Lott - Entrevista Cpdoc

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC) Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo. LOTT, Henrique Batista Duffles Teixeira. Henrique Teixeira Lott (depoimento, 1978). Rio de Janeiro, CPDOC, 2002. HENRIQUE TEIXEIRA LOTT (depoimento, 1978) Rio de Janeiro 2002

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Entrevista do marechal Lott ao CPDOC.

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  • FUNDAO GETULIO VARGAS

    CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL (CPDOC)

    Proibida a publicao no todo ou em parte; permitida a citao. A citao deve ser textual, com indicao de fonte conforme abaixo.

    LOTT, Henrique Batista Duffles Teixeira. Henrique Teixeira Lott (depoimento, 1978). Rio de Janeiro, CPDOC, 2002.

    HENRIQUE TEIXEIRA LOTT (depoimento, 1978)

    Rio de Janeiro 2002

  • Henrique Teixeira Lott

    Ficha Tcnica

    tipo de entrevista: histria de vida entrevistador(es): Ignez Cordeiro de Farias; Paulo Csar Farah levantamento de dados: Ignez Cordeiro de Farias; Paulo Csar Farah pesquisa e elaborao do roteiro: Ignez Cordeiro de Farias; Paulo Csar Farah sumrio: Ignez Cordeiro de Farias conferncia da transcrio: Ignez Cordeiro de Farias copidesque: Paulo Csar Farah tcnico de gravao: Clodomir Oliveira Gomes local: Rio de Janeiro - RJ - Brasil data: 20/10/1978 a 21/11/1978 durao: 7h 55min fitas cassete: 08 pginas: 181 Entrevista realizada no contexto da pesquisa "Trajetria e desempenho das elites polticas brasileiras", parte integrante do projeto institucional do Programa de Histria Oral do CPDOC, em vigncia desde sua criao, em 1975. temas: Eleies Presidenciais, Exrcito, Governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), Henrique Teixeira Lott, Militares, Militares e Estado, Poltica Nacional, Revolta de Aragaras (1959), Revolta de Jacareacanga (1956), Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

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    Sumrio

    1 Entrevista: local de nascimento; Colgio Militar; influncia da famlia na escolha da carreira; famlia; formao; a profisso militar; diferenas regionais e econmicas no Brasil; Escola Militar do Realengo; Escola Militar da Praia Vermelha e a Revolta de 1904; Marechal Hermes; militares candidatos presidncia da Repblica; os presidentes militares; problemas brasileiros. 2 Entrevista: Escola Militar do Realengo; aspirante no 56 Batalho de Caadores, na praia Vermelha; voluntariado no Exrcito; o Contestado; general Setembrino de Carvalho; a profisso militar; a poltica e o Exrcito; a Escola Militar na Revoluo de 30; Revolta de 1922; no Servio Geogrfico Militar; Misso Militar Francesa; os jovens turcos; armas e munies no Exrcito. 3 Entrevista: Revoluo de 30 e a Escola Militar do Realengo; comportamento militar do entrevistado; eleies de 1955 e de 1930; conseqncias da Revoluo de 30; promoes para o Exrcito, Estado-Maior do Exrcito e o Ministrio da Guerra; Misso Militar Francesa; general Gis Monteiro; foras pblicas estaduais. 4 Entrevista: professor da Escola de Estado-Maior (1934); no comando do 18 Batalho de Caadores (35); o coronel Newton Cavalcanti e a crise poltica em Mato Grosso; subdiretor de ensino da Escola de Infantaria na Vila Militar do Rio de Janeiro; infiltrao comunista no Exrcito em 1935; os sargentos do Exrcito; Exrcito e poltica; Prestes e os ideais revolucionrios; comunismo e integralismo no meio militar; promoes; na subcomisso de compra de armas automticas (Copenhague, 1936); indstria de armas e munies no Brasil; indstria e segurana nacional; na Escola Superior de Guerra de Paris (1937-39); a Alemanha e o Exrcito brasileiro; a Segunda Guerra Mundial e suas repercusses no Brasil; organizao do corpo expedicionrio brasileiro; o Estado Novo; o militar e o governo constitudo; general Dutra; o Brasil e a Segunda Guerra Mundial; na Itlia durante a guerra. 5 Entrevista: consultado sobre o golpe em 1945; promoes; na comisso de promoes do Exrcito; tentativa de impedir a posse de Vargas (50); o Clube Militar; monoplio estatal do petrleo; tentativa de envio de tropas brasileiras Coria; crises polticas de agosto de 1954 e de novembro de 1955; no Ministrio da Guerra, no governo Caf Filho; Carlos Lacerda; Joo Goulart; discurso de Mamede no enterro do general Canrobert; Movimento Militar Constitucionalista. 6 Entrevista: ministro da Guerra no governo Juscelino; conspiraes na Aeronutica; Juscelino Kubitschek; promoes nas foras armadas; o voluntariado e o servio militar obrigatrio; a espada de ouro; voto do analfabeto e eleies; cdula nica; eleies presidenciais de 1955; poltica e polticos no Brasil; Clube Militar; Juarez Tvora; a Frente de Novembro e o Clube da Lanterna; contatos tentando induzir o entrevistado a agir contra o governo Jango; candidatura presidncia da Repblica e a campanha eleitoral; Juscelino e a candidatura Lott; a priso do neto.

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    1 Entrevista: 20.10.1978

    P.F. Marechal, primeiramente, gostaramos que o senhor nos contasse alguma coisa sobre a sua infncia, suas origens familiares e sua opo pela carreira militar.

    H.L. Nasci em Stio, Minas Gerais, uma estao prxima de Barbacena, e que hoje tem o nome de Antnio Carlos. Stio est a mais de mil metros de altitude e, como todo o estado, no se pode dizer uma regio montanhosa, mas coberta de morros, com pouco mato e de vegetao rasteira. Passei nesta cidade pequena parte da minha vida. Minha me era professora, e logo viemos morar no Rio, onde ela assumiu a funo de diretora de escola. Moramos primeiramente na rua do Costa, no prprio edifcio escolar, transferindo-nos depois para a rua Santos Rodrigues, no Estcio, e finalmente para a rua da Matriz, em 1904.

    Ingressei no Colgio Militar com dez anos de idade. Fiz aniversrio em novembro e em maro me matriculei, inicialmente como interno, passando a semana no colgio e vindo aos sbados para casa. Acho que esta opo pela carreira das armas est relacionada com o fato de meus antepassados terem sido militares. Uma espcie de hereditariedade. Meu bisav, que era filho de um commodore da Marinha britnica, foi coronel do Exrcito ingls e combateu no Canad contra a Frana. Seu filho, porm, Eduardo Williams Jacobson Lott, no conseguiu matricular-se na Escola Militar, porque no tinha altura suficiente, tendo por isso interrompido seus estudos e emigrado para o Brasil.

    Meu av materno, Joo Batista da Costa Teixeira, tinha vontade que eu fosse para a Marinha. Ele tinha um primo irmo, que era almirante em Portugal e esperava que eu o encontrasse na viagem de circunavegao, que se faz ao fim do curso da Escola Naval. Eu estava disposto a ingressar na Marinha mas, indo tomar o bonde na Galeria Cruzeiro para ir para minha casa em Botafogo, me encontrei com colegas que vinham de falar com o presidente da Repblica. O marechal Hermes, segundo eles, havia prometido reabrir a Escola de Guerra no Rio, que passaria a se chamar Escola Ttica de Realengo. Como todos eles com exceo de Nlson Portilho iam para a Escola Militar, acabei me animando a acompanh- los, pois estava aborrecido com um episdio ocorrido na Escola Naval.

    P.F. Eu pediria que o senhor nos contasse este episdio.

    H.L. No perteno a uma famlia rica. Meu pai foi industrial, mas de pouca sorte nos negcios; minha me era professora, at hoje as professoras ganham uma misria. Se no fosse termos morado durante algum tempo nos prdios escolares, no sei como poderamos ter sobrevivido. Meu av, que era portugus, foi chefe da contabilidade da Companhia das Loterias Nacionais. Tinha um ordenado relativamente bom, morava conosco e nos ajudava, de modo que assim amos vivendo. Eu no tinha roupa civil. Era do Colgio Militar e andava sempre com as minhas fardas, naquele tempo cala vermelha e blusa marrom. Eu era comandante no Colgio Militar e, quando fui fazer inscrio na Escola Naval, tinha cinco gales, alm de um lao que vinha pelo ombro. O secretrio, pela farda, percebeu que eu no devia se rico mas estudioso, porque era

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    comandante-aluno do Colgio Militar. Quando fui escrever meu nome no livro de inscrio (por coincidncia, eu era o primeiro de uma pgina), voltei a folha para ver se outros colegas Edgar Ferreira do Amaral, Nlson Coutinho de fato tinham se inscrito na Escola Naval. O secretrio, ento, que era um capito-tenente, me passou um pito danado: Que indiscrio! O senhor est voltando as folhas... Eu estava tentando explicar-lhe que minha inteno era apenas ver se de fato meus colegas do Colgio Militar se haviam inscrito, quando chegou um rapaz, em trajes civis, muito bem vestido, e o secretrio voltou-se e perguntou: O que veio fazer? Ele respondeu: Vim me inscrever. Meu nome Edgar Ferreira do Amaral. Ao ouvir o nome, o secretrio prosseguiu: E qual seu parentesco com o general Ferreira do Amaral, mdico do presidente da Repblica? O rapaz disse que era filho e o capito, abrindo um sorriso, convidou: Ento, senta aqui, faz favor. Isso me feriu profundamente: a maneira diferente de ele tratar a mim, que era pobre, e um outro, que era filho do general-mdico, mdico do presidente de Repblica. Isso havia me aborrecido. Quando cheguei Galeria Cruzeiro, encontrei meus colegas e soube que a Escola Militar ia reabrir; em casa, conversei com meus pais e meu av, que disseram: A vida sua. Voc decide como achar conveniente. E me matriculei na Escola Militar em 1911.

    P.F. O fato de o senhor ter cursado o Colgio Militar j no o induzia necessariamente para a Escola Militar?

    H.L. Para minha famlia foi um sacrifcio grande matricular-me no Colgio Militar, porque como interno eu pagava 250 mil-ris por trimestre. Mame ganhava apenas 300 mil-ris como professora, e papai quase no ganhava nada, pois teve pouca sorte nos negcios. O ambiente do Colgio Militar naturalmente predisps-me a seguir uma profisso militar qualquer. E tive muita sorte no Colgio Militar, pois peguei comandante muito bom, Alexandre Barreto, excelentes professores e tambm um timo oficial responsvel pelo servio de disciplina, o major Espiridio Rosa, que seria mais tarde comandante do Colgio Militar de Barbacena, um homem correto, excelente disciplinador, mas justo e bondoso. Tivemos um professor de latim, a quem chamvamos Tenaere, porque ele dizia tenius, tenae, tenaere; o nosso professor de histria natural, quando tratava da fisiologia dos diferentes rgos do corpo humano, dizia: O importante o pncreas; os senhores tm o pncreas; falam no estmago, falam no intestino, mas no falam no pncreas. Tinha, por isso, o apelido de pncreas. E havia um outro que tinha sobrancelha muito grossa e usava bigode, que ns chamvamos de Tetagode.

    P.F. Os alunos pagavam para freqentar o Colgio?

    H.L. Os rfos de militares no pagavam, os filhos de militares pagavam menos, mas os filhos de civis pagavam 250 mil- ris por trimestre no internato, ou 200 mil-ris no externato. Era natural, portanto, que houvesse muitos filhos de militares...

    I.F. O senhor entrou para o Colgio Militar por concurso?

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    H.L. Sim, havia uma prova de admisso. Quando me matriculei no Colgio Militar o curso abrangia seis anos, mas depois houve uma modificao, acrescentando-se mais um ano, de modo que ao terminar a terceira srie deveria enfrentar um quarto ano, com grandes dificuldades, pois o que eu tinha aprendido at ento no era suficiente para que pudesse estudar ao mesmo tempo muitas matrias, algumas difceis, como qumica desenvolvida, fsica, lgebra superior. Tive ento alguma dificuldade, inclusive porque havia uns professores muito exigentes, mas deu-se um fato interessante. Apesar da dificuldade, passei de ano mas meus pais, vendo que eu tinha passado em condies no muito aceitveis, resolveram que eu repetiria a terceira srie; da em diante fui sempre o primeiro aluno da turma.

    Vejam, pois, como uma das coisas mais importantes na educao do ser humano a sua hereditariedade. As condies fsicas e psquicas do indivduo contam muito, mas o ambiente em que ele se cria, o lar, os seus pais, seus avs, seus irmos tm importncia fundamental em toda vida. Hoje tenho a oportunidade de poder ler sobre assuntos relacionados com o ser humano psicologia e os vrios livros que possuo a esse respeito acentuam tanto o aspecto hereditrio como o aspecto ambiental.

    P.F. H algum professor ou algum militar que fosse um exemplo, uma figura que o impressionou muito, que teve alguma especial influncia na sua formao?

    H.L. Quase todos os professores eram bons. Arlindo de Sousa, por exemplo, aquele mdico que ns chamvamos de Pncreas, ensinava muito bem, e com muita clareza. O professor de matemtica, cujo nome infelizmente no me lembro agora, teve uma grande influncia na minha vida profissional. O professor de latim nos deu uma base muito boa de lingstica, que me renderia mais tarde a facilidade de estudar o francs e de ler e compreender o espanhol e o italiano. Tivemos um professor de ingls, que era bom conhecedor da gramtica, mas como tinha uma pssima pronncia me influenciou negativamente. interessante, o alemo uma lngua que possui aspectos que dificultam a aprendizagem, pois tem declinaes como o latim e verbos muito complicados. H uns verbos separveis que mudam de sentido quando se pe uma palavra no meio. uma lngua difcil, mas tem uma compensao: as regras de pronncia so seguidas sem maiores problemas. Com o ingls, no: a combinao de suas vogais em uma palavra diferente da combinao das mesmas vogais em outra palavra. E, como esse nosso professor no tinha boa pronncia, acabei tendo um srio problema ao lidar com ingleses e americanos, apesar de meu pai falar muito bem o ingls, e meu av ser ingls. Papai me ensinava ingls quando eu era menino, mas ele era muito exigente e me lia trechos de livros em ingls, acordando-me com um cascudo, pois eu era pequeno e dormia com aquela lengalenga. Agora, com a lngua francesa eu tive muita sorte, porque no Colgio Militar tnhamos um sargento, Miguel Vicente de Paula Oliveira, a quem chamvamos de Napoleo, que era manaco pelo imperador francs e tinha muitos livros de Napoleo que nos emprestava. Eu fui aluno e auxiliar da Misso Francesa, fui instrutor em escolas em que a misso funcionava, mais tarde estudei na Escola Superior de Guerra em Paris e nunca tive problemas com a lngua francesa.

    P.F. O senhor tinha falado que seu pai havia estudado no Caraa...

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    H.L. Papai, apesar de ser filho de ingls e ser ele prprio anglicano, foi para o Caraa, que era uma escola de padres catlicos romanos. No Caraa foi colega de turma de Joo Pinheiro, que seria mais tarde governador de Minas Gerais.

    P.F. Joo Pinheiro foi uma mentalidade muito modernizante, muito empreendedora e o seu pai, pelo que o senhor disse, foi uma pessoa que se aventurou na indstria, que tambm participava dessa mentalidade progressista. O senhor pode nos contar um pouco sobre ele?

    H.L. Em Stio, que hoje se chama Antnio Carlos, havia trs famlias Andrade, S Fortes e Andrada, do Jos Bonifcio que ocupavam trs zonas distintas: os Andradas, na borda do campo; os Andrades, no centro do stio; e do outro lado S Fortes, Bias Fortes etc. Minha me, que irm da me de minha primeira esposa, se casou com um dos Andrades: Manuel Carlos Pereira de Andrade. Meu bisav trabalhou na construo da parte serrana da Estrada de Ferro Central do Brasil em Minas Gerais, como contratador de engenheiros. Meu av conheceu minha av porque foi trabalhar na firma desse meu bisav e l se conheceram, namoraram e se casaram. E mais tardem, tambm em Stio, minha tia e meu tio Eudoro de Andrade se conheceram e se casaram. O velho Manuel Carlos Pereira de Andrade deu as terras de graa para as linhas da estrada de ferro e para as casas do pessoal da estao.

    A famlia Andrade fez muito por Stio. Eram industriais, tinham fbrica de manteiga, queijo e cigarros. Quando comeou a ser empregada a energia eltrica no Brasil, eles logo a utilizaram, sendo meu pai o construtor da barragem destinada a esse fim. Aproveitando um curso dgua, que uma das cabeceiras dos rios Grande e Bandeirinhas, papai lembrou de fazer uma barragem, cavou a dinamite a parte rochosa do curso e utilizou grandes troncos de rvores. A gua se elevava at certo nvel, correndo depois para um rego, que por sua vez iria tocar uma bobina Pelton, que fazia trabalhar as mquinas da fbrica. Mais tarde, puseram geradores, dnamos, mas o incio da eletricidade local foi resultado desse empreendimento de meu pai.

    Quando houve a Exposio Nacional de 22, Joo Pinheiro empregou papai nas obras da Exposio, e talvez isso tenha at contribudo para sua morte prematura. Papai estava dirigindo os homens quando um tbua escorregou e arranhou muito sua perna. Ele no ligou. O ferimento arruinou, e depois de sofrer muito ele morreu com 57 anos. Eu estou com 84 anos; o pai dele, vov Lott, que morreu de cncer porque fumava cachimbo, morreu com 98; papai morreu s com 57, de sorte que esse acidente contribuiu, embora houvesse tambm outro fato: ele fumava para tomar caf e tomava caf para fumar. Eu acho um absurdo permitir-se propaganda do fumo. Na minha infncia as mulheres do Brasil no fumavam. Ns tivemos duas empregadas, Delfina e Maria, de um lugar chamado Cordeiro, no estado do Rio. Delfina, que era uma preta beiuda, foi a primeira mulher que vi fumar em minha vida. Passados os anos eu fui trabalhar na Dinamarca, fui fiscalizar uma fabricao de metralhadoras em Copenhague, e no bonde via aquelas mocinhas loirinhas fumando e desenhava-se na minha mente a imagem da Delfina, da crioula [risos] .

    [FINAL DA FITA 1-A]

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    P.F. Gostaria que o senhor, que foi um elemento por tanto tempo ligado instruo militar, nos falasse sobre o curso que realizou na Escola Militar de Realengo.

    H.L. Antes disso quero falar alguma coisa sobre a profisso militar. A profisso militar, como o magistrio, tem uma influncia fundamental para qualquer pas, porque os futuros cidados dependem muito do que eles aprenderam em casa, em primeiro lugar, depois na escola, depois nos quartis. So educadores os pais, os professores e os chefes militares. Pensa-se que o interessante da profisso ser general, mas a fase mais interessante da carreira vai de tenente a coronel, porque quando lidamos mais perto com a misso de educar e cuidamos da sade de nossos subordinados. Quando tenentes, ao assumir a funo de oficial de dia, temos que fiscalizar o rancho, a confeco dos alimentos e sua distribuio, cuidando de um aspecto relacionado com a sade de nossos soldados. Depois, na instruo, temos antes de tudo de dar o exemplo, chegar na hora e fazer aquilo que deve ser feito. Depois, ensinando com pacincia, para que eles no s aprendam assuntos relacionados com a vida militar, mas assuntos relacionados com a vida do cidado em geral. Hoje, em alguns lugares ensina-se at algumas profisses. Mas outro fato importante de destacar que nessa fase estamos mais perto da paisagem brasileira, porque fazemos exerccios de combate em campo, no meio da vegetao, das belezas da paisagem brasileira. A maior parte de nossa vida passada nos quartis. Quando eu morava em casa, estava l a partir de cinco horas da manh e ficava at cinco horas da tarde. Durante um certo tempo morei no quartel, na Paraba, em Joo Pessoa, e em Belm do Par, porque minha esposa precisou ficar no Rio para que meus filhos estudassem. Alis, graas a isso que todos os meus filhos se formaram; se eu os ficasse levando para aqui e para l, eles teriam interrompido ou no teriam tido o mesmo sucesso nos estudos. Nessa convivncia com nossos homens, muitos deles nos trazem seu problemas, ns ficamos tendo conhecimento do Brasil no o Brasil que aparece nos jornais, no cinema e na televiso, mas o Brasil vivido, o Brasil sofrido. Esses problemas vm. H um episdio passado na Paraba interessante de registrar, porque reflete bem esse pas. Eu j era coronel e comandava o regimento. Nessa ocasio era proibido aos cabos se casarem: se se casassem, eles tinham que ser postos para fora. Um dos cabos, porm, namorou uma pequena, parece que fez mal a ela, de sorte que seria obrigado a se casar na polcia. Pois a menina, boa, disse que ela tinha sido culpada, que ele no tinha culpa alguma, porque no queria que ele interrompesse a profisso.

    Na Paraba, nosso quartel ficava em Cruz das Armas, nos arrabaldes de Joo Pessoa. O lugar era muito pobre e eu enxergava a pobreza e fazia duas distribuies dirias de alimentos: a primeira, quando a carne para nossos caldeires era cortada, das pelancas que sobravam com alguma carne e ossos, que serviam para fazer uma sopa ou um ensopado; depois, o que sobrava nos caldeires era distribudo tambm.

    Na Paraba, eu tinha que fazer reconhecimento de terreno para exerccios em zonas que no conhecia. Como no havia boas cartas, eu tinha que tomar informaes com homens que estavam l em suas palhoas. As palhoas eram uma tristeza, feitas de pau-a-pique e barro, cobertas de palha e umas varas com palha por cima serviam de cama. O fogo era de barro, as panelas de barro, os meninos e meninas "nuinhos", mesmo os de sete, oito anos. Tinha-se que ter cuidado ao tomar uma informao, pois s vezes a prpria dona da casa no estava vestida. Essa a misria que eu vi na Paraba. esse aspecto da profisso militar que faz com que conheamos o Brasil, o Brasil vivido, o Brasil sofrido, o Brasil do povo brasileiro.

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    Ns, na profisso militar, antes de aprender a mandar, aprendemos a obedecer, porque muito importante saber obedecer para saber mandar. E apesar de dizerem que somos mandes, esse mandar relativo, porque s podemos mandar dentro das leis e dos regulamentos. Mas houve a esse respeito um incidente dos mais ilustrativos de minha vida. Eu j era capito e estando no quartel quando estourou um barulho qualquer no pas, tive que tomar as providncias. O major veio logo, mas o comandante, que era um folgado, um barrigudo, s apareceu no outro dia e sem ter visto nada do que se passou veio me censurar, por causa das providncias tomadas. Quando fui explicar meus motivos, eles reagiu com rispidez: Estou falando, o senhor me oua. O senhor aqui obrigado a fazer tudo que eu mandar. No concordei: Perdo, comandante, eu s sou obrigado a fazer o que o senhor mandar quando estiver dentro das leis e dos regulamentos. Ele ento me prendeu, mas a priso foi anulada posteriormente. Ento, estamos vendo que esse mandar relativo, est subordinado a um quadro bem marcado. No podemos exorbitar, temos que estar dentro dos limites prescritos pelas leis e regulamentos. Ento, se h preveno da parte dos civis pelo fato de sermos mandes, preciso perceber que h nisso um aspecto positivo, pois ns aprendemos a mandar da maneira adequada, isto , mandar no que for direito.

    P.F. O senhor lanaria sobre a classe poltica a culpa de todas essas distores que existiam no Brasil? O senhor chegava a pensar nas causas dessas distores? O que poderia gerar tanta misria, tanta pobreza, tanto problema num pas que, geograficamente, naturalmente, um pas to rico?

    H.L. De um lado, o Brasil um pas que tem uma tal variedade de paisagens, de ecologia, que no se pode desenvolver da mesma maneira. Em primeiro lugar, quando os portugueses vieram para aqui, a ocupao foi feita na faixa litornea; depois do litoral, no Sul, onde o clima era mais favorvel aos portugueses, menos quente, como So Paulo, etc. Por outro lado, os recursos naturais estavam inicialmente explorados o ouro e os diamantes nas Minas Gerais. E depois plantamos o caf nas reas do Brasil que eram propcias a seu cultivo, passamos ento ao algodo. Assim, o Brasil desenvolveu-se nas reas que eram mais propcias ao desenvolvimento desses meios de produo de dinheiro. Depois, tambm a instruo no se fez de maneira homognea, mas estendeu-se principalmente em certas reas em que havia mais possibilidade de o indivduo progredir pessoalmente. A escravido tambm trouxe males bem grandes para o Brasil, mais no Sul, em Minas Gerais, que no Norte, pois o caf uma planta que d relativamente bem e produz de modo que imediatamente permite a quem plantou recompensar os seus esforos. J o Nordeste tem a regio litornea coberta de vegetao, mas o agreste e o interior no tm gua. mal distribuda a gua, que um elemento vital para o ser humano. E outra coisa, o cidado no tem muito o que fazer, a faz filho. Na Paraba famlias com dez filhos eram comuns, ainda hoje nosso aumento de populao de 3% ao ano, um dos maiores do mundo.

    P.F. Muitos militares do seu tempo, alguns um pouco mais modernos, mas alguns do seu tempo, tenderam a acusar muito a classe poltica, os maus governantes do Brasil por esses problemas.

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    H.L. Em parte eles tm razo, porque tambm foram os maus governos. O poltico formava-se no seu municpio e depois no seu estado. s vezes ele ia alm, mas em geral s ficava conhecendo a regio de seu municpio, sua cidade ou seu estado. Acidentalmente conhece outra coisa, enquanto que ns militares temos a vantagem de que nossa profisso nos obriga a estarmos servindo em todas as reas, em contato com os problemas, as dificuldades da vida, as razes dessas dificuldades, e isso faz com que os militares fiquem com um conhecimento maior do Brasil no s em extenso, mas em profundidade. Essa uma das vantagens.

    Outro aspecto da profisso militar interessante so os extraordinrios prazeres que essa profisso nos proporciona. Em Minas Gerais, em 1918, quando eu era apenas segundo-tenente (tinha s galo), criaram em Belo Horizonte uma companhia, depois transformada em batalho, que ficou alojada no antigo pavilho para imigrao, que alis no chegou a ser utilizado para o fim a que primitivamente se destinara. Mais tarde, quando aumentou o batalho, o comandante teve que dar tratos bola para abrigar o pessoal e acabou alugando uma serraria perto da estao. Eu, apesar de ser segundo-tenente, fui comandar uma companhia, pois havia poucos oficiais no batalho. ramos apenas eu, os sargentos, os cabos, os soldados. Isso ocorreu pouco antes de comear a eleio, no segundo ano de sorteio militar no Brasil; no primeiro ano, haviam sido sorteados vrios estudantes de medicina, inclusive um primo meu que foi mdico, Mrio Lott.

    Nessa companhia, antes de comear o ano de instruo, havia uma fase de cerca de 30 dias em que os soldados sorteados iam chegando, e ns os fardvamos e cuidvamos deles. Achei ento que era conveniente trein- los para que eles suportassem os esforos, pois muitos deles tinham funo sedentria, no faziam muito trabalho fsico. Eu fazia ginstica, inclusive correr e saltar, que uma das ginsticas interessantes para o militar. E os mineiros so bons saltadores. Fiquei admirado de como aquela rapaziada saltava bem, mas apareceu um rapaz forte, de ombros largos e peito grande, que no conseguiu saltar. Botou-se a vara para ele saltar e ele esbarrou; baixou-se a vara e ele esbarrou de novo. Cheguei a pensar que ele estivesse de molecagem e quase me esquentei, mas tratei com pacincia. Depois, passamos aos exerccios de barra, mas enquanto os outros procuravam um jeito, ele no conseguia subir. Os colegas ajudaram, mas quando ele se viu l em cima comeou a gritar: Minha mezinha, me tira daqui! Aquele negcio chocou-me. Havia um sargento, de nome Carlindo, que era muito bom instrutor e muito paciente. Ento, eu o incumbi de s ensinar a esse camarada. E ele foi progredindo. Trs meses depois eu estava em meu gabinete tratando dos papis, quando disseram que tinha um cidado que queria falar comigo. Mandei entrar e me veio um camarada bem vestido, com olhos lacrimejantes: Seu tenente, venho lhe agradecer o bem que o senhor fez ao meu filho. Eu sou pai do fulano. Ele est outro homem . Ele era a tristeza da minha vida; eu no podia suportar um filho naquelas condies... Eu disse: O senhor est enganado, no a mim que o senhor tem que agradecer. Em primeiro lugar a seu filho, que procurou melhorar; em segundo lugar, ao sargento Carlindo que foi quem ensinou a ele. Esses so os aspectos agradveis da vida militar.

    P.F. aquela funo educativa que o senhor citou...

    H.L. Ns militares, principalmente no interior, recebemos uma turma de rapazes, alguns de classe mdia, j com certa instruo, mas a maior parte de gente pobre e inculta, havendo inclusive fracos fisicamente. Depois, com o nosso trabalho, aquela

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    gente se transforma. Eu soube outro dia que o general Geisel vai a Santa Cruz do Sul para assistir festa do fumo e lembrei de como foi interessante minha passagem por esta cidade, j como general. Santa Cruz do Sul uma regio de plantao e trato de fumo. L, do mesmo modo que no Norte, se pem os bodes no quarto de dormir, com toda catinga, pois os cevados de secar fumo ficavam junto casa, de modo que o ar que se respirava fazia mal sade. Pois bem; assim que comeou a instruo fui a Santa Cruz do Sul. A regio foi colonizada por alemes e s tem rapazes altos e de pele clara, mas magros e plidos. Havia nessa unidade um tenente, excelente oficial, que era muito entusiasmado por educao fsica. Passados alguns meses, fui fazer outra inspeo em Santa Cruz do Sul e fiquei entusiasmado com o que vi: a rapaziada, com a boa alimentao do quartel (que era um prdio novo e bem arejado) e com exerccios fsicos, se formara uma turma bonita, me fazendo sentir uma enorme satisfao.

    Outro aspecto importante da profisso militar o esclarecimento da propriedade de muitas reas de terra. A primeira vez que tive esse problema foi em Mato Grosso, quando comandei um batalho em Campo Grande. Existia na cidade uma rea que estvamos procurando saber quem era o dono e, aps uma trabalheira danada, pude descobrir que o terreno era nosso. Igualmente em So Paulo, quando construram o quartel em Campinas, o Ministrio da Guerra comprou uma rea que se estende desde um morro que fica junto da cidade at um outro que se eleva numa rea de banhados. Comprada a rea e construdo o quartel, o pessoal no deu muita bola para a marcao; mais tarde, porm, por acaso um cidado me disse que havia l uma patifaria em relao aos terrenos do quartel. Os cidados que haviam vendido o terreno ao Exrcito estavam dando para o quartel a parte dos banhados e ficando com a parte boa. Fui procurar o papelrio e consegui descobrir isso e assim pude defender os interesses do Ministrio da Guerra. E ainda em Lorena, quando uma senhora veio reclamar de ns determinada rea, disse a ela que trouxesse os documentos.

    P.F. Voltando um pouco ao outro assunto, eu gostaria que o senhor falasse sobre a Escola Militar de Realengo, onde viveu um bom tempo...

    H.L. A minha turma foi a primeira da Escola Militar do Realengo. ramos 48, em geral vindos do Colgio Militar, mas depois, com a reprovao de alguns e a entrada de outros, ficamos sendo 56. O quartel de Realengo fica no antigo prdio da Escola Preparatria e Ttica do Realengo. um edifcio grande, quadriltero, tendo a parte da frente com dois pavimentos, as laterais e a dos fundos com um s pavimento e um grande ptio no meio. Atrs tem uma fossa que chamavam o Tmulo do Biriba. (Biriba era o apelido de Prudente de Morais, o primeiro presidente civil). Tivemos bons comandantes, muito traquejados. Antnio de Albuquerque e Sousa era duro de roer, tocava o cidado na cadeia por qualquer coisa, mas era muito honesto e justo. Tinha um bom fiscal, auxiliar do galego Antnio, tambm de excelente corao. Ns ramos internos, e o comandante em geral nos negava licena para sair durante a semana.

    Naquele tempo, a Escola dava uns passes para viajarmos de trem de Realengo at a Central e era esse major-oficial quem assinava os passes. O aluno ia pedir licena ao galego Antnio para sair e ele negava; a o sujeito ia ao fiscal e conseguia a licena e o passe. Na Escola Militar tivemos um cidado excepcional como instrutor e como ser humano - , Eurico Gaspar Dutra. Ele foi meu instrutor de cavalaria, excelente instrutor pela parte profissional, homem disciplinador e justo. Os alunos, algumas vezes procuravam criar dificuldades para o Dutra. Na escola havia uma rea cercada por uma

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    grade. Os que fugiam tinham que voltar pela grade ou embrulhar a sentinela. Dutra era magro, usava uma capa preta at os ps e ficava num canto. Quando o aluno passava pela sentinela, ele perguntava: Qual o seu nome? Qual , faz favor? e enquadrava o sujeito. Era to bom instrutor, que mesmo quem no gostava de cavalo pedia para ir para a cavalaria. Tivemos tambm excelentes professores de assuntos militares, de clculo, descritiva, clculo diferencial, integral, geometria analtica, que nos proporcionavam uma boa base. O instrutor de artilharia era muito bom; o instrutor de infantaria tambm era bom; no to capaz quanto Dutra, que era excepcional, mas bom tambm.

    Dutra, alm de tudo, era muito valente. Na Revoluo de 32, ele serviu na mesma coluna em que eu servia. Havia uma tropa de polcias l do Norte constituda por um pessoal meio medroso, e ele ia na frente: Avana, avana! Quando houve a Revolta de 35 na praia Vermelha, o ajudante-de-ordens estava a seu lado e foi ferido e morreu. Dutra era um homem muito valente, inteligente, foi excelente presidente da Repblica.

    P.F. O senhor acha que na prpria organizao da escola se procurou evitar que se repetissem aqueles episdios de indisciplina tpicos do perodo da praia Vermelha?

    [FINAL DA FITA 1-B]

    H.L. A Escola Militar da praia Vermelha tinha um curso de quatro anos. Primeiro se estudavam as trs armas: infantaria, cavalaria e artilharia. Os primeiros da turma eram declarados alferes-alunos, enquanto os outros se formavam e quando havia vaga eram promovidos a tenentes, passando mais tarde para uma outra escola para estudar engenharia, na praia Vermelha, na zona sul do Rio, onde mantinham muito contato com a populao. Por isso, certos problemas que influenciavam a populao eram naturalmente levados aos alunos, muitas vezes atravs dos prprios parentes.

    O episdio da vacina obrigatria foi interessante. Assisti na minha infncia aos males da varola, que chegou a dizimar quase que ruas inteiras. O governo determinou a vacina obrigatria mas o povo brasileiro, ignorante, no aceitou, aproveitando-se alguns polticos das circunstncias para influenciar os alunos a reagirem. Com a ecloso da revolta de 1904, ento, deu-se o fechamento da Escola Militar da praia Vermelha depois reaberta no Rio Grande do Sul. Foi uma pena o fechamento, pois a Escola Militar da praia Vermelha formava profissionais que se destacavam em vrias funes pblicas. A instruo, a formao profissional e a formao tcnica e conhecimentos gerais de l eram muito boas, porque havia um excelente quadro de mestres.

    P. F. Mas isso justamente que algumas pessoas criticavam na poca, dizendo que, na realidade, a Escola Militar da praia Vermelha formava mais bacharis fardados do que militares, homens especializados em filosofia, histria, sociologia...

    H.L. H certa verdade nisso. A Escola Militar, encaixada na praia Vermelha, no proporcionava a seus alunos a possibilidade de fazer exerccio de combate no campo e eles se ressentiam disso. No havia linha de tiro nem qualquer exerccio prtico, a no

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    ser a ordem unida, que se faz em qualquer canto. No Realengo, ao contrrio, estvamos junto de Jericin e tnhamos maior possibilidade de nos formar profissionalmente na instruo de combate. Eu, quando era da Escola Militar, tinha mos grossas de cavar trincheira. Em compensao, mais tarde fiz muita gente cavar trincheira, inclusive dois presidentes da Repblica Castelo Branco e Costa e Silva , que tiveram que engrossar a mo, quando fui seu instrutor em organizao do terreno.

    P.F. Ser que ns poderamos ver a diferena, por exemplo, entre um militar do tipo de Benjamin Constant ou de Euclides da Cunha, que eram elementos bastantes ligados filosofia e s artes e um militar do tipo, por exemplo, de Deodoro, que foi forjado no campo de batalha da guerra do Paraguai?

    H.L. Sim, mas isso natural, pelo seguinte: dentre aqueles que vm para a vida militar, alguns tm em seu ntimo, em sua psique, uma real tendncia para serem militares e sentem-se bem agindo dentro do quadro dessa profisso; outros, entretanto, so movidos por outras circunstncias, em geral motivados pelo fato de ser gratuita a instruo militar. Estas vtimas, que no tm vocao para militares, quando terminam o curso procuram uma oportunidade para exercer funes que no sejam propriamente militares e da derivar para tal ou qual funo civil. E como na antiga Escola Militar a instruo geral era muito boa, tanto quanto a instruo tcnica, eles ficavam aptos a caminhar em qualquer direo.

    P.F. O marechal Hermes visto como um elemento que procurou fortalecer muito esse lado de instruo militar profissional, inclusive com o envio de oficiais para a Alemanha, com o incio das grandes manobras e outras coisas, no?

    H.L. O marechal Hermes era de uma linhagem de militares e isso fez dele um militar por hereditariedade. Alm disto, desde cedo adotou a profisso. Homem inteligente e trabalhador, ele procurou sempre fazer o possvel para que tivssemos um Exrcito capaz de cumprir o difcil dever de defender oito milhes e quinhentos e tantos mil quilmetros quadrados e assegurar a ordem no seio dessa populao, pois sem ordem no h progresso. Isto coisa positivista, mas uma verdade. Hermes da Fonseca foi muito bom presidente da Repblica, embora sua candidatura tenha suscitado uma luta tremenda, a que assisti como menino do Colgio Militar. Aqueles que eram contrrios ao marechal Hermes achavam que ele era um burro, o que ele no era, pois comprovou ser homem muito inteligente e capaz no exerccio de suas funes, inclusive como presidente da Repblica. Seu adversrio era o guia de Haia, Rui Barbosa, que possua tambm muitos partidrios. Ento, nas famlias havia discusses acerbas, desentendimentos srios, brigas e agresses. Certa vez ocorreu com o tenente Otvio Muniz Guimares um fato digno de nota, pois demonstra bem com estavam acirrados os espritos. Este oficial era instrutor do tiro de guerra de Juiz de Fora e estava caminhando na rua Halfeld em trajes civis, quando o reconheceram. Ele vinha da aula, quando foi reconhecido e agredido, s porque era militar. Para se defender o tenente tirou o palet, enrolou-o no brao e sacou uma faca, comeando a espetar seus agressores. Pouco depois, muito moleque, ele prprio contou isso, quando foi encontrado na farmcia botando pontos-falsos na cabea.

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    Nosso povo interessante e no compreende certas coisas. A Amrica Latina foi colonizada por portugueses e espanhis, cabendo aos ltimos uma parte maior do que a dos primeiros. Pois bem; na parte colonizada pelos portugueses oito milhes e quinhentos mil quilmetros quadrados cercados pela Amaznia a norte, pelo Prata a sudoeste e pelo Atlntico a leste , constituiu-se uma ptria s. verdade que os portugueses tiveram dois vice-reinados, dois governos-gerais, vingando, porm, depois a idia de unidade. A Amrica espanhola se organizou em vice-reinados, mas nem estes se mantiveram unidos, subdividindo-se em Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Bolvia, Equador, Mxico e no sei mais o qu. Ns, ao contrrio, nos mantivemos, por qu? Os portugueses, no sei se por serem mais inteligentes e melhores colonizadores, apesar de menores e mais fracos, foram os ltimos a deixar as suas colnias na frica. Vejam que capacidade! Portugal, tendo uma pequena populao, no mandou para aqui as suas tropas, mas ordenou que se constitusse um Exrcito de brasileiros, de sorte que desde o perodo colonial a tropa que defendia o Brasil era integrada por brasileiros, estabelecendo-se desde cedo fortes laos entre a tropa e o povo. Na Amrica espanhola eram os prprios teros espanhis que defendiam a terra, de sorte que no houve essa trama entre o povo e a tropa. Da, o esfacelamento geral. Os brasileiros em geral no se do conta desse aspecto. Ns militares temos cometido erros, mas o juzo que fazem de ns, a condenao muito maior do que aquela que merecemos, em tudo.

    Ento, tivemos Hermes e Rui envolvidos nessa campanha danada. Eduardo Gomes foi candidato duas vezes, Juarez Tvora uma e eu prprio outra. Nossos contendores quase todos eram cidados de boas qualidades como Juscelino, por exemplo, que era um homem excepcional. Mas no caso de Jnio Quadros sem entrar no julgamento de sua pessoa , pelo que ele fez, mostrou quem realmente era: um egocntrico que queria ter toda autoridade, no aceitava de modo algum subordinar-se lei e ao quadro constitucional brasileiro. Quando no conseguiu isto, tentou dar um golpe, pensando que o povo viria em seu auxlio. Ele tinha a idade de minha filha mais velha. Eu, militar desde a minha infncia, conhecia o Brasil no a passeio, mas porque servi no Rio de Janeiro, em Minas Gerais (Belo Horizonte), em So Paulo (Lorena e na capital), no Par (Belm), em Mato Grosso (Campo Grande e Cuiab), em Santa Maria (Rio Grande do Sul)... Quer dizer, tinha bom conhecimento do Brasil, por ter vivido, servido e sofrido nessas reas, em contato com a populao e com os problemas locais. Consequentemente, sob o ponto de vista de conhecimento, tinha melhores condies do que ele, que nasceu no Mato Grosso mas foi para So Paulo, onde retornou poltico e governador. Jnio s conseguiu conhecer mesmo So Paulo; o Brasil, conhecia de vigem, mas no de viver e sofrer. Entretanto, ele tem cinco milhes e seiscentos e trinta e seis mil votos, enquanto eu trs milhes e oitocentos e quarenta e seis mil. Uma derrota fragorosa. Mas um fato interessante da histria que agora tenhamos um militar atrs do outro: Castelo, Costa e Silva, Mdici, Geisel e agora Joo Batista de Figueiredo. Naturalmente, cometem erros como todo governante. Governar o Brasil no coisa fcil, devido diversidade do nosso pas e sua conexo com o resto do mundo, com as condies atuais do mundo, sofrendo os problemas que o mundo atual apresenta. O mundo atual apresenta uma de suas fases mais difceis. Recentemente com o problema do petrleo, mas antes desse j havia outros problemas. Naturalmente o Brasil, grande como , teve que suportar todas essas tempestades, pois quanto maior a nau maior a tormenta. Mas, apesar dos pesares, ns caminhamos. Estamos vendo esta Itaipu, talvez a maior usina do mundo, com 12 milhes e 600 mil quilowatts, construda em combinao com um pas vizinho. Quer dizer, preciso capacidade poltica para, no quadro internacional, combinar com o vizinho; capacidade tcnica para imaginar, fazer, reunir os recursos materiais, alm de coragem para empreender uma obra desse vulto.

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    Em outros setores, no temos condio. A educao, por exemplo, deixa muito a desejar. A falha de nossa educao devida principalmente ao fato de no podermos recrutar os elementos mais capazes. As pessoas que se dedicam ao magistrio, quando vislumbram a possibilidade de receber maiores vencimentos abandonam a carreira perdendo-se toda a prtica que tiveram. Os elementos mais capazes no ficam, exceto aqueles que tm muito amor arte, mas a maioria vai para outros caminhos. imprescindvel que o mais cedo possvel resolvamos esse problema, pagando ao magistrio aquilo que ele vale, em todos os nveis e um dos nveis mais importantes o primrio, porque o que d formao infncia, que a fase em que a criana mais absorve os conhecimentos. Ento, precisamos ter bons professores primrios, mas no temos. H lugares no Brasil que se ganha uma misria. Ganha-se Cr$ 200,00 l no Norte, quando se paga hoje at Cr$ 4.000,00 para uma empregada que mora na casa e come a comida da gente.

    [INTERRUPO DE FITA]

    2 Entrevista: 25.10.1978

    P.F. Marechal, hoje gostaramos de retomar o tema da Escola Militar do Realengo, a qual o senhor cursou entre 1911 e 1914. Como se fez sentir, na instruo militar e no prprio direcionamento do Exrcito, o retorno daqueles oficiais que tinham ido Alemanha, os chamados jovens turcos, a mando do Hermes da Fonseca, entre os quais ns poderamos lembrar Leito de Carvalho e Klinger?

    H.L. No tempo que eu cursei a Escola Militar, a influncia desses oficiais chamados jovens turcos ainda no se tinha feito sentir. A escola, quando a cursei, nem era chamada Escola Militar, mas havia dois cursos o da Escola de Guerra e o da Escola de Aplicao de Infantaria e Cavalaria , ambos no Realengo. Minha turma inaugurou a Escola de Aplicao. Viemos 48 que havamos concludo o curso no Colgio Militar em fins de 1910 e a ns se somaram mais oito reprovados da Escola de Guerra do sul. A Escola Militar, ento, funcionou no edifcio que abrigou a Escola Preparatria e de Ttica do Realengo, caracterizando-se o prdio por ter a forma de um grande quadriltero: dois lados eram alojamentos; o terceiro, o refeitrio; e no ltimo as salas de aula, ficando na frente o gabinete de comando e tambm a parte administrativa da direo da escola. O gabinete do oficial de dia e do sargento eram ao lado do corpo da guarda. A Escola teve bons comandantes, exigentes, mas muito bons. Disciplinadores, muito srios, muito honestos e muito justos; tambm teve um bom corpo de instrutores, dos quais o melhor foi o ento tenente Eurico Gaspar Dutra, que era instrutor da cavalaria. Excelente instrutor no s pela capacidade profissional, mas por sua exemplar dedicao ao servio. Ele teve uma grande influncia na nossa formao profissional. Havia outros bons instrutores, como um de infantaria que se destacou porque era grande andarilho, um entusiasmado pela infantaria, mas profissionalmente no estava altura do Dutra. A artilharia tinha uns nomes, dos quais tambm no me recordo agora, que nos davam instruo e eram bons instrutores. Tnhamos ainda instrutor de ginstica. Os professores, de um modo geral, eram bons mestres que procuravam por todos os modos, nas matrias pelas quais eram responsveis, nos dar uma cultura que nos habilitasse mais tarde a desempenhar bem nossas funes no Exrcito. Mas isso foi em 1911 e

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    1912, quando cursei a Escola de Guerra; depois passei para a Escola de Aplicao de Infantaria e Cavalaria, que tambm era no Realengo, onde os instrutores militares continuaram os mesmos, mas passamos a ter mais instruo terica. Assim que terminamos o curso fui declarado aspirante a oficial, em 2 de janeiro de 1914. A minha inteno era ir para a cavalaria, no s pelo fato de eu gostar de andar a cavalo, mas tambm pelas qualidades excepcionais de meu instrutor, o ento tenente Eurico Gaspar Dutra. Mas em conversa com um ex-aspirante de cavalaria desanimei-me, devido s condies inadequadas em provimento de cavalos das unidades de cavalaria.

    P.F. Faltavam cavalos?

    H.L. No, os cavalos tinham mau aspecto; no eram cavalos bons. Mas o fator decisivo foi o fato de esse aspirante, que na ocasio servia no 56 Batalho de Caadores situado na praia Vermelha, ter-me dito que sua unidade tinha um excelente comandante, o coronel Onofre Lus Ribeiro, um bom fiscal, que era um engenheiro-militar, e um outro oficial, Armnio Borba de Moura, tambm muito capaz, que tinha feito um estgio de dois anos na Alemanha. Alm disso, o ambiente era muito agradvel pois o batalho se alojava no prdio da antiga Exposio de 1908, junto ao mar, entre o Po-de-Acar e a Urca. No 56 Batalho de Caadores tivemos uma instruo muito ativa. Naquele tempo no tinha havido o sorteio militar, de sorte que os nossos soldados eram voluntrios e ficavam no Exrcito at enjoar ou envelhecer. Havia um cabo, por exemplo, que me pediu para dispens-lo de um exerccio que trazia algum risco: Por favor, no me obrigue porque estou quase na hora de reformar e no quero sair aleijado. Esses nossos comandados, porm, eram muito dedicados, como se pode ver atravs de um episdio ocorrido comigo. Eu morava no quartel e costumava tomar banho de mar. Um dia, meu bagageiro bagageiros eram os homens responsveis pelo cuidado das nossas coisas perdeu um meu calo e cortou uma cala de seu prprio uniforme, pedindo que eu aceitasse em substituio ao calo. Era uma gente assim, dedicada, o pessoal com quem lidvamos.

    P.F. Eu gostaria que o senhor esclarecesse uma coisa: esses voluntrios de que camadas sociais saam? Quem era esse voluntariado?

    H.L. Naturalmente, eram homens pobres, que no tinham meios de vida l fora. Em grande proporo, quase trs-quartos, eram nordestinos. E eles ficavam no Exrcito. Alguns chegavam a cabo; outros, pouco melhores, a sargento. No havia ainda, nessa ocasio, a escola para formao de cabos e sargentos; os sargentos e cabos eram formados na tropa, mas eram homens obedientes, muito capazes, valentes em geral. O nordestino em geral muito valente. De sorte que era uma tropa muito boa de se comandar, que foi para mim uma excelente escola. Eu era muito moo, tinha apenas 19 anos, quando comecei minhas atividades. Tinha feito aniversrio em novembro e em janeiro fui para o Batalho.

    P.F. O senhor acha que o fato de no existir servio militar obrigatrio pesava negativamente para o crescimento e mesmo para o prestgio do Exrcito?

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    H.L. No se pode dizer que se pesasse o prestgio do Exrcito. O problema era que no se preparavam reservas para a eventualidade do Brasil ter que ir para uma guerra. Porque esse homens serviam cinco, seis, sete ou oito anos, ao passo que um sorteado serviria, quando muito, dois anos e passaria para a reserva. E o fato de servir traz ainda uma outra vantagem, porque o Exrcito no ensina apenas um cidado a se preparar para a guerra, mas d educao, ensina a obedecer, ensina a cumprir o seu dever, ensina as primeiras letras, ensina ginstica, tornando os soldados mais fortes, mais capazes; o Exrcito nivela. No Exrcito, a doutrina de Cristo aplicada: todos somos irmos, ningum melhor do que o outro. Apenas os nossos atos fazem com que possamos nos destacar em relao ao outro, ou no bom, ou no mau sentido. Enfim, tem uma srie de vantagens o servio militar, para o pas de um modo geral pois esses homens quando voltam para os lugares de onde provieram, levam essa educao, essa formao. No s a formao profissional para a eventualidade de uma guerra, mas essa formao cvica e moral que muito til para o brasileiro.

    P.F. Ento, o senhor acha que o Brasil neste momento no estava preparado para a eventualidade de uma guerra?

    H.L. O Brasil em geral no se preocupa muito com guerras. Por isso no passado tivemos sria dificuldades, inclusive as guerras contra Oribe e Rosas e a Guerra do Paraguai, justamente por ns no nos preocuparmos muito com a formao de nossas reservas. O Brasil precisava ter uma tropa para atender a uma eventual necessidades de defesa das nossas longussimas fronteiras e tambm para manuteno da ordem pblica e das autoridades constitudas. Essa era a finalidade precpua do Exrcito naquele tempo. Mais tarde se iniciou o sorteio militar, anos depois, quando eu j no estava mais no 56 Batalho de Caadores, pois tivemos que ir para o Contestado.

    O Contestado foi resultado de um dissdio entre Paran e Santa Catarina em certa zona fronteiria, pois ambos pretendiam o domnio de uma mesma regio, que no sendo judiciada nem governada nem por um nem por outro, ficou sendo uma espcie de terra de ningum. E houve um cidado chamado Joo Maria que resolveu aproveitar esse estado de coisas para constituir uma espcie de estado parte, tendo a religio como base, mas uma religio sui-generis cujos princpios no sei exatamente quais eram, mas que constitua o mvel de congregao desses homens. Como o governo procurava combat- los, eles, para aumentar seu nmero encontraram uma soluo inusitada: dominavam uma certa rea, prendiam a populao e a levavam para seus acampamentos, onde prendiam mulheres e crianas, obrigando os homens a participar de suas lutas e suas incurses. Depois de certo tempo, esse homens j ficavam com a responsabilidade de ter participado da luta e no podendo mais se afastar se tornavam combatentes como todos os demais. Era uma gente valente, mas tambm brbara sob certos pontos de vista, pois procuravam, inclusive, matar nossos homens a faco.

    [FINAL DA FITA 2-A]

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    P.F. Eu ia lhe perguntando se no tinha havido tambm l no Contestado um problema de expulso de camponeses de umas terras por uma estrada de ferro, uma coisa qualquer assim.

    H.L. No, pelo menos, se houve isso eu no tenho conhecimento. O governo, como em Canudos, ao invs de enviar tropas suficientes para dominar essa insurreio, mandou pequenas colunas. A desordem, a luta de um modo geral, como incndio. Quando comea, apaga-se com um copo dgua, mas depois de se desenvolver nem mesmo os bombeiros s vezes conseguem. A mesma coisa so as insurreies e todas as outras lutas. Se o governo tivesse logo mandado uma grande tropa... Houve uma coluna que foi completamente desbaratada, at o comandante, um capito, foi sacrificado.

    P.F. Era seu colega de turma?

    J.L. No, era muito mais antigo que eu; no o conheci pessoalmente. Mais tarde, o governo mandou mais tropas, porm ainda insuficientes. S em 1914 o governo resolveu esmagar a revolta e constituiu quatro colunas que vinham de vrias direes . Participei da Coluna Norte, comandada pelo nosso comandante de batalho, Manuel Onofre Munis Ribeiro, a qual, como seu nome indica, marchava do norte para o sul, rumo ao centro do reduto de Santa Maria. Tivemos lutas cruentas, sendo necessrio manter um alerta dia e noite, porque eles conheciam o terreno, uma mata de pinheiros, araucrias e tambm de imbuias, que so rvores frondosas; e alm disso, samambaias e em certas zonas uma plantao de erva-mate. Hoje j desbastaram quase toda a mata, mas naquele tempo a vegetao facilitava a quem tinha o conhecimento do terreno, e que agindo de surpresa, podia conseguir um xito inicial. Nossos soldados, por isso, tinham horror, principalmente no escuro, de serem mortos a faco, travando-se ento um tiroteio a noite inteira, amenos que os oficiais estivessem atentos.

    Ocorreu, por exemplo, um episdio meia-noite do dia em que fiz 20 anos, em 16 de novembro de 1914, quando eu estava justamente comandando uma trincheira. Como havia muita madeira no local sendo, inclusive, as casas feitas desse material ns fazamos revestimentos de tbua, colocvamos alguns toros de rvore, depois um pouco de terra e cobramos tambm de tbuas para proteger contra as chuvas. Assim, ficvamos alojados e prontos, abrigados, para nos defender dos ataques dos fanticos. Essa noite, tnhamos tido atividade o dia todo. Eu estava cansado e queria dormir, mas de vez em quando o soldado que estava de sentinela perguntava: Posso atirar? No autorizei, sem antes indagar: Atirar em qu? Voc est vendo algum? Ele respondia: No... E eu no deixava atirar, porque seno no havia munio que chegasse. A luta continuou ainda durante muitos meses, mas no pude chegar at o fim. Tinha ido para o Paran em setembro e j em dezembro estava afetado pelo tifo, paratifo e impaludismo combinados, sendo forado a baixar hospital, carregado em maca de transportar defunto. Infelizmente, o meu colega Armnio Borba de Moura, que tinha feito estgio na Alemanha, tambm chegou poucos dias depois ao hospital... E nesse hospital os cuidados deixavam muito a desejar, tanto da parte dos mdicos como dos enfermeiros.

    P.F. O hospital era l perto mesmo?

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    H.L. No, esse hospital era em Curitiba.

    P.F. Ento, no era um hospital de campanha?

    H.L. No. Primeiro fui para a enfermaria e depois para um pequeno hospital, situado no caminho; depois fui para o hospital de Curitiba, porque minha molstia era sria. Quando adoeci pesava 67 quilos e assim que pude andar me pesei, e estava com 47 quilos. No sei por que no morri; talvez porque Deus no quis. E tambm, porque mame e meu irmo foram ao Paran me buscar. Armnio Borba de Moura, entretanto, no teve a mesma sorte. Certo dia ele tomou um banho para baixar a febre, bebendo em seguida um lquido alcolico para reao. Moura estava na cama quando veio a enfermeira e tentou dar leite a ele. Mas ele no podia, com aquela xaropada toda, tomar leite por cima. A enfermeira insistiu, insistiu, at que eu disse: A senhora no v, ele no pode beber leite, porque tomou isso. Ela ento se convenceu e foi embora. Mas Armnio acabou morrendo durante o tempo em que eu estava no hospital. Eu j estava um pouco melhor e minha me foi para l, conseguindo licena para que eu fosse primeiro para um hotel e depois para minha terra em Minas Gerais, onde fui tratado com muito carinho. Stio possua um timo clima, ideal para cura de tuberculose e como meus parentes tinham fbrica de manteiga e queijo, muito bom leite, horta, muitas frutas, eu pude arribar depressa.

    P.F. O comando geral da Campanha do Contestado coube a Setembrino de Carvalho, no ?

    H.L. , ao general Setembrino de Carvalho, um homem muito capaz, muito dedicado etc. Ele conduzia muito bem as colunas, mas no combate final em Santa Maria os jagunos lutaram at o fim como se passara em Canudos.

    P.F. Eu gostaria que o senhor falasse para ns alguma coisa acerca do Setembrino de Carvalho...

    H.L. No lidei muito com o general Setembrino de Carvalho, pois era apenas um aspirante a oficial que servia numa de suas colunas. O general Setembrino tinha exercido vrias outras funes anteriormente, das quais no me recordo agora, mas todas com grande competncia. Na Campanha do Contestado coordenou de tal maneira a ao dessas quatro colunas que conseguimos em tempo aceitvel dominar, se no me engano em maro, completamente os rebeldes.

    P.F. Eu lhe pergunto isso porque o Setembrino vai um pouco mais tarde, acho que em 1915, tambm exercer uma outra misso de pacificao, desta vez no Cear, onde se abrira um conflito entre o padre Ccero e o coronel Franco Rabelo, que estava no poder.

    H.L. .

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    P.F. E depois mais tarde, em mil novecentos e vinte e poucos, ele vai novamente exercer uma misso de pacificao no Rio Grande do Sul, conciliando as duas faces polticas que estavam desavindas naquele momento. O que eu lhe pergunto como o senhor via esse tipo de misso, menos no Setembrino, mais pela imagem que o Exrcito podia representar atravs da pessoa dele.

    H.L. A pessoa dele era de um homem inteligente, muito equilibrado, dedicado a seus deveres e com grande corao. essa impresso que se tem do Setembrino.

    P.F. O senhor acha que estaria entre as misses principais do Exrcito, naquele momento de tantos conflitos, exercer essas misses de pacificao?

    H.L. O fato de lhe terem confiado vrias misses da mesma natureza uma demonstrao de que ele exercera bem as suas funes e misses anteriores da mesma natureza.

    P.F. O senhor falou ainda h pouco dos problemas que as colunas do Exrcito enfrentaram ao se defrontarem com os grupos de jagunos. O senhor acha que isso contribuiu para trazer conscincia do pas e do Exrcito mesmo a necessidade de fazer um Exrcito mais preparado para a guerra, mais adestrado, mais forte?

    H.L. No sei. Nessa ocasio eu era apenas aspirante, mas seria natural que as dificuldades encontradas pelo nosso Exrcito no cumprimento de certas misses despertassem nos seus chefes a idia de que preciso melhor prepar- lo para no futuro ele exercer suas funes e cumprir suas misses em melhores condies. natural isso. Mas o interessante dessa campanha era a caracterstica da regio do Contestado, a mata. As casas eram construdas de madeira, com paredes de tbuas justapostas, de sorte que s vezes, com a umidade e a secura do ar abria-se uma fresta por onde penetrava um frio que congelava a gente no inverno; e a coberta tambm era de pequenas toras cortadas, depois acamadas de uma maneira especial. O assoalho tambm de madeira, tendo em alguns pontos uma toras grandes, que suportavam toda a estrutura da casa. Em alguns lugares, os nossos chefes mandavam queimar as casas, mas de um modo geral, na Campanha do Contestado se bem que houvesse alguma violncia ns respeitvamos muito a populao. Alis, as zonas em que ns agamos j estavam vazias de seres humanos, porque esses fugiam quando a luta se aproximava e iam para outra regio do estado.

    P.F. Nesse mesmo perodo tambm se inicia a Primeira Guerra Mundial, no ?

    H.L. Sim, a Primeira Guerra Mundial vai justamente de 1914 a 1918.

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    P.F. E como que o senhor, como militar, viu e sentiu a ecloso de um conflito daquelas propores?

    H.L. Naturalmente ns brasileiros estvamos afastados da regio em que o conflito era travado, mas tambm soframos, como todo mundo sofria, de ver tanta gente ser morta sem existir, afinal de contas, uma razo muito forte para que isso se processasse. E havia uma outra possibilidade tambm de o Brasil tomar parte dessa guerra. Alis, no fim da guerra, ns mandamos um pequeno contigente. Nessa fase da Primeira Guerra Mundial, eu estava fazendo curso: tive que fazer curso de engenharia e depois o Curso de Aperfeioamento de Oficiais.

    P.F. O senhor retomou a escola, quer dizer, depois de ter acabado o curso, retomou para o completar como engenheiro no IME?

    H.L. , para o curso de engenharia militar. E justamente quando estava fazendo esse curso, as aulas foram interrompidas e fomos mandados nos apresentar tropa para a eventualidade de sermos mandados para a guerra. Mas a guerra, graas a Deus, acabou mais cedo.

    P.F. A o senhor j era segundo tenente?

    H.L. J, fui promovido a segundo-tenente com dois anos de aspirante a oficial.

    P.F. E isso era comum?

    H.L. A nossa turma foi das que menos tempo demorou para ser promovida. Anteriormente, como havia excesso de oficiais, as vagas destinadas aos aspirantes eram muito poucas. Alguns aspirantes a oficial passaram trs a quatro anos antes de serem promovidos a segundo-tenentes.

    P.F. Quer dizer que s na medida em que havia promoo de segundo-tenente se abriam vagas para promoo dos aspirantes?

    H.L. , quando os segundo-tenentes fossem promovidos a primeiros haveria vagas de segundo-tenente, e os aspirantes ento eram promovidos nas suas vagas.

    P.F. E no havia um tempo fixo, um prazo fixo para isso?

    H.L. No havia prazo fixo; dependia da maneira pela qual se processavam as vagas.

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    P.F. Ento, a profisso de militar era uma profisso que exigia uma abnegao muito grande, no ?

    H.L. A profisso militar, de um modo geral, exige abnegao. Os militares so os que se preparam de antemo para uma eventual guerra e se houver qualquer guerra eles naturalmente tero que se envolver e alm disso, para preparar seus compatriotas. uma profisso que a gente comea obedecendo e aprendendo, antes de mais nada, a sofrer; uma profisso dura de ser desempenhada; a abnegao um dos elementos capitais para o bom desempenho da profisso.

    P.F. Talvez por isso, nesse tempo pelo menos os oficiais de postos superiores muitas vezes se dedicassem mais a cargos pblicos ligados administrao do que propriamente corporao, no?

    H.L. No era to grande assim esse nmero. Na antiga Escola Militar da praia Vermelha, os engenheiros militares tinham uma formao muito boa e eram os melhores engenheiros de que o Brasil dispunha naquele tempo. Por isso, eles foram chamados para outras funes, na qual a sua qualificao profissional, a sua capacidade tcnica era imprescindvel. Alguns poucos eram tambm arrastados para a poltica, pois a poltica sempre o aspirados de todas as profisses. Nem a profisso militar, infelizmente, escapa desse aspirador.

    P.F. Como que o senhor via essa questo da poltica dentro do Exrcito?

    H.L. Nessa fase da nossa vida, a interveno da poltica dentro do nosso Exrcito era muito pequena, a no ser nas lutas intestinas que ns tivemos. Tivemos essa Campanha do Contestado, devido essa questo de limites; depois tivemos a revoluo de 22; depois tivemos So Paulo em 24; depois tivemos 30; depois ns tivemos 32; depois tivemos os comunistas em 35. Em que ser que ns falhamos? Numa fase relativamente curta, quantas lutas intestinas tivemos no Brasil, com brasileiros sendo inimigos de brasileiros, com brasileiros matando brasileiros e fazendo sofrer brasileiros e brasileiras, homens, mulheres e crianas!

    P.F. O senhor acha que isso teria levado pelo menos alguns militares a perceberem no Exrcito no s uma corporao com finalidade de defesa externa, mas tambm uma corporao que tivesse tambm objetivo de garantir a paz interna ou a ordem interna?

    H.L. Isso ns fazemos desde o dia em que nos obrigamos a manter os poderes constitudos, as leis e a Constituio. Isso fundamental para ns.

    P.F. Mas a Constituio de 91, isso um fato muito curioso, ordenava ao militar que obedecesse hierarquia e atendesse aos chamados da disciplina, contanto que essa

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    hierarquia e essa disciplina estivessem ao lado da lei. A prpria Constituio de 1891 fazia essa restrio.

    H.L. Sempre a nossa obedincia aos regulamentos militares est subordinada lei suprema e Constituio. Isso no oferece dvida.

    P.F. Mas no ocorreu o problema de ser dada uma determinada ordem e um grupo resolver achar que aquela medida uma medida legal, enquanto outro grupo acha que no , que ilegal?

    H.L. Esse drama foi vivido por numerosos militares de todos os postos, em vrias pocas da histria do Brasil. Eu tive a oportunidade de viver esse drama de uma maneira acentuada por duas vezes. A primeira vez foi em 1930 e a segunda, quando tive que dar o golpe. Em 1930 eu era instrutor da Escola Militar, quando comeou a insurreio no sul e foi se desenvolvendo e progredindo. A Escola Militar, por causa da vacina obrigatria de 1904, se tornou a vanguarda dos nossos movimentos insurrecionais. Mas em 30 no participamos da insurreio: a Escola Militar s se passou para a nova situao quando nosso comandante foi ao quartel-general e voltou ordenando que hastessemos a bandeira, como sinal de que se tinha aceito a nova ordem de coisas. Os avies, de vez em quando, sobrevoavam o local para ver se o pavilho estava hasteado. Quando o general voltou da cidade e deu a ordem, imediatamente pedi demisso da Escola Militar.

    P.F. Em 1930?

    H.L. Em 1930, poca da revoluo.

    P.F. Como que se passaram os fatos? No houve ningum que tentasse sublevar a escola?

    H.L. - Sim, houve.

    P.F. E como que foram as coisas?

    H.L. Um oficial, que mais de uma vez tentou sublevar a escola, tentou entrar na parte do edifcio em que estavam as nossas armas e a nossa munio, foi notado em tempo oportuno e no pde fazer nada.

    P.F. Quem era ele?

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    H.L. No me lembro o nome dele. Alm disso, na parte dos alunos havia alguns que estavam apoiando a sublevao. Tive, por exemplo, um incidente com um grupo de alunos, porque me mantive at o fim do lado do governo.

    P.F. Por que naquele momento o senhor se mantinha ao lado do governo?

    H.L. Porque durante toda a minha vida eu me mantive ao lado do governo. No aceito a violncia como soluo para os problemas humanos e acho que a ordem deve ser mantida, desde que as Foras Armadas cumpram as suas obrigaes perante a Constituio. Uma das maiores dificuldades que j atravessei foi quando tive que dar o golpe contra o Caf Filho, alis contra Carlos Luz, porque toda a minha formao religiosa, toda a minha formao moral e profissional funcionavam como obstculos. Mas em 30 houve um momento em que um oficial ligado insurreio estava no primeiro ptio, enquanto eu estava no segundo ptio, com uma formatura de alunos. Eu era capito e quando mandei sair de forma, os alunos passaram para o primeiro ptio, voltando todos para o segundo ptio, em companhia do tal cidado. Interpelei-os, porque estavam com gritaria e lhes chamei a ateno. Mas um deles disse: A alma do cadete est vibrando? Respondi ento que ele no sabia o que estava dizendo: Voc no tem experincia da vida, no pode compreender o que est se passando no Brasil. Ns no sabemos qual ser o nosso dia de amanh, de sorte que no h razo para isso. Nosso comandante, que tambm se manteve ao lado do governo, no ficou na Escola e foi nomeado comandante da Polcia Militar. Quando o novo comandante chegou, fui-me apresentar, como comandante do batalho-escolar, que era a fora mxima da unidade. Havia um batalho de infantaria, um esquadro de cavalaria, uma bateria de artilharia e um peloto de engenharia. A infantaria era constituda pelo primeiro e segundo ano pelo curso preparatrio, ao passo que as outras armas eram constitudas apenas pelos elementos do terceiro ano, porque era s no ltimo ano que se passava para a arma.

    P.F. Ento, o senhor era uma pea importante. Se o senhor resolvesse se sublevar teria condies de levar muita gente junto.

    H.L. Justamente, eu comandava um batalho que era a fora mais numerosa da escola e felizmente tinha a meu lado um outro comandante da engenharia, porque os da cavalaria e da artilharia estavam com os rebeldes. Ns, graas a Deus, no tivemos luta interna, pois os que apoiavam a conspirao no procuraram luta no interior da escola. Mas mesmo assim, durante a noite tnhamos que ficar de guarda. Havia na escola umas janelas guarnecidas com grades de ferro grandes no sei se ainda h e elas no so muito altas, mas ficam a dois metros e meio mais ou menos do solo, do lado de fora. Postava-se ento um aluno nesta janela, com uma arma automtica, metralhadora, pronto para defender a escola, com ordem de atirar caso houvesse qualquer aproximao de tropas. E eu ficava dormindo em minha cama de campanha, levantando-me de vez em quando sempre que os alunos me chamavam. Um dos alunos parece que pretendia dar o golpe, pois eu percebi quando ele tirou a munio da arma automtica, para evitar que seus colegas pudessem se defender. A Escola Militar tem grande nmero de alunos que so filhos ou irmos de militares, sendo natural que eles seguissem a orientao dos seus parentes mais experientes, mas os que poderiam

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    realmente ser classificados como revoltosos eram poucos e no chegaram a constituir um problema para ns.

    P.F. Nesse perodo nenhum dos revolucionrios tentou se chegar ao senhor para conquistar as suas simpatias para o lado da revoluo?

    H.L. No, ningum procurou me arrastar para a revoluo. Ns estivemos l completamente separados. Interessante, eu morava no Realengo e durante esse tempo no podia sequer ir minha casa, vivendo minha vida na escola, isolado pelos edifcios.

    P.F. E naquele perodo anterior, de 1922, quando havia aquele problema do Clube Militar, do marechal Hermes, do episdio das cartas falsas, o senhor est lembrado desse perodo?

    H.L. Lembro.

    P.F. Como que essa coisa repercutiu no senhor? Porque de um modo geral os militares sentiram o Exrcito como muito ofendido com o problema das cartas.

    H.L. Em 1922 eu fazia parte do Servio Geogrfico Militar; a nossa sede era no morro da Conceio um morro no centro da cidade.

    P.F. Acabou j, no ?

    H.L. Eu no sei, era um antigo forte, era uma fortaleza que foi utilizada para o Servio Geogrfico.

    P.F. Era ali onde o Castelo agora, no ?

    H.L. No, o Castelo outro morro e foi derrubado; o morro da Conceio existe ainda. Mas ns, na Seo de Geodesia, naturalmente conversvamos a respeito do que se passava no Brasil. A situao estava se agravando a cada momento. Um dia, depois de acabado o trabalho, descamos eu, um colega de artilharia cidado de uma inteligncia muito brilhante e excelente profissional e um outro companheiro, trocando idias. Durante a conversa, chamaram esse meu colega de uma das janelas. Esse forte tinha uma entrada grande e alta, com um porto de grades de ferro muito largo. Uma rampa leva at uma certa elevao, ao nvel da qual foram construdos os outros edifcios, e ns descamos essa rampa, quando um colega chegou janela e chamou um dos que me acompanhava: Olha, esto chamando voc ao telefone.

    [FINAL DA FITA 2-B]

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    H.L Enquanto ele foi falar ao telefone, ns continuamos, eu para a minha casa, e o outro colega para a dele. No outro dia houve a revoluo no Forte de Copacabana. Qual no foi a nossa surpresa, mais tarde, ao sabermos que esse colega, Joo Carlos Barreto, estava l! Foi chamado porque era da Seo de Geodesia, e o canhes do Forte de Copacabana s podiam atirar contra o mar.

    P.F. Eles eram calculados para atirar para o mar, no ?

    H.L. , no podiam atirar para terra, os revoltosos queriam atirar sobre o quartel-general do Exrcito. Ento, esse, que era um canho potente para poca, precisava ser reorientado, mas como eles no tinham l ningum capaz de fazer esse servio procuraram Jos Carlos Barreto, que era da Seo de Geodesia. E assim foi feito. Um oficial da Misso Francesa estava no Ministrio da Guerra quando um dos projteis caiu no campo de Santana, e se retirou quando o brasileiro que o acompanhava disse: Eles vo acabar acertando o Ministrio.

    H um outro fato, tambm ligado minha pessoa. Meu amigo Vtor Csar da Cunha Cruz, meu colega do Colgio Militar e da Escola Militar, foi padrinho do meu primeiro casamento. Eu me casei com 21 anos e minha esposa tinha 16 anos. Era segundo-tenente. Esse meu colega, Vtor Csar da Cunha Cruz, foi para a Escola Militar, indicado por mim, quando sa da escola e entrei para o Servio Geogrfico. Eu era engenheiro militar e no tinha nenhuma especialidade. Como havia uma Misso Militar Austraca, de elementos de capacidade profissional fora do comum, fora de srie, como dizem hoje, que tinham vindo organizar o Servio Geogrfico Militar...

    P.F. Misso Austraca, ?

    H.L. , austraca. Eu, ento, sabendo disso, resolvi ir para o Servio Geogrfico mesmo com prejuzo, porque na Escola Militar eu ganhava 300 mil-ris a mais. Como tenente meus vencimentos somavam 450 mil-ris, de sorte que a diferena era grande, mas assim mesmo fui para o Servio Geogrfico Militar. Eu morava no Engenho Novo, de um lado do morro do Vintm, enquanto do outro lado, j no Mier, morava esse meu colega Cunha Cruz. Ns nos visitvamos amide. Nossas mes foram colegas na Escola Normal, de forma que a amizade de famlia j era antiga. Quando ele foi convidado para a revolta, teve que tomar o trem no subrbio l no Engenho Novo, para depois em Deodoro passar para o outro trem para ir para Resende. Ele lembrou-se de vir falar comigo, mas depois ele pensou: No, o Lott tem um bocado de filhos. No vou lev- lo para isso no. E no me falou nada. S que eu, de manh cedo, quando ia tomar o trem eu ia da Central ao morro da Conceio a p para economizar cem ris, para ir para o servio geogrfico vi uma tropa da polcia ocupando a estao e fiquei surpreso. Quando indaguei o que tinha havido, me disseram que a Escola Militar tinha se revoltado, o forte tambm, que havia uma revoluo. Um oficial de polcia estava falando disso e assim fiquei sabendo da revolta, seguindo direto para o Servio Geogrfico, mas l no tive nenhuma misso.

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    P.F. O senhor no participou daquelas assemblias do Clube Militar organizadas para discutir as tais cartas do Bernardes?

    H.L. No, eu no acreditava que aquelas cartas fossem verdadeiras; achava uma coisa to tola que um cidado inteligente como o Bernardes no ia cometer. As cartas foram forjadas. Havia gente interessada em que o Exrcito se rebelasse, e alguns realmente se revoltaram, mas a luta da Escola Militar foi ruim, pois os alunos sofreram muito.

    Meu primo e cunhado porque minha esposa minha prima irm Jorge Duffles Teixeira de Andrade, era aluno da Escola Militar em 22. Ele mineiro e sua famlia, inclusive, simptica ao Berna rdes, de sorte que ele no tinha razo poltica para entrar na briga. Mas entrou por camaradagem na revolta. Depois, quando foi sufocado o levante, os alunos foram chamados para dizer se tinham ido por sua vontade ou se tinham sido obrigados, e ele foi dos que disseram que foi porque quis ir. A partir da comeou o sofrimento dos alunos. Foram excludos da escola, foram mandados para a tropa, depois foram expulsos do Exrcito. Esse meu primo no teve grandes dificuldades, porque seus pais e seu av tinham indstrias em Stio. Eram donos de uma fbrica de manteiga e queijo e de uma fbrica de cigarro, possuindo, alm disso, fazendas, de sorte que ele foi trabalhar na administrao, auxiliando seus pais. Um dia, quando ele j estava em Stio, vieram dizer que tinha um homem muito fraco, parecendo tuberculoso, procurando-o.

    Era um colega, chamado Mrio Vitrio, que sendo pobre no conseguiu se alimentar o suficiente e acabou tuberculoso. Esse meu primo era to bom que conseguiu com os pais uma casa onde o amigo ficou alojado, sendo sustentado por ele. Vitrio melhorou, pois o clima do lugar era muito bom, mas comeou a ir a danas e no sei mas o qu, acabando por recair e morrer. E outro fato que mostra a extenso da perseguio que esse meu primo, antes de trabalhar com os pais, quis ir para a Escola de Minas em Ouro Preto, na qual lecionava um tio. Ele chegou a matricular-se, mas foi expulso por ser revoltoso de 22. Ento, foi uma perseguio mesquinha contra os alunos. Eles sofreram muito.

    P.F. Onde o senhor estava servindo em 24?

    H.L. Em 24, no me lembro agora.

    P.F. O senhor foi instrutor da Escola de Sargentos?

    H.L. Sim, mas no me lembro agora onde servia em 1924. Sei, porm, que me mandaram me apresentar ao Departamento da Guerra para ser designado para ir lutar contra os revoltosos de 24, l encontrando esse meu primo. O que que voc est fazendo aqui? Ele j era aluno da Escola Militar, porque houve a anistia.

    P.F. Em 24 no houve anistia, o pessoal foi todo condenado.

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    H.L. No, ento isso em 32. Mas ento eu perguntei: O que que voc est fazendo aqui? Ele disse: Vim me apresentar para ir para a luta. Interroguei: Voc foi chamado? Ele respondeu: No, mas esse governo me deu a anistia, de sorte que minha obrigao ir defend- lo. E foi. E ele lutou com tanta bravura que morreu com uma bala no peito, na frente de seu peloto. Um homem bom, estimadssimo, que distribua com seus soldados os abrigos e guloseimas que a senhora dele, muito carinhosa e dedicada, lhe mandava. Morreu em combate.

    P.F. Marechal, a Misso Militar Francesa, que veio ao Brasil em torno de 1919, que modificaes o senhor acha que trouxe para o Brasil?

    H.L. A Misso Militar Francesa trouxe grandes modificaes. Os franceses mandaram para o Brasil um grupo de oficiais de primeiro plano, chefiados pelo general Gamelin, que iria mais tarde exercer funes muito elevadas na Segunda Guerra. E havia outros bons instrutores, inclusive um outro oficial que encontrei depois, quando fui aluno da Escola Superior de Guerra em Paris. At ento nossa instruo deixava muito a desejar, porque no tnhamos experincia de guerra, a no ser essas lutas intestinas. Entretanto, com o aparecimento de novas armas, a estratgia e a ttica haviam evoludo muito, de sorte que era preciso que tomssemos contato com essas novas idias. E justamente para isso que a Misso Militar Francesa serviu. Ela atuou em todas as escolas: havia professores na Escola de Estado-Maior, instrutores na Escola de Aperfeioamento de Oficiais e alguns auxiliares na tropa, mas principalmente nas duas primeiras. A Escola de Aperfeioamento de Oficiais instrua tenentes e capites para que eles se preparassem melhor para o exerccio de suas funes. E a Escola de Estado-Maior ensinava os futuros chefes e futuros oficiais de Estado-Maior. De sorte que a Misso Militar Francesa prestou excelentes servios ao Brasil.

    P.F. De certo modo, veio completar uma reforma do Exrcito, porque a primeira reforma seria a Lei do Sorteio, que instituiu o Servio Militar obrigatrio.

    H.L. A Lei do Sorteio foi bastante antes, em 1917. Tive um primo irmo que estudou medicina. Ele se chamava Mrio e era filho do meu tio Hermano Lott, que morreu com 98 anos. Pois bem; Mrio Lott foi convocado para se apresentar numa companhia que instalaram em Belo Horizonte, no Pavilho da Imigrao, nos arredores da cidade. Como a Escola de Medicina, ao contrrio de outros rgos, mandou a lista dos alunos que estavam na idade de serem convocados, quando foram fazer a convocao, chamaram vrios de seus alunos. Essa companhia era comandada por um oficial muito traquejado, porm grosseiro, e tinha um sargento que tambm maltratava os soldados. Os alunos da escola superior, naturalmente, no aceitavam bem as grosserias do sargento e um dia combinaram de reclamar junto ao capito das brutalidades que vinham sofrendo. O capito, entretanto, talvez porque tenha sabido antecipadamente da inteno dos alunos, talvez por uma percepo subconsciente, no dia em que os alunos pretendiam reclamar entrou com o diabo no corpo no quartel e fez tanta grosseria, que eles disseram: No vamos perder tempo de falar com ele; ele pior que o sargento. Mais tarde comandei essa companhia e nela se passou aquele episdio que eu falei da vez passada, do soldado cujo pai veio me agradecer com lgrimas nos olhos a transformao do filho.

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    I.F. Marechal, o senhor pegou o Exrcito sob influncia alem e depois essa transformao da Misso Francesa. O que que nos poderia falar sobre essa mudana?

    H.L. A influncia alem foi pequena, porque veio atravs de alguns oficiais nossos que fizeram estgio na Alemanha, como o Armnio Borba de Moura, de quem j lhes falei. Eles naturalmente trouxeram alguma melhoria, mas eram oficiais de postos inferiores, de forma que com influncia limitada. Por isso, a influncia alem no se fez sentir, nem profunda, nem extensamente no Brasil.

    P.F. O senhor acha que esses oficiais que estiveram na Alemanha chegaram a ser hostilizados?

    H.L. No, nunca foram hostilizados.

    P.F. Mas tambm no chegaram a ter influncia decisiva.

    H.L. Alguns tiveram. Bertoldo Kliger era um oficial ligado Alemanha e exerceu vrias funes sendo, inclusive, comandante das tropas revoltosas de Mato Grosso. Era um oficial de qualidades excepcionais, excelente oficial.

    P.F. E como que se situava a questo dos armamentos nesse perodo?

    H.L. Nossos armamentos eram em geral alemes. Tnhamos fuzil Mauser e canho Krupp. Eram os armamentos que nosso Exrcito tinha nessa fase. Inclusive, h pouco tive notcia da substituio dos canhes Krupp do Forte So Joo, que j estavam muito velhos.

    P.F. Mas o material de guerra era todo ele importado da Alemanha, no ?

    H.L. , nessa ocasio ns fabricvamos munio em Realengo, na fbrica de cartuchos da infantaria. A munio para nossas armas portteis metralhadoras e fuzis eram fabricadas l no Realengo, na nossa fbrica.

    P.F. Mas este fato no deixava o pas numa situao um pouco delicada em relao nossa prpria soberania?

    H.L. No; naturalmente, sempre arriscado estar dependendo de outro pas para fornecimento de armamento. No se sabe se no caso de o pas necessitar entrar numa

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    luta de que lado vo ficar os fornecedores. , realmente um risco muito grande. Felizmente, hoje j fabricamos uma boa parte do nosso armamento.

    P.F. Quer dizer que o senhor acha que a industrializao que veio superar isso?

    H.L. Sim, naturalmente, mas tambm tive oportunidade de comprar armamento na Dinamarca para o nosso Exrcito. Mais tarde, tivemos metralhadoras Madsen, feitas na Dinamarca, que eram boas metralhadoras tambm.

    P.F. O senhor acha que os oficiais do Exrcito pensavam nisso, na necessidade de industrializar o pas, a fim de acabar com essa dependncia do exterior?

    H.L. Mas no adiantava os oficiais pensarem porque no existiam funes onde esses pensamentos pudessem ser postos em ao. Era evidente que precisvamos fabricar armamento. J estvamos fabricando munies, mas os armamentos no podamos. Depois, comearam a ser fabricadas armas para civis no Rio Grande do Sul.

    P.F. Nesse sentido, ento, os governos da Repblica Velha, que s viviam preocupados com o preo do caf e com a agricultura, no era um governo que pudesse agradar muito ao Exrcito, no ?

    H.L. Mas para o Exrcito no se trata disso. Se o governo foi escolhido pelo povo ns, gostemos ou no gostemos, temos que servi- lo. Alguns deles, naturalmente, no nos eram simpticos, tanto que houve alguns movimentos. Campos Sales no era muito simptico; o prprio Rodrigues Alves; com Bernardes ns sabemos o que se passou...

    [INTERRUPO DE FITA]

    3 Entrevista: 31.10.1978

    P.F. Marechal, nessa entrevista gostaramos de cobrir especialmente aqueles assuntos relativos dcada transformadora de 1930. E para comear, ns pediramos que o senhor nos refrescasse a memria de como a Revoluo de 30 o apanhou como instrutor da Escola Militar do Realengo.

    H.L. Em 1929 fui pela terceira vez nomeado instrutor da Escola Militar. Nessa ocasio, tnhamos um nmero de alunos bastante grande, tendo sido, inclusive, necessrio um aumento das instalaes. Antigamente s havia o primeiro ptio, mas construram uma outra rea, que constituiu uma nova zona cercada pelos quatro lados, chamada de segundo ptio. Eu exercia a funo de instrutor-chefe de infantaria. Era capito e, como instrutor-chefe de infantaria, comandava um batalho de alunos. A Escola Militar era constituda por dois anos no curso preparatrio; depois dois anos de

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    curso geral, em que os assuntos relacionados s trs armas eram ensinados; depois, no terceiro ano, os alunos eram orientados para as respectivas armas. De modo que s os alunos do terceiro ano que pertenciam arma especfica de artilharia, cavalaria ou engenharia; os outros, enquanto estavam no curso geral, eram de infantaria. Da sermos uma proporo muito grande em relao aos alunos das outras armas, tendo um batalho de alunos, ao passo que havia apenas um esquadro de cavalaria, uma companhia de engenharia e uma bateria de artilharia. E da a influncia maior que ns, instrutores de infantaria, tnhamos sobre a orientao da instruo, manuteno da disciplina e formao profissional dos futuros oficiais. Os alunos que entravam para o curso preparatrio passavam quatro anos orientados pelos instrutores de infantaria e s um ano pelo instrutor da arma a que se destinariam mais tarde. De modo que tnhamos uma ascendncia bastante grande sobre o conjunto dos alunos da Escola Militar.

    Em 1930 ocorreu uma grande crise, devido s eleies, e que acabou desaguando na chamada Revoluo de 30. A revolta se iniciou no Rio Grande do Sul e a Escola Militar no se envolveu nessa luta. Ns fizemos o possvel para que a escola no se envolvesse, colocando nos pontos-chaves instrutores com um grupo de alunos armados para repelir qualquer tentativa de invaso.

    P.F. Como era o nome do comandante da Escola?

    H.L. Cavalcanti, Ele no transigiu e se manteve ao lado do governo at o fim. A revoluo veio caminhando do sul para o centro do Brasil, progredindo at chegar ao Rio. Mas ns ainda nos mantivemos ao lado das autoridades constitudas at que o general Deschamps foi ao Ministrio da Guerra e l verificou que no era plausvel continuar a luta e deveramos aderir revoluo vencedora.

    P.F. Mas no chegou a haver tentativa de sublevar a escola?

    H.L. Sim, houve um oficial, cujo nome no me recordo, que por duas vezes tentou penetrar na escola. Numa delas conseguiu, sub-repticiamente, alcanar seu intento. Ns tnhamos l um grande salo que servia de depsito para o armamento e a munio da infantaria. Nesse depsito, havia um sargento responsvel pelo servio e certo nmero de soldados que eram seus auxiliares, estando sempre, naturalmente, algum de guarda. No sei como esse oficial, fardado, conseguiu iludir a guarda e penetrar. Mas se no me falha a memria o coronel Rondon, que era na ocasio tenente, o descobriu e conseguiu impedir que ele levasse a fim os seus propsitos.

    P.F. Esse oficial era parente do marechal Rondon?

    H.L. Era sobrinho, chamava-se Joaquim Vicente Rondon. Mas houve tambm um pequeno grupo de alunos que tentou levantar os colegas. Uma boa parte dos alunos da Escola Militar parente filho, primo, irmo, sobrinho de outros oficiais do Exrcito, da Marinha ou Aeronutica, de sorte que era natural que eles sofressem certa influncia, embora, sendo de uma minoria muito reduzida, nada tenham conseguido. Chegou a haver um incidente, at certo ponto ridculo, quando eu estava no primeiro ptio e ouvi

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    um vozerio no terceiro. Fui ver o que era, e l estavam os alunos reunidos em torno de um oficial, calando-se, porm, quando lhes chamei a ateno: O que que est se passando aqui? Respondeu-me um dos alunos: A alma do cadete est vibrando, seu capito. Apliquei- lhes, ento, um sermo: Vocs no sabem o que esto dizendo. Como que pode a alma do cadete estar vibrando, quando ns vivemos uma situao dbia, difcil de saber o que vai se passar no Brasil depois disso, e mesmo o que nesse momento se passa. No sabemos o que o futuro nos reserva, de modo que o momento agora de muita meditao, de muito cuidado. E o problema se resolveu imediatamente. Mas o general Deschamps, indo ao quartel-general do Exrcito, de l deu ordem para que a escola no continuasse ao lado da autoridade at ento constituda, determinando que, como sinal de adeso, o pavilho nacional fosse hasteado. Havia um avio que sobrevoava os quartis do Rio para ver quais aqueles que j tinham aderido e, ao passar por l, verificou que a Escola Militar j no estava contra a revoluo. Imediatamente pedi demisso da Escola Militar e logo no dia seguinte de manh cedo fui comprar estampilhas para selar meu requerimento. O general Deschamps foi nomeado comandante da polcia e, em virtude disso, substitudo.