LUHMANN, Niklas - Entrevista Realizada No Dia 7.12.1993, Em Recife, PE

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IX Anexo ______________________ Entrevista realizada no dia 7.12.1993, em Recife, PE.

Prof. LUHMANN, com relao sua obra, tem-se que os primeiros trabalhos foram no campo do direito e da administrao. Depois do Sr. desenvolveu uma teoria com aplicao generalizada, envolvendo assuntos que vo desde os direitos fundamentais at o amor, passando pela religio, educao, economia etc. Em sua obra mais recente, o Sr. volta a abordar o Direito. O Sr. poderia reportar-se a essa trajetria intelectual, destacando os momentos diferenciados que ela teria, bem como a uma possvel influncia nela de sua formao jurdica? LUHMANN: De fato, nos anos '60 meu interesse principal se voltou para o campo do direito, da organizao e da reforma do planejamento poltico. Isso se deve ao fato de que eu tenha colhido experincia prtica nessas reas, porque havia na Alemanha, nessa poca, uma procura de consultoria entre socilogos e cientistas para esses assuntos. No fim da dcada 60 o meu interes-se se volta mais para a organizao da sociedade, e ento inicio um trabalho em maior nvel de abstrao, em teoria dos sistemas. Passei a pesquisar algumas reas como religio, educao, histria da Europa e outras, em que no tinha trabalhado antes. Somente a partir dos anos '70 comeo a publicar sobre sistemas sociais. Em meados da dcada de '80 aparece a obra "Sistemas Sociais", que fornece a fundamentao terica para uma seqncia de obras em teoria social. Dai passo a publicar livros que se ocupam dos diversos sistemas funcionais, tais corno, j na dcada em curso, "A Economia da Sociedade", "A Cincia da Sociedade", "O Direito da Sociedade", que saiu este ano, estando previsto para o prximo ano "A Arte da Sociedade". Algum dia, pretendo publicar um livro sabre teoria da sociedade, trazendo uma viso de todo o conjunto, e sistematizando os resultados parciais anteriormente obtidos. As publicaes sabre direito, na verdade, no passam de uma parte dessa teoria da sociedade, na medida em que tratam da descrio de um sistema parcial do sistema social corno um todo. Quando jovem, o Sr. passou pela experincia do nazismo. Em que medida essa experincia de viver sob um regime totalitrio teria influenciado a sua teoria de sistemas, j que ela introduz uma desconfiana bsica na absolutizao dos valores, prpria dos modelos totalitrios. LUHMANN: , realmente, penso que circunstncias biogrficas tiveram uma certa influencia, par exemplo na deciso de estudar direito, o que, por outro lado, no deve ser interpretado coma uma reao apenas as arbitrariedades do regime nazista, mas tambm ao desafio de se romper com ele definitivamente, redemocratizando a sociedade alem, o que j vai acontecer na poca da ocupao da Alemanha pelos aliados, quando eu tinha dezessete anos. De fato, vamos que tudo podia ser diferente, mas no estvamos convencidos de que os novos princpios necessariamente seriam os melhores princpios. No perodo nazista sempre tnhamos esperando - eu, pelo menos, sempre tinha esperado - que, passado o regime ditatorial, voltssemos a adotar um modelo democrtico do tipo ocidental. Porem, quando isso se efetivou, no deixamos de perceber srios problemas, decorrentes, sobretudo, da ciso do mundo em blocos, norte/sul e leste/oeste. Corn certeza, isso deveu-se ao fato de termos depositado excessiva confiana em uma democracia concebida a partir de princpios rgidos. Eu, efetivamente, prefiro uma concepo mais pragmtica, na qual se parte de certos princpios que se vai modificando na medida_______________________________________________________________________________________________ LUHMANN, Niklas. Entrevista realizada no dia 7.12.1993, em Recife, PE. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do direito na sociedade ps-moderna: introduo a uma teoria social sistmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 93-100.

em que se desenvolve o debate entre os partidos. Por exemplo, em determinado momento pode-se privilegiar a dimenso econmica para tomar uma deciso, em outra conjuntura, aquela eco16gica, e assim por diante. Uma tal preferncia, sem duvida, esta determinada par razoes biogrficas, embora seja muito difcil precisar ate que ponto, e explicaes dessa natureza sempre so limitadas. O Sr. J foi agraciado com o premio Hegel. A filosofia idealista alem, onde desempenha um papel central a idia de sistema, pode ser considerada corno um referencial terico maior em sua obra? Ela pode ser vista corno tributaria dessa tradio do pensamento germnico? LUHMANN: Em primeiro lugar, vale lembrar que o premio Hegel no e concedido apenas a filsofos hegelianos, mas sim a quem tenha produzido idias filosoficamente interessantes, sem levar em conta sua filiao a uma Escola qualquer. Em segundo lugar, e comum me considerarem corno fi16sofo, uma vez que opero com conceitos abstratos, de forma, por assim dizer, arquitetnica, pois procuro visualizar a estrutura de uma teoria, e isso no e muito comum na sociologia, com a grande exceo de Talcott Parsons. A filosofia no produziu nenhuma teoria realmente operativa com um contedo social, ao se limitar a abordar temas, sem duvida importantes, corno o da subjetividade, mas que no so suficientes para dar conta da compreenso das sociedades contemporneas. Para tanto, em minha elaborao terica, recorro a uma abordagem interdisciplinar, interessando-me por estudos sobre a comunicao humana, inclusive sobre sua base neurofisiolgica, bem como a ciberntica e, principalmente, a teoria dos sistemas. Eu busco, portanto, que essas abordagens generalistas e transdisciplinares, que ganham cada vez mais vigor e importncia, sejam aplicadas aos estudos da sociedade, partindo da idia bsica de que ela se constitui em um sistema que se diferencia progressivamente do ambiente em que se insere. Professor, o Sr. publicou na dcada de 70 uma obra em colaborao com Jrgen Habermas sobre a crise de legitimao do capitalismo tardio. A partir de ento difundiu-se a idia de que haveria uma polmica fundamental entre o filsofo frankfurtiano e o Sr., sendo a sua posio a de defesa conservadora do "sistema", cabendo a ele a postura crtica e "de esquerda. Recentemente, Habermas publica um tratado de filosofia jurdica e poltica, onde parece renegar seu pensamento anterior, na medida em que a o Estado e o Direito no aparecem mais como meros sistemas em que se atua estrategicamente para "colonizar a dimenso livre e propriamente humana da ao comunicativa, do mundo da vida. Agora se tem na teoria habermasiana uma afirmao do Estado Democrtico de Direito, considerado com requisito necessrio ao desenvolvimento da ao comunicativa em nossa sociedade. Haveria assim uma aproximao maior entre a posio de vocs, com uma vitria de Luhmann no debate com Habermas? LUHMANN: Em primeiro lugar, essa polmica um produto dos meios de comunicao de massa. Originalmente ns tnhamos em mente fazer um livro escrito conjuntamente, para recolocar os termos do "debate sobre o positivismo" (Positivismusstreit), introduzido na sociologia alem por Adorno e Popper. Na verdade, Habermas sempre entendeu que a teoria de sistemas fornece uma descrio adequada do estado de coisas na sociedade, faltando-lhe, porm, um instrumental terico para realizar a transformao dessa sociedade, o qual seria fornecido pela teoria habermasiana. Com relao ltima grande obra publicada por Habermas, "Validade e Facticidade", referida por V., de fato ela introduz modificaes significativas em seu pensamento. Por exemplo, ele agora no fala mais em uma "tica do discurso", mas sim em uma "teoria do discurso", onde ainda utiliza como categoria central aquela do "consenso", em um nvel maior de abstrao. Eu diria que_______________________________________________________________________________________________ LUHMANN, Niklas. Entrevista realizada no dia 7.12.1993, em Recife, PE. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do direito na sociedade ps-moderna: introduo a uma teoria social sistmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 93-100.

Habermas tem um conceito normativo de racionalidade, mas que no h de ser necessariamente entendido como um conceito moral. A moral, como o Direito, um setor em que se levanta pretenses de validade, mas no a nica forma na qual se pode perguntar pela validade de uma conduta e solicitar consenso a esse respeito. Sua posio agora menos "transcendental, no sentido empregado por Kant na "Crtica da Razo Prtica", e mais influenciado pela filosofia da linguagem. Habermas, por assim dizer, tambm deu a "virada lingstica", caracterstica da filosofia contempornea. Agora, com relao sua concepo de democracia, tem-se que ela seria tributria do modelo de democracia participativa, que se afirma na Alemanha a partir dos anos sessenta. Ele defende que aqueles indivduos que venham a ser atingidos por uma deciso poltica devem participar do procedimento para tom-la, o que uma idia utpica, como se percebe considerando apenas o fato banal de que muitos desses indivduos, em certos casos, sequer tero nascido ainda. Introduzindo agora um filsofo da "ps-modernidade", Jean Baudrillard, gostaria de ter um comentrio seu sobre uma idia lanada por ele em palestra proferida recentemente em Florianpolis, segundo a qual no presente momento, em que no acreditamos mais na nossa imortalidade, sob qualquer forma, precisamente quando estaramos tornando-nos imortais, na medida em que a biologia nos concebe como um efeito de processos vitais indestrutveis, pr-inscritos no cdigo gentico. Essa, porm, seria uma imortalidade negativa, j que o homem no morreria mais por j estar morto; no sobrevive-ria morte de Deus e morte do corpo. Chega-se ao ltimo homem e ao fim da histria, como defendera Fukuyama. A teoria dos sistemas autopoiticos, que o Sr. transpe da biologia para o estudo de sistemas sociais, aponta a manuteno e auto-reproduo dos sistemas como uma caracterstica que prpria do sistema, e no de suas partes constitutivas. Tambm se d a substituio em sua teoria da distino entre sujeito e objeto por aquela entre sistema e ambiente. Em ambos os momentos, elimina-se o homem como referncia bsica. Isso permite que consideremos sua teoria sistmica como um fruto tpico da ps-modernidade? LUHMANN: Considero a discusso em torno da modernidade e da ps-modernidade como extremamente infeliz e unilateral. Tudo se passa no plano da semntica, sobre o significado do que seja "ps-modernidade, no descendo ao exame das estruturas sociais. No entanto, se pensarmos sobre como as sociedades modernas se distinguem das sociedades tradicionais, ento os traos dominantes da modernidade continuam presentes nas sociedades atuais, no se verificando nenhuma ruptura com ela e passagem a uma ps-modernidade. Sem dvida, h uma elaborao diversa de certos efeitos, por exemplo no campo do Direito, ou novas formas de financiamento na economia, bem como uma crise do Estado-Nao, que no foram perceptveis no sculo XIX. Isso no impede que consideremos o debate sobre a ps-modernidade como uma mera discusso entre intelectuais, onde cada um no faz mais do que se manifestar sobre o que outro disse. Na teoria que proponho, o indivduo, em sentido estrito, faz parte do ambiente em que esto includos os sistemas sociais, onde circula comunicao, e os sujeitos so a fonte criadora do sentido que essa comunicao veicula. O que no utilizamos o conceito de sujeito desenvolvido at o sculo XVIII alis, nenhum dos conceitos desse perodo enquanto subjectum, como fundamento explicativo de si prprio e de tudo o que h no mundo. Em relao ao sujeito individual, o outro, o diferente, s o confrontado com ele mesmo, no sendo outro nem diferente de si, donde serem basicamente iguais, o eu e o outro. Essa concepo impediu o desenvolvimento de uma teoria da sociedade no sculo XIX, donde a necessidade de a superarmos no sculo XX. Na realidade, eu tambm no posso imaginar nenhuma sociedade sem histria, uma sociedade ps-histrica, mas pode-se naturalmente pensar que a sociedade moderna v o seu futuro diferente-mente da forma como o concebia no sculo XVIII. Temos uma perspectiva menos otimista ou,_______________________________________________________________________________________________ LUHMANN, Niklas. Entrevista realizada no dia 7.12.1993, em Recife, PE. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do direito na sociedade ps-moderna: introduo a uma teoria social sistmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 93-100.

quem sabe at, catastrfica com relao ao futuro, porque os problemas nos diversos sistemas funcionais esto se tornando mais agudos. Por outro lado, a vinculao ao passado, tal como discutida contemporaneamente em teoria da arte, por exemplo, apresenta-se como uma vinculao mais solta. No se exige mais uma recusa do que foi feito no passado para que uma obra se afirme como uma obra nova e original, ou cultivar uma dissidncia da autoridade firmada no passado. Verifica-se uma indiferena em relao a isso, juntamente com a percepo de que se herda do passado um grande reservatrio de formas de expresso que sempre podem ser recombinadas. Gira em torno dessa modificao na perspectiva temporal da descrio da sociedade a discusso entre as "vanguardas histricas", como agora so chamadas, e a "ps-modernidade", partindo da percepo de que houve um desacoplamento do passado, bem como de uma incerteza e uma conscincia do risco, com vistas ao futuro. Parece-me que essa perspectiva temporal , por um lado, o elo de ligao entre a realidade e os sistemas funcionais, e, por outro lado, a matriz para uma descrio adequada da sociedade moderna. O que me ressinto, como cientista social, nas discusses sobre a ps-modernidade, de uma considerao dos problemas realmente existentes na economia, na educao ou mesmo nas relaes interpessoais. Em todas essas reas temos hoje em dia uma conscincia mais aguada, ao passo que Baudrillard e, de certa forma, tambm Lyotard, se mostram muito genricos e apressados em seus julgamentos. Essa pode ser vista como uma caracterstica tpica dos franceses. Eles so inteligentes, formulam bem suas idias, mas no so muito bem informados. Professor, para finalizar, poderia nos dar sua impresso sobre nosso Pas? LUHMANN: Bem, claro que aqui s posso dar uma opinio superficial, por no ser estudioso da sociedade brasileira. Essa, porm, no a primeira vez que venho ao Pas, e notei, por exemplo, na linguagem utilizada na imprensa, palavras mais carregadas de indignao, menos "cordiais", denunciando fatos como a corrupo, o que interpreto como um desenvolvimento benfico, no sentido de se firmar no Pas o respeito a pautas objetivas de conduta. Nos termos da teoria de sistemas, diria que est se tornando mais importante no Brasil a observncia do cdigo lcito/ilcito (Recht/Unrecht), essencial para que o Direito seja autopoitico, isto , desempenhe sua funo social atendendo a critrios estabelecidos por ele mesmo, e no, por outros sistemas funcionais, como o econmico ou o poltico.

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