Lucimar Bizio

download Lucimar Bizio

of 103

Transcript of Lucimar Bizio

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    1/103

    0

    PONTFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Lucimar Bizio

    CONSIDERAES SOBRE O ENSINO DE LNGUAPORTUGUESA PARA SURDOS

    So Paulo

    2008

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    2/103

    1

    PONTFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Lucimar Bizio

    CONSIDERAES SOBRE O ENSINO DE LNGUAPORTUGUESA PARA SURDOS

    Dissertao apresentada BancaExaminadora como exigncia parcial paraobteno do ttulo de Mestre em LingsticaAplicada e Estudos da Linguagem, pelaPontifcia Universidade Catlica de SoPaulo, sob a orientao da Prof. Dr. LciaMaria Guimares Arantes.

    MESTRADO EM LINGSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

    So Paulo

    2008

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    3/103

    2

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________

    ______________________________________

    ______________________________________

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    4/103

    3

    O que eles chamam de nossos defeitos o que ns temos de diferentes deles...

    (Mrio Quintana, Caderno H, 1995.)

    A gente, para a gente mesmo, a gente. Raramenteconsegue ser o outro. A gente para o outro, no a gente;

    o outro. Deve estar confuso. Tento de novo: cada um de nsvive numa ambigidade fundamental: Ser a gente e ao

    mesmo tempo, ser o outro. Pra gente, gente gente.Para o outro, a gente o outro. Temos, portanto, dois

    estados: ser o eu de cada um de ns e ser ooutro. Na vida de relao, pois, temos que saber ser o

    eu-individual e ao mesmo tempo aceitar funcionarem estado de alteridade, ou seja, de outro.Rubem Braga

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    5/103

    4

    AGRADECIMENTOS

    Prof. Dra. Lucia Arantes, minha orientadora, pelo amor que despertou em mim pela

    Aquisio de Linguagem, pelo Interacionismo, atravs de aulas brilhantes que me levaram a

    tomar posio frente ao discurso vigente. Fui capturado. Como agradec-la?

    Profa. Dra. Francisca Lier-DeVitto, to carinhosamente chamada de Francisca. Como

    bom cham-la assim! Sua reflexo rigorosa e seu vigor intelectual explicam por que seu

    trabalho pde render em campos diferentes.s Profas. Ds. Maria Francisca Lier-DeVitto e Lourdes Andrade pela valiosa contribuio

    em meu exame de qualificao.

    Profa. Dra. Claudia Lemos, pelo gesto fundador.

    Maria Lcia, pessoa incansvel, amiga!

    Aos amigos e amigas do LAEL: Milena, Fernanda, Dbora, Elaine, Jos Carlos... Leituras,

    seminrios... Valeu a pena!

    minha famlia: Lilian, esposa amada e Firafofa, filha querida - quantos momentos privadosde companhia!

    Aos professores do LAEL, pela alegria em ensinar!

    Aos amigos professores das escolas: do Helena, Danylo, D.Joo, do Neusa, pela confiana!

    Aos alunos surdos, pelas mos que falam!

    Aos amigos e irmos da ICM, que famlia!Maranata!

    Ao Romeu, irmo amado: poca de carona, tempo da construo que templo!

    Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, pela bolsa que oportunidade!

    A Deus, amigo e companheiro, pela vida, pelos sinais que nos acompanham!

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    6/103

    5

    RESUMO

    Este trabalho tece consideraes sobre as prticas pedaggicas, no ensino de lngua

    portuguesa, voltadas s pessoas surdas. Para encaminhar a reflexo sobre o tema em questo

    foi necessrio desnaturalizar termos que circulam livremente no campo dos estudos sobre a

    surdez. Entre eles, destaca-se o de lngua materna, L1 e L2, uma vez que, na abordagem

    bilingsta, entende-se a Lngua de Sinais como L1, enquanto a escrita do portugus

    considerada como segunda lngua L.2.A escrita do surdo neste projeto sempre foi vista por uma perspectiva terica que

    entendesse as dificuldades apresentadas por esses sujeitos, como efeitos possveis do

    funcionamento da lngua e no apenas como dficit. Para cumprir a meta proposta foi

    necessrio empreender uma discusso sobre a aquisio da linguagem, sobre as concepes de

    escrita e tambm sobre a problemtica relao do surdo com a escrita. O ponto de partida foi

    uma apresentao da literatura brasileira sobre o assunto, seguida por um panorama sobre a

    histria da educao dos surdos.Foram abordadas as possibilidades de contribuio do dilogo com a Lingstica e

    tambm com a Psicanlise, com vistas a considerar a singularidade do surdo. Neste trabalho

    est em questo a relao singular do sujeito surdo com a linguagem, que movimentou as

    discusses sobre a lngua materna do surdo, o que L1 e L2 e a entrada do surdo no universo

    da escrita.

    A discusso aqui encaminhada foi iluminada pelo Interacionismo Brasileiro, proposto

    por Cludia Lemos, por outros autores filiados sua proposta e pelos desdobramentos

    tericos presentes nos trabalhos do grupo de pesquisa Aquisio, Patologias e Clnica de

    Linguagem, coordenado por Maria Francisca Lier-DeVitto.

    .

    Palavras-chave: surdo, escrita, lngua materna, sinais, primeira lngua, segunda lngua.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    7/103

    6

    ABSTRACT

    This study discusses issues concerning pedagogical perspectives of Portuguese

    language teaching aiming at deaf people.In order to offer a critical view of steady tendencies

    in the field, namely those which focus the mother tongue, L1 and L2, this thesis presents an

    overview of the history of educational approaches directed to the deaf and discusses the

    Brazilian state of the art in that field and comments some studies which emphasizes the deafs

    writing.

    It is worth keeping in mind that the so called bilingual approach defines the Sign

    Language as L1 and the writing in Portuguese as L2. The present study approaches the deaf

    person writing ability from a theoretical perspective which tries to explain their productions

    and difficulties as effects of the functioning of language and not as cognitive deficits. The

    discussion developed here was guided by propositions from the Brazilian Interactionism,

    proposed and advanced by Cludia Lemos and other authors as well as the theoretical

    developments put forward by the research group Language Pathology and Clinic, headed by

    Maria Francisca Lier-DeVitto and Lcia Arantes.

    Keywords: deafs writing, mother tongue, sign language, first language, second language.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    8/103

    7

    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................... 8

    CAPTULO I - EDUCAO DE SURDOS: BREVE RELATO............................... 16

    1. Educao dos Surdos no Brasil.................................................................................. 26

    CAPTULO II - ABORDAGENS EDUCACIONAIS PARA SURDOS.................... 28

    2. Oralismo, Comunicao Total e Bilingismo........................................................... 28

    CAPTULO III - BILINGSMO E AQUISIO DE LINGUAGEM: SOBRE

    AS COMPLEXAS RELAES ENTRE LNGUA MATERNA, L2 E ESCRITA. 47

    3. Sobre a Aquisio de L2............................................................................................. 56

    3.1 Lngua de Sinais: lngua materna?........................................................... 63

    CAPITULO 4 - LNGUA DE SINAIS E ESCRITA.................................................... 75

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................................... 86

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................... 97

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    9/103

    8

    INTRODUO

    O nascimento de uma questo de pesquisa

    Meu interesse em estudar o ensino de lngua portuguesa para os surdos iniciou-se

    quando da incluso de alunos portadores de necessidades especiais em classes chamadas de

    alunos regulares. A constatao do nmero reduzido de profissionais habilitados para

    trabalhar com tais alunos causou-me inquietao, pois estes exigiam um atendimentoespecfico em funo, especialmente, das dificuldades encontradas para penetrar no universo

    da leitura e da escrita.

    A convivncia com alunos surdos, o fato de ser professor de lngua portuguesa, hoje

    trabalhar na Rede Estadual com alunos surdos includos em sala de ouvintes, e, tambm, na

    Rede Municipal de Ensino, em So Paulo, em uma escola especial de surdos, foram os

    aspectos motivadores para que eu desse incio atividade de pesquisa. Tambm a busca de

    bibliografia relativa ao ensino da lngua portuguesa voltada pessoa surda foi estimulante.Considerei importante em uma pesquisa preliminar, anterior ao incio desta dissertao,

    incluir textos que lidassem tanto com a alfabetizao, quanto com os perodos ulteriores de

    escolaridade, focando as dificuldades apontadas pela literatura do campo, especialmente a

    brasileira. Essa pesquisa inicial desdobrou-se em um projeto de mestrado.

    Assim, no decorrer deste processo, defini a questo central de minha dissertao. Este

    projeto tem como objetivo pesquisar as prticas pedaggicas, no ensino de lngua portuguesa,

    voltadas s pessoas surdas, mais particularmente, pretende-se abordar a relao entre a lngua

    de sinais, considerada por muitos autores, especialmente aqueles ligados proposta bilnge,

    como primeira lngua (L.1), e a escrita do portugus, considerada segunda lngua (L.2) do

    surdo. Pretendo empreender uma discusso no sentido de desnaturalizar alguns conceitos e

    preconceitos relativos educao de surdos. Finalmente, pretendo incluir uma discusso sobre

    as contribuies da Lingstica, e tambm da Psicanlise, no campo da escrita. Meu objetivo

    que a interlocuo com estes campos permita levantar algumas questes relacionadas com

    lngua/fala/sinais/escrita que, talvez, possam contribuir para um novo caminho nos estudos

    relativos ao ensino de Lngua Portuguesa para alunos surdos.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    10/103

    9

    O processo do ensino da lngua portuguesa L2 para surdos considerado pelos

    adeptos do bilingismo, tal como Fernandes (1999), como o de uma lngua estrangeira, ou

    seja, ao invs de uma aprendizagem informal, ganha um ambiente artificial onde a aquisio

    sistemtica e o aprendiz se v num trabalho de elaborao constante, intencional sobre a

    adequao daquilo que quer dizer (FERNANDES, op. cit., p.64).

    O simples fato de o ensino de lngua ocorrer dentro da escola caracteriza um processo

    de aquisio no-natural de lngua, especialmente para o aluno includo em escola de

    ouvintes, em que o ambiente todo constitudo por sons (GUARINELLO, 2007). Para essa

    pesquisadora, o processo exige do professor habilidade para tornar a aquisio a mais

    autntica possvel, como tambm para criar motivao e despertar o interesse do aluno. Cabe,

    entretanto, interrogar qual a relao entre autenticidade e interesse do aluno e mais, em quemedida isso responderia pelo sucesso do surdo?

    Estaro em tela de discusso as dificuldades encontradas pelo surdo na produo do

    texto escrito. A partir da anlise do material relativo aos trabalhos que lidam com a escrita

    desses alunos, sero levantadas hipteses acerca das relaes entre oralidade, lngua de sinais

    e escrita. Cabe assinalar que os surdos tm diferentes modos de relao com a lngua de

    sinais; h aqueles que a dominam, como tambm aqueles que apenas tardiamente entraram em

    contato com esta lngua. Assim, entendo que enigmtica ser tambm a relao do surdo coma escrita.

    Gostaria de enfatizar que a escrita do surdo ser o foco principal deste projeto,

    principalmente como mote para lidar com questes tericas. Esclareo: considero que leitura e

    escrita no possam ser desarticuladas. Entendo que h imbricaes necessrias entre elas, mas

    foi necessrio operar um recorte para que esta dissertao se tornasse exeqvel no perodo

    previsto.

    A primeira visada na literatura

    De acordo com Ges (1996), muitos estudos referem que pessoas surdas, mesmo aps

    um longo perodo de escolarizao, apresentam muitas dificuldades na escrita. A pesquisadora

    d como exemplo o trabalho de Gesueli (1988), que descreveu o perodo de alfabetizao de

    crianas surdas e destacou determinadas caractersticas dos textos por elas elaborados, tais

    como: suas produes apresentam uma seqncia de palavras que tende a desrespeitar a

    ordem convencional da lngua portuguesa, e os enunciados so compostos com predomnio de

    nomes que, por vezes, substituem verbos (GES, op.cit., p.1). Na mesma direo, segundo a

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    11/103

    10

    autora, vo os trabalhos de Fernandes (1989) e de Rampelotto (1993). De modo geral, esses

    trabalhos constatam que os textos escritos por sujeitos surdos se caracterizam da seguinte

    maneira: vocabulrio reduzido, ausncia de artigos, preposies, concordncia nominal e

    verbal, uso reduzido de diferentes tempos verbais, ausncia de conectivos, alm de uma

    colocao aparentemente aleatria de elementos na orao (coeso/coerncia), uma escrita

    que, primeira vista, poderia ser, ou melhor, em alguns casos vista como patolgica.

    Note-se que este tipo de descrio apenas uma taxonomia s avessas (ARANTES,

    1994), em que a produo escrita dessa populao entendida a partir da noo de dficit.

    Essa visada em relao ao texto escrito no ultrapassa os limites de uma descrio negativa,

    que toma como padro a norma culta do Portugus, e remete a explicao condio de

    privao sensorial desses alunos.H tambm os autores que apontam para os efeitos do apagamento da lngua de sinais

    durante o processo de alfabetizao da criana surda. Quadros & Schmiedt (2006) assinalam

    que a lngua de sinais vai ser adquirida por crianas surdas que tiveram a experincia de

    interagir com usurios de lngua de sinais. Esse acesso precoce lngua de sinais daria a

    possibilidade de penetrarem no mundo da linguagem com todas as suas possibilidades.

    Importante assinalar que a escola vista como um espao lingstico fundamental, pois

    normalmente o primeiro espao em que a criana surda entra em contato com a lnguabrasileira de sinais, no universo escolar que, na maioria das vezes, a criana vai adquirir a

    lngua de sinais, considerada, como j disse, por autores ligados ao bilingismo, como L1.

    Lembre-se de que a maior parte das crianas surdas so filhas de pais ouvintes. Todo o

    processo de escolarizao vai possibilitar a entrada do surdo no universo da escrita do

    portugus. V-se, assim, que a aquisio de linguagem pela criana, na tica do bilingismo,

    ocorre no universo escolar, pois grande parte dos surdos filho de pais ouvintes, o que faz

    com que os estudos sobre aquisio sejam vistos a partir de sua relao com a pedagogia.Cabe destacar tambm que a lngua de sinais apresenta, nessa perspectiva, um papel

    fundamental no processo de ensino-aprendizagem do portugus. A idia no simplesmente

    uma transferncia de conhecimentos da primeira lngua para a segunda lngua, mas sim, um

    processo paralelo de aquisio e aprendizagem em que cada lngua apresenta seus papis e

    valores sociais representados (QUADROS & SCHMIEDT, 2006, p.24). H, como se v,

    uma imbricao entre aquisio da linguagem e aquisio da escrita.

    Por outro lado, no so todos os autores que tomam a lngua de sinais como condio

    de possibilidade para penetrar no universo da escrita. Guarinello (2007) considera que para os

    surdos que falam, e at mesmo tenham uma boa leitura orofacial, a aprendizagem da lngua

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    12/103

    11

    portuguesa fica mais fcil, pois j a tm em sua forma oral e agora devero aprend-la numa

    outra modalidade dessa mesma lngua, a escrita. Na realidade, para a pesquisadora, os

    diferentes modos de relao com o simblico sero determinantes da relao desse aluno com

    a escrita. V-se, assim, que ela, ao falar de uma relao ao simblico, desloca a prioridade

    dada lngua de sinais. A questo a relao ao simblico e no a uma modalidade, ou a uma

    lngua especfica.

    Ges (idem ibidem) assinala que, na verdade, as limitaes no uso da escrita no so

    relativas apenas esfera da surdez, mas que so efeitos de prticas pedaggicas que afetam

    tambm alunos ouvintes. Para ela, as constataes acerca da escrita dos surdos esto

    relacionadas s experincias escolares limitadas oferecidas a esses alunos, que se sobrepem

    s dificuldades especficas e demandas adicionais da pessoa surda. H, segundo ela, diversosautores como Fernandez (1993), Morato e Coudry (1989) e Trenche (1995), que discutem

    criticamente a natureza das prticas pedaggicas dirigidas a essa populao.

    A aquisio do portugus escrito por crianas surdas, como indicam essas

    pesquisadoras, ainda baseada no ensino do portugus para crianas ouvintes, que adquirem

    essa lngua na modalidade falada. Normalmente, a criana surda colocada em contato com

    a escrita do portugus para ser alfabetizada seguindo os mesmos passos e materiais utilizados

    nas escolas com as crianas falantes do portugus (PEREIRA, p.16, 2006).Nesta dissertao, pretende-se incluir outra possibilidade de entendimento das

    dificuldades encontradas na escrita de crianas surdas. Isto , pretendo ampliar as explicaes

    que, via de regra, so oferecidas, a saber: privao sensorial, prticas pedaggicas

    ineficientes, ou como veremos ao discutir as propostas bilnges, que acusam o apagamento

    da lngua de sinais como L1, ou lngua materna do surdo.Cabe assim perguntar:

    (1) A escrita do portugus, para estes sujeitos surdos, seria uma lngua

    estrangeira, isto , corresponderia segunda lngua L2?(2) Como se d a relao com esta modalidade de lngua (escrita)?

    (3) Qual seria o papel do lao social estabelecido entre pais ouvintes e

    familiares at o contato com a lngua de sinais considerada L1? Ou

    mesmo da fala adquirida por treinamento?

    (4) Que lugar esses fatores ocupam na constituio desses sujeitos surdos?

    certo que esta pesquisa no pretende responder a todas essas questes, mas no

    possvel marginaliz-las, pois elas apontam para a heterogeneidade radical do grupo de surdos

    que chegam escola. Voltaremos a isso.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    13/103

    12

    O que diz a lei sobre a educao de surdos: a distncia entre inteno e gesto

    A Secretaria Estadual de Educao do Estado de So Paulo, bem como a Secretaria

    Municipal da cidade de So Paulo, tm como objetivo o ensino eficaz da leitura e da escrita

    na educao bsica e tambm no ensino fundamental e mdio. Algumas pesquisas apontam

    que em determinadas escolas brasileiras comum a presena de alunos surdos, que

    apresentam dificuldades para ultrapassar as sries escolares, sendo at considerados iletrados

    funcionais (GUARINELLO, 2007, p.53). Sabe-se, tambm que, via de regra, sua produoescrita no compatvel com essas sries escolares e que, portanto, no atingem a meta

    desejada.

    Para a escola, como espao institucional de acesso ao conhecimento, a necessidade de

    garantir a aprendizagem da leitura e escrita ao surdo implica uma reviso substantiva das

    prticas de ensino de lngua portuguesa, movimento que tambm pode ser observado nas

    escolas que recebem crianas ouvintes. Mas cabe interrogar se as propostas educacionais so

    o nico ponto a ser considerado quando o que est em questo o fracasso escolar. Antecipo

    que minha resposta ser negativa. Como se v, a questo mais profunda e tomar como base

    a misso da escola no Brasil insuficiente, pois no se ultrapassa o plano das intenes.

    Quadros & Schimeidt (op. cit) lembram que a lei 10.436, de 2002, reconhece o

    estatuto lingstico da lngua de sinais e, ao mesmo tempo, ressalta que esta no pode

    substituir o portugus (grifo meu). A recomendao atual do MEC/SEESP de que, em

    funo da lngua portuguesa ser, pela Constituio Federal, a lngua oficial do Brasil,

    determina-se o uso obrigatrio dessa lngua (grifo meu) nas relaes sociais, culturais,

    econmicas, jurdicas e nas instituies de ensino. As autoras analisam que, nessa perspectiva,

    o ensino de lngua portuguesa, como segunda lngua para surdos, est firmado no fato de que

    esses cidados brasileiros tm a obrigao de utilizar e aprender a lngua oficial para o

    exerccio de sua cidadania. Alm disso, o decreto 5.626 de 2005 garante que a educao de

    surdos no Brasil deve ser bilnge, o que d ao surdo a possibilidade de acesso educao por

    meio da lngua de sinais e o ensino da lngua portuguesa escrita como segunda lngua. Porm,

    se considerarmos a condio atual dos alunos surdos e avaliarmos o modo como se deu a

    implementao da lei 10.436, no difcil concluir que o amparo da lei no pode garantir a

    vida escolar do aluno.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    14/103

    13

    O professor de lngua portuguesa para surdos, como assinalam Quadros & Schimeidt

    (2006), dever, portanto, viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam

    socialmente, levar seu aluno a produzi-los e a interpret-los. Fazer com que os alunos sejam

    capazes de circular no texto escrito, mesmo no caso de crianas pequenas, pois o uso de

    palavras e frases soltas no far nenhum sentido para o aprendiz (GUARINELLO, 2007,

    p.84). E mais, o aluno deve apreender as mltiplas significaes do texto, apreender

    contedos, obter informaes novas, descrever problemas, comparar pontos de vista e

    argumentar. Para poder viabilizar uma tarefa de tal envergadura, o professor encontrar

    alguns obstculos, e mais, obstculos de natureza diversa. Assim, embora a criao de leis que

    garantam melhores condies de ensino para a pessoa surda seja uma conquista, h umenorme trajeto a ser percorrido para sua implementao.

    A questo, a meu ver, ultrapassa tambm a deciso de que se a lngua de sinais ou a

    lngua portuguesa, em sua modalidade de leitura e escrita, ser privilegiada ou no no

    programa escolar, mas sim, como assinalam Quadros & Schimiedt (2006) tornar possvel a

    co-existncia dessas lnguas, reconhecendo-as de fato, atentando-se para as diferentes funes

    que apresentam no dia-a-dia da pessoa surda que se est formando (idem ibidem, p.13). No

    se trata, portanto, apenas de uma escolha metodolgica, ou de prticas pedaggicas, mas deum olhar para o modo de relao da criana com a linguagem, que ser determinante de sua

    relao com o universo da escrita.

    necessrio interrogar, inicialmente, quem o aluno surdo. No possvel

    considerar que se trata de um grupo homogneo, uma classe estabelecida a partir de uma

    privao sensorial. Na realidade, alm das diferenas relacionadas ao tipo e grau da perda, h

    tambm uma enorme diversidade no que se refere ao modo de relao de cada sujeito com a

    linguagem. Cada surdo singular em seu modo de presena na lngua. Os interesses pelaescrita, assim, desde o incio, sero igualmente diferentes.

    Como se v, o ensino da Lngua Portuguesa ao aluno surdo perpassado por uma srie

    de questes complexas e que merecem tratamento particular. No possvel abordar todos os

    aspectos envolvidos nesta questo, mas acredito que seja possvel escapar ao vis

    exclusivamente ideolgico, que, como veremos, tem marcado fortemente as pesquisas sobre a

    educao de surdos no Brasil. Pretendo empreender uma discusso de outra natureza: colocar

    em questo o que L1 e L2, o que se considera como lngua materna e, tambm, como esta

    questo se relaciona com a entrada do surdo no universo da escrita. Considero que esta

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    15/103

    14

    direo pe em pauta a natureza da escrita, assim como sua relao com a lngua de sinais e,

    tambm, com a fala.

    Para atingir os objetivos desta dissertao, no Captulo 1 ser realizado um breve

    histrico da educao de surdos atravs dos tempos, bem como a educao de surdos no

    Brasil. Considerei esse um passo importante para que eu pudesse situar o modo como a

    educao dos surdos foi concebida ao longo dos tempos e como, de certo modo, a polmica

    que permeia essa histria se repete. No Captulo 2 sero apresentadas as abordagens

    educacionais direcionadas aos surdos. No Captulo 3 o foco ser a proposta bilnge e o

    encaminhamento de uma discusso acerca de seus pressupostos, bem como de sua relao

    com os estudos sobre aquisio de linguagem. Tambm a complexa questo que envolve as

    relaes entre a lngua materna, L1, L2 e a escrita sero abordadas dentro das possibilidadesdesta dissertao. No Captulo 4 finalizo este trabalho com uma discusso crtica de algumas

    pesquisas que tocam a escrita do surdo. Nas Consideraes Finais sintetizo os pontos

    principais discutidos ao longo desta dissertao e aponto alternativas possveis para

    encaminhar uma discusso que desloque a maioria das concepes vigentes sobre a escrita

    dos surdos. Ela, como veremos, tributria de uma aproximao inicial com a Psicanlise,

    mas que indica como este dilogo pode ampliar a natureza da discusso acerca do que a

    escrita para a criana.Para finalizar esta introduo, cabe destacar que as questes, aqui colocadas, nasceram

    durante a realizao deste projeto e encontram no Interacionismo em Aquisio da

    Linguagem - proposto por Cludia Lemos (1992, 2002, entre outros) e nos desdobramentos

    tericos relativos s Patologias e a Clnica de Linguagem (Lier-DeVitto, 1998, 2000, 2006 e

    outros) - solo frtil para serem encaminhadas. Esses empreendimentos tericos permitiram

    imprimir uma direo a esta pesquisa e desnaturalizar algumas idias cristalizadas na rea da

    Educao, especialmente, quando a surdez est em questo. Minha incluso no Grupo dePesquisaAquisio, Patologias e Clnica de Linguagem (LAEL/PUCSP-CNPq)permitiu que

    eu interrogasse o bilingismo, o modo como L1 e L2 so entendidas e formular questes que,

    conforme acredito, possam proporcionar novas possibilidades de entendimento da escrita e

    dos mistrios nela envolvidos. Abre-se com isso a possibilidade de apreender a arquitetura da

    escrita desses alunos, a partir de uma concepo de escrita em que as dificuldades

    apresentadas por essa populao possam ser entendidas como efeitos possveis do

    funcionamento da lngua, quer dizer, como produes que no escapam s leis de referncia

    interna da linguagem que regem todas as produes linguageiras e no apenas como dficit.

    A reflexo terica que norteia o grupo de pesquisa ao qual perteno e que direcionou

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    16/103

    15

    os passos desta pesquisa d reconhecimento ordem prpria da lngua, ou seja, s leis de

    referncia interna da linguagem (SAUSSURE, 1916) e sua articulao na fala/escrita e,

    tambm, incluo a os sinais (JAKOBSON, 1954, 1960; BENVENISTE, 1962, 1970). O

    pensamento desses autores e a leitura de suas obras, conforme aqui discutidas, so efeitos da

    interpretao de De Lemos (1992, 1997, 2002 e outros) afetada pela Psicanlise de Jacques

    Lacan e, como j disse, especialmente pela leitura realizada, na seqncia, no mbito do

    Projeto Integrado (CNPq 522002/97-8), hoje Grupo de Pesquisa CNPq, Aquisio,

    Patologias e Clnica de Linguagem, coordenado por Maria Francisca Lier-DeVitto, no

    LAEL-PUCSP.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    17/103

    16

    CAPTULO I

    EDUCAO DE SURDOS: BREVE RELATO

    A histria que passo a apresentar a do nascimento das prticas educacionais com

    surdos. Ela est apoiada numaverso oficial que, como toda verso, elege certos fatos que

    considera relevantes para tec-la. A esse respeito, como diz Arantes (2001) a partir de

    Clavreul evocar as origens sempre constituir um mito (CLAVREUL, 1983, apud

    ARANTES, 2001, p.17) porque, prossegue a pesquisadora, a seleo dos fatos guiada pelo

    ideal de progresso que resulta numa apresentao linear de conquistas sem fracassos,

    interrupes ou conflito. (Arantes, op. cit., p.17).

    No caso deste trabalho, ative-me mais a verses que me permitiram apreender o

    percurso da instituio de prticas pedaggicas. Mesmo tendo em conta essa iluso

    retroativa (ARANTES, 2001, p. 65), tomo como ponto de partida a Histria Oficial em busca

    de um entendimento relativo imbricao entre concepo de surdez e natureza das

    prticas pedaggicas institudas.

    Foucault, segundo Arantes (idem), sustenta que h diferenas capitais entre:

    a histria das idias e uma anlise arqueolgica da cincia mas busca

    estabelecer, como diz Machado, inter-relaes conceituais ao nvel

    do saber, [no] privilegia a questo normativa da verdade, nem

    estabelece uma ordem temporal. Entre elas, ele destaca que a

    arqueologia no apreende nos discursos pensamentos, representaes,

    imagens e temas. Ou seja, no visa a atingir contedos ocultos que

    eles conteriam. A arqueologia, diz ele, no procura traar uma

    continuidade entre discursos: no visa origem nem identificao

    de idias por no efetuar uma anlise clssica do discurso, que do

    momento em que eles perdem sua identidade (ARANTES, op.cit.,

    p. 18)

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    18/103

    17

    A anlise arqueolgica se diferencia da histria de idias, pois esta concebe o texto

    como documento: como ilustrao/retrato preciso da situao em que foi produzido. No se

    trata de uma anlise continusta da histria, mas da tentativa de incidir sobre os momentos de

    ruptura discursiva nos textos mdicos. Uma reflexo seria fundamental, neste trabalho, no

    apenas para problematizar a Histria Oficial, mas, principalmente, para colocar em

    perspectiva a articulao entre a concepo de surdez e prticas pedaggicas1. Apesar de

    reconhecer essas duas possibilidades de leitura dos acontecimentos histricos, considero que

    ele seria tema de uma dissertao, por isso passo agora ao mito das origens.

    Conhecer a histria, bem como a face filosfica subjacente s propostas educacionais

    voltadas para os surdos, um passo fundamental, e necessrio, para dar incio a um estudo

    mais aprofundado sobre os obstculos encontrados por esta populao para entrar no universoda escrita. No pretendo empreender uma descrio cronolgica exaustiva, que est

    entrelaada com questes poltico-sociais, mas traar um panorama que focalize o modo como

    o surdo foi visto ao longo dos tempos e aos aspectos relacionados sua educao. A histria

    tambm suporte para uma anlise crtica das conseqncias relativas adoo de diferentes

    perspectivas tericas adotadas ao longo dos tempos. 2

    No decorrer da histria, desde a Antigidade, a idia que a sociedade fazia dos surdos

    geralmente apresentava apenas os aspectos negativos: eles eram vistos como pessoas que nofalavam e que, portanto, no poderiam desenvolver a linguagem nem o pensamento. Na

    Antigidade, os surdos foram percebidos de formas variadas: com piedade e compaixo,

    como pessoas castigadas pelos deuses ou como pessoas enfeitiadas, e por isso eram

    abandonados ou sacrificados.

    A crena de que o surdo era uma pessoa primitiva fez com que a idia de que ele no

    poderia ser educado persistisse at o sculo quinze. Como se v, durante esse extenso perodo,

    eles viviam totalmente excludos, margem da sociedade. Assim, no havia porque pensar emprticas educacionais especficas.

    A partir do sculo dezesseis, h notcias dos primeiros educadores de surdos. Segundo

    Reis (1992), Fornari relata que Girolamo Cardano (1501-1576) foi o primeiro a afirmar que o

    surdo deveria ser educado e instrudo, ao afirmar que: um crime no instruir o surdo-1Esclareo que interessa em Foucault (assim como em Clavreul) que histria no acmulo de conhecimentos.Sua interpretao faz aparecer com maior clareza as conjunes no cumulativas mas conflitantes que levaram conquista da clnica na Medicina. Neste seu trabalho, a questo da ideologia, como determinante de mudanasno discurso, no claramente explicitada (ele fala, porm, em conflito de saberes). Tem-se, contudo, que a

    problemtica da ideologia movimenta o pensamento de Foucault. Devo dizer que procurei depreender aquiloque este seu trabalho ilumina sobre a relao entre nascimento da clnica mdica e instituio do diagnsticosem, contudo, discutir a questo da ideologia. Essa discusso, parece-me, exigiria um outro trabalho.2 Para uma leitura verticalizada sobre o tema ver Reis (1992), Skliar (1996) e Moura (2000).

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    19/103

    18

    mudo. V-se nessa acusao o nascimento de um discurso sobre surdo, que o caracteriza de

    modo positivo, como algum que poderia vir a aprender e ganhar, assim, um lugar no

    espao social em que at ento no era sequer considerado.

    Ainda no sculo XVI, na Espanha, o monge beneditino Pedro Ponce de Leon (1520-

    1584) ensinou quatro surdos, filhos de nobres, a falar grego, latim e italiano, alm de ensinar-

    lhes conceitos de fsica e astronomia. Ponce de Leon foi quem, de fato, desenvolveu uma

    metodologia de educao voltada para os surdos que inclua datilogia (representao manual

    das letras do alfabeto), escrita e oralizao. Criou, tambm, uma escola de professores de

    surdos, seu trabalho foi aproveitado por outros educadores de surdos (MOURA, 2000,

    p.18). Nesse sculo, uma vez que o surdo passa a ser reconhecido como algum que poderia

    aprender, surge tambm a necessidade de suprir as dificuldades decorrentes de um dficitsensorial, a partir da criao de mtodos especficos. Cabe assinalar que a possibilidade do

    surdo falar implicava seu reconhecimento como cidado e seu direito a receber herana e o

    ttulo familiar. Assim, como afirma Moura: a perda de direitos pesava mais do que as

    implicaes religiosas ou filosficas no desenvolvimento de tcnicas para a oralizao do

    Surdo3 (MOURA, op.cit,, p.18). Entende-se assim o prestgio do oralismo que se estende at

    hoje.

    Em 1620, Juan Martin Pablo Bonet, provvel seguidor de Leon, publicou, na Espanha,o livroReduccion de ls letras y artes para ensear a hablar a los mudos.Neste livro, Bonet

    se apresenta como inventor da arte de ensinar o surdo a falar e, segundo Moura (op. cit),

    oferece uma idia nova e simples para ensinar o surdo a ler mais facilmente, que era

    representar de forma visvel e invarivel o som da fala. O alfabeto digital era usado para

    ensinar a ler, e a gramtica era ensinada atravs da Lngua de Sinais. A fala era tambm

    ensinada pela manipulao dos rgos fonoarticulatrios.

    Moura (op. cit) destaca sobre o livro de Bonet, que na realidade no era to originalcomo ele fazia supor, chamou a ateno de intelectuais de toda a Europa e tornou-se a origem

    de todos os esforos futuros de tentar fazer com que o surdo falasse. O alfabeto digital foi

    utilizado por muitos educadores de surdos que apostavam no uso de uma pista visual para o

    ensino. Porm, base oralista do seu trabalho, foi muito bem recebida pela sociedade daquela

    poca e, de acordo com Moura, serviu como modelo para trs grandes vertentes da educao

    oral: Jacob Rodrigues Pereire (1715-1780), nos pases de lngua de origem latina, educador

    que defendia a oralizao dos surdos, acreditando que assim o surdo adquiriria formas

    3Em seu trabalho, Moura (2000) optou em utilizar a palavra Surdo sempre com letra maiscula, por razestericas, contudo, neste trabalho, optamos pela letra minscula, exceto nas citaes diretas da autora.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    20/103

    19

    abstratas e gerais da comunicao com toda a sociedade, porm nos ltimos anos de sua vida

    desistiu dessa idia.

    J nos pases de lngua alem, Johann Conrad Amman, mdico suo, cuja nfase do

    trabalho estava voltada para a articulao, pois para ele a fala tinha poderes especiais, e na

    voz residiria o sopro da vida, o esprito de Deus. Contrrio ao uso de sinais pelos surdos,

    ele acreditava que seu uso atrofiava a mente para uma posterior aquisio da fala. A terceira

    corrente foi representada por John Wallis (1616-1703), nas Ilhas Britnicas, seguidor tambm

    de Bonet, considerado o fundador do oralismo na Inglaterra. Wallis acreditava que a fala do

    surdo se deteriorava porque necessitava sempre de um feedback externo para acompanh-la.

    Assim, ele abandonou sua misso de ensinar os surdos a falar.

    Thomas Braidwood, um sculo mais tarde, l o trabalho de Wallis, resolve segui-lo,considerando a fala a chave da razo. Funda em Edimburgo uma escola onde trabalha com

    surdos e outras crianas com problemas de fala, tornando este lugar o primeiro local na

    Europa para correo de fala.

    Moura assinala que o oralismo foi fundado com o argumento da necessidade de

    humanizar o surdo e tambm garantir sua integrao. Mas que seu prestgio estava tambm

    atrelado necessidade particular de seus defensores que visavam lucro e prestgio, apesar de

    muitos educadores terem abandonado o ensino da fala e defendido o uso dos sinais naeducao do surdo, o prestgio do oralismo j havia se alastrado por diversas escolas da

    Europa.

    Houve, tambm, muitos educadores que defendiam a Lngua de Sinais. Em 1750, na

    Frana, ganha destaque o trabalho do Abade Charles Michel de LEpe, pessoa bastante

    importante na histria da educao dos surdos. Para muitos ele foi o inventor da Lngua de

    Sinais, lembro aqui a idia do mito fundador. Porm, como ela j existia, o que ele fez foi

    reconhec-la como lngua e sua serventia essencial na comunicao entre e com os surdos.LEpe se aproximou dos surdos que perambulavam pelas ruas de Paris, aprendeu com eles a

    lngua de sinais e criou os Sinais Metdicos, uma combinao da lngua de sinais que os

    surdos usavam com a gramtica francesa, isto , ele construiu um sistema que tinha os sinais

    usados na ordem do francs, esses sinais metdicos implicavam num aumento muito grande

    no nmero de sinais, por isso o contedo dos textos era ensinado em Lngua de Sinais. Os

    sinais metdicos foram usados at 1830. Cabe destacar que LEpe, embora considerasse a

    Lngua de Sinais falha para ser usada como mtodo, ela lhe deu reconhecimento e nesse gesto

    incluiu o Surdo entre os humanos. O Abade teve imenso sucesso na educao de surdos e

    transformou sua casa em escola pblica. Em poucos anos (de 1771 a 1785), sua escola passou

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    21/103

    20

    a atender 75 alunos, nmero bastante elevado para a poca. LEpe e Sicard, seu seguidor,

    acreditavam que todos os surdos, independentemente de nvel social, deveriam ter acesso

    educao, e esta deveria ser pblica e gratuita.

    Moura (2000) comenta que LEpe realizava demonstraes pblicas em que, atravs

    de perguntas feitas por meio de Sinais e da escrita, os surdos educados em sua escola

    demonstravam os conhecimentos obtidos em religio e em gramtica. Comprovava, assim,

    nobreza, aos filsofos e aos educadores a eficincia de seus mtodos e a capacidade

    intelectual dos surdos. Os alunos respondiam por escrito perguntas tais como: O que voc

    entende por inteno? ou Podeis demonstrar em ns um tipo de semelhana com a distino

    de trs pessoas em Deus, na unidade de uma mesma natureza?

    Nessa mesma poca, no ano de 1750, com as idias de Samuel Heinick, na Alemanha,surgem as primeiras noes do que hoje constitui a filosofia educacional Oralista, filosofia

    que acredita ser o ensino da lngua oral, e a rejeio lngua de sinais, a situao ideal para

    integrar o surdo na comunidade geral. Heinick foi o fundador da primeira escola pblica

    baseada no mtodo oral, ou seja, que utilizava a lngua oral na educao das crianas surdas.

    Sua escola tinha nove alunos.

    As metodologias de LEpe e Heinick se confrontaram e foram submetidas anlise

    da comunidade cientfica. Os argumentos de LEpe foram considerados mais fortes e, comisso, foram negados a Heinick recursos para ampliao de seu instituto.

    O sculo XVIII considerado o perodo mais frtil da educao dos surdos. Naquele

    sculo, houve um grande impulso do ponto de vista quantitativo, isto , houve um aumento

    expressivo de escolas para surdos, que podiam, a partir de ento, aprender e dominar diversos

    assuntos e exercer vrias profisses.

    Sacks (1990) relata que:

    Esse perodo que agora parece uma espcie de poca urea na histria

    dos surdos testemunhou a rpida criao de escolas para surdos, de um

    modo geral dirigidas por professores surdos, em todo o mundo civilizado,

    a sada dos surdos da negligncia e da obscuridade, sua emancipao e

    cidadania, a rpida conquista de posies de eminncia e

    responsabilidade escritores surdos, engenheiros surdos, filsofos

    surdos, intelectuais surdos, antes inconcebveis, tornara-se subitamente

    possveis (SACKS, op. cit., p.37).

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    22/103

    21

    Aps a morte de L Epe e Sicard, seu sucessor na direo do Instituto Nacional de

    Surdos-Mudos, teve incio um movimento de crtica de adeptos do oralismo ao trabalho

    inspirado na proposta de LEpe. Jean-Marc Itard liderou esse movimento. Ele era mdico e

    havia estudado com Pinel, que acompanhava as idias de Conddillac, para quem as

    sensaes eram a base para o conhecimento. Dentro dessa concepo, era exigida a

    erradicao ou a diminuio da surdez para que o Surdo tivesse acesso ao conhecimento

    (MOURA, op.cit., p. 25). A diferena passa a ser vista como doena e, portanto, passvel de

    tratamento. A surdez passa a ser vista como doena e o surdo como doente. A nica

    possibilidade seria tentar restaurar a audio e realizar um treinamento articulatrio na

    tentativa de propiciar o desenvolvimento da fala. Para ele o uso da Lngua de Sinais era umfator que interferia de modo negativo no treinamento de fala dos surdos, pois se eles no

    tivessem acesso a ela seriam forados a falar. Como se v, no sculo XIX, sob a gide do

    pensamento cientfico, a concepo oralista de educao ganha impulso.

    J nos Estados Unidos, em 1815, Thomas Hopkins Gallaudet, um professor

    interessado em obter mais informaes sobre a educao de surdos, seguiu para a Europa. Na

    Inglaterra encontrou-se com a famlia Braidwood, que utilizava apenas a lngua oral na

    educao de surdos, e na Frana com o Abade LEpe, que utilizava o mtodo manual.Os Braidwood se recusaram a ensinar a Gallaudet sua metodologia em poucos meses,

    assim, restou-lhe a opo pelo mtodo manual. Em 1816, acompanhado de Laurent Clerc, um

    dos melhores alunos do Abade LEpe, Gallaudet fundou a primeira escola permanente para

    surdos nos EUA, que utilizava como forma de comunicao em salas de aula e conversas

    extra-classe um tipo de francs sinalizado, ou seja, a unio do lxico da lngua de sinais

    francesa com a estrutura da lngua francesa, adaptado para o ingls. Note-se que esse

    hibridismo na criao dos Sinais Metdicos obriga a interrogar em que medida pode-sechamar de natural a lngua de sinais. Mais que isso, possvel observar como a lngua

    francesa se entrelaa com os sinais. A Lngua de Sinais Francesa, assim, foi aos poucos sendo

    modificada pelos alunos, iniciando a formao da Lngua de Sinais Americana. Alm dos

    mtodos franceses que foram aos poucos sendo abandonados, utilizavam-se, na sala de aula,

    alm da ASL, ainda o ingls sinalizado, o ingls escrito e o alfabeto digital. Surgiu, ento,

    uma metodologia que mais tarde seria utilizada na filosofia da Comunicao Total (Ramos e

    Goldfeld, 1992).

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    23/103

    22

    A partir de 1821, todas as escolas pblicas americanas passaram a mover-se em

    direo a ASL (American Sign Language), que sofreu forte influncia do francs sinalizado.

    Em 1850, a ASL, e no o ingls sinalizado passa a ser utilizada nas escolas, assim como

    ocorria na maior parte dos pases europeus. Nesse perodo, houve uma elevao no grau de

    escolarizao dos surdos, que podiam aprender com facilidade as disciplinas ministradas em

    lngua de sinais.

    Moura (2000) aponta para o fato de que os alunos surdos aprendiam, alm da Lngua

    de Sinais Americana, o ingls escrito e o alfabeto digital. Em 1864 foi fundada a primeira

    universidade nacional para surdos, Universidade Gallaudet (atualmente, alm desta

    universidade, existe apenas a Tsukuba College of Technology, no Japo).

    Entretanto, a lngua de sinais americana comeou a sofrer presso devido a avanostecnolgicos que facilitavam a aprendizagem da fala pelo surdo, e a partir de 1860 o mtodo

    oral comea a ganhar fora. Diversos profissionais comearam a investir no aprendizado da

    lngua oral pelos surdos, e neste entusiasmo teve destaque a idia, defendida por alguns

    profissionais at hoje, de que a lngua de sinais seria prejudicial para a aprendizagem da

    lngua oral. Surgiram ento opositores lngua de sinais, que ganharam fora a partir da morte

    de Laurent Clerc, em 1869.

    O mais importante defensor do oralismo foi Alexander Graham Bell, o clebreinventor do telefone, que exerceu grande influncia no resultado da votao no Congresso

    Internacional de Educadores de Surdos, realizado em Milo, no ano de 1880. Naquele

    Congresso, foi colocado em votao qual mtodo deveria ser utilizado na educao dos

    surdos. O oralismo venceu e o uso da lngua de sinais foi oficialmente proibido. importante

    ressaltar que aos professores surdos foi negado o direito de votar.

    Moura (2000) explica que para entendermos o desenvolvimento do oralismo na Itlia,

    pas que, juntamente com a Frana, teve papel decisivo no Congresso, preciso lembrar queos italianos estavam divididos em muitos estados com domnios, histrias e tradies

    diferentes. Trata-se de um perodo anterior unificao da Itlia. Existiam muitas lnguas e

    dialetos no pas e j havia uma forte influncia do mtodo oralista alemo. Na Itlia, tudo o

    que vinha da Alemanha era extremamente valorizado, e no perodo da unificao a

    necessidade de uma nica lngua no pas, entendida como determinante da unidade nacional e

    lingstica, levou ao entendimento de que a oralizao seria o mtodo apropriado para a

    educao do surdo, abolindo tambm a lngua de sinais.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    24/103

    23

    Nessa ocasio, a educao dos surdos deu uma grande reviravolta em sentido oposto

    direo tomada no sculo XVIII, quando a sociedade percebeu as potencialidades dos surdos

    atravs da utilizao da lngua de sinais. Acreditava-se, no perodo da unificao, que o surdo

    poderia se desenvolver como os ouvintes aprendendo a lngua oral. O aprendizado dessa

    lngua passou a ser o grande objetivo dos educadores de surdos. Cabe destacar que a

    hegemonia do oralismo est ligada a diversos fatores: nacionalismo, elitismo e, tambm,

    fora do clero.4

    No incio do sculo XX, a maior parte das escolas em todo o mundo deixa de utilizar a

    lngua de sinais. A oralizao passou a ser o objetivo principal da educao das crianas

    surdas, e, para que estas pudessem dominar a lngua oral, passavam a maior parte de seu

    tempo recebendo treinamento oral e se dedicando a este aprendizado. O ensino das disciplinasescolares como histria, geografia e matemtica ficou em segundo plano. Com isso, houve

    uma queda no nvel de escolarizao dos surdos.

    Moura (2000) comenta que os primeiros relatos de insucesso do oralismo, no incio do

    sculo XX, comearam a surgir. Relata que um inspetor geral de Milo descreveu que o nvel

    de fala e de aprendizado de leitura e escrita dos surdos, aps sete a oito anos de escolaridade,

    era muito ruim. Eles estavam apenas preparados para ser sapateiros ou costureiros. Na Frana

    a situao era a mesma.Binet e Simon, dois psiclogos, em 1990, atravs de pesquisas, concluram que a

    educao oralista no permitia que os surdos conseguissem trabalho, trocassem idias com

    estranhos (que no estivessem acostumados com a sua fala), e nem mesmo que pudessem

    estabelecer uma conversa real com aqueles pertencentes s suas relaes pessoais. Muitas

    escolas, para garantir o sucesso no processo de escolarizao, rejeitavam surdos profundos,

    surdos filhos de pais surdos, aceitando somente aqueles que eles consideravam vir a ter a

    possibilidade de falar.O Oralismo foi um mtodo hegemnico em todo o mundo, mas cabe ressaltar que os

    surdos continuavam a usar sinais entre si. Na dcada de sessenta, vrios estudos comearam a

    discutir a importncia dos sinais. Foi nesta mesma dcada, tambm, que Willian Stokoe

    publicou seu trabalho Sign Language Structure,Outline of the Visual Communication System

    of the American Deaf, demonstrando que a ASL uma lngua com todas as caractersticas

    das lnguas orais.

    4Sobre este ponto ver: Skliar (1996), Moura (2000), entre outros

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    25/103

    24

    A partir desta publicao, surgiram diversas pesquisas sobre a lngua de sinais e seus

    desdobramentos na educao e na vida do surdo. Essa publicao e as demais pesquisas,

    aliadas a uma grande insatisfao por parte dos educadores e dos surdos com o mtodo oral,

    deram origem utilizao da lngua de sinais e de outros cdigos manuais na educao da

    criana surda. Naquela dcada, Dorothy Schifflet, professora e me de surdo, comeou a

    utilizar um mtodo que combinava a lngua de sinais com a lngua oral, leitura labial, treino

    auditivo e alfabeto manual. Ela denominou seu trabalho de Total Aproach, que pode ser

    traduzido por Abordagem Total.

    Em 1968, Roy Holcom adotou o Total Approach, rebatizando-o de Total

    Communication, dando origem filosofia Comunicao Total, que utiliza todas as formas de

    comunicao possveis na educao dos surdos, por acreditar que a comunicao e no alngua deve ser privilegiada. A Universidade Gallaudet, que j utilizava o ingls sinalizado,

    adotou a Comunicao Total e se tornou o maior centro de pesquisa dessa filosofia.

    A partir da dcada de setenta, em alguns pases, como Sucia e Inglaterra, percebeu-se

    que a lngua de sinais deveria ser utilizada independentemente da lngua oral. Ou seja, em

    algumas situaes, o surdo deve utilizar a lngua de sinais e, em outras, a lngua oral e no as

    duas concomitantemente, como estava sendo feito. Surge ento a filosofia Bilnge, que a

    partir da dcada de oitenta, e mais efetivamente na dcada de noventa, ganha cada vez maisadeptos em todos os pases do mundo.

    No que a controvrsia tenha sido encerrada. H, como se v, concepes claras

    acerca da educao do surdo, porm h um movimento que passa por questes polticas

    eugnicas, como se v no desejo nacionalista das autoridades de implantar uma Lngua

    Nacional como, por exemplo, durante o processo de unificao da Itlia e da Alemanha. H,

    tambm, o efeito dos avanos tecnolgicos e a virtual possibilidade oferecida de suprir o

    dficit sensorial e fazer do surdo um ouvinte, apagando a diferena e fazendo do surdouma pessoa normal. H, finalmente, uma forte questo ideolgica que perpassa as questes

    anteriores e ganha fora, quando os defensores das Lnguas de Sinais tomam os surdos como

    uma minoria que deve ter seus direitos garantidos e respeitados, entre eles a possibilidade de

    usar o que consideram a lngua natural dessa comunidade. A questo bastante complexa e

    ultrapassa a problemtica das prticas pedaggicas. Como disse inicialmente, tomei como

    ponto de partida a Histria Oficial em busca de um entendimento relativo imbricao entre

    concepo de surdez e natureza das prticas pedaggicas institudas. O modo como a surdez

    foi vista atravs da histria foi determinante das prticas pedaggicas estabelecidas.

    Importante ressaltar a mudana no enfoque da Educao a partir do momento em que a surdez

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    26/103

    25

    passa a ser vista como doena. O surdo, a partir da, passa a ser visto como deficiente e perde

    posio. Os professores-surdos deixam de poder lecionar, seu voto nos congressos sobre

    educao (de surdos) perde valor. Apaga-se a subjetividade, simplificam-se questes

    fundamentais sobre a surdez e suas conseqncias, ganha fora a hiptese de torn-lo

    normal, sem considerar que para isso seria necessrio apagar as marcas de tudo que o

    inscreveu como sujeito.

    O que fica evidente nesta longa trajetria que tanto nas abordagens que privilegiam o

    papel da oralidade, quanto nas que defendem o uso da lngua de sinais para o surdo:

    esto apoiadas nas seguintes concepes de lngua, linguagem einterao: a lngua concebida como cdigo que pode ser ensinado.

    Sendo assim, a linguagem entendida como instrumento de

    comunicao, emergindo da a possibilidade de acesso ao lingstico,

    isto , a entrada no lingstico se d, assim, via percepo. Em termos

    mais especficos, como a percepo concebida como um conjunto

    de impresses sensveis que coloca o organismo frente a frente com

    as coisas do mundo, seu papel ganha destaque por constituir-se emfonte compensatria de informao para este organismo que tem uma

    falta (a surdez). Deste modo, o surdo vai aprender a linguagem pelo

    uso de um canal perceptual devidamente treinado. A noo de

    linguagem , ento, a de um objeto estvel, que substancializado e

    ao qual se atribui um funcionamento definido a priori, partindo-se de

    categorias de lngua constituda, com a tendncia de buscar fora da

    linguagem, especialmente na Psicologia e na Biologia, as explicaespara os fenmenos lingsticos [...] percebe-se [assim] a ciso entre

    sujeito surdo e linguagem, colocando-o num plano externo a este

    objeto do qual ele deve se apropriar por meio de tcnicas de

    ensino/aprendizagem (MIDENA, 2004, p. 114-115).

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    27/103

    26

    1. Educao dos surdos no Brasil

    Em relao ao Brasil, h informaes de que em 1855 chegou aqui o professor surdofrancs Hernest Huet, trazido pelo imperador D.Pedro II, para iniciar um trabalho de educao

    de duas crianas surdas, com bolsas de estudo pagas pelo governo, trata-se da primeira

    informao oficial sobre o tema. Em 26 de setembro de 1857 foi fundado o Instituto Nacional

    de Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educao dos Surdos (INES), que utilizava

    lngua de sinais.

    Em 1911, no Brasil, o INES5, seguindo a tendncia mundial, estabeleceu o Oralismo

    puro em todas as disciplinas. Mesmo assim, a lngua de sinais sobreviveu em sala de aula at1957, quando a diretora Ana Rmola de Faria Doria, com assessoria da professora Alpia

    Couto, proibiu a lngua de sinais oficialmente em sala de aula. Mesmo com todas as

    proibies, a lngua de sinais sempre foi utilizada pelos alunos nos ptios e corredores da

    escola (Reis, 1992).

    No fim da dcada de setenta, chegou ao Brasil a Comunicao Total, aps visita de

    Ivete Vasconcelos, educadora de surdos, Universidade Gallaudet. Na dcada seguinte,

    comeam no Brasil as prticas ligadas ao Bilingismo, a partir das pesquisas da professoralingista Lucinda Ferreira Brito sobre a Lngua Brasileira de Sinais. No incio de suas

    pesquisas, seguindo o padro internacional de abreviao das lnguas de sinais, a professora

    abreviou esta lngua de LSCB (Lngua de Sinais dos Centros Urbanos Brasileiros) para

    diferenci-la da LSKB (Lngua de Sinais Kaapor Brasileira), utilizada pelos ndios Urubu-

    Kaapor, no Estado de Maranho. A partir de 1994, Brito passa a utilizar a abreviao

    LIBRAS (Lngua Brasileira de Sinais), criada pela prpria comunidade surda para designar a

    LSCB. Importante destacar o termo criada, pois ele obriga a interrogar sobre a idia de uma

    lngua natural, inata, a ser atualizada, que, como veremos adiante, ser defendida por

    diferentes pesquisadores.

    Atualmente, essas trs abordagens (Oralismo, Comunicao Total, Bilingismo)

    convivem no Brasil, e pode-se dizer que todas tm relevncia e representatividade no trabalho

    com surdos. As diferentes abordagens so motivos de polmica e muitos conflitos entre os

    profissionais que atuam no campo. Esse estado de coisas parece ter sido uma constante no

    decorrer da histria. Essas divergncias sempre ocorreram, e mesmo que em dois momentos,

    5INES - Instituto Nacional de Educao dos Surdos, situado na cidade do Rio de Janeiro. a primeira escola desurdos no Brasil, fundado em 1857.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    28/103

    27

    nos anos de 1750 e 1880, as diferentes metodologias tenham sido colocadas em discusso,

    definindo oficialmente uma abordagem considerada a melhor e que, conseqentemente,

    deveria ser utilizada em todas as Instituies, certamente as diferentes concepes

    conviveram ao longo da histria, ainda que no se tenha registro na histria oficial.

    Atualmente, em alguns pases do mundo, como a Venezuela, h uma filosofia que

    deve ser adotada oficial e obrigatoriamente em todas as escolas pblicas para surdos (no caso,

    a filosofia Bilnge). O Brasil, assim como a maioria dos pases, convive com a diversidade

    de perspectivas sobre os surdos e sua educao, pois se supe que a verdade nica no exista

    e, portanto, todas as abordagens seriamente estudadas devem ter espao.

    Os educadores, ao longo dos tempos, criaram diferentes metodologias para ensinar os

    surdos. Alguns se baseavam apenas na lngua oral, ou seja, a lngua auditivo-oral utilizada emseu pas, como o francs, o ingls etc., outros pesquisaram e defenderam a lngua de sinais,

    que uma lngua espao-visual criada atravs de geraes pelas comunidades de surdos.

    Outros, ainda, criaram cdigos visuais, que no se configuram como uma lngua, para facilitar

    a comunicao com seus alunos surdos. At hoje existem diversas correntes pautadas em

    diferentes pressupostos em relao educao de surdos.

    Considero importante assinalar, entretanto, que a questo da escrita envolve muito

    mais do que uma reflexo sobre as metodologias utilizadas e isso vale para surdos e ouvintes.A questo do surdo ganha, sem dvida, um contorno singular, que merece uma reflexo

    particular sobre quem o surdo, mas especialmente, sobre o que a escrita e como possvel

    penetrar nesse universo.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    29/103

    28

    CAPTULO II

    ABORDAGENS EDUCACIONAIS PARA SURDOS

    Segundo Quadros (1997), a educao de surdos no Brasil pode ser dividida em duas

    fases claramente delimitadas e uma terceira fase, a atual, que segundo ela pode ser

    caracterizada como um processo de transio. Goldfeld (2001) tambm apresenta uma sntese

    dessas abordagens. No pretendo advogar por uma das correntes, mas considero importante

    esclarecer que, em minha prtica, pude observar que os alunos surdos que transitam na lnguade sinais tm um desempenho escolar melhor do que aqueles que chegam escola sem

    nenhuma possibilidade. Cabe esclarecer, tambm, que, embora saiba que h surdos que foram

    bem sucedidos na proposta oralista , jamais tive contato com eles, razo pela qual menos do

    que defender uma das duas abordagens, pretendo, acima de tudo, apontar as lacunas de cada

    proposta e acenar para a necessidade de uma reflexo lingstica que coloque em cena a

    solidariedade entre estruturao da linguagem e estruturao subjetiva. Agora, vejamos o que

    dizem as autoras sobre a educao de surdos no Brasil.

    2. Oralismo,Comunicao Total e Bilingsmo

    A primeira fase, diz Quadros (idem ibidem), corresponde hegemonia da proposta de

    educao oralista, como a de Couto (1988), que visa recuperao das pessoas surdas,

    denominadas, nesta concepo, deficientes auditivos. Estes so vistos como uma populao

    portadora de dficit, que poderia ser suprido atravs de aparelhos de amplificao sonora

    associado a um treino perceptual.

    [esses trabalhos] baseiam-se no uso de amplificao sonora e na

    nfase no uso da audio residual como forma de aumentar as

    possibilidades da criana surda de receber a maior quantidade de

    informaes acsticas possveis dos sons da lngua. Quanto melhor

    a criana puder se utilizar das informaes acsticas, maiores

    chances para o desenvolvimento de linguagem oral ela ter.Por

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    30/103

    29

    trs dessas propostas, est a idia de oferecer criana com

    deficincia auditiva as melhores oportunidades para desenvolver a

    linguagem oral (BALIEIRO & FICKER, 2005, p. 366 (nfase

    minha), apud. CERQUEIRA, 2006, p. 3).

    O Oralismo, ou abordagem oralista, segundo Goldfeld (2001), objetiva integrar a

    criana surda comunidade denominada ouvinte. Isso, segundo a autora, proporciona

    criana a possibilidade de desenvolvimento da lngua oral (no caso do Brasil, o portugus).

    Muitos profissionais entendem que esta abordagem a mais adequada para o ensino do surdo.

    A lngua oral vista como a nica possibilidade de comunicao da pessoa surda. Assim,comunicar-se bem sinnimo de oralizao.

    No que diz respeito concepo de linguagem que sustenta tal perspectiva

    encontramos autores, como se v no trabalho de Lenzi (1995), que buscam subsdios tericos

    na proposta inatista dos estudos lingsticos sobre a aquisio linguagem. Afirma Lenzi:

    (...) os surdos, como seres humanos que so, possuem, tambm, essa

    capacidade, o que explica sua possibilidade de adquirir a lnguafalada em seu pas. Desenvolvendo a funo auditiva e dispondo

    dessa capacidade inata, o surdo precisa receber a linguagem de

    maneira natural, como acontece com as crianas que ouvem (LENZI,

    1995, p. 44, apud QUADROS, op. cit., p.22).

    Quadros (1997) levanta a seguinte questo: possvel o surdo adquirir de forma

    natural a lngua falada, como acontece com a criana que ouve? (QUADROS, op. cit., p.22).Ela refere que os profissionais que trabalham com surdos consideram que o processo de

    aquisio da lngua falada pelo surdo no ocorre da mesma forma com a criana ouvinte,

    trata-se de um processo que envolve/exige um trabalho sistemtico e formal, a linguagem,

    portanto, no se desenvolve naturalmente na relao com o outro, mas fruto de treinamento.

    Quadros, que defende a proposta de educao bilnge para surdos, afirma que:

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    31/103

    30

    O oralismo [...] uma proposta educacional que contraria tais

    suposies [inatistas]: no permite que a lngua de sinais seja usada

    nem na sala de aula, nem no ambiente familiar, mesmo sendo esse

    formado por pessoas surdas usurias da lngua de sinais (QUADROS,

    1997, p.22).

    Ela assinala que o prprio Chomsky afirma que as lnguas de sinais podem ser

    entendidas como possvel expresso da capacidade natural para a linguagem.

    o termo articulatrio to restrito que sugere que a faculdade da

    linguagem apresenta uma modalidade especfica, com uma relaoespecial aos rgos vocais. O trabalho nos ltimos anos em lngua

    de sinais evidencia que essa concepo muito restrita. Eu

    continuarei a usar o termo, mas sem quaisquer implicaes sobre a

    especialidade do sistema de output, mantendo o caso da lnguas

    faladas (CHOMSKY, 1995, p.434, nota 4, apud QUADROS, &

    KARNOOPP, 2004, nfase minha).

    Na realidade, Chomsky, na citao destacada por Quadros, coloca em discusso a

    polmica e obscura problemtica das interfaces, especialmente, no que tange relao entre a

    articulao e a percepo, e a controvrsia acerca de ambas envolverem ou no a mesma

    interface. Ele destaca a restrio da face articulatria que reduz a faculdade da linguagem a

    uma modalidade especfica, relacionada especialmente aos rgos vocais. Os trabalhos em

    lngua de sinais entram como evidncia da restrio do termo articulatrio, porm Chomsky

    no abandona o termo, ele apenas adverte que far uso do mesmo sem implicar aespecificidade do output. Cabe assinalar que Chomsky parece, de fato, reconhecer as

    investigaes sobre as lnguas de sinais, mas, acima de tudo, pe em relevo os limites da face

    articulatria, que reduz a faculdade da linguagem a uma modalidade, sem, contudo, entrar na

    polmica instaurada no campo dos estudos sobre a surdez.

    preciso destacar que, embora de fato, grande parte das propostas oralistas possa ser

    caracterizada por situaes que envolvem o aprendizado da linguagem, no isso que se l

    na citao de Lenzi. Na realidade, o que esta autora diz, ao contrrio do que afirma Quadros,

    no parece ferir os princpios de uma proposta inatista, medida que, para Lenzi, apenas a

    suplncia do dficit auditivo permitiria ao surdo adquirir a lngua de seu pas como os demais

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    32/103

    31

    falantes nativos. Note-se que ela no fala em ensinar a lngua, mas em proporcionar

    condies para aquisio natural da linguagem.

    No pretendo entrar nos detalhes desta polmica, mas assinalar que no deixa de ser

    curioso o fato de que uma mesma concepo de linguagem possa sustentar propostas

    antagnicas. Isso parece ser um indicativo de que talvez o problema seja de outra natureza.

    Voltarei a esse ponto.

    Segundo Goldfeld (2001), o Oralismo entende a surdez como um dficit e s poder

    ser compensado pelo estmulo auditivo. Este estmulo, afirma autora:

    ... possibilitaria a aprendizagem da lngua portuguesa e levaria a

    criana surda a integrar-se na comunidade ouvinte e desenvolver umapersonalidade como a de um ouvinte. Ou seja, o objetivo do Oralismo

    fazer uma reabilitao da criana surda em direo normalidade,

    no-surdez (GOLDFELD, op. cit., p.34).

    Como se v, de fato, apenas o treinamento auditivo insuficiente para que o surdo

    venha a falar. A abordagem oralista, com o objetivo de atingir seus alvos, utiliza abordagens

    metodolgicas diversas, tais como: verbo-tonal, audiofonatria, aural, acupdico etc.. Aconvergncia destas perspectivas est na crena de que a lngua oral a nica forma

    apropriada de comunicao do surdo e, assim, clnicos e educadores se dedicam ao ensino

    oral das crianas surdas, no aceitando quaisquer formas de gestos, tampouco de lngua de

    sinais.

    O trabalho de oralizao, comenta Goldfeld (2001), realizado no intuito de criar

    possibilidades da criana dominar, aos poucos, as regras gramaticais e alcanar um domnio

    desejvel da lngua portuguesa. A autora cita exemplos da metodologia oralistaaudiofonatria, em que o professor apresentar vrias aes para a criana e mostra suas

    diferenas, tais como: que andar diferente de pular, correr etc. Posteriormente, com a

    utilizao do organograma da linguagem, apresentar frases assim: Paulo anda, Paulo

    pula... (GOLDFELD, op. cit., p. 36). Visando ao entendimento melhor da criana diante das

    regras gramaticais, o professor usar tambm frases no passado, como: Paulo andou, Paulo

    pulou etc. Inicialmente, procura-se apresentar frases consideradas gramaticalmente simples e

    gradativamente aumenta o grau de dificuldade, at atingir frases consideradas com um nvel

    mais profundo de complexidade. Note-se que h a um distanciamento da proposta inatista.

    Ao que parece, o que est em jogo no apenas um treinamento perceptual, que possibilite o

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    33/103

    32

    acesso fala, mas um trabalho de linguagem em que se visa controlar as estruturas a serem

    apresentadas criana, da mais simples para a mais complexa. Note-se que no h uma

    reflexo sobre o que linguagem, sobre como se d a passagem de infans a falante e nem

    mesmo se seria possvel pensar a linguagem como um objeto de aprendizagem. Interessante

    que se os autores oralistas se aproximaram, de fato, da proposta chomskyana, deixaram de ler

    a crtica deste autor ao trabalho de Skinner e apagaram, tambm, uma questo fundamental

    formulada no interior da proposta gerativista, a saber: a questo do problema lgico da

    aquisio, que diz respeito a inacessibilidade da lngua sem um conhecimento prvio... (De

    LEMOS, 1999, p. 43), afinal as leis de composio da linguagem no podem ver. Voltarei a

    isso.

    A criana surda, na abordagem oralista, submete-se a um processo de reabilitaoiniciado com estmulos auditivos precoces, ou seja, busca-se o aproveitamento dos resduos

    auditivos que a maioria das pessoas surdas possuem, possibilitando a identificao destes sons

    que porventura ouvem. Goldfeld (op.cit) explica que atravs da audio, de vibraes

    corporais e tambm da leitura orofacial, a criana ter a possibilidade de entendimento da fala

    dos outros. Este processo, diz a autora, que deve ser iniciado ainda no primeiro ano de vida,

    deve durar at em torno de 8 a 12 anos, sempre dependendo das caractersticas individuais da

    criana, tais como: tipo de perda auditiva, participao da famlia no processo de reabilitao,entre outros.

    No parece arriscado afirmar que muitos dos pesquisadores que defendem as

    abordagens oralistas, embora justifiquem seu trabalho a partir das idias de Chomsky, no

    parecem fiis ao trabalho desse autor. A grande maioria dos pesquisadores, na realidade, fez

    uma traduo emprica do trabalho deste lingista. Couto (1991), por exemplo, afirma que

    no possvel ensinar a linguagem, mas apenas dar condies para que esta se desenvolva

    espontaneamente na mente, a seu prprio modo (COUTO, op. cit., p. 15). Porm, a autoraprossegue e afirma tambm que, atravs da audio, as crianas ouvintes imitam seus

    interlocutores e assim descobrem as regras gramaticais da lngua, que vo permitir-lhes

    chegar s transformaes e organizar seus pensamentos para express-los. Interessante

    assinalar que h uma incompatibilidade absoluta entre a idia de um treinamento perceptual

    como possibilidade de descoberta das regras e a proposta inatista, que no sequer

    mencionada. Lembre-se que Chomsky refuta a aprendizagem pela via indutiva. Note-se que

    h nesta afirmao de Couto um grande nmero de contradies: imitao traz induo, que

    no se coaduna com a proposta chomskyana, para quem as regras lingsticas sero

    atualizadas e no descobertas. Finalmente, Chomsky defende a ordem prpria da lngua, que

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    34/103

    33

    no se articula de forma natural e simplista ao pensamento, como se l no trabalho de Couto.

    V-se aqui a problemtica aproximao que a pesquisadora faz Lingstica (sobre isso ver

    LIER-DeVITTO, 1995, entre outros).

    O trabalho de Nogueira (1994), apresentado por Goldfeld (op.cit), tambm exemplar

    do uso que se faz do modelo inatista, especialmente quando se coloca em discusso a

    importncia da inferncia de regras gramaticais no aprendizado da lngua:

    Baseada na Gramtica Gerativa Transformacional, a induo de

    regras significa que atravs da exposio fala, a criana capaz de

    induzir as regras de sua prpria lngua, espontaneamente,

    compreender e construir sentenas novas com sentidos lgicos(NOGUEIRA,1994, p. 27, apud GOLDFELD, op. cit., p. 37).

    Segundo Goldfeld (2001), para a abordagem oralista, o surdo que consegue dominar as

    regras da lngua portuguesa e, tambm, falar (oralizar) considerado bem-sucedido. O

    Oralismo postula que, com o domnio da lngua oral, o surdo esteja apto para a integrao

    comunidade ouvinte. Porm, no Brasil, afirma a autora, somente uma pequena parte dos

    surdos consegue dominar razoavelmente o portugus, e muito difcil encontrar um surdocongnito, com um domnio da lngua portuguesa comparvel a um ouvinte.

    Goldfeld assinala que as crianas surdas, devido prpria precariedade do

    atendimento que recebem, geralmente no tm acesso a uma educao especializada, seja em

    escolas pblicas e at particulares, e podem estar h anos freqentando estas escolas e tenham

    muita dificuldade de adquirir a modalidade oral ou mesmo a modalidade escrita da lngua

    portuguesa. Cabe interrogar se o problema seria da filosofia oralista ou da falta de recursos

    da escola.Cabe destacar alguns pontos fundamentais das propostas oralistas:

    1- A meta desta abordagem suprimir o dficit e permitir que o surdo tenha

    acesso fala.

    2- O treinamento auditivo parece ser condio necessria, mas no suficiente,

    uma vez que est previsto um trabalho especfico de linguagem.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    35/103

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    36/103

    35

    O oralismo e a supresso do Sinal resultaram numa deteriorizao

    dramtica das conquistas educacionais das crianas surdas e no grau

    de instruo do surdo em geral.

    Muitos dos surdos hoje em dia so iletrados funcionais. Um estudo

    realizado pelo Colgio Gallaudet em 1972 revelou que o nvel mdio

    de leitura dos graduados surdos de dezoito anos em escolas

    secundrias nos Estados Unidos era equivalente apenas quarta srie;

    outro estudo, efetuado pelo psiclogo britnico R. Conrad, indica

    uma situao similar na Inglaterra, com os estudantes surdos, por

    ocasio da graduao, lendo no nvel de crianas de nove anos(...)

    (SACKS, 1990, p.45).

    No Brasil, prossegue Quadros (1997), a realidade no diferente. Apesar de no haver

    um levantamento exaustivo sobre o desempenho escolar de pessoas surdas, comum que

    alunos surdos, apesar de freqentarem a escola durante muitos anos e no ultrapassarem as

    sries iniciais, eles no apresentam uma produo escrita compatvel com a srie em que se

    encontram. De acordo com a FENEIS6(1995):

    Atravs de pesquisa realizada por profissionais da PUC do Paran em

    convnio com o CENESP (Centro Nacional de Educao Especial)

    publicada em 1986 em Curitiba, constatou-se que o surdo apresenta

    muitas dificuldades em relao aos pr-requisitos quanto

    escolaridade, e 74% no chega a concluir o 1 grau. Segundo a

    FENEIS, o Brasil tem aproximadamente 5% da populao surda total

    estudando em universidades e a maioria incapaz de lidar com oportugus escrito (FENEIS, 1995, p.07).

    Quadros (1997) destaca ainda outros limites da proposta oralista, relativas integrao

    social precria e desconsiderao relativa cultura e sociedade surda. Pode-se citar como

    exemplo dessa constatao o caso de surdos adultos que, apesar de terem passado anos e anos

    6Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos uma entidade no governamental filiada WorldFederation of the Deaf. Ela possui sua matriz no Rio de Janeiro e filiais espalhadas por diversos Estadosbrasileiros, a saber Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul, So Paulo, Tefilo Otoni e Distrito Federal.Acesso a ela pelo site www.feneis.com.br.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    37/103

    36

    treinando a fala, com o esforo entusiasmado dos professores, perceberam que tudo que

    haviam aprendido de nada havia contribudo para sua integrao social.

    A autora cita que cerca de 90% dos surdos contratam matrimnio com outros surdos e

    que isso resultado da necessidade de comunicao compreensiva. Normalmente, as razes

    levantadas pelos casais surdos o fato de ambos pertencerem mesma comunidade, alm de

    usarem uma mesma lngua. A proposta oralista desconsidera essas questes relacionadas

    cultura e sociedade surda.

    Tambm Cruz (1992) e Ges (1994, 1996) entendem que o oralismo fracassa em

    funo da exigncia no uso exclusivo da modalidade qual o surdo no pode ter acesso

    direto; Midena (2004) assinala que ao interditar formas de comunicao gestual-visual como

    um meio de integr-lo, reduz as possibilidades de trocas comunicativas e sociais entre surdose ouvintes, acentuando a desigualdade entre ambos em relao s oportunidades de

    desenvolvimento, dificultando, assim, os ganhos lingsticos e cognitivos. (MIDENA,

    op.cit., p. 67).

    A idia de que os Surdos so uma minoria lingstica, constituindo um grupo

    com cultura prpria e diferente da cultura dos ouvintes, defendida tambm por, Moura;

    Lodi; Harrison. Elas afirmam que:

    o movimento de reconhecimento da cultura, comunidade e identidade

    do surdo, alm de afirmar a sua autenticidade por intermdio de

    trabalhos cientficos, movimentos de protesto e culturais, conseguiu

    mobilizar alguns responsveis por sua educao para que esta fosse

    reformulada. A nova proposta de trabalho recebeu o nome de

    bilingismo (MOURA; LODI; HARRISON, 97, p.353).

    Uma das bandeiras da abordagem bilnge aceitar o surdo como diferente, no

    deficiente, com uma lngua, uma cultura e pertencente a uma comunidade prpria [...]

    (MOURA; LODI; HARRISON, op. cit., p.347).

    O reconhecimento de que h um limite orgnico que no pode ser ultrapassado

    importante, pois trata-se de uma inscrio no corpo e que afeta de modo indelvel a relao

    deste sujeito com a linguagem. Porm, acompanho a reflexo de Cerqueira (2006), quando ela

    aponta o quanto complexo relacionar a patologia de um organismo, a uma lngua, a uma

    cultura (CERQUEIRA, 2006, p.4 ).

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    38/103

    37

    Ela acompanha as idias de Saussure, que considera um erro ver na lngua um

    atributo, no mais da nao, mas da raa, ao mesmo ttulo que a cor da pele ou a forma da

    cabea. SAUSSURE (1916, p.221), ao que Cerqueira acrescenta o grau de audio.

    Pensar em uma lngua como um atributo, diz ela, como caracterstica de quem tem uma

    patologia orgnica parece complicado. Atribuir a uma raa, cor da pele, a traos biolgicos

    uma cultura, uma lngua, traz complicaes poltico - ideolgicas.

    Saussure (1916) afirma que: Embora a lngua no fornea muitas informaes

    precisas e autnticas acerca dos costumes e instituies do povo que a usa, servir ao menos

    para caracterizar o tipo mental do grupo social que fala? (SAUSSURE, op. cit., p.261).

    Cerqueira considera esse um ponto fundamental para que se estabelea um dilogo com o

    bilingismo. comum encontrar na literatura relativa a essa corrente de pensamento que alngua de sinais reflete uma forma de pensar, reflete a identidade do surdo(CERQUIRA,

    2006). Ela destaca que para Saussure opinio geralmente aceita a de que uma lngua reflete

    o carter psicolgico de uma nao; uma objeo bastante grave se ope, entretanto, a tal

    modo de ver; um procedimento lingstico no est necessariamente determinado por causas

    psquicas (SAUSSURE, 1916, p.266, apud CERQUEIRA, idem ibidem).

    Como coloca Saussure, a lngua no est sujeita diretamente ao esprito dos que

    falam (SAUSSURE, op. cit., p. 268), ela no reflete uma forma de pensar, e nada revela arespeito do falante. Ou como afirma Cerqueira, um procedimento lingstico nada revela

    sobre a mentalidade do falante. Neste sentido, acompanho a pesquisadora, pois, de fato,

    no parece que o Surdo decida pela lngua de sinais, porque esta reflete a sua forma de

    pensar. A lngua nada nos revela em relao raa, filiao, relaes sociais, costumes,

    instituies, etc.(CERQUEIRA, idem, ibidem). As questes trazidas por Cerqueira so

    fundamentais para desnaturalizar uma srie de afirmaes sobre a lngua de sinais, que no

    enfrentam a complexidade envolvida na discusso sobre a natureza das lnguas particulares eda relao que elas entretm com a Lngua, conforme definida por Saussure.

    Quadros (op.cit.) assinala que, frente s dificuldades enfrentadas pela proposta

    oralista, surgiu uma alternativa, a segunda entre as trs inicialmente destacadas pela autora,

    que permitia o uso da lngua de sinais com o objetivo de desenvolver a linguagem na criana

    surda. Assim, na segunda proposta, os sinais passam a serem utilizados pelos profissionais

    como um recurso que visava ao desenvolvimento da lngua oral. Os sinais eram usados dentro

    de uma estrutura da lngua portuguesa. Esse sistema artificial, como diz a autora, passou a ser

    chamado de portugus sinalizado. O ensino enfatiza o bimodalismo, que se caracteriza pelo

    uso simultneo de fala e sinais.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    39/103

    38

    No Brasil, Ciccone (1990), que adotou a proposta conhecida como a filosofia da

    Comunicao Total(filosofia educacional que se baseia no respeito pela diferena), enfatiza

    que lnguas de sinais e portugus so idiomas autnticos, e que equivalem em nveis de

    qualidade e importncia (...) (CICCONE, 1990, p.70, apud QUADROS,1997, p 24). Os

    aspectos destacados por Ciccone so indiscutveis e no se afastam da filosofia da proposta

    bilnge, que ser apresentada adiante, mas o uso dessa proposta na educao de surdos

    bastante problemtico. Voltarei a isso no final desta sesso.

    Goldfeld (2001) afirma que a Comunicao Total uma abordagem que traz como

    principal preocupao os processos comunicativos entre surdos e entre surdos e ouvintes.

    Comenta que esta abordagem, alm de focalizar a aprendizagem da lngua oral pela criana

    surda, entende que os aspectos cognitivos, emocionais e sociais no devem ser desprezados efavorecer to somente o aprendizado da lngua oral. Defende o uso de recursos espao-visuais

    como facilitadores da comunicao.

    O surdo visto de forma diferente pelos profissionais que apostam na abordagem da

    Comunicao Total, ou seja, ele visto como uma pessoa, e a surdez tomada como um sinal

    presente nas relaes sociais, em seu desenvolvimento cognitivo e afetivo; ele no visto

    apenas como portador de uma patologia, que deve ser eliminada, corrigida (CICCONE,

    1990).Goldfeld (2001) lembra os princpios que orientam a abordagem da Comunicao

    Total, contidos na edio de Comunicao Total do Centro Internacional de la Sordera, in

    Nogueira (1994), e diz:

    Todas as pessoas surdas so nicas e tm diferenas individuais

    iguais aos ouvintes.

    Os programas educacionais efetivos deveriam serindividualizados para satisfazer s necessidades, aos interesses e s

    habilidades do surdo.

    As habilidades para comunicar vo ser diferentes para cada

    pessoa.

    Menos de 50% dos sons da fala podem ser observados e

    entendidos quando se l os lbios.

    No h estudos que comprovem que uma criana surda no pode

    desenvolver suas habilidades orais.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    40/103

    39

    As crianas surdas inventam sinais em suas primeiras tentativas

    de comunicar-se em casa e na escola.

    A comunicao oral exclusiva no adequada para satisfazer as

    muitas necessidades das crianas surdas.

    Em um ambiente de Comunicao Total sempre existe a

    segurana do que se est dizendo. Um sistema de dupla informao

    ou interao sempre existe.

    As crianas que podem desenvolver as habilidades de

    aprendizagem e comunicao oral estaro motivadas. Aquelas que

    no tm esta habilidade desenvolvem outras formas de comunicao.

    Os estudos desde 1960 claramente indicam que a criana quecresce em um ambiente de Comunicao Total demonstra mais

    habilidade para comunicar-se e tem mais xito na escola.

    (GOLDFELD, op. cit., p.39).

    Aqueles que defendem a Comunicao Total e que, portanto, se opem ao radicalismo

    da proposta oralista, apostam que apenas o aprendizado da lngua oral no garante pleno

    desenvolvimento da criana surda, isso fica claro nos tpicos apresentados acima. Goldfeldlembra a afirmao de Ciccone (1990) ao dizer que muitas crianas surdas, expostas

    sistematicamente modalidade oral de uma lngua antes dos trs anos de idade conseguiriam

    aprender esta lngua de forma satisfatria, contudo, quanto ao desenvolvimento cognitivo,

    social e emocional j no demonstraram bom desempenho.

    Goldfeld (2001) aponta uma das grandes diferenas entre a Comunicao Total e as

    outras abordagens educacionais: acreditar que o uso de qualquer recurso lingstico, seja a

    lngua de sinais seja a linguagem oral ou cdigos manuais, facilitador para a comunicaocom as pessoas surdas. Assim, como j se l no nome, a proposta, lembra a autora, privilegia

    a comunicao e a interao e no apenas a lngua. A Comunicao Total no se preocupa

    com a aprendizagem de apenas uma lngua, ela tem como caracterstica a valorizao da

    estrutura familiar, pois entende relao famlia-criana surda, o papel da comunicao, da sua

    subjetividade.

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    41/103

    40

    No Brasil, comenta Goldfeld (2001), alm da LIBRAS (Lngua Brasileira de Sinais):

    a Comunicao Total utiliza tambm um sistema chamado de

    datilogia, conhecido tambm como alfabeto manual (representao

    manual das letras do alfabeto), o cued-speech (sinais manuais que

    representam os sons da lngua portuguesa), usa o portugus

    sinalizado (lngua artificial que utiliza o lxico da lngua de sinais

    com a estrutura sinttica do portugus e alguns sinais inventados,

    para representar estruturas gramaticais do portugus que no existem

    na lngua de sinais) e o pidgin (simplificao da gramtica de duas

    lnguas em contato, no caso, o portugus e a lngua de sinais)(GOLDFELD, op. cit., p. 40).

    O uso simultneo desses cdigos manuais (que tm como objetivo representar de

    forma espao-visual uma lngua oral) com a lngua oral uma das recomendaes da

    Comunicao Total. Uma comunicao simultnea s possvel pelo fato de estes cdigos

    manuais obedecerem estrutura gramatical da lngua oral, ao contrrio das lnguas de sinais,

    que possuem estruturas prprias. Esta forma de comunicao tambm chamada debimodalismo.

    O bimodalismo, visto atravs da perspectiva da Comunicao Total, entendido como

    possibilidade para diminuir o bloqueio de comunicao que normalmente a criana surda

    vivencia, concedendo a possibilidade aos pais de ocuparem papis de principais interlocutores

    de seus filhos. Goldfeld (2001) diz que: a Comunicao Total postula que cabe famlia

    decidir qual a forma de educao que seu filho ter. Esta deciso no cabe ao profissional que

    lida com a criana (GOLDFELD, op. cit. p. 41).Ciccone (1990), ao criticar a abordagem Bilnge, que ser apresentada a seguir,

    afirma que os profissionais no devem impor aos pais que falem com seus filhos utilizando

    apenas o portugus e a lngua de sinais separadamente. A autora compara esta postura dos

    profissionais que defendem o bilingismo com a postura radical adotada pelo Oralismo, em

    que a diferena entre surdo e ouvinte no era aceita. Assim como o Oralismo, que tem como

    objetivo transformar a criana surda em ouvinte, Ciccone entende que o Bilingismo procura

    identificar a famlia ouvinte ao surdo. Para ela, as duas perspectivas- oralista e bilnge - tm

    algo em comum: a equalizao entre a famlia ouvinte e a criana surda. A Comunicao

  • 7/24/2019 Lucimar Bizio

    42/103

    41

    Total, ao contrrio, foge da filosofia de igualdade: aceita e convive com a diferena, buscando

    facilitar a comunicao entre a criana surda e sua famlia ouvinte.

    No Brasil, aponta Goldfeld, a Comunicao Total faz presena em algumas clnicas e

    escolas e pode ser considerada mais eficaz que o Oralismo, uma vez que considera aspectos

    importantes do desenvolvimento infantil e destaca o papel fundamental dos pais ouvintes na

    educao de seus filhos surdos. Porm, aqueles que defendem o bilingismo discordam da

    perspectiva da pesquisadora. Assim, cabe introduzir a crtica contundente de Sacks ao

    bimodalismo:

    H uma compreenso de que algo deve ser feito (diante do oralismo):

    mas o qu? Tipicamente, usando os sinais e a fala permitem aossurdos se tornarem eficientes nos dois. H outra sugesto de

    compromisso, contendo uma profunda confuso: uma linguagem

    intermediria entre o Ingls e o Sinal (ou seja, o Ingls Sinalizado).

    Essa confuso vem de longa data remonta aos sinais Metdicos

    de De LEpe, que foram uma tentativa de expresso intermediria

    entre o Francs e o Sinal. Mas (...) no possvel efetuar a

    transliterao de uma lngua falada em Sinal palavra por palavra, oufrase por frase as estruturas so essencialmente diferentes. Imagina-

    se com freqncia, vagamente, que a lngua d