Lyra Filho - Panorama Atual Da Criminologia

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PANORAMA ATUAL DA CRIMINOLOGIA ROBERTO LYRA FILHO A minha palestra hoje, está subordinada ao título “Panorama Atual da Criminologia”. Ora, o Panorama atual da Criminologia, talvez pudesse ser abordado por três caminhos principais: o primeiro colheria as raízes históricas, mostrando como elas foram amadurecendo e como assumiram a forma presente. Neste caso, a visão seria panorâmica, mas sobrecarregada de minúcias inatuais. O segundo desprezaria o itinerário percorrido, fixando-se numa série de problemas que, agora, atraem mais particularmente a atenção dos especialistas, a exemplo da difusão dos trabalhos da Escola de Utrecht. Nesta hipótese, porém, ganharíamos somente na atualização, perdendo de vista o panorama. Para agravar ainda mais as dificuldades, cumpriria dizer que, abandonando a perspectiva histórica, incorreríamos em certas ingenuidades, de que não estão isentos determinados grupos de criminologistas, com a reedição de velhas posições, a título de novidade. Por mais que me assustem os compromissos de um terceiro caminho, só ele me poderá levar à realização da tarefa, para a qual fui convocado: oferecer um panorama atual da Criminologia. Isto importa, na condensação, em fórmulas poderosas, de toda uma série de pesquisas e reflexões, de doutrinas e revisões metodológicas, em muitos países e em épocas distintas, dessa maneira integrados no plano geral, capaz de, por assim dizer, fixar o clima atual dos estudos criminológicos e até de elucidar a razão da crise de crescimento da disciplina, que agora se manifesta. O roteiro esboçado dessa forma exige um grande e demorado esforço prévio de prospecção das melhores jazidas científicas e um amadurecimento de convicções, apto a discernir a presença de minérios valiosos. Ademias, para que a síntese possa funcionar como notícia e orientação endereçados à cultura geral, não especializada, do auditório, urge suprimir certas minúcias técnicas, no conteúdo e na forma. Tudo isso é de esmagadora responsabilidade, e devo antes de mais nada, convocar a indulgência de todos os que me honram com sua atenção. Imagino que me formularam silenciosamente, com a curiosidade alerta, na receptividade das inteligências, algumas perguntas embaraçosas. Que departamento particular de ciência é ocupado pela Criminologia? Que se vem fazendo, nesse ramo do saber? A que conclusão chegaram os que a ele se dedicam? Como se revelaram elas úteis e valiosas na aplicação? Estas perguntas inspiram-me um certo receio de que, ao cabo, não esteja aqui para uma simples conferência, e, sim, para uma prestação de contas, chamado, inclusive, a persuadir o auditório da importância dos estudos que me consomem o tempo dedicado à pesquisa, à reflexão e ao ensino. A situação ficaria, portanto, a reclamar que a Criminologia estivesse melhor representada. Mas a temeridade da aceitação de um convite levou-me a selar o compromisso, e urge cumpri-lo. Para iniciar com um ponto fundamental, sou, inclusive, chamado à afirmação de que realizo uma atividade cientifica, sem que o status cientifico da Criminologia se possa dizer pacifico. Ainda recentemente, PETROCELLI reeditava a velha questão: se há de se atribuir status cientifico a um estudo do crime, da realidade, como fazer que esta ciência assente sobre um conceito que não é dado pela realidade do ser, e, sim, normativizado pelo dever ser? Não é o direito que oferece o conceito de crime? Este é o primeiro “impasse” metodológico da Criminologia, que já se apresentou em seu inicio e é, até hoje, repetido em duas posições antagônicas. Diz-se que, se a Criminologia pretende distanciar-se do Direito, para estudar a realidade do crime fora da camisa de força jurídica, ela precisa, então, forjar um conceito

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PANORAMA ATUAL DA CRIMINOLOGIA

ROBERTO LYRA FILHO

 

    A minha palestra hoje, está subordinada ao título “Panorama Atual da Criminologia”. Ora, o Panorama atual da Criminologia, talvez pudesse ser abordado por três caminhos principais: o primeiro colheria as raízes históricas, mostrando como elas foram amadurecendo e como assumiram a forma presente. Neste caso, a visão seria panorâmica, mas sobrecarregada de minúcias inatuais. O segundo desprezaria o itinerário percorrido, fixando-se numa série de problemas que, agora, atraem mais particularmente a atenção dos especialistas, a exemplo da difusão dos trabalhos da Escola de Utrecht. Nesta hipótese, porém, ganharíamos somente na atualização, perdendo de vista o panorama. Para agravar ainda mais as dificuldades, cumpriria dizer que, abandonando a perspectiva histórica, incorreríamos em certas ingenuidades, de que não estão isentos determinados grupos de criminologistas, com a reedição de velhas posições, a título de novidade. Por mais que me assustem os compromissos de um terceiro caminho, só ele me poderá levar à realização da tarefa, para a qual fui convocado: oferecer um panorama atual da Criminologia. Isto importa, na condensação, em fórmulas poderosas, de toda uma série de pesquisas e reflexões, de doutrinas e revisões metodológicas, em muitos países e em épocas distintas, dessa maneira integrados no plano geral, capaz de, por assim dizer, fixar o clima atual dos estudos criminológicos e até de elucidar a razão da crise de crescimento da disciplina, que agora se manifesta. O roteiro esboçado dessa forma exige um grande e demorado esforço prévio de prospecção das melhores jazidas científicas e um amadurecimento de convicções, apto a discernir a presença de minérios valiosos. Ademias, para que a síntese possa funcionar como notícia e orientação endereçados à cultura geral, não especializada, do auditório, urge suprimir certas minúcias técnicas, no conteúdo e na forma. Tudo isso é de esmagadora responsabilidade, e devo antes de mais nada, convocar a indulgência de todos os que me honram com sua atenção.

    Imagino que me formularam silenciosamente, com a curiosidade alerta, na receptividade das inteligências, algumas perguntas embaraçosas. Que departamento particular de ciência é ocupado pela Criminologia? Que se vem fazendo, nesse ramo do saber? A que conclusão chegaram os que a ele se dedicam? Como se revelaram elas úteis e valiosas na aplicação? Estas perguntas inspiram-me um certo receio de que, ao cabo, não esteja aqui para uma simples conferência, e, sim, para uma prestação de contas, chamado, inclusive, a persuadir o auditório da importância dos estudos que me consomem o tempo dedicado à pesquisa, à reflexão e ao ensino. A situação ficaria, portanto, a reclamar que a Criminologia estivesse melhor representada. Mas a temeridade da aceitação de um convite levou-me a selar o compromisso, e urge cumpri-lo.

    Para iniciar com um ponto fundamental, sou, inclusive, chamado à afirmação de que realizo uma atividade cientifica, sem que o status cientifico da Criminologia se possa dizer pacifico. Ainda recentemente, PETROCELLI reeditava a velha questão: se há de se atribuir status cientifico a um estudo do crime, da realidade, como fazer que esta ciência assente sobre um conceito que não é dado pela realidade do ser, e, sim, normativizado pelo dever ser? Não é o direito que oferece o conceito de crime? Este é o primeiro “impasse” metodológico da Criminologia, que já se apresentou em seu inicio e é, até hoje, repetido em duas posições antagônicas. Diz-se que, se a Criminologia pretende distanciar-se do Direito, para estudar a realidade do crime fora da camisa de força jurídica, ela precisa, então, forjar um conceito próprio do crime, sem o que estará perpetuamente subordinada ao que o Direito, mudando de lugar a lugar e de tempo a tempo, estabelece. Objetam os juristas que este conceito não existe e que a mais breve investigação histórica virá determinar que não há nada que tenha sido em todos os tempos considerado ilícito penal. E não há, também, nada que em todos os lugares seja, hoje e agora, considerado ilícito penal. Tal “impasse” desenvolveu-se de forma ainda mais aguda, na medida em que se estabeleciam certas prevenções contra a permitiam - ciência nascente. Estas prevenções eram oriundas de uma luta que se travou em redor do berço da Criminologia. Os senhores não ignoram que, no berço da Criminologia, está o segundo grande César do Direito Penal, CÉSAR LOMBROSO. É o esboço de duas vertentes: a que parte de LOMBROSO e a que parte de FERRI. Esses, parece-me, seriam os nomes a gravar numa perspectiva histórica; no mais, houve antecipações, verificações, repercussões. Mas esses dois nomes imediatamente polemizam a Criminologia em seu nascedouro, porque aparecem como autores de obras que se colocaram em pé de guerra dentro da luta das Escolas Penais, fundando a segunda grande Escola. Aliás, é excusado dizer, que ela é segunda por um artifício; porque a primeira não houve. Quando os positivistas, a cuja a orientação se achavam vinculados os nomes de LOMBROSO e de FERRI, lançaram a sua cunha dentro do Direito Penal, enfeixaram os seus adversários e aqueles que os antecederam, como os consagrados, e

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rotularam-nos de clássicos, procurando verificar, em todos eles, que formavam corte mui diversificada, certa unidade de orientação.

    A Criminologia, por ter nascido sobre estes auspícios polêmicos, lutou muito tempo para desembaraçar-se deles. Não quer isto dizer que ficasse desprestigiado o que, no sentido de precursores, aqueles dois grandes nomes representaram. A Criminologia lutou no sentido de subtrair o que havia de polêmico nas suas posições, o que havia daquele ardor desmedido das primeiras reivindicações, conduzindo, naturalmente, a alguns exageros.

    Nesse contexto, e ao nascer, apareceu a Criminologia logo desafiada a dizer o que é crime. Como se poderia conceber uma ciência do crime, sem uma definição de crime, uma ciência de desconhecesse o seu objeto, ou que subordinasse o seu objeto ao Direito, que se pretende colocar noutro ângulo, inaugurando uma série autônoma e diversa de estudos? Se compulsarem as obras mais recentes de Criminologia, na parte metodológica, verão que, de par com um grande crescimento de contribuições isoladas, existe sempre esse ponto litigioso que ainda esta a reclamar uma solução definitiva. Citei aqui o nome de PETROCELLI, porque, ainda há pouco, publicava uma contribuição a respeito, em que compendia todo o debate. Se o quisermos encaminhar para uma solução (e PETROCELLI se propõe, inicialmente, a compor o litígio), teremos que rever as posições possíveis. Ou pretenderemos fundar a Criminologia na definição que o Direito nos der de crime, ou pretenderemos apresentar uma definição autônoma, criminológica, e não jurídico-penal, de crime. No primeiro caso, defrontam-nos com a dificuldade, que não se pode sobrepujar, de por uma ciência que se pretende ciência do ser, dentro do esquema de uma ciência do dever ser, porque voltada, principalmente, para normas. E isto iria fazer também com que não pudéssemos jamais aspirar a ter uma verificação criminológica universalmente válida, pois ela estaria toda focalizada à base de um conceito de crime, que é local e que está situado no tempo. Se, então, quiséssemos empreender o itinerário oposto, e oferecer, dentro da Criminologia, um conceito de crime, estaríamos reeditando o que aquele sonho frustrado de GAROFALO, nas origens da Criminologia: chegar à definição de delito natural. Ele não o fazia em termos filosófico-jurídicos; obedecida à orientação positivista. Não pretendia definir delito natural em termos do chamado Direito Natural; pretendia fazer uma construção, em última análise empírico-científica, apesar de inserir, ali, um aspecto até filosófico: o que postula o caráter evolutivo da moralidade.

    Ora, se revirmos todas as posições que atualmente andam por essa pauta, como por exemplo, a de ALTAVILLA, verificaremos que se trata de reedição, com algumas virgulas e adjetivos a mais, do que se pretendera assentar GAROFALO, que, como sabem, reconhecida um certo sentimento médio, de probidade e piedade, cuja a infração representaria o crime, independentemente das diferentes previsões legislativas e dos diferentes ordenamentos jurídicos. A coisa era soberanamente complexa e desmontou-se à primeira verificação. Este sentimento médio de piedade e probidade, só poderia ser haurido, historicamente, no tempo e no espaço. E em síntese, se quiséssemos traduzir, com alguma ironia, o que era a posição de GAROFALO, poríamos um sinal de igualdade; se crime seria, no sentido natural, a infração ao sentimento médio de piedade e probidade, e se esse sentimento médio de piedade e probidade era algo que GAROFALO hauriu ali, no contexto cultural a que pertencia, em última análise, a definição criminológica de crime, se reduzia a isto: Crime é o que GAROFALO e seus adeptos consideravam crime, em função do “background” cultural em que se inseriam, inclusive quanto à “crença” em raças humanas “superiores” ... Se derem-se ao trabalho de rever a próprio obra de GAROFALO, verão que ele participava, inclusive, de todos os preconceitos daquele europeu da sua época, e a tal ponto que julgava essas paragens americanas, já não digo as nossas, mas a América do Norte, um “habitat” de primitivos.

    Duas tentativas frustradas: a primeira, subordinar ao jurídico, porque não funda a ciência; a segunda, fundar a ciência sobre areias movediças. O que se proporia como solução? Dizia, em uma da suas obras, o criminologista alemão SEELIG que não se deve superestimar esse problema. É um problema de todo o conjunto de estudos que vai armando, para aspirar ao status científico, porque nenhuma ciência nasceu por decreto. No momento em que ela começa a organizar-se, metodologicamente, já assenta num lastro de conhecimentos, e se vai gradualmente desprendendo, como formação histórica. A certa altura, sente-se em tais condições de vigor e coordenação que postula o reconhecimento científico. Este, entretanto, não é pacífico. Se quiséssemos superestimar o problema, chegaríamos talvez “a conclusão de que não vale a pena cogitar de Criminologia, como ciência. Mas ela assim ficaria liquidada, e continua passando muito bem, ciência ou não. Se tomássemos a obra dos criminologistas, sem essa preocupação metodológica, deixando-a para consideração posterior, e procurando verificar, apenas, o que se pratica sob o rótulo Criminologia talvez nos encaminhássemos para uma solução. Verificaríamos que se vai esboçando, gradualmente, uma certa decantação, uma certa cristalização, que poderá sugerir alguns resultados úteis, já mais ou menos delineados. Qual o caminho? A escola

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criminológica francesa, com as preocupações de harmonia e simetria, que são características do espírito gaulês, pretendeu formular, em termos mais precisos, esta orientação geral a que me referia. E ela assenta nas chamadas constantes normativas. É certo que a realidade local ou histórica, de lugar a lugar, de tempo a tempo, faz com que varie o rol, o repertório dos crimes. Se GAROFALO fracassou e não se pode dar um conceito de crime que se desprenda, inteiramente, do jurídico, não seria lícito que se analisassem os diferentes ordenamentos jurídicos para verificar o que é, senão permanente, senão absoluta, pelo menos relativamente constante? Não há certo grupo de infrações que mais acentuadamente traduzem uma constante, subsistindo, de povo a povo, de época a época? Este primeiro passo, ainda revela um certo “impasse”, porque ele assenta num critério puramente estatístico. Seria um trabalho meticuloso, a um tempo histórico e internacional, de se verificar nos sucessivos ordenamentos jurídicos, coexistentes, quais as figuras que se apresentam com maior regularidade. Isto não ia resolver o problema do criminologista; ia dar uma solução puramente matemática ao assunto. E essa solução se revelaria, desde logo, inadequada. Para que nos convencessemos disto, bastaria verificar que, num determinado ordenamento jurídico qualquer, que agora resolvêssemos examinar, dentre os que se acham em vigor, em qualquer país, às vezes, como nos Estados Unidos, em qualquer estado, o que prevalece é um conjunto de infrações puramente convencionais. Convencionais no sentido de que definem situações sobre as quais se quis colocar o selo de criminosas, porque conveniências do momento assim o ditavam. Ora, se fizéssemos apenas uma triagem estatística, iríamos chegar à conclusão de que estas são as figuras importantes para o trabalho do criminologista, o que não é exato, ele vai procurar algo de mais profundo, algo que traduza um desajustamento mais acentuado. Notem que, exatamente neste caminho, é que se começa, então, a esboçar a combinação de um outro critério com as constantes normativas. Não seriam apenas aquelas figuras que se reproduzem no tempo e no espaço com alguma regularidade. Seriam, dentre estas, aquelas que traduzem um certo desajustamento, mais profundo.

    Notem, entretanto, que, sob certo aspecto, tinha razão SEELIG, ao dizer que esta questão esta sendo muito superestimada, porque alguma coisa existe. Alguma ordem de estudo existe. Então, há de parecer que, se a Criminologia ainda não assentou raízes firmes, no sentido de que possa ser definida e recortada liminarmente, com precisão metodológica, o melhor caminho, para chegarmos a alguma noção atualizada dela, seria rever o que ali se faz. Se fizermos esse percurso, verificaremos que a Criminologia ainda continua dominada por certos vícios de origem, que poderiam ser focalizados à base do que ocorreu quando LOMBROSO lançou a sua cunha numa vertente, e FERRI, noutra. Só hoje vem surgindo o criminologista. A Criminologia foi obra, durante muito tempo, de médicos ou de advogados, cada um puxando um pouco o acento metodológico para o seu lado. E como a posição do jurista FERRI era uma posição vinculada àquela origem positivista, no sentido da influência Comteana, veio permeada, também, de sociologismo e, então, ampliou-se um pouco a gama. Ali se encontravam o médico, o advogado e o praticante daquela ciência nascente, que era então a Sociologia. Em última análise ficávamos nós, aspirando à condição de criminologistas, como tributários, de sociólogos, de antropólogos, de psicólogos, de psiquiatras, de juristas a lutar pela síntese criminológica. E isto foi acentuado, numa contribuição do professor francês JACQUES BERNARD HERZOG, em Congresso Internacional de Criminologia. Dizia ele que não vira, ainda, na Criminologia, trabalhos que tivessem contextura autônoma, pois ela vive na medida em que vivem as ciências a que esta filiada. Por isso mesmo é que, a certa altura dessa imensa pugna, se pretendeu acabar com a Criminologia e falar em Ciências Penais. Isto, ao invés de facilitar a solução, agravou, ainda mais, o aspecto problemático. Figurem como se multiplica esse aspecto metodológico, se ao invés de falar em criminologia, adjetivarmos diferentes aspectos científicos: Psicologia Criminal, Psiquiatria Criminal, Antropologia Criminal, Sociologia Criminal. Restaria, de qualquer forma, a necessidade de definir o que é crime. O adjetivo viria sobre um substantivo oscilante. Ademais, todo aquele que se dedicava a uma ciência correlata, ou um ramo da ciência correlata, julgou-se habilitado a tratar do fenômeno crime, geralmente carecendo da visão global. E até com pretensões explicativas radicais, de dizer que a solução do fenômeno crime estudado em suas causas, estava em seu terreno especializado. O psiquiatra via anomalias psíquicas e discutia com adeptos da corrente psicanalista. Até a nascente Endocrinologia, ainda tão envolta em misteriosas relações da secreção de glândulas e das correspectivas? alterações psíquicas, pretendeu abrir o ramo da Endocrinologia Criminal. Como vêem, o panorama se turvou, cada vez mais. Mas, voltamos à pergunta: que faz o criminologista? Ali trabalha o médico, enquanto médico: dá receitas? Faz diagnósticos? Trabalha o advogado, enquanto advogado: interpreta leis, cuida de sua aplicação? Constrói institutos? Trabalha o psicólogo, enquanto psicólogo? Se nos dedicássemos a essa pesquisa, veríamos que os estudos que pretendem aspirar ao rótulo de criminológicos subdividem-se em dois tipos, bem definidos, duas vertentes principais, que já receberam, por sua vez, rótulos específicos, talvez não os mais adequados. Uma vertente é a chamada antropológico-criminal e outra, sociológico-criminal. A designação da primeira, chamada Antropologia Criminal, talvez não seja das mais felizes, porque ela relembra a questão, também delicada, do recorte metodológico de Antropologia e coloca-o em termos que não coincidem, nem com o da Antropologia Física, nem com o da Cultural. O ramo antropológico-criminal da Criminologia pretende estudar a figura do

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delinqüente, enquanto indivíduo; o ramo sociológico-criminal procura estudar a Criminalidade em globo, como fato social. É dentro dessas duas grandes vertentes que se inserem todos os estudos criminológicos. E que dados concretos emergem? Num panorama como este, em que não teremos oportunidade de esmiuçar todas as contribuições, vale assentar, talvez, direções principais. Vamos dizer que, por hipótese, já estivesse fixado, para satisfação nossa, o conceito de crime. Como a Criminologia pretenderia abordá-lo? O crime é, preliminarmente, ato de um homem. Alguém deflagrou uma arma e matou o seu semelhante. Isto pode, ou não, ser crime. Pode não ser crime, se ocorre, por exemplo, a legítima defesa, mas pode não ser crime, também, se constituir ato de bravura do soldado, em tempo de guerra, quando se estimula, sob certas condições, o ato de matar. E, num panorama histórico, ainda mais se complica o assunto. Lembremos que opaterfamilias romano tinha ius vitae necisque sobre os filhos. Os exemplos mostram com que dificuldades lida o criminologista. Entretanto, o fato matar alguém se apresenta com razoável constância, e consegue permear-se em todos os ordenamentos, com alcance criminal. Pois bem, a Criminologia em seu ramo antropológico, pretenderia estudar o homicídio, como ato do individuo, em seus diferentes tipos, ao passo que a sociologia criminal, outro ramo, pretenderia estudar a criminalidade inclusive o homicídio, em globo, nas suas características. Fixemo-nos, inicialmente, no ramo antropológico-criminal. Falei no homicídio, em todos os seus tipos, mas é preciso salientar que não se trata do tipo jurídico. Para fazer uma idéia de como se diversificam as abordagens do jurista e do criminologista, vemos que o homicídio, exempli gratia, pode ocorrer, por motivações muito diversas. Posso matar o meu semelhante num altercação, num momento de exaltação; posso mata-lo pelos motivos mais sórdidos, como no caso, do homicídio para herdar. Tudo isto, o jurista colocaria sob o rótulo, o nomen iuris homicídio. E o criminologista vai redistribuir em categorias as mais diversas, como nota SEELIG. Então, a primeira constatação que fazemos é a presença de uma subjetivação. E, aqui, há dois pontos a salientar: tal subjetivação é característica da escola positiva no terreno jurídico, e é vencedora em larga parte; em larga margem, ela já apresenta repercussões institucionais. Os Códigos começaram a adotar uma linha subjetivadora, cada vez mais acentuada, e sob o influxo de uma ordem de influências que associa, no nascedouro, a Escola Positiva do suspenso, na sua condição de ciência, já influenciara em seu berço aquela outra de que seria tributária, o Direito. Porque os ordenamentos jurídicos sobre os quais a ciência vai assentar o seu estudo, já se estão formando numa base de influencia criminológica. Este aspecto, por exemplo, a subjetivação, é característico, porque adveio, de uma pugna nas origens da Criminologia, dentro da chamada escola positiva, e se alastrou dentro da Ciência Jurídica, sob a égide da Criminologia. Há influência criminológica até no jurídico. Há pouco, o impasse era o inverso; era saber como se constitui a Criminologia, sem o Direito, que dita a noção de crime. Incumbe à Criminologia, e, não, especificamente, ao Direito, estudar o fenômeno delituoso, no seu mecanismo psicológico e social. Mas, para executar essa tarefa, há imensa diversidade metodológica e essa diversidade imensa de métodos está contaminada pela estrutura metodológica da Criminologia, ainda débil e polêmica. Se ela está discutindo a sua condição cientifica, seus processos técnicos, e seu método em geral, tudo revela, sob certo aspecto, alguma imaturidade. Já se começa, entretanto, a esboçar a unificação. E ela vem tomada, por empréstimo, a uma raiz até filosófica. Começamos a ver, ora expressa, ora implicitamente, na obra dos criminologistas, porém com muita ênfase, com muita repetição, o verbo “compreender”. E este tem um sabor germânico, verstehen. Está dirigindo a atenção para a luta, nas raízes filosóficas, entre as ciências da natureza e as ciências do homem. Aqui, tratamos de uma ciência, se é ciência, que do homem cuida. Quando se entendeu que era preciso desprender daquele contexto, que então prevalecia nas ciências naturais, a própria Sociologia, apareceu a orientação chamada culturalista, de raiz sobretudo alemã, e de irradiação por todo o mundo latino. Isto advinha de uma séria de intuições por todo o mundo latino. Isto advinha de uma série de intuições iniciais, que ganhou um pregoeiro em DILTHEY e as mais diversas colorações, nas obras, por exemplo, de SIMMEL, de MAX WEBER e outros.

    Já estamos chegando a um ponto em que a Criminologia, expressa ou implicitamente, adota o método de compreensão, como demonstra, longamente, PELÁEZ. Em que consiste esse método? Seria necessário todo um conjunto de conferências para descreve-lo mais aprofundadamente. Num dos trabalhos de pós-graduação que realizei nesta Universidade, tive o cuidado de faze-lo, obra por obra, autor por autor. Mas há um contexto geral. Há um sentido geral que pode ser expresso mais sinteticamente. De que cuidam as ciências do homem? Um homem não age como a pedra que cai. Ele age teleológicamente, voltado para um fim e motivado por valores. Então, há de haver um método diferente, para estudar a estrutura e a conduta do homem. Não é o mesmo que se presta à verificação da queda dos corpos. A causalidade natural, acentua MAC IVER, só precisa do espírito para ser captado. A causalidade social necessita dele par existir. Nas ciências do homem, este é objeto do estudo e não só autor dele. Daí a necessidade, apontada pelo sociólogo citado, de uma reconstrução imaginativa. Como afirmava ZNANIECKI, grande parte do conteúdo da realidade cultural (e social) é imaterial, e esse conteúdo, embora não sensorialmente dado, é empiricamente observável. DILTHEY falava em hineinversetzen, nachbilden e nachleben (transferir, reproduzir e reviver) o que se pode resumir com RODRUGUEZ, em por-se no lugar do outro, não para fazer ou dizer, de fato, o que ele realiza ou intenta, nem

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para pensar o que eu, sendo o que sou, faria ou diria, mas para conhecer idealmente o que o outro pretende ou fez. A abordagem compreensiva é projetiva, portanto, e um dos cuidados de MAX WEBER, ao sintetizá-la, foi escapar ao subjetivismo, fazendo-a evitar os perigos da simples introafecção ou endopatia, encaminhando-se para a construção dos tipos ideais. É o que assinala, a respeito ECHAVARRIA. Não posso cuidar, aqui, mais longamente, deste assunto, a não ser a título de mera referência. O tema, em si, reclamaria várias conferências, incluindo outro panorama o da própria Sociologia, dilacerada entre as correntes naturalísticas e culturalista. E a corrente naturalística não é senão uma sobrevivência do seu período inicial, que eu me permiti chamar Sociologia por metáfora, porque começou como física social, que seria biologia, e assim por diante. Era aquela ciência nascente, que não tinha ainda o seu vocabulário e a sua forma própria, e se valia de metáforas para explicar o fenômeno que observava. Voltando ao nosso terreno, vemos que, cada vez mais se acentua a importância do chamado método de compreensão; mesmo entre os criminalistas, em que, por falta de um mais demorado estudo filosófico, esta preocupação não aparece expressamente, ela aparece implicitamente. É muito curioso ver, por exemplo na atmosfera criminológica alemã, onde o clima filosófico é muito denso, uma posição “naturalística” exprimir-se em linguagem de método de compreensão. Há uma nítida tendência, no mesmo sentido, ainda que, em muitos casos, puramente intuitivo, na Criminologia francesa, ou nos trabalhos mais recentes da Escola de Utrecht. A diversidade metodológica vai-se unificando pela preocupação compreensiva, mas notem: compreender o fenômeno, exige a movimentação, dentro desta unidade de método, duma diversidade técnica, porque mesmo no mecanismo do indivíduo homem, há um aspecto somático e há um aspecto psíquico. E entre um e outro se estabelece um sistema complexo de relações. Temos uma química inserida em nosso organismo. Temos até, sob certos aspectos, uma física, e temos é evidente uma psicologia. A própria ciência psicológica vai dividida, ora tendendo para o ângulo biológico, ora tendendo para o puramente filosófico racional, ora se colocando sob a égide mais abrangedora, que foge ao empirismo rasteiro ou a dedutivismo excessivamente filosofante. A Criminologia vale-se dos processos técnicos ou mais diversos. A esse propósito cumpre apontar algo de importante; é que ficaremos, sempre, com a desconfiança de que não estamos tratando de Criminologia, e sim, como pretendia HERZOG, de uma colcha de retalhos, retirando um pedaço a cada ciência; mas, as ciências se emprestam, mutuamente, esses fragmentos. Não posso cogitar, por exemplo, de Antropologia, já no sentido de Antropologia Cultural, sem ter uma base bio-psíquica. Não posso cogitar, sequer, de elementos, psicológicos, sem atentar, simultaneamente, no social. Além da ciênciaponte, a Psicologia Social, há aspectos de inserção do condicionamento sociológico na “psique’ individual da mesma. Não é de estranhar, pois que a Criminologia esteja a arrancar trechos de outras ciências, para o seu estudo especializado. Mas este é o seu ponto principal: focalizar o fenômeno crime, e focalizá-lo dentro de um ângulo de compreensão; à primeira abordagem, em seu aspecto individual. Deu-se o crime; é preciso saber, que estrutura biológica, que superposição de mecanismo psicológico, atuaram para que resultasse a delinqüência, sem rigidez determinística, pois, dizia bem SEELIG, o homem não é simples estação de passagem de processos causais. Notem que, se resolvêssemos deferir o estudo global a cada uma das ciências que pretendem “compreender” esse fenômeno, ora à psicologia, ora à psiquiatria, à psicanálise, aliás, muito reivindicatória, cada uma teria uma explicação que se pretenderia global. Essa explicação, entretanto, seria muito pouco elucidativa; a esse propósito, vale a pena reviver uma constatação de GREEF, quando dizia; “é preciso evitar que se pense, que um detalhe explica tudo, mas não devemos negligenciar qualquer detalhe”. Essa tendência, particularizadora esta presente, por exemplo, em GRAPIN, que analisou duas mil orelhas de homicidas. Ao fim deste trabalho, faltando enquadramento, caberia perguntar o que se conclui de tanta orelha ... São os perigos de quem se lança ao campo sem mais, sem saber a que vai; se, por um lado, podemos incorporar prudentemente todas as aquisições, também, por outro lado, temos de caminhar para alguma forma de síntese. Porque o nosso foco principal de interesse não é a Psicologia, não é a Biologia. É o crime, que vai servido por uma série de maneiras de focalizar esse fenômeno complexo, dentro de diversos âmbitos de observação. Confiram, por exemplo, duas correntes de psicanalistas, digladiando-se dentro da Criminologia, e verão algo de bastante curioso. Abram ALEXANDER e STAUB e verão o criminoso como primitivo, hipergenital, agressivo, instintivo. Abram KLEIN, e lá encontrarão, ao contrário, a severidade do superego, gerando ressentimentos, traumatismos, sentimento de culpa, e fazendo aparecer o crime como auto-punição. Nesse contexto, o que vem fazendo a Criminologia? Vem colecionando tudo isso; vem ouvindo todas essas instâncias e vem formando, gradativamente, o que é sua maior ambição: uma síntese criminológica. Não vai atribuir ao que constatou o endocrinologista a função explicativa ou compreensiva total do fenômeno crime, mas ele tem algo a dizer. Não vai atribuir ao que analisou o mecanismo psicológico a última palavra em torno do assunto, mas ele tem algo a dizer. Não vai atribuir àquele que se foi adentrar na anormalidade pelos caminhos psiquiátricos a palavra definitiva, mas ele tem algo a dizer. Dentro dos estudos criminológicos atualizados da Escola francesa por exemplo, encontra-se, na aplicação da caracterologia, feita por um RENÉ RESTEN uma síntese da caracterologia proveniente da Escola de GRONINGUE e difundida na França por LE SENNE, juntamente com teses de psicanálise, sobretudo com uma raiz em JUNG, e assim por diante. Se relerem a Caracterologia do Criminoso, de RESTEN, descobrirão um aspecto psicanalítico, um aspecto psicológico, e até

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um psiquiátrico, todos eles entrosados, sem esquecer derivações sociológicas. Nenhum dos elementos isolados pode servir à compreensão do fenômeno total; e é aí que se pretende inserir a Criminologia.

    Mas ficou esboçada apenas uma vertente. Se cogitássemos de fenômenos individuais, do crime como um ato do indivíduo, desde logo verificaríamos que esta distinção do ângulo individual é um tanto arbitrária; e´ uma cisão metodológica, apenas. O criminoso nasce dentro de um determinado meio? Está inserido num contexto social, e num background ecológico. A outra vertente criminológica, em suas raízes históricas, é posterior. Primeiro a Antropologia Criminal, cujo pai foi LOMBROSO; depois a Sociologia Criminal, sobretudo com FERRI. Este, pelos seus compromissos de posição, procurou situar a ênfase no aspecto social. Não interessaria estudar o crime de A ou B; interessaria saber que a criminalidade como já dizia o velho LACASSAGNE nasce daquele famoso caldo de cultura que é a sociedade. Seria, então, esta que se precisaria estudar. Mas, aqui pediríamos que se reconhecesse, como na micro e macro Criminologia. Isto, como endereço principal dos estudos, não querendo dizer que uma não relações com a outra; porque, ou elas convivem e se entrosam, ou se inutilizam reciprocamente. (Aliás, quando tratar da dinâmica do crime, terei oportunidade de mostrar como a questão foi agudamente pensada por um criminologista!. A segunda vertente seria, portanto, o Sociológico-Criminal. Já vamos caminhando para um entrosamento maior. Para meus alunos preparei um esquema, mostrando como Sociologia Criminal, a rigor, não é uma coisa só; aparece com uma feição dupla. Se tomarmos a comunidade, como aquele meio onde nascem as instituições, em que se concretizam e que disciplinam as associações, como diria MAC IVER, veremos que, dentro dela, surge uma determinada estrutura social. Essa estrutura, e esse mecanismo de controle se institucionaliza; o direito, é um exemplo, típico, de mecanismo de controle social, e o Direito Penal é um exemplo típico e extremo, dada a gravidade da sanção penal. Então, se alguém se lançasse ao estudo da gênese, estrutura e funcionamento dessas raízes sociais do Direito, estaria fazendo um estudo sociológico, mas de Sociologia do Direito Criminal, e não de Sociologia Criminal. Porque, lateralmente, enquanto dessa comunidade nasce uma estrutura que busca os mecanismos de controle para estabilizar-se, surgem processos dissociativos; esses processos dissociativos geram desorganização social que combate a estrutura social. E a forma extrema deste processo de desajustamento é exatamente a criminalidade. Assim como a forma extrema do processo de controle é a instituição jurídico-penal. Não insiro a criminalidade numa “patologia” social, porque desejo evitar a quebra da atitude cientifica, axiológicamente neutra, pelo menos enquanto objetiva, ressalvando, inclusive, o aspecto convencional de uma parte das definições jurídicas de crime e atuação de processos dissociativos, inclusive no sentido de progresso e superação, dentro do ponto de vista “sociológico”, o que só pode ser “medido” por uma Filosofia da História e uma Filosofia Social. A Sociologia Criminal, propriamente dita, há de encarar a criminalidade, em globo, em massa. E há de fugir, com todas as deferências, à pura quantificação estatística. Não vou entrar, mais longamente, nesta questão, porque já em 1964, neste mesmo auditório, tive oportunidade de proferir uma conferência a respeito. Permito-me dizer, simplesmente, que o nosso intuito não é menoscabar os processos estatísticos, sem dúvida muito importantes; é, apenas, ter sempre presente que eles podem ser aquilo que um dos pais da Estatística Criminal, QUETELET definiu: u’a mentira em números. Isto foi provado por SEELIG, que usa largamente os processos estatísticos, mas chama a atenção para os mecanismos de controle, evitando a falsa impressão de exatidão. É o caso da critica por ele feita a certas estatísticas austríacas, em relação à criminalidade feminina, mostrando como escapavam à possobilidade de quantificação alguns fenômenos, que eram, aqueles sim, os importantes e elucidativos e que iam fazer compreender o processo criminológico estudado. Mas, se temos, por um lado, essas duas vertentes convivendo, e se procuramos entrosa-las numa síntese criminológica, o que de atual se exprime dentro destas sínteses? Várias fórmulas foam tentadas: por exemplo, a de ALEXANDER, a de GRAPIN, a de MEZGER, esta mais compreensiva. O importante é associar os âmbitos macro e micro criminológico, para alguma verificação útil, sob pena de empilharmos sobre as mesas os estudos, sem extrair nenhuma conclusão. Foi exatamente por esse motivo, que se chegou, na criminodinâmica de FLESCH, a chamar a atenção para que isso de individual e coletivo tem que ser ainda subdividido. O individual, que ele chamou particular, caso concreto; o individual geral, ou seja, os tipos criminológicos individuais que se manifestam, inclusive neles interferindo os fatores sociais; o coletivo, que não é simplesmente, uma soma de individuais, e sim, um fato à parte, pois o crime é uma coisa e a criminalidade (fato social) é outra; e, finalmente, da análise separada desses dois fenômenos um entrosamento que chamou global. Mas, ao falar em síntese, é importante assinalar que o primeiro cuidado da criminologia atual é abandonar aquela primitiva tendência a assentar leis, e estabelecer, rigidamente, causas. Logo à primeira abordagem do estudo sociológico-criminal, armou-se a constatação estatística, em torno da criminalidade, nos hemisférios boreal e austral; e era uma generalização gigantesca à base daquela tendência de pacificar-se com uma “explicação”: a famosa lei térmica da criminalidade. Por outro lado, a influência da abordagem compreensiva e das construções probabilitárias (não rigidamente determinísticas) já inspirou as reservas do casal GLUECK, falando em associação de fatores e, não, em causas, porque estão sentindo que é impossível colocar fenômenos humanos em termos de pura causalidade. Poderíamos continuar discorrendo longamente sob esse panorama.

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Com o ardor de especialista, talvez dedicássemos a ele mais do que a generosa atenção do auditório pudesse suportar. É preciso, entretanto, concluir. A Criminodinâmica pretendeu estabelecer-se através de fórmulas: uma delas é a de MEZGER: AC = (p + d) P x (ap + aa) M. Ele situou, como fatores da ação criminosa, de um lado, a personalidade; de outro, o meio. Não é possível fugir disto. Qualquer criminologista que tenha estudado o fenômeno crime, do ângulo coletivo ou individual, defronta-se com este binômio, que ressurge em todas definições e formulações. Apenas, na fórmula de MEZGER, há um certo cuidado de subdividir personalidade-meio em determinados aspectos; ? talvez esteja aí uma síntese de como se entrosam todos os estudos criminológicos. AC é a ação criminosa. O P maiúsculo e o M maiúsculo designam personalidade global e meio. Mas, notem que ele faz preceder cada um de mais dois elementos: o p minúsculo que se acha naquela chave, refere-se à predisposição; o d minúsculo, ao desenvolvimento da personalidade, e, na chave pertinente ao meio, consigna ap e aa, isto é, o ambiente da personalidade e o ambiente da ação. Notem que subdividiu a personalidade global inserindo, nela, os elementos de predisposição e desenvolvimento; porque nesse desenvolvimento se realiza também em função de um meio, e não só o “social”, mas inclusive o cósmico geográfico, que o meio não é simplesmente uma coisa estranha à personalidade, é algo que se insere nela. Em termos orteguianos, falaríamos em eu e circunstância.

    Deixemos que ressurjam agora, aqueles problemas metodológicos iniciais. Em que pesem tais dificuldades, sobre o conceito de crime, os estudos criminológicos se vão fazendo. O que estabelecem, afinal? A noção de crime não é fixa; daí toda a disputa que se delineia entre normalidade e anormalidade. Mas esse não é um problema só nosso, da Criminologia; é um problema da Psicologia, também. A Psicologia tem suas questões de limites com a Psiquiatria, com a Sociologia... A maceração medieval seria uma forma de masoquismo? Normal ou anormal? Não há condições, influências, até sociais, que se estabelecem e entram no interior da ciência, forçando certas reformulações? Não é o caso, por exemplo, do próprio “objeto móvel” da Ciência Histórica, pela influência filosófica na seleção do fato relevante? LUCIEN FEBVRE chega a sustentar que o historiador cria a História. Por que somente a Criminologia cederia à impugnação? Se podemos desprezar as aderências impuras, de mera conveniência local ou históricas; se procuramos mergulhar na análise daqueles fenômenos que representam um mais profundo desajustamento entre personalidade e meio; se vemos, por outro lado, que a própria cristalização de toda a estrutura social, também já vai sendo influenciada, por sua vez, pelos processos dissociativos, abatendo culturas e estruturas, com seus mecanismos de controle, e erguendo novas maneiras de sentir e agir, não é de estranhar que a ciência mesma fique situada nesse contexto, pugnando pela objetividade, mas até certo ponto sócio-culturalmente condicionada. Citei o exemplo da Psicologia. Mas ela ainda continua dilacerada, ela ainda continua recebendo o impacto da pressão de certas formulações sociais. Não é inexpressivo lembrar que existe uma categoria psiquiátrica dos chamados “fronteiriços” e que não há paz no estudo das personalidades psicopáticas. O “social” pode influenciar o conceito psicológico mesmo. A noção de desajustamento psíquico é influenciada pela de desajustamento social, cujo parâmetro é uma sociedade dada, que o cientista deve tentar encarar objetivamente, sem deixar de ser, simultaneamente, expectador e ator. Como exigir da Criminologia um conceito definitivo de crime, se noutros setores, manifestam-se oscilações? Esta oscilação é fatal; esta oscilação prosseguirá; esta oscilação é fecunda. SUTHERLAND escreveu a sua monografia fundamental sobre “White Collar Crime” o crime de colarinho branco (prefiro traduzir, crime de paletó e gravata). O que é o crime de paletó e gravata? Ele estava diante uma conjuntura social norte-americana. Vira a formação dos grandes impérios industriais; sentira que, nesse processo, ia se arrastando muita coisa de roldão. Achou que havia, à margem do crime maltrapilho, um crime de colarinho e gravata que precisava ser estudado, que não era contemplado no ordenamento jurídico, porém, cuja análise, por sua vez, poderia determinar até providências legislativas. Há de haver um intercâmbio permanente, entre o jurista e o criminologista. Nenhum pode prescindir do outro. Não podemos abandonar inteiramente o ordenamento jurídico, sem o que o conceito de crime perde o sentido; mas não nos podemos prender a ele, sem o que contemos o influxo criador, numa referência simultânea aos “silêncios legislativos” que são o reverso do “silêncio social” diante das previsões legislativas, estudados pelos criminologistas e, sobretudo, os sociólogos criminais. E a antropologia criminal sofre o impacto da sociologia. Vejam, por exemplo, o que ocorreu com EDWARD SHELDON. Ele resolveu traçar o seu esquema de somatotipos e apontou uma personalidade criminosa, no tipo por ele chamado dionisíaco, que era aquele tipo exuberante, predatório, afirmativo, dominador dos fracos, extravasando um potencial possivelmente criminógeno, em sentido amplo. Ligou, porém, esse fato a padrões sociais e viu, na organização social competitiva, “normalizar-se” o seu somatotipo. Que é o grande capitão de indústria, senão aquela personalidade dominadora, dionisíaca, um “White collar”, possivelmente até “criminal”, no sentido também amplo? Esse intercambio sócio-antropológico é constante, e a cada momento se vai manifestando. Então, poderíamos dizer, afinal, que, se isso nos pacifica, um pouco, quanto ao estado atual da Criminologia, ela também não se pode colocar, como ciência, fora do contexto social. Se não visa a estabelecer política criminal, nutre e inspira uma política criminal. É a verificação do criminologista, diante do impacto de uma realidade social que a influencia, que vai constituir o fecundo

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laboratório, de observação e, até, experimentação, donde nascem sugestões, alimentando, inclusive, em termos de repercussões legislativas, uma política criminal. Essa política criminal tem raízes e metas sociais. Nasce da conjuntura, governa-se com valores e arma-se teleológicamente. Um grande jusfilósofo alemão, que também tem uma parte da sua obra, aliás importante, dedicada ao Direito Penal, GUSTAV RADBRUCH disse que, diante da nossa realidade social, o Direito Penal perdeu a tranqüilidade de consciência. Opera numa sociedade em crise. Para que se devolva a tranqüilidade de consciência ao Direito Penal, talvez seja possível convocar outra voz, que inseriu uma nota de equilíbrio, em fecundo ecletismo, logo após as primeiras conquistas positivas: VON LISZT. Se quiséssemos extrair algo dessa consciência de uma sociedade em crise, dessas derivações criminógenas que vemos surgir, e que só podem ser analisadas dentro de um contexto social que envolve o próprio ordenamento jurídico em seus fundamentos, deveríamos lembrar que a verdadeira política criminal, segundo VON LISZT, é uma política social.

. Transcrição da fita em que foi gravada a Palestra proferida no auditório da Universidade de Brasília, a 1.º de junho de 1966.