Luís MedeirosO Dr. Luís Medeiros é Assistente Graduado de Anestesiologia do Cen-tro Regional de...

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Opióides Autor: Luís Medeiros Opióides. Luís Medeiros Biblioteca da Dor. Coordenador: José Manuel Caseiro A Biblioteca da Dor é uma iniciativa editorial que se propõe contribuir para um maior esclarecimento de todas as questões que a problemática da dor coloca, não apenas aos profissionais mais directamente envolvidos na sua abordagem como também àqueles que por algum motivo se possam interessar pelo assunto. A escassez de publicações, em língua portuguesa, sobre este tema, não tem servido os propósitos de divulgação e de formação que todos os profissionais da área têm reclamado, muito especialmente apresentando características de publicação regular, com formato de fácil transporte e abordando as mais diferentes matérias relacionadas com ele. O desafio que agora se lança, é precisamente o de provar que não faltam no nosso país autores de qualidade e com experiência suficiente para garantirem a qualidade desta obra, bem como patrocinadores que vejam nela o mesmo interesse que os profissionais e se sintam compensados pelo apoio que vierem a prestar. Nos vários volumes que ao longo do tempo vierem a ser publicados, poderão ser encontradas respostas para as várias razões do inadequado tratamento da dor, para o desinteresse que tem caracterizado a falta de apoio ao aparecimento de novas Unidades e ao desenvolvimento das existentes, para as insuficiências de preparação de muitos dos profissionais que lidam com ela e até para alguns dos mitos e preconceitos que caracterizam a forma como a sociedade encara o problema e as respectivas soluções terapêuticas, principalmente o uso de opióides. Na Biblioteca da Dor, o rigor será uma exigência e a utilidade um objectivo. Biblioteca da Coordenador: Dr. José Manuel Caseiro

Transcript of Luís MedeirosO Dr. Luís Medeiros é Assistente Graduado de Anestesiologia do Cen-tro Regional de...

  • Opióides

    Autor:Luís Medeiros

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    eiroA Biblioteca da Dor é uma iniciativa editorial que se propõe contribuir para um

    maior esclarecimento de todas as questões que a problemática da dor coloca, não apenas aos profissionais mais directamente envolvidos na sua abordagem como também àqueles que por algum motivo se possam interessar pelo assunto.

    A escassez de publicações, em língua portuguesa, sobre este tema, não tem servido os propósitos de divulgação e de formação que todos os profissionais da área têm reclamado, muito especialmente apresentando características de publicação regular, com formato de fácil transporte e abordando as mais diferentes matérias relacionadas com ele.

    O desafio que agora se lança, é precisamente o de provar que não faltam no nosso país autores de qualidade e com experiência suficiente para garantirem a qualidade desta obra, bem como patrocinadores que vejam nela o mesmo interesse que os profissionais e se sintam compensados pelo apoio que vierem a prestar.

    Nos vários volumes que ao longo do tempo vierem a ser publicados, poderão ser encontradas respostas para as várias razões do inadequado tratamento da dor, para o desinteresse que tem caracterizado a falta de apoio ao aparecimento de novas Unidades e ao desenvolvimento das existentes, para as insuficiências de preparação de muitos dos profissionais que lidam com ela e até para alguns dos mitos e preconceitos que caracterizam a forma como a sociedade encara o problema e as respectivas soluções terapêuticas, principalmente o uso de opióides.

    Na Biblioteca da Dor, o rigor será uma exigência e a utilidade um objectivo.

    B i b l i o t e c a d a

    Coordenador: Dr. José Manuel Caseiro

  • O Dr. Luís Medeiros é Assistente Graduado de Anestesiologia do Cen-tro Regional de Oncologia de Lisboa do Instituto Português de Oncolo-gia de Francisco Gentil, S.A., onde também representa o seu Serviço na Comissão Técnica do Bloco Ope-ratório e na Comissão de Higiene e Segurança.

    Desde sempre interessado e mui-to empenhado pelas questões re-lacionadas com a terapêutica da dor aguda do pós-operatório, no-meadamente no que diz respeito ao uso dos analgésicos opióides e à preocupação em combater a sua incompreensível subprescrição na dor cirúrgica, foi dos primeiros clínicos a administrar, no nosso País, o remifentanil, apresentando resultados e colaborando na divul-gação da melhor forma de ser utilizado, tendo sido o responsável pela sua adopção, no IPOFG-CROL SA, como analgésico intra-opera-tório de rotina na técnica de anes-tesia endovenosa.

    Tem-se também destacado como um dos mais influentes e activos participantes na discussão e ela-boração dos protocolos analgési-cos da Unidade de Dor Aguda do seu Hospital, das técnicas analgési-cas que a eles dizem respeito – des-de a PCA à via epidural ou às mais convencionais técnicas de analge-sia – bem como das metodologias de avaliação implementadas no âmbito dessa organização.

    Pautando sempre a sua actua-ção por um interesse diversifica-do em relação à Anestesiologia, publicou vários trabalhos e parti-cipou na organização de eventos no âmbito da sua especialidade e da oncologia, participou em pro-gramas de investigação como o da «Perfusão com Melphalan e Hipertermia do Melanoma das Extremidades», colaborou no INEM entre 1991 e 1996 e viu-lhe ser

    Títulos já publicados na Biblioteca da DOR:

    Fisiopatologia da Dor José Manuel Castro Lopes

    Analgesia em Obstetrícia José António Bismark

    A Segunda Navegação. Aspectos Clínicos da Ética na Dor Oncológica Manuel Silvério Marques

    Dor Neuropática Maria da Luz Quintal

    A Organização da Analgesia do Pós-Operatório José Manuel Caseiro

    Outros títulos a publicar na Biblioteca da DOR:

    Técnicas de Intervenção no Tratamento da Dor Dr. F. Duarte Correia Multidisciplinaridade e Organização das Unidades de Dor Crónica Dr. Zeferino Bastos Cefaleias Dr. Arantes Gonçalves

    reconhecida pela Ordem dos Mé-dicos a Competência em Emer-gência Médica foi, entre Março de 1997 e Outubro de 1998, um dos Editores Executivos da Revista CAR e tem dedicado, nos últimos anos, um grande empenho às téc-nicas anestésicas e de sedação para a execução de exames en-doscópicos diagnósticos e tera-pêuticos.

    Esta publicação sobre «Opiói-des» corresponde, assim, ao culmi-nar de uma intensa e meritória actividade clínica e científica.

  • Opióides

    Luís MedeirosAssistente Graduado de Anestesiología

    Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil Centro Regional Oncológico de Lisboa, SA

  • © 2005 Permanyer PortugalAv. Duque d’Ávila, 92, 7.º E - 1050-084 LisboaTel.: 21 315 60 81 Fax: 21 330 42 96E-mail: [email protected]

    ISBN de colecção: 972-733-133-5ISBN: 972-733-176-9Dep. B- 8.787/2005Ref.: 468AP041

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    Prefácio

    Nada falta dizer sobre os opióides, excepto que, mais de 200 anos de-pois de ter sido sintetizada a morfina, por Sertürner, ela própria conti-nua a ser central na terapêutica da dor intensa, seja oncológica ou não, crónica ou aguda, traumática ou do foro pós-operatório.

    Com a morfina, vieram todos os outros opióides que entretanto se sintetizaram e que, juntos, continuam a constituir o mais poderoso grupo farmacológico no combate à dor.

    Poder-se-á dizer que uma nova era na investigação dos analgésicos opióides começou com a identificação, há 25 anos, dos receptores opiói-des e dos ligandos endógenos, representando os alvos de três famí-lias de péptidos opióides – as beta-endorfinas, as encefalinas e as di-norfinas – profundamente distribuídos em todo o nosso organismo, desde o sistema nervoso central ao periférico e envolvendo múltiplos outros órgãos e funções neuronais e extra neuronais.

    O certo é que, na actualidade, não há procedimento anestésico ou analgésico major que não tenha que incluí-los na abordagem terapêu-tica dos doentes, não deixando de ser estranho que, chegados ao ponto em que estamos, persistam na comunidade preconceitos para com a sua utilização e mitos ligados ao seu consumo terapêutico.

    Não se torna fácil explicar porque é que a própria classe médica se deixou envolver por estes enviesados juízos, tanto mais que as preten-sas razões de segurança e de habituação estão hoje sobejamente com-preendidas, e sobram meios para as contornar e/ou evitar, principal-mente num ambiente hospitalar.

    Infelizmente, os números não enganam e a subutilização dos opiói-des é um fenómeno mundial, embora mais claro e evidente nos países de menor desenvolvimento. Portugal não foge à regra.

    Se a informação e o conhecimento em torno destes fármacos con-tinuam a constituir a pedra basilar para que se ultrapassem os mais infundados receios, então, não deverá haver fadiga que de nós se apo-dere para esse combate e o assunto deverá continuar a ser escolhido, incessantemente, em todos os fora de divulgação ou discussão, bem

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    com nas publicações que se dediquem à abordagem da dor em qualquer uma das suas vertentes.

    Optámos, por isso mesmo, em eleger os opióides como título de mais um dos volumes da Biblioteca da Dor que, firmemente, continua a percorrer todos os aspectos de interesse e de utilidade para os pro-fissionais que se dedicam à dor ou que com ela se preocupam.

    Como autor convidado, pareceu-nos importante que pudesse ser um anestesiologista, já que a familiarização que esses especialistas têm com estes fármacos é grande e sistemática, muito mais tratando-se do Dr. Luís Medeiros, assistente graduado do IPOFG-CROL SA, um profis-sional experiente e interessado no tema, com a sensibilidade própria de quem vive numa instituição oncológica e com o treino de testar em várias frentes os mais variados opióides, como foi o caso, nos últimos anos, do remifentanil, a que dedicou muitas horas de trabalho e de divulgação junto de outros colegas.

    José Manuel Caseiro

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    Índice

    Apontamentos históricos ..................................................... 7

    Farmacologia .......................................................................... 15

    Receptores opióides ......................................................... 15

    Caracterização de alguns opióides ................................... 19

    Utilização clínica ................................................................... 25

    Vias de administração ...................................................... 25

    Efeitos adversos dos opióides ........................................ 36

    Tolerância e dependência física ..................................... 41

    Conclusão ................................................................................ 43

    Bibliografia .............................................................................. 45

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    Apontamentos históricos

    Ópio, opiáceos, opióides, morfina e outros, são diversos nomes com algumas particularidades, que servem para identificar um grupo de substâncias que induzem efeitos farmacológicos muito próprios.

    Denomina-se opiáceo um composto contendo a estrutura base da morfina ou tebaína, possuindo alguma afinidade com um ou todos os subtipos de receptores dos opióides. Alguns exemplos: heroína, bupre-norfina e naltrexona. Opióide é qualquer composto, péptido ou outro, que não possuindo a estrutura base da morfina (Fig. 1) ou tebaína, tem alguma afinidade com algum ou todos os subtipos de receptores dos opióides. Exemplos: endorfinas, fentanil e metadona.

    O termo ópio é utilizado como o nome de um extracto do exsudado deri-vado das sementes de uma papoila (Papaver somniferum) (Fig. 2). Existem registos de que esta papoila era cultivada nas antigas civilizações da Pérsia, Egipto e Mesopotâmia. Há também evidências que sugerem que o Homem do Neandertal já a usava há 30.000 anos. No livro Odisseia de Homero, é referi-do que esta substância era utilizada essencialmente para melhorar estados psicológicos de depressão. Também em várias civilizações do Extremo Orien-te, esta planta era empregue nos funerais. É por estas e outras razões que a denominação «planta da alegria» ainda permanece nos nossos dias.

    HO

    N––CH3

    O

    Morfina

    OH

    Figura 1.

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    Na Grécia Clássica, o extracto de ópio era descrito por Galeno (Fig. 3) como tendo as seguintes propriedades: «(…) resiste ao veneno e às pica-das venenosas, cura cefaleias crónicas, vertigens, surdez, epilepsia, apo-plexia, perturbações da visão, perda de voz, asma, todo o tipo de tosses, perdas de sangue, dificuldade respiratória, cólicas, icterícia, dor do baço, queixas urinárias, febre, (…), melancolia e todas as pestilências».

    Se este rol de «atributos» foi posteriormente considerado algo exa-gerado, não há dúvida de que as suas qualidades, consideradas de ori-gem divina, granjearam muitos nomes elogiosos, tais como: Leite do Paraíso, a Mão de Deus, entre outros.

    Figura 2.

    Figura 3.

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    Um avanço significativo no processamento do ópio, ocorreu no séc. XVI, quando Paracelsus (Philippus Aureolus Theophrastus von Hohe-nheim, 1490-1541) (Fig. 4) descobriu que os alcalóides do ópio eram muito menos solúveis em água do que em álcool. Fez assim, um novo preparado a que chamou laudanum, (solução de ópio com brandy à qual adicionou outros ingredientes), que na verdade era tintura de morfina. Este laudanum parecia exacerbar todas as propriedades do ópio, tornan-do-o ainda mais eficaz, ao que não era alheio a junção do efeito do álco-ol etílico. Mais tarde, Thomas Sydenham vai padronizar a fórmula do laudanum.

    Nesta onda de entusiasmo, Robert Burton (1577-1640) autor de Ana-tomia da Melancolia, passa a prescrever para as insónias laudanum. É com esta mentalidade que o ópio adquire estatuto do primeiro autên-tico antidepressivo. Apesar de já existirem nesta altura analgésicos com algum efeito (éter ou barbitúricos), o ópio apresenta como vantagens a não perturbação da percepção sensorial, do intelecto ou da coorde-nação motora. Para além destas características, em baixas dosagens o ópio apresenta propriedades estimulantes. É por isso que no Oriente

    Figura 4.

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    ainda hoje é usado como uma droga social, do qual são um exemplo paradigmático os «fumadores de ópio».

    Também em Inglaterra no séc. XIX, o laudanum é vendido livremen-te nas farmácias, devido às suas propriedades estimulantes. Como con-sequência desta «moda», a importação inglesa de ópio cresceu assusta-doramente de 91.000 libras para 280.000 libras entre 1830 e 1860. Este consumo desenfreado conduziu à proliferação de crianças «ópio-depen-dentes», uma vez que eram amamentadas por mães cujo leite era rico em ópio. Também os preparados à base de ópio eram dados às crianças, que assim se mantinham felizes e dóceis (Fig. 5).

    O ópio era visto como um medicamento, não como uma droga de abuso, provavelmente porque a maioria dos médicos que se dedicavam à sua investigação eram também dedicados consumidores, o que lhes facultava a possibilidade de julgarem os efeitos do ópio de uma forma mais colorida. Nesta onda de euforia pelo ópio, muitos escritores céle-bres, tais como Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), Thomas de Quin-cey (1785-1859), Charles Baudelaire (1821-1867), William Blair e outros, descrevem de forma elogiosa os seus efeitos estimulantes.

    Figura 5.

  • 11

    O poder do ópio estendeu-se de tal forma que originou duas guerras intituladas «Guerras do Ópio» (Fig. 6). A primeira (1839-1842) teve como causa directa a proibição pela corte imperial chinesa do consumo de ópio pelo povo, facto que não foi acatado pelos ingleses, que continuaram a vender ópio em grandes quantidades aos chineses. Como consequência, Tao Kwang mandou confiscar 20.000 barris de ópio aos ingleses, o que motivou uma retaliação através do ataque ao porto da cidade de Cantão. Em 1842, com a assinatura do Tratado de Nanjing, os chineses saíram derrotados, tendo não só que permitir o comércio livre de ópio na China, como também pagar uma indemnização elevada, a abertura de cinco novos portos maríti-mos para comércio estrangeiro e a cedência de Hong Kong à coroa britânica. A paz não durou muito tempo e a Segunda Guerra do Ópio termi-na em 1856 com nova derrota chinesa. O Tratado de Tientsin (1858), legaliza finalmente a importação de ópio pela China. Como consequência, no final do séc. XIX, um quarto da população chinesa era «ópio-dependente»!…

    Até ao séc. XIX, o único opióide usado em medicina, ou para efeitos recreativos, era o ópio, que é um cocktail químico complexo que con-tém açúcares, proteínas, gorduras, água, ácido mecónico, planta da cera, látex, goma, amoníaco, ácido láctico e sulfúrico e vários alcalóides principalmente a morfina (10-15%), codeína (1-3%), noscapina (4-8%), papaverina (1-3%) e tebaína (1-2%), Todas as últimas substâncias, com excepção da tebaína são usados em Medicina como analgésicos. Estes opióides são de inestimável valor devido à sua capacidade de reduzir e/ou abolir a dor sem causar perda de consciência. Também aliviam a tosse, os espasmos, a febre e a diarreia.

    Em 1805, pela primeira vez a morfina foi isolada do ópio pelo far-macêutico alemão Wilhelm Sertürner (1783-1841) (Fig. 7), que lhe cha-mou Principium Somniferum. Mais tarde adoptou o nome de morfina

    Figura 6.

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    em honra do deus grego dos sonhos, Morpheus. Actualmente, a morfina é isolada do ópio em grandes quantidades. No mercado ilegal, o ópio é transformado em heroína.

    Desde há muito tempo, os médicos tentam administrar fármacos sem os ingerir. A administração oral do ópio, pode causar efeitos gástricos desagradáveis. O desenvolvimento de seringas hipodérmicas, na segunda metade do séc. XIX, veio revolucionar a administração dos opióides ao permitir a injecção de morfina pura. Rapidamente a injecção de morfina, passou a ser moda da alta sociedade americana. Também na Guerra Civil Americana a morfina foi usada maciçamente pelos soldados feridos. No fim do séc. XIX, na América, os opióides eram baratos, legais e abundan-tes. Além disso, desconheciam-se os efeitos tóxico-dependentes da mor-fina. Esta euforia «morfínica» atingiu inclusivamente os livros médicos, que elogiavam as suas propriedades de «exaltação das melhores qualida-des mentais».

    Este optimismo precoce, rapidamente deu lugar à constatação das propriedades de dependência associadas à morfina, nomeadamente em relação às mulheres.

    Nas décadas de 1850 e 1860, dezenas de milhares de chineses emigraram para os EUA, e trabalharam na construção das linhas de caminho de ferro e nas minas da Califórnia. Trouxeram consigo o hábito de fumarem ópio, o que lhes permitiu suportar as condi-ções desumanas de trabalho (Fig. 8). No entanto, a discussão médi-ca em redor destas condições de vida e da influência social perni-

    Figura 7.

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    ciosa do hábito de fumar ópio, vai marcar decisivamente a viragem na utilização do ópio.

    Inicia-se então a investigação no sentido de sintetizar um novo fár-maco semelhante ao ópio e à morfina, mas sem os efeitos de dependên-cia. É assim que o farmacêutico inglês C. R. Alder Wright (1844-1894) produz a diacetilmorfina (heroína), que mais tarde é comercializada pelo gigante farmacêutico alemão Bayer. Em 1914, a heroína é proi-bida nos Estados Unidos da América.

    Durante todo o séc. XX, o comércio ilícito de opióides sofreu incre-mentos e reduções várias, que acompanharam as grandes revoluções sociais e as guerras que, na maioria das vezes, se lhes associaram. No entanto, no terminar deste século, o mercado do ópio tem vindo a crescer sem qualquer aparente restrição. Nunca como nesta altura o consumo de heroína atingiu valores tão elevados, o que conduziu ao recrudescimento de algumas zonas de produção bem como ao apareci-mento de novas zonas. A este facto não é alheio a recorrência na China do padrão de consumo existente no século XVIII.

    E assim, os opióides chegam aos nossos dias com todas as qualida-des e defeitos que lhes conhecemos. São ainda hoje fármacos de refe-rência na analgesia dos doentes, mantendo-se ainda algum mistério em redor dos seus mecanismos de acção.

    São sem dúvida dos fármacos mais exaustivamente estudados e que mantêm socialmente alguma conotação negativa associada à dependên-cia e ao consumo compulsivo de estupefacientes.

    Figura 8.

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    Farmacologia

    Receptores opióides

    A estrutura rígida e as necessidades estereoquímicas, essenciais para as acções analgésicas da morfina e restantes opióides, levaram ao desenvolvimento do conceito de receptor específico. Os opióides mimetizam a acção dos péptidos endógenos conhecidos como ence-falinas, endorfinas e dinorfinas. A existência de mais do que um receptor opióide, foi equacionada perante a acção dual do opióide sintético, nalorfina, que tendo propriedades analgésicas intrínsecas, antagoniza o efeito analgésico da morfina. A estes receptores res-ponsáveis pela actividade analgésica da nalorfina, foi atribuído o nome de receptores κ, que são diferentes dos receptores da morfina. Os receptores δ foram identificados como corolário de estudos en-volvendo opióides endógenos e a naloxona, antagonista opióide. Finalmente, a evidência de outros tipos de receptores (µ e σ), resul-tou do estudo dos diferentes perfis farmacológicos de vários agonis-tas da morfina1.

    Está actualmente estabelecido, após estudos de numerosos labora-tórios nos últimos 20 anos, que há 3 tipos de receptores «clássicos»: δ, κ e µ1. Em 1996, o comité de nomenclatura do IUPHAR (International Union of Pharmacology) renomeou estes receptores, como OP1, OP2 e OP3, respectivamente

    2. Devido à grande controvérsia estabelecida, uma nova nomenclatura foi posteriormente aprovada pelo IUPHAR: MOP (mu, ou receptores µ), KOP (kappa ou receptores κ) e DOP (delta ou receptores δ)3.

    Os receptores opióides são acoplados a proteínas-G inibitórias. A interacção do opióide com o receptor, inibe a adenilciclase, activa os canais de potássio, fecha canais de cálcio ou produz ambos os efeitos. Os receptores µ e δ, podem coexistir na mesma célula e actuam nos canais de potássio. Os receptores κ, actuam nos canais de cálcio4. Há evidência farmacológica de que existem diversos subtipos de recep-tores e ainda novos receptores ainda mal caracterizados: ε, λ, ι, e ζ5. O receptor σ, contudo, não é considerado actualmente como um recep-tor opióide1.

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    Para além destes receptores «clássicos», há ainda a referir um novo receptor de actividade pouco conhecida, chamado «receptor órfão» (ORL1, «nociceptina» ou «orfanina FQ»). Apesar da sua base estrutural semelhante aos restantes receptores, a sua actividade farmacológica mantém-se pouco evidente1.

    Os opióides exógenos actuam na dor ligando-se de forma selectiva aos diferentes receptores. É da interacção e da forma de ligação a estes diversos receptores que resulta a actividade analgésica dos opióides6.

    O sistema µ tem maior número de receptores no córtex cerebral, no tálamo e na substância cinzenta peri-aquedutal, sendo raros na medula espinhal. Tem essencialmente um efeito analgésico na dor aguda e crónica, embora possa desencadear outros efeitos, tais como: euforia, dependência física, depressão respiratória, hipotermia, bradicárdia e miose. Os receptores δ têm uma distribuição difusa no córtex cerebral, hipocampo, amígdala e no tubérculo olfactivo (sistema límbico). Pare-cem ser os locais preferenciais para a ligação das encefalinas, substân-cias que quando bloqueada a sua degradação induzem analgesia. Outros efeitos passíveis de serem obtidos: euforia, efeitos autonómicos e efei-tos relacionados com a vertente afectivo-motivacional do sistema noci-ceptivo. O sistema κ tem a maior concentração de receptores na medu-la espinhal, tálamo, hipotálamo e córtex cerebral7. Tem uma acção pouco clara, parecendo no entanto estabelecer uma actividade de base sobre a qual actuam os receptores µ e δ4. No entanto a analgesia que induzem é de origem espinhal. Produzem também sedação5,7. Esta anal-gesia parece ser mais importante nos estados de dor crónica8.

    Estes conhecimentos sobre os receptores permitiram o desenvolvi-mento e a síntese de substâncias opióides com comportamentos tão diferentes como por exemplo a mortina, agonista µ e κ (analgésico que melhorou radicalmente o tratamento da dor e fármaco padrão dos opióides) e a naloxona, antagonista, que se liga aos receptores µ e κ bloqueando o sistema e não permitindo sua activação. Existem também agonistas-antagonistas, como por exemplo a pentazocina, que se liga aos receptores µ e κ, actuando como antagonista dos receptores µ e como agonista dos receptores κ5,9.

    Em relação aos opióides mais conhecidos, o seu modo de actuação no que se refere aos receptores mais estudados é a representada na tabela 1.

    Podemos pois concluir que é da capacidade de ligação a determina-dos receptores e da actividade intrínseca entre o opióide e os diferentes receptores que emergirão as características que farão do opióide um fármaco a ter em conta (ou não) no arsenal terapêutico (Tabela 2).

  • 17

    No entanto, a actividade dos opióides no organismo, manifesta-se por efeitos mais ou menos padronizados, conforme as regiões do corpo: Sistema NC, aumentam a actividade do sistema modulador descenden-te, diminuem a resposta neuroendócrino-metabólica (sistema límbico e hipotálamo) e alteram a resposta cognitiva e emocional da dor (sistema límbico e córtex), medula, diminuem a transmissão mediada pela subs-tância P das fibras C para o 2.º neurónio, bloqueiam a somação de potenciais excitatórios pós-sinápticos, previnem a expansão do campo receptivo a nível do corno posterior da medula e evitam a expressão de proto-oncogenes (c-fos, c-jun), periferia, diminuem os péptidos mediadores (bradiquinina, substância P), diminuem o edema e dimi-nuem a hiperalgesia induzida pelas prostaglandinas.

    Tabela 2. Classificação dos receptores opióides e efeitos clínicos

    Mµ1 Mµ2 Kappa1 Kappa2 Kappa3 Delta

    − Analgesia − Analgesia − Analgesia − Baixo − Analgesia − Modulação supra- espinhal espinhal potencial supra- da actividade espinhal − Depressão − Diurese para abuso espinhal do receptor µ− Miose respiratória − Sedação − Analgesia − Constipação − Miose supra- − Prurido espinhal − Náuseas − Vómitos − Bradicárdia − Dependência física − Euforia

    Tabela 1.

    Receptores

    mu (MOP) kappa (KOP) delta (DOP)

    Morfina Agonista Agonista Não actuaBuprenorfina Agonista parcial Não actua Não actuaPentazocina Antagonista Agonista parcial AgonistaNaloxona Antagonista Antagonista Antagonista

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    Caracterização de alguns opióides

    Todos os opióides são absorvidos na mucosa gastrointestinal, mucosa nasal e pulmão, por via transdérmica, subcutânea, intramuscular, intra-venosa e espinhal. A concentração nos tecidos depende do seu grau de perfusão, sendo máxima no fígado, rim, pulmão e cérebro. Passam de uma forma limitada a barreira hemato-encefálica dependendo para tal da sua lipossolubilidade. É este coeficiente de solubilidade lipídica, que está directamente relacionado com o tempo decorrido entre a adminis-tração do fármaco e o efeito clínico (ex.: quando se administra morfina por via endovenosa, o pico de efeito analgésico é observado 15 a 30 min. após a administração, enquanto o pico de efeito analgésico do fentanil é de aproximadamente 5 a 6 min.; esta discrepância reflecte a dificul-dade que a morfina apresenta para atravessar a barreira hemato-ence-fálica. Atravessam a barreira placentária alcançando a circulação fetal. São genericamente metabolizados no fígado por glucoronidação. São excretados por via renal. Cerca de 7 a 10% são excretados nas fezes. A farmacodinâmica dos opióides é marcada pelo facto de ser diferente em cada indivíduo a concentração plasmática e no sistema nervoso central, para igual dose administrada. Este facto reflecte-se no diferen-te efeito analgésico produzido em cada paciente, ou seja, é variável em cada doente a «concentração analgésica mínima eficaz» (CAME) (Fig. 9). Assim, enquanto não se alcança a concentração plasmática ideal para um doente, a variação da intensidade da dor é mínima. Pelo contrário, depois de alcançar o CAME, pequenas variações na concen-tração plasmática do opióide, ocasionam modificações significativas

    Complicações

    Dor

    Analgésico

    Conc. Analg. Mínima Eficaz(CAME)

    Corredor analgésico

    Figura 9.

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    na redução da intensidade da dor («janela terapêutica» dos opióides). A «janela terapêutica» dos opióides é reduzida, pelo que para obter um controlo óptimo da dor com efeitos adversos mínimos, devem manter-se concentrações plasmáticas ligeiramente superiores à CAME espe-cífica de cada doente. Por estas razões, é necessário personalizar a dose de opióide a administrar em cada doente de acordo com a res-posta analgésica obtida. É fundamental que as concentrações plasmá-ticas dos opióides sejam estáveis, evitando o aparecimento de varia-ções bruscas, o que a acontecer, predispõe ao aparecimento de efeitos secundários (com concentrações elevadas), e de dor (com concentra-ções subterapêuticas).

    Os opióides com uso na clínica podem ser divididos em quatro grupos: os agonistas totais dos receptores µ, os agonistas parciais dos receptores µ, os agonistas-antagonistas mistos e os antagonis-tas puros dos receptores µ7.

    O fármaco padrão dos opióides é a morfina, uma vez que é o mais bem caracterizado farmacodinamicamente e farmacocineticamente. É também um fármaco de baixo custo económico. Será em relação a esta substância, que serão descritas algumas características farmacoló-gicas dos opióides.

    A morfina tem uma semi-vida de eliminação do plasma de 2 a 3,5 horas, e uma duração analgésica de 4 a 6 horas, pelo que o efeito cumulativo é pequeno se não for administrada com intervalos de tempo inferiores a 4 horas10. Induz analgesia reduzindo a libertação pré-sinápti-ca do neurotransmissor e hiperpolarizando os neurónios do corno dorsal a nível pós-sináptico, evitando assim a transmissão da nocicepção11.

    É metabolizada através de um processo chamado glucoronidação rea-lizada no fígado por um enzima intitulado uridina-difosfato-glucuronosil-transferase (UGT)12. Os principais metabolitos são, a morfina-6-gluco-ronido (M6G) e a morfina-3-glucoronido (M3G), que são eliminados pelo rim. O primeiro é um potente analgésico com grande afinidade para os receptores da morfina e com efeitos duradouros. Com uma administração regular de morfina, os produtos metabólicos acumulam-se resultando num reforço da analgesia. Essa é a razão pela qual uma dose única de morfina por via oral pode não ter um efeito analgésico suficiente, enquanto doses regulares resultam numa analgesia satisfa-tória. A M3G, inicialmente considerada como um metabolito inactivo, tem uma muito baixa afinidade para os receptores da morfina, e em estudos animais verificou-se que pode ter uma acção antagonista do efeito analgésico da morfina e do M6G (efeito paradoxal). Este meta-bolito parece estar relacionado com certos sintomas neurotóxicos, tais

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    como a hiperalgesia, a alodínia e a mioclonia13,14. Com a administração repetida, a sua fármacocinética mantém-se linear, pelo que é um fárma-co relativamente seguro, se exceptuarmos os doentes com idade supe-rior aos 50 anos e principalmente com insuficiência renal. Parece que a insuficiência renal afecta mais a farmacocinética da morfina do que a cirrose hepática10,15-17.

    A morfina é essencialmente utilizada para analgesia de dores visce-rais e tegumentares, exercendo maior poder analgésico se for adminis-trada antes da instalação da dor. Outro efeito explorado clinicamente é a redução da ansiedade, que se deve não só pela analgesia que induz, mas também devido a um efeito directo central. A depressão respirató-ria pode ser observável mesmo quando se administram doses subanal-gésicas de morfina. Resulta de um efeito directo sobre o centro respi-ratório que se torna menos sensível à estimulação fisiológica da PaCO2. Estabelece-se rapidamente (5 a 7 minutos), após a administração endo-venosa de morfina. Por via intramuscular ou subcutânea demora cerca de 25 a 35 minutos a aparecer. A administração de morfina por via epi-dural, pode conduzir a depressão respiratória ao fim de várias horas7.

    Os opióides com características semelhantes à morfina são con-siderados na categoria dos agonistas totais dos receptores µ (ex.: codeína, meperidina, metadona, fentanil, tramadol). A sua actividade analgésica, não é limitada por um «efeito de tecto». Não revertem ou antagonizam os efeitos de outros agonistas administrados simultanea-mente10. São também caracterizados por produzirem depressão respi-ratória, euforia, diminuição da motilidade gástrica, prurido, náuseas, depressão do reflexo da tosse e retenção urinária. Nas doses adminis-tradas na clínica não produzem grande depressão do estado de consci-ência16. A meperidina, actua como agonista dos receptores µ, δ e κ. É absorvida por todas as vias com uma biodisponibilidade oral de 45 a 75%. É metabolizada no fígado, originando a normeperidina, metabolito com elevado poder convulsivante. Estes quadros convulsivantes ini-ciam-se por alterações subtis do humor, seguidos de tremores e mio-clonias multifocais e por fim convulsões. O aparecimento desta hiper-excitabilidade do sistema nervoso central é mais frequente em insuficientes renais, embora possa aparecer em doentes sem insufici-ência renal e que estão medicados com meperidina há vários dias18. Tem efeitos clínicos semelhantes à morfina, tendo no entanto menor efeito depressor na motilidade gastrointestinal e produz, ao contrário da mor-fina, taquicárdia e midríase. A metadona é bem absorvida por via oral e é ligeiramente mais potente que a morfina. Produz dependência física cruzada com a morfina, mas apresenta sintomas de privação menos intensos e de instalação mais lenta do que os da heroína18. Este facto,

  • 22

    está de acordo com sua longa semi-vida de eliminação (cerca de 24 ho-ras). A duração do seu efeito analgésico é de 4 a 8 horas, pelo que o seu uso com este fim é muito limitado, sendo a sua indicação principal no tratamento da dependência à heroína7,19. Doses analgésicas repetidas de metadona podem conduzir à acumulação do fármaco devido a esta discrepância entre semi-vida plasmática e duração da analgesia. Como consequência, podem-se desenvolver quadros de sedação, confusão e mesmo morte em doentes não monitorizados20. O fentanil é um opiói-de 100 vezes mais potente que a morfina e é usado essencialmente por via endovenosa. Caracteriza-se por um início de acção muito rápido (cerca de 3 minutos por via endovenosa) e uma duração analgésica de cerca de 30-45 minutos, pelo que tem como principal indicação a sua utiliza-ção no intra-operatório. Não liberta histamina (ao contrário da morfi-na), e em altas doses ou em administrações rápidas, provoca rigidez da musculatura esquelética, que pode ser tão intensa que dificulta a ventilação mecânica7. O remifentanil é o mais recente analgésico do grupo do fentanil. Caracteriza-se por ser metabolizado muito rapida-mente pelas colinesterases não específicas dos tecidos (essencialmen-te glóbulos vermelhos e células musculares), e consequentemente ser independente dos órgãos excretores, por não ter metabolitos activos e por ausência de acumulação após perfusões prolongadas. Tem indi-cação para ser utilizado apenas no intra-operatório e em cuidados intensivos21. A codeína caracteriza-se pelo seu elevado poder antitús-sico e por apresentar baixa incidência de dependência física e de efeitos secundários. É útil no tratamento da dor leve ou moderada como analgésico único ou em associação com os anti-inflamatórios não esteróides. O tramadol actua por um duplo mecanismo: é um agonista µ fraco e favorece a função da via inibitória descendente espinhal. Por esta razão, o seu efeito analgésico só é parcialmente antagonizado pela naloxona. É um fármaco eficaz em dores agudas, nomeadamente as pós-operatórias de fraca e média intensidade. Com o seu uso, podem aparecer cefaleias, zumbidos, sonolência, náuseas e vómitos. Na dor crónica, o tramadol é eficaz e não produz obsti-pação6,22.

    Os agonistas parciais dos receptores µ (ex.: buprenorfina), de-vido à da sua baixa actividade intrínseca, são caracterizados por possuírem um «efeito de tecto», ou seja, a sua acção analgésica mantém-se inalterada para doses administradas superiores a um de-terminado valor. Têm uma potência analgésica 30 a 50 vezes superior à morfina. Com as doses utilizadas na clínica, é possível ocorrer também depressão respiratória significativa. Os seus efeitos não são antagonizados rapidamente pela naloxona16. O efeito depressor cen-

  • 23

    tral da buprenorfina tem um tempo de latência de 30 minutos e uma duração de cerca de 6 a 8 horas7.

    Os agonistas/antagonistas mistos (ex.: pentazocina) apresentam características de agonistas ou antagonistas em função das circunstân-cias. Ao contrário dos agonistas, a relação dose-efeito analgésico não é linear nestes fármacos. À medida que são administradas doses pro-gressivamente crescentes, o efeito depressor respiratório pode não obedecer ao mesmo «efeito de tecto» que a analgesia. A utilização da pentazocina, é limitada devido à elevada incidência de disforia, aluci-nações e pesadelos16. Está contra-indicado o seu uso em doentes me-dicados com agonistas puros uma vez que precipitam um síndrome de abstinência e aumentam a intensidade da dor, em virtude de bloquea-

    Tabela 4. Perfil farmacocinético dos principais opióides usados para tratamento de dor

    Morfina Meperidina Fentanil Alfentanil Sufentanil

    T 1/2 π (min) 2-2,3 – 1,4-1,7 1-3,5 1,4T ½ α (min) 9-13 – 13-28 8,2-16,8 17,7T ½ β (min) 1,7-2,2 – 3,1-4,4 1,2-17 2,7Meia-vida de equilíbrio sg/cérebro 15-20 – 6,6 0,9 6,2Volume de distribuição (L/kg) 63 82 84 92 93Clerance (ml/kg–1. min–1) 2,3 7,7 12,6 5,1 12,7Pka 7,9 8,5 8,4 6,5 8,0% não ionizada num pH 7,4 23 7,4 8,5 89 19,7Solubilidade lipídica 6 525 816 129 1.757Penetração no SNC 1 – 133 – –

    Tabela 3.

    Opióides

    Agonistas puros Agonistas/Antagonistas Antagonistas

    Morfina, Meperidina Pentazocina, Buprenorfina Naloxona

    Vantagens Sedação, depressão respiratória Potencial de dependência

    Desvantagens «Efeito de tecto» Sintomas de privação se previamente um agonista Efeitos psicóticos

  • 24

    rem a analgesia opióide em um tipo de receptores µ ou têm uma acti-vidade neutra no receptor µ enquanto simultaneamente activam um receptor opióide diferente κ.

    Os antagonistas puros dos receptores µ não têm efeitos analgé-sicos e são capazes de bloquear a acção analgésica dos outros ago-nistas10.

    Nas tabelas 3 e 4, resumem-se as principais características dos opiói-des mais importantes, bem como o seu perfil farmacocinético.

  • 25

    Utilização clínica

    Vias de administração

    Os opióides podem ser administrados por diversas vias. A opção por uma delas depende de uma grande variedade de factores, que abor-daremos apenas sumariamente. Estes factores estão relacionados com:

    – As características do síndrome álgico (dor aguda? dor crónica oncológica?);

    – A capacidade do doente usar uma determinada via e/ou sistema de libertação de opióide (ex.: doentes sem via oral, PCA, etc.);

    – A patologia associada do doente;

    – As complicações associadas com determinadas vias de adminis-tração e que são variáveis de doente para doente;

    – O custo económico.

    Todos os opióides mais vulgarmente utilizados para analgesia são, como vimos, agonistas µ potentes, pelo que produzem analge-sia, afectando simultaneamente o sistema respiratório (produzindo depressão), e o sistema gastrointestinal (redução da motilidade). Os agonistas parciais µ (ex.: buprenorfina), têm um «efeito de tecto» (ceilling effect), em relação à analgesia, pelo que o escalo-namento das doses do fármaco não deve ultrapassar certo limiar a partir do qual não há incremento da analgesia. Os agonistas µ fra-cos (ex.: codeína, hidrocodona, etc.), são essencialmente adminis-trados em combinação com os anti-inflamatórios não esteróides (AINES) e/ou paracetamol, especialmente em doentes com dor cró-nica oncológica, em que as doses limite dos AINES e paracetamol já foram atingidas, correndo o doente o risco de desenvolver toxi-cidade hepática.

    Por facilidade de exposição, iremos apenas referir as principais características dos opióides agonistas µ (ex.: morfina, metadona, oxi-codona, fentanil, sufentanil, etc.).

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    Via oral

    Esta via é a mais utilizada, a menos invasiva, e a de mais fácil adminis-tração para os doentes com dor crónica. Em todos os que apresentam uma via oral disponível, esta deve ser a via de eleição23. A administração por esta via não origina outras complicações para além das resultantes dos efeitos secundários dos opióides. O principal problema da adminis-tração de opióides por esta via resulta do primeiro passo da biotrans-formação no fígado. Todos os opióides administrados por esta via, são absorvidos na mucosa gástrica e duodenal e são transportados para o fígado pelo sistema venoso porta. No fígado, são metabolizados antes de entrarem na circulação sistémica. Este facto tem uma grande in-fluência nas concentrações plasmáticas dos fármacos.

    A biodisponibilidade é definida como a percentagem da medicação administrada que atinge a circulação sistémica. Esta metabolização hepáti-ca dos opióides orais, reduz a sua biodisponibilidade para valores mui-to baixos (ex.: morfina 20 a 40%, metadona 90%, oxicodona 60 a 87%)24

    (Tabela 5). Este facto, conduz à necessidade de serem calculadas as doses a administrar de acordo com as vias de administração (Tabela 6).

    A morfina apresenta uma semi-vida de eliminação plasmática de 3,1 horas, o que tem levado ao desenvolvimento de preparados de li-bertação lenta, permitindo ao doente um menor número de ingestões diárias (2 a 3)24.

    A estratégia de abordagem dos doentes com dor crónica prevê um esquema de administração a horas fixas (around the clock). A analgesia é tanto mais fácil de manter, quanto mais mantivermos as concentrações plasmáticas do fármaco dentro do que se convencionou chamar o «cor-redor analgésico» do doente (Fig. 9). Desvios para baixo das concentra-ções plasmáticas irão ocasionar dor, que será colmatada com «medicação de resgate», geralmente caracterizada por ser de início de acção rápido e de curta duração de acção. As preparações de opióides de acção rápida, administradas por via oral, necessitam de cerca de 30 minutos para iniciar a sua acção analgésica quando ingeridas com um estômago vazio. Caso contrário, o início de acção será significativamente atrasado.

    A metadona possui uma semi-vida de eliminação de aproximada-mente 24 horas e uma biodisponibilidade de cerca de 90%. Por isso, é cerca de duas vezes mais potente que a morfina quando administrada por esta via. Devido à sua longa semi-vida de eliminação, é usada em alguns programas de tratamento da toxicodependência.

    Muitos doentes com dor crónica desenvolvem tolerância aos efeitos colaterais indesejáveis dos opióides (ex.: náuseas/vómitos e/ou seda-

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    ção), após vários dias de utilização, pelo que a medicação não deve ser interrompida antes de decorrido um período aceitável de tempo25.

    Via endovenosa

    Esta via é uma alternativa aos doentes que não têm via oral disponível (ex.: carcinomas da cavidade bucal, pós-operatório imediato, estado de confu-são mental ou em estádio terminal), sendo, por isso, uma via de recurso. Esta via apresenta como principal problema a necessidade de manter um catéter venoso permeável, o que é sempre uma porta de entrada para infecções e obriga a cuidados de enfermagem diferenciados, quando o doente não consegue efectuá-los. É também uma via que implica custos económicos significativos, não só pela aquisição de material para ad-ministração/desinfecção, como também pelo uso (quando necessário),

    Tabela 5.

    Fármaco Clearance hepático Biodisponibilidade oral

    Fentanil Elevada ~20-40% (variável)MorfinaPentazocinaBurprenorfina

    Codeína Intermédia ~50%MeperidinaAlfentanil

    Metadona Baixa ~90%

    Tabela 6. Doses equianalgésicas (mg)

    Agonista Parentérica Oral Duração da analgesia (h)

    Morfina 10 60 4Heroína 4 30 3-4Metadona 10 20 6-24Petidina 100 300 3Fentanil 0,1 – 1Oxicodona 10 30 (rectal) 8Codeína 30 90 4Dihidrocodeína 15 45 4Dextropropoxifeno – 200 8

    Agonista/AntagonistaPentazocina 60 180 (analgésico fraco) 3Buprenorfina 0,3 0,8 (s.l.) 7

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    de sistemas de libertação lenta (ex.: PCA). É portanto uma via a ser utilizada apenas em casos com indicações específicas.

    Os opióides mais utilizados por esta via são: morfina, meperidina, fentanil, sufentanil, alfentanil e remifentanil (estes quatro últimos são apenas usados no peri-operatório). A utilização prolongada de meperidina, pode levar à acumulação do seu metabolito, normeperidina, com diminuição da função renal e toxicidade do sistema nervoso central, incluindo convulsões26.

    Uma referência ao fentanil, sufentanil, alfentanil e remifentanil. São opióides lipossolúveis muito potentes, usados essencialmente no período peri-operatório e com controlo directo do anestesiologista. O fentanil, como já foi referido, é cerca de 100 vezes mais potente que a morfina, enquanto o sufentanil é cerca de 1.000 vezes mais potente que a morfi-na. O seu elevado custo económico e as suas características de potência, início rápido de acção e semi-vida plasmática relativamente curta, condi-cionam o seu uso fora do bloco operatório a casos específicos.

    Por esta via de administração, é frequente a utilização de perfusões contínuas de opióides, que apresentam como principal vantagem a ca-pacidade de manter os doentes sempre no «seu corredor analgésico», mas com as grandes desvantagens de limitar a mobilidade do doente e de exigir a intervenção regular de pessoal técnico especializado27.

    A PCA (patient-controlled analgesia ou «analgesia controlada pelo doente»), é uma técnica de administração de fármacos (geralmente opiói-des), que pode (ou não), congregar a perfusão contínua com a auto-admi-nistração de bolus previamente definidos pelo médico, usando para tal um dispositivo semelhante a uma seringa perfusora com um manípulo para a auto-administração (Figs. 10 e 11). O médico programa o valor da perfusão de base (se achar necessário), do bolus a auto-administrar e do lock out, ou seja, do período de tempo que medeia entre «dois pedidos» eficazes do doente. O não respeito pelo lock-out por parte do doente resulta num «pedido» ineficaz. Estas seringas possuem mecanismos de segurança que evitam sempre a administração de doses excessivas dos opióides. A via endovenosa é geralmente a mais utilizada, principalmente no pós-operató-rio imediato. No entanto, esta filosofia de funcionamento é facilmente aplicável a outras vias de administração, como por exemplo a subcutânea (ex.: na dor crónica oncológica), intra-muscular, etc. É contra-indicado o seu uso em doentes com estados confusionais crónicos28-33.

    Via subcutânea

    Esta via tem especial indicação em doentes que não possuem um caté-ter venoso, em estádio terminal ambulatório ou que apresentam intole-

  • 29

    rância ou ineficácia aos opióides orais34,35. Devido à alta vascularização do tecido subcutâneo, a biodisponibilidade do fármaco é elevada, ex-cepto em situações de choque ou hipovolémia. Apresenta como princi-pais vantagens a facilidade de utilização, o baixo custo económico (se não se usar seringas perfusoras), efeitos secundários raros e a facilida-de de associação de fármacos36. A administração de medicamentos por esta via, pressupõe a introdução de uma butterfly 25-27G no tecido celu-lar subcutâneo que deve ser trocada de posição ao fim de 10-15 dias. Pode-se, ou não, conectar esta agulha a uma seringa perfusora, de acordo com os objectivos da analgesia. As áreas preferencialmente utilizadas são pouco móveis, tais como o tórax, o abdómen, os braços ou as regiões glúteas, usando sempre uma técnica asséptica na sua colocação e na sua manutenção37. As seringas são recarregadas sempre que necessário (nos doentes crónicos, geralmente uma vez por semana). O factor limitante desta técnica é o volume a administrar do fármaco, que não deve exceder os 2 a 4 ml/hora, sob pena de se desenvolver no local da sua administração dor e/ou reacções inflamatórias/infecção38. Todos

    Figura 10.

  • 30

    Dose de carga do analgésico

    Doses repetidas auto-administradas

    15 30 60 120

    Tempo (minutos)

    Figura 11.

    os opióides podem ser administrados por esta via principalmente no modo PCA. São preferíveis os opióides solúveis, bem absorvíveis e não irritantes, como a heroína, a hidromorfona, a oximorfona e a morfina39-41. Nos doentes com dor crónica oncológica, a utilização de fentanil e su-fentanil é relativamente frequente, uma vez que são fármacos que aliam, para além das propriedades já descritas, a sua elevada potência a um baixo volume. Para o mesmo efeito analgésico, a dose a administrar por via subcutânea deve ser idêntica à usada por via endovenosa42,43. As infecções são raras (1 em cada 117 doentes)32.

    Via intramuscular

    É uma das formas mais vulgarizadas de administração de opióides no tratamento da dor aguda. Apresenta como principal inconveniente a ab-sorção errática, o que determina uma grande variabilidade inter-individu-al no tempo de início de acção, no grau e na duração da analgesia. Estes factos condicionam uma grande labilidade nos níveis plasmáticos alcan-çados e a necessidade de administrações frequentes44. O pico do efeito é obtido 30 a 60 minutos após a administração do analgésico. Devido a este pico ser relativamente tardio, os efeitos secundários desenvolvem-se tam-bém lentamente, nomeadamente a depressão respiratória. Os factores que podem influenciar os níveis plasmáticos obtidos são: o local da injecção, o sexo45, a idade, a temperatura, o pH, a fórmula farmacêutica e o fluxo sanguíneo no local da administração46. Esta via pode ser utilizada na dor aguda, desde que se tenham em conta as seguintes considerações:

    1. A primeira dose deve ser administrada por via endovenosa, a fim de minorar os inconvenientes da absorção irregular na fase ini-cial do pós-operatório;

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    2. Deve-se observar o paciente frequentemente, controlando a efi-cácia, a duração e a analgesia nas primeiras horas, de modo a ajustar as doses adequadamente;

    3. Os intervalos entre as administrações devem ser estabelecidos segundo o princípio da procura controlada (perguntar ao doente se tem dor e administrar o fármaco a intervalos fixos previamen-te estabelecidos).

    Via transdérmica

    Os doentes incapazes de usar a via oral têm na via transdérmica uma alternativa cómoda e bem tolerada. Por esta via, é possível manter concentrações plasmáticas estáveis de opióides. Actualmente o fentanil é o opióide mais utilizado, uma vez que a sua biodisponibilidade atinge aproximadamente os 90%47. Há diferentes patches com concentrações diversas de fentanil, proporcionando uma difusão constante para além das 72 horas de duração48. Estes patches apresentam como inconve-nientes o custo económico elevado, associado a algum risco de reac-ções dérmicas no local de colocação do reservatório, o que pode ser obviado com a rotatividade do local. Esta via tem como principal indi-cação, doentes com dor crónica oncológica.

    Dois aspectos relacionados com o fentanil merecem referência. O exercício físico intenso e a elevação da temperatura corporal (ex.: após um banho) aumentam a circulação sanguínea da pele, pelo que incremen-tam a absorção de fentanil. Por outro lado, mesmo após a remoção do patch, a «semi-vida aparente» do fentanil mantém-se entre 14 e 25 horas, devido à formação de depósitos subcutâneos49. Como consequência, as implicações clínicas são evidentes: devido à formação lenta do depósito, também é lento o incremento das concentrações plasmáticas o que deter-mina que este método não é eficaz para titulação rápida da dor. Por outro lado, a sua prolongada semi-vida mesmo após a remoção do patch impli-ca que a manifestação de efeitos secundários dos opióides é de lenta re-solução. Estas características circunscrevem a utilização destes sistemas apenas em doentes bem estudados e estabilizados e que não apresentam variações diárias importantes na intensidade da sua dor, embora medica-ção de resgate possa, e deva, ser associada a este sistema50-52.

    Vias sublingual e transmucosa

    A administração sublingual de opióides é particularmente indicada em do-entes com dor oncológica, incapazes de tolerar a via oral devido às náuse-as e vómitos ou à disfagia. Também nos doentes sem acessos venosos,

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    estados de anasarca ou coagulopatias, esta via tem indicação para ser uti-lizada53. A via sublingual apresenta também como principal vantagem o facto de a drenagem sanguínea da língua ser sistémica e não portal, pelo que se evita a eliminação pela primeira passagem hepática. A limitação mais significativa para a sua utilização no período pós-operatório imediato pren-de-se com a elevada incidência de efeitos secundários como náuseas e vómitos ou sonolência. É também uma via de início de acção mais rápido que a via oral (ex.: o fentanil atinge a concentração plasmática máxima entre 20 e 40 minutos). O pH elevado da cavidade oral é também um factor que favorece a absorção dos opióides, com especial destaque para os opi-óides lipofílicos: metadona, –35%, fentanil, 51% e buprenorfina, 56%.

    Uma das vantagens desta via é a simplicidade da administração dos fármacos, com as desvantagens de serem apenas um pouco amargos e por vezes desenvolverem uma sensação ligeira de queimadura.

    A administração de fentanil por via transmucosa é uma ferramenta muito útil no controlo da dor esporádica em doentes oncológicos inca-pazes de deglutir comprimidos ou cápsulas.

    A administração de opióides por via nasal tem alguma expressão prin-cipalmente com a utilização de sufentanil, um potente opióide lipofílico com acção de curta duração. Tem sido administrado com sucesso em medicação pré-anestésica, tanto nos adultos como em crianças54-57. Um outro morfinomimético, o fentanil é também utilizado sob a forma de spray nasal no tratamento de dores pós-operatórias58,59. O método revelou-se rápido e de eficácia comparável à do fentanil endovenoso, apesar desta substância agir um pouco menos rapidamente por via nasal. A incidência de efeitos secundários limitou-se ao aparecimento de náuseas, vómitos e euforia em alguns doentes. Embora estes resultados indiquem que o fen-tanil intranasal poderá ser utilizado em analgesia pós-operatória, parece sobretudo indicado em casos em que seja necessário um tratamento anal-gésico rápido, na ausência de via endovenosa, como em oncologia60.

    Via rectal

    Esta via é uma alternativa valiosa à via oral quando não está disponível por vómitos, obstrução ou alterações da consciência. A sua principal vantagem é a sua independência da motilidade gastrointestinal e da velocidade de esvaziamento gástrico61. Em doentes com estoma, os opióides podem ser administrados directamente nesse local62.

    A via rectal apresenta no entanto, várias desvantagens. A principal prende-se com o facto das veias rectais inferiores e médias drenarem para a veia cava, evitando assim o efeito da passagem hepática. Por

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    outro lado, as veias rectais superiores drenam para o sistema porta, sofrendo portanto a eliminação hepática. Como existe grande variabi-lidade individual em relação ao sistema de drenagem predominante, as doses a administrar têm que ser individualizadas e tituladas. Também uma mucosa rectal muito seca, a defecação e a obstipação são factores que podem afectar a biodisponibilidade dos opióides37,63,64. Está desacon-selhada em doentes com patologia rectal (ex.: fissuras, hemorróidas, etc.), gastroenterite, doentes neutropénicos ou trombocitopénicos.

    O supositório é o veículo habitual de administração por via rectal, embora qualquer comprimido para administração oral possa ser admi-nistrado por via rectal. A dose a administrar de opióides por via rectal é inicialmente idêntica à por via oral, sendo posteriormente titulada até se obter o efeito analgésico desejado.

    Via subaracnoideia/epidural

    A esmagadora maioria dos doentes com dor crónica podem ser adequa-damente controlados sob o ponto de vista álgico, mediante a adminis-tração de opióides pelas vias anteriormente descritas. No entanto, uma pequena minoria poderá necessitar da administração de opióides por estas vias, quer por necessidade de controlar a dor, quer por não tolerar os efeitos secundários aquando da administração de opióides pelas vias anteriormente descritas65.

    Também na dor aguda, nomeadamente no controlo da dor no pós-operatório imediato, a via epidural tem uma indicação formal em algumas cirurgias (ex.: esofagectomia, toracotomia, amputação abdomino-perito-neal, etc.), uma vez que produz uma analgesia extremamente eficaz.

    O principal objectivo da administração de opióides por via peries-pinhal é a colocação de uma pequena dose de opióide/anestésico local próximo dos receptores opióides espinhais (sobretudo recepto-res κ, em menor número µ e δ7), localizados no corno dorsal da medula, reduzindo desta forma a dose de fármaco necessária para produzir analgesia e diminuindo também os efeitos secundários in-desejáveis66. A utilização desta técnica implica a manutenção no es-paço epidural ou subaracnoideu de um catéter colocado após punção do respectivo espaço67.

    As contra-indicações mais frequentes para a utilização destas vias são as seguintes: não colaboração do doente, perturbações psiquiátri-cas, doente portador de toxicodependência, coagulopatias, infecções no local de colocação do catéter ou sépsis68.

  • 34

    As diferentes abordagens do neuroeixo compreendem as seguintes variantes: bolus ou perfusão contínua por via epidural ou por via subarac-noideia. A escolha da modalidade a efectuar depende de múltiplos factores incluindo: duração da terapêutica, características e localização da dor, extensão da doença e grau de envolvimento do sistema nervoso central, dose necessária de opióide e preferência do doente. Estes factores têm que ser balanceados com o facto da via subaracnoideia necessitar de doses muito menores de opióides (cerca de um décimo) do que a via epidural, e com o facto da duração de acção dos opióides por via subaracnoideia ser menor do que por via epidural. Em relação à via oral a dose de morfi-na a administrar por via subaracnoideia é cerca de 12 vezes menor69.

    É a lipossolubilidade que estabelece as diferenças de analgesia entre os vários opióides: maior lipossolubilidade, maior metamerização de acção e menor duração de acção7. Dos opióides conhecidos, a morfina é o fármaco de eleição, devido à sua relativa baixa lipossolubilidade, que determina um lento início de acção (1 a 2 horas) e uma longa du-ração da analgesia (10 a 12 horas), quando administrado em doses fraccionadas. Também a menor metamerização do efeito analgésico da morfina é um factor a ter em conta, uma vez que condiciona de uma forma menos marcada o nível de abordagem da via epidural em relação ao local de origem da síndrome álgico.

    As complicações e os efeitos secundários associados a estas vias podem ser divididos em três categorias: complicações do procedimen-to (ex.: infecção, e/ou hemorragia, seroma, higroma com líquido cefalo-raquidiano, cefaleias após a punção da dura-máter), avaria do sistema (ex.: obstrução das tubagens, desconexão, migração do catéter) e efei-tos farmacológicos (ex.: depressão respiratória, sedação, alterações hormonais condicionando alterações dos comportamentos sexuais). A incidência destas complicações pode ir de 10% a 40%65,70. Com excep-ção da obstipação, são raros os efeitos secundários dos opióides.

    Outros problemas farmacológicos incluem o desenvolvimento de tolerância e a hiperalgesia. O primeiro resulta da diminuição da sensi-bilidade dos receptores após administrações continuadas, o que pode ser evitado fazendo uma pausa na administração dos opióides por um período de 2 a 3 semanas. A hiperalgesia tem sido associada às perfu-sões subaracnoideias de morfina em elevadas doses (superiores a 30 mg/dia). Este efeito paradoxal, parece ser secundário a um mecanis-mo não opióide e pode ser tratado reduzindo a dose de morfina68.

    A complexidade do material usado nas perfusões por estas vias, e a necessidade de haver uma monitorização adequada por pessoal especia-lizado, origina que estas técnicas sejam economicamente dispendiosas.

  • 35

    Também no tratamento da dor crónica benigna a administração intratecal de um opióide produz uma analgesia eficaz sem interferir nas funções sensoriais e motoras dos membros inferiores. Nestes casos, deve-se iniciar o tratamento durante um período experimental, com subsequente avaliação psicológica antes da implantação de um dispo-sitivo permanente. Com o tempo, pode ocorrer tolerância à morfina, pelo que por vezes é necessário recorrer a fármacos adjuvantes tais como a bupivacaína, a clonidina e a ketamina65.

    A administração conjunta, na via epidural, de um opióide e de um anestésico local permite potenciar a analgesia obtida, o que pode ser útil na redução da dose total de opióide a administrar e no controle da analgesia em doentes com dor refractária71. Esta técnica é muito utili-zada na analgesia do pós-operatório imediato72. Todos os fármacos administrados por estas vias devem ser livres de conservantes e antio-xidantes, a fim de se evitar o risco de neurotoxicidade73,74.

    A opção entre a via subaracnoideia e a via epidural é ponto de al-guma controvérsia. A via subaracnoideia exige para a sua realização da punção da dura-máter, pelo que em tratamentos crónicos é de ponderar a colocação de um catéter. A vantagem dos catéteres é a menor taxa de infecções, embora o seu custo elevado condicione a sua aplicação4. A colocação de um catéter epidural produz menos morbilidade mas é menos eficaz, uma vez que é necessário administrar doses maiores com os inerentes riscos de se desenvolverem efeitos secundários importan-tes. A longo prazo (mais de um ano), os catéteres epidurais mostraram ser efectivos mas com vários problemas (ex.: obstrução, angulação, exteriorização e infecção). A tunelização parece ter reduzido a incidên-cia da infecção, embora não tenha reduzido a incidência das outras complicações4.

    Como corolário desta abordagem das vias de administração de opióides, podemos afirmar que a via oral é a via de eleição em doentes com dor crónica. Na impossibilidade da sua utilização, a via rectal é uma boa alternativa. Se optarmos pela via oral ou rectal, então devemos administrar opióides de acção lenta, administrados fraccionadamente, respeitando intervalos de tempo regulares e simultaneamente adminis-trarmos um opióide de início de acção rápido, como medicação de resgate para dores ocasionais. A via transdérmica é também uma boa alternativa à via oral, nomeadamente para a administração de fentanil. A via transmucosa é uma alternativa para administração de fármacos de resgate, devido ao facto de promover um início de acção rápido dos opióides. A via subcutânea, principalmente se adaptada à PCA, é uma alternativa a considerar. A via endovenosa tem especial indicação no tratamento da dor aguda do pós-operatório imediato. A via subaracnoi-

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    deia/epidural, sendo uma boa opção no pós-operatório imediato, só deve ser utilizada na dor crónica, perante uma dor refractária.

    Uma palavra final para a necessidade de monitorizar cautelosamen-te o doente quando se alteram as vias de administração, o opióide ou a dose a administrar. No caso da passagem da via parentérica para a via oral, deve-se reduzir gradualmente a dose administrada por via parentérica, enquanto se incrementa a dose administrada por via oral, durante um período de dois a três dias. A substituição do opióide a administrar deve obedecer aos mesmos princípios de rigorosa monito-rização, à consulta da tabela de equivalências entre opióides, e deverá iniciar-se a administração do novo opióide com uma carga de cerca de 50% da dose analgésica deste novo opióide18.

    Efeitos adversos dos opióides

    Sempre que se administram opióides, é regra o aparecimento de efeitos adversos em número significativo. Os mais frequentes, são: a obstipa-ção, as náuseas, os vómitos, a sedação e as alterações cognitivas. Ou-tros efeitos, menos frequentes são: a depressão respiratória, a secura da boca, a retenção urinária, o prurido, a mioclonia, a disforia, as per-turbações do humor, as perturbações do sono, a disfunção sexual, a dependência física, a tolerância e a secreção inapropriada da hormona antidiurética75. Uma vez que existe grande variabilidade individual no desenvolvimento destes efeitos, é fundamental a vigilância clínica e o tratamento profilático de algumas destas manifestações clínicas.

    Obstipação

    Sendo um dos efeitos adversos mais frequentes, manifesta-se pela ini-bição das contracções propulsivas do cólon com simultânea estimula-ção das contracções não-propulsivas e pela redução das secreções intestinais provocadas pelos opióides6,76. É caracterizado pelo não de-senvolvimento (ou por um desenvolvimento muito lento) da tolerância durante a terapêutica crónica. Atendendo à população que faz terapêu-tica com opióides (ex.: doentes oncológicos), é importante inspeccionar cuidadosamente uma obstipação que se agrava com o tempo. Podemos estar em presença de um agravamento da doença base (ex.: obstrução intestinal, íleus paralítico devido a compressão medular, diminuição da ingestão de alimentos e água devido à anorexia)77.

    Atendendo à frequência elevada da sua manifestação, há quem advogue o uso profilático de laxantes, principalmente nos idosos ou doentes com patologia gastrointestinal. O tratamento e/ou a profila-

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    xia, consiste nos casos «ligeiros», no aumento do consumo de fibras e na administração regular de um laxante suave (ex.: leite de magné-sia). Nos casos de obstipação grave, resultante da inibição dos mo-vimentos peristálticos pelos opióides, o tratamento consiste na admi-nistração de um catártico estimulante (ex.: bisacodil, concentrado de Senna, ou agentes hiperosmóticos − lactulose ou sorbitol). Pode-se complementar a terapêutica com laxantes orais ao deitar e supositó-rios rectais ao levantar. Os amaciadores de fezes, são de interesse reduzido se usados isoladamente, embora possam ter algum valor terapêutico quando administrados em combinação com laxantes es-timulantes a fim de facilitar a defecação, nomeadamente em doentes acamados78.

    Os doentes refractários à terapêutica com laxantes podem fazer um ensaio com naloxona oral, que tem uma biodisponibilidade inferior a 3% e presumivelmente actua selectivamente nos receptores opióides do intestino79. Devido ao pequeno risco de desenvolvimento de uma sín-drome de abstinência por acção da naloxona oral80, deve-se iniciar o tratamento com uma dose relativamente modesta (0,8 a 1,2 mg, uma a duas vezes por dia). Esta dose pode ser aumentada até se obter o efei-to desejado ou se desenvolverem efeitos secundários importantes (ex.: cólicas abdominais, diarreia, etc.). A naloxona está contra-indicada em todos os doentes com oclusão intestinal.

    Náuseas e vómitos

    São efeitos adversos de aparecimento frequente. A incidência de náu-seas induzidas pelos opióides é de 10 a 40%, manifestando-se principal-mente nos doentes em regime ambulatório, uma vez que a tendência para o vómito aumenta com a estimulação vestibular81. Parecem resul-tar de vários factores de que se destacam: acção central dos opióides na trigger zone dos quimiorreceptores da protuberância, aumento da sensibilidade vestibular e atraso do esvaziamento gástrico18,82. A abor-dagem inicial destes doentes consiste em investigar a etiologia das náuseas e vómitos, uma vez que podem não ser induzidos pelos opiói-des. Perante esta etiologia, e sabendo-se que a tolerância desenvolve-se rapidamente, o tratamento raramente consiste na administração profi-lática de anti-eméticos, excepto em casos graves. Por vezes, a substi-tuição de um opióide por outro com potência analgésica semelhante é suficiente. A mudança da via da administração pode ser eficaz83. A opção pelos diferentes tipos de anti-eméticos varia de acordo com o mecanismo produtor das náuseas e vómitos. Se as náuseas estão associa-das a uma saciedade precoce, ou a vómitos pós-prandiais, geralmente

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    relacionados com um esvaziamento gástrico comprometido, o tratamento inicial deve realizar-se com a metoclopramida. Se as náuseas são induzidas pelos movimentos ou vertigens, os doentes beneficiam da administração de anti-vertiginosos (ex.: escopolamina ou meclizina)84. Se nenhum destes mecanismos parece envolvido, o tratamento geralmente inicia-se com um neuroléptico (ex.: proclorperazina ou metoclopramida). Se estes fármacos forem ineficazes em doses relativamente elevadas, outras opções incluem: ensaio com outro opióide, tratamento com um anti-histamínico (ex.: dife-nidramina ou hidroxizina), neurolépticos alternativos (ex.: haloperidol ou clorpromazina), benzodiazepinas (ex.: lorazepam), esteróides (ex.: dexa-metasona), ou antagonistas da serotonina (ex. ondansetron).

    Sedação e alterações cognitivas

    Ao iniciar a terapêutica com opióides ou quando se aumenta substan-cialmente as doses administradas, é frequente o aparecimento de ma-nifestações clínicas de sonolência ou outras alterações cognitivas (ex.: euforia, disforia, cansaço, confusão mental, ansiedade, alucinações, etc.), que geralmente persistem durante dias ou semanas85. Apesar de rapida-mente se desenvolver tolerância, alguns doentes permanecem com per-turbações intoleráveis. Com a persistência destes efeitos, é aconselhá-vel eliminar a medicação não essencial que deprima o sistema nervoso central (ex.: sedativos/hipnóticos, álcool, barbitúricos e benzodiazepi-nas), e avaliar o doente pesquisando causas concorrentes (ex.: sépsis, alterações metabólicas, ou metástases intracerebrais ou leptomenínge-as). Se persistirem, a estratégia passa por diminuir a dose do opióide e/ou reduzir o intervalo entre as administrações (esta abordagem dimi-nui a concentração de pico no sangue, mantendo a mesma dose total). Se apesar destas medidas esta sintomatologia perdurar, deve-se ponde-rar: a adição de um analgésico não opióide, a administração de um adjuvante, a substituição por outro analgésico opióide ou a realização de uma técnica anestésica ou neurolítica5,6.

    Depressão respiratória

    É o principal factor limitante da utilização clínica dos opióides. Estes fármacos exercem um efeito depressor directo nos centros respiratórios do tronco cerebral (receptores µ e δ), que se manifesta por uma ausência de resposta ventilatória à hipóxia6. Sendo uma situação rara na analgesia para doenças crónicas4 (a tolerância desenvolve-se rapidamente), a depres-são respiratória geralmente ocorre quando a dor é subitamente aliviada e portanto, os efeitos sedativos dos opióides não são mais antagonizados pelos efeitos estimulantes da dor86. Neste contexto, a depressão respirató-

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    ria é relativamente frequente com a administração dos opióides por via parentérica mas pouco frequente quando são administrados por via oral. Em situações graves, é sempre acompanhada por outros sinais de depres-são do sistema nervoso (ex.: sonolência, obnubilação mental), que na grande maioria das ocorrências se manifestam previamente à depressão respiratória. Alguns grupos de pacientes são especialmente sensíveis à depressão respiratória tais como: os idosos, os doentes em hipovolémia, os alcoólicos e os doentes com patologia respiratória, renal ou hepática. Doentes com insuficiência respiratória grave ou asmáticos têm um risco elevado de desenvolverem depressão respiratória com as doses habituais de opióides. A acumulação subsequente de CO2 conduz a vasodilatação cerebral e a um aumento da pressão do líquido céfalo-raquidiano18.

    Num doente sintomático a estimulação física pode ser a «primeira te-rapêutica» para evitar a hipoventilação grave. Os antagonistas dos opióides (ex.: naloxona), devem ser administrados com cuidado, a fim de evitar um síndrome de abstinência e o retorno do estado doloroso. Para evitar esta situação, as doses a administrar devem ser parcimoniosas, (0,4 mg diluídos em 10 cc de soro fisiológico, administrado em incrementos de 0,5 cc por minuto), devendo titular-se a administração de naloxona pela frequência respiratória do doente87-89. A curta semi-vida da naloxona implica a vigilân-cia contínua dos doentes medicados com morfina de libertação controlada, fentanil transdérmico ou metadona. Nestes casos, por vezes é necessário a administração de naloxona em doses repetidas ou em perfusão, a fim de evitar o reaparecimento da depressão respiratória.

    Intoxicação aguda

    Este efeito adverso é causado pela administração de uma dose exces-siva de opióides, por deficiente avaliação clínica ou por administração acidental. Por vezes, pode produzir-se toxicidade tardia em consequên-cia da administração de opióides em zonas hipoperfundidas (ex.: cho-que). Nestes casos, o fármaco não é absorvido na sua totalidade e quando se restabelece a circulação normal pode absorver-se subitamente uma quantidade excessiva.

    O quadro clínico caracteriza-se por miose, bradipneia, flacidez mus-cular, convulsões, e/ou edema pulmonar. A tríade coma, miose e depres-são respiratória sugere fortemente a sobreadministração de opióides.

    A terapêutica consiste em restabelecer a permeabilidade das vias respiratórias, ventilar o doente, recorrendo se necessário à ventilação controlada com oxigénio a 100% e administrar por via endovenosa, antagonistas dos opióides, como seja a naloxona. A curta semi-vida da

  • 40

    naloxona (30-90 minutos) implica uma vigilância estreita do paciente de modo a evitar novas recaídas.

    Muito mais frequente que a intoxicação aguda é a depressão respi-ratória aguda, que se manifesta por um início progressivo de sonolência e depressão respiratória que se estende durante horas ou dias. Perante o diagnóstico, a terapêutica consiste na suspensão de uma ou duas administrações até à resolução da sintomatologia. Posteriormente, deve-se reduzir a dose de opióides em cerca de 25%90.

    Outros efeitos adversos

    Os opióides ocasionalmente podem produzir outros efeitos secundá-rios, tais como: disfunção sexual, retenção urinária, prurido, mioclonia, secura da boca, convulsões, halucinações91, obnubilação mental, e per-turbações do sono92.

    O seu uso prolongado pode causar perturbações sexuais, quer no homem quer na mulher (incapacidade de atingir ou manter a erecção, no homem e a amenorreia e infertilidade, na mulher). Alguns destes efeitos podem ser consequência de alterações verificadas na testoste-rona sérica e em outras hormonas sexuais93.

    A retenção urinária aparece com alguma frequência especialmen-te associada à administração de opióides espinhais94,97. Parece haver um aumento do tónus do músculo liso, que condiciona um espasmo da bexiga e um aumento do tónus do esfíncter que conduz à retenção urinária. Esta situação é mais frequente no idoso18. O tratamento destas situações passa pela interrupção na administração de fármacos adju-vantes que potenciam estes efeitos (ex.: antidepressivos tricíclicos), alterar o opióide em uso e/ou modificar a via de administração.

    O prurido pode ser localizado ou generalizado. Aparece mais fre-quentemente após a administração dos opióides ser efectuada por via subaracnoideia. Pode ser controlado terapeuticamente, administrando um anti-histamínico (ex.: difenidramina) ou pequenas doses de naloxona.

    Outro efeito adverso dependente da dose administrada é a mioclonia, geralmente determinada por múltiplos factores para além do opióide. É mais frequente o seu aparecimento após a administração prolongada por via endovenosa de doses elevadas de meperidina. Neste caso, o prin-cipal factor responsável é a acumulação de doses tóxicas se normeperi-dina18. Se é sintomática e incapacitante, o tratamento consiste na admi-nistração de uma benzodiazepina (especificamente o clonazepam)98.

    A miose tem como etiologia a estimulação dos receptores µ e κ, produzindo acção excitatória sobre o núcleo do nervo oculomotor.

  • 41

    A síndrome da secreção inapropriada de hormona antidiurética é uma síndrome rara, geralmente transitória. Está mais associado à administração de morfina ou de metadona.

    Tolerância e dependência física

    A tolerância aos opióides e a dependência física, que se estabelecem após administração prolongada de opióides, não devem ser confundidas com a dependência psicológica, que se manifesta por um comportamen-to abusivo destes fármacos. Esta falta de esclarecimento tem conduzi-do a práticas muito deficientes e ineficazes em relação à administração de opióides em doentes crónicos.

    A tolerância para os efeitos adversos dos opióides, tais como a sono-lência e as náuseas, parecem desenvolver-se rapidamente, o que é um bom fenómeno clínico99. No entanto, a tolerância ao efeito analgésico, é defi-nida como a necessidade de serem aumentadas gradualmente as doses de opióides a serem efectuadas em doentes crónicos, de modo a serem ob-tidos os mesmos efeitos analgésicos4,100. Geralmente manifestam-se por uma redução progressiva na duração da analgesia para uma certa dose.

    A tolerância tem sido explicada pela dessensibilização dos recepto-res opióides e pela perda dos receptores funcionais da superfície celu-lar. Contudo, estudos biológicos moleculares levaram os investigadores a rever estes conceitos ao verificarem que a morfina nem sempre pro-move a redução destes receptores da superfície celular. Parece que a activação do subtipo NMDA do receptor do glutamato funciona como um sistema antiopióide no desenvolvimento da tolerância da morfi-na101. O desenvolvimento da tolerância varia muito de doente para doente. O diagnóstico diferencial deve ser feito com o agravamento da doença de base, que geralmente se manifesta por uma necessidade súbita de administrar doses mais elevadas de opióides100. Por razões desconhecidas, o desenvolvimento de tolerância é muito variável de do-ente para doente podendo-se manifestar ao fim de alguns dias ou os doentes permanecerem bem controlados com a mesma dose de opióide durante vários meses102. Com o desenvolvimento de tolerância, torna-se necessário proceder ao incremento da dose a administrar e/ou aumen-tar a frequência das administrações, até se obter o alívio dos sinto-mas. Parece não haver limite para o desenvolvimento da tolerância. Em doentes oncológicos, os opióides não devem ser administrados com parcimónia, nem com receio, uma vez que estas condutas conduzem inevitavelmente à perda do controlo analgésico do doente. A adminis-tração endovenosa em perfusão contínua parece conduzir ao desenvol-vimento de tolerância mais rapidamente. Assim, a administração por

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    via oral em intervalos regulares parece ser a melhor abordagem inicial dos doentes crónicos. A combinação com analgésicos de outros grupos farmacológicos é também uma prática aconselhável18.

    A dependência física, resultante da estimulação dos receptores µ, re-vela-se quando a administração de opióides é interrompida abruptamente ou quando é administrado abruptamente um antagonista (ex.: naloxona). A presença contínua de um opióide no organismo durante dias cria um estado biológico novo, em que a normalidade fica dependente da sua presença na biofase dos seus receptores específicos7. As manifestações clínicas mimetizam um «síndrome gripal», e manifestam-se por: ansieda-de, irritabilidade, tremores, dores articulares, lacrimejo, rinorreia, diafo-rese, náuseas, vómitos, dores abdominais, insónia, diarreia, podendo che-gar à mioclonia multifocal. Este quadro é tanto mais exuberante quanto menor for a semi-vida do opióide em causa e quanto maior for a dose administrada ou a duração da administração18. A sintomatologia inicia-se entre as 6 e as 12 horas atingindo o seu máximo entre as 24 e as 72 horas. Este quadro de dependência física estabelece-se geralmente após 2 sema-nas de terapêutica com opióides e quase nunca é acompanhado de depen-dência psicológica103,104. Geralmente não é um problema clínico desde que os doentes sejam instruídos no sentido de evitarem uma paragem repen-tina dos opióides e de evitarem a administração de antagonistas (ou agonistas-antagonistas)18. Devido a esta síndrome de privação, é lícito na dor crónica, iniciar-se a abordagem dos opióides através do uso de um agonista-antagonista misto antes de se administrar prolongadamente um opióide agonista semelhante à morfina18.

    A dependência psicológica105 (addiction na nomenclatura anglo-saxó-nica) define-se como uma perturbação biopsicosocial, caracterizada pelo uso compulsivo de uma substância e preocupação em obtê-la, apesar da evidência de que o seu uso continuado conduz à dependência física, emo-cional, social ou prejuízo económico grave. É o receio desta dependência que conduz muitos clínicos à administração de opióides em doses insufi-cientes em doentes portadores de dor crónica. Esta «compulsão para to-mar drogas de forma contínua ou periódica a fim de evitar o desconforto da sua ausência», é raramente um problema clínico4. No maior estudo prospectivo realizado, apenas quatro casos de dependência psicológica foram identificados entre 11.882 doentes que não possuíam história prévia de dependência e que receberam pelo menos uma dose de opióide duran-te a sua estadia no hospital106. Parece que alterações nas catecolaminas e/ou no sistema do cAMP, induzidas pelo tratamento repetido com morfina têm um papel importante no desenvolvimento da dependência física107.

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    Conclusão

    O desiderato da utilização correcta dos opióides pressupõe a obtenção de uma boa analgesia com efeitos adversos mínimos ou, se possível, ausentes.

    Usando estes critérios, apenas uma minoria de doentes tratados com morfina (10 a 30%), não têm um controlo adequado da sua sinto-matologia, devido a: efeitos adversos excessivos, analgesia inadequada ou combinação dos dois factores108.

    Para se obterem estes resultados é fundamental conhecer com al-gum pormenor a farmacologia deste grupo de fármacos, bem como ter experiência da sua aplicação na prática clínica.

    Ainda hoje em dia, o controlo dos efeitos adversos excessivos cons-titui um desafio clínico importante. Foram já descritas inúmeras abor-dagens para enfrentar este problema. O desafio clínico de seleccionar a «melhor opção» é enfatizado pela escassez de regras de universalida-de indiscutível, uma vez que a interacção entre os opióides e a indivi-dualidade, é extremamente variável e controversa.

    Em relação aos efeitos secundários, e principalmente quando abordamos doentes oncológicos, é fundamental distinguir entre efei-tos adversos e complicações da doença oncológica, desidratação e/ou interacções farmacológicas. Se, apesar de ter em consideração os factores enunciados, os efeitos secundários persistirem, deve-se con-siderar a possibilidade de tratamento sintomático destes efeitos, mu-dar de opióide ou substituir a via de administração.

    Apesar destas características, os opióides continuam a ser no início do século XXI, os fármacos de eleição no tratamento da dor oncológica grave, sendo o último garante de qualidade de vida para milhões de seres humanos afectados pela doença oncológica e que diariamente lutam e vivem mantendo firme a esperança de uma vida melhor.

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