Luciano Koji Abe O processo de criação do telejornal Fantástico · 2017. 2. 22. · A pesquisa...

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Luciano Koji Abe O processo de criação do telejornal Fantástico nas matérias com enfoque em personagens Mestrado em Comunicação e Semiótica SÃO PAULO 2016

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  • Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    PUC-SP

    Luciano Koji Abe

    O processo de criação do telejornal Fantástico

    nas matérias com enfoque em personagens

    Mestrado em Comunicação e Semiótica

    SÃO PAULO

    2016

  • 2

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    PUC-SP

    Luciano Koji Abe

    O processo de criação do telejornal Fantástico

    nas matérias com enfoque em personagens

    Mestrado em Comunicação e Semiótica

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

    exigência parcial para obtenção do título de Mestre

    em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da

    Prof.a Dr.a Cecilia Almeida Salles

    SÃO PAULO

    2016

  • 3

    Banca Examinadora

    ________________________________________

    ________________________________________

    ________________________________________

  • 4

    Agradecimentos

    Em primeiro lugar, quero agradecer especialmente aos meus pais, Cata-

    rina e Takayuki, que sempre me deram o suporte necessário ao meu desenvol-

    vimento profissional e acadêmico, acreditaram em minha capacidade e me

    apoiaram em todas as minhas decisões. Esta dissertação não seria possível

    sem eles. Muito obrigado por tudo!

    Discutir televisão no meio acadêmico é um trabalho árduo, mas gratifi-

    cante e compensador. É inegável que a maioria prefira discutir o cinema, mas

    confesso meu amor à televisão. Por essa razão, agradeço à minha orientadora

    Cecília Almeida Salles, que foi de fundamental importância na inspiração teóri-

    ca e na busca dos nós da minha rede.

    Agradeço também aos amigos e professores da PUC-SP que colabora-

    ram com ideias, conselhos, críticas e conversas. Seria uma injustiça citar os

    nomes dos meus colegas, pois com certeza irei me esquecer de alguém. Por-

    tanto, sintam-se todos abraçados. No entanto, tenho uma gratidão especial por

    todos que colaboraram com proveitosas observações no grupo de pesquisa em

    processos de criação. Minhas terças nunca foram tão produtivas!

    Assistir às aulas de Cecília Salles, José Aidar, Lúcia Leão, Amálio Pi-

    nheiro, Leda Tenório, Lucia Santaella e Arlindo Machado foi como navegar nas

    águas do rio Amazonas e adentrar em seus inúmeros afluentes. Processos de

    criação, teorias críticas da massa, hipermídia, mestiçagem, Roland Barthes e

    Charles Pierce. Onde mais eu aprenderia tudo isso em somente dois anos se

    não fosse na PUC-SP, que me acolhe com tanto carinho desde a minha gradu-

    ação em jornalismo?

    Por fim, agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico

    e Tecnológico – CNPq pela bolsa integral que me possibilitou dedicação à pes-

    quisa e à vida acadêmica.

  • 5

    Se você detesta televisão, sobretudo a programação da Rede Globo e o

    Fantástico, por favor, não prossiga. Mas se você está livre das amarras ideoló-

    gicas e não tem preconceitos, siga em frente. O leitor desta dissertação está

    livre para trocar de canal, ou melhor, de livro, quando quiser.

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    “Que a televisão não seja o inferno, eterno ermo

    Um ver no excesso o eterno quase nada

    Que a televisão não seja sempre vista

    Como a montra condenada, a fenestra sinistra

    Mas tomada pelo que ela é

    De poesia.”

    (Caetano Veloso)

  • 7

    RESUMO

    Esta dissertação analisa os processos de criação do programa dominical Fantástico nas

    matérias telejornalísticas veiculadas pela Rede Globo nos anos 2014-2015, com enfoque

    nas semelhanças e diferenças entre o cinema e a televisão, ao lidarem com protagonistas

    e a jornada do herói. A pesquisa investiga o processo de criação do telejornal por inter-

    médio de recursos utilizados no cinema ficcional ou documental, tais como a montagem

    e o roteiro. Por mais diferente que seja do cinema, a televisão, que se popularizou na

    década de 1950 com o objetivo de civilizar e entreter os telespectadores, teve como base

    a criatividade da invenção dos irmãos Lumière. O capítulo inicial do texto traz um breve

    histórico do programa Fantástico, com o foco na delimitação da pesquisa, até chegar ao

    atual formato de redação-estúdio, ao mesmo tempo em que aumentam a diversidade de

    programação e o número de canais, sobretudo com o advento da TV a cabo. O segundo

    capítulo aborda os procedimentos de roteiro na construção de personagens. Esta parte da

    dissertação busca compreender os recursos que a reportagem do telejornalismo com

    base na construção de histórias de vida de indivíduos ou de grupos sociais utiliza para

    estimular as emoções do telespectador. O capítulo final trata dos recursos audiovisuais

    na construção de personagens e analisa algumas reportagens. O texto deste capítulo de-

    dica um tratamento maior à imagem no mundo pós-moderno e logo-icônico e à monta-

    gem por meio do ritmo e das sensações. A dissertação tem base nas teorias de Edgar

    Morin e Cecília Almeida Salles, com a importância das teorias da criação como rede e

    das influências culturais para se pensar a produção de um telejornal.

    Palavras-chave: comunicação, telejornalismo, roteiro, edição, fotografia.

  • 8

    ABSTRACT

    This dissertation analyzes the creative process of Rede Globo's Sunday news broadcast,

    Fantástico, produced during the years 2014-2015, focusing on similarities and differen-

    ces between film and television, as they pertain to protagonists and the hero's journey.

    The research investigates the program's creative process through the examination of

    fictional and documentary film resources, such as studying scripts and editing techni-

    ques. As with cinema, television, which was popularized in the 1950s with the aim of

    educating and entertaining viewers, was based on the creativity of the invention of the

    Lumière brothers. The text of the first chapter provides a brief history of Fantástico,

    with focus on the delimitation of the research, up to the present newsroom-studio for-

    mat, at the same time increasing the diversity of programming and the number of chan-

    nels, especially with advent of cable TV. The second chapter addresses the script wri-

    ting procedures in the construction of characters. This part of the dissertation, based on

    the construction of life stories of individuals or social groups, attempts to understand the

    resources that the television news report use to stimulate the viewer's emotions. The

    final chapter deals with audiovisual resources in building characters and analyzes some

    reports. The text of this chapter devotes greater treatment to the image in the post-

    modern world and editing through rhythm and sensations. The dissertation is based on

    the theories of Edgar Morin and Cecilia Almeida Salles, with the importance of theories

    of creation as network and cultural influences to think about the production of a news-

    cast.

    Keywords: communication, TV Journalism, script, editing, photography.

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    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10

    1. O FANTÁSTICO – A REVISTA ELETRÔNICA NO DOMINGO DA GLOBO .......... 18

    1.1. O Fantástico no formato de redação-estúdio ...................................................... 21

    1.2. Reunião de pauta ................................................................................................ 34

    1.3. Participação do telespectador ............................................................................. 39

    1.4. O fait divers .......................................................................................................... 45

    1.5. Reportagem especial ........................................................................................... 49

    1.6. Delimitação das matérias estudadas .................................................................. 55

    2. PROCEDIMENTOS DE ROTEIRO NA CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS ....... 57

    2.1. A construção de histórias motivacionais ............................................................. 57

    2.2. O melodrama ....................................................................................................... 61

    2.3. O personagem ..................................................................................................... 64

    3. RECURSOS AUDIOVISUAIS NA CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS............... 70

    3.1. O papel da imagem no telejornal ........................................................................ 70

    3.2. A edição e a difícil tarefa de combinar planos .................................................... 73

    3.3. Análise de matérias ............................................................................................. 79

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 98

    REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 101

    ANEXOS ....................................................................................................................... 107

  • 10

    INTRODUÇÃO

    Por mais diferente que seja do cinema, a televisão, que se popularizou

    na década de 1950 com o objetivo de educar, informar e entreter os telespec-

    tadores, ou como disse Huw Wheldon, executivo da BBC nos anos 60, “tornar o

    bom popular e o popular, bom”, teve como base a criatividade da invenção dos

    irmãos Lumière. Não é à toa que muitos cineastas, a exemplo de Godard, Mi-

    chel Gondry, Jorge Furtado e Eduardo Coutinho, também fizeram vários traba-

    lhos para a televisão.

    As salas de cinema estão ficando menores, as televisões estão ficando

    maiores. A programação televisiva que antes era de difícil acesso de-

    pois da transmissão original, a não ser em reprises (como “Vale a pena

    ver de novo”) agora está ficando cada vez mais disponível em DVDs ou

    na internet e plataformas de streaming. Ao mesmo tempo, a qualidade

    de muita programação na televisão está melhorando e em alguns ca-

    sos se igualando a do cinema. (...) Enfim, há grande criatividade tanto

    na televisão quanto no cinema – entrevista de Randal Johnson ao por-

    tal de notícias G11

    Ao contrário da televisão com suas inúmeras distrações, o cinema exige

    um público concentrado diante de duas horas ininterruptas de uma história con-

    tada por meio do audiovisual. O ambiente da sala de cinema é escuro para que

    não haja distrações, e a maior parte dos acompanhantes são desconhecidos.

    Para evitar a sensação de imersão do cinema e provar que a televisão

    não é somente a sua miniatura na casa das pessoas, os Estados Unidos pen-

    saram a tevê como uma extensão do rádio, para ser visto enquanto se faz ou-

    tras tarefas e ser ouvido em outros locais da casa. No Brasil, a propaganda no

    início da década de 1950, quando Assis Chateaubriand, dono do império Diá-

    rios e Emissoras Associados, trouxe a TV para o Brasil, até dizia: “comprem

    uma televisão: o rádio com imagens” (KLAGSBRUNN, 1991, p. 88). A televi-

    são, no entanto, não apresenta a agilidade nem o imediatismo do rádio. Por

    1 Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/pop-arte/blog/maquina-de-escrever/post/randal-johnson-relacao-entre-o-cinema-e-televisao-esta-mudando.htmlhttp://g1.globo.com/pop-arte/blog/maquina-de-escrever/post/randal-johnson-relacao-entre-o-cinema-e-televisao-esta-mudando.html

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    outro lado, ela tem uma arma poderosa: a informação visual. Ouvimos a notícia

    no rádio e logo ligamos a TV para ver as imagens.

    O cinema não trabalha o mesmo verossímil que a imprensa, nem o jor-

    nal diário o mesmo que a revista feminina, não jogam com as mesmas

    regras, que são as regras desde as quais o espectador ou leitor olha ou

    lê. A probabilidade ou improbabilidade de algo não reside na natureza

    intrínseca do fato, não é problema de essência mas de existência, de

    código e de prática social (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 90).

    A união entre mensagem visual e mensagem auditiva dentro de casa ga-

    rante fácil acesso ao conhecimento e uma forte penetração da TV, atingindo

    um público diversificado de todas as classes sociais, faixas etárias e escolari-

    dade, o que permite que até mesmo analfabetos possam receber as notícias

    gratuitamente. “Ela desfruta de um prestígio tão considerável que assume a

    condição de única via de acesso às notícias e ao entretenimento de grande

    parcela da população” (REZENDE, 2000, p. 23).

    Com a televisão, espectadores conseguem acompanhar eventos do ou-

    tro lado do mundo e no mesmo instante. É o principal meio de informação e

    entretenimento de grande parte do planeta, sobretudo a partir da segunda me-

    tade do século 20, quando a TV se tornou o meio de comunicação hegemôni-

    co. A televisão envolve o telespectador porque tem o poder do audiovisual do

    cinema com o alcance do rádio. Apesar disso, ela se resume à transmissão de

    informações breves e ao entretenimento.

    É difícil hoje pretender abordar a historicidade de um gênero popular

    limitando-se a estabelecer conexões com os produtos que o precede-

    ram. Se há parentesco, há, sobretudo, ruptura: o novo produto que

    consideramos é influenciado por outras lógicas estéticas e soci-

    ais, situa-se no centro de outras estratégias industriais, está escrito em

    diferentes formas de produção e de consumo (MATTELART, 1989, p.

    21).

    O poder da imagem televisiva é tão grande que o The New York Times

    comparou a primeira transmissão nacional de um programa de televisão em

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    cores2 a uma obra de arte. “Concentrar tanta informação de cor dentro da mol-

    dura de uma pequena tela seria difícil até para o mais talentoso artista fazendo

    uma pintura ‘imóvel’. Fazê-lo com imagens em constante movimento parecia

    pura mágica”, escreveu o jornal.

    A televisão vive um momento de crise, ao mesmo tempo em que aumen-

    tam a diversidade de programação e o número de canais, sobretudo com o ad-

    vento da TV a cabo no final dos anos 1970. A concorrência com outras mídias

    e o autoritarismo da audiência levou à necessidade de mudanças.

    Com a expansão do número de televisores no mundo, cresceu o número

    de telejornais para informar um público cada vez mais ávido por notícias. Nos

    anos 50, pouco se falava de jornalismo na TV. Hoje, com 65 anos de história3,

    os telejornais conquistam cada vez mais espaço. Somente a Globo, por exem-

    plo, apresenta oito telejornais diários na TV aberta. Sem contar os programas

    de entretenimento, como o Encontro com Fátima Bernardes, que incluem notí-

    cias que foram divulgadas pela emissora em suas pautas jornalísticas.

    Embora haja muitas opções, o telespectador não encontra muita varie-

    dade na forma de contar as histórias, que costumam ser as mesmas nos diver-

    sos canais, pois o telejornal é o gênero televisivo mais rigidamente codificado

    (MACHADO, 2000), sendo igual em todas as partes do mundo. Críticos da cul-

    tura de massa, Adorno e Horkheimer afirmam que “A cultura contemporânea a

    tudo confere um ar de semelhança” (2002, p. 5). O mesmo telejornal pode até

    trazer matérias semelhantes em épocas diversas, pois o público está em cons-

    tantes mudanças. Por essa razão, a matéria pode reaparecer alguns anos de-

    pois sem ser considerada repetitiva pela audiência.

    A construção de um presente (...) que quer esquecer o passado e dá a

    impressão de já não acreditar no futuro, foi conseguida pela circulação

    incessante da informação, que a cada instante retorna uma lista bem

    2 Em 1º de janeiro de 1954, a NBC exibiu o desfile do Torneio das Rosas totalmente em cores.

    3 O primeiro telejornal brasileiro foi o “Imagens do Dia”, que estreou em 19/09/1950, segundo

    dia após a implantação da primeira emissora de TV do Brasil: a PRF-3 TV Difusora, depois TV Tupi de São Paulo.

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    sucinta das mesmas tolices, anunciadas com entusiasmo como novi-

    dades importantes, ao passo que só se anunciam pouquíssimo, e aos

    arrancos, as notícias de fato importantes, referentes ao que de fato

    muda (DEBORD, 2013, p. 176)

    Para demonstrar que o telejornalismo tem uma gramática própria com

    suas regras de conduta, os videoartistas Antonio Muntadas e Hank Bull até edi-

    taram um vídeo ("Cross-cultural Television", de 1987) com partes de telejornais

    de vários países. Nele, os repórter e âncoras usam o mesmo tom de voz, e as

    reportagens exibem os mesmos padrões de apresentação das matérias. As

    imagens de vários telejornais diferentes apenas reiteram o que diz a narração e

    têm enquadramentos semelhantes.

    Tecnicamente falando, um telejornal é composto de uma mistura de

    distintas fontes de imagem e som: gravações em fita, filmes, material

    de arquivo, fotografia, gráficos, mapas, textos, além de locução, música

    e ruídos (MACHADO, 2001, p. 103-104).

    Isso ocorre porque a produção de um telejornal é coletiva, com profissi-

    onais que trabalharam em diversos meios de comunicação, e olha constante-

    mente para a concorrência, seja no impresso, no rádio ou na televisão. Nas

    avaliações do dia dentro de uma redação, os jornalistas discutem, pressiona-

    dos pelos índices de audiência, o que o concorrente produziu e que eles não

    fizeram.

    No dia seguinte, o assunto omitido estará na pauta com diferenças sutis,

    imperceptíveis para um leigo, mas consideradas um grande diferencial para o

    canal. Tentam obter um furo, uma entrevista ou uma imagem que o outro não

    conseguiu. No entanto, a base de informações é a mesma, com os mesmos

    entrevistados e os mesmos dados por falta de tempo ou comodidade.

    Para ser o primeiro a ver e a fazer ver alguma coisa, está-se disposto a

    quase tudo, e como se copia mutuamente visando a deixar os outros

    para trás, a fazer antes dos outros, ou a fazer diferente dos outros,

    acaba-se por fazerem todos a mesma coisa, e a busca da exclusivida-

    de, que, em outros campos, produz a originalidade, a singularidade, re-

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    sulta aqui na uniformização e na banalização (BOURDIEU, 1997, p.

    27).

    Porém, enquanto “zapeava” pelos padronizados telejornais brasileiros,

    eu me deparei com uma reportagem do Fantástico que não seguia o telejorna-

    lismo tradicional do hard news, pois apresentava uma história diferente e me-

    lhor elaborada, com um personagem que já estava morto. A chamada da repor-

    tagem dizia que as filhas de um professor descobriram, após a morte dele, 130

    cartas escritas por ex-alunos há mais de 20 anos e decidiram continuar a mis-

    são do pai.

    Era uma reportagem especial e exclusiva, com um trabalho mais aprimo-

    rado de edição, roteiro, imagens e escolha dos entrevistados. Nela, o repórter

    cinematográfico usou até um plano-sequência, recurso muito utilizado no cine-

    ma, sobretudo nos filmes franceses da Nouvelle Vague. A cada semana eu

    encontrava uma ou duas matérias que se sobressaíam no Fantástico e esta-

    vam longe do hard news das grandes redações.

    Dessa forma, fiquei curioso em saber como eram construídas essas ma-

    térias e de que forma mexiam com a emoção do telespectador, visto que se

    baseavam em histórias de superação. Essas matérias ganham conotações me-

    lodramáticas por intermédio do sentimentalismo exagerado, do primeiríssimo

    plano nos olhos do personagem e dos fundos musicais que induzem o espec-

    tador ao choro.

    Embora o entretenimento ocupe boa parte da programação das emisso-

    ras, a importância do telejornalismo nos canais abertos e o aumento do número

    de telejornais são características da televisão do século XXI. Com as mesmas

    pautas, as emissoras buscam um diferencial, uma linguagem própria para atrair

    a atenção do telespectador e evitar que ele mude de canal.

    Portanto, nada melhor que transformar o telespectador comum em herói,

    como ocorre nas matérias com foco num só personagem. Nesses casos, os

    telejornais liberam a criatividade e, por vezes, utilizam recursos técnicos da

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    montagem como o falso-raccord, a repetição (instant replay) e a câmera lenta,

    que levam a TV ao cinema primitivo.

    Em suma, qualquer que seja a categoria de um programa de televisão,

    ele deve sempre entreter e pode também informar. Pode ser informativo, mas

    deve também ser de entretenimento (SOUZA, 2004, p. 39).

    Chamou-me a atenção outra característica importante do programa exi-

    bido pela Globo em horário nobre4, nas noites de domingo. Sem o formato con-

    vencional dos telejornais e com muitos quadros de entretenimento, o Fantástico

    pode ser visto por muitos como um produto da Central Globo de Produções,

    responsável pelas novelas e programas de humor, por exemplo, e não como

    um programa jornalístico.

    Ao analisar a história da TV, Richard Paterson, por exemplo, classificou

    o Fantástico como um show de variedades ao lado do programa de auditório de

    Silvio Santos: “No Brasil e no resto da América Latina, o show de variedade de

    forma longa continua sendo extremamente popular com programas como Fan-

    tástico (TV Globo) e Silvio Santos Show (SBT)” (PATERSON, 1995, p. 113).

    A indefinição de formato, com a combinação de informação e distração,

    torna o programa peculiar, sem bancada, mais informal, com a participação

    ativa do público e com reportagens especiais que parecem curtas de ficção em

    razão das tomadas diferentes de câmera, do roteiro com pontos de virada e de

    personagens mais complexos. De acordo com Sandra Reimão, “ficcionalidade

    e não ficcionalidade não são categorias mutuamente excludentes, nem mesmo

    claramente delimitadas, mas sim tendências dominantes em determinadas ca-

    tegorias televisivas” (REIMÃO, 1997, p. 99).

    Esse hibridismo de gênero que resulta no “infotainment” (information +

    entertainment) está presente no formato de redação-estúdio, inaugurado em 27

    4 Os programas exibidos em horário nobre, também denominado prime-time, são exibidos das

    19h às 22h30.

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    de abril de 2014, uma tentativa de mostrar toda essa mistura em um só pro-

    grama.

    Para a realização desta pesquisa foi escolhido o Fantástico como objeto

    de estudo por ser o telejornal líder de audiência aos domingos por mais de 40

    anos e pela facilidade em acessar os vídeos, pois estão disponíveis gratuita-

    mente no site.

    Esta dissertação, portanto, analisa e discute os modos de construções

    de personagens em matérias do programa dominical Fantástico, da Rede Glo-

    bo, sob o ponto de vista dos procedimentos de produção, por intermédio da

    discussão da imagem, do roteiro, das entrevistas, da trilha e da edição.

    A pesquisa tem como base os estudos de Cecilia Salles apresentados

    nos livros “Gesto inacabado: processo de criação artística” e “Redes da cria-

    ção: construção da obra de arte” (SALLES, 2011 e 2006).

    É importante ressaltar que, por necessidade de delimitação do âmbito

    desta publicação, o enfoque será o objeto artístico; no entanto, essas

    discussões têm se provado também adequadas para o debate sobre a

    construção de outros objetos da comunicação. Estamos, portanto,

    abordando a arte, em diálogo com aqueles que, como Arlindo Machado

    (1999), defendem a abordagem da comunicação em âmbito expandido,

    por perceber que se trata de “um conceito-chave no mundo contempo-

    râneo, pois dá conta de alguns processos vitais que definem esse

    mesmo mundo, mas está longe de ser um conceito consensual. Alguns

    o tomam num sentido mais restritivo, abrangendo apenas o campo de

    atuação das mídias de massa, outros preferem dar maior extensão ao

    conceito, incluindo no seu campo semântico todas as formas de semi-

    ose, ou seja, de circulação e intercâmbio de mensagens, inclusive até

    fora do âmbito do social e do humano, no nível molecular, por exemplo,

    ou na linguagem das máquinas”. Sob esse prisma, as discussões sobre

    os percursos de construção de obras não estão restritas ao campo da

    arte, abarcando outros processos comunicativos (SALLES, 2006, p. 14-

    15).

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    No caso do telejornalismo, o processo de criação ocorre por meio de um

    grupo de autores, a exemplo do editor, do redator, do repórter e do cinegrafista.

    A desfragmentação ou decupagem das matérias permitem compreender, por-

    tanto, as intenções dos envolvidos na obra moldada por interconexões de re-

    cursos criativos. “É o resultado de uma busca por sistematização de aspectos

    gerais da criação para, entre outras coisas, chegar, com maior profundidade,

    ao que há de específico em cada artista estudado...” (SALLES, 2011, p. 21).

    Por intermédio de diversas teorias como as do cinema, do jornalismo e

    da fotografia, o estudo trata da mediação entre a singularidade, a especificida-

    de do objeto, e os aspectos gerais da criação como um processo com tendên-

    cia em rede.

    Outro importante pensador presente no estudo é o antropólogo, sociólo-

    go e filósofo francês Edgar Morin, com destaque para seus estudos das rela-

    ções entre indivíduos, cultura e conhecimento.

  • 18

    1. O FANTÁSTICO – A REVISTA ELETRÔNICA NO DOMINGO

    DA GLOBO

    A televisão tem sido quase sempre cinematográfica, jornalística, teatral.

    Quase nunca, televisiva, ou seja, ela ainda está a caminho de descobrir

    sua linguagem exclusiva – uma coisa que só possa ser televisivo. E, se

    há um programa na história da televisão brasileira que tenha contribuí-

    do decisivamente para esta descoberta, esse programa sem dúvida é o

    Fantástico5 – Ziraldo.

    O telejornal Fantástico foi criado em 1973 pela Rede Globo de Televisão

    como Fantástico – o show da vida. Em entrevista concedida pelo ex-diretor de

    jornalismo do Fantástico, José Itamar de Freitas, à jornalista Samla Mesquita,

    realizada no Rio de Janeiro, em 1992, Boni, que foi diretor geral da TV Globo

    na época, disse que a gente sai de casa e vê um mendigo na calçada, um car-

    ro milionário na rua, pessoas discutindo e isso é o show da vida, por isso o sub-

    título.

    A velha experiência do espectador cinematográfico, para quem a rua lá

    de fora parece a continuação do espetáculo que acabou de ver — pois

    este quer precisamente reproduzir de modo exato o mundo percebido

    cotidianamente — tornou-se o critério da produção. Quanto mais densa

    e integral a duplicação dos objetos empíricos por parte de suas técni-

    cas, tanto mais fácil fazer crer que o mundo de fora é o simples prolon-

    gamento daquele que se acaba de ver no cinema (ADORNO;

    HORKHEIMER, 2002, p. 10).

    Veiculado nas noites de domingo com início às 20h45, o Fantástico tem

    cerca de duas horas de duração dividido em sete blocos. O programa que co-

    meça após o “Domingão do Faustão” foi idealizado como uma revista ilustrada

    semanal da televisão feito a partir de recortes da revista Manchete com revistas

    importadas.

    5 Depoimento em uma série divulgada no programa do dia 14 de agosto de 1983 em comemo-

    ração aos dez anos do Fantástico.

  • 19

    Segundo a definição do livro “The complete directory to prime time

    network and cable TV shows” (BROOKS; MARSH, 1995) o Fantástico pode ser

    considerado uma newsmagazine (revista jornalística eletrônica), por apresentar

    histórias de comunidades ao redor do planeta e informações sobre política, ce-

    lebridades, além das inovações científicas.

    Sem apresentador único e fixo (o one man show) ou âncoras, o telejor-

    nal da Globo era apresentado incialmente por jornalistas ou artistas que se al-

    ternavam com o intuito de mesclar jornalismo (notícias e reportagens) e entre-

    tenimento (musicais, teleteatro e humor). Também era diferente de outros tele-

    jornais por ter uma edição mais livre e menos formal. O Fantástico começou

    como um programa da Central Globo de Produções e só foi transferido para a

    Central Globo de Jornalismo no começo da década de 80.

    (...) o Fantástico é um painel dinâmico do que é produzido numa emis-

    sora de televisão: jornalismo, prestação de serviços, humor, dramatur-

    gia, documentários, música, reportagens investigativas, denúncia, ciên-

    cia, além de um espaço para a experimentação de novas linguagens e

    formatos (Site Memória Globo6).

    Embora sempre tenha apresentado os quadros de entretenimento, o

    principal destaque da cobertura do Fantástico é o jornalismo com notícias da

    semana e do domingo, resultados esportivos e reportagens sobre diversos as-

    suntos que abordam o bizarro, o curioso, o inusitado, a ciência, a cura milagro-

    sa, a vida dos artistas, a polêmica e a fama. A valorização desses temas, po-

    rém, já incomodava bastante os críticos nos primeiros anos do programa.

    Em 8 de dezembro de 1976, a jornalista Maria Helena Dutra escreveu

    em sua coluna no Jornal do Brasil: “Enquanto a cidade do Rio de Janeiro é in-

    vadida pela torcida do Corinthians, feito que me parece inédito em termos

    quantitativos no futebol, o Fantástico exibe reportagem sobre um inócuo co-

    mentário de um professor brasileiro na Dinamarca sobre o ensino e explicações

    a respeito da morte nas escolas primárias”. 6 Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/programas-jornalisticos/fantastico/formato.htmhttp://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/programas-jornalisticos/fantastico/formato.htm

  • 20

    Ao completar 10 anos no ar, o Fantástico começou a investir na tecnolo-

    gia e na abertura futurista com efeitos especiais do austríaco Hans Donner,

    característica que permanece até hoje. À revista Veja do dia 21 de setembro de

    1983, Donner falou a respeito do uso da computação gráfica no Fantástico:

    “Estamos vinte e cinco anos à frente de qualquer emissora de televisão do

    mundo. Não mais de duas dúzias de pessoas na Europa e nos Estados Unidos

    seriam capazes de produzir algo semelhante”.

    A partir do décimo aniversário, o Fantástico apresenta ao menos 80% de

    matérias jornalísticas e começa a ser um prestador de serviços com notícias

    sobre os preços e a alimentação. O programa ganha em criatividade e densi-

    dade com reportagens de denúncia social divididas em séries, câmeras mais

    livres, imagens belas e fortes e angulações diferentes, fora do convencional. A

    linguagem se torna mais informal, adjetivada e com gírias, próxima da novela

    de sucesso Beto Rockfeller,

    Uma novela que rompe com os diálogos formais, propondo uma narra-

    tiva de cunho coloquial, repleta de gírias e expressões populares. Re-

    produzindo fatos e fofocas retiradas de notícias de revista e jornais da

    época, o enredo procurava reproduzir o ritmo dos acontecimentos no

    interior da própria narrativa (ORTIZ; BORELLU; RAMOS, 1988, p. 78).

    Um cargo imprescindível para as matérias maiores dessa época foi o

    produtor de reportagem, que surgiu por volta de 1986 para acompanhar o re-

    pórter nas matérias e pesquisar sobre os assuntos. O jornalismo ocupou tanto

    espaço na década de 1980 que o subtítulo “o show da vida”, criado em cima da

    proposta do fait divers da revista eletrônica, desapareceu em 1989.

    De 1990 a 1992, o noticiário fica mais forte com mais reportagens polici-

    ais, investigativas e de denúncia e menos entretenimento. Os jornais da época

    disseram que o Fantástico começou a parecer um telejornal de verdade. O rea-

    lity show “Emergency Call” entra na programação do Fantástico com cenas de

    resgate e de atendimentos médicos de urgência. A mistura entre ficção e reali-

  • 21

    dade atinge até mesmo as reportagens, com o uso de atores em reconstitui-

    ções de crimes.

    No final de 92, com os caras-pintadas e o impeachment do Collor, a

    Globo passa a valorizar os jovens com uma programação mais alegre e a volta

    dos quadros de entretenimento. A linguagem e a edição são mais livres, menos

    formais. Aos 20 anos completados em 1993, o programa assume sua origem

    de revista eletrônica com o reforço do entretenimento e volta a usar o “show da

    vida” no título. O telejornal se torna descontraído e bem-humorado.

    Com a virada do milênio, o Fantástico entra no mundo digital e aproveita

    os benefícios da internet para interagir com seus telespectadores e manter o

    público em contato com o programa, mesmo após ele terminar, seja por meio

    do recebimento de vídeos amadores sobre determinados temas ou do chat

    com personalidades e/ou especialistas.

    Em 2014, o programa passou por uma de suas maiores transformações

    com o uso de hologramas criados por computação gráfica, a participação cada

    vez maior do telespectador e a divulgação da reunião de pauta, entre outras

    mudanças.

    1.1. O Fantástico no formato de redação-estúdio

    (...) o mais comercial faz agora o que fazia, um tempo atrás, o cinema

    mais experimental (LIPOVETSKY; SERROY).

    Diante do momento de crise do jornalismo e da constante queda de au-

    diência, o Fantástico apresentou um novo formato de redação-estúdio no dia

    27 de abril de 2014. Em busca de uma linguagem jovial para atrair a nova ge-

    ração de telespectadores que não desgrudam dos tablets, smartphones e re-

  • 22

    des sociais, o programa modificou o cenário e prometeu ser “mais dinâmico,

    interativo e próximo do telespectador7”.

    Em determinado momento, precisa-se de mais, precisa-se da inven-

    ção. É aqui que a produção não chega a abafar a criação, que a bu-

    rocracia é obrigada a procurar a invenção, que o padrão se detém pa-

    ra ser aperfeiçoado pela originalidade (MORIN, 1969, p. 26),

    Para fugir do formato convencional do telejornalismo, o Fantástico inte-

    grou a redação ao cenário, aumentou a participação virtual dos telespectadores

    e abriu, ainda que parcialmente, as reuniões de pauta de algumas matérias.

    Com vários ambientes, entre eles um palco e dois sofás, o programa ga-

    nhou em informalidade e descontração, permitindo a visita de entrevistados e a

    realização de pequenos shows acústicos de artistas, além de projeções holo-

    gráficas e de gráficos virtuais. O “Show da Vida8”, que fez 40 anos no dia 5 de

    agosto de 2013, quer chegar aos 50 repaginado.

    7 Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016 8 O título já espetaculariza a vida.

    http://gshow.globo.com/programas/encontro-com-fatima-bernardes/O-Programa/noticia/2014/04/tadeu-schmidt-sobre-o-novo-fantastico-o-que-muda-e-como-contar-as-historias.htmlhttp://gshow.globo.com/programas/encontro-com-fatima-bernardes/O-Programa/noticia/2014/04/tadeu-schmidt-sobre-o-novo-fantastico-o-que-muda-e-como-contar-as-historias.htmlhttp://gshow.globo.com/programas/encontro-com-fatima-bernardes/O-Programa/noticia/2014/04/tadeu-schmidt-sobre-o-novo-fantastico-o-que-muda-e-como-contar-as-historias.html

  • 23

    A diferença com os formatos do passado ocorre já na abertura realizada

    em colaboração com os artistas franceses Steven Briand e Cathy Ematchoua.

    Com muitos efeitos especiais, característica comum das introduções do Fan-

    tástico, a nova abertura de 2014 exibe uma dança da coreógrafa Ematchoua e

    representa o telespectador que organiza as ideias, as informações, no meio

    caótico de papeis esvoaçantes. A apresentação é parte do trabalho de conclu-

    são de curso feito por Steven Briand na escola superior de arte.

    Apesar dos inúmeros papeis manipulados por meio da telecinese de

    uma mulher habilidosa na abertura9 do programa, o Fantástico quer ser cada

    vez mais digital. O uso maior da web no contato com os telespectadores e a

    presença de uma “lousa digital” no estúdio confirmam a vontade da emissora

    em atrair jovens internautas e se moldar pela interatividade.

    Esta performance com uma dançarina solitária evidencia o individualis-

    mo do pós-modernismo. Desde a criação do telejornal, em 1973, o Fantástico

    nunca havia feito uma vinheta em que houvesse a apresentação de somente

    uma pessoa, como ocorre na atual abertura.

    9 Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/veja-a-nova-abertura-do-fantastico/3308578/http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/veja-a-nova-abertura-do-fantastico/3308578/

  • 24

    Essa vinheta também ressalta a heterogeneidade de culturas, pois foi

    feita com base em movimentos de kung-fu, uma arte marcial chinesa, e em co-

    laboração com dois artistas franceses de descendência africana. “No final, esse

    é um trabalho que sai da Europa, com influência africana, oriental e que acaba

    nas Américas, num programa brasileiro”, diz o repórter Marcos Uchoa no ví-

    deo10 que mostra os bastidores da abertura do programa.

    Outra característica importante na apresentação do programa é a “aboli-

    ção de algumas fronteiras ou separações essenciais, notadamente a erosão da

    distinção entre a alta cultura e a chamada cultura de massa ou popular” (JA-

    MESON, 2006, p. 18), por inserir uma obra acadêmica na televisão, um dispo-

    sitivo de entretenimento.

    Após a abertura e para apresentar as novidades da redação-estúdio, a

    Globo elaborou um vídeo11 com a apresentação dos jornalistas do Fantástico.

    Começa com uma sucessão de pares de olhos, em primeiríssimo plano, para

    depois mostrar os pés de um grupo de dançarinos que dão o “primeiro passo”,

    conforme diz a narração de Fernanda Montenegro. Os olhos representam os

    telespectadores; o passo, os jornalistas atrás das notícias. Segue então, su-

    cessivas imagens de dançarinos em uma coreografia ritmada na frente de pon-

    tos turísticos brasileiros, a exemplo do Monumento às Bandeiras, em São Pau-

    lo, do Congresso Nacional, em Brasília, e das Cataratas do Iguaçu, em Foz do

    Iguaçu.

    10

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016 11

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/aberturas/v/nova-abertura-do-fantastico-foi-criada-em-paris/3308827/http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/aberturas/v/nova-abertura-do-fantastico-foi-criada-em-paris/3308827/

  • 25

    Finda a dança ao som de uma batida de funk, como se fosse um video-

    clipe, surgem os apresentadores do Fantástico, Tadeu Schmidt e Renata Vas-

    concellos, caminhando para frente, em diversos locais do Rio de Janeiro. A

    cada uma ou duas palavras, um plano diferente com apenas um dos apresen-

    tadores em cena. A última palavra, pronunciada por Renata, é “Fantástico”.

    Inicia-se, assim, uma reprodução muito rápida de partes de algumas vinhetas

    antigas do telejornal com o intuito de provocar reações nostálgicas. Mas dura

    meros três segundos. É a “total aceitação do efêmero, do fragmentário, do des-

    contínuo e do caótico” (HARVEY, 1999, p. 49) numa época em que tudo é des-

    cartável.

    “O segredo pode estar no desconhecido, no inesperado, na fração de

    segundo que transforma o mundo”, diz a narração. Foram 150 planos em 85

    segundos, quase dois planos por segundo. “Velocidade, e não duração, é o

    que importa. Com a velocidade certa, pode-se consumir toda a eternidade do

    presente contínuo da vida terrena” (BAUMAN, 2007, p. 15). Os planos breves e

    bruscos buscam mais a sensação do que a compreensão de uma ação, como

    fizeram os cineastas da vanguarda francesa dos anos 20, a exemplo de Jean

    Epstein e Abel Gance que usaram a montagem acelerada com efeito de ritmo.

  • 26

    Até mesmo os movimentos artísticos estão mais rápidos, conforme

    aponta Sant'Anna:

    Estilisticamente sabe-se que a Idade Média, grosso modo, durou 1.000

    anos, o Renascimento 200, o Barroco 150 anos, o Neoclassicismo 100

    anos, o Romantismo 50 anos, o Realismo 30 anos, o Naturalismo uns

    20 anos, o Simbolismo uns 10 anos e o Modernismo foi a confluência

    de vários movimentos até a formulação do ‘instantaneísmo’ e da ‘não

    arte’. São patentes a aceleração da comunicação e a forma cada vez

    mais rápida como a novidade é consumida (2013, p. 30).

    Como uma vitrine em movimento, os jornalistas do Fantástico caminham

    em direção à tela do telespectador. Falam com ele, olham para ele. A cada

    plano, um novo cenário, dentro do Brasil ou no exterior. “É aqui, é em qualquer

    lugar”, dizem as vozes fragmentadas das repórteres Giuliana Girardi, Renata

    Ceribelli e Sônia Bridi. Os jornalistas desempenham o papel de atores que se-

    guem um roteiro estabelecido sem espaço para improvisação ou acasos, dife-

    rente do que ocorre em uma reportagem.

    Agora, sob a ameaça permanente do controle remoto, já não se con-

    tam mais histórias completas, esfacelam-se as distinções de gênero e

    formato, não mais sobra sequer a distinção ontológica entre realidade e

    ficção (MACHADO, 1993, p. 161)

  • 27

    O repórter Roberto Kovalick caminha em direção à câmera em frente ao Big Ben

    A pluralidade de ideias está presente por meio de diferentes gêneros e

    idades: há jornalistas homens, mulheres, jovens, idosos e até uma cadeirante.

    Todos têm espaço na revista eletrônica de domingo. Nessa montagem de vo-

    zes do telejornal, o telespectador desempenha papel de destaque no Fantásti-

    co atual. Ele participa e percorre o mundo sentado do sofá.

    A ideia de que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos,

    com sua própria voz, e de ter aceita essa voz como autêntica e legíti-

    ma, é essencial para o pluralismo pós-moderno (HARVEY, 1999, p.

    52).

  • 28

    A jornalista Flávia Cintra anda de cadeira de rodas em São Paulo

    O vídeo da apresentação contrasta com a forma realista do jornalismo e

    segue a “estética MTV”, com ritmo frenético, efeitos especiais, planos breves e

    imagens fragmentadas. São “’desconstruções’ em série, destinadas a criar um

    posicionamento distintivo, uma ‘imagem de marca’ para um público jovem ávido

    de sensações, look e originalidade” (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 276).

    Brevidade, multiplicidade de pequenos relatos, fragmentação e mistura

    de gêneros, remontagem de planos e situações são alguns dos muitos

    procedimentos folhetinescos de apropriação do alheio no continente la-

    tino-americano, a partir do imenso e diversificado material fornecido pe-

    las heterogeneidades migrantes-imigrantes, de uma parte, e, de outra,

    pelas teorias e modelos importados (...) (PINHEIRO, 2013, p. 48).

    Este público jovem do terceiro milênio inserido no mundo globalizado

    convive com a fragmentação da informação na internet e com as múltiplas telas

    tecnológicas que fazem parte do seu cotidiano, a exemplo das telas dos celula-

    res, da televisão, do cinema, do monitor, das propagandas em shoppings, da

    endoscopia, do GPS e outras.

    (...) os contínuos avanços das tecnologias midiáticas permitiram que

    nossa vida se tornasse como nunca antes, saturada de linguagem,

  • 29

    permeada de significação. Basta um pouco de desprendimento para

    notar, em qualquer grande cidade do mundo, essa proliferação de

    signos e códigos; e basta um pouco de memória para que dê conta

    da velocidade espantosa de seu avanço (DURÃO; ZUIN; VAZ, 2008,

    p. 43).

    O exagero de telas e tecnologias ou a tecnociência está presente, por

    exemplo, na matéria “Repórter-robô do Fantástico entrevista 'irmão' no Sul do

    Brasil12. Nela, o jornalista Felipe Santana usou um robô de telepresença para

    fazer a reportagem. De casa, ele comandou um robô que estava na redação.

    Por meio de uma tela, ele podia ver e ser visto.

    Da pauta à entrevista, ele não saiu de casa. Mas o robô até viajou de

    avião. Primeiro ele foi ao Hospital Universitário de Maringá, onde foi criado o

    primeiro robô de telepresença do Brasil. Depois, Felipe se conectou a um robô

    de uma empresa pequena do Vale do Silício que fabrica máquinas parecidas

    com a do Fantástico. A milhares de quilômetros de distância, o repórter estava

    ligado a ele apenas por cabo de computador. Mas no final da matéria, o jorna-

    lista destacou que uma pesquisa da Universidade da Califórnia mostrou que

    93% da comunicação num escritório é não verbal.

    (...) a televisão, com o seu aparato tecnológico cada vez mais aperfei-

    çoado, reivindica para si a capacidade de substituir com vantagem o

    olhar do observador individual. Diversas câmaras postadas em lugares

    distintos podem captar um número maior de imagens – ou a mesma

    imagem segundo vários ângulos –, com muito mais detalhes e maior

    precisão do que é facultado ao observador individual (ARBEX JUNIOR,

    2001, p. 34)

    12

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/reporter-robo-do-fantastico-entrevista-irmao-no-sul-do-brasil/3308690/http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/reporter-robo-do-fantastico-entrevista-irmao-no-sul-do-brasil/3308690/

  • 30

    Outras telas estão espalhadas pelo estúdio. Sem a bancada tradicional

    do telejornalismo e a integração do cenário à redação, os apresentadores po-

    dem circular livremente para apresentar as matérias no telão sensível ao toque

    de 25m² ou conversar com repórteres de outras cidades do Brasil e correspon-

    dentes internacionais por meio de um totem, uma tela vertical também sensível

    ao toque.

    No palco onde ficam Tadeu Schmidt e Renata Vasconcellos, há espaço

    para holografias13 simuladas por computação gráfica em diversas matérias, a

    exemplo da imagem de um rapaz que sobreviveu escondido no trem de pouso

    de um avião ou das pernas gigantescas de um robô que caminha até os apre-

    sentadores. Na pós-modernidade, preferimos a imagem ao objeto, o simulacro

    ao real, a espetacularização que intensifica o real e que se torna mais interes-

    sante que a própria realidade. “O espetáculo não é um conjunto de imagens,

    mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD,

    2013, p. 14).

    13

    Os recursos gráficos como os efeitos especiais, tabelas e computação gráfica são chamadas

    de “artes”, feitas pela Editoria de Arte das emissoras de TV.

  • 31

    A única coisa que parece importar decisivamente para os produtores

    e “programadores” das tecnologias de vídeos é a inovação tecnológi-

    ca, enquanto o uso social daquelas potencialidades técnicas parece

    estar fora de seu interesse (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 294).

    Artes mais detalhadas como o avião no estúdio requerem um tempo

    maior de elaboração, o que não seria possível no telejornalismo diário do Jor-

    nal Nacional, por exemplo. Por essa razão, o programa começa a ser elabora-

    do com cinco dias de antecedência, mas com espaço para reportagens que

    não estavam previstas no cronograma (MESQUITA, 1999, p. 147-148).

    Apesar de semanal, o Fantástico também é sustentado pela lógica da

    incerteza, englobando a intervenção do acaso como é apresentado o processo

    de criação por Salles (2011). O programa faz até mesmo alterações de última

    hora, conforme chegam notícias urgentes e inesperadas, o que obriga a rees-

    truturação das matérias no telejornal e a mudança do plano de pautas, a

    exemplo do que ocorre na notícia “Mulher morre vítima de bala perdida no

    Complexo do Alemão14”, realizada por Bette Lucchese pouco antes do início do

    programa.

    14

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/mulher-morre-vitima-de-bala-perdida-no-complexo-do-alemao/3308826/http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/mulher-morre-vitima-de-bala-perdida-no-complexo-do-alemao/3308826/

  • 32

    No fim da reportagem de Lucchese, encontramos um tipo de tela comum

    em épocas de insegurança: a de vigilância, representada pela câmera em pla-

    no contra-plongéé, ou seja, filmando a pessoa ou o objeto de baixo para cima.

    Nesta reportagem, o plano foi utilizado como um recurso para conseguir um

    depoimento da filha da vítima sem autorização, de maneira indiscreta. É um ato

    de vigiar sem ser visto.

    A vigilância é ainda mais forte na matéria “Repórter do Fantástico passa

    24 horas em presídio de segurança máxima15”. Nela, a jornalista Lizzie Nassar

    passa 24 horas trancada numa cela do presídio de Catanduvas, no Paraná,

    onde estão presos perigosos como Fernandinho Beira-Mar, Marcinho VP e Eli-

    as Maluco.

    15

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

  • 33

    A reportagem começa com um excesso de telas: monitores de computa-

    dor, televisores e filmadoras amadoras e profissionais. Ao som de uma trilha

    que lembra a batida de um coração, a matéria inicia com os bastidores de uma

    negociação que levou cinco meses. Contudo, o “making of” se resume a alguns

    planos de conversas e estudos de imagens do presídio na ilha de edição com a

    narração de Lizzie em voice over.

    Dentro do presídio, imagens intercaladas de uma câmera portátil GoPro,

    acoplada à cabeça de Lizzie, e dos cinegrafistas profissionais mostram todos

    os procedimentos pelos quais passam os presos. A repórter mostra o tamanho

    da cela, a refeição e o momento do banho de sol, um reality show com uma só

    pessoa. A câmera da jornalista exibe imagens subjetivas que garantem a imer-

    são do telespectador, que do seu cômodo, como se fosse uma cela caseira,

    passa pela sensação ruim do cubículo do presídio. Revelam a intimidade por

    meio de um espetáculo voyeurístico, característica inerente ao jornalismo, para

    chegar mais próximo da realidade, sem intervenção de entrevistas ou trilha so-

    nora. É a câmera como os olhos do telespectador. Inerte, vejo as imagens que

    não posso escolher. O olhar e os ângulos de câmera são do outro.

    É uma ironia pós-moderna imaginarmos que ela se sinta menos vigiada

    e mais segura fora do presídio, visto que vivemos numa sociedade de vigilância

    excessiva que coincide com o estado de insegurança e instabilidade crescente

  • 34

    do universo pós-moderno. O pânico coletivo leva ao aumento da criminalidade

    e a uma democracia securitária. O sentimento de insegurança é uma das ca-

    racterísticas do fait divers, presente no Fantástico desde a sua origem.

    Outra ironia da vigilância excessiva foi descobrir como seria o novo Fan-

    tástico com três semanas de antecedência, pois o piloto vazou na internet e foi

    transmitido na noite do dia 4 de abril pelo canal TV Absurda, na plataforma Jus-

    tin.tv. A rede mundial de computadores, responsável pelo sucesso do programa

    por intermédio da disponibilização dos vídeos na íntegra e da interação com os

    telespectadores, conforme veremos a seguir, dessa vez foi sua pior concorren-

    te.

    1.2. Reunião de pauta

    Uma das novidades mais anunciadas no novo formato foi a abertura da

    reunião de pauta ao público. Ao revelar parte da reunião de pauta entre as re-

    portagens, ainda que muito pouco, visto que o mundo atual tem alergia à pro-

    fundidade (EAGLETON, 2005), o Fantástico mostra que o telejornalismo funci-

    ona de modo colaborativo, com a participação dos repórteres, câmeras, edito-

    res e várias outras pessoas que muitas vezes não aparecem diante da câmera,

    ficam nos bastidores da notícia. Pode-se afirmar que essa rede de profissionais

    equivale a uma rede neural, que se sustenta por intermédio da interação entre

    os neurônios. Como dizem Hardt e Negri (2005, p. 425), “somos mais inteligen-

    tes juntos do que qualquer um de nós separadamente”.

    O campo produtivo da comunicação, finalmente, deixa absolutamente

    claro que a inovação sempre ocorre necessariamente em comum.

    Esses casos de inovação em rede poderiam ser considerados como

    uma orquestra, sem regente uma orquestra que através da perma-

    nente comunicação estabelece seu próprio ritmo e só poderia ser de-

    sarticulada e silenciada pela imposição da autoridade central de um

    regente. Precisamos livrar-nos da noção de que a inovação depende

    do gênio de um indivíduo. Nós produzimos e inovamos juntos apenas

    em redes (HARDT; NEGRI, 2005, p. 423).

  • 35

    Em televisão, o trabalho é realizado em equipe, com o envolvimento de

    vários profissionais. Um jornalista elabora a pauta e a entrega ao repórter, que

    vai para a rua com o repórter cinematográfico. Durante a preparação da maté-

    ria, muito se discute com o editor até o encerramento da reportagem. A filma-

    gem do cinegrafista é enriquecida por outras informações visuais como gráfi-

    cos, desenhos e outros efeitos eletrônicos. A editora de arte complementa a

    editoria de texto. Antes de gravar, repórter e editor já definiram as vinhetas,

    artes e enquadramentos.

    Hoje o mundo prioriza as organizações como redes em detrimento das

    hierarquias piramidais. As estruturas e tarefas são definidas constantemente

    pela rede, não por uma só cabeça pensante que tudo vê e que tudo domina.

    “Por um lado, é ruim, porque às vezes o profissional perde a referência do todo;

    mas, por outro, é bom, porque o resultado final é a junção de formas diferentes

    de olhar o fato” (CARVALHO, 2010, p. 17).

    Embora haja um processo cooperativo, cada pessoa que faz parte da

    equipe reserva um momento em que trabalha de forma solitária em prol de um

    objetivo comum. Em cada etapa do processo, um profissional, à semelhança

    de um artista que se isola para terminar sua pintura ou de um escritor para fina-

    lizar sua obra, debruça-se sobre a mesa e desenvolve a sua parte.

    O conhecimento é algo cumulativo e ele vem da interação entre dois

    campos distintos, mas que se complementam: o conhecimento tácito e

    o conhecimento explícito. (...) Basicamente, o primeiro diz respeito às

    experiências vividas e o segundo aquilo que pode ser absorvido por

    meio de livros, filmes, jornais, televisão, documentos, enfim, daquilo

    que é disponibilizado de forma clara e objetiva para o consumo de to-

    dos (CARVALHO, 2010, p. 114-115).

    Caso não haja uma harmonia comandada pelo diretor, corre-se o risco

    de montar um Frankenstein. No entanto, se os profissionais trouxerem seus

    pontos-de-vista e suas experiências sobre o assunto abordado, o trabalho em

    equipe é recompensado com um bom produto audiovisual multifacetado. A au-

  • 36

    sência de paredes na redação do Fantástico possibilita essa troca e combina-

    ção de ideias.

    A pauta é um organismo vivo em contínua evolução, mas a longa trajetó-

    ria da ideia até virar imagem na televisão não é mostrada na TV. Nesse caso, a

    reunião somente atualiza as previsões e não discute as pautas. Não há discus-

    sões nem apostas erradas. A beleza da metamorfose fica escondida no casulo

    da redação.

    O programa, que começa a ser feito nas manhãs das terças-feiras, até

    incentiva a entrada de novas ideias com a presença de convidados. Nesse pri-

    meiro programa, o ator Thiago Fragoso fez parte da reunião de pauta, e o ator

    Murilo Rosa com a atriz Maitê Proença participaram da entrevista coletiva com

    Felipão na Redação.

    Ressaltam-se tanto os bastidores e a informalidade, que o programa

    mostra a tietagem de Murilo e Maitê, que fizeram selfies com o técnico antes da

    entrevista. A atriz até sentou no colo de Felipão para tirar a foto. Aqui nova-

    mente o conteúdo deu lugar ao espetáculo.

  • 37

    A reunião de pauta, em que chegam muitas sugestões que são filtradas

    pelos produtores, foi editada e inserida em partes no início de algumas maté-

    rias. Na reportagem “Especialistas explicam como jovem sobrevive em trem de

    pouso de avião16”, por exemplo, participaram da reunião de pauta as produto-

    ras de reportagem do Rio de Janeiro (Luciana Osório) e de São Paulo (Stepha-

    nie Lotufo) e o ator Thiago Fragoso.

    As interações são muitas vezes responsáveis por essa proliferação

    de novos caminhos: provocam uma espécie de pausa no fluxo da

    continuidade, um olhar retroativo e avaliações, que geram uma rede

    de possibilidades de desenvolvimento da obra (SALLES, 2006, p. 26).

    Foram três sugestões, mas só a da produtora de São Paulo entrou na

    matéria. Durante o processo de criação da reportagem há um “acúmulo de

    ideias, planos e possibilidades que vão sendo selecionados e combinados”

    (SALLES, 2011, p. 40). Esse infinito número de escolhas é denominado de

    “possível adjacente” pelo cientista Stuart Kauffman. Apesar das incontáveis

    formas de produzir uma reportagem e das muitas sugestões, somente algumas

    mudanças irão ocorrer. A reunião de pauta é uma disputa de poder. Ganha

    quem tiver o melhor argumento que convença o editor a apostar na ideia.

    A “força” de um argumento mede-se, em dado contexto, pela acuida-

    de das razões; esta se revela, ente outras coisas, pelo fato de o ar-

    gumento convencer ou não os participantes de um discurso, ou seja,

    de o argumento ser capaz de motivá-los, ou não, a dar assentimento

    à respectiva pretensão de validade (HABERMAS, 2012, p. 48).

    O possível adjacente é limite e abertura. Ele nos dá novas configurações

    que nos permite fugir da rotina e experimentar outros caminhos. A reunião de

    pauta é o momento de colocar a ideia em rede e estabelecer conexões.

    Cada combinação introduz novas combinações no possível adjacen-

    te. Pense nele como uma casa que se expande num passe de mági-

    ca ao se abrir cada nova porta. Você começa numa sala com quatro

    16

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/especialistas-explicam-como-jovem-sobrevive-em-trem-de-pouso-de-aviao/3308787/http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/especialistas-explicam-como-jovem-sobrevive-em-trem-de-pouso-de-aviao/3308787/

  • 38

    portas, cada uma levando a uma nova sala que ainda não visitou. Es-

    sas quatro salas são o possível adjacente. Mas depois que você abre

    uma dessas portas e entra na próxima sala, três novas portas apare-

    cem, cada uma levando a outra sala nova em folha a que você não

    poderia ter chegado a partir de seu ponto de partida original. Continue

    abrindo portas, e por fim terá construído um palácio (JOHNSON,

    2011, p. 30).

    A edição que resume a reunião de pauta em menos de um minuto, no

    entanto, pode levar a dois pensamentos distintos:

    1) para o leigo, as pautas são definidas no momento da reunião, como

    se fosse num brainstorm, ou em lampejos de genialidade do jornalista, momen-

    tos instantâneos como a maça de Newton. Neste caso, não há espaço para a

    intuição lenta e o embate de ideias.

    2) para os profissionais, a reunião de pauta do Fantástico é pura ence-

    nação, tudo é roteirizado e as matérias já estão prontas antes mesmo desta

    reunião.

    A reunião e a presença de convidados são importantes para o comparti-

    lhamento de ideias, conforme destaca o professor e pesquisador Vincent Cola-

    pietro, que estuda as relações entre indivíduos, cultura e conhecimento, uma

    vez que o sujeito é um ser histórico, inserido no espaço e no tempo (2014).

    Mas, por mais inovadora que seja a linguagem do novo Fantástico, as

    matérias tendem a seguir a gramática narrativa dos telejornais, os esquemas já

    consagrados. Mudou-se o meio, mas não o conteúdo. Como disse José Ortega

    y Gasset, “vive-se com a técnica, mas não da técnica” (1971, p. 111).

    Isso nos leva mais uma vez ao pastiche: em um mundo no qual a ino-

    vação estilística não é mais possível, tudo o que resta é imitar estilos

    mortos, falar através de máscaras e com as vozes dos estilos no mu-

    seu imaginário (JAMESON, 2006, p. 7).

  • 39

    1.3. Participação do telespectador

    C’est le regardeur qui fait le tableau (É aquele que olha que faz o qua-

    dro) – Marcel Duchamp

    Mesmo que tenha a mesma estrutura de notícias dos outros telejornais,

    um grande diferencial do Fantástico é a interação com o público, pouco explo-

    rado por outras emissoras. O programa quer ser cada vez mais moldado pelo

    público, como ressalta o próprio telejornal na internet. Eles dizem que é “A sua

    revista eletrônica, que traz as melhores reportagens e novidades na Rede Glo-

    bo”. O pronome possessivo “sua” reforça a ideia da interação com o telespec-

    tador. Não é “nossa” nem apenas mais uma revista eletrônica, mas é a “sua”

    revista, uma mídia em que você ajuda a fazer a matéria quase “personalizada”.

    O mais importante não é o que se vê, mas o fato de se falar sobre isso.

    A televisão é um objeto de conversação. Falamos entre nós e depois

    fora de casa... Se a televisão não existisse, muita gente sonharia em

    inventar um instrumento capaz de reunir todos os públicos. Isso é o

    que é a unidade teórica da televisão (WOLTON, 1996)

    Mas agora não é mais o individuo passivo diante da tela, com o poder

    único do controle remoto prestes a mudar de canal. Para evitar o zapping, o

    Fantástico solicita a participação do telespectador por intermédio do envio de

    vídeos e mensagens pelo site.

    Comunicar é comunicar-se em torno do significado significante. Desta

    forma, na comunicação, não há sujeitos passivos. Os sujeitos co-

    intencionados ao objeto de seu pensar se comunicam seu conteúdo. O

    que caracteriza este comunicar comunicando-se, é que este é diálogo,

    assim como o diálogo é comunicativo (FREIRE, 1979, p. 67).

    Na matéria do presídio, por exemplo, a apresentadora Renata Vascon-

    cellos diz: “Acompanhe agora, e conectado ao nosso site, se manifeste, mani-

    feste o que você sentir durante a nossa reportagem especial dessa noite, que

    começa agora”. Ao se dirigir diretamente ao telespectador, convidando-o a par-

    ticipar e opinar sobre a matéria, Renata constrói um vínculo ativo com a recep-

  • 40

    ção, que se transforma em coparticipante da matéria, a última etapa da produ-

    ção. O uso desta função conativa ou apelativa da linguagem visa a persuadir o

    telespectador, fazendo uso de verbos no imperativo, pronomes na segunda

    pessoa e vocativos, estratégia utilizada, sobretudo, em publicidade e propa-

    ganda.

    Agora o acesso aos conteúdos informacionais na tela mobiliza um

    usuário ativo que navega nos sites, conserva isso e elimina aquilo, vai

    em busca de informações, comenta os dados institucionais, compara

    os preços, transforma-se em fotógrafo e repórter amador (LIPO-

    VETSKY; SERROY, 2009, p. 259).

    A manifestação do telespectador ocorre por meio das animações conhe-

    cidas como Fantcons17, que expressam o que o público está sentindo durante a

    reportagem. Pelo site do Fantástico, o internauta escolhe um dos vários tipos

    de rostinhos parecidos com emoticons. Há Fantcons angustiados, curiosos,

    revoltados, alegres etc. No site do programa também é possível conversar com

    os amigos nas redes sociais e com a produção do Fantástico. Agora os conta-

    tos interpessoais são tela a tela, permeados por diversos equipamentos ele-

    troeletrônicos.

    (...) não importa tanto afirmar que boa parte do público, talvez sua mai-

    oria, utiliza o telejornal como uma forma de espetáculo cotidiano do

    mundo, como uma distração e divertimento e que muito se decide e se

    toma partido... isto é óbvio. Importa mais dizer ou compreender como o

    telejornal se constitui e se constrói como forma de realizar de maneira

    eficaz tal dimensão do espetáculo (CALABRESE & VOLLI, 2001, p.

    86).

    17

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/internautas-podem-mandar-seus-fantcons-para-o-fantastico/3308777/http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/internautas-podem-mandar-seus-fantcons-para-o-fantastico/3308777/

  • 41

    Essa medida demonstra que o mesmo telejornal pode ter várias leituras

    dependendo do telespectador. Um exemplo dessa ambiguidade ocorreu na

    Guerra do Golfo Pérsico, quando Peter Arnett, correspondente de guerra da

    CNN, foi acusado de favorecer os EUA por uns e de ser pró-Iraque por outros.

    As escolhas também estão presentes na reportagem do robô. O Fantás-

    tico sugeriu três nomes e pediu que o internauta escolhesse o melhor. O ven-

    cedor foi TILT, que ganhou de dois nomes bem esquisitos: RF4NT e BIT BYTE.

    Uma das tendências, particularmente promissora, que pode ser identifi-

    cada como característica do novo cenário tecnológico, integrado e inte-

    grador, é a interatividade, isto é, a possibilidade de interação simultâ-

    nea entre emissor e receptor (leitor e/ou espectador). Otimistas che-

    gam até mesmo a chamar as sociedades deste início do século XXI de

    “sociedades interativas”, muito diversas, com certeza, daquela “socie-

    dade de massas” idealizada no século XIX (...) (LIMA, 2001, p. 56).

    Já na entrevista coletiva18 com o técnico da seleção brasileira de futebol

    Luiz Felipe Scolari na redação, o telão que fica atrás do técnico exibe 30 retra-

    tos de internautas. O Fantástico até liberou um palpite e uma pergunta de in-

    18

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/nosso-foco-e-jogar-futebol-diz-felipao-sobre-protestos-contra-a-copa/3308843/http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/nosso-foco-e-jogar-futebol-diz-felipao-sobre-protestos-contra-a-copa/3308843/

  • 42

    ternautas para o técnico. O palpite causou risos e constrangimentos, visto que

    o internauta pediu a convocação do goleiro cruzeirense Fábio no lugar de Julio

    César, chamado pelo telespectador de “mão de alface”, goleiro que não conse-

    gue segurar a bola. É certamente uma pergunta que os jornalistas da Globo

    não fariam.

    O telespectador também pode participar enviando vídeos19 dos jogos

    amadores de futebol no Brasil. O jogador amador que faz um belo gol é o “bola

    cheia” da semana, e o pior, o “bola murcha”. O telespectador vira personagem

    e agente da notícia. “A tela on-line permite que as paixões exibicionistas e hi-

    pernarcísicas se manifestem numa escala desconhecida até então.” (LIPO-

    VETSKY; SERROY, 2009, p. 291).

    A televisão dos anos 50 pretendia-se cultural e de certa maneira servia-

    se de seu monopólio para impor a todo mundo produtos com pretensão

    cultural (documentários, adaptações de obras clássicas, debates cultu-

    rais etc.) e formar os gostos do grande público; a televisão dos anos 90

    visa a explorar e lisonjear esses gostos para atingir a mais ampla audi-

    ência, oferecendo aos telespectadores produtos brutos, cujo paradigma

    é o talk-show, fatias de vida, exibições cruas de experiências vividas,

    frequentemente extremas e capazes de satisfazer uma forma de vo-

    19

    Disponível em: Acesso em: 19 mai.2016

    http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/bola-murcha-da-semana-tenta-jogar-volei-no-meio-de-uma-partida-de-futebol/3308698/http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/bola-murcha-da-semana-tenta-jogar-volei-no-meio-de-uma-partida-de-futebol/3308698/

  • 43

    yeurismo e de exibicionismo (aliás, como os jogos televisionados dos

    quais se deseja ardentemente participar, mesmo como simples espec-

    tador, para ter acesso a um instante de visibilidade). (BOURDIEU,

    1997, p. 68).

    Essas medidas confirmam a situação atual do jornalismo, em que a notí-

    cia está descentralizada. Antes, um jornalista escrevia no jornal para milhares

    de pessoas passivas consumirem os mesmos textos. Com a proliferação de

    blogs e sites, o jornalista já não tem mais o monopólio da notícia.

    Interessante observar que essa construção de uma identidade nacional

    que integra brasileiros de todas as regiões do país teve início a partir de um

    marco nada democrático, o Golpe Militar de 1964, quando houve um investi-

    mento maciço dos governos nos meios de comunicação de massa.

    Nesse processo, a Globo se tornou uma emissora de alcance nacional,

    pois construiu uma boa relação com o governo militar ao não incomodá-lo com

    a programação em troca de favorecimentos em localizações e importações de

    equipamentos. “Com os meios de comunicação de massa a longa distância, o

    isolamento da população revelou-se um meio de controle bem mais eficaz”

    (MUMFORD apud DEBORD, 2013, p. 113). Em 22 de março de 1973, o presi-

    dente da República, General Garrastazu Médici, deu uma declaração que de-

    monstra essa proximidade com a emissora de Roberto Marinho:

    “Sinto-me feliz todas as noites, quando ligo a televisão para assistir ao

    jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e confli-

    tos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvi-

    mento. É como se eu tomasse um tranquilizante, após um dia de trabalho20”.

    “Não seria exagero dizer que a comunicação constrói a realidade. Num

    mundo todo permeado de comunicação – um mundo de sinais – num

    mundo todo tele informatizado, a única realidade passa a ser a repre-

    sentação da realidade – um mundo simbólico, imaterial. Isso é tão ver-

    20

    Apud Lins da Silva, Carlos Eduardo. Muito além do Jardim Botânico. São Paulo: Summus, 1985

  • 44

    dade, que na linguagem do dia-a-dia já se podem ouvir frases como es-

    tas: ‘Já acabou a greve?’. E se alguém pergunta por que, a resposta é:

    ‘Deve ter acabado, pois o jornal não diz mais nada...’, ou: ‘A televisão

    não mostrou mais nada...’. A conclusão a que chegamos é a de que

    uma coisa existe, ou deixa de existir, à medida em que é comunicada,

    veiculada. É por isso, consequentemente, que a comunicação é du-

    plamente poderosa: tanto porque pode criar realidades, como porque

    pode deixar que existam pelo fato de serem silenciadas.” (GUARES-

    CHI, 2004, p. 14).

    Enquanto a emissora de Roberto Marinho formatava o “Padrão Globo de

    Qualidade” como uma alternativa aos programas popularescos da época e sem

    mostrar a miséria e os atrasos do país e com a exibição de matérias internaci-

    onais, o movimento cinematográfico brasileiro do Cinema Novo divulgava um

    país sem censura. Por meio de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”,

    os cineastas gravavam com som direto e imagens mais realistas, um método

    mais próximo do jornalismo. O cineasta Gustavo Dahl resume o ideal do grupo

    que buscou valorizar a cultura nacional e expor as mazelas do sertão:

    Nós não queremos Eisenstein, Rosselini, Bergman, Fellini, Ford, nin-

    guém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. (...) Nosso

    cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do

    Brasil é nova e nossa luz é nova (...). Nossa geração tem consciência:

    sabe o que deseja. Queremos fazer filmes antiindustriais; queremos fa-

    zer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser um artista compro-

    metido com os grandes problemas do seu tempo; queremos filmes de

    combate na hora do combate e filmes para construir no Brasil um patri-

    otismo cultural” (ROCHA, 1981)

    A hegemonia da Rede Globo é tão grande que a revista norte-americana

    The Economist publicou uma matéria sobre o domínio da emissora. “Nada me-

    nos que 91 milhões de pessoas, quase metade da população, assiste à Globo

    todos os dias: o tipo de audiência que, nos Estados Unidos, tem só uma vez

    por ano, e apenas para a emissora que ganhou os direitos naquele ano de

  • 45

    transmitir o jogo do Super Bowl, a final do futebol americano21”, escreveu a re-

    vista.

    (...) Bonner e Bernardes são realmente atores, no caso representando

    eles mesmos, festejados como a moderna família feliz, em que não fal-

    ta uma prole simpática. Como casal moderno, chegam com um sorriso,

    comportam-se com cortesia e firmeza e iniciam uma conversa culta e

    consciente, apresentando os principais fatos do mundo, alertando so-

    bre golpes e ações antiéticas. Ao se despedirem, deixam para trás a

    melhor das impressões (...) (TEMER, 2002, p. 186).

    1.4. O fait divers

    Desde o primeiro programa, o Fantástico é uma colagem de assuntos

    inspirados no fait divers, expressão que surgiu na França, no séc. XVI, e que

    mistura real e ficção. O estilo do fait divers se difundiu nos vilarejos, de forma

    oral, e nas occasionnels, folhetos informativos com histórias extraordinárias de

    monstros, fenômenos sobrenaturais e visões diabólicas. Mais tarde, os fait di-

    vers passaram a ser histórias contadas nos folhetins até se tornarem histórias

    sobre crimes.

    No fait divers, os personagens são estereotipados e a narrativa é sim-

    ples e segue estrutura cronológica, dando palavras às testemunhas. O fait di-

    vers também tenta mexer com as emoções através de apelos sentimentalistas,

    e os títulos ou chamadas apresentam expressões como “o mais triste”, “o dra-

    ma”, “o perigoso”, “a ameaça”, “uma polêmica”. Para Roland Barthes, o fait di-

    vers é a informação contida em si mesma e abrange as notícias e reportagens

    sobre o inusitado, o diferente, o perigoso.

    A televisão vem usando esse recurso tanto nos telejornais, quanto nos

    programas de entretenimento como os reality shows e os programas de auditó-

    rio. Para o sociólogo francês Jean Baudrillard, a característica da sociedade de

    consumo “é a universalidade do fait divers na comunicação de massa” (2010, 21

    GLOBO domination. The Economist, Estados Unidos, 7 jun. 2014.

  • 46

    p. 25) [grifo do autor]. Mas, enquanto no impresso, o tempo é o do leitor, que

    poderá ler em seu próprio ritmo de leitura, na televisão o tempo é fundamental

    (MARTÍN-BARBERO, 2004).

    No audiovisual, as imagens do fait divers mostram pouca relação ao

    evento (exceto nos casos raros de filmagem ao vivo). O lugar e mo-

    mentos precisos, e mesmo os personagens principais, mostram uma

    certa deficiência. Deste ponto, as imagens nos levam aos lugares, en-

    trevistam as testemunhas, e às vezes fazem uma reconstituição. Estas

    imagens, como as fotografias, ajudam a desnormalizar estes regressos

    dando uma cara aos protagonistas, ou acentuando os detalhes do ce-

    nário. As imagens possibilitam tocar o nível emocional do público e é

    exatamente isso que reforça a presença do fait divers na mídia audiovi-

    sual (DUBIED e LITS, 1999, p. 47).

    Para exemplificar o fait divers no Fantástico, vejamos as matérias do

    programa no dia 07 de dezembro de 2014, dentro do período da pesquisa:

    Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com deficiência física

    'Jornada da Vida' viaja até o berço da humanidade: a Etiópia

    Médicos alertam para os riscos das próteses à base de hidrogel

    Grupo que age em presídios paulistas se espalha pela América do Sul

    'Continuo a mesma', diz Jennifer Lawrence sobre sucesso e prêmios

    Menina de 13 anos faz treinamento na Nasa e se prepara para ir a Marte

    Golpistas usam internet para tirar dinheiro de mulheres apaixonadas

    Mãe passa no vestibular junto com a filha portadora de síndrome de Down

    ‘Eu era ruim’, conta escritora que chefiou boca de fumo na Rocinha

    Especialistas ensinam como reagir a problemas e acidentes em elevadores

    'Não sinto pressão', diz Gabriel Medina antes da final do mundial de surfe

    Metade das canetas laser testadas pelo Inmetro são reprovadas

    Papais Noéis usam criatividade e enfeitam táxi, ônibus e carro

    Mães e filhos enviam vídeos mostrando o que gostam de fazer juntos

    Veja os gols da última rodada do Brasileirão 2014

    Palmeiras empata com o Atlético-PR e se livra do rebaixamento

  • 47

    Câmeras de segurança registram cena chocante de atropelamento no PR

    Tufão provoca a morte de três pessoas nas Filipinas

    Fim de semana é marcado por protestos nos EUA e no México contra a vio-

    lência

    Escolha o nome dos mascotes das Olimpíadas e Paralimpíadas de 2016

    Novo depoimento lança suspeita sobre avô de Isabella Nardoni

    Com uma interação de notícias sérias e divertidas, o programa trata de

    personalidades, ídolos do esporte, criminosos e cidadãos comuns com histórias

    comoventes ou heroicas que possam interessar a quase todo mundo. O fait

    divers sugere um sentimento de alívio ou reflexão sobre a vida ao mexer com

    as emoções do telespectador. É o caso da portadora de síndrome de Down

    que passou no vestibular com sua mãe: “Até onde vai a dedicação de uma

    mãe? Jacqueline está ajudando a filha, Tatiane, a se superar e realizar um

    grande sonho. A receita? Paciência, disciplina e amor”. Na lista de matérias

    vemos um pouco de tudo do fantástico show da vida, como reforça o título. É o

    jornalismo espetáculo do extraordinário.

    Outra particularidade do fait divers presente nesta grade de notícias diz

    respeito a um acontecimento que pode ocorrer com qualquer pessoa. A repor-

    tagem “Especialistas ensinam como reagir a problemas e acidentes em eleva-

    dores” trata de um elevador que despencou em Porto Alegre. A repórter diz que

    “em São Paulo, por exemplo, os elevadores transportam diariamente 23 mi-

    lhões de pessoas”, ou seja, esse acidente pode ocorrer com você.

    (...) ao jornalismo, seja ele de rádio ou de jornal, não basta informar.

    Ele precisa chamar a atenção, precisa surpreender, assustar. Os pro-

    dutos jornalísticos são produtos culturais e, nessa condição, fazem o

    seu próprio espetáculo para a plateia. Como se fossem produtos de pu-

    ro entretenimento, buscam um vínculo afetivo com o freguês. Mas o

    que se dá na televisão é mais que isso – e na televisão brasileira é du-

    as vezes mais (BUCCI, 1997, p. 29)

  • 48

    Essas notícias universais não levantam problemas ou questionamentos,

    apenas contam uma história que não choca o público, a não ser pela emoção

    da identificação. Elas homogeneízam o telespectador, como faz a novela. Por

    ser compreendida por qualquer pessoa, a linguagem da emoção é um recurso

    importante no telejornalismo, visto que o repórter se dirige à milhares de pes-

    soas com personalidades e opiniões diversas. Cercado por amigos e familiares

    ou mesmo por desconhecidos em um consultório médico ou na mesa de bar,

    assistimos às notícias fait divers sem discordarmos da opinião alheia.

    O fato mais surpreendente apresentado por uma multidão psicológica é

    o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, por

    mais semelhantes ou dessemelhantes que possam ser seu tipo de vi-

    da, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o mero fato de se

    haverem transformado em multidão dota-os de uma espécie de alma

    coletiva. Essa alma os faz sentir, pensar e agir de um modo completa-

    mente diferente daquele como sentiria, pensaria e agiria cada um deles

    isoladamente (LE BON, 2008, p. 32).

    Mas o Fantástico dá as dicas para você escapar do perigo e entrevista

    especialistas que comprovam a segurança dos elevadores. No minuto final, a

    jornalista entrevista uma mulher que teve um ataque de nervosismo dentro de

    um elevador que não parou no andar dela. “Então Jaira, depois de todas as

    explicações, agora você acredita que o elevador é seguro, né? “Eu acredito,

    mas o meu medo na hora bloqueia qualquer crença”, finaliza Jaira”. É o senti-

    mento de alívio presente em alguns fait divers.

    O fait divers se faz presente também nas notícias de crime e violência

    como “Golpistas usam internet para tirar dinheiro de mulheres apaixonadas” e

    “Câmeras de segurança registram cena chocante de atropelamento no PR”. No

    primeiro caso, a notícia serve como um alerta, e no segundo, o adjetivo “cho-

    cante” reforça ainda mais o estilo fait divers.

    Já a matéria “Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com

    deficiência física” se baseia no incomum, no tabu. Se na cidade uma garota

    com síndrome de Down passou no vestibular com ajuda de sua mãe, na flores-

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    ta os deficientes são mortos pelas próprias genitoras. “Um assunto da maior

    importância: o direito à vida. Você acha certo matar crianças recém-nascidas

    por causa de alguma deficiência física?”, questiona o programa de forma mani-

    queísta.

    (...) a construção de metáforas da guerra entre o Bem e o Mal não se

    restringe ao noticiário diário. O noticiário é apenas uma parte da opera-

    ção que dá vida e sentido às metáforas. As outras peças são formadas

    por documentários supostamente ‘objetivos’, pela opinião de ‘especia-

    listas’ em religião, história e ciências sociais, por ‘pesquisas de opinião’

    e por uma imensa quantidade de filmes produzidos em Hollywood (...)

    (ARBEX JÚNIOR, 2001, p.118)

    Como outros exemplos de fait divers, o primeiro programa de dezembro

    traz uma matéria de ciência sobre o sonho de uma menina que treina para ir à

    Marte, a história de superação de uma ex-traficante que escreveu um livro, a

    prestação de serviços por meio dos testes das canetas laser, a ameaça dos

    bandidos que comandam o tráfico de drogas de dentro da cadeia, a atriz cuja

    fama não subiu à cabeça, os resultados de futebol e o debate sobre o uso de

    próteses à base de hidrogel.

    1.5. Reportagem especial

    Com mais tempo para a elaboração da matéria e um trabalho exaustivo

    de pesquisa que leva centenas de horas para ser contada em poucos minutos,

    a reportagem especial na televisão permite aprofundar o t