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    CAMINHOS DE GEOGRAFIA - revista on linehttp://www.ig.ufu.br/revista/caminhos.htmlISSN 1678-6343

    Instituto de Geografia ufuPrograma de Ps-graduao em Geografia

    Caminhos de Geografia Uberlndia v. 9, n. 26 Jun/2008 p. 185 - 192 Pgina 185

    O LUGAR-TERRITRIO NA COMPLEXIDADE DA REALIDADE CONTEMPORNEA:INCURSES TERICAS A PARTIR DA INTERSUBJETIVIDADE1

    Matusalm de Brito Duarte

    Mestre em Geografia pela [email protected]

    RESUMO

    A complexidade da realidade atual tem redimensionado as leituras acercados processos scio-espaciais, que vem ampliando a demanda por umapostura cientfica cada vez mais interdisciplinar, onde o conhecimento esteja frente das questes postas no cotidiano. Tais processos se encontram,cada vez mais, imbudos do fazer dialtico entre o individual e o social,entre o local e o global e tambm entre o subjetivo e o intersubjetivo. Diantedisso, este artigo faz uma reflexo terica, a partir do conceito deIntersubjetividade, de uma categoria espacial hbrida e composta: lugar-territrio, vislumbrando novos rearranjos espaciais enquanto elementos

    tericos de suporte leituras do espao na dimenso micro e scio-espacial.

    Palavras-chave: Intersubjetividade; Identidade, Lugar-territrio.

    THE TERRITORY-PLACE IN THE COMPLEXITY OF THE CONTEMPORARY REALITY:THEORETICAL INCURSIONS FROM THE INTERSUBJETIVIDADE

    ABSTRACT

    The complexity of the current reality has redimensioned the readings aboutthe socio espacial processes, in which it has been amplifying the demand fora scientific attitude more interdisciplinary, where the knowledge is in front ofthe questions placed in the quotidian. These processes are found, more andmore, imbued in the dialectic doing between the individual and the social,between the local and the global as well between the subjective and theintersubjective. Henceforth this article makes a theorical reflexion from theconcept of Intersubjectivity, from a hybrid and compound espacial category:territory-place, descrying new espacial rearrangements whereas theoricalelements of support to readings of spaces in the micro and socio espacialdimension.

    Keyword: Intersubjectivity, identities, territory-place.

    INTRODUO

    A complexidade posta na atualidade e sua tendncia em ampliar as vertigens diante dosfenmenos vm reconfigurando as demandas epistemolgicas acerca dos mtodos e dostratamentos do conhecimento que se apresentam continuamente. Nesta realidade, as relaestecidas no espao geogrfico tambm se encontram diante de tais impasses. A cinciageogrfica tem se debruado sobre seu objeto de estudo numa tentativa de apreend-loenquanto instrumento de autentificao de sua existncia, engessando muitas vezes emcategorias espaciais a realidade espacializada. Essas tentativas perduraram e ainda perduramem vrias leituras e anlises de fenmenos espaciais de modo que, em nome de uma certeza

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    Recebido em 13/12/2007Aprovado para publicao em 11/05/2008

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    hipottica, toda a adaptao seja necessria, confinando tal cincia ao velho ditado em queos fins justificam os meios.

    Por outro lado, preciso estar atento s contracorrentes, principalmente quelas de discurso

    radical, que apregoam o fim de todo mtodo pela construo de uma epistemologia do vazio,a qual tudo se permitido.

    Diante desta tenso epistemolgica, que vem pressionando os diversos campos doconhecimento, faz-se necessrio o desenvolvimento de um arcabouo terico que ao mesmotempo em que considere a construo histrica da epistemologia da cincia, tambmvislumbre, na mesma medida, a necessidade de uma melhor compreenso da realidade scio-espacial, na complexidade em que se encontra e caminha.

    A partir dessas colocaes, algumas incurses tericas podem ser feitas no que se refere aouso de algumas categorias espaciais na leitura da realidade scio-espacial. Alm disso, oentendimento dos processos, que passa pela dimenso humana do espao imprime e exprimefazeres que transitam entre o individual e o social, pendulando entre o subjetivo e ointersubjetivo.

    Para o exerccio terico de uma releitura das categorias, levando em considerao talconstruo intersubjetiva da realidade, foram selecionados o lugar e o territrio, que seroredimensionados a partir da considerao de uma nova categoria-composta: o lugar-territrio.Dentre as categorias geogrficas, o lugar e o territrio vem ganhando destaque diante dasdiscusses acerca da dialtica local/global e da redefinio dos poderes na nova ordemmundial. Da mesma forma, o entendimento do conceito de intersubjetividade vem sedestacando enquanto possibilidade de enriquecimento da compreenso dos novos processossociais, trazendo a perspectiva inter e transdisciplinar como alicerces de uma nova forma deleitura do mundo.

    Neste contexto, a discusso que se segue, pretende avanar no entendimento da nova relaolocal-global que, inclusive mencionada por alguns autores j com o nome de glocalizao(HAESBART, 2004, p. 347). O lugar ganha novas leituras que ser abordado como lugar-

    territrio neste trabalho, mas sem se sobreporem, enriquecendo a discusso acerca dasquestes da atualidade.

    A intersubjet iv idade do lugar-terri trio

    Antes de iniciarmos uma reflexo acerca da intersubjetividade, presente na produo doespao enquanto lugar-territrio, faz-se necessrio apresentarmos as justificativas da criaode uma categoria espacial nica, reunindo em si outras duas to importantes e complexas: olugar e o territrio. A anlise aqui no se debrua sobre as categorias em seus mltiplosaspectos e acepes, principalmente no que se refere ao territrio, cujo histrico naepistemologia geogrfica no se constitui em objetivo a ser aqui inserido. Este estudo visaencontrar o movimento que visualiza o lugar enquanto espao de identidades com relaesde poder, de desconstruo e re-construo contnuas que vo se materializando a partir deum olhar multifacetado.

    O uso do termo composto lugar-territrio no uma categoria encontrada na literaturageogrfica. Ele figura aqui como uma proposta frente a alguns discursos que delimitam oespao por este vis e no assumem esta proximidade como parecem desejar. A categoriaterritrio sempre esteve ligada s questes polticas e seu conceito atrelado, muitas vezes,equivocadamente somente a essas relaes de poder. Algumas iniciativas recentes buscaramoutras formas de delimitao espacial, que no pela poltica, mas continuam utilizando oterritrio sem alavancarem as diferentes nuances que a complexidade e ps-modernidadevm imprimindo s relaes scio-espaciais.

    O neologismo lugar-territrio no carrega em si o objetivo de simplificar as categoriasespaciais abrangidas, nem muito menos procura uma redefinio de territrio, o quedemandaria outro trabalho parte de uma profundidade e direes diferenciadas. O que sepretende mostrar uma possvel sujeio do territrio categoria lugar, de modo a

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    entendermos suas diferentes leituras, que partem de dinmicas territoriais em mltiplasestncias: econmicas, polticas e culturais.

    O territrio, enquanto categoria de anlise espacial, figurou e ainda figura em muitos

    discursos, como um espao delimitado por fronteiras rgidas, onde o poder poltico e/oueconmico limitariam o acesso e reforariam o controle sobre os sujeitos ali cercados, comopodemos verificar em Raffestin2, citado em HAESBART (2004, p. 84-85).

    Outros discursos, como o de Manuel Castells (1999), declaram que na ps-modernidadeocorreria o processo de desconstruo dos territrios devido acelerao dos processosglobalizantes e do enfraquecimento do Estado-nao enquanto gestor. Poderia-se tambmverificar a materializao das idias de reordenamento dos territrios para uma novaconfigurao, denominada territrios-rede. Nesta concepo, o conceito de territrio-reapassa a ser substitudo pela idia de pontos interconectados. Por ltimo, e cuja complexidadese aproxima do conceito de lugar-territrio aqui desenvolvido, h um conjunto de refernciasao territrio o inserindo num contexto mltiplo, com novos processos e agentes comoconstituintes de sua construo, desconstruo e nova construo, chamado de des-re-territorializao, que assume o papel da multiterritorialidade como fundamento da nova

    dinmica dos lugares (HAESBAERT, 2004, 74-77; SANTOS, 2002; MASSEY, 2000;FERREIRA, 2000; CLAVAL, 1999; CARLOS, 1996; SOUZA, 1995 ).

    Partindo de algumas definies de lugar pode-se perceber sua ligao intrnseca com oterritrio, uma vez que nelas esto presentes referncias s afirmaes das identidadesenquanto essncia de sua formao. Assim, para Ana Fani Alessandri Carlos o lugar a baseda reproduo da vida e pode ser analisado pela trade habitante-identidade-lugar (CARLOS,1996, p. 20). J para Doreen Massey, a importncia das identidades se traduz no como umfator locacional, mas como uma ponte de relaes entre os lugares:

    Lugares no possuem uma nica identidade, eles esto cheios de conflitosinternos. A especificidade de um lugar deriva do fato de que cada lugar ofoco de uma mistura distinta de relaes sociais externas e locais. Essamistura num lugar produz efeitos que no ocorreriam de outra forma. Todas

    essas relaes se interagem com a ajuda da histria acumulada do lugar,produto de camadas sobre camadas de diferentes conjuntos de elos evnculos locais e com o mundo exterior (MASSEY, 2000, p. 183-184).

    Massey, ao enfatizar o carter histrico na configurao dos lugares, traz consigo umadinmica mais aparente em relao ao lugar do que em Tuan. Ao delinear o lugar enquantoproduto de camadas sobre camadas acaba por nos dar a impresso de estarmos diante deum conjunto de filmes que se desenrolam sincronicamente, mas que possuem uma unidadepara cada uma das experincias subjetivas. Ao mesmo tempo, essa dinmica permite adefinio de lugar com caractersticas intersubjetivas, uma vez que cria vnculos atravs dasinteraes e das formaes de identidades, que fazem parte de seus constituintes.

    Para entender esta ligao entre lugar e identidade preciso situar a segunda diante dassuas vrias caractersticas, tomando-a como ponto de partida. Esta, enquanto conceito

    objetivo, depreende-se em duas principais correntes: uma que concebe o termo ligado squestes genticas e outro de cunho culturalista (CUCHE, 2002, p. 177-181). A identidade,enquanto concepo gentica, confere s razes o carter que define as relaes entre ossemelhantes. Aqui ento, ela seria entendida como algo estvel e definitivo uma vez que seencontra impregnada num contexto biolgico. Os sujeitos identificados comungariam entre sidos processos sociais desde que semelhantes geneticamente.

    A segunda corrente de cunho culturalista, embora parea uma abordagem que leve em conta asubjetividade, o contexto de assimilao e disseminao da cultura remetida interiorizaoobrigatria de costumes e conhecimentos de forma a se inserir no grupo enquanto fazerintersubjetivo. A intersubjetividade da relao passa apenas pela direo unilateral, tornando aidentificao com o grupo, uma espcie de fim em si mesmo (CUCHE, 2002, p. 178-181).

    2RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do poder. So Paulo: tica, 1993.

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    As duas correntes objetivas fogem completamente s concepes de territrio enquantolugar concebidas na abordagem de Doreen Massey. Para ela, o espao nunca pode serentendido como um fim em si mesmo ou algo j dado, pois ele:

    (...) o produto de relaes-entre, relaes que so prticas materiaisnecessariamente embutidas que precisam ser efetivadas, ele estsempre num processo de devir, est sempre sendo feito nunca estfinalizado, nunca se encontra fechado (MASSEY, 2004, p.8).

    As correntes objetivas desconsideram as interaes e a multiplicidade como formadores deidentidades bem como da configurao scio-espacial. Sendo assim, preciso aprofundar emcomo as correntes relacionais e situacionais abordam a identidade, de modo a chegarmos aoconceito multidimensional que contempla, de forma mais complexa/completa, sua riquezapara a compreenso do territrio e do lugar enquanto categorias unidas pela identidade.

    Num contexto relacional e situacional podemos definir a identidade como uma orientao paraas escolhas dos sujeitos diante de seu grupo e do conhecimento ao qual tm acesso. As

    representaes neste contexto ganham importncia, entendidas como suporte da construo ere-construo das identidades. Ao mesmo tempo adquirem mobilidade a identidade emultiplicidade, no figurando enquanto concepes pura e etrea. Nas trocas sociais elas seredefinem, formando camadas sobre camadas se preenchendo com outros tons aos quais seidentificam, transformando-se em uma nova forma de ser. Segundo Denys Cuche, nestaconcepo, a identidade:

    (...) se constri e se reconstri constantemente no interior das trocas sociais.Esta concepo dinmica se ope quela que v a identidade como umatributo original e permanente que no poderia evoluir. Trata-se ento deuma mudana radical de problemtica que coloca o estudo da relao nocentro da anlise e no mais a pesquisa de uma suposta essncia quedefiniria a identidade (CUCHE, 2002, p. 183).

    Em seu estudo A noo de cultura nas cincias sociais, Denys Cuche enriquece a leitura

    acerca da identidade, uma vez que a encontramos sempre presa a um contexto pr-definido,como se sua imutabilidade garantisse a superioridade e o poder dentro de um grupo. Nocontexto atual, em que a existncia dos territrios e dos lugares continua posta emquestionamento, para entendermos a reconfigurao destes espaos e afirmarmos suapermanncia analisaremos a identidade enquanto componente fundamental na dinmica dasrepresentaes sociais e de seu fazer espacial.

    Alm de considerarmos a identidade como constituinte de um grupo e que se modifica pelocontato com outras culturas e outros lugares, dentro da grande rede espacial que se dinamiza preciso levar em conta que o olhar dos outros grupos e das outras identidades, tambmreconfiguradas ao longo do tempo, imprimiro na diversidade espacial novas relaes entre si.A identidade enquanto componente de um grupo, mesmo em constante reconfiguraosubjetiva e intersubjetiva, encerra toda a carga conceitual e pr-conceitual dos sujeitos que

    se deparam com outras identidades. Mas somente no choque entre identidades que osconflitos se afloram e os lugares ganham novos contextos dentro da complexidade global.

    Entendemos a identidade como esta caracterstica hbrida, cujas relaes de poder semanifestam no fazer intersubjetivo e se coloca enquanto pea fundamental da diversidadesocial. Podemos relacionar o lugar-territrio enquanto espao da manifestao dasidentidades e das relaes com outros lugares-territrio, sendo estes movimentos muitasvezes de fechamento. As respostas de vrios grupos podem se apresentar de forma militanteexpondo as dificuldades e o medo diante das presses sofridas pela complexidade ps-moderna, que tenta reconfigurar os sentidos de identidade e das representaes simblicasdo grupo, como afirma Paul Claval:

    Os discursosidentitrios contemporneos proclamam assim a necessidade,para o grupo, de dispor de um controle absoluto do territrio que ele torna

    seu. No lhe suficiente dispor de um lar simblico, de um plo de adeso. necessrio isolar os outros (CLAVAL, 1999, p. 22).

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    Para ilustrar esta passagem podemos tomar como exemplo o muro construdo entre as duasAlemanhas, bem como o muro de Israel, que figuram como tentativas de grupos em manteremuma identidade, como algo livre da contaminao ou perpetu-las. Tal perspectiva demonstrao incmodo diante da tendncia de reordenamento e sobreposio de poderes que

    multidimensionam o conceito de identidade, criando e recriando uma infinidade de hbridos ecompostos identitrios, possibilitando emancipaes e radicalizaes. Outros exemplos maisprximos so as cidades brasileiras que funcionam como condomnios fechados, evitando apresena de grupos de menor poder aquisitivo, mantendo um ritmo de vida voltado clausurado conforto.

    As vertigens da ps-modernidade com sua velocidade e instabilidade, colocam os sujeitosconstitudos enquanto territorialidades, como dependentes e necessitados deste fechamento.Neste movimento podem acabar se diluindo num propsito ou causa que no os contmenquanto experincia vivida. Paul Claval chama a ateno para esta tendncia atual:

    Quanto mais o universo do qual as pessoas vivem limitado, mais aidentidade vivida sob a forma da necessidade: o indivduo no v comopoderia se subtrair quilo que o grupo do qual ele faz parte, e aqueles que se

    lhe opem de forma permanente, lhe impe como disciplinas, valores, modosde ser e imagens. A identidade est to impregnada que ele no temnenhuma necessidade de defini-la. Contenta-se em se opor aos outros, emdizer ns para todos aqueles que sente prximos, e em classificar o resto domundo em algumas grandes categorias genricas (CLAVAL, 1999, 18).

    A colocao de Paul Claval parece enterrar a construo intersubjetiva da realidade, a partir deuma alienao de grupo que se encontra diante da velocidade das mudanas. Na verdade elepondera sobre o papel que a ideologia enquanto discurso, prtica e poder, como aomultifacetada, se mostra presente na identificao de um grupo com o outro. Asrepresentaes de vrios grupos, configurados nesta perspectiva, de alguma forma somanipuladas por algum tipo de relao de poder, facilitador criao de um universoterritorializado para aquelas identidades semelhantes.

    Todo este hibridismo, impregnado na sociedade e nas suas dimenses culturais eintersubjetivas, que fora a realidade a se tornar um todo semelhante, superestimou oalcance da unificao de uma conscincia e identificao nicas, que no foram alcanadas.As relaes interpessoais possuem um limite de imposio que esbarra nas arestas dapercepo e das relaes simblicas. Stuart Hall (2000), em sua reflexo sobre o papel daidentidade na ps-modernidade, apresenta este panorama apontando, ao mesmo tempo, o noalcance global da proposta homogeneizadora bem como a necessidade estruturalintersubjetiva na constituio de identidades, mesmo que s custas de estratgias fugazes.Para ele:

    A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente umafantasia. Ao invs disso, medida em que os sistemas de significao erepresentao cultural se multiplicaram, somos confrontados por umamultiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possveis, com

    cada uma das quais poderamos nos identificar ao menos temporariamente(HALL, 2000, p. 13).

    Os sujeitos e sua coletividade se encontram diante de um universo hbrido que desliza naacelerao do tempo. As identidades, neste movimento, se posicionam ora em articulaoconstante, pluralizando as possibilidades de sua manifestao, ora se fechando a partir doreforo s tradies rgidas e puras (HALL, 2000, p. 87, 92). As duas estratgias, constituintesdesta estrutura global, embora aparentemente antagnicas trazem em seu cerne justamente atentativa em articular aquilo que caracteriza o fazer social e garante a manifestao do sujeitoenquanto ser-a-no-mundo-com-os-outros , ou seja, a constituio das identidades.

    A partir destas concepes de identidade, no contexto atual, percebemos que o lugar-territriorefora sua dimenso enquanto representao, valor simblico (HAESBAERT, 2004, p. 71).Tal aspecto comprova que o mito da desterritorializao, alm de precipitado incompleto na

    tentativa de explicar novas dinmicas de reconfigurao espacial. Ao invs de pensarmos nofim das identidades ou na sua homogeneizao, devemos nos orientar para realizar leituras

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    nas quais a multidimenso e a sobreposio de camadas significativas constituam-se nocontexto almejado, trazendo tona seus conflitos, ideologias e metamorfoses.

    Rogrio Haesbaert (2004), ao discutir e debater a propsito da variedade de definies

    atribudas ao conceito de territrio e dos mitos que o rondam na atualidade, devido smudanas globais nas relaes tempo-espao, apresenta uma cronologia das concepesmais tradicionais at as tendncias ps-modernas. Neste percurso, percebe-se que aessncia do territrio est na questo das relaes de poder, porm, esta simplificao no to fcil. Os poderes alm de pertencerem a diversas tipologias, se movimentam naintersubjetividade de distintas formas, tornando essa categoria espacial um feixe de luz diantede um prisma.

    Entre as concepes, de fundamentao materialista ou idealista, cujasextremidades entre a total vinculao objetiva ou subjetiva do poder se fazem presentes,evidenciamos a concepo que, inicialmente mais se aproxima do lugar-territrio, dosfilsofos franceses Gilles Deleuze e Flix Guattari (HAESBART, 2004, p. 99). Para estestericos, os territrios se configuram a partir da fluidez na relao entre o que denominamagenciamentos maqunicos de corpos e de agenciamentos coletivos de enunciao3

    (HAESBAERT, 2004, p. 124-125).

    Para acessarmos o que est concebido enquanto intersubjetividade no pensamento deDeleuze e Guattari, tais agenciamentos merecem ser esclarecidos. Por agenciamentomaqunico de corpos entende-se a constituio subjetiva da sociedade, pelo conjunto decorpos no espao social atravs da presena dos sujeitos em relao. J os agenciamentoscoletivos de enunciao referem-se ao regime de signos compartilhados e aos elementos aosquais os agenciamentos maqunicos esto submetidos. Isso no quer dizer que o segundomantenha o controle sobre o primeiro ou que o determine, mas como afirma HAESBAERT,trata-se de uma relao entre os dois agenciamentos, os dois percorrem um ao outro, intervmum no outro, trata-se de um movimento recproco e no hierrquico(HAESBAERT, 2004, p.125). Territorialmente, podemos considerar tais agenciamentos maqunico de corpos como aestrutura concreta do espao, enquanto elementos que a compem, propiciando o fazer

    representativo, ou seja, funcionando como seus fixos. J os agenciamentos coletivos deenunciao estariam vinculados estrutura social, cuja funo est ligada ao processo designificao daqueles agenciamentos maqunicos pelo o que nomeamos contextos poltico,econmico, ou relacionados aos micro-poderes que atuam neste fazer intersubjetivo.

    As proposies destacadas por Deleuze e Guattari demonstram a fluidez na constituio dosterritrios e como a intersubjetividade se configura de forma diversa, de acordo com o contextono qual os sujeitos so envolvidos. Alm das camadas de identidades que se contatam, huma relao do socius com os sujeitos que os levam a direcionarem suas aes epensamentos constituindo diversos territrios-lugares, que se materializam face aintersubjetividade presente, trazendo em si, elementos de uma des-re-territorializao.

    Em outro contexto, o lugar-territrio se vincula s questes referentes s mudanas narelao tempo-espao, conhecidas enquanto fenmenos da compresso do espao pelo

    tempo. Tais questes encontram-se submersas num debate amplo sobre as sujeies do lugarao global e/ou do global ao local. O contexto de leitura de mundo aqui parte dos processos deconstituio do espao enquanto meio tcnico-cientfico-informacional, conforme Milton Santos(SANTOS, 2002, p. 233). Configura-se um processo histrico que se materializa no espao enas relaes intersubjetivas, por Santos apresentado da seguinte forma:

    Neste perodo, os objetos tcnicos tendem a ser ao mesmo tempo tcnicos einformacionais, j que, graas extrema intencionalidade de sua produo ede sua localizao, eles j surgem como informao; e, na verdade, a energiaprincipal de seu funcionamento tambm a informao. J hoje, quando nosreferimos s manifestaes geogrficas decorrentes dos novos progressos,no mais de meio tcnico que se trata. Estamos diante da produo de algo

    3

    DELEUZE, G e GUATTARI, F. Mil Plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol 1 e 2. Rio de Janeiro:Editora 34, 1995.

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    novo, a que estamos chamando de meio tcnico-cientfico-informacional(SANTOS, 2002, p. 238).

    O autor foca a dinmica da circulao das informaes como uma estruturante fundamental nare-definio dos lugares e dos territrios. Ele tambm deixa clara a ligao do meiotcnico, ou seja, o prprio espao material construdo com as intencionalidadesinformacionais, cujo interesse est diretamente relacionado ao controle, bem como aacelerao de seu acesso. A superioridade da informao, enquanto constituinte das prticassociais atuais, salienta a compresso do espao pelo tempo e de uma necessidade de serepensar o lugar tal como j foi definido, enquanto lugar prprio da cotidianeidade especfica ecomo espao singular.

    Em nenhum momento encontramos em Santos a tentativa de decretar o fim do lugar, nem emDoreen Massey (2000), que tambm trabalha com esta questo; nota-se a sua revalorizaoenquanto categoria de leitura do espao e suas relaes com o global. O lugar se ampliaenquanto categoria de leitura espacial. Ele concebido como categoria possvel demanifestao social espacializada, possuindo em si as caractersticas de identidade, poder e,principalmente, do global no local. Tanto as dificuldades ampliadas pelo poder exacerbado da

    informao, quanto s facilidades, se manifestam no lugar e aportam consigo todo omovimento de des-re-territorializao mencionado e trabalhado por Haesbaert em sua obra.

    A diversidade de contextos sociais , porm, erigido por Milton Santos e Doreen Massey comoverdadeiros empecilhos homogeneizao dos lugares enquanto manifestao nica doglobal, como se este se espelhasse da mesma forma em todas as direes, simplificando olugar como um espao de menor escala. Santos assinala que:

    Com a modernizao contempornea, todos os lugares se mundializam. Mash lugares globais simples e lugares globais complexos. Nos primeirosapenas alguns vetores de modernidade atual se instalam. Nos lugarescomplexos, que geralmente coincidem com as metrpoles, h profuso devetores: desde os que diretamente representam as lgicas hegemnicas, atos que a elas se opem (SANTOS, 2002, p. 322).

    Toda esta diferenciao espacial deve tambm ser apreciada, para no corrermos o risco desuperestimarmos demais diversas reas do globo, que na verdade no se encontram com taisvetores da modernidade em seu meio-tcnico espacializado, e sim margem do processo deevoluo capitalista uma vez que ali se culminou o processo de ampliao de seu fechamentopela impossibilidade de melhor insero. Doreen Massey cita o exemplo de algumas ilhas doPacfico que, por conseqncia da compresso tempo-espao, acabaram se isolando docontinente. Essa mudana vem ocorrendo pelo aumento do fluxo de Boeings na ponte areade potncias asiticas-oeste dos EUA, em detrimento da navegao tradicional. Essetransporte, quando era predominante, contemplando quelas a medida em que faziam paradasem seus lugares-territrio. Tais paradas garantiam quelas ilhas uma movimentao e umaligao maior com os demais espaos continentais, que passaram a sofrer com o processo doisolacionismo (MASSEY, 2000, 179-180). O global est presente de alguma forma nestas ilhas,nem que seja pela negao de sua insero no modelo de redes tcnicas-informacionais,

    fazendo com que o cotidiano em si seja vislumbrado e contemplado por outra tica.Nesta dimenso, os lugares so tambm tomados pelo conceito de territrio ao seremdefinidos como espaos de resistncia, que propiciam o desenvolvimento de outros processosque alteram a configurao das identidades e dos poderes ali constitudos (FERREIRA, 2000,p. 73). O que fica claro a tendncia poltico-econmica atribuda ao reordenamento doslugares-territrio, que ora comportam as mudanas, ora so por elas afetados. Assim, poucanfase ofertada s questes culturais e interativas entre os sujeitos e suas identidadesconstitudas na experincia intersubjetiva no cotidiano. Essas soam muitas vezes comoimpossibilidades diante de um contexto maior que se sobrepe a quaisquer outros vnculosnascidos no/do lugar. O lugar tende a ser reportado como reflexo do global e classificado porsua capacidade maior ou menor em absorver ou no o aparato tcnico-informacional ao qualfica (ou no) submetido.

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    Outra perspectiva acerca da concepo de lugar-territrio refere-se tentativa em integraraspectos da subjetividade e da objetividade para construir o seu entendimento. Entrikin4, citadoem FERREIRA (2000), afirma que no h nenhuma essncia pronta a ser descoberta sobre olugar e que:

    (...) compreender o lugar ser, portanto, compreender tanto a realidadesubjetiva quanto a objetiva, ser colocar-se em algum lugar no meio docaminho entre a viso descentrada do cientista, que v o lugar como umconjunto de relaes genricas, e aquela centrada do sujeito que o v emrelao s preocupaes do indivduo (FERREIRA, 2000, p. 76).

    Integrar perspectivas uma possibilidade que tende a se aproximar mais de toda acomplexidade, na qual estamos imersos e donde pululam questes. Para Entrikin, anecessidade de se calcar na experincia do lugar como encontro da realidade, se tornaenriquecedora quando a avaliao e a busca da compreenso, de forma objetiva, se concretizaa partir do uso das narrativas e discursos pblicos, sendo assim consideradas suas noes deintersubjetividade. Tentando explicitar tal perspectiva, para tratar um fenmeno espacial numdeterminado lugar, necessita-se reunir narrativas e discursos acerca do fenmeno em mira de

    modo a ampliar a compreenso multifacetada daquela realidade. Uma forma de abordarrepresentaes sociais daquele grupo seria por analogia, atravs de uma relao mais amplaentre os discursos e opinies pblicas.

    A integrao de horizontes objetivos para leitura do lugar ou lugar-territrio no pode setornar um meio de generalizao ou reproduo de uma esfera global para o local. Somentena experincia diria podemos inferir ou visualizar os momentos de extrema relao entremundo concebido, percebido e vivido, ou seja, entre as escalas de extrema subjetividade sde extrema objetividade (FERREIRA, 2000, p. 78). Portanto, o lugar figuraria como o encontroscio-espacial das vivncias, sendo os limites e as fronteiras territoriais direcionadoras deintencionalidades nas relaes entre as percepes e na formao das representaes sociais.O conceito de fronteiras deve ser observado neste caso, no como limites visveis ouconcretos, mas como limites socialmente estabelecidos pela legitimao do poder aliestabelecido.

    Souza (1995) promove uma discusso sobre Territrio, utilizando-se de Hannah Arendt paraesclarecer a diferenciao entre poder, conflito e violncia. Para ele, o poder tem sidoentendido como semelhante ao conceito de violncia, embora seja contrrio. A violncia e osconflitos afloram justamente quando h perda de poderes e quando o coletivo no garantemais a legitimidade e manuteno daquelas relaes (SOUZA, 1995, p. 78-81). Nesta via,territrios podem ou no ser re-mapeados, assim como todo o cotidiano das relaes sociaisvo se consolidando refazendo sentidos scio-espaciais que se remodelam no lugar-territrio.

    Diante destas reflexes sobre o lugar-territrio, como uma categoria espacial hbrida,podemos nos aproximar mais da orientao que a realidade vem tomando com a ps-modernidade. As mudanas a partir da ampliao da velocidade da compresso do espaopelo tempo e das fragmentaes, que se apresentam como temas de extrema atualidade einfluncia na dinmica da intersubjetividade e da configurao scio-espacial, se apresentamenquanto componentes de um universo novo de questionamentos presentes. Sendo assim preciso destacar novamente que colocar os questionamentos nas formas dos modelos emtodos engessados deixar suas essncias fragmentadas e no contempladas enquantobusca da compreenso da realidade. A ampliao da compreenso da realidade passa, cadavez mais, pela interrelao de conhecimentos, prticas e mtodos, cujas leituras resultaromuito mais na aproximao dos fenmenos e do real.

    REFERNCIAS

    CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. So Paulo: Hucitec, 1996.

    CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. So Paulo: Paz e Terra, 1999.

    4ENTRIKIN, J. Nicholas. The betweenness of place: towards a Geography of modernity. London: Macmillan, 1991.

  • 7/26/2019 Lugar Territrio

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    O lugar-territrio na complexidade da realidadecontempornea: incurses tericas a partir daintersubjetividade

    Matusalm de Brito Duarte

    Caminhos de Geografia Uberlndia v. 9, n. 26 Jun/2008 p. 185 - 192 Pgina 193

    CLAVAL, Paul. O territrio na transio da ps-modernidade. In: GEOgraphia. Niteri, UFF,ano I, n. 2, 1999. p. 7-26.

    CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais. Trad. Viviane Ribeiro. Florianpolis:

    Edusc, 2002.FERREIRA, Luiz Felipe. Acepes recentes do conceito de lugar e sua importncia para omundo contemporneo. In: Territrio. Rio de Janeiro, UFRJ, ano V, n. 9 (jul/dez), 2000. p. 65-83.

    HAESBAERT, Rogrio. O mito da desterritorializao: do fim dos territrios multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

    MASSEY, Doreen. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, Antnio (Org.). O espao dadiferena. Campinas: Papirus, 2000. p. 176-185.

    SANTOS, Milton. A natureza do espao: tcnica e tempo. Razo e emoo. So Paulo: Edusp,2002.

    SOUZA, Marcelo Jos Lopes de. O territrio: sobre espao e poder, autonomia edesenvolvimento. In: CASTRO, In Elias de. CORRA, Roberto Lobato (et. all). Geografia:conceitos e temas.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 77-116.