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MACHADO DE ASSIS UMA LEITURA Autor cuja obra é leitura obrigatória na maioria das escolas brasileiras, Machado de Assis é execrado por parte significativa de seus jovens leitores, apesar ou em decorrência da insistência dos professores em iniciá-los no universo machadiano. Isso talvez se deva à forma como essas leituras são apresentadas, processadas, cobradas, avaliadas, quase nunca, fruídas. Essa rejeição surpreende, uma vez que a sociedade brasileira ainda apresenta muitos dos traços satirizados nos textos machadi- anos, e o humor requintado do autor deveria seduzir, envolver os estudantes. Por que isso não ocorre? Talvez pela obrigatoriedade da leitura... Talvez pelo vocabulário que, dado o caráter dinâmico da linguagem, já em muito se distancia da do século XIX, quando viveu e escreveu nosso autor. Talvez pela dificuldade que os alunos têm para operar com a figuratividade e com a metalinguagem que perpassam os textos machadianos... Talvez pela falta de percepção da própria realidade em que estão inseridos, de modo que não se veem espelhados nas narrativas de Assis... Talvez. Fato é que, dada a genialidade desse autor, não são raros aqueles buscam meios de cooptar novos leitores para o universo machadiano. Flávio Carneiro, por exemplo, em artigo publicado no Jornal O Popular, Goiânia, (03/10/2001) afirma que ―Ainda não criaram nenhum manual de instruções para ler Machado, felizmente.‖, e sugere que o leitor não tenha pressa, já que um bom romance deve ser lido devagar, sem correria, se possível sem prazo para terminar. No mesmo artigo, Carneiro provoca seu leitor com um questionamento: ―Mas, afinal de contas, por que ler Machado de Assis?‖O próprio autor responde que ―Antes de mais nada, porque é muito bom! O que, convenhamos, já é razão suficiente para se fazer qualquer coisa. De todo modo, se você acha que a resposta é pouco convincente, temos outras: porque Machado é um escritor que nos ensina a ler e a escrever sem que pareça estar ensinando coisíssima nenhuma; porque é um autor que inventava, em pleno século XIX, a literatura do século XX; porque é engraçado; porque é inteligente sem ser pedante; porque cai no vestibular (opa, essa não vale).Tudo isso serve como resposta. Há, no entanto, um outro motivo: Machado de Assis nos mostra que o mundo não pode ser entendido a partir de uma mera oposição entre certo e errado, bem e mal.‖ ( http://www.flaviocarneiro.com.br/obra/comoe porque lermachadode assis.html) A escritora Patrícia Secco, por sua vez, lançou uma versão de "O Alienista", obra de Machado, de 1882, em que as frases estão mais diretas e algumas palavras são trocadas por sinônimos mais comuns ("sagacidade" virou "esperteza", por exemplo"). Em matéria recente veiculada pela Folha de São Paulo,ela declarou:"Entendo porque os jovens não gostam de Machado de Assis. "Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso."

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MACHADO DE ASSIS – UMA LEITURA

Autor cuja obra é leitura obrigatória na maioria das escolas

brasileiras, Machado de Assis é execrado por parte significativa de

seus jovens leitores, apesar ou em decorrência da insistência dos

professores em iniciá-los no universo machadiano. Isso talvez se

deva à forma como essas leituras são apresentadas, processadas,

cobradas, avaliadas, quase nunca, fruídas.

Essa rejeição surpreende, uma vez que a sociedade brasileira

ainda apresenta muitos dos traços satirizados nos textos machadi-

anos, e o humor requintado do autor deveria seduzir, envolver os estudantes. Por que isso não

ocorre? Talvez pela obrigatoriedade da leitura... Talvez pelo vocabulário que, dado o caráter

dinâmico da linguagem, já em muito se distancia da do século XIX, quando viveu e escreveu

nosso autor. Talvez pela dificuldade que os alunos têm para operar com a figuratividade e com a

metalinguagem que perpassam os textos machadianos... Talvez pela falta de percepção da

própria realidade em que estão inseridos, de modo que não se veem espelhados nas narrativas

de Assis... Talvez.

Fato é que, dada a genialidade desse autor, não são raros aqueles buscam meios de cooptar

novos leitores para o universo machadiano.

Flávio Carneiro, por exemplo, em artigo publicado no Jornal O Popular, Goiânia, (03/10/2001)

afirma que ―Ainda não criaram nenhum manual de instruções para ler Machado, felizmente.‖, e

sugere que o leitor não tenha pressa, já que um bom romance deve ser lido devagar, sem

correria, se possível sem prazo para terminar. No mesmo artigo, Carneiro provoca seu leitor com

um questionamento: ―Mas, afinal de contas, por que ler Machado de Assis?‖O próprio autor

responde que ―Antes de mais nada, porque é muito bom! O que, convenhamos, já é razão

suficiente para se fazer qualquer coisa. De todo modo, se você acha que a resposta é pouco

convincente, temos outras: porque Machado é um escritor que nos ensina a ler e a escrever sem

que pareça estar ensinando coisíssima nenhuma; porque é um autor que inventava, em pleno

século XIX, a literatura do século XX; porque é engraçado; porque é inteligente sem ser pedante;

porque cai no vestibular (opa, essa não vale).Tudo isso serve como resposta. Há, no entanto, um

outro motivo: Machado de Assis nos mostra que o mundo não pode ser entendido a partir de uma

mera oposição entre certo e errado, bem e mal.‖ (http://www.flaviocarneiro.com.br/obra/comoe

porque lermachadode assis.html)

A escritora Patrícia Secco, por sua vez, lançou uma versão de "O Alienista", obra de Machado, de

1882, em que as frases estão mais diretas e algumas palavras são trocadas por sinônimos mais

comuns ("sagacidade" virou "esperteza", por exemplo"). Em matéria recente veiculada pela Folha

de São Paulo,ela declarou:"Entendo porque os jovens não gostam de Machado de Assis. "Os

livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito

longas. Eu simplifico isso."

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A iniciativa foi bem recebida por alguns, criticada por outros e houve também aqueles que

preferiram o silêncio face ao pedido de apreciação da versão ―adaptada‖ de Machado

(http://www1.folha.uol.com.br/colunas/cidadona/2014/05/1445858-escritora-muda-obra-de-

machado- de-assis-para-facilitar-a-leitura.shtml)

Não pretende-se aqui defender ou contestar a posição de Carneiro ou Secco, citados apenas com

o propósito de ilustrar o quão diversificadas são as propostas de trabalho com Machado de Assis.

O que propõe-se nesta atividade é algo diferente do que ambos apresentam: uma leitura

orientada, didática, capítulo a capítulo, com a reprodução de alguns verbetes que viabilizam a

compreensão de pontos chave e questões que levem o aluno/leitor à reflexão, à compreensão, à

fruição desse gênio da literatura. Antes, porém, julga-se indispensáveis algumas informações que

podem ajudar o leitor a desvelar os não ditos e a ironia machadiana.

A leitura será iniciada pela biografia de Machado de Assis, pois, diferentemente de Carneiro,

pensa-se que o conhecimento da vida e do contexto em que viveu um autor contribui para a

significação de sua obra.

Biografia

Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta,

novelista, romancista, crítico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de

1839. Filho de um operário mestiço de negro e português, Francisco José de Assis, e de D. Maria

Leopoldina Machado de Assis, perdeu a mãe muito cedo. Foi criado pela madrasta, Maria Inês,

também mulata, que se dedicou a ele e o matricula na escola pública, única que frequentou o

autodidata Machado de Assis.

De saúde frágil, epilético, gago, foi criado no morro do Livramento. Com a morte do pai, em 1851,

Maria Inês empregou-se como doceira num colégio do bairro São Cristóvão, onde morava, e

Machadinho, como era chamado, tornou-se vendedor de doces. Nesse colégio, teve contato com

professores e alunos e é provável que assistisse às aulas nas ocasiões em que não estava

trabalhando.Mesmo sem ter acesso a cursos regulares, empenhou-se em aprender. Foi um

autodidata.

Aos 16 anos, publicou seu primeiro trabalho literário, o poema "Ela", na revista Marmota

Fluminense, da qual se tornou colaborador efetivo.

Com 17 anos, empregou-se como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, e começou a

escrever durante o tempo livre. Conheceu o então diretor do órgão, Manuel Antônio de Almeida,

autor de Memórias de um sargento de milícias, que se torna seu protetor. E daí por diante teve

ascensão rápida até ocupar importantes cargos.

Dizem os críticos que Machado era"urbano, aristocrata, cosmopolita, reservado e cínico, ignorou

questões sociais como a independência do Brasil e a abolição da escravatura. Passou ao longe

do nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no Rio, como se não houvesse outro

lugar. A galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da observação

psicológica.

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Sua obra divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiano-realista, quando

desenvolveu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil

e o estilo é preciso, reticente. O humor pessimista e a complexidade do pensamento, além da

desconfiança na razão (no seu sentido cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus

contemporâneos." (http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp)

Observação

Não está detalhada aqui toda a trajetória profissional e bibliografia de Machado de Assis. Deixa-

se isto para o leitor e leitor de Machado de Assis: listar curiosidades sobre a vida desse autor que

possam ter contribuído para sua obra.

O estilo Machadiano

O estudioso Francisco Achcar traça resumidamente do estilo de Machado de Assis:

- Machado é o grande mestre do foco narrativo de primeira pessoa, embora tenha exercido com

mestria também o foco de terceira pessoa. Ele sabe colocar-se no lugar de um narrador hipotético

e vivenciar todos os seus grandes problemas.

- Machado não procura causas muito explícitas ou claras para a explicação das personagens e

situações. Ele sabe deixar na sombra e no mistério aquilo que seria inútil explicar.

- A frase machadiana é simples, sem enfeites. Os períodos, em geral, são curtos, as palavras

muito bem escolhidas e não há vocabulário difícil (alguma dificuldade que pode ter um leitor de

hoje se deve ao fato de que certas palavras caíram em desuso).

- A descrição dos objetos limita-se ao que neles é funcional, ou seja, àquilo que esteja

relacionado com a história narrada.

- Apresenta uma forma contraditória de apreensão do mundo, uma vez que apanha o fato em

suas versões antagônicas, pois tem os olhos voltados para as contradições do mundo.

- O estilo machadiano focaliza as personagens de fora para dentro: vai ―descascando‖ as

pessoas, aparência atrás de aparência, por isso Machado é considerado grande "analista da alma

humana".

- A linguagem machadiana faz referências constantes aos estilos de outros grandes autores do

Ocidente. Na maioria dos casos, essas referências são implícitas, percebidas somente por

leitores familiarizados com as grandes obras da literatura.

- Em seus romances mais importantes, Machado de Assis pratica a interpolação de episódios,

recordações, ou reflexões que se afastam da linha central da narrativa. Essas "intromissões" de

elementos que aparentemente desviam-se do tema central do livro correspondem a um

procedimento chamado digressão. Nessas digressões, Machado é constantemente seduzido pelo

impulso de falar sobre a própria obra que está escrevendo, isto é, faz metalinguagem,

comentando os capítulos, as frases, a organização do todo.

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- Uma das características mais atraentes e refinadas de Machado de Assis é sua ironia, uma

ironia que, embora chegue ao humor em certas situações, é sutil, perceptível somente a leitores

proficientes. Essa ironia é a arma mais corrosiva da crítica machadiana aos comportamentos, aos

costumes, das estruturas sociais.

Personagens

Os personagens de Machado de Assis são geralmente burgueses, arquitetados e inseridos na

trama com o intuito de desmascarar o ―jogo‖ das relações sociais, muitas vezes pela ênfase ao

contraste entre aparência x essência de cada um deles. Esses personagens são instrumentos por

meio dos quais ecoa denúncia da vaidade, futilidade, hipocrisia, inveja que perpassam as

relações sociais e denunciam a imperfeição humana.

Sugerimos que o aluno-leitor seja motivado a identificar e significar algumas dessas

características ao longo da leitura de um dos textos de Machado de Assis, para que, pouco a

pouco, ele desenvolva as habilidades necessárias à fruição autônoma desse autor.

O ALIENISTA

Machado de Assis

CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr.

Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das

Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não

podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,

expedindo os negócios da monarquia.

—A ciência, disse ele à Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando

as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos

casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz

de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não

menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que

D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade,

dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos

robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um

sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus,

porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva,

miúda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos.

Aíndole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro,

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depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores

árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs,

e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida

exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo;

e à sua resistência,—explicável, mas inqualificável,— devemos a total extinção da dinastia dos

Bacamartes.

Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou

inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe

chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia

na colônia, e aindano reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase

inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a

brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada por ele mesmo, mas em

um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos

sabedores.

—A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.

—Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e

comensais.

A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não

fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na

própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da

vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão

ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os

loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria

quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a

vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos

absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum,

pareceu, em si mesma, sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do

médico.

—Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio

ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.

D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um

principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a

certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a

intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os

vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu

autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o

tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-

la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de

dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche

mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem

as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-

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se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não

acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.

— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é

que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?

Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença

começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo,

tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes.

Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela

consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e

profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por

tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que

o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.

A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez

apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações

próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às

cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes

tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D.

Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores

e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la

duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam

como a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade

do tempo, —porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe

tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.

Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

Excerto para a 1ª e 2ª questões.

―As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr.

Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das

Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não

podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,

expedindo os negócios da monarquia. ―

1ª questão

PESQUISE o gênero ―crônica‖ e EXPLIQUE, com base nas características desse gênero, se é

possível que o Dr. Simão Bacamarte tenha, de fato, existido.

2ª questão

REESCREVA em linguagem atual o fragmento sublinhado. Atenha-se ao registro padrão.

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Excerto para a 3ª e 4ª questões.

―Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando

as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos

casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz

de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não

menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que

D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade,

dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos

robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um

sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus,

porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva,

miúda e vulgar da consorte. [...]

D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A

índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro,

depois cinco.‖

3ª questão

INDIQUE de maneira clara e objetiva os 2 motivos que levaram Bacamarte a escolher D. Evarista

como esposa.

4ª questão

JUSTIFIQUE a afirmativa sublinhada.

Excerto para a 5ª e 6ª questões.

―Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia

cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de

intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.

— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.

— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e

comensais.‖

5ª questão

PESQUISE sobre a área atuação da psiquiatria e EXPLIQUE por que se pode afirmar que a

expressão emoldurada foi inadequadamente utilizada por Bacamarte, tendo em vista o ramo da

medicina ao qual ele se dedicou.

6ª questão

INDIQUE o nome que se daria, nos dias atuais, à profissão de Crispim Soares.

7ª questão

EXPLICITE a voz que se infere da fala do boticário.

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Excerto para a 8ª e 9ª questões.

―A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não

fazer caso dos dementes.‖

vereança

Substantivo feminino.

1.V. vereação (2 e 3):

"Diante da escalada de suspeitas [envolvendo a Câmara municipal da cidade de São Paulo], a

vereança examina a abertura de novo inquérito para investigá-las." (Folha de S. Paulo,

10.8.1999.)

vereação

[De verear + -ção.]

Substantivo feminino.

1.Ato ou efeito de verear; vereamento.

2.O conjunto dos vereadores duma câmara municipal; municipalidade; edilidade.

3.Cargo de vereador; edilidade. [Sin., nas acepç. (2 e 3): vereança.]

4.Tempo de duração desse cargo.

8ª questão

CARACTERIZE, a partir do excerto, os vereadores de Itaguaí.

9ª questão

AVALIE se essa caracterização aplica-se aos vereadores de sua cidade.

Excerto para a 10ª, 11ª, 12ª e 13ªquestões

[...] ―cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas

descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta

pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à

Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das

demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do

enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e

encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos

absurdos, ou ainda maus.A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum,

pareceu, em si mesma, sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do

médico.‖

alcova

(ô). [Do ár. al-qubba(t), 'cúpula', 'abóbada'; 'edifício com cúpula' e, no ár.-hisp., 'pequeno quarto

adjacente a uma sala'.]

Substantivo feminino.

1.Pequeno quarto de dormir situado no interior da casa, sem aberturas para o exterior; recâmara.

2.Quarto de mulher.

3.Dormitório de casal.

4.Quarto de dormir.

5.Teatr. V. innerstage. [Var.: alcoba.]

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10ª questão

EXPLIQUE, a partir do fragmento sublinhado e do verbete acima, a avaliação de Bacamarte em

relação aos ―cuidados‖ dispensados aos loucos furiosos.

11ª questão

PESQUISE sobre a lei antimanicomial e ANALISE se há convergência entre o que propõe essa

lei e a iniciativa de Bacamarte.

12ª questão

INDIQUE quem enuncia o fragmento em negrito.

13ª questão

REESCREVA o excerto em linguagem coloquial e contemporânea.

Excerto para a 14ª e 15ª questões.

―A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu, em si mesma, sintoma

de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.‖

demência

[Do lat. dementia.]

Substantivo feminino.

1.Psiq. Qualquer deterioração mental; afrenia, afrenesia, atimia.

2.Pop. Loucura, doidice, parvoíce.

3.Procedimento insensato. [Sin. ger.: dementação e (p. us.) amência.]

Demência precoce. 1. Psiq. Esquizofrenia.

14ª questão

INDIQUE:

- a quem ―A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum‖ pareceu sintoma de

demência;

- quem a população julgou demente;

- a que personagem essa percepção foi exposta.

15ª questão

EXPLIQUE se essa insinuação da sociedade itaguaiense confirma-se no decorrer da narrativa.

Excerto para a 16ª e 17ª questões.

―D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido1, disse-lhe2 "que estava com desejos", um

principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que3 a ele4lhe5 parecesse adequado a

certo fim. Mas aquele grande homem6, com a rara sagacidade que o7 distinguia, penetrou a

intenção da esposa8e redarguiu-lhe9 sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde10 os

vereadores debatiam a proposta11, e defendeu-a12 com tanta eloquência, que a maioria13 resolveu

autorizá-lo14 ao que pedira15, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o

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tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-

la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de

dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche

mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem

as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-

se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não

acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.‖

16ª questão

Releia o fragmento acima com atenção aos termos sublinhados.

O autor utiliza-se de vários mecanismos de coesão, de modo especial os de natureza referencial,

como os sublinhados no excerto.

TRANSCREVA-o se INDIQUE o elemento referenciado de cada um deles.

17ª questão

LEIA o texto a seguir e EXPLIQUE por que se pode dizer que há traços marcantes do gênero

crônica no fragmento destacado em vermelho.

CRÔNICA

A crônica é um texto de carácter reflexivo e interpretativo, que parte de um assunto do quotidiano,

um acontecimento banal, sem significado relevante.

É um texto subjetivo, pois apresenta a perspectiva do seu autor, o tom do discurso varia entre o

ligeiro e o polêmico, podendo ser irônico ou humorístico.

Características da crônica

O discurso

Texto curto e inteligível (de imediata percepção);

Apresenta marcas de subjetividade – discurso na 1ª e 3ª pessoa;

Pode comportar diversos modos de expressão, isoladamente ou em simultâneo:

- narração;

- descrição;

- comentários;

- reflexão.

Linguagem com duplos sentidos / jogos de palavras / conotações;

Presença de ironia;

Predominância da função emotiva da linguagem sobre a informativa;

Vocabulário variado e expressivo de acordo com a intenção do autor;

Pontuação expressiva;

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Emprego de recursos estilísticos.

A temática

Aborda aspectos da vida social e quotidiana;

Transmite os contrastes do mundo em que vivemos;

Apresenta episódios reais ou fictícios.

A crônica pode ser política, desportiva, literária, humorística, económica, mundana, etc.

http://apoioptg.blogspot.com.br/2007/04/caractersticas-da-crnica.html Adaptado. Acesso em 12 de jun. 2014.

Excerto para a 18ª, 19ª e 20ª questões.

―Uma vez empossado da licença (Bacamarte) começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova,

a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e

numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que

Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não

pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas,

como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII,

merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida

daquele pontífice eminente.‖

arabista

[De árabe + -ista.]

Substantivo de dois gêneros.

1.Especialista em língua árabe.

frontispício

[Do b.-lat. frontispiciu.]

Substantivo masculino.

1.V. fachada principal:

frontispício gótico;

"o teatro de minha terra, com seu globo azul no frontispício, dominado pelo voo de uma águia de

massa" (Carlos Drummond de Andrade, Fala, Amendoeira, pp. 72-73).

2.Bibliogr. Estampa colocada na face da folha de rosto.

3.Bibliogr. V. portada (3). [Acepç. universalmente condenada pelos bibliógrafos e que está em

crescente desuso.]

4.Rosto, cara, face.

pontífice

[Do lat. pontifice.]

Substantivo masculino.

1.Ecles. Dignitário eclesiástico (bispo, arcebispo, patriarca).

2.Ecles. O Papa [v. papa1 (1)].

3.Sacerdote da religião romana.

4.Ministro do culto de uma religião.

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5.Fig. Chefe de seita, sistema ou escola.

Pontífice romano. 1. V. papa1 (1).

Sumo Pontífice. 1. V. papa1 (1).

18ª questão

Considere a descrição da Casa Verde para AVALIAR se os ―doidos‖ ali hospedados estariam

melhor que na alcova em que viviam na casa dos familiares.

19ª questão

No frontispício de uma instituição psiquiátrica na cidade de Barbacena – MG, conhecida por haver

abrigado um dos maiores hospícios do Brasil, havia a seguinte inscrição:

“Aqui não estão todos que são, nem são todos os que aqui estão”. ANALISE a pertinência dessa inscrição ao local em que encontrava.

20ª questão

AVALIE, com base na leitura global de O alienista, se a frase apresentada na questão anterior

seria adequada ao frontispício da Casa Verde.

CAPÍTULO II

TORRENTE DE LOUCOS

Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o

mistério do seu coração.

— A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o

sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de S. Paulo aos Coríntios: ―Se eu conhecer

quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada‖. O principal nesta minha obra da Casa

Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos,

descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração.

Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.

— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.

— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior

campo aos meus estudos.

— Muito maior, acrescentou o outro.

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E tinham razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos,

eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de

quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-

se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a

existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por

exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um

discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e

latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um

rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!

— Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima

está vendo. Isto é todos os dias.

— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de

Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil

trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...

— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de

refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente

científica, e disso trato...

— Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!

Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O

primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela d’alva, abria os braços e

alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a

perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à

roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um

desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se

de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa,

matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.

O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fimdo

mundo à cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de

um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa ) toda a

sua genealogia, que era esta:

— Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi

engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês

engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

—Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.

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Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um

boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a

um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de

monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser

o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e

depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que

chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a

terra; tal era o poder que recebera de Deus.

Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por

interesse científico.

Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias

hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por

organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares,

aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes

deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita,

etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.—A Casa Verde, disse ele

ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual.

E o Padre Lopes ria deste pio trocado,—e acrescentava,—com o único fim de dizer também uma

chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus

enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí

passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo

aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as

simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão,

costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de

outra espécie, antecedentes na família, uma devassa,enfim, como a não faria o mais atilado

corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um

fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias

medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus

amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo

esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo,

era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia

muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

21ª questão

―Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o

mistério do seu coração.‖

RELATE, em linguagem atual, o que se narra no 1º parágrafo do Capítulo II, anteriormente

transcrito.

Releia o 2º parágrafo para responder à 22ª, 23ª, 24ª e 25ª questões.

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22ª questão

EXPLIQUE se esse parágrafo pode ser tomado como exemplo de metalinguagem e/ou

intertextualidade que caracterizam os textos do autor em estudo.

23ª questão

EXPLIQUE a metáfora usada por Bacamarte em relação à forma como exercia a caridade.

24ª questão

Machado de Assis fecha o 2º parágrafo com as seguintes palavras:

―Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.‖

INDIQUE:

- que mistério é esse;

- a que se refere o demonstrativo ―isto‖

25ª questão

ANALISE se há no parágrafo em estudo a presença da característica do estilo machadiano

reproduzido abaixo.

Apresenta uma forma contraditória de apreensão do mundo, uma vez que apanha o fato em

suas versões antagônicas, pois tem os olhos voltados para as contradições do mundo.

26ª questão

―Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros

cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete.‖

Informe-se sobre o papel da descrição no estilo machadiano e use sua imaginação para ampliar a

descrição das acomodações da Casa Verde, fugindo ao estilo do autor.

Excerto para a 27ª e 28ª questões.

―O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos

ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os

dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de

antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e

Tertuliano.‖

bronco [Do lat. vulg. *bruncu.]

Adjetivo.

1.Tosco, áspero, agreste:

rochas broncas.

2.Rude, rústico, inculto; ignorante, ignaro:

camponês bronco.

3.V. burro (12).

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vilão [Do lat. vulg. *villanu, 'habitante de vila ou casa de campo'.]

Adjetivo.

1.Que vive numa vila.

2.Fig. Rústico, rude, plebeu, grosseiro.

3.Abjeto, desprezível, sórdido.

4.V. avaro (1).

Substantivo masculino.

5.Habitante de vila.

6.Camponês, plebeu.

7.Homem desprezível e miserável.

8.Na Idade Média, camponês que trabalhava a terra do senhor feudal sem, no entanto, estar preso a ela.

9.V. avaro (3). [Pl.: vilãos, vilões, vilães. Fem.: vilã, viloa. Aum. nas acepç. 2 a 4 e 7 e 9: vilanaço e vilanaz.]

10.Antiga dança popular portuguesa.

11.Bras. Baile popular, variante do folguedo da trança, e no qual os participantes dançam com lenços ou paus, ou com

facas, em vez de fitas; vilão de faca, vilão de lenço.

tropos [Do gr. trópos.]

Substantivo masculino plural.

1.Filos. Argumentos com que os cépticos da Antiguidade pretendiam mostrar ser impossível atingir a verdade. ~ V.

tropo.

antítese [Do gr. antíthesis, 'oposição', pelo lat. tard. antihese.]

Substantivo feminino.

1.E. Ling. Figura pela qual se salienta a oposição entre duas palavras ou ideias; enantiose. Ex.:

"Era o porvir — em frente do passado, / A Liberdade — em face à Escravidão" (Castro Alves, Obra Completa, p. 154);

"Deixa que hoje me chame eternidade!" (Campos de Figueiredo, Imagem da Noite, p. 15).

2.P. ext. Qualquer oposição flagrante:

O branco e o preto formam uma antítese.

3.Ser ou coisa que representa essa oposição; o oposto:

O Diabo é a antítese de Deus.

4.Lóg. Oposição por contrariedade, ou por contradição, entre dois termos ou duas proposições. [Cf., nesta

acepç.,dialética (3) e oposição (11).]

apóstrofe [Do gr. apostrophé, pelo lat. apostrophe.]

Substantivo feminino.

1.E. Ling. Figura que consiste em dirigir-se o orador ou o escritor, em geral (e não sempre) fazendo uma interrupção, a

uma pessoa ou coisa real ou fictícia:

"Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?" (Castro Alves, Obra Completa, p. 290). [Este exemplo, tomado às

"Vozes d'África", e constituído pelo primeiro verso do famoso poema, é prova (e outras poderiam ser dadas) de que a

apóstrofe nem sempre é uma interrupção, como em nossos dicionários se lê.]

2.Interpelação direta e inopinada.

3.Catilinária. [Cf. apostrofe, do v. apostrofar, eapóstrofo.]

recamo [Do it. ricamo, ou dev. de recamar.]

Substantivo masculino.

1.Bord. Bordado ou ornato em relevo, sobre tecido:

"As bordaduras e os recamos de oiro, os veludos e sedas de fora, talhados à francesa, resplandeciam constelados de

pérolas e diamantes." (Rebelo da Silva, Contos e Lendas, p. 175.)

2.Fig. Ornato, ornamento, adorno. [Sin. ger.: recamadura.]

Dicionário Aurélio Eletrônico – Acesso em 23 jun. 2014.

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27ª questão

PESQUISE quem foram Cícero, Apuleio, Tertulino, recorrentemente citados pelo louco descrito

no excerto.

28ª questão

EXPLIQUE, a partir da leitura dos verbetes apresentados e de sua pesquisa, o que há de

inexplicável no caso de loucura descrito.

29ª questão

INDIQUE 2 características do estilo machadiano presentes no fragmento a seguir.

―— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de

Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil

trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...

— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de

refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente

científica, e disso trato...‖

Releia o excerto a seguir com atenção ao que se narra e responda à 30, 31ª e 32ª questões.

―Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João

de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as

penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque

imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se

despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.

Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandavadar, menos por caridade do que por

interesse científico.‖

30ª questão

INDIQUE quem

―fala‖:

―escrevia‖:

―mandava dar‖ o papel ao louco:

31ª questão

INDIQUE a razão pela qual Bacamarte fornecia papel ao louco o qual receava que as estrelas

despegariam do céu caso ele falasse.

32ª questão

RELACIONE esse excerto ao 2º parágrafo para analisar se Machado de Assis denuncia a

hipocrisia do ser humano por meio da construção do personagem Simão bacamarte.

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Excerto para a 33ª e 34ª questões.

―Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias

hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por

organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares,

aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes

deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita,

etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.—A Casa Verde, disse ele

ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual.

E o Padre Lopes ria deste pio trocado,—e acrescentava,—com o único fim de dizer também uma

chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.‖

chalaça [Por *charlaça, de charlar.]

Substantivo feminino.

1.Dito zombeteiro:

"O gosto da boa e grossa chalaça, a vontade infantil de jogo e diversão" (José Régio, em João Gaspar Simões,

Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XIX, p. 212).

2.Gracejo de mau gosto, ou insolente; graçola, chocarrice.

3.Caçoada, troça, zombaria.

33ª questão

REESCREVA, em linguagem atual, o que se relata no fragmento sublinhado.

34ª questão

INDIQUE a denúncia que o Padre faria ao Papa.

35ª questão

EXPLIQUE se Simão Bacamarte consideraria loucura a atitude de cada uma das personagens da

charge a seguir.

http://www.esmaelmorais.com.br/wp-content/uploads/

2013/01/charge110113.jpg Acesso em 22 jun. 2014.

EXTRAPOLANDO O CAPÍTULO

36ª questão

COMPARE os loucos que habitavam a Casa Verde àqueles com os quais Geraldo Viramundo,

personagem de O grande Mentecapto – Fernando Sabido, conviveu em sua estada em sanatório

de Barbacena – MG.

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TEXTO para a 37ª e 38ª questões.

http://formulageo.blogspot.com.br/2012/07/o-clima-ta-

louco-charge.html Acesso em 20 de jun. 2014.

37ª questão

EXPLIQUE por que se pode afirmar que o personagem adulto utilizou-se da palavra ―louco‖ em

sentido figurado.

38ª questão

INDIQUE a quem o personagem infantil atribuiu a loucura.

39ª questão

EXPLIQUE se a loucura a que reporta a criança é literal ou figurada.

CAPÍTULO III

DEUS SABE O QUE FAZ

Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em profunda

melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe

nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia

calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que

tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que

se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:

— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...

Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto,— os olhos, que eram a sua

feição mais insinuante,— negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto

ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento.

Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de

uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo

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caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer

consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a

menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um

sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do

Cântico:

— Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que

posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que

Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora,

principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela

perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é

que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde

dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu,—um

sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:

— "Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a

não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se". E porque era homem estudioso tomou nota da

observação.

Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao

marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas

estradas.

— Irá com sua tia, redarguiu o alienista.

Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em

primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era

melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.

— Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.

— Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me

contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois

levou-a às arcas, onde estava o dinheiro.

Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a

opulência.

Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido

com a mais pérfida das alusões:

— Quem diria que meia dúzia de lunáticos...

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D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:

— Deus sabe o que faz!

Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho

deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí

cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa

manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista.

Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo.

Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o

preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não

era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a

gente de juízo.

—Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário.

E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da

besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante,

deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o

presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas

auroras.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

Excerto para 40ª à 41ª questões.

―Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em

profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava

fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas

padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o

que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de

dizer que se considerava tão viúva como dantes.

E acrescentou:

— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...

Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto,— os olhos, que eram a sua

feição mais insinuante,— negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto

ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento.

Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de

uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil.‖

reproche

[Do fr. reproche.]

Substantivo masculino.

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1.V. repreensão (1):

"Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e

senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos." (Machado de Assis, Papéis Avulsos, p.

13.)

ilustre

[Do lat. illustre.]

Adjetivo de dois gêneros.

1.Que se distingue por qualidades dignas de louvor; eminente, insigne:

Na sua profissão é figura ilustre.

2.Célebre, notável, famigerado.

3.Nobre, fidalgo:

Descende de uma casa ilustre. [Superl. abs. sint.: ilustríssimo.] ~ V. — desconhecido.

Dicionário Aurélio Eletrônico.

40ª questão

INDIQUE a referenciação das expressões em destaque.

41ª questão

EXPLIQUE se o adjetivo ―ilustre‖ foi empregado com propriedade no contexto enunciativo em que

se encontra.

42ª questão

AVALIE, com base nos capítulos anteriores, se a personagem possuía razões para se encontrar

tão triste.

43ª questão

COMPLETE a frase da personagem D.Evarista tendo em vista o contexto em que se insere.

— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...

44ª questão

Atenha-se à palavra em destaque no fragmento a seguir.

Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que

nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como

dantes. E acrescentou:

— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...

atrevimento [De atrever(-se) + -imento.]

Substantivo masculino.

1.Ação de atrever-se; ousadia, coragem, arrojo.

2.Petulância, audácia, insolência.

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atrever-se

[Do lat. tribueresibi, 'atribuir-se (a capacidade de fazer algo)'; esp. ant. treverse.]

Verbo pronominal.

1.Ter a ousadia, a coragem necessária para fazer ou tentar (alguma coisa); ousar, afoitar-se, abalançar-se:

Queria enfrentar o inimigo, mas não se atreveu; Atreveu-se a lutar com o touro.

2.Provocar, atacar; atirar-se.

3.Afrontar, enfrentar, arrostar:

É tão medroso que nem a um gato se atreve.

45ª questão

EXPLIQUE, considerando as demais informações presentes no parágrafo, por que o comentário

de D. Evarista foi um atrevimento no contexto em que se insere.

46ª questão

DESCREVA, a partir do excerto, a diferença entre gêneros no século XIX.

47ª questão

AVALIE se o perfil de D. Evarista corresponde ao perfil de mulher recorrente no estilo

machadiano.

48ª questão

D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que

posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que

Itaguaí.

RETEXTUALIZE o fragmento em linguagem contemporânea.

49ª questão

ANALISE se a conjunção ―mas‖, em destaque no excerto, foi usada com propriedade.

Excerto para 50ª e 51ª questões.

―Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto,— os olhos, que eram a sua

feição mais insinuante,— negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto

ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento.

Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de

uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo

caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer

consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a

menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um

sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do

Cântico:

— Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.‖

consternado

[Part. de consternar.]

Adjetivo.

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1.Profundamente triste; de ânimo abatido; prostrado, desalentado.

2.Que denota consternação; desolado:

um semblante consternado.

Dicionário Aurélio Eletrônico.

50ª questão

INDIQUE uma situação de paralelismo que se percebe no excerto.

51ª questão

JUSTIFIQUE, com base do que já se sabe sobre o protagonista, a atitude de Bacamarte que se

apresenta na parte sublinhada.

Excerto para 52ª, 53ª e 54ª questões.

―D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro,

que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do

que Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora,

principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela

perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é

que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde

dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu,—um

sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:

— ‘Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece

que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se’. E porque era homem estudioso

tomou nota da observação.

Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao

marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas

estradas.‖

52ª questão

INDIQUE duas estratégias a partir das quais o autor evidencia o quanto D. Evarista desejava

conhecer o Rio de Janeiro.

53ª questão

EXPLIQUE se o parágrafo em negrito foi proferido por Bacamarte.

54ª questão

EXPLIQUE se as aspas foram adequadamente empregadas no parágrafo em negrito.

55ª questão

EXPLIQUE a ironia que perpassa o fragmento a seguir.

―Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era

a opulência.

Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido

com a mais pérfida das alusões:

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—Quem diria que meia dúzia de lunáticos...‖

56ª questão

AVALIE se o capítulo veicula crítica a Simão Bacamarte ou aos médicos em geral.

57ª questão

RETEXTUALIZE o fragmento na estrutura de notícia.

Atenção: a linguagem e estruturadas frases devem ser compatíveis às utilizadas em jornais

atuais.

―Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho

deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí

cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa

manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista.

Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo.

Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o

preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não

era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a

gente de juízo.‖

58ª questão

RELEIA o fragmento com o objetivo de comparar o sentimento dos personagens em decorrência da viagem de suas esposas. ―E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.‖ COMPLETE o período a seguir de modo a EXPLICITAR, sinteticamente, os sentimentos de

Bacamarte e de Soares após verem partir suas esposas.

Crispim ___________________________________________________________________, mas

Bacamarte_____________________________________________________________________.

CAPÍTULO IV

UMA TEORIA NOVA

Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte

estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da

psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na

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rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas

de um olhar que metia medo aos mais heroicos.

Um dia de manhã,— eram passadas três semanas,— estando Crispim Soares ocupado em

temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

—Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.

Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e

especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele

os cronistas: Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só

dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita

vez:—"Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe

bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de

lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amém a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!"—E muitos

outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a

imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas

e voou à Casa Verde.

Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de

circunspeção até o pescoço.

— Estou muito contente, disse ele.

— Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.

O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:

—Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque

não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão

uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai

mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no

oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua

ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto

com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em

Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de

Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens

célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda,

Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura

vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal

promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou

sentenciosamente:

— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.

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— Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.

Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a

modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre

entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta

expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demais

vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar

uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz;—

ou por meio de matraca.

Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para

andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.

De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe

incumbiam,— um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo

eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha

inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que

possuía. Por exemplo, um dos vereadores,—aquele justamente que mais se opusera à criação da

Casa Verde,—desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca

domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os

meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no

peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema.

Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso

século.

— Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do

boticário.

E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor

começar pela execução.

— Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.

Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:

— Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a

pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da

loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só

insânia.

O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a

entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não

merecia princípio de execução.

— Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão

perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a

cerca?

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Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o

desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não

soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma

revolução.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

59ª questão

Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por

todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia.

A) INDIQUE o valor semântico-discursivo da locução conjuntiva emoldurada.

B) INDIQUE e EXPLIQUE a oposição que se apresenta no fragmento.

60ª questão

RELEIA o 2º período do 1º parágrafo.

―Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de

casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um

olhar que metia medo aos mais heroicos.‖

INDIQUE:

- a referenciação do pronome em destaque;

- a figura de linguagem de que se utiliza o autor em cada um dos fragmentos sublinhados;

- o efeito de sentido que se pode atribuir à expressão ―virgulando as falas‖, no contexto

enunciativo em que se encontra.

61ª questão

―Um dia de manhã,— eram passadas três semanas,— estando Crispim Soares ocupado em

temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.‖

boticário

[Do lat. apothecariu, 'encarregado da despensa, do depósito'.]

Substantivo masculino.

1.Dono de botica.

2.Preparador e vendedor de medicamentos na botica; farmacêutico.

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Considere que Crispim Soares era um boticário, para EXPLICAR o que seria ―temperar um

medicamento‖.

62ª questão

EXPLIQUE o efeito de sentido que decorre da metáfora que constitui o fragmento transcrito a

seguir. Para isso, considere o capítulo em estudo e os anteriores.

―A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo

a suspeitar que é um continente.‖

63ª questão

CARACTERIZE psicologicamente o personagem Crispim, a partir do que se narra no capítulo em

estudo.

64ª questão

Os personagens de Machado de Assis são geralmente burgueses, arquitetados e inseridos na

trama com o intuito de desmascarar o ―jogo‖ das relações sociais, muitas vezes pela ênfase ao

contraste entre aparência x essência. Esses personagens são instrumentos por meio dos quais

ecoa denúncia da vaidade, futilidade, hipocrisia, inveja que perpassam as relações sociais e

denunciam a imperfeição humana.

EXPLIQUE se Crispim confirma esse traço recorrente na obra de Machado de Assis no que se

refere à arquitetura de seus personagens.

Excerto para 65ª, 66ª, 67ª e 68ª questões.

―Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz;—ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam,— um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores,—aquele

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Matraca http://folclorevertentes.blogspot.com. br/014_03_ 01_archive.html. Acesso em 21 jun.2014.

justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde,—desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século. ―

65ª questão

SITUE, no estilo machadiano, o fragmento em destaque no excerto.

66ª questão

As matracas são usadas na atualidade por vendedores ambulantes de algodão-doce, picolés e

outras guloseimas. O ruído do instrumento é utilizado como isca, chamariz para a garotada.

Segundo o narrador, entretanto, tocar a matraca era uma estratégia para chamar atenção dos

passantes em relação ao que se tinha a anunciar. O tocador da matraca era, portanto, o portador

daquilo que se pretendia divulgar, inclusive propaganda política.

ANALISE se os políticos da atualidade utilizam-se da mídia da mesma maneira e com o mesmo

propósito que o vereador itaguaiense ao qual se reporta o narrador, no excerto em análise.

67ª questão

INDIQUE a ironia que perpassa o fragmento.

68ª questão

EXPLICITE a denúncia que se faz no fragmento.

69ª questão

―— Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a

pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da

loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só

insânia.‖

razão [Do lat. ratione.]

Substantivo feminino.

1.Faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar, ponderar ideias universais; raciocínio, juízo.

2.Faculdade que tem o homem de estabelecer relações lógicas, de conhecer, de compreender, de raciocinar; raciocínio,

inteligência.

3.Bom senso; juízo; prudência:

A razão nos obriga a ser cautelosos.

4.A lei moral; o direito natural; justiça, direito:

A razão impõe, para o caso, pena severa.

5.Causa, motivo:

Qual a razão de tamanha mudança?

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6.Fundamento ou causa justificativa de uma ação, atitude, ponto de vista, etc.:

Não há razão para abandonares a família;

Despediram o empregado sem razão.

7.Prova por argumento.

8.Conhecimento, notícia, participação:

Ordenou ao servo que lhe desse razão do ocorrido.

9.Filos. Faculdade superior de conhecimentos que se pretendem dotados de necessidade e universalidade, expressos de

modo discursivo e cujos princípios são inatos ou a priori.

10.Filos. Sistema de princípios a priori cuja verdade não depende de experiência.

11.Filos. Faculdade de conhecer o real, por oposição ao que é aparente ou acidental.

12.Filos. Princípio de explicação: o que dá conta de um efeito.

13.Relação entre grandezas da mesma espécie.

14.Mat. Quociente de dois números.

15.Mat. Diferença entre os termos consecutivos de uma progressão aritmética.

Substantivo masculino.

16.Cont. Livro de escrituração contábil que agrupa em contas, como, p. ex., Caixa, Duplicatas a receber, etc., os

lançamentos do diário (6). [Cf. rasão.] ~ V. razões.

Razão anarmônica. 1. Geom. Numa reta em que são dados quatro pontos, A, B, C e D, o quociente da razão em que C

divide o segmento AB pela razão em que D divide o mesmo segmento.

Razão áurea. 1. Mat. Razão entre duas quantidades que é igual ao número áureo (q. v.).

Razão de Estado. 1. Motivo baseado no interesse público.

Razão de homotetia. 1. Geom. Razão de semelhança.

Razão de massa. 1. Astron. Relação entre a massa de um foguete e a massa de seu combustível.

Razão de Poisson. 1. Fís. Razão entre a deformação lateral e a deformação longitudinal de um corpo.

Razão de ramificação. 1. Fís. Nucl. Quociente de duas frações de ramificação.

Razão de refluxo. 1. Quím. O quociente entre o destilado recolhido e o que retorna ao destilador, durante uma destilação.

Razão de semelhança. 1. Geom. O quociente constante das dimensões das linhas correspondentes de duas figuras

semelhantes; razão de homotetia.

Razão de transferência. 1. Fís. Parâmetro que mede o transporte de energia de um sistema oscilante para outro que lhe

está acoplado. [Quando é grande, a transferência de energia é elevada e o primeiro sistema determina fortemente o

comportamento do segundo.]

Razão de variação. 1. Mat. Valor de variação, na unidade de tempo, de uma grandeza variável.

Razão de verossimilhança. 1. Estat. O quociente do máximo da função de verossimilhança correspondente a um

subespaço de um espaço amostral pela função de verossimilhança de todo o espaço amostral.

Razão externa. 1. Geom. Numa reta em que são dados três pontos A, B e C, nessa ordem, a razão entre os segmentos

AC e BC.

Razão giromagnética. 1. Fís. Relação entre o momento magnético de um sistema atômico, ou subatômico, e o seu

momento angular intrínseco.

Razão harmônica. 1. Geom. Razão anarmônica igual a -1.

Razão interna. 1. Geom. Numa reta em que são dados os três pontos ordenados A, B e C, a razão entre os segmentos BA

e BC.

Razão inversa. 1. Mat. Razão entre inversos de números; razão recíproca.

Razão prática. 1. Filos. Segundo Kant (v. kantismo), a razão que se aplica à determinação da vontade.

Razão pura. 1. Filos. Segundo Kant (v. kantismo), quer a faculdade superior de conhecimento que se opõe à faculdade

empírica, à intuição, quer a faculdade superior que produz as ideias de Alma, Mundo e Deus.

Razão recíproca. 1. Mat. Razão inversa.

Razão simples. 1. Geom. Razão entre os segmentos formados por um ponto que divide um dado segmento de reta.

Razão social. 1. Firma (4).

Razões de cabo de esquadra. 1. Razões disparatadas:

"Tudo lhe servia de pretexto, necessidade de dar forte descanso aos animais, receio de chuvas próximas, razões todas de

cabo de esquadra" (Visconde de Taunay, Ao Entardecer, p. 90).

À razão de. 1. Ao preço de. 2. À taxa de; à porcentagem de.

Em razão de. 1. Por motivo de; por causa de; por:

"Os pais de Eugênio não deixavam de ralhar com ele em razão de não parar em casa." (Bernardo Guimarães, O

Seminarista, p. 29.)

Estar coberto de razão. 1. Ter toda a razão.

insânia [Do lat. insania.]

Substantivo feminino.

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1.Falta de juízo; loucura, demência:

"A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudsley lamenta não se

poder traçar entre o bom senso e a insânia." (Euclides da Cunha, Os Sertões, pp. 152-153.). Dicionário Aurélio Eletrônico

PESQUISE diferentes concepções de loucura e avalie se elas aproximam-se ou distanciam-se da

apresentada por Bacamarte.

CAPÍTULO V

O TERROR

Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa

fora recolhido à Casa Verde.

— Impossível!

— Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.

— Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...

Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí. Herdara quatrocentos mil cruzados em

boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no

testamento, para viver "até o fim do mundo". Tão depressa recolheu a herança, como entrou a

dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este,

oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de

chofre, o pasmo de Itaguaí seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à

abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria,

gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que

ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no

nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos

corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os

agasalhava com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis

devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com

certa perfídia: — "Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga". Costa não se deteve um

minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a dívida.— "Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu

mão de uma estrela, que está no céu". Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o

merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira.

Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não

cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor.

—―Agora espero que‖... — pensou ele sem concluir a frase.

Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os

sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à

rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um

verme, entretanto, roía a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou;

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três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos

daí a dois dias; era o resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa

emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco

meses depois era recolhido à Casa Verde.

Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-

se que o Costa ensandecera, no almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos,

que eram furiosos, sombrios, terríveis,—ou mansos, e até engraçados, conforme as versões.

Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado, falando

com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com

o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava

que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa

que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o

terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente

que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo

como dissipara os cabedais que...

—Isso, não! isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que

recebeu, a culpa não é dele.

—Não?

—Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem;

mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco

tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou.

A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje.

Então um homem feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio

(Deus lhe fale nalma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele,

abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga:—"Todo o seu dinheiro não há de durar mais

de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão! E mostrou o sino-salamão

impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito.

Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela

acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e

convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na

galeria dos alucinados.

A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém

queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma

senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz.

Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas

namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo

da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele

levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias!

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Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que

sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.

—Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo...

Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos,

era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o

privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes

coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso

e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos,

secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não

podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.

—―Há coisa,‖ pensavam os mais desconfiados.

Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava

de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia

mais, — a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se

podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas,—e o jardim, que era uma obra-prima

de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o

sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas,

mas repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que

a Casa Verde, mais nobre do que a da Câmara, Entre a gente ilustre da povoação havia choro e

ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa do albardeiro,—um

simples albardeiro, Deus do céu!

—Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.

De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na

casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos,

embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um

desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se

fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras

despregadas.

— Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.

A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo)

usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de

branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se

que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a

nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não

foi outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse

do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo

de contemplar a casa...

— Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.

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— Não?

— Há de perdoar-me, mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de

tarde, são os outros que o admiram a ele e à obra.—E contou o uso do albardeiro, todas as

tardes, desde cedo até o cair da noite.

Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os

costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma

notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias de

um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao

contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira

vez que Simão Bacamarte dava ao seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado,

disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as

mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que

Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que impaciência!

que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o à janela,

passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do

rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro

vulto de Itaguaí redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! Triste! não fez mais

do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.

—A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de

norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí,—a medo, é verdade, porque durante a semana que se

seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas,—duas ou três de consideração,—

foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos,

mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de

dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o

fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir,

com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era

o produto diário da imaginação pública.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a

mais comitiva, —ou quase toda—,que algumas semanas antes partira de Itaguaí O alienista foi

recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros magistrados. O momento

em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo

como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas

naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra

e atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma

mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como um diagnóstico, sem

desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e

desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos, D. Evarista recebia os cumprimentos dos

amigos e o préstito punha-se em marcha.

D. Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde.

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Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e

damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes —porque o eminente Bacamarte

confiara a mulher ao vigário, e acompanhava-os a passo meditativo—D. Evarista voltava a

cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que

ele não vira desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia, entusiasmada, que era a coisa

mais bela que podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela

fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas...

Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas — feitas de metal e despejando água pela

boca fora.

Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito

mais bonito.

Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí, e, de mais a mais, sede do

governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a

Casa Verde...

— A propósito de Casa Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da

ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente.

— Sim?

— É verdade. Lá está o Mateus...

— O albardeiro?

—O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...

— Tudo isso doido?

— Ou quase doido, obtemperou o padre.

— Mas então?

O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo;

resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou

realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos?

Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à Casa Verde

sem prova evidente de loucura.

— Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário.

Três horas depois, cerca de cinquenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão

Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes,

discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo

Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos

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duas estrelas, segundo a versão modesta de Crispim Soares, e dois sóis, no conceito de um

vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência.

Quando muito dizia ao ouvido da mulher, que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D.

Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas

partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por

exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e

aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais

singular dos reptos.

―Deus, disse ele, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa pérola da

coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa),

Deusquis vencer a Deus, e criou D. Evarista."

D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice

excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do

alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e, provavelmente, de sangue. O

atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse

qualquer episódio trágico,— ou que o adiasse, ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse.

Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir,consigo mesma que D. Evarista não merecia

nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna.

Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo?

Esta ideia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o

Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era

um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a ideia relativa ao

nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor que?... Não senhor; era dele

mesmo; achou-a naquela ocasião e parecera-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas

ideias eram antes arrojadas do que ternas ou. Dava para o épico. Uma vezjocosas, por exemplo,

compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o "dragão

aspérrimo do Nada", esmagado pelas "garras vingadoras do Todo"; e assim outras mais ou

menos fora do comum; gostava das ideias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...

― Pobre moço!‖ pensou o alienista. E continuou consigo: ―Trata-se de um caso de lesão cerebral;

fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...‖

D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na

Casa Verde. Um moço que tinha ideias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes

do alienista.

Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais.

Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto

Leme, pessoa estimável, o Chico das Cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda

outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As

mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e

nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas.

Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a

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duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que

não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma

distancia de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às

vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De

resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à

nobre tenacidade com que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras

feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da

casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se

saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na

madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.

— Devemos acabar com isto!

— Não pode continuar!

— Abaixo a tirania!

— Déspota! violento! Golias!

Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror

crescia; avizinhava-se a rebelião. A ideia de uma petição ao governo para que Simão Bacamarte

fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a

expendesse na loja, com grandes gestos de indignação. Note-se, — e essa é uma das laudas

mais puras desta sombria história — note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a

povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de

sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse

público. E acrescentava:—é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito

justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia

com ele uma demanda, o Coelho.

—Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio.

E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma

demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de

um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que

tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos, ou alegando andar com pressa, mal o viam

de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, ele amava a boa palestra,

a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que

sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes, que cultivava o

Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e

emendasse este trecho:

La boccasollevòdalfiero pasto

Quel "seccatore"...

mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.

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EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

70ª questão

JUSTIFIQUE a internação de Costa na Casa Verde, tendo em vista a ampliação da concepção de

insânia apresentada por Bacamarte no capítulo anterior.

Os personagens de Machado de Assis são geralmente burgueses, arquitetados e inseridos na

trama com o intuito de desmascarar o ―jogo‖ das relações sociais, muitas vezes pela ênfase ao

contraste entre aparência x essência. Esses personagens são instrumentos por meio dos quais

ecoa denúncia da vaidade, futilidade, hipocrisia, inveja que perpassam as relações sociais e

denunciam a imperfeição humana.

71ª questão

ANALISE como se apresenta no capítulo em análise esse contraste entre aparência e essência

72ª questão

EXPLIQUE se se percebe no capítulo traços de denúncia em relação à imperfeição humana.

73ª questão

Releia com atenção às relações humanas inscritas no excerto.

―De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na

casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos,

embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um

desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se

fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras

despregadas.‖

albarda [Do ár. (t).]

Substantivo feminino.

1.Sela grosseira, enchumaçada de palha, para bestas de carga.

2.Pop. Jaqueta ou casaco malfeito.

3.Fig. Humilhação, vexame.

ANALISE se se percebe no excerto a hipocrisia que, na visão de Machado de Assis, compõe a

imperfeição humana.

74ª questão

―Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado,

falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram

ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas

acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A

última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu

a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa.‖

EXPLICITE a razão pela qual as pessoas deixaram de interceder pelo pobre Costa.

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75ª questão

Segundo o estudioso Francisco Achcar, o estilo machadiano focaliza as personagens de fora

para dentro: vai ―descascando‖ as pessoas, aparência atrás de aparência, por isso Machado é

considerado grande "analista da alma humana".

EXPLIQUE a relevância do capítulo em análise quanto ao ―descascar‖ Simão Bacamarte com o

intuito de revelar sua essência em contraposição à aparência.

76ª questão

INDIQUE, dentre os traços do estilo machadiano resumidos por Francisco Achacar (introdução

desta atividade), a que se aplica ao fragmento a seguir.

―D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte, de um gesto que não

se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola.‖

77ª questão

Se, para alguns, louco é quem foge aos padrões da sociedade em que se insere, defina os

padrões sociais na perspectiva de Bacamarte, considerando o perfil daqueles que, neste capítulo,

foram recolhidos à Casa Verde.

78ª questão

Levante uma hipótese que justifique o fato de a maior parte dos internos na Casa Verde aos quais

se faz referência explícita no Capítulo V ser do gênero masculino.

Considere o contexto no qual o texto foi produzido.

79ª questão

http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2012_

04_01_archive.html. Acesso em 23 jun. 2014.

EXPLIQUE por que a fala do 2º personagem converge com a percepção de Simão Bacamarte em seus estudos.

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CAPÍTULO VI

A REBELIÃO

Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à

Câmara.

A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a

ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

— Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da

rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos

e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas, outras

humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico

do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram

tratados de graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista...

— É falso! interrompeu o presidente.

— Falso?

— Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que,

tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela

Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.

A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente

o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para

demonstrar o erro, era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o

presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de alguns instantes de

concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a

Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde—"essa Bastilha da razão humana"—expressão que

ouvira a um poeta local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram

com ele.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue.

Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a

denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—"Bastilha da razão humana"—achou-a tão

elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que

reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o

seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:

—Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são

reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

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Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo

com prudência, mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao

menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua, para

não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura

corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação

reservando-se o direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo,

namorado: —―Bastilha da razão humana!‖

Entretanto, a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o

barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta;

chamavam-lhe o Canjica — e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A

ação podia ser restrita, — visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não

descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam

para a Casa Verde, — dada a diferença de Paris a Itaguaí,—podiam ser comparados aos que

tomaram a Bastilha.

D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela

provava nessa ocasião um vestido de seda,—um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro,

— e não quis crer.

— Há de ser alguma patuscada, dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a

barra está boa.

— Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho.

Assim. Está muito boa.

— Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!!o tirano! dizia

o moleque assustado.

— Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco

enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para

ficar igualzinho e...

— Morra o Dr. Bacamarte!!!morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.

D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito, um certo movimento súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele.

— Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto.

D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos

de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou,

precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis;; os olhos dele, empanados pela

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cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro, cegos para a realidade exterior,

videntes para os profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem

que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.

— Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas.

O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu

tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme

e tranquilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a

linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás,

interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.

— Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...

Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe,

em nome da vida, que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.

— Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas.

O alienista caminhou para a varanda da frente, e chegou ali no momento em que a rebelião

também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e

sombrias de desespero.— Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista

assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-

lhe a voz com brados de indignação.

Então, o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os

amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência

do povo como fizera até então.

— Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.

— Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida,

ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.

— Não entendo.

— Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da

multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:

— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão

dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a

administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim

mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver

comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que

não farei a leigos nem a rebeldes.

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Disse isto o alienista, e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e

menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista,

cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para

dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da

Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o

barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa

Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as

demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por

ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não

ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca.

Demais fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo.

Infelizmente, a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o

percebeu, sentiu um impulso de indignação, e quis bradar-lhes:—Canalhas! covardes! —mas

conteve-se e rompeu deste modo:

Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heroicas.

Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e

amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele

indigno.

E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do

barbeiro.

Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.

— Vamos! bradou Porfírio agitando o chapéu.

— Vamos! repetiram todos.

Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

80ª questão

RELACIONE os fatos narrados no excerto a seguir às manifestações que têm ocorrido no Brasil,

tendo em vista suas causas e reação dos governantes em relação às reivindicações dos

manifestantes.

―Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à

Câmara.

A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a

ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

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— Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da

rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos

e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas, outras

humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico

do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram

tratados de graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista...‖

81ª questão

EXPLICITE a ironia presente no fragmento abaixo.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue.

Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a

denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—"Bastilha da razão humana"—achou-a tão

elegante que mudou de parecer.

82ª questão

EXPLIQUE se as declarações da presidenta Dilma, em 2013, frente às manifestações que

tomavam conta do país, aproximam-se ou não da orientação do presidente da Câmara de Itaguaí

ao vereador Sebastião Freitas, reproduzida a seguir.

―Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo

com prudência, mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao

menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua, para

não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos.‖

83ª questão

JUSTIFIQUE a presença da conjunção destacada, no fragmento a seguir.

―Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem

e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua, para não dar corpo e alma à rebelião,

que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra:

Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação reservando-se o direito de pedir pelos

meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo, namorado: —―Bastilha da razão

humana!‖

Entretanto, a arruaça crescia.‖

84ª questão

JUSTIFIQUE, com base no estilo machadiano, a inserção do comentário em destaque no

fragmento transcrito a seguir.

―D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela

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provava nessa ocasião um vestido de seda,—um dos trinta e sete que trouxera do Rio de

Janeiro, — e não quis crer.‖

85ª questão

―— Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho,

ganância...‖

tirano

[Do gr. , 'senhor absoluto', 'usurpador do poder', pelo lat. tyrannu.]

Substantivo masculino.

1.Na Grécia antiga, indivíduo que usurpava o poder.

2.Governante injusto, cruel ou opressor, que abusa de sua autoridade.

3.Indivíduo que abusa de sua autoridade.

4.Indivíduo cruel, impiedoso, tirânico.

Adjetivo.

5.Tirânico (4).

AVALIE se Bacamarte era, de fato, um tirano.

86ª questão

DESCREVA as muitas aparências de D.Evarista e de Bacamarte ao longo dos capítulos

analisados até aqui.

87ª questão

ANALISE se o boticário Crispim manteve o mesmo perfil ao longo do 1º ao 6º capítulos da

narrativa

88ª questão

EXPLICITE uma crítica à natureza humana presente no capítulo VI.

CAPÍTULO VII

O INESPERADO

Chegados os dragões em frente aos Canjicas houve um instante de estupefação: os Canjicas não

queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e

esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto

uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja

resposta consistiu nestes termos alevantados:

— Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os

cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação

de Itaguaí.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das

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grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por

parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas.

O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas ou

correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou, bufando de cólera, indignada,

animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço

dos dragões,—qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram,—passou subitamente

para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que

lançou o desânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os

seus próprios camaradas, e, um a um, foram passando para eles, de modo que ao cabo de

alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado, com

alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaçava de morte. Não teve remédio,

declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.

A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou

para a Câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao "ilustre

Porfírio".

Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma

navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A

dignidade de governo começava a eurijar-lhe os quadris.

Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a

multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar

um mês de soldo aos dragões, "cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma

cáfila de rebeldes .‖ Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente, cuja

defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os

vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste

realidade. O presidente não desanimou:— qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-

nos de que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo.—Sebastião insinuou que melhor se

poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas

toda a Câmara rejeitou esse alvitre.

Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança, e

intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se, e foi dali para a cadeia.

Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila, em nome de Sua

Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos

que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles

prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o

povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de —"Protetor da vila em nome

de Sua Majestade e do povo".—Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações

oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de

obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas

enérgica: "Itaguaienses!

Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A

opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos

dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da

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vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer

melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que

me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela Câmara que ora findou

às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.

O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo

PORFÍRIO CAETANO DAS NEVES".

Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo

uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto

maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde

umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras, sendo um dos homens aparentado com o

Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira, e a vila

respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e

destruído o terrível cárcere.

O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a

proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio. Poucos

gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz expedir um

ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de

um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual;

mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.

— Em todo caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe

o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso.

Ao que o Padre Lopes respondeu, sem responder:

— Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?

O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda

a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele.

Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam

o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

89ª questão

COMPARE a ação dos dragões na rebelião dos Canjicas à da polícia nas constantes

manifestações que vêm ocorrendo no Brasil desde 2013.

90ª questão

REESCREVA o fragmento a seguir em linguagem atual.

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―Este (Porfírio)ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas

uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A

dignidade de governo começava a eurijar-lhe os quadris.‖

91ª questão

RETEXTUALIZE o capítulo VII para o gênero reportagem.

92ª questão

EXEMPLIFIQUE, com um excerto do capítulo em estudo, a ironia bem humorada com que o autor

tece suas críticas à sociedade ou a parte dela.

CAPÍTULO VIII

AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO

Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do

palácio do governo, — foi a denominação dada à casa da Câmara,— com dois ajudantes-de-

ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso

ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a

parecer tolerante e moderado.

Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista.—―Vai

prendê-lo‖, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário

naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em

mais apertado lance: — a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro

atraía-o ao barbeiro. Já a simples notícia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma,

porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A

esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de

Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava

perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. ― Fê-lo Catão , é verdade,

sedvictaCatoni,‖ pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas

Catão

não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu

ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra Insistindo, porém, a

mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e

meteu-se na cama.

—Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da

cama; vai acompanhado de gente.

—―Vai prendê-lo‖, pensou o boticário.

Uma ideia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo

a ele, na qualidade de cúmplice. Esta ideia foi o melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-

se, disse que estava bom, que ia sair; e apesar de todos os esforços e protestos da consorte

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vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia

colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam

com muita perspicácia, o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou

resolutamente ao palácio do governo, não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado

de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde

a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta

declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a

importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe

que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não

tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a

de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que

isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.

Segundo o estudioso Francisco Achcar, o estilo machadiano focaliza as personagens de fora para

dentro: vai ―descascando‖ as pessoas, aparência atrás de aparência, por isso Machado é

considerado grande "analista da alma humana".

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

93ª questão

EXPLIQUE se a nova aparência com que se apresenta o boticário no capítulo VIII apresenta-se

com coerência em relação às já apresentadas em capítulos anteriores.

CAPÍTULO IX

DOIS LINDOS CASOS

Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e

portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir

pessoalmente à destruição da Casa Verde.

— Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir

ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos

doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é

puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas.. Demais, a

Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há,

entretanto, — por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito

público.

O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento

do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...

—O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a

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responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode,não deve, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.

— Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.

O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco

feridos.

— Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.

E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom, mas que ele ia catar algum outro, e

dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da

véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia

respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara

caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais

da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se

pudesse contar, não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí,

e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande

homem, que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus

de pedra.

Quanto à toleima dos que o aclamaram não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte

e cinco feridos.

— Dois lindos casos!

— Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.

O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta

pessoas que o aclamavam:

—...porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo.

Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus

amigos, é a base do governo...

— Viva o ilustre Porfírio! bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.

— Dois lindos casos! murmurou o alienista.

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EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

94ª questão

ANALISE se há alguma relação entre a proposta feita pelo barbeiro a Simão Bacamarte e as

alianças partidárias que ocorrem na atualidade.

95ª questão

INDIQUE os 2 casos a que se refere Simão Bacamarte.

CAPÍTULO X

A RESTAURAÇÃO

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinquenta aclamadores do novo

governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro,

dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão Bacamarte", frase

que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio, vendo o antigo rival

da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse

um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o

alienista. João Pina mostrou claramente, com grandes frases, que o ato de Porfírio era um

simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio!

ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as

minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo

anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás

subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara

corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos

sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc.

Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu

desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinquenta e tantos indivíduos,

que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais

dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião.

Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte.

Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la

na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião

Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência

das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa

aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim

Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele, ainda na

véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que

cedera a um movimento de terror, ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de

nenhum outro ato seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o

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contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de

Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.

Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara

lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que

não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de

sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara,

entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter o secretário na Casa

Verde, e foi dali à Câmara, à qual declarou que o presidente estava padecendo da "demência dos

touros", um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a

princípio hesitou, mas acabou cedendo.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais

simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não

fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de

charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu

cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do

alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras

cediam a um impulso natural e as segundas a um vício.

Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de

que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas creem que Simão

Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se

pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de

prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou

tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo.

Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives,

amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois

da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão

de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico.

Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram

do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que

eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém

ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada

há.

— Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos

apoiado os Canjicas...

Um dia de manhã — dia em que a Câmara devia dar um grande baile,— a vila inteira ficou

abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém

acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora

recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente

acerca do fato.

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— Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela

vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e

pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a

observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes,

inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência,

antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando

outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente

um vestido para a imagem de Nossa Senhora da Matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta

noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que

levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira.

Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem.

Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa. —

Que tem? perguntei-lhe.— Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito! —

Pois leve o de safira.— Ah! mas onde fica o de granada?—Enfim, passou a tarde sem novidade.

Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao

quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era

evidente a demência; recolhi-a logo.

O Padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém,

percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de "mania sumptuaria", não incurável, e

em todo caso digno de estudo.

— Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.

E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças,

tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem

amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe — menos ainda

o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.

Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

96ª questão

ANALISE se Porfírio pode ser tomado como representação metonímica dos políticos atuais.

97ª questão

―Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.‖

A- INDIQUE a quem se refere essa descrição;

B- PESQUISE sobre Hipócrates e Catão para explicar a afirmação.

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CAPÍTULO XI

O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ

E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os

loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.

— Todos?

— Todos.

— É impossível; alguns sim, mas todos...

— Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara

De fato, o alienista oficiara à Câmara expondo:

— 1º: que verificara das estatísticas da vila e daCasa Verde, que quatro quintos da população

estavam aposentados naquele estabelecimento;

— 2°: que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das

moléstias cerebrais, teoria que excluía do domínio da razão todos os casos em que o equilíbrio

das faculdades não fosse perfeito e absoluto;

— 3° que, desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira

doutrina não era aquela, mas a oposta, portanto que se devia admitir como normal e exemplar o

desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele

equilíbrio fosse ininterrupto;

— 4º: que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e

agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas;

— 5°: que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a

natureza, esperando da Câmara igual dedicação;

— 6º: que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento

dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o

que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos.

Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não

descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e

prolongadas.

E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte,

ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

98ª questão

INDIQUE a que característica do estilo machadiano nos remete o excerto a seguir.

―E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os

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loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.‖

99ª questão

EXPLIQUE por que a soltura de todos os loucos da Casa Verde haveria de causar espanto.

100ª questão

PESQUISE sobre o que ocorreu com os doentes mentais que se encontravam internados até a

aprovação da Lei antimanicomial, que determina que somente aqueles que colocam em risco a

própria vida ou a de terceiros é que devem permanecer nos hospícios. RELACIONE o produto de

sua pesquisa ao que ocorreu em O alienista.

101ª questão

INDIQUE quem proferiu cada uma das falas reproduzidas e numeradas a seguir.

―—Todos?(1ª)

—Todos. (2ª)

—É impossível; alguns sim, mas todos... (3ª)

—Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara‖ (4ª)

102ª questão

SINTETIZE em um período marcado pela relação de fato causa, o motivo pelo qual Bacamarte

liberaria os pacientes da Casa Verde.

103ª questão

INDIQUE três características do estilo machadiano que se percebe no excerto a seguir.

―O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos.

Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não

descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e

prolongadas.‖

O autor finaliza o capítulo com o seguinte parágrafo:

―E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte,

ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.‖

104ª questão

INDIQUE que coisas humanas seriam essas.

105ª questão

TRANSCREVA a frase final do 4º parágrafo.

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106ª questão

advertência [Do lat. advertentia.]

Substantivo feminino.

1.Ato ou efeito de advertir.

2.Admoestação, aviso, adversão. [Sin. ger. (p. us.): advertimento.]

advertir

[Do lat. advertere.]

Verbo transitivo direto.

1.Observar com palavras; censurar levemente; admoestar.

2.Atentar ou reparar em; notar, observar:

"Entrou no quarto, e, não advertindo que fazia este movimento antes de qualquer outro, olhou a cama." (José Saramago,

O Ano da Morte de Ricardo Reis, p. 98.)

3.Chamar a atenção para; fazer que repare em:

Advertiu as faltas do subordinado.

4.Concluir, deduzir:

Explicou-me detalhadamente a situação, e só então a adverti que agira corretamente.

5.Acautelar, prevenir, precatar:

Só não caiu na cilada porque o advertiram.

6.Dizer, comunicar, repreendendo.

Verbo transitivo direto e indireto.

7.Avisar, admoestar:

"Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertia o partido da conveniência de não ceder às perfídias do poder"

(Machado de Assis, Quincas Borba, p. 208).

8.Fazer observar, atentar, reparar:

Os primeiros cabelos brancos advertiram-na da velhice que chegava;

"alguma cousa de suave lhe advertia que a afeição do sangue não tinha as asas da sua, essas asas auriverdes da

esperança" (José de Alencar, O Tronco do Ipê, p. 198).

Verbo transitivo indireto.

9.Reparar, atentar:

Só então advertiu na imprudência de seu ato.

Verbo intransitivo.

10.Fazer advertência; informar:

"A um lado e outro, grandes letreiros ...., exortam, advertem, refrescam a lembrança do fogo do inferno" (Augusto

Meyer, No Tempo da Flor, p. 40).

Verbo pronominal.

11.Dar fé; reparar, atentar:

Ao cair da noite, advertiu-se de que não se agasalhara bem. [Conjug.: v. aderir.]

Dicionário Aurélio Eletrônico

EXPLIQUE por que a frase final pode ser entendida como uma ―advertência‖.

107ª questão

EXPLICITE , com base no ofício de Bacamarte, quais seriam as experiências futuras para as

quais apontava o 4º parágrafo.

CAPÍTULO XII

O FINAL DO § 4º.

Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos.

Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo, sem nenhuma pressão externa; o

próprio presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado

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pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma

coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da

navalha e da tesoura às calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a

população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido,

atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu

o nosso adágio: — ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão; — adágio imoral, é verdade,

mas grandemente útil.

Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que

ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente

ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos

entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação, e deram-lhe um baile, ao qual se

seguiram outros bailes e jantares.

Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera ideia de separar-se do consorte, mas a dor

de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio, e

o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.

Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão

Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a

magnanimidade do alienista que, ao dar-lhe a liberdade, estendeu-lhe a mão de amigo velho.

— É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.

Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros, especialmente

nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores.

O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez

agora outro em honra do insigne médico—"cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do

sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra".

— Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver

restituído à liberdade.

Entretanto, a Câmara que respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que

oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi

adotada sem debate uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas

que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência

da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória,

limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara,

antes mesmo daquele prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por

motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum

caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e

incluída na postura, apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste

magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as

pessoas dos seus membros das consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal

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proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e

insensatez do colega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.

— A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito

humano.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores,

declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a

cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das

faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e

cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro

bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda

agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou

unanimemente a entrega.

Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à

Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre

Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta

dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa

espumando de cólera ,e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao

tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa notícia, esqueceu os motivos de

dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão

Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para

conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-

lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.

— Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.

Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista.

Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse

alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na

rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de

certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:

— O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá cá

passará as noites, e os domingos e dias santos.

A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher,

mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da

dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para

outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime

pareceu sublime ao alienista.

Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não

afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando

colhia um enfermo, levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias.

Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia

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cerebral. Um dia, conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto

escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos, e

interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente

desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de

qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente,

desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um

testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da

pessoa em questão.

— Então parece-lhe...?

— Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.

O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento, e acabou pedindo que

lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e

provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi

solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu

a esta experiência a liberdade. Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão

Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação

daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão

melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe, todavia,

um dos melhores cubículos.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em

quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de

símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc.

Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram

compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador

Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão

Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança

pessoal.

Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro

Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se

pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes

que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara,

reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que

a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o

fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais

aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes

e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.

— O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a

conversação do barbeiro com os principais da vila.

Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter

cão! exclamou o infeliz.

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Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio

dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão

inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um,

que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e

abnegação humana.

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

108ª questão

―Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos

eixos.‖

EXPLIQUE o papel discursivo do verbo em destaque, tendo em vista o contexto em que se

insere.

Excerto para a 109ª e 110ª questões.

[...] ―a Câmara que respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que

oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi

adotada sem debate uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas

que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência

da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória,

limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara,

antes mesmo daquele prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por

motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum

caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e

incluída na postura, apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste

magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as

pessoas dos seus membros das consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal

proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e

insensatez do colega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.‖

109ª questão

COMPARE a ação da Câmara de Itaguaí narrada no excerto à imunidade parlamentar que vigora

em nosso país.

110ª questão

EXPLICITE a crítica que se faz aos políticos.

111ª questão

EXPLIQUE a percepção de Bacamarte sublinhada no fragmento a seguir.

―Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores,

declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a

cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das

faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e

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cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro

bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda

agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou

unanimemente a entrega.‖

CAPÍTULO XIII

PLUS ULTRA!

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se

ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas

estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a mais viva

admiração em Itaguaí.

Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por

classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte

cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a

medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas,—

graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às

vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao

alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às

distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte

começava a desesperar da cura, quando teve a ideia de mandar correr matraca, para o fim de o

apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.

— Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.

Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor

(mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte

lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos estabelecida em

Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do

finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro

no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas, representando o alienista que o não

pedia como prêmio honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para

um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o fez sem

extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi

outro santo remédio.

— Realmente, é admirável! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-

dementes.

Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que

a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que

a qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte, aplicando à

terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o

não pode conseguir.

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No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão

cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade,

porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação corrompendo os

juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance;

confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza.

Não aconteceu o mesmo com o Padre Lopes.

Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer

uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez;

ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou

muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.

— Por que é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ela todos os dias.

Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona

não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões

soltas e vagas, como estas:

—Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de unguentos

falsificados e podres... Ah! tratante!...

Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas

palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito

desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.

Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde,

mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe

bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em

Itaguaí. o reinado da razão.

Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova

tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.

—― Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade.‖

Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios

ultramarinos de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão

de seda, com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e

austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas

cogitações quotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas,

mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não

passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença: — só se lhe notava luxo naquilo que era

de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza,

virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.

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Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si

mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral.

Súbito, parou.

Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo

na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:

— Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, — ou o que pareceu cura não foi

mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?

E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele

acabava de curar eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter

a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa

existiam no estado latente, mas existiam.

Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra

de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações,

constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: — não havia loucos

em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta ideia lhe refrescara a

alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a ideia da dúvida. Pois quê! Itaguaí.

não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria por isso

mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina

psicológica?

A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das

mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só

aterram os fracos; os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-

se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.

— ―Sim, há de ser isso,‖ pensou ele.

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral;

pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o

vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto.

Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente,

resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi

afirmativa.

— Nenhum defeito?

— Nenhum, disse em coro a assembleia.

— Nenhum vício?

— Nada.

—Tudo perfeito?

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—Tudo.

—Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo

de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho

que justifique os excessos da vossa bondade.

A assembleia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este

conceito digno de um observador:

— Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É

porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: — a modéstia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre

do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram

que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas

o detiveram um só instante.

— A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu.

Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

— Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade

da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à

cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado

em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca

houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas esta opinião, fundada em um boato que correu

desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é

atribuído ao Padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja

como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

http://www.protexto.com.br/classico/alienista.pdf

EXPLORANDO E COMPREENDENDO MACHADO

112ª questão

EXPLIQUE, pelo viés da nova teoria de Bacamarte, por que ser honesto ou modesto é indício de

loucura.

Excerto para a 113ª e 114ª questões.

―Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles

excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante.

Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento

oposto; e não ia logo às doses máximas,—graduava-as, conforme o estado, a idade, o

temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma

cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais

rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente,

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poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a ideia

de mandar correr matraca, para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.‖

113ª questão

EXPLICITE a crítica que se faz no excerto.

114ª questão

PESQUISE sobre Garção e Píndaro e EXPLIQUE como e por que se deu a cura da modéstia do

poeta.

115ª questão

EXPLIQUE por que se pode afirmar que este capítulo escancara a imperfeição humana.

116ª questão

EXPLIQUE por que se pode afirmar que O alienista é em sua totalidade uma crítica ao

cientificismo.

Se necessário, pesquise ―cientificismo‖.