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LÚDICOS MISTÉRIOS DA ECONOMIA DO CARNAVAL BAIANO: TRAMA DE REDES E INOVAÇÕES ** Elizabete Loiola ** [email protected] Paulo Miguez *** [email protected] "... o Carnaval é invenção do Diabo que Deus abençoou ..." ("Deus e o Diabo", música de Caetano Veloso) Resumo: Trata-se de trabalho sobre a economia do Carnaval baiano, que procura compreender a sua trajetória como fruto de um processo contínuo de geração e difusão de inovações, assentado na superposição entre redes primárias e secundárias que origina arranjos institucionais que o potencializam. Pretende-se, assim, entender a lógica de produção e reprodução da economia do ** Este trabalho integra a linha de pesquisa "Redes Organizacionais: Cultura, Permanências e Inovações", financiada pelo CNPq, e foi selecionado para apresentação no 19º ENANPAD - Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração, realizado de 24 a 27 de setembro de 1995 em João Pessoa-PB. Foi publicado na íntegra na Revista Brasileira de Administração Contemporânea. Anais do 19º ENANPAD, vol.1, n.1, Ciência e Tecnologia, set/95, p. 335-351, e na Revista Bahia Análise & Dados. Carnaval. Salvador: SEI, Secretaria do Planejamento Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia, v.5 n.4, mar.1996, p. 45-55. A apresentação dos nomes segue a ordem alfabética, refletindo contribuição equivalente entre os autores. ** Doutora em Administração (NPGA-EA/UFBA), e professora da Escola de Administração da UFBA. *** Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA) e professor do IHAC-UFBA.

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LÚDICOS MISTÉRIOS DA ECONOMIA DO CARNAVAL BAIANO: TRAMA DE REDES E INOVAÇÕES **

Elizabete Loiola**

[email protected] Miguez***

[email protected]

"... o Carnaval é invenção do Diaboque Deus abençoou ..."

("Deus e o Diabo", música de Caetano Veloso)

Resumo:

Trata-se de trabalho sobre a economia do Carnaval baiano, que procura compreender a sua trajetória como fruto de um processo contínuo de geração e difusão de inovações, assentado na superposição entre redes primárias e secundárias que origina arranjos institucionais que o potencializam. Pretende-se, assim, entender a lógica de produção e reprodução da economia do Carnaval, a natureza especial de seus atores e arranjos institucionais, bem como o papel desempenhado pelas particularidades histórico-étnico-culturais da sociedade soteropolitana para a territorialização e a amplificação dessa economia do lúdico.

** Este trabalho integra a linha de pesquisa "Redes Organizacionais: Cultura, Permanências e Inovações", financiada pelo CNPq, e foi selecionado para apresentação no 19º ENANPAD - Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração, realizado de 24 a 27 de setembro de 1995 em João Pessoa-PB. Foi publicado na íntegra na Revista Brasileira de Administração Contemporânea. Anais do 19º ENANPAD, vol.1, n.1, Ciência e Tecnologia, set/95, p. 335-351, e na Revista Bahia Análise & Dados. Carnaval. Salvador: SEI, Secretaria do Planejamento Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia, v.5 n.4, mar.1996, p. 45-55. A apresentação dos nomes segue a ordem alfabética, refletindo contribuição equivalente entre os autores.** Doutora em Administração (NPGA-EA/UFBA), e professora da Escola de Administração da UFBA.*** Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA) e professor do IHAC-UFBA.

1. "Abra alas, minha gente"1

A multiplicidade cultural é a marca registrada da Bahia. Múltiplas fontes, múltiplos criadores, múltiplas linguagens, assim é a cultura baiana, cenário mágico onde se move o povo da Bahia na sua capacidade de preservar tradições e produzir vanguardas, de viajar entre o erudito e o popular, de reverenciar o sagrado e o profano, de fazer da criação artístico-cultural a sua vocação maior.

E não existe momento mais privilegiado de manifestação dessa multiplicidade cultural do que o Carnaval. É festa e espetáculo, é palco e platéia, é uma explosão de ritmos, sons, luzes, cores, e gente, muita gente, que brincando ou trabalhando, constrói uma mosaico cultural cuja harmonia se alimenta da diversidade e garante uma personalidade inconfundível ao Carnaval baiano.

Muita "chuva, suor e cerveja"2 transformaram o Carnaval, hoje, num poderoso vetor de desenvolvimento da cidade de Salvador, sendo de grande importância estudos que visem aumentar o nível de compreensão sobre a economia do Carnaval. Na base do desenvolvimento dessa atividade lúdico-econômica, está um processo contínuo de geração e difusão de inovações técnicas e organizacionais, que, ao tempo em que se realiza com base na decodificação de sinais emitidos ao longo das suas cadeias comerciais, é caudatário da efervescente produção simbólico-cultural que particulariza Salvador. Entender a lógica de produção e reprodução da economia do Carnaval, a natureza especial de seus atores e arranjos institucionais, assim como o papel desempenhado pelas características histórico-culturais da sociedade soteropolitana para a territorialização e amplificação da economia do Carnaval são os objetivos do presente trabalho.

2. "Oropa, França e Bahia"3

O Carnaval tem as suas origens no "entrudo", jogos festivos que se realizavam nos quatro dias que antecediam à Quaresma e que foram trazidos pelo colonizador português, datando do século XVII os registros mais antigos sobre estes festejos no Brasil (Queiroz , 1987).

Tais jogos, em que predominavam o domínio absoluto de redes primárias, consistiam numa espécie de "guerra desordenada de limões de cheiro e similares, bacias de mijo e água suja atiradas das janelas" (Risério, 1981: 48), descambando não raro para a violência. O tom festivo do "entrudo", entretanto, ficava por conta da presença da população negra, que ocupava as ruas da cidade com "música e dança típicas do paganismo africano" (Guerreiro, 1994: 100), reunida muitas vezes em grupos de mascarados chamados "cucumbis", considerados por Verger (1984) como prováveis antepassados dos "blocos" e "cordões" carnavalescos.

1 "Frevo do Trio Elétrico", música de Dodô e Osmar2 "Chuva, Suor e Cerveja", música de Caetano Veloso.3 Expressão de domínio público usada antigamente na Bahia.

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Traços de Carnaval podem ser também identificados nas festividades e procissões religiosas do Brasil Colonial, particularmente devido à participação da população escrava em tais festejos, através de danças e batuques de origem africana. Destaque deve ser dado aos festejos realizados no mês de março em honra a Nossa Senhora do Rosário, padroeira da primeira confraria religiosa constituída pelos negros no Brasil, oportunidade em que a população negra procedia à "eleição" do Rei e Rainha do Congo, em meio a grande pompa e festa (Verger, 1984).

É a partir da segunda metade do século XIX , entretanto, que o Carnaval adquire características que passam a diferencia-lo tanto do "entrudo" quanto das festividades de caráter religioso. Por um lado, as procissões e festas religiosas assumem uma postura de maior recolhimento, perdendo muito do seu caráter festivo (Verger, 1984). Por outro, o "entrudo", alvo de proibições oficiais desde o tempo colonial, devido ao seu espírito perturbador da ordem pública (Queiroz, 1987), cede progressivamente lugar ao Carnaval.

Difícil precisar datas, mas são seguramente os últimos vinte anos do século XIX que delimitam o início do Carnaval como um substituto do "entrudo". As mudanças registradas nos festejos "parecem acompanhar de perto a expansão das cidades" (Queiroz, 1987: 718) e apontam particularmente no sentido da "europeização" da festa, com o objetivo de substituir a "barbárie" representada tanto pela violência e anarquia dos jogos do "entrudo" propriamente ditos (Risério, 1981 e Queiroz, 1987), como pelo fato dos festejos servirem de oportunidade a manifestações públicas dos costumes afro-baianos (Guerreiro, 1994 e Menezes, 1994).

A passagem do "entrudo" para o Carnaval propriamente dito vai representar um salto de escala marcado por inovações: afirmação de uma nova lógica organizacional, novo arranjo espacial dos festejos, emergência de novos atores sociais - os grupos e sociedades carnavalescas, que se constituiriam no embrião das redes secundárias que vão, paulatinamente, comandar a realização da festa. Essa passagem significa, assim, conforme indica Fry et al. (1988: 245), a substituição de uma festa de caráter "espontâneo e individualizado, do qual participam brancos e negros de uma forma desigual e hierarquizada [por outra] organizada, de caráter amplamente coletivo. [que] Domina toda a cidade, requer organização prévia, e conta com a participação de grupos e sociedades carnavalescas".Enquanto nos festejos do "entrudo" a casa era o espaço privilegiado dos jogos, desempenhando a rua um papel apenas marginal -e seguramente por isso era o único local de divertimento da população de origem africana durante os jogos, com seus batuques e grupos de mascarados - no Carnaval a "rua passou a ser a sede dos festejos", restringindo-se aos bailes carnavalescos, as únicas atividades em recinto fechado. Queiroz, referindo-se mais particularmente ao Carnaval do Rio de Janeiro, aponta 1856 como o ano que marca o início dos desfiles dos "préstitos" e, logo a seguir, do "corso", dois tipos de organização/manifestação carnavalesca típicos da elite urbana (1987: 719).

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Os "préstitos" eram sociedades carnavalescas organizadas por pessoas da média e alta burguesia, que encerravam os festejos do Carnaval desfilando na noite da chamada Terça-feira Gorda ao som de marchas militares e óperas, apresentando nos desfiles temas expressamente vinculados à história e cultura européias. O "corso" consistia num desfile pelas ruas centrais da cidade, realizado à tarde dos quatro dias dos festejos, onde famílias competiam na ostentação do luxo e riqueza de carros e fantasias (Queiroz, 1987).

Também na Bahia, a substituição do "entrudo" pelo Carnaval se dá na perspectiva de criação de uma festa com um caráter "civilizado" e "europeizante". A elite branqueada de Salvador organiza os "préstitos", que desfilam pela avenida principal do centro da cidade disputando acirradamente a preferência popular: datam deste período três famosas sociedades carnavalescas patrocinadas pela burguesia comercial local: "Fantoches da Euterpe" (1883), "Cruz Vermelha" (1884) e "Inocentes em Progresso" (1900). Mas era nos bailes carnavalescos, realizados tanto nos salões de suas mansões como no "Polytheama" e no "Theatro São João", que a aristocracia local fingia estar na Europa caindo na "farra" ao som de polcas e óperas (Menezes, 1994).

Entretanto, se a "conquista" da rua pelo Carnaval obedecia, do ponto de vista das elites, à perspectiva de "europeização" da festa, a sua ocupação efetiva pelas camadas populares, majoritariamente negromestiças, tem cor, som e sabor essencialmente africanos. Fry et al. (1988: 252) registra com clareza a segmentação sócio-racial da festa e de seus espaços neste período: "Civilização (riqueza) versus Barbárie (pobreza); e Europa versus África. No cruzamento desses dois eixos, os brancos ocupam sempre o primeiro termo (Civilização/Europa). Os negros ocupam ora o segundo (Civilização/África), ora o terceiro (Barbárie/África), dependendo, ao que tudo indica, do seu status sócio-econômico."

Mas o Carnaval "de rua" das elites dura pouco. Embora os desfiles dos três clubes carnavalescos tenham sobrevivido até o início dos anos 60, ainda que sem a pompa dos primeiros tempos, e entre os anos 20 e 40 o "corso" e as "pranchas" circulassem pela nobre avenida Sete de Setembro promovendo grandes "batalhas" de confete e serpentina entre famílias "de bem", a aristrocracia baiana se recolhe aos bailes carnavalescos, trocando o território aberto da rua pelo território fechado dos salões e clubes sociais, opção esta que, de resto, correspondia plenamente à tradição da família patriarcal brasileira, para quem a rua era um espaço "socialmente desprezado", inimiga do "sobrado elegante", especialmente na Bahia e no Rio de Janeiro (Risério, 1981). A oposição rua versus salões levou Roger Bastide a observar duas tendências bastante significativas no contexto da festa: "O branco dança só ou em casal, o negro dança em 'blocos', refaz o coletivo" (Verger, 1984: 10).

3. "Mão de preto no couro"4

4 "O Bater do Tambor", música de Caetano Veloso.

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Trocada pelos salões, a rua passa a ser ocupada pelo Carnaval negromestiço das classes populares, momento que Risério (1981) define como o começo da "africanização do carnaval baiano". Com efeito, já nos primeiros Carnavais - o que de resto ocorria desde os tempos do "entrudo" - é marcante a presença dos negros nos festejos através de organizações como, "zé-pereiras", "dominós" e "sujos" no Rio de Janeiro (Sebe, 1986), "maracatus" em Pernambuco e "afoxés" na Bahia, estas últimas estreitamente vinculadas aos cultos religiosos de origem africana. Já na última década do século passado, integrando os "préstitos", desfilavam no Carnaval baiano, com grande sucesso de público, organizações negras como Pândegos d'África, Embaixada Africana, Congada Africana e Guerreiros d'África (Fry et al., 1988 e Menezes, 1994). Sobre estas, Fry et al. chama a atenção para o fato de que, mesmo legitimando as regras do Carnaval "civilizado", ao participarem dos "préstitos" (ocupando o eixo "Civilização/África"), não deixam de "ritualizar suas identidades etnicamente específicas" (explicitando assim a oposição "Europa versus África") (Fry et al., 1988: 252).

Cabe registrar que a ocupação da rua pelos negromestiços nos festejos carnavalescos não se deu de forma pacífica, sendo alvo permanente da intolerância racial e cultural das elites através dos seus jornais e, com frequência, da repressão policial (Risério, 1981; Menezes, 1994; Guerreiro, 1994). Em 1905, por exemplo, após insistentes pedidos através dos jornais, uma portaria do chefe de polícia, reeditada nos anos seguintes, proibia expressamente "a exibição de costumes africanos com batuques" durante os festejos carnavalescos (Fry et al., 1988: 253).

Assim, afora os bailes carnavalescos em recinto fechado, pode-se dizer que o Carnaval de rua, em Salvador, na primeira metade do século XX, dividia-se entre um Carnaval "oficial", com caráter de espetáculo, composto pelos "préstitos", pelo "corso" e pelas "pranchas", organizado e patrocinado pelas aristocráticas famílias baianas, e um outro, organizado pelas classes populares e responsável pela festa propriamente dita.

Além dos "afoxés", com suas orquestras de atabaques e agogôs e os "ritmos e cantos alegres, parte da liturgia nagô-iorubá", ocupam as ruas as "batucadas", "espécies de orquestras ambulantes, composta de tambores, cuícas, reco-recos, e agogôs", os "blocos", quando o número de participantes das "batucadas" era mais numeroso e estes se apresentavam com fantasias iguais, e os "cordões", conhecidos por esse nome por utilizarem uma corda delimitando o espaço dos participantes, e por disporem de orquestras maiores chegando, inclusive, a desfilar com carros alegóricos (Verger, 1984).Estas sociedades carnavalescas, exceção feita aos "afoxés" que se vinculavam estreitamente aos Terreiros de Candomblé (Risério, 1981), eram impulsionadas por redes primárias, geralmente organizadas a partir de relações de vizinhança nos bairros populares, de relações de companheirismo no local de trabalho, ou, ainda, de corporações profissionais e até militares (Félix, 1994).

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Territorialmente, a festa também desenvolvia-se acompanhando a segmentação sócio-racial já apontada. Assim, na área nobre do centro da cidade, Campo Grande, Avenida Sete de Setembro, Piedade, Rua Chile, desfilavam os "préstitos", o "corso" e as "pranchas", alguns "blocos" e "cordões", e as famílias colocavam cadeiras ao longo dos passeios para assistirem ao espetáculo, sendo impensável a presença de "afoxés" neste espaço. Estes ocupavam as áreas mais populares do centro, Terreiro de Jesus, Baixa dos Sapateiros, Largo de São Miguel, onde eram realizados bailes públicos e os desfiles de "batucadas", "blocos" e grupos de mascarados. O Carnaval dos bairros populares, Tororó, Garcia, Liberdade, Saúde, Cosme de Farias, Engenho Velho de Brotas, Itapagipe, Ribeira, foco de grande animação, era, por sua vez, ponto obrigatório de passagem das sociedades carnavalescas que participavam de concorridos e animados concursos organizados pelas associações ou grupos de moradores (Félix, 1994).

Apesar do predomínio de um espírito eminentemente lúdico na organização e realização dos festejos, já se observa nesse período os primeiros ensaios de patrocínio, sendo significativa a observação de Queiroz (1987: 720) de que "comerciantes e jornalistas fossem os grandes promotores destes festejos, pois tais divertimentos significavam expansão de negócios e maior difusão de folhas jornalísticas". Assim, grandes casas comerciais e as emissoras de rádio patrocinavam alguns eventos carnavalescos, tais como os Gritos de Carnaval, concursos musicais, de fantasias e de mascarados. No Largo de São Miguel eram instalados palanques custeados por casas comerciais da zona da Baixa de Sapateiros. Por sua vez, os "préstitos" e o "corso", bancados pelas famílias da elite e comerciantes, e a exemplo do que já acontecia nos bailes carnavalescos com as fantasias, eram objeto de premiação patrocinada por casas comerciais sob grande incentivo dos jornais. No caso das organizações carnavalescas das classes populares, o comum era a prática do "Livro de Ouro" para o levantamento de fundos.

A intervenção da administração pública fazia-se sentir quer pelo estímulo aos festejos, quer através das ações de ordenamento da cidade para a festa, não havendo indicações, entretanto, de que investisse diretamente nos clubes e demais entidades carnavalescas (Fry et al., 1988). E, é claro, estava presente também na ação repressiva do aparelho policial, esta particularmente dirigida contra as manifestações dos segmentos negromestiços.

4. "Só não vai quem já morreu"5

O Carnaval de 1950 assistiu a um fato que marcaria de forma original e única, a partir de então, a história desta grande transa/trama cultural do povo da cidade da Bahia: a criação/invenção do Trio Elétrico por Dodô e Osmar.

Aproveitando o sucesso da apresentação, na 4ª feira anterior ao Carnaval de 1950 do Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas do Recife, que escalara em Salvador de 5 "Atrás do Trio Elétrico", música de Caetano Veloso.

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passagem para o Rio de Janeiro, Osmar Macedo, rádio-técnico e Adolfo Nascimento (Dodô), dono de uma oficina mecânica, ambos instrumentistas nas horas vagas, improvisaram o primeiro desfile num velho Ford bigode ano 1929, a famosa "fobica".

Tocando seus "paus elétricos", o que aliás já faziam em festas e rodas de "chorinho", Osmar no cavaquinho e Dodô no violão, a "Dupla Elétrica" - no ano seguinte transformada em Trio Elétrico com a incorporação de mais um músico, Reginaldo Silva no triolim - secundada por um grupo de amigos encarregados da percussão, enveredou pelo meio do "corso" na altura da Rua Chile arrastando, ao som eletrificado de frevos pernambucanos, "200 metros de povo que pulava e se divertia como nunca ocorrera antes na Bahia" conforme as palavra do próprio Osmar. (Góes, 1982: 19).

O caráter inovador/renovador do Trio Elétrico é captado genialmente por Caetano Veloso (1977: 91) quando conceitua o fenômeno como uma "solução estética que o povo de Salvador encontrou pra continuar se manifestando ativamente". De invenção transforma-se rapidamente em inovação, no mais puro sentido schumpeteriano (1984), e faz nascer, vinculado a ela, uma nova lógica de organização da festa, que, paulatinamente, conduz a uma nova configuração dos atores que fazem o Carnaval da Bahia e à imposição de um tipo diferenciado de relação entre esses atores e deles com as redes primárias.

Realmente são muitas as inovações introduzidas pelo Trio Elétrico. Do ponto de vista tecnológico, com seus "paus elétricos"6 construídos anos antes, os dois baianos podem ser considerados precursores da guitarra elétrica, já conhecida nos Estados Unidos mas ainda inexistente no Brasil (Góes, 1982 e Risério, 1981). Por outro lado, a eletrificação do frevo pernambucano representou "algo absolutamente original na arte brasileira" (Risério, 1981: 113), determinando "a criação de um novo gênero musical" (Góes, 1982: 50), e abrindo uma linha evolutiva que levaria a um hibridismo musical sem precedentes na música popular brasileira, com a incorporação de estilos variados como rock'n'roll, "acid rock", reggae, ijexá etc.

Quanto à festa propriamente dita, o Trio Elétrico provocou uma verdadeira revolução, criando uma nova forma de "brincar Carnaval" com as pessoas pulando - o que quer dizer dançar com movimentos simples e livres - ao som do Trio, que se deslocava pelas ruas da cidade, o que praticamente eliminou a figura do espectador, do público nos festejos carnavalescos, definindo assim o caráter participativo como traço distintivo do Carnaval baiano.

Se a "africanização" registrada nos primeiros carnavais fez do território aberto da rua, mesmo que de forma segmentada, o seu espaço por excelência, é o Trio Elétrico que promove a conquista definitiva da rua, ao redefinir e tornar comum a todos, sem divisões de qualquer natureza, o espaço da festa (Góes, 1982). "Atrás do trio instaurou-se uma espécie de zona liberada, território livre onde todas as distinções vão por água abaixo, principalmente social" (Risério, 1981: 113). Numa festa

6 A utilização de madeira maciça na fabricação dos instrumentos, em substituição ao violão elétrico tradicional, permitiu superar o fenômeno da microfonia, principal problema técnico da inovação.

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historicamente segmentada do ponto de vista sócio-racial, o Trio surge inaugurando um espaço absolutamente igualitário, fazendo valer, por onde passa, uma espécie de "democracia do lúdico".É também com o Trio Elétrico que o Carnaval baiano ganha os primeiros contornos empresariais, abrindo espaço para a difusão de uma lógica comercial que irá marcar, doravante, a organização e realização da festa. A partir de então, a participação no Carnaval irá demandar, de forma cada vez mais acentuada, uma escala de investimento que não pode mais ser suportada por contribuições espontâneas. O Trio Elétrico revela-se um excelente veículo de propaganda e, portanto, alvo privilegiado de patrocínios. Assim, entre 1952-57 o Trio de Dodô e Osmar é patrocinado pela fábrica de refrigerantes Fratelli Vita7, em 1958 o patrocínio vem da Prefeitura Municipal, em 1959 é a vez da Coca-cola, quando o Trio se apresenta no Carnaval de Recife - em função de uma "proposta financeira mais vantajosa" (Menezes, 1994: 87) - e em 1960 o patrocinador é a Cervejaria Antárctica (Góes, 1982). Em 1959 participam do Carnaval vários Trios Elétricos com patrocinadores diversos: Transportadora Ipiranga, Rádio América, Atlas, Jacaré, Esporte Clube Bahia etc. (Menezes, 1994). Góes atribui a Orlando Campos, fundador em 1958 do famoso Trio Elétrico Tapajós, a percepção "das potencialidades do fenômeno enquanto meio de propaganda e não somente como expressão carnavalesca. [...] é Orlando quem cria a perspectiva de negócio, quem fixa a necessidade do patrocínio, quem primeiro vai utilizar o trio como meio de propaganda oficial, para lançamento de novos produtos ou como meio de propaganda política, comparecendo com seu carro aos comícios interioranos". (1982: 61).

5. "Eu sou Olodum, quem tu és?"8

Assim como o surgimento do Trio Elétrico, abrindo os anos 50, veio transformar/particularizar o Carnaval baiano, a metade dos anos 70 vai marcar o início do processo denominado apropriadamente por Risério (1981) de "reafricanização", por recolocar na cena carnavalesca, tal como acontecera nos primeiros carnavais da passagem do século, a presença ativa de organizações negromestiças e de um repertório estético-político de matriz afrobaiana. Esse processo de "reafricanização" do Carnaval da Bahia coincide, temporalmente, com um grande salto qualitativo dado pela economia do Estado, após anos de estagnação. A entrada em funcionamento do Pólo Petroquímico de Camaçari, em 1978, lança as bases para a reconfiguração produtiva da Bahia. Já em meados da década de 80, a economia baiana passa a ter uma balança comercial superavitária, na qual prevalecem as exportações de bens industrializados, em substituição aos produtos agrícolas. Esse salto qualitativo, no entanto, ao se dar com base num parque industrial sediado no entorno da cidade, mas fora de seus limites, transforma Salvador em uma cidade-dormitório, impondo-lhe custos crescentes sem, entretanto, a necessária contrapartida dos impostos gerados pelas indústrias nascentes. Acentua-

7 Atual Brahma Cervejaria8 "Berimbau", música de Pierre Onassis, Germano Meneghel e Marquinhos.

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se o caráter segregado da cidade. Mas, modernização e segregação, paradoxalmente, revelam-se imbricadas, deitando por terra qualquer visão polarizada sobre o desenvolvimento da cidade. São, assim, diferentes faces de um mesmo processo, que permite a afirmação concomitante de identidade dos segmentos populacionais segregados. Essa afirmação culmina com a "reafricanização" do Carnaval, que, assim, mostra-se impulsionada essencialmente por fatores endógenos à cidade. Tal fato parece abrir a perspectiva de reversão no longo prazo desse quadro de segregação.

O marco fundamental dessa "reafricanização" foi o "renascimento" do Afoxé Filhos de Gandhi, "depois de um período de míngua em que todos os sinais indicavam o seu desaparecimento" (Risério, 1981: 53). Vale registrar que, um ano antes da criação do Trio Elétrico, no Carnaval de 49, ano do IV Centenário da cidade, fora fundado o Filhos de Gandhi pelos estivadores do Porto de Salvador, organização que viria a tornar-se, junto com o Trio Elétrico, um dos símbolos característicos do Carnaval baiano. O interessante é que, quase coincidindo quanto ao ano do surgimento, afoxé e Trios percorrerão durante praticamente trinta anos os caminhos do Carnaval baiano, paralelamente, sem praticamente qualquer encontro mais significativo que não um simples cruzar na Avenida. É no Carnaval de 1980 (Risério, 1981) que convergem afoxé(s) e Trios Elétricos pela primeira vez, promovendo uma fusão com consequências que, extrapolando os limites do Carnaval, marcou a produção musical baiana a partir de então.

Tal processo caracterizou-se especialmente pela emergência de novos atores do Carnaval, os "blocos afro", profundamente enraizados na comunidade negromestiça de Salvador, em detrimento dos "blocos de índio", até então predominantes junto a essa comunidade.

O surgimento dessas novas organizações, regra geral, obedeceu a uma "inspiração explicitamente africana e de afirmação étnica" (Morales, 1991: 78), muito de acordo com o processo de conscientização da "blackitude baiana" (a expressão é do poeta Waly Salomão) cuja raiz deve ser buscada também na revolução cultural/contra-cultural dos anos 60, povoada de valores da cultura dos negros, quer seja na política ("black panthers"), na música (Hendrix, James Brown), no esporte (o protesto de atletas negros norte-americanos nas Olimpíadas do México, a postura de Cassius Clay-Muhammad Ali), ou ainda em personalidades como Luter King, Malcom X, Angela Davis, etc.

Fato relevante a destacar é a transcendência dos objetivos e focos dessas organizações para além da participação no Carnaval. Ocupam física e culturalmente espaços da cidade, alguns antes estigmatizados por serem "lugar de preto", outros, hegemonizados desde sempre pelas elites. Fazem-se produtoras e produtos no mundo da cultura e das artes, assumindo o mercado como um fator importante da cultura de massas. Assumem e explicitam a matriz negra da cultura baiana numa dimensão nunca antes registrada.

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Da mesma forma que o Trio Elétrico, a "reafricanização" vai desencadear um importante processo de renovação/inovação do Carnaval baiano. Do ponto de vista estético-musical-gestual hegemoniza a festa. Músicas e danças dos "blocos afro" e "afoxés" são a marca, desde então, do Carnaval que se faz na Bahia. De um outro ponto de vista, dá lugar ao surgimento de organizações cujo âmbito de atuação ultrapassa a festa, produzindo arranjos que combinam cultura, política, negócio, tal é o caso, por exemplo, do Olodum, uma "holding cultural" como classifica Dantas (1994).

6. "Vender o talento e saber cobrar, lucrar"9

A partir da metade dos anos 80, com o surgimento dos "blocos de trio", o Carnaval baiano vai adquirir os contornos da sua configuração atual. Nessa fase, os elementos de economia e de indústria do Carnaval já estão plenamente desenvolvidos e consolidados. O Carnaval já é uma grande fonte de emprego e renda para a população da cidade. As possibilidades do negócio amplificam-se pari passu com a complexificação da estrutura organizacional de seus atores. O Carnaval passa a ser visto como um negócio estratégico pelos arranjos institucionais públicos e privados que se desenvolvem em seu entorno.

O aparecimento dos "blocos de trio" dá lugar a um novo salto de escala no Carnaval baiano, acompanhado por um processo inovacional correspondente. Esses "blocos" produziram uma versão elitizada do Trio Elétrico - privatizando o Trio Elétrico com as suas cordas, os "blocos de trio" introduzem uma hierarquia social na ocupação do espaço público da festa, de resto já presente na sua composição, que obedece um determinado padrão sócio-econômico-estético-racial. Adicionalmente, apropriaram-se do repertório estético criado pela "reafricanização" do Carnaval, dando lugar à chamada "axé music", e à utilização do abadá como vestuário; organizaram-se como empresas, privilegiando a dimensão de mercado e fazendo do Carnaval um produto com um ciclo de realização que ultrapassa os limites da festa e da cidade, e, no limite, estimularam as outras entidades carnavalescas, particularmente os "blocos afro", a se jogarem em aventuras organizacionais, estendendo a sua afirmação também ao jogo do mercado.

Testemunha-se, assim, uma relação sinergértica de resultados positivos para cidade, de um conflito que alimenta a explosão criativa do Carnaval, que explicita a "solução estética" de que fala Caetano Veloso. Claro está que por trás dessa relação, desse conflito, dessa "solução", desenrola-se um jogo político de luta permanente pela hegemonia e pelo poder produzindo ganhadores e perdedores, que têm os seus papéis periodicamente alternados.

9 "Bahia Minha Preta", música de Caetano Veloso.

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Essa rede e seus arranjos, permanentemente tensionada, responde por uma escala mega, a única capaz de abrigar os números que o Carnaval baiano registra. Reunindo em seus horários de pico 1,5 milhão de pessoas, o Carnaval da Bahia de 1994 recebeu o título de maior festa popular do Brasil. Foram cinco dias da mais pura folia ao longo dos dez quilômetros do seu circuito principal - Pelourinho à Ondina -, nove quilômetros de ruas transversais e paralelas ao circuito principal, e mais vinte quilômetros de ruas e praças bloqueadas em vinte e sete bairros da cidade. Os foliões da cidade usufruíram cento e vinte horas contínuas de festa em duzentos quilômetros quadrados de área estimada (Costa, 1995).

O Carnaval da Bahia atraiu, já em 1994, seiscentos e trinta mil visitantes, dos quais sessenta e quatro mil estrangeiros. Nos seus cinco dias, realizaram-se quatrocentos e sessenta e dois shows com a participação de três mil artistas. Desfilaram dezesseis Trios Elétricos independentes e sessenta e dois trios de "blocos", contabilizando 3,5 mil horas de Trios Elétricos nas ruas. As cento e sessenta e uma entidades carnavalescas desfilaram com aproximadamente cento e cinquenta mil integrantes (Costa, 1995). A festa envolve a mobilização de uma extensa rede de atores ao longo de todo o ano.A realização desse evento monumental impõe a montagem de uma grande infra-estrutura física e de serviços. Essa infra-estrutura, em 1994, contou com 2,7 mil pontos diversos para a venda de comidas e bebidas, coadjuvados por dois mil vendedores ambulantes; quarenta e um conjunto de sanitários distribuídos ao longo de todo o circuito da festa; quinze postos de atendimento médico; vinte postos de atendimento e orientação. Foram mobilizados nove mil policiais, dois mil e cem trabalhadores da empresa de limpeza urbana, trezentos e trinta fiscais da área de saúde pública, para assegurar a manutenção dos serviços de saúde, limpeza e orientação. Os trabalhadores da limpeza urbana coletaram 1,5 mil tonelada de lixo entre 6a. feira de Carnaval e 4a. feira de Cinzas. A vigilância sanitária inspecionou 2,7 mil pontos de venda. O serviço de transporte urbano ativou o total de sua frota durante os cinco dias nos turnos vespertino noturno. O Elevador Lacerda, que liga a Cidade Alta à Cidade Baixa, funcionou vinte e quatro horas por dia gratuitamente (Costa, 1995).

A capacidade de hospedagem da rede hoteleira não foi suficiente, por exemplo, para abrigar todos os visitantes, tendo sido necessário acionar esquema complementar de mais 2,5 mil leitos residenciais cadastrados pela Prefeitura. Os vôos das companhias aéreas com destino a Salvador ficaram lotados no período do Carnaval. Cada lançamento do "Chiclete com Banana", "Asa de Águia", "Eva", "Cheiro de Amor", "Olodum", etc. não fica em menos de duzentos mil discos vendidos (Costa, 1995).

O carnaval-negócio movimentou, estima-se, cem milhões de dólares americanos, custando aos cofres da Administração Municipal 6,5 milhões de dólares. Do total do orçamento, 30% foram cobertos pela venda de espaços publicitários, ação pioneira da Administração Lídice da Mata.

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Esses dados explicitam a linha de frente de uma gigantesca cadeia de interdependências que caracteriza a realização do Carnaval baiano, o que permitiria afirmar, inspirado por Bourdieu, que a produção simbólico-cultural realiza-se sempre numa perspectiva em rede, ou seja: a música, o músico, a gravadora, a mídia, o mercado consumidor (discográfico, turístico, lazer-cultural), trading turístico, setor público e segmentos informais da economia da cidade. A escala do Carnaval da Bahia não para de crescer. O carnaval-negócio desenvolve-se em sucessivos saltos qualitativos. Esses saltos têm sido viabilizados pela complexificação de sua estrutura organizacional, que, progressivamente, passa a revelar a tendência da prevalência das ações em rede. Os atores parecem privilegiar uma nova forma de orquestração de suas ações tanto no plano intra como interorganizacional.

Os "blocos afro", talvez por possuírem uma proposta de intervenção sobre a cidade que transcende o carnaval-negócio, são os mais avançados do ponto de vista da utilização de uma arquitetura organizacional em rede. Na verdade isso reflete a ligação orgânica entre redes primárias e secundárias de extração negromestiça.

Já os "blocos de trio" caracterizam-se por possuírem uma estrutura enxuta, pela utilização massiva de serviços terceirizados - tendência que já se manifesta em outras entidades carnavalescas - e pela adoção de soluções não-comerciais, como o recurso às comissárias - integrantes dos "blocos" que são escolhidas como vendedoras, ou melhor, difusoras do "produto-bloco". Essas comissárias não recebem remuneração fixa nem pecuniária. Os seus resultados são premiados com o recebimento da indumentária do "bloco", redução nos preços dos ingressos para shows e excursões, etc. Todavia, a característica que mais singulariza esses "blocos" é o seu progressivo distanciamento das redes primárias que lhes deram origem, o que tem facilitado, sobremaneira, a sua inserção na rede criativa e inovacional de corte negromestiço que hegemoniza o Carnaval da Bahia .

Observa-se que o elemento tradição no Carnaval adquire importância diversa, quer se trate de um "bloco afro", quer se trate de um "bloco de trio". Enquanto que para os "blocos de trio" a tradição desvaloriza-se como condição inovadora/renovadora, para os "blocos afro", a tradição é o elemento fundamental de um processo de resgate e também de invenção/reinvenção de sua identidade étnico-cultural.

Recorrendo a uma compreensão do Carnaval como um evento que se realiza em rede, ter-se-ia então uma possível explicação para o fato dos "blocos de trio", mesmo não sendo hegemônicos no que diz respeito à matriz do repertório estético-cultural da festa, ocuparem uma posição dominante na sua organização. Seria, portanto, a arquitetura das relações em rede o que permitiria a esses "blocos" a apropriação e releitura do substrato cultural produzido pelos arranjos entre as redes primárias e secundárias originadas dos segmentos negromestiços da cidade.

A Prefeitura tem incentivado as interações em rede na medida em que procura privilegiar os espaços de articulação entre os diferentes atores do Carnaval no

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processo de decisão. Assim é que, sob os auspícios do Poder Municipal, foi incluído na Lei Orgânica do Município, e regulamentado em 1992, o Conselho Municipal do Carnaval, um "órgão de natureza colegiada e representativa das entidades, órgãos públicos e da sociedade com atribuições fiscalizadora e deliberativa" (art. 261 da Lei Orgânica do Município). Essa rede das redes compõe-se de 24 membros, cada um deles representando organizações da comunidade carnavalesca, de órgãos e empresas, tanto do Município quanto do Estado, de sindicatos, de associações profissionais e de empresas10. A Lei Orgânica instituiu também, como órgão de suporte ao Conselho, a Coordenação Executiva do Carnaval, integrando três membros: um eleito pelo Conselho, um representante indicado pela Prefeitura e o terceiro indicado pelo Governo do Estado.

Ao Conselho e à Coordenação do Carnaval soma-se a Emtursa, que, na qualidade de órgão executor do Carnaval, responde pela operacionalização do evento, o que envolve: licitações, contratações, logística, programação musical, pessoal operacional, "marketing", mídia, articulações com concessionárias de serviços públicos, etc.

Vale ressaltar, entretanto, quanto ao Conselho, que o mesmo é a expressão do novo e do velho. Nele superpõem-se lógicas contraditórias que trafegam da defesa de interesses estritamente corporativos, tanto dos elos privados quanto públicos, até a defesa e viabilização de ações que transcendem o próprio espírito corporativo. A prevalecer os interesses corporativos, amplia-se o risco, para o Carnaval, de que o Conselho se afirme apenas como instância reguladora que, embora particularmente necessário, não realiza toda a potencialidade que a festa propicia e cuja riqueza deveria ser objeto de ações catalizadoras.

7. Redes alegres, economia lúdica: um projeto pós-fordista (baiano)?

Para muitos estudiosos, a chamada Terceira Revolução Industrial estaria associada à emergência de uma sociedade pós-industrial. Confirmando essa tese, citam o fato de que as novas tecnologias, e as antigas por influência dessas, serem poupadoras de mão-de-obra. Enxerga-se a dissipação da sociedade baseada no trabalho, ou seja, cada vez mais a produção da riqueza demanda menos trabalho, porque o crescimento da produtividade é vertiginoso. Outra evidência seria o expressivo crescimento dos empregos no terciário em comparação com oportunidades cadentes de emprego industrial nas economias avançadas. Uma outra mais seria o caráter plural das

10 O Conselho Municipal do Carnaval é formado por representantes dos seguintes segmentos carnavalescos e instituições: Associação dos Blocos de Salvador (ABS); Associação dos Blocos de Trio (ABT); Associação Baiana de Trios Independentes (ABTI); Afoxés; Blocos de Percussão; Blocos de Índio; Blocos Afro; Federação dos Clubes Carnavalescos da Bahia (FCCBA); Associação de Barraqueiros; Sindicato dos Músicos; Associação Baiana de Cronistas Carnavalescos (ABCC); Sindicato de Vendedores Ambulantes e Feirantes; Associação de Empresas de Iluminação e Sonorização; Associação dos Artistas Plásticos; Federação de Clubes Sociais da Bahia; EMTURSA (empresa municipal de turismo); Secretaria Municipal de Saúde; Secretaria Municipal de Governo; BAHIATURSA (empresa estadual de turismo); Secretaria de Saúde do Estado; Polícia Militar; Secretaria de Segurança Pública do Estado; Câmara de Vereadores; Juizado de Menores.

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experiências produtivas em curso. A economia do lúdico seria, então, uma trajetória particular de sociedades assim configuradas.

A multiplicidade e superposição de lógicas e dinâmicas do Carnaval é seguramente o seu maior atributo, e o que faz dele um caso particular de economia do lúdico. A economia do lúdico realizada no Carnaval é territorializada porque a sua efetivação econômica depende dessa localização (dependência do lugar), que é específica de Salvador, isto é, tem raízes em recursos não existentes em outros espaços e que não podem ser fácil e rapidamente criados e/ou imitados pelos locais que não os têm (Storper, 1994).

O Carnaval é, na verdade, uma produção em rede. As redes primárias, que se caracterizam pelo fato de nelas os indivíduos interagirem de forma natural, por agrupamento e conhecimento, e as relações assumirem uma base afetiva mutável ao longo do tempo, são o esteio dessa produção. Os grupos de vizinhos e/ou amigos, que se reunem para comer uma boa feijoada ou uma apimentada moqueca, uma ou outra, qualquer que seja, sempre regada a cerveja bem gelada e muito som, nos fins de semana na Liberdade, Periperi, Alto das Pombas, Federação, Engenho Velho, Garcia, Tororó, e inúmeros outros lugares desta enorme e labiríntica Cidade da Bahia, são um dos exemplares da miríade de redes primárias que dão o tom do Carnaval.

O espírito de mutirão, tão forte na realização do Carnaval, nasce desde aí. Assim, ao fornecerem as pré-condições, as redes primárias contribuiriam para a constituição do Carnaval a partir de uma teia de interações informais, estabelecida por uma pluralidade de indivíduos, grupos ou organizações. O tecido social pulsa, e ao pulsar "abre alas" para o Carnaval, para "a invenção do Diabo que Deus abençoou". Em sentido mais exato, a urdidura das redes primárias, que vêm dando suporte à realização do Carnaval desde seus primórdios, reforça a percepção do Carnaval como um "exemplo de solução estética, de expressão do povo brasileiro, um exemplo de saúde criativa" (Veloso, 1977: 93).

A economia do Carnaval, dotada de padrões próprios de dinamização, tem como seu eixo principal a produção de bens e serviços simbólicos. Ainda - e, acredita-se, sempre -"solução estética", mas já com pompas e números de "megaevento", o Carnaval produz a imbricação entre esse eixo principal e um outro, empresarial. Assim, o Carnaval passa a combinar prazer e negócio, diversão e trabalho. Particularmente, representa para uma expressiva parcela da população pobre da cidade uma estratégia de vida exercitada numa economia do lúdico.

Com a passagem ao carnaval-negócio, as redes sistêmicas, que correspondem ao agrupamento de organizações que tomam decisões conjuntas e articulam esforços para produzir um produto e/ou serviço (Alter & Hagg, 1993), superpõem-se às redes primárias para, em um esforço dirigido de apropriação e reelaboração de valores e bens simbólicos produzidos difusamente no tecido social, porem em movimento uma verdadeira máquina de inovações, que, paulatinamente, vem fazendo do Carnaval da Bahia o maior evento festivo de massa do Brasil.

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Na verdade, reconhece-se que parte das fontes de emulação das ações dos grandes "blocos de trio" e dos "blocos afro", em especial, situa-se nas cadeias comerciais: são os sinais emitidos ao longo delas que orientam, em um certo sentido, as decisões dessas organizações. Com base na decodificação desses sinais, aquelas organizações adotam um padrão de conduta similar ao de qualquer empreendimento produtivo, cujo retorno deriva de seu sucesso mercadológico. Entretanto, esse sucesso mercadológico tem sido função também da capacidade demonstrada por cada ator, componente das redes secundárias, no processo de apropriação/reelaboração dos valores e bens simbólicos originados a partir das redes primárias que conformam o tecido social.

Em vista disso, constata-se que uma frente fundamental de emulação vincula-se à rica experiência simbólica dos habitantes da cidade, notadamente do majoritário segmento populacional negromestiço de origem e tradições africanas. Para esse movimento de apropriação, reelaboração e difusão desempenha papel fundamental a organização dos atores em rede.

Independentemente do termo aplicado para denominar o padrão social atual - se pós-industrial, pós-fordista, do conhecimento ou do aprendizado -, o fato é que a sociedade tradicional erigida com base na lógica do trabalho está em crise. No bojo dessa crise, que é essencialmente a crise de um padrão de desenvolvimento, insinuam-se novas tendências de organização produtiva, experimentam-se novas formas de regulação e interação entre os atores, novas lutas sociais são travadas e consequentemente novos caminhos sociais são trilhados. As janelas de oportunidades abertas demandam requisitos produtivos muito pouco valorizados até então, como é o caso do Carnaval da Bahia.

Nos cinco dias (a possibilidade real de se multiplicar esse número é, razoavelmente, grande) de Carnaval baiano, centenas de milhares de pessoas pulam, bebem e trabalham ao som dos Trios Elétricos, "afoxés", e "blocos". Os seus sons seduzem inclusive os que nele trabalham, sendo emblemática a imagem do vendedor ambulante com o seu pesado "isopor" à cabeça carregado de cervejas e refrigerantes, pulando atrás do Trio Elétrico, mas também vendendo seu produto. Como se o Carnaval baiano permitisse a afirmação de uma lógica de sobrevivência que recusa a dicotomia entre prazer e trabalho, e que, de alguma forma lemos nos versos da música de Caetano Veloso que abriu o ponto seis desse trabalho: "bahia minha preta / como será / se tua seta acerta e chega lá? / ... / comprar o equipamento / e saber usar / vender o talento e saber cobrar, lucrar". Resta saber se o Carnaval não seria um arco para esta seta.

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