Com intenção.) – Pois eu tenho certeza.

2ª AYOLA

Quem não quer casar não bota pó de arroz, não usa seio postiço debaixo do

peitilho, nem fica noite e dia dependurada no balcão, espiando as pessoas.

1ª SOLTEIRONA

Às vezes gosta de tomar a fresca!

ROSITA

Mas que discussão mais boba! (Riem forçadamente.)

Page 47: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIA

Bem. Por que não tocamos um bocadinho?

MÃE

Vamos menina!

3ª SOLTEIRONA

(Levantando-se.) – Mas que é que eu vou tocar?

2ª AYOLA

Toca Viva Frascuelo!

2ª SOLTEIRONA

A barcarola da Fragata Numância!

ROSITA

Ou então O que dizem as flores!

MÃE

É, sim, O que dizem as flores! (À Tia.) – A senhora já ouviu? Ela canta e acompanha ao

mesmo tempo. Uma maravilha!

3ª SOLTEIRONA

Posso cantar também “Voltarão as escuras andorinhas – de teu balcão os ninhos a habitar”.

1ª AYOLA

Essa não, é muito triste!

1ª SOLTEIRONA

O triste também é bonito. . .

TIA

Vamos! Vamos!

3ª SOLTEIRONA

(Ao piano.)

Mamãe, vem comigo ao campo,

no clarear da alvorada;

quero ver abrir as flores

quando se move a ramada.

Mil flores dizem mil coisas

Page 48: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

para mil enamoradas,

e a fonte lá vai contando

o que o rouxinol não fala.

ROSITA

Já desabrochara a rosa

no clarear da alvorada;

tão rubra de sangue tenro

que o rocio se afastava;

e tão quente sob o talo

que até a brisa inflamava;

tão alta! Como reluz!

Desabrochara!

3ª SOLTEIRONA

“Só em ti ponho meus olhos”,

o heliotrópio declarava;

“não mais te quero na vida”,

exclama a flor de alfavaca.

“Sou tão tímida”; a violeta.

“Eu sou fria”: a rosa branca.

Diz o jasmim: “Serei fiel”,

Diz o cravo: “Apaixonada!”

2ª SOLTEIRONA

É o jacinto amargura,

como é dor a passionária.

1ª SOLTEIRONA

O saramago é desprezo,

os lírios são esperança.

TIA

Diz o nardo: “Sou amigo”;

Page 49: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

“Creio em ti”, a passionária.

Embala-te a madressilva,

a sempre-viva te mata.

MÃE

A sempre-viva da morte,

ai, ó flor das mãos cruzadas!

Ficas tão bem quanto a brisa

chora na tua grinalda!

ROSITA

Já desabrochara a rosa,

mas a tarde eis que chegava,

e um rumor de neve triste

foi-lhe pesando a ramada;

e quando volvia a sombra,

quando o rouxinol cantava,

como que morta de pena,

transida ficou, e alva;

e quando a noite seu grande

corno de metal soprava,

e os ventos entrelaçados

dormiam sobre a montanha,

desfolhou-se suspirando

pelos cristais da alvorada.

3ª SOLTEIRONA

Sobre teus longos cabelos

gemem as flores cortadas.

Umas levam punhaizinhos,

outras fogo, e outra água.

Page 50: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

1ª SOLTEIRONA

As flores têm sua língua

para moças namoradas.

ROSITA

Ciúmes, o carambuco,

e desdém esquivo, a dália;

risadas, a balsamina;

suspiros de amor, o nardo.

As amarelas são ódio,

e furor as encarnadas;

as brancas são casamento

e são as azuis mortalha.

3ª SOLTEIRONA

Mamãe, vem comigo ao campo

no clarear da alvorada;

quero ver abrir as flores quando se move a ramada. . .

(O piano solta a última escala, e silencia.)

TIA

Que maravilha!

MÃE

Elas sabem a linguagem do leque, a linguagem das luvas, a linguagem dos selos, a

linguagem das horas. . . Eu fico até arrepiada quando dizem aquilo:

Page 51: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

As doze batem no mundo

com horríssono rigor.

Da hora da tua morte

não te esqueças, pecador!

1ª AYOLA

(Com a boca cheia de doce.) – Que coisa mais feia!

MÃE

E quando elas dizem

A uma hora nascemos,

lará, lalá,

e este nascer,

lalarã,

é como abrir os olhos,

lã.

em meio a um vergel,

vergel, vergel. . .

2ª AYOLA

(À irmã.) – Eu acho que a velha está de pileque. (À mãe.) – Quer mais um copinho?

MÃE

Com o máximo gosto e fina vontade, como se dizia no meu tempo.

(Rosita tem estado espiando a chegada do Carteiro.)

AMA

Correio!

(Algazarra geral.)

TIA

Page 52: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Chegou a hora!

3ª SOLTEIRONA

Deve ter contado os dias para que a carta chegasse hoje!

MÃE

Foi uma delicadeza!

2ª AYOLA

Abre a carta!

1ª AYOLA

O melhor é você ler sozinha, pode ser que ele tenha escrito alguma coisa inconveniente...

MÃE

Jesus!

(Rosita sai com a carta.)

1ª AYOLA

Carta de noivo não é livro de reza.

3ª SOLTEIRONA

É um livro de rezas de amor. . .

2ª AYOLA

Aí, hem, que espertinha!

(As Ayola riem.)

1ª AYOLA

Está se vendo que nunca recebeu uma. . .

MÃE

Felizmente para ela!

1ª AYOLA

A mim tanto faz.

TIA

(À Ama, que vai entrando com Rosita.) – Aonde você vai?

AMA

Será que não posso dar nem um passo?

Page 53: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIA

Não precisa acompanhá-la!

ROSITA

(Entrando.) – Titia! Titia!

TIA

Que foi, minha filha?

ROSITA

(Agitada.) – Ai, titia!

1ª AYOLA

Que foi?

3ª SOLTEIRONA

Conte para nós!

2ª AYOLA

Que foi?

AMA

Fale!

TIA

Vamos!

MÃE

Um copo d’água!

2ª AYOLA

Venha cá!

1ª AYOLA

Depressa.

(Algazarra.)

ROSITA

(Com voz sumida.) – Ele diz que vai. . . que vai casar comigo, porque não agüenta mais,

porém. . .

2ª AYOLA

(Abraçando-a .) – Olé! Que beleza!

Page 54: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

1ª AYOLA

Um abraço!

TIA

Deixem Rosita falar!

ROSITA

(Mais calma.) – Porém como é impossível para ele vir agora, o casamento vai ser por

procuração, e depois ele vem.

1ª SOLTEIRONA

Meus parabéns!

MÃE

(Quase chorando.) – Deus lhe dê a felicidade que você merece (Abraça-a).

AMA

Bem, mas que vem a ser procuração?

ROSITA

Nada demais. Alguém representa o noivo na cerimônia.

AMA

E que mais?

ROSITA

A gente ficou casada!

AMA

E de noite. . . como é?

ROSITA

Oh meu Deus!

1ª AYOLA

Muito bem dito. E de noite, como é?

TIA

Meninas!

AMA

Page 55: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Ele que venha em pessoa para casar! Procuração! Nunca ouvi falar isso na minha vida! A

cama e suas pinturas, tremendo de frio, e a camisola da noiva no fundo mais escuro do baú!

Senhora, não deixe a procuração entrar nesta casa!

(Todos riem.) – Não senhora, eu não quero essa tal de procuração!

ROSITA

Mas ele vem logo depois. É mais uma prova de que gosta de mim.

AMA

Pois sim! Então, que ele venha, pegue você pelo braço e mexa o açúcar do seu cafezinho! E

prove para ver se está queimando! (Risadas.)

(Aparece o Tio, trazendo uma rosa.)

ROSITA

Titio!

TIO

Eu ouvi tudo, e quase sem sentir colhi a única rosa volúvel que havia na estufa.

Ainda está vermelha:

aberta ao meio-dia,

vermelha que nem coral!

ROSITA

O sal assoma à vidraça

Para vê-la relumear.

TIO

Se demorasse duas horas para colhê-la, você só a teria já branca.

ROSITA

Branca ao jeito de uma pomba,

como a alegria do mar;

branca feito o branco frio

de um rosto moldado em sal.

TIO

Mas tem ainda, sim, tem ainda a brasa da juventude. . .

TIA

Beba um cálice comigo, homem. Hoje é dia para isso.

Page 56: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Algazarra. A 3 ª Solteirona senta-se ao piano e executa uma

polca. Rosita contempla a rosa. A 1 ª e a 2 ª Solteironas

dançam com as Ayola e cantam.)

Porque mulher te vi

lá na beira do mar,

por tua languidez

me punha a suspirar,

e esse dulçor sutil

de uma ilusão fatal

sob o clarão da lua

o viste naufragar.

(Tio e Tia dançam. Rosita dirige-se ao par formado pela 2 ª

Solteirona e pela 2 ª Ayola. Dança com aquela. A Ayola bate

palmas ao ver os velhos, e a Ama, entrando, faz o mesmo.)

P a n o

TERCEIRO ATO

Sala térrea, com janelas de persianas verdes abrindo para o jardim do

Carmo. Há silêncio no palco. O relógio bate as seis da tarde. A Ama cruza a cena,

carregando uma caixa e uma mala. Passaram-se dez anos. Aparece a Tia e senta-

se numa cadeira baixa, no centro. Silêncio. O relógio repete as horas. Pausa.

AMA

(Entrando.) – A repetição das seis.

TIA

E a menina?

AMA

Page 57: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Lá em cima, no sótão. E a senhora, onde estava?

TIA

Tirando os últimos vasos da estufa.

AMA

Não vi a senhora esta manhã.

TIA

Desde que faleceu meu marido, a casa ficou tão vazia que parece ter o dobro do

tamanho de antigamente, e a gente precisa se procurar dentro dela. Há noites em

que, tossindo no meu quarto, o eco responde como se eu estivesse na Igreja. . .

AMA

É verdade, esta casa ficou grande demais!

TIA

E depois. . . Se ainda estivesse vivo, com aquela lucidez que ele tinha, aquela

inteligência. . . (Quase chorando.)

AMA

(Cantando.) – Laralá, laralá. . . Não senhora, chorar eu não admito. Há seis anos

que ele morreu, e não quero que a senhora continue como no primeiro dia. Já

choramos bastante por ele. Vamos tocar para a frente, minha senhora! É preciso

cantar, viver a vida! Ainda havemos de passar muitos anos apanhando rosas!

TIA

(Levantando-se.) – Já estou muito velhinha, Ama. E perdemos tudo que tínhamos. .

.

AMA

Não há de nos faltar nada. Velha eu também estou.

TIA

Tomara Deus que eu tivesse a sua idade!

AMA

A gente não combina muito, mas eu cá, de tanto trabalhar, estou bem azeitada, ao

passo que a senhora, com sua vida folgada, ficou com as pernas endurecidas. . .

TIA

Page 58: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Então você acha que eu não trabalhei?!

AMA

Na pontinha dos dedos, com fios de linha, doces, talos de plantas. Mas esta aqui

trabalhou com o lombo, com os joelhos, com as unhas!

TIA

Então, dirigir uma casa não é trabalhar?

AMA

Esfregar o chão é muito mais duro!

TIA

Não quero discutir.

AMA

Pois olhe: é bom para matar o tempo. Vamos, me responda. Mas nós duas ficamos

de bico lacrado. Antigamente a gente berrava: porque isto, porque aquilo mais,

porque o doce de ovos, porque se você não passar a roupa. . .

TIA

Eu já estou entregue. . . Com um caldinho hoje, um pedaço de pão amanhã, um

gole d’água e meu rosário no bolso, eu esperava a morte com dignidade. . . Mas

quando penso em Rosita!

AMA

Aí é que está a ferida!

TIA

(Excitada.) – Quando penso na maldade que lhe fizeram, nesse engano terrível, na

falsidade do coração desse homem, que não é de minha família, nem merece ser de

minha família, eu queria ter vinte anos para tomar um vapor e chegar a Tucumã e

pegar um chicote. . .

AMA

(Interrompendo-a .) – E pegar de uma espada e cortar a cabeça dele e amassá-la e

amassá-la entre duas pedras e cortar aquela mão do falso juramento e das cartas de

carinho fingido!

TIA

É, é. Devia pagar com sangue o que sangue custou, embora tudo seja sangue meu,

e depois. . .

Page 59: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

AMA

Jogar as cinzas no mar!

TIA

Ressuscitá-lo e trazê-lo com Rosita, para respirar satisfeita com a honra dos meus.

AMA

Agora a senhora me dá razão.

TIA

Dou, sim.

AMA

Lá ele encontrou a moça rica que andava procurando e casou com ela, mas devia

ter dito isso em tempo. Pois quem é que quer agora essa mulher? Já está passada!

Senhora, a gente não podia escrever uma carta envenenada para ele morrer de

repente quando abrisse o envelope?

TIA

Que coisa! Já está casado há oito anos, e até o mês passado o canalha não me

escreveu contando a verdade. Eu notava alguma coisa nas cartas; a tal procuração

que não vinha, um jeito esquisito. . . Não tinha coragem, mas afinal contou. Claro

que depois de o pai ter morrido! E essa criatura. . .

AMA

Psiu!

TIA

E guarde os dois potes de conserva.

(Aparece Rosita, vestida de rosa-claro, como em 1910. Usa

cachos e está muito envelhecida.)

AMA

Menina!

ROSITA

Que estão fazendo?

AMA

Falando um pouquinho da vida alheia. E você, onde vai?

Page 60: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

ROSITA

Vou à estufa. Já tiraram os vasos?

TIA

Faltam poucos.

(Sai Rosita. As duas mulheres enxugam lágrimas.)

AMA

Mas como é? A senhora sentada aí e eu aqui sentada? E tocam a defunto? E não

existe lei? Não há uns paus de lenha para tocar fogo nele?

TIA

Cale a boca! Pare com isso!

AMA

Eu não tenho paciência para aguentar essas coisas! Meu coração começa a disparar

no peito que nem cachorro perseguido. Senti muito quando enterrei meu marido,

mas no fundo o que eu sentia era uma alegria grande. . . alegria não, umas batidas

diferentes, ao ver que o enterrado não era eu. Quando enterrei minha filha. . . a

senhora me entende? Quando enterrei minha filha, foi como se estivessem pisando

em minhas entranhas, mas quem morreu, morreu. Estão mortos, vamos chorar.

Depois, tapa-se a cova e vamos viver! Mas esse caso de minha Rosita é pior. É

querer e não encontrar corpo; é chorar e não saber por quê; é suspirar por alguém

que a gente sabe que não merece os suspiros. É uma ferida aberta, escorrendo sem

parar um fiozinho de sangue, e não há ninguém neste mundo para trazer um

algodão, uma atadura, um pedacinho de gelo. . .

TIA

Que é que você quer que eu faça?

AMA

Ir na correnteza.

TIA

Na velhice, tudo nos vira as costas.

AMA

Enquanto esta aqui tiver braços, nada lhe faltará.

TIA

Page 61: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

(Pausa. Baixinho, como envergonhada.) – Ama, eu não posso pagar seu ordenado!

Você terá de ir embora.

AMA

Ui! Que arzinho é esse que está entrando pela janela? Ui! Ou será que eu estou

ficando surda? Porque. . . E essa vontade que eu sinto de cantar? Que nem menino

quando sai da escola! (Ouvem-se vozes infantis.) – A senhora está ouvindo? Minha

senhora, mais senhora do que nunca! (Abraça-a )

TIA

Escute uma coisa.

AMA

Vou cozinhar. Um guisado de peixe temperado com funcho. . .

TIA

Escuta!

AMA

E monte-nevado! Vou lhe fazer um monte-nevado com pastilhas de cor. . .

TIA

Mulher!

AMA

(Gritando.) – É o que lhe digo! Mas está aí Dom Martim! Dom Martim, pode

entrar! Vamos! Venha distrair um pouco a patroa.

(Sai rapidamente. Entra Dom Martim. É um velho de

cabelos ruivos. Usa muleta por causa da perna

encolhida. Tipo nobre, de grande dignidade, com ar de

tristeza definitiva.)

TIA

Bons olhos o vejam!

MARTIM

Então, quando é a arrancada final?

TIA

Page 62: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Hoje.

MARTIM

Que é que se há de fazer?

TIA

A casa nova não é igual a esta. Mas tem boa vista e um patiozinho com duas

figueiras, onde a gente pode plantar flores.

MARTIM

Antes assim. (Sentam-se.)

TIA

E o senhor ?

MARTIM

A vida de sempre. Acabei de dar minha aula de Preceptiva. Um verdadeiro inferno!

O ponto era admirável: “Conceito e definição de Harmonia”, mas os alunos pouco

estão ligando a isso. E que meninos! A mim, por ser aleijado, ainda respeitam um

pouquinho. Só de vez em quando um alfinete na cadeira, um bonequinho nas

costas. Mas com os meus colegas fazem coisas horríveis! São filhos de gente rica,

e como eles pagam, não podemos castigá-los. É o que nos diz sempre o diretor.

Ontem cismaram que o coitado do senhor Canito, novo professor de geografia, usa

espartilho, porque anda meio empertigado. . . Quando ele estava sozinho no pátio,

reuniram-se os grandalhões e os internos, arrancaram-lhe a roupa da cintura para

cima, amarraram-no a uma coluna do corredor, e atiraram-lhe do balcão um jarro

d’água!

TIA

Pobrezinho!

MARTIM

Todos os dias eu entro no colégio tremendo, à espera do que irão fazer-me,

embora, como disse, respeitem minha infelicidade. Ainda há pouco houve um

escândalo enorme, porque o senhor Consuegra, que ensina latim admiravelmente,

encontrou excremento de gato sobre a lista de chamada!

TIA

São uns demônios!

MARTIM

Page 63: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Eles pagam e vivemos à custa deles. E acredita a senhora que os pais acham graça

em suas infâmias? Como somos assistentes e não iremos examinar seus filhos, eles

nos consideram homens desprovidos de sentimento, pessoas situadas na última

categoria dos que usam gravata e colarinho engomado. . .

TIA

Ah, Dom Martim, que mundo este!

MARTIM

Que mundo! Meu sonho era ser poeta. Uma ocasião, deram-me uma flor natural, e

eu escrevi um drama que nunca pôde ser representado. . .

TIA

A filha de Jefté?

MARTIM

Esse mesmo!

TIA

Eu e Rosita lemos a peça. O senhor nos emprestou. Lemos umas quatro ou cinco

vezes!

MARTIM

(Com ansiedade.) – E então?. . .

TIA

Gostei muito. Já disse ao senhor várias vezes. Principalmente quando ela vai

morrer, se lembra da mãe e começa a chamá-la. . .

MARTIM

Forte, não é mesmo? Um verdadeiro drama. Um drama que tem forma e conceito.

Nunca pôde ser representado. (Começando a recitar.)

Ó mãe excelsa! Volve esses teus olhos

àquela que em torpor, triste, se abate.

Recebe tu as fúlgidas alfaias

e o hórrido estertor de meu combate!

Será que isto está mau? Então não soa bem, no acento e na cesura, este verso:

e o hórrido estertor de meu combate!

Page 64: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIA

Lindo! Lindo!

MARTIM

E quando Glucínio vai se encontrar com Isaías e levanta o pano da tenda. . .

AMA

(Interrompendo-a ) – Boa tarde.

(Entram dos Carregadores, vestidos de baeta.)

1 º CARREGADOR

Boa tarde.

MARTIM E TIA

(Juntos.) – Boa tarde.

AMA

É este! (Mostra um divã, no fundo da sala.)

(Os homens carregam-no lentamente, como se transportassem

um ataúde. A Ama acompanha-os. Ouvem-se duas badaladas,

enquanto os Homens saem com o divã.)

MARTIM

Será a novena de Santa Gertrudes Magna?

TIA

É, sim, em Santo Antônio.

MARTIM

É tão difícil ser poeta! (Saem os Homens.) – Depois, eu quis ser farmacêutico. É

uma vida tranqüila.

TIA

Meu irmão, que Deus tenha em sua glória, era farmacêutico.

MARTIM

Mas não pude. Tinha de ajudar minha mãe, e me tornei professor. É por isso que eu

invejava tanto o seu marido. Aquele foi o que queria ser.

TIA

Page 65: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

E isto lhe custou caro!

MARTIM

Sim, mas o meu caso é pior.

TIA

Mas o senhor continua escrevendo.

MARTIM

Nem sei porque é que eu escrevo, se não tenho mais ilusões, mas ainda assim

escrever é a única coisa que me agrada. A senhora leu o meu último conto, no

segundo número da Mentalidade Granadina?

TIA

O aniversário de Matilde? Li, sim. É uma beleza!

MARTIM

Verdade, mesmo? Nele procurei me renovar, fazendo uma coisa de ambiente

moderno. Até falo em aeroplano! É claro que temos de nos modernizar. Mas o de

que gosto mais é de meus sonetos.

TIA

Às nove musas do Parnaso!

MARTIM

Às dez, às dez. Não se lembra de que chamei Rosita de musa número 10?

AMA

(Entrando.) – Patroa, me ajude a dobrar este lençol. ) As duas começam a dobrá-

lo.) Esse Dom Martim com seu cabelinho ruivo! Por que foi que não se casou,

homem de Deus? Não acabaria assim sozinho na vida!

MARTIM

Não me quiseram!

AMA

É porque não há mais bom gosto hoje em dia. Com essa maneira de falar cheia de

nove-horas, que o senhor tem!

TIA

Quem sabe se você quer namorar Dom Martim?

Page 66: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

MARTIM

Experimente!

AMA

Quando ele dá aula na sala térrea do colégio, eu vou à carvoaria para escutar aquele

negócio assim: “Que é idéia? Idéia é a representação intelectual de uma coisa ou

um objeto.” Não é assim mesmo?

MARTIM

Olhem para ela! Vejam só!

AMA

Ontem ele dizia assim, em voz alta: “Não senhor! Aqui há um hipérbaton!” e logo

depois: “porque epinício. . .” Eu gostaria de entender, mas como não entendo nada,

me dá vontade de rir, e o carvoeiro, que está sempre lendo um livro chamado As

ruínas de Palmira, olha para mim com um ar de onça furiosa. Mas embora eu ria

como uma ignorante, sei que Dom Martim é um homem de muito valor!

MARTIM

Hoje não se dá mais valor à Retórica e à Poética, nem à cultura universitária. . .

(A Ama sai rapidamente, com o lençol dobrado.)

AMA

Que se há de fazer? Resta-nos pouco tempo no teatro da vida.

MARTIM

E temos de empregá-lo na bondade e no sacrifício.

(Ouvem-se vozes.)

TIA

Que será?

AMA

(Aparecendo.) – Dom Martim, vá para o colégio, que os meninos furaram o

encanamento com um prego, e as salas todas estão inundadas!

MARTIM

Page 67: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Já vou! Sonhei com o Parnaso e tenho que servir de pedreiro e bombeiro! Desde

que não me empurrem nem eu escorregue. . . (A Ama ajuda-o a levantar-se.)

(Ouvem-se vozes.)

AMA

Já vai! Um pouco de calma! Ah, se a água subisse até não sobrar mais nem um

menino vivo!

MARTIM

(Saindo.) – Louvado seja Deus!

TIA

Coitado, que sorte a dele!

AMA

Mire-se nesse espelho. Ele mesmo engoma seus colarinhos e cerze suas meias.

Quando esteve doente e eu lhe dei o doce de ovos, a cama dele tinha uns lençóis

pretos que nem carvão, e as paredes, o lavatoriozinho. . . Ai, meu Deus!

TIA

E outros com tanta coisa!

AMA

Por isso hei de dizer sempre: Amaldiçoados sejam os ricos! Que eles fiquem sem

unhas nas mãos!

TIA

Deixe os ricos para lá!

AMA

Mas eu tenho certeza de que eles vão de cabeça para o inferno! Onde é que a

senhora imagina que esteja Dom Rafael Salé, aquele explorador dos pobres,

enterrado anteontem? Deus terá perdoado a ele, com tanto padre e tanta freira e

tanta ladainha? Está no inferno! Não adianta ele dizer: “Eu tenho vinte milhões de

pesetas, não me apertem com essas tenazes! Dou a vocês quarenta mil duros se me

tirarem essas brasas dos pés!” Mas os demônios, hum! tiçonada daqui, tiçonada

dali, pontapé que te quero, bofetadas na cara, até o coração dele virar carvão!

TIA

Nós, cristãos, sabemos que rico nenhum entra no reino dos céus, mas quem sabe se

você, falando desse modo, não vai também parar de cabeça no inferno?

Page 68: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

AMA

No inferno, eu?! Com o primeiro empurrão que eu der na caldeira de Pedro

Botelho, faço a água quente chegar até os cafundós do Judas! Não senhora, eu não.

Eu cá entro no céu à força. (Docemente.) – Com a senhora. As duas sentadas em

poltronas de seda azul-celeste, e com leques de cetim grená. . . Entre nós duas,

num balanço de cordas de jasmim e de alecrim, Rosita balançando, e atrás o

marido da senhora todo coberto de rosas, como saiu desta sala em seu caixão: com

o mesmo sorriso, a mesma cabeça branca que nem feita de cristal, e a senhora vai

se mexendo assim, e eu assim e Rosita assim, e atrás o patrão nos atirando rosas

como se fôssemos um oratório de nácar, cheio de enfeites e de velas. . .

TIA

E os lenços para enxugar lágrima, que fiquem aqui por baixo, não é mesmo?

AMA

Ora, eles que se amofinem. Para nós, vai ser uma pândega celestial!

TIA

Mesmo porque já não nos resta uma só alegriazinha no coração. . .

1 º CARREGADOR

E agora?

AMA

Venham cá. (Entram. Da porta.) – Coragem!

TIA

Deus a abençoe! (Senta-se lentamente.)

(Aparece Rosita, com um pacote de cartas na mão. Silêncio.)

AMA

Já levaram a cômoda?

ROSITA

Agora mesmo. Sua prima Esperança mandou um menino buscar a chave de fenda.

TIA

Com certeza estão armando as camas para esta noite. Devíamos ter ido cedo e

arranjado as coisas a nosso gosto. Com certeza ela colocou os móveis de qualquer

maneira.

Page 69: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

ROSITA

Pois eu acho preferível sairmos daqui com a rua às escuras. Se pudesse, apagava a

lâmpada do poste. De qualquer modo, os vizinhos estarão espreitando: com a

mudança, a porta da rua esteve o dia inteiro cheia de garotinhos, como se houvesse

defunto em casa.

TIA

Se eu soubesse, não teria consentido de modo nenhum que seu tio hipotecasse esta

casa, com móveis e tudo mais. O que tiramos é o mínimo: a poltrona para sentar, a

cama para dormir.

ROSITA

Para morrer.

TIA

Boa peça nos pregaram! Amanhã chegam os novos donos. Eu gostaria que seu tio

nos visse. Aquele velho idiota! Tímido em negócios, e apaixonado pelas rosas!

Homem sem noção de dinheiro! Foi se encalacrando dia a dia. “Fulano está aí.” E

ele: “Mande entrar.” E fulano entrava com as algibeiras vazias e saía com elas

transbordando! E sempre: “Minha mulher não pode saber.” Perdulário! Bobo! Não

havia calamidade que ele não remediasse, nem criança que não amparasse, porque.

. . porque tinha o coração maior que já houve na terra!. . . a mais pura alma cristã. .

. Não, não, cala-te, velha! Cala-te, faladeira, e respeita a vontade de Deus! Estamos

arruinadas! Muito bem, não se fala mais nisso. . . Mas estou vendo você. . .

ROSITA

Não se preocupe comigo, titia. Eu sei que ele fez a hipoteca para comprar meus

móveis e meu enxoval, isso é que me dói.

TIA

Pois ele fez muito bem. Você merece tudo. E tudo que compramos é digno de

você. E o dia em que você usá-lo será um dia lindíssimo.

ROSITA

O dia em que eu usar?

TIA

Claro! O dia do seu casamento.

ROSITA

Não me obrigue a falar. . .

Page 70: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIA

É o defeito das mulheres decentes desta terra. Não falar! Não falamos, e temos que

falar. (Gritando.) — Ama, o correio já passou?

ROSITA

Que é que a senhora está querendo?

TIA

Que você veja como eu vivo, para aprender.

ROSITA

(Abraçando-a) – Não diga mais nada. . .

TIA

Pelo menos tenho que falar alto. Saia de suas quatro paredes, minha filha. Não se

entregue à sua infelicidade.

ROSITA

(Ajoelhada diante dela.) – Eu já me acostumei a viver muitos anos fora de mim,

pensando em coisas que estavam longe. Agora que essas coisas já não existem,

continuo dando voltas e mais voltas por um lugar frio, buscando uma saída que não

hei de encontrar nunca. Eu sabia de tudo. Sabia que ele tinha se casado; uma alma

caridosa se encarregou de me contar, e eu recebia as cartas dele com uma ilusão

cheia de soluços, que até a mim mesma espantava. Se os outros não tivessem

falado; se vocês não tivessem sabido; se ninguém mais além de mim soubesse, as

cartas e as mentiras dele teriam alimentado minha ilusão como no primeiro ano de

sua ausência. Mas toda gente sabia, e era como se eu vivesse apontada por um

dedo que tornava ridículo meu recato de noiva e dava um ar grotesco a meu leque

de solteira. . . Cada ano que passava, era como uma peça de roupa íntima que me

arrancassem do corpo. Uma amiga se casa, depois outra, e mais outra, amanhã uma

delas tem um filho, o filho cresce e vem me mostrar suas notas de exame, e fazem

casas novas e novas canções, e eu na mesma, com o mesmo tremor, o mesmo; eu

na mesma que antes, colhendo os mesmos cravos, olhando para as mesmas nuvens;

e um dia vou ao jardim da praça e vejo que não conheço mais ninguém; moças e

rapazes vão me deixando para trás, porque me canso, e um diz: “Lá vem a

solteirona”; e outro, bonito, de cabelo anelado, comenta: “Nessa ninguém mais

ferra o dente”. Eu ouço e não posso gritar, e vamos adiante, com a boca cheia de

veneno e uma vontade louca de fugir, de tirar os sapatos, de ir descansar, de não

me mover mais, nunca mais, de meu canto!

TIA

Rosita, minha filha!

Page 71: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

ROSITA

Já estou velha. Ontem ouvi a Ama dizer que ainda posso me casar. De jeito

nenhum. A senhora nem pense nisso. Já perdi a esperança de casar com aquele de

quem gostava de todo o coração. De quem gostava. . . e de quem gosto. Está tudo

acabado. . . Pois mesmo assim, com a ilusão inteiramente perdida, eu me deito e

me levanto com o mais terrível dos sentimentos, o sentimento da esperança morta.

Quero fugir, quero deixar de ver, quero ficar serena, vazia. . . Será que uma pobre

mulher não tem direito a respirar com liberdade? Apesar de tudo, a esperança me

persegue, me ronda, me morde, como um lobo agonizante mas que crava as presas

uma última vez.

TIA

Por que você não fez caso do que eu lhe dizia? Por que não se casou com outro?

ROSITA

Eu estava presa a ele, e além disso, que homem sincero e apaixonado entrou nesta

casa para obter meu carinho? Nenhum.

TIA

Você não fazia caso deles. Parecia enfeitiçada.

ROSITA

Sempre fui séria.

TIA

Você se aferrou a uma idéia sem ver a realidade, sem pensar no seu futuro.

ROSITA

Eu nasci assim e não posso mudar. Agora, a única coisa que me resta é a minha

dignidade. O que se passa aqui dentro, guardo para mim só.

TIA

Isso é que eu não quero.

AMA

Aparecendo subitamente.) – Nem eu também! Você fala, desabafa, nós três nos

fartamos de chorar, e repartimos o sentimento.

ROSITA

Page 72: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

E que é que eu vou dizer a vocês? Há coisas que a gente não pode dizer, porque

não há palavras para dizê-las; e se houvesse, ninguém entenderia o significado.

Vocês me entendem se eu pedir pão e água, até mesmo um beijo, mas nunca

poderiam entender nem tirar essa mão escura que não sei se me esfria ou me abrasa

o coração, toda vez que fico sozinha.

AMA

Já está dizendo alguma coisa.

TIA

Para tudo existe consolo. . .

ROSITA

Seria uma história sem fim. Eu sei que meus olhos serão sempre moços, e sei que

meus ombros se irão curvando dia a dia. Afinal de contas, o que se passou comigo

já se passou com mil mulheres. (Pausa.) – Mas por que estou eu falando de tudo

isso? (Para a Ama.) – Você aí, vá arrumar as coisas, que dentro de alguns minutos

sairemos desta Quinta. E a senhora, titia, não se preocupe comigo. (Pausa. Para a

Ama.) – Vamos! Não gosto que me olhem assim. Esses olhares de cão fiel me

aborrecem. (Sai a Ama.) – Esses olhares de pena me perturbam, me põem irritada!

TIA

Minha filha, que é que você quer que eu faça?

ROSITA

Me deixar como coisa perdia. (Pausa. Anda de um lado para outro.) 0 Já sei que a

senhora está se lembrando de sua irmã solteirona. . . solteirona como eu. Era azeda,

odiava as crianças e qualquer moça que pusesse vestido novo. . . mas eu não vou

ser assim não. (Pausa.)

Me perdoe.

TIA

Que bobagem!

(Aparece ao fundo da sala um Rapaz de dezoito anos.)

ROSITA

Entre.

RAPAZ

Mas estão de mudança?

Page 73: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

ROSITA

Daqui a alguns minutos. Ao anoitecer.

TIA

Quem é?

ROSITA

O filho da Maria.

TIA

Que Maria?

ROSITA

A mais velha das três manolas.

TIA

Ah!

As que sobem para o Alhambra,

três ou quatro, sempre sós. . .

Desculpe, meu filho, a falta de memória.

RAPAZ

A senhora me viu tão poucas vezes. . .

TIA

É verdade, mas eu gostava muito de sua mãe. Era tão engraçadinha! Morreu na

mesma ocasião que meu marido.

ROSITA

Antes.

RAPAZ

Há oito anos.

ROSITA

É a cara dela.

RAPAZ

(Alegre.) – Um pouquinho pior. . . A minha foi feita a martelo.

Page 74: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIA

E as mesmas pilhérias, o mesmo espírito.

RAPAZ

De fato, eu me pareço muito com ela. No carnaval, usei um vestido de mamãe. . .

um vestido verde, feito para o aniversário de vovó. . .

ROSITA

(Melancólica.) – Com laços pretos. . . e pregas de seda verde-anil.

RAPAZ

É, sim.

ROSITA

E um lação de veludo na cintura.

RAPAZ

Esse mesmo.

ROSITA

Que caía de um e outro lado das cadeiras. . .

RAPAZ

Exato. Que moda mais engraçada! (Ri.)

ROSITA

(Tristonha.) – Era tão bonita, essa moda!

RAPAZ

Não diga isso! Pois eu saí morrendo de rir, dentro daquela velharia, enchendo o

corredor com cheiro de cânfora, quando minha tia começou a chorar amargamente,

dizendo que era igualzinho como se estivesse vendo mamãe. Eu me impressionei, é

lógico, e larguei o vestido e a máscara em cima da cama.

ROSITA

Não há nada mais vivo do que uma recordação. Elas chegam a tornar impossível a

vida da gente. Por isso eu compreendo muito bem essas velhinhas bêbadas que vão

pelas ruas querendo apagar o mundo e se sentam, cantando, nos bancos da praça.

TIA

Page 75: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Como vai sua tia casada?

RAPAZ

Mora em Barcelona. Escreve cada vez menos.

ROSITA

Tem filhos?

RAPAZ

Quatro.

(Pausa.)

AMA

(Entrando.) – A senhora me dê as chaves do armário. (A Tia entrega-lhe as chaves.

Diante do rapaz.) – Esse moço aqui, estava ontem com a namorada. Eu vi os dois

na Praça Nova. Ela queria ir para outro lado, e ele não deixava. (Ri.)

TIA

Não caçoe desse menino!

RAPAZ

(Encabulado.) – Nós estávamos brincando. . .

AMA

Não precisa ficar vermelho! (Vai saindo.)

ROSITA

Vamos, cale essa boca!

RAPAZ

Que jardim mais lindo têm as senhoras!

ROSITA

Tínhamos.

TIA

Pois vá lá e apanhe umas flores.

RAPAZ

Passe bem, dona Rosita.

Page 76: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

ROSITA

Vá com Deus, meu filho! (Saem. A tarde vai caindo.) – Dona Rosita! Dona Rosita!

De manhã cedo, ao abrir-se,

rubra como sangue está.

Pela tarde fica branca,

de um branco de espuma e sal.

Quando a noite vem baixando,

principia a desfolhar-se. . .

(Pausa.)

AMA

(Entra com um xale.) – Em marcha!

ROSITA

É, vou botar um agasalho.

AMA

Como eu já tirei o cabide, ele está pendurado no puxador da janela.

(Entra a 3 ª Solteirona, vestida de escuro, com véu de

luto na cabeça, e a fita no pescoço que se usava em

1912. Falam baixo.)

3 ª SOLTEIRONA

Ama!

AMA

Por um pouco não nos encontrava mais aqui.

3 ª SOLTEIRONA

Eu ia dar uma aula de piano aqui perto, e passei para ver se precisavam de alguma

coisa.

AMA

Deus lhe pague!

3 ª SOLTEIRONA

Page 77: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

Que coisa mais triste!

AMA

É, sim, mas não remexa no meu coração, não me tire a gaze da ferida, pois sou eu

que tenho de dar ânimo aos outros, neste luto sem defunto que a senhora está

vendo.

3 ª SOLTEIRONA

Eu gostaria de cumprimentá-las.

AMA

Mas é melhor não estar com elas. Vá nos visitar na outra casa!

3 ª SOLTEIRONA

É melhor mesmo. Mas se faltar alguma coisa, já sabe: o que estiver ao meu

alcance, disponham.

AMA

Isso tudo passa.

(Ouve-se o vento.)

3 ª SOLTEIRONA

Chi, está ventando!

AMA

É, parece que vai chover.

(Sai a 3 ª Solteirona.)

TIA

(Entra.) – Se esse vento continua, não sobra nem uma rosa no pé. Os ciprestes da

praça estão quase batendo as paredes do meu quarto. Como se alguém quisesse

estragar o jardim para a gente não ter pena de deixá-lo.

AMA

Se bem que bonito, bonito mesmo ele nunca foi. Botou seu agasalho? E esse

lenço? Assim, bem coberta. (Coloca-o) – Bem, quando nós chegarmos, a comida á

está prontinha. A sobremesa é um pudim de que a senhora gosta. Um pudim

dourado que nem uma cravina amarela. (A voz da Ama é velada por profunda

emoção.)

(Ouve-se uma pancada.)

Page 78: Lorca - Dona Rosita, A Solteira

TIA

É a porta da estufa, Por que é que você não vai fechá-la?

AMA

Ela não fecha mais, por via da umidade.

TIA

Vai ficar batendo a noite inteira.

AMA

Mas nós não vamos ouvir!. . .

(A sala envolve-se em doce penumbra de entardecer.)

TIA

Eu, não. Eu vou ouvir.

(Aparece Rosita. Vem pálida vestida de branco, com

uma capa que chega até a barra da saia.)

AMA

(Corajosa.) – Vamos embora!

ROSITA

(Com voz fraca.) – Está chovendo. Assim não haverá ninguém nos balcões, para

nos ver sair.

TIA

É melhor assim.

ROSITA

(Vacila um pouco, apóia-se numa poltrona e cai, amparada pela Ama e pela Tia,

que impedem o seu desfalecimento completo.)

Quando a noite vem baixando,

principia a desfolhar-se. . .

(Saem. A sala fica vazia. Ouve-se o bater da porta. Logo se abre um balcão ao

fundo, e as cortinas alvas oscilam ao vento.)

P a n o

F I M