Machado e Borges - E Outros Ensaios Sobre Machado de Assis

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  • Lus Augusto Fischer, 2008.

    Capa, projeto grfico e editoraoEditoras Associadas(Camila Kieling e Marta Castilhos)

    RevisoFernanda Nunes BarbosaLarissa Roso

    Todos os direitos desta edio reservados a

    ARQUIPLAGO EDITORIAL LTDA.Avenida Getlio Vargas, 901/1604CEP 90150-003Porto Alegre RSTelefone 51 3012-6975www.arquipelagoeditorial.com.br

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  • Nota do autor

    Os artigos aqui reunidos devem muito a certas leituras e a algumas pessoas.Algumas leituras preciso citar aqui, antes do texto, porque nem sempre o fruto deum aprendizado de leitura aparece na nota de p de pgina ou na bibliografia.Nessa condio est o excelente livro de Leopoldo Waizbort A passagem do trs aoum (So Paulo: Cosac Naify, 2007), que li com ateno por vrios motivos, acomear pelo fato de ele operar uma leitura sinttica de alto nvel sobre a partemais central, para mim, da tradio machadiana no Brasil, que se compe deCandido, Faoro e Schwarz, todos eles leitores de Auerbach, como bem demonstraWaizbort. Tambm nessa condio est a obra de Franco Moretti, em mais de umlivro (Atlas do romance europeu 1800-1900 traduo de Sandra GuardiniVasconcelos, So Paulo: Boitempo, 2003; A literatura vista de longe traduode Anselmo Pessoa Neto, Porto Alegre: Arquiplago, 2008), com sua proposiobem-sucedida de uma nova abordagem panormica da literatura, que muito meauxiliou a repensar coisas. A convivncia profissional com Ian Alexander e suaviso anglo-sax e com Homero Arajo e sua pertincia analtica formativa, pormotivos diversos e complementares para mim, tem sido um estmulo e um motivode constante renovao do nimo intelectual, alm de sempre me ensinar muito; aeles deve-se boa parte do eventual acerto das minhas proposies aqui, enaturalmente nenhum dos problemas que por certo se esconderam de mim nestaspginas. E, como sempre, no posso deixar de mencionar o estmulo, de anos j,que vem da leitura da obra de Antonio Candido, Roberto Schwarz e John Gledson a quem, alm do mais, agradeo pela leitura atenta dos originais.

    LAF, outono de 2008

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  • Machado e Borges, clssicos e formativos

    Um Histrias to diferentes

    Um nasceu pobre, de pais apenas alfabetizados (o pai um mulato pobre, pintorde paredes, e a me uma portuguesa pobre recm-chegada ao novo pas,trabalhando em servios humildes), o outro nasceu muito bem colocadosocialmente, com pais requintados leitores (o pai professor e escritor, a metradutora, ambos com ascendentes de primeira importncia em seu pas). Oprimeiro teve pouca escolaridade formal, o segundo graduou-se na Europa; aquele,escrevendo em portugus, uma lngua de acanhada circulao internacional noplano letrado, nunca saiu de seu pas, enquanto este, bilnge de famlia eescrevendo em espanhol, lngua de central importncia no mundo culto, viveu naEuropa vrios anos em sua formao e, adulto, viajou pelo mundo todo. Oprimeiro, Joaquim Maria Machado de Assis, brasileiro, viveu no tempo do navio edo telgrafo, entre 1839 e 1908, e o segundo, Jorge Luis Borges, argentino, viveuno tempo do automvel, do avio e do rdio (e da televiso), entre 1899 e 1986.

    At aqui, tudo separa e nada une esses dois gnios da literatura, como se vpelos dados apontados, aos quais se poderiam acrescentar vrios outros a durabatalha pela sobrevivncia de Machado, num pas desde sempre mesquinho paracom os de baixo como ele, aos quais no proporciona nem mesmo uma escolaelementar decente, contrastando com a formao muito confortvel de Borges, queno foi rico mas nunca teve problemas de sobrevivncia. Isso sem contar asenormes diferenas entre o Brasil de D. Pedro II o lugar e o tempo do auge docaf produzido com mo-de-obra escrava , quando floresce Machado de Assis, ea Argentina abastecedora da Europa em carne, l e trigo, a partir das primeirasdcadas do sculo 20, o tempo da formao de Borges.

    Mas algo os une profundamente: cada um a seu tempo e modo, em seu pas esua lngua, mediante as armas literrias disponveis, ambos conseguiram o nopequeno milagre de equacionar satisfatoriamente os dilemas e as tenses entre avocao das letras, na arte e no pensamento (e no por acaso os dois comtemperamento clssico, antiapaixonado, paciencioso), e a condio objetiva demorar e pertencer a contextos culturais secundrios, perifricos, mal desenvolvidosem comparao com os melhores contextos ocidentais disponveis. Os dois, commuitas diferenas mas com inacreditveis semelhanas, que interessa conhecer,conseguiram o milagre de produzir obra superior a partir de posies relativamenteinferiores. Como foi isso?

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  • Dois Obra vasta

    Essa aproximao entre Machado de Assis e Jorge Luis Borges no surpreendenenhum de seus leitores atentos. Podemos avaliar a familiaridade comeando,talvez, pelo mais superficial de sua semelhana: os dois ocupam a posio centralem seu respectivo pas quando se trata de pensar em grande escritor, essacategoria mais ou menos difusa mas no fim das contas reconhecvel. Ambos soeditados regularmente, em variados formatos, e esto presentes na conversa daspessoas cultas em seu pas, e tambm em sua lngua, mais amplamente.

    Segue a aproximao com o fato no trivial de que ambos construram obramuito vasta. A edio Jackson, uma das bem conhecidas apresentaes deMachado de Assis em livro, conta 31 volumes; a edio Nova Aguilar, em papel-bblia, de trs volumes, cada um contendo por volta de 1200 pginas. No hedio totalmente confivel da obra de Machado, ainda hoje, para nossa vergonha;o que se pode disputar qual das edies tem menos escndalos porque somuitos, em ambas, com a pior sendo provavelmente a Nova Aguilar. Em doismomentos houve tentativas de constituio de equipes para fazer o estabelecimentodos textos, para recolher tudo que estivesse disperso, etc., de forma a editar umaobra completa digna do nome, mas nenhuma delas chegou ao termo da tarefa.Romances, so nove, mas podem ser dez, se contarmos a, como me parece justo,a novela Casa velha; contos, so mais de 200, alguns com autoria ainda disputada;crnicas so em nmero ainda no fechado, mas se contam s centenas. E poemas,ensaios, peas de teatro, cartas. Isso tudo produzido em uma carreira de escrituraque se estende dos 15 anos do autor aos dias de sua morte, quer dizer, durante 54anos. Muita coisa.

    Borges um caso parecido. Suas obras completas, que igualmente no o so,apresentam milhares de pginas, e no cessam as descobertas e recolhas, emrevistas e jornais. Dele tambm no h edio estavelmente correta, nem para oscontos, nem para a poesia, nem para o ensaio, os trs gneros de sua eleio, o queem parte se desculpa pelo recente de sua morte. (Quanto ao romance, era gnerode que no gostava. Alguma vez disse que havia lido apenas Dickens, Conrad eEa de Queirs; comparou o romance pera, e desgostava de ambos.) Para daruma idia: a Emec editou em quatro volumes uma Obra completa, cada qual commais de 500 pginas; depois, saram as Obras completas en colaboracin, commais de mil; no faz muito, apareceu a srie de trs volumes Textos recobrados,com um total de mais de mil pginas; apareceu ainda um belo volume intituladoBorges en El Sur, a sensacional revista que ele ajudou a existir por tantos anos so mais 358 pginas. Isso para no falar de trs livros iniciais de sua carreira, queele prprio decidiu no incluir nas Completas, mas que seus herdeirosrepublicaram. Ou da Arte potica, belssimo ensaio publicado em livro aps suamorte, a partir de seis conferncias dele. E o que dizer das milhares de horas, osquilmetros de fitas em que deixou entrevistas e depoimentos que a cada tanto

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  • saem em livro, mostrando ali um ensasta oral da melhor qualidade? Seu primeirotexto publicado apareceu em 1919, e ele nunca parou de contribuir para revistas ejornais nem de publicar livros, at sua morte. So mais de seis dcadas de textos.

    Quer dizer: Machado e Borges, alm de serem gnios de seu tempo, lugar elngua, foram reprteres da sensibilidade em um extensssimo perodo de tempo,perodo que podemos qualificar, sem nenhum exagero, como parte substantiva daprpria histria de seus respectivos pases, jovens naes ocidentais, com menos de200 anos de independncia formal. pouco? No, muito, demais. A ponto deserem ambos talvez inabarcveis: quem comea a ler sua obra, por qualquer ladoque ataque e por mais que empenhe muito de seu tempo e sua inteligncia natarefa, pode perfeitamente passar a vida freqentando tamanha obra, tamanhasobras, sem alcanar seu fim.

    (Deixemos de lado, por ora, a fortuna crtica de ambos: trata-se de materialinabarcvel, no rigor do termo. So dezenas de livros, centenas de estudos,milhares de artigos, milhes de referncias, no pas de origem e fora dele. Borgespor certo tem mais sucesso do que Machado no exterior, dada a circulao maisfranca do espanhol nos circuitos cultos e universitrios, relativamente ao portugus.Pode-se afirmar igualmente, pelo mesmo motivo e mais algum outro como ofato de Borges ser mais imediatamente palatvel para o leitor europeu dos temposatuais do que Machado , que o argentino mais traduzido a lngua estrangeira doque Machado.)

    Trs Sem filhos

    Afinidades e semelhanas de temperamento, na vida como na obra dos dois,podem ser encontradas em variados nveis. Vejamos um caso aparentementesecundrio: nenhum dos dois teve filhos. Certo, tal coincidncia menos decisivado que, digamos, a distncia entre os gneros literrios em que cada um seexercitou e em que se realizou Machado foi mais contista, romancista e cronistado que ensasta e, menos ainda, poeta, ao passo que Borges nunca escreveuromance, sendo um mestre do conto, do ensaio e da poesia, mais do que dacrnica, se que se pode pensar com esta ltima categoria a propsito de sua obra.

    Mas o caso dos filhos pode, mesmo assim, render um pouco nessaaproximao. Em Borges, o no haver deixado filhos de sangue talvez seja meroacaso e nada mais, mas em Machado a coisa no to simples, j que o ter ou noter filhos foi tema decisivo de sua literatura: sem especificar casos mais sutis, comoo de Helena, cuja protagonista reconhecida em testamento como filha doConselheiro sem s-lo, questo essa que est na alma do relato, lembremos BrsCubas, que termina suas Memrias com a terrvel frase No tive filhos, notransmiti a nenhuma criatura o legado de nossa misria, frase que contm, ao

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  • menos enviesadamente, todo um comentrio sobre o sentido da vida; lembremosQuincas Borba, que morre sem herdeiros naturais e por isso lega sua fortuna aoingnuo Rubio, protagonista daquele romance pattico; lembremos BentoSantiago, que viveu o tormento de crer-se trado pela mulher inclusive nesseaspecto, o do filho dela, que ele julga no ser seu e sim de seu melhor amigo,Escobar; lembremos ainda o Conselheiro Aires, cuja doce amargura expressa perfeio certo niilismo que combina com a por assim dizer esterilidade corprea. Ajulgar por aqui, quem de s conscincia poder dizer que a questo no afetava oautor?

    Se a coisa for pensada pelo ngulo da relao de Joaquim Maria com seu pai,os dados no parecem muito conclusivos para lado algum. Francisco Jos de Assis,o pai, era neto de escravos, mas filho de libertos; nascido em 1806, foi umtrabalhador manual com alguma especializao (fala-se que era pintor, mas tambmdourador de paredes, quer dizer, um arteso), e no era um trabalhador braalcomum; sabia ler e escrever, tanto que assinou por algum tempo o AlmanaqueLaemmert, conforme afirma um de seus bons bigrafos, Jean-Michel Massa1,seguindo Lcia Miguel Pereira2, que acrescenta uma especulao sobre certavocao artstica no pai, manifestada nessa profisso aproximada da pintura.Morreu quando o filho era jovenzinho ainda, no sem antes casar pela segunda vez:a me de Joaquim Maria, Maria Leopoldina Machado de Assis, faleceu quando eletinha quase dez anos, e cinco anos depois, em 1854, o vivo Francisco Jos secasou com Maria Ins da Silva. Nesse mesmo ano o futuro escritor comea atrabalhar e a publicar.

    De Borges, no teremos tantos depoimentos eloqentes de indagao pessoalacerca do mesmo tema. No h enredos narrativos ou assuntos poticos queenvolvam to centralmente a parentalidade, tanto quanto eu consiga lembrar.Quando aparece algo relativo a origens, parece ser sempre desmarcado, ligado aantepassados mais remotos. Um caso que pode ser trazido considerao o doconto El sur, um de seus clssicos. Na abertura lemos que o protagonista, JuanDahlmann, era neto de Johannes Dahlmann, imigrante e pastor luterano, e deFrancisco Flores, del 2 de Infantera de linea, que muri en la frontera de BuenosAires, lanceado por ndios de Catrial. Dois avs, um neto; no se refere aexistncia de pai. A lembrana no secundria, porque o enredo do conto temcomo trave principal em sua arquitetura justamente a herana recebida por JuanDahlmann, a sede de uma fazenda que foi dos Flores, para onde ele se deslocanuma notvel viagem de trem, na qual muitas coisas acontecem na verdade,tudo acontece, em certo sentido. Na mesma abertura, comentando esse tema dasheranas, lemos a seguinte considerao do narrador, aps a apresentao das duasascendncias, to diversas entre si, uma criolla, outra imigrante e alem: en ladiscordia de sus dos linajes, Juan Dahlmann (tal vez a impulso de la sangregermnica) eligi el de ese antepasado romntico, o de muerte romntica, querdizer, o av Flores. Se Juan filho de pai Flores ou Dahlmann no sabemos,porque o av que importa.

    De sua relao com o pai sabemos algumas coisas, e ao menos trs so

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  • significativas: a primeira que o filho herdou do pai a doena degenerativa dosolhos, que foi o motivo primeiro daquela longa temporada europia, entre 1914 e1921. A segunda que o pai, tambm Jorge (Guillermo) Borges, era escritortentativo, tendo publicado um romance, El caudillo, e tradutor, tendo vertido aoespanhol Omar Khayan (a partir do ingls), mantendo ao lado disso uma filosofiarara para seu tempo (era ateu e, como se dizia na poca, livre-pensador, ao lado decultivar o vegetarianismo em plena Argentina!); tais indicaes mostram intensaafinidade entre pai e filho, no plano da vida intelectual e filosfica, em sentidoamplo, motivo talvez de Jorge Luis haver pensado em retom-la, na maturidade,conforme comentou em entrevista, ao lembrar a hiptese de reeditar o romance dopai. To livre-pensador era o pai que foi capaz de um gesto para mim estranho,mas parece que filosoficamente consistente com seu credo: na altura de 1918, JorgeLuis, em seus 18 anos, tentou mostrar manuscritos ao pai, para obter algumaorientao, algum conselho; o pai recusou, como nos conta Mara Esther Vsquez,uma das suas bigrafas3; o argumento para tal recusa era que, como BernardShaw o La Rochefoucauld, no crea en la eficacia de los dictmenes ajenos, e porisso o filho devia procurar seus prprios caminhos...

    A terceira coisa significativa dessa relao tambm relatada por Mara EstherVsquez. Segundo ela, pela mesma poca, vivendo a famlia na Europa,precisamente em Genebra, o pai resolveu que era hora de Jorge Luis ter suainiciao sexual, e para tal armou um encontro, passando ao filho um endereo,com hora e local marcados. Diz a bigrafa: Georgie [o apelido familiar de JorgeLuis] obedeci, pero ya en el lugar no pudo evitar un pensamiento de que estaba apunto de compartir la amante con el padre. La idea lo llen de asco y de vergenza.Por supuesto, la cosa no funcion. Seguiu-se uma grave crise de sade do filho.Seja como for, parece que a relao entre eles teve um curso bastante amenodepois disso, s encerrando quando da morte do pai, em 1938, antes dos 40 anosde Jorge Luis.

    Essas circunstncias todas podem ser apenas assunto para uma conversa entreamigos, sem maior transcendncia; mas do a conhecer detalhes que valem a penapara pensar na vida mental dos dois gnios, quando menos pela afinidade especficaentre Borges e seu pai no que tange ao trabalho intelectual, ou pela impressionanteascenso social e intelectual de Machado de Assis relativamente a seu pai, umhumilde trabalhador de (dizendo com as palavras de hoje) classe mdia baixa e depoucas letras. Por outro lado, como deixar de levar em conta as oposies fortes darelao entre filho e pai, do ponto de vista do primeiro? Quanto restou em JorgeLuis daquela crise na rea sexual, e por quanto tempo? Sua relativa inapetnciapara os temas sensuais ter a ver com isso? E Machado, ser certo, comoespeculam alguns comentadores, por exemplo Lcia Miguel Pereira, que guardoumgoa ao pai pelo segundo casamento? Quanta elaborao psicolgica precisoufazer cada um dos nossos dois escritores para alcanar domnio da expresso e paracriar, num meti requintado como o das letras?

    Para alm disso, arriscando decididamente j no terreno das especulaes debar, difcil resistir tentao de pensar sobre certo simbolismo involuntrio nessa

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  • esterilidade fsica em relao com a abundncia e a eficcia artstica de cada umdeles, no plano de sua poca, pas e lngua: uma ter sido o preo da outra? E setiver sido, que relevncia, que posio tal equao ter ocupado na vida de cadaum deles?

    Quatro Ausncia de sensualidade

    No apenas no tm filhos Joaquim Maria e Jorge Luis; igualmente sua obrano se marca pela sensualidade sendo os dois escritores, no custa lembrarcomo contraste, artistas superiores brotados em contextos que deram ao mundoduas formas de msica e dana popular to sensuais quanto o samba e o tango,respectivamente. As mulheres so seres indecifrveis, distantes, obscuros, emMachado; at sedutoras elas podem ser, assim o assunto sensualidade podeaparecer no enredo, mas nunca elas so exatamente de carne e osso, e nunca talassunto domina o temperamento do relato. Augusto Meyer j tinha concludo algona mesma direo: constatando ele haver muitas figuras de mulher sensuais eprfidas, em contraste falta sade sensualidade machadiana.4 A rejeio deleao Naturalismo no teria algo de sintomtico a respeito? Lembremos seucomentrio negativo acerca de Lusa, a protagonista feminina de O primo Baslio:embora nesse ensaio o centro do argumento seja a condio da personagemenquanto tal a Lusa carter negativo, e no meio da ao ideada pelo autor antes um ttere do que uma pessoa moral , inegvel haver censura de tipomoral a ela nas palavras do crtico, quando diz, ao falar da traio dela ao marido:Lusa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem conscincia (...). Uma vezrolada ao erro, como nenhuma flama espiritual a alenta, no acha ali a saciedadedas grandes paixes criminosas: rebolca-se simplesmente. No segundo texto sobreo mesmo tema, confirma essa censura moral: essa pintura [dos fatos viciosos],esse aroma de alcova, essa descrio minuciosa, quase tcnica, das relaesadlteras, eis o mal. A castidade inadvertida que ler o livro chegar ltima pgina,sem fech-lo, e tornar atrs para reler outras5.

    Em Borges, salvo em alguns poucos poemas, as mulheres nem sequer existemcomo entes fsicos. Sua galeria de personagens e figuras acolhe poucas mulheres, equando elas aparecem ser mais como uma imagem esfumada, de vez em quandolrica, como no magnfico conto El Aleph ou na tocante crnica (memria?)Dlia Elena San Marco. Um caso notvel vamos encontrar em Emma Zunz, oconto talvez mais perfeito que se pode conceber como estrutura de tipo policial. Noano de 1922, Emma, operria de fbrica, recebe a notcia da morte de seu pai anotcia lhe causa mal-estar no ventre, por sinal ; ela repassa mentalmente ostormentos do pai, que foi acusado injustamente de haver desfalcado uma caixa,crime na verdade cometido por um certo Loewenthal, que depois disso se

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  • beneficiou a ponto de ter virado scio da firma, que era a empregadora de Emma.Ela trama sua vingana, que narrada exemplarmente, com frieza e preciso, comoa ao da personagem: ela vai at a zona, que porturia e de prostituio, entrega-se a um marinheiro que nem espanhol fala ela tem asco do sexo, parece que emgeral, tanto que pensa, durante o intercurso com o estrangeiro, que su padre lehaba hecho a su madre la cosa horrible que a ella ahora le hacan , rasga odinheiro que ele deixa e toma um nibus at a fbrica de Loewenthal, que mora alimesmo; l est a pretexto de denunciar colegas que esto armando uma greve, epor isso ele no estranha. Aproveitando um momento de distrao do monstro,Emma toma a arma que ele guardava e atira contra ele, aquele que havia destrudoa vida de seu inocente pai; assim que constata a morte de Loewenthal, telefonapara a polcia, dizendo que aquele homem a tinha pressionado a ir at ali naquelahora erma, para abusar dela como poderia atestar com o esperma em seu tero, e por isso ela o havia matado.

    um conto em que sexo, vingana em favor da honra do pai (quem, por outrolado, fazia aquela coisa horrvel do sexo com sua me) e ardil feminino combinamao limite da perfeio concebvel, do ponto de vista narrativo, ao mesmo tempo emque d notcia de um valor, mais do que rebaixado, vil e perverso ao sexo. O fatode aqui termos uma mulher relacionada herana paterna no parece impugnartotalmente uma aproximao com o nexo entre Jorge filho e Jorge pai, creio.

    Na obra romanesca de Machado publicada antes de seus 40 anos, na chamadaprimeira fase, h dois casos em que as mulheres protagonistas de alguma formavivem uma ligao tensa e de difcil resoluo entre amor, casamento (e, por aqui,sexo) e a herana paterna. Helena, no romance de mesmo nome, reconhecidacomo filha por um conselheiro rico, sendo filha carnal de outro homem, um sujeitopobre e digno, que no tem a menor culpa em sua adoo no-oficial peloconselheiro, adoo que aconteceu por iniciativa mais ou menos perversa da medela, amante do conselheiro; de todo modo, Helena morre finada por no poderrealizar seu amor, que se dirige ao homem que filho do conselheiro, quer dizer, aseu suposto meio-irmo, mas que no nada disso. Por seu lado, Iai Garcia, noromance homnimo, mais um caso de uma menina de baixo que se casar comum homem herdeiro, Jorge, homem este que, porm, queria se casar com certamoa, Estela, mais pobre que ele, numa relao que no agrada nada aristocrticame de Jorge num enredo de alta complexidade nesse campo dos afetos ecompromissos filiais cruzados com os interesses sociais e os sentimentos docasamento, essa moa Estela com quem Jorge gostaria de ter se casado vai acabarse casando com Lus, o pai de Iai, quer dizer, vai acabar se casando com o sogrode Jorge. Mistura pouca? E mesmo assim, nada de sensualidade, nada de figurasprovocativas.

    De modo geral e panormico, em Machado a relao com mulheres mediadapelo cime, que burgus, como exemplarmente ocorre em Dom Casmurro(Capitu, por sinal, tambm filha de gente humilde, ao passo que Bento Santiago proprietrio e herdeiro), cime que totalmente ausente em Borges, um sujeitoaristocrtico. Algumas verses no apresentadas muito claramente indicam que

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  • Machado, depois de arroubos de amor na juventude (uma paixo nocorrespondida por Augusta Candiani, cantora lrica, mais outra por GabrielaAugusta da Cunha, atriz, esta correspondida, ambas bem mais velhas que ele, porsinal), teria tido paixes e talvez casos amorosos em paralelo com seu casamentocom a culta Carolina, mas no se trata de algo demonstrvel; Borges parece terdado pouco servio a seu corao nesse campo das paixes, ainda que tenha secasado mais de uma vez, a primeira das quais por pouco tempo, a ltima das quaiscom sua derradeira companheira, que comeou como sua secretria.

    Cinco Temperamento clssico

    Essa ausncia de sensualidade combina bem com o temperamento clssico, oumelhor, classicizante, presente tanto num quanto no outro. Nascidos e criados osdois em contextos culturais de feio romntica (Machado literalmente, porque setratava mesmo de Romantismo nacionalista, Borges metaforicamente, porque setratava de contexto vanguardista no comeo do sculo 20, igualmente atravessadopor demandas nacionalistas, ao menos nos pases sul-americanos), os doisresultaram ser escritores aparelhados de conscincia antiefusiva, antiderramada eigualmente antinacionalista, que era tambm uma conscincia sobre o papel dadeliberao, da razo, na construo da arte, oposta tambm nesse particular aoespontanesmo, de feio romntica.

    Onde se v tal aspecto? Em sentido amplo, como veremos mais adiante, naconscincia que cada um desenvolveu, nas condies especficas de sua respectivavida, acerca das tarefas cabveis para a literatura. Nenhum dos dois permaneceuligado a uma visada localista ou nacionalista, ainda que os dois tenham namoradotal posio na juventude. Essa conscincia se aproxima muito da perspectivaclssica, aquela anterior ecloso romntica ocorrida na Europa em fins do sculo18 e na Amrica na primeira metade do 19: perspectiva clssica no porfreqentarem os temas inspirados no mundo clssico grego ou romano, mas sim nosentido de compreenderem a literatura e conceberem-se a si mesmos, enquantoartistas, como pertencendo a uma tradio antiga (ao contrrio da idiafundacionista que animou romnticos em geral e certos vanguardistas), tradio queultrapassava os limites nacionais to caros na poca dos dois, tradio em partereferida ao mundo neoclssico de que se julgavam herdeiros, tradio queinteressava conhecer e levar adiante.

    Esse classicismo pode ser detectado em aspectos pontuais. Um deles, na versomachadiana, o consabido tdio controvrsia. A expresso aparece, na obra deMachado, num romance de sua maturidade, Esa e Jac. Escrito, como se l naapresentao, pelo Conselheiro Aires, seu captulo XII traz uma descrio de Aires,feita pelo narrador de terceira pessoa, que esconde o autor suposto; diz assim: Era

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  • cordato, repito, embora a palavra no exprima exatamente o que quero dizer. Tinhao corao disposto a aceitar tudo, no por inclinao harmonia, seno por tdio controvrsia. No tinha o gosto pelos arrebatamentos, este Aires, e a tradio doscomentadores de Machado assimilou tal caracterstica ao autor mesmo, que noentrou em debate pblico, nem mesmo em temas candentes.

    Isso na maturidade, preciso dizer. Porque quando moo Machado expressousuas broncas com alguma contundncia. Aos 20 anos, por exemplo, meteu lenhanuma instituio oficial como o Conservatrio Dramtico, rgo em que elemesmo, anos depois, iria militar oficialmente (sua frase a propsito do rgo :Organizado desta maneira era intil reunir os homens de literatura nesse tribunal;um grupo de vestais bastava6). E mesmo nas vsperas da grande viravolta de suacarreira, que se deu aos 40 anos com Memrias pstumas de Brs Cubas, vamosler sua tmpera brigona naquela famosa discusso sobre o romance O primoBaslio, de Ea de Queirs. Machado publicou a resenha do romance no dia 16 deabril de 1878 e retornou ao tema duas semanas depois, no dia 30, porque o debatepblico esquentou e ele se viu na contingncia de esclarecer seus pontos de vista.Nesse segundo texto que se l a seguinte passagem, de retrica de guerra, quandoest para dizer que foi mal lido por certos contendores: Que no entendessem, v;no era um desastre irreparvel. Mas uma vez que no entendiam, podiam lanarmo de um destes dois meios: reler-me ou calar7. Por outras e mais belicosaspalavras, Machado est dizendo que no admite contestao, porque se notivessem entendido era ou reler, ou no dizer mais nada.

    Borges tambm apresenta em sua trajetria uma curva desse tipo: igualmentesoube brigar na juventude, mas assim que se compenetrou do que aqui estouchamando de classicismo baixou nele o tdio controvrsia8. (Na rgua da polticacotidiana, tanto Machado quanto Borges passaram de jovens quase-esquerdistas aadultos e velhos conservadores, quando no reacionrios mesmo, Machado emrelao fogosa Repblica inicial brasileira, Borges em relao ao movimentosindical e nacionalista encarnado em Pern.) Vejamos uma passagem de seuprimeiro livro de ensaios, aquele famoso Inquisiciones (livro de 1925, quando oautor contava 26 anos), que ele expurgou de suas Obras completas (mas quefelizmente est republicado, junto com os outros dois renegados livros dejuventude, El tamao de mi esperanza e El idioma de los argentinos). No ensaioEjecucin de tres palabras, se ocupa de, como diz o ttulo, executarretoricamente trs termos de que os poetas da gerao anterior (equivalentes noBrasil aos parnasianos, mas que l se chamam, para nossa confuso, modernistas ver adiante) abusavam: inefable, misterio e azul. E diz o jovem ensasta,com uma retrica guerreira e localista: Yo, ante la afrancesada secta de voces queembolisman la charla, descalabran toda cuartilla y salen fatalmente a relucir en lascomposiciones de quienes se dedican a vocear nubes e gesticular balbuceos, hedeterminado alzar un Dos de Mayo en estos apuntes. Dois de maio remete Espanha de 1808: nessa data ocorreu o levante da populao madrilenha contra aocupao francesa, em gesto libertador de matiz nacionalista, eternizado por Goyaem quadro famoso, o lado triunfante daquele outro quadro tambm famoso, que

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  • tem por tema o Trs de maio, quando foram fuzilados os revolucionrios querestavam.

    Na medida em que amadureceu, Borges foi perdendo essa seriedade (por sinalparecida com a dos modernistas brasileiros em seu combate ao Parnasianismo) eaprendendo a ironia, que serviu para muita coisa em sua longa carreira. Serviu, porexemplo, para um comentrio de grande eloqncia no quesito tdio controvrsia. Est na abertura da Historia del tango, captulo que hoje em diavem publicado no livro Evaristo Carriego, este publicado originalmente em 1930 ecom segunda edio apenas em 19559. O luminoso ensaio comea referindo trshistoriadores do tango, que contaram cada um sua particular verso sobre o tema; ediz Borges, exemplarmente discreto: Nada me cuesta declarar que suscribo a todassus conclusiones, y aun a cualquier otra.

    Seis Desconfiana no Realismo

    J que mencionamos aquela crtica de Machado a Ea, cabe fazer mais umaaproximao entre ele e Borges, a partir dela. que Machado no aceita, em Oprimo Baslio, justamente a transferncia da matriz da fora do romance, quedeixa de estar na composio do personagem, de sua psicologia Machado nousa essa palavra ento, porque ela no tinha tal significado , para abrigar-se numtruque narrativo, a interceptao das cartas pela criada de Lusa. Para Machado,Lusa um carter negativo, um ttere e no uma pessoa moral; ele se sentedesconfortvel com a obsesso realista de Ea (Porque a nova potica isto, e schegar perfeio no dia em que nos disser o nmero exato dos fios de que secompe um leno de cambraia ou um esfrego de cozinha 10). Faz lembrar a faltade pacincia de Borges para com o romance em geral, que pode ser contabilizadacomo falta de apetite para com o realismo mido, o mesmo rejeitado por Machado e rejeitado tambm por um outro temperamento classicizante que nenhumarelao direta tem com os dois agora examinados mas que, em outro sentido, temtudo que ver com eles. Na antologia de Alain de Mijolla chamada Pensamentos deFreud, composta de fragmentos de cartas e outros materiais mais e menos nobres,encontro l na pgina cem esta declarao do inventor da psicanlise: Comecei aler o livro de Cline (Voyage au bout de la nuit) e estou na metade. No aprecioessa pintura da misria e do vazio de nossa vida atual que no se apia num fundoartstico ou filosfico. No o realismo que exijo da arte, outra coisa.

    Borges, da mesma famlia mental, alm de sua manifesta predileo por borraros laos realistas mais slidos em boa parte de sua fico, por exemplo quandofreqenta temas remotos no tempo e no espao (suas Ficciones esto cheias disso,como em Las ruinas circulares) ou quando inventa biografias de indivduos(como o caso da Historia universal de la infamia), desgosta do romance

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  • exatamente pelo realismo, como deixou consignado em incontveis entrevistas Tenho tambm a impresso de que o romance como uma superstio de nossotempo, como o foram no passado o drama de cinco atos ou a epopia; Ler umromance como entrar em uma casa cheia de desconhecidos, aos quais nosapresentam um a um; Fui derrotado pelos mais famosos romances do mundo11.

    Da mesma raiz classicizante que, por vias indiretas, deu substncia a essadesconfiana no Realismo e, em Borges, desconfiana at mesmo no romance,vem um trao que est presente em toda a obra dos dois gnios, especialmente naobra da maturidade de cada um maturidade que brotou, tambm em paralelonotvel, depois dos 40 anos (Machado com Memrias pstumas de Brs Cubas,livro de 1881, quando o autor tinha 42 anos, Borges com El jardn de los senderosque se bifurcan, de 1941, ou com os contos de Artifcios, livro de 44). Trata-se deuma caracterstica que me parece visvel a olho nu, ao menos para o leitor quefreqenta regularmente a obra de ambos, mas que permanece fora do alcance danomeao crtica at agora. O que ?

    No sei se ser s comigo, mas d a impresso de que a obra deles, emqualquer de suas encarnaes ficcionais (poesia, romance, conto), nunca pode serlida sem que se leve em conta um crebro raciocinante por trs, uma ativa vontadede entender o mundo, uma perspectiva, como direi?, cognoscitiva onipresente.Nunca na obra deles a fico, o pacto ficcional, a suspension of disbelief, engolfa oleitor a ponto de este perder o p na realidade, como acontece com grandefacilidade no romance balzaquiano e na fico anterior ao sculo 20, em geral.Nunca na obra deles se entra sem sentir a presena dessa entidade que est paraalm do personagem e do narrador, uma espcie de conscincia ativa que, se nofala diretamente no texto, estende sua sombra sobre ele. L-se a obra ficcional deMachado e de Borges e fica-se com aquele incmodo (mas magnfico) sentimento,que nem nome tem, de que o que o texto sugere sempre mais do que o que estno enunciado e do que o que foi apreendido na leitura, e tal descompasso faz parteda natureza do jogo que aquele texto instaurou. (Augusto Meyer, comentador deMachado que no est entre os que mais aprecio mas que no pode deixar de serlido, foi talvez o primeiro a perceber algo dessa ordem, por exemplo naaproximao que faz entre Machado e Dostoivski, na imagem do homemsubterrneo, ou na expresso monstro de lucidez com que qualifica essaatividade que estou aqui tentando descrever.12 A propsito: lembrando a crtica aEa, podemos perguntar onde Machado colocar a fora de seu romance.Resposta: nem no conjunto das peripcias, como Ea fez, nem no personagem,como o romance de raiz impressionista far, mas no ponto de vista, nessa espciede razo narrativa que ele pe em atuao.13)

    Com Borges o mesmo se d, quase sem tirar nem pr. Nele, dada a natureza desua fico e a abundncia das entrevistas em que exps seu pensamento jpensou o que valeria hoje, para a compreenso da obra, uma hora de entrevistafranca com Machado de Assis? , talvez seja mais fcil dizer que se trata dedistanciamento irnico, o que realmente : lemos seus contos, mais que seuspoemas, e vemos ali essa mquina de pensar, esse monstro de lucidez (mas por que

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  • monstro? Augusto Meyer preferiria que Machado fizesse fico com aingenuidade perdida?), sempre atuando por trs ou para alm do enredo e dospersonagens. Uma das melhores comentadoras de Borges, Beatriz Sarlo, assimdesenha o problema: La mquina literaria borgeana ficcionaliza estas cuestiones[refere-se aos traos metanarrativos de Borges, sua prtica da intertextualidade, suaargio dos limites da iluso referencial e da relao entre conhecimento elinguagem LAF], y produce una puesta en forma de problemas tericos yfilosficos, sin que en los movimientos del relato se pierdan jams del todo el brillode la distancia irnica o la prudencia antiautoritaria del agnosticismo14.

    Alis, essa questo do agnosticismo no pouca, nem para Borges, nem paraMachado. Sem ir muito longe: Borges tinha pai ateu, o que j meio caminhoandado na direo dessa liberdade e dessa prudncia antiautoritria, e Machado,que foi batizado e teve parte de sua formao relacionada com padres cultos do Riode Janeiro em seu tempo, parece ter-se emancipado da viso religiosa na altura dos20 anos Raymundo Magalhes Jr., seu bigrafo mais detalhista, enfatiza o papelque nesse processo desempenhou o francs Charles Ribeyrolles, republicano,homem de esquerda liberal naquele contexto, amigo do grande escritor VictorHugo, que veio ao Brasil em 1858 por um arranjo do fotgrafo Victor Frond, paratrabalhar na elaborao de um livro sobre o Brasil, com uma equipe de que fezparte Machado, jovem de nem 20 anos. O jovem brasileiro, que era chamado peloilustre francs, conforme testemunhos, de mon cher Machad, ter aprendido ouaprofundado com ele a visada liberal (Machado mantendo simpatia pela monarquia,no entanto) e a leitura de autores anticlericais como Pascal e Voltaire, que de fatoesto entre as preferncias do escritor brasileiro.

    Talvez pela soma disso tudo que nenhum dos dois foi um praticante dorealismo ingnuo. Borges viveu a mar vazante nessa matria: a gerao dele, amesma gerao modernista brasileira, cultivou o gosto por argir o realismo comoatitude narrativa, especialmente nos anos vanguardistas de 1920 (mas, nos 1930,depois que a crise de 29 deu as caras, o mesmo realismo recobrou flego, vindo adar ao mundo acertos literrios em forma de depoimentos veristas em vrias partesdo Ocidente, exemplarmente no Brasil, nos Estados Unidos e na Itlia). Machado,bem ao contrrio, havia vivido a subida da mar realista bem quando ele prprioamadurecia, nos anos 1870 e 80; mas ele, que viu o sucesso de um romancerealista/naturalista estrito como O cortio, de Alusio Azevedo, discutiu o realismofilosoficamente, viu que tinha problemas que no lhe interessavam e foi adiante, embusca de seu caminho.

    (Roberto Schwarz desenha da seguinte maneira essa recusa de Machado aorealismo maneira de Ea, em favor da indita capacidade de flagrar a realidadebrasileira que ele prprio inventou, a partir das Memrias pstumas: Machado,como se raciocinasse igual a um conservador europeu, realmente no gostou damincia e da franqueza realistas, dando assim um passo atrs em relao ao vetorprogressista em matria de registro crtico da vida; mas deu tal passo atrs por terintudo que com aquele modelo realista no iria longe ao pensar o Brasil, uma vezque o molde narrativo realista dependia da existncia de uma sociedade de classes

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  • burguesa, ntida, pautada pelo paradigma da Revoluo Francesa, etc., enquanto arealidade de nosso pas envolvia escravismo urbano, clientelismo e liberalismo defachada combinado com truculncia pura e simples, isto , uma realidade socialpara a qual aquele realismo europeu no fora concebido e que por isso mesmodeixava escapar por entre os dedos, como j se podia ler no romance urbano deJos de Alencar, capenga exatamente por haver confiado no mtodo realistaeuropeu. Machado teria ento recusado o Realismo, mas no por simplesconservadorismo, e sim em favor de melhor ver a realidade social brasileira; porisso tratou de incorporar a empiria brasileira em seus romances e de argirjustamente o ponto de vista narrativo, o ponto a partir do qual a realidade era vista,isto , o lugar de onde o narrador contava o que via: aqui est, em esquemagenrico, a revoluo narrativa das Memrias pstumas.)15

    Mas algum realismo eles praticam, por outro lado. Certo, em Borges no temosvida cotidiana registrada (coisa tpica dos enchimentos do romance, aqueleslongos trechos descritivos e narrativos que ficam interpolados entre os ns doenredo, que so poucos16, numa combinao que ele abominava), nem o desenhode conflitos sociais, de opresso de classe, etc., itens esses que sim aparecem emMachado, mesmo quando no ocupam o centro de interesse direto do texto, nemesto no plano imediato do enunciado. Especulao: para alm de merotemperamento, talvez a natureza da vida social em Buenos Aires e no Rio sejarazo dessa diferena: pode ser que a Buenos Aires bastante ntida ao observadorda sociedade havia a elite criolla, fazendeira, uma extensa classe mdiafuncional e de servios, mais os operrios, muitos deles imigrantes recentes, numdesenho sociolgico claro e enxergvel primeira vista, especialmente para umindivduo de famlia enraizada na histria local seja um universo totransparente que no constitua motivo de reflexo para Borges. Ao contrrio, podeser que o Rio de Janeiro opaco em matria de classes e relaes sociais ex-escravos que se tornaram prias, ex-escravos que encontraram lugar comooperrios ou at ascenderam classe mdia confortvel, escassa classe mdiafuncional, elite escravista que gostava de ser vista como educada e burguesa emtermos europeus, a decada nobreza da terra, o favor pessoal mediando grandeparte dos negcios do Estado, etc. tenha constitudo um enigma instigante parao jovem (e pobre em ascenso) Machado, tal que ele tenha gasto algumas boasenergias na decifrao do problema.

    O que mais h, nos dois, parece ser um certo tino realista, que os levou aregistrar cenas, indivduos, momentos reconhecveis na vida real, tino que porm semescla com elementos de reflexo filosfica ou de comentrio culto elegante, detodo modo afastado do registro mido da vida diria. Ter isto algo com a afinidadede ambos com a literatura de lngua inglesa? Pode ser. Pode tambm ser que tal seexplique por uma via distinta, em analogia com a situao de Kafka. GeorgeSteiner, em Nenhuma paixo desperdiada, diz que Kafka, como os judeus emgeral, tem certa tendncia iconoclasta e falta de confiana (...) na mimesis,porque operava nele a desconfiana de toda a semntica da representao quetivesse por objetivo a experincia esttica pela via da fico17. Da, digo eu, que

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  • Kafka escreve fico no raras vezes simulando a voz do ensaio, o qual umamodalidade de texto mais afeita a quem desconfia do realismo. Ora, Machado deAssis, no sendo to obsessivo ou sistemtico como Kafka, e Borges, sendo-o umpouco mais que Machado, como se v pela freqentao reiterada de algumasimagens (labirintos, espelhos), e nenhum deles sendo judeu (ao menos naascendncia prxima), esto ambos nessa mesma situao, por razes diversas:desconfiam da mimesis porque confiam mais naquela razo narrativa, naquelainteligncia raciocinante de feio clssica, naquela distncia irnica informada deagnosticismo, e tambm desconfiam da mimesis, digo eu ampliando a observaode Schwarz antes evocada, para melhor poderem flagrar a realidade com olhosrealmente desveladores, capazes de mostrar mais do que aquilo que os modeloseuropeus seriam capazes de fazer.

    Os exemplos dessa desconfiana so abundantes. Fiquemos com um deMachado e outro de Borges. Nas Memrias pstumas, aquele duro processo dedescarnamento do realismo, Brs Cubas, o autor, discute as prprias ilusesrealistas em vrias oportunidades, como no famoso captulo O seno do livro, denmero LXXI, ou no seguinte a ele, O biblimano, em que submete o processode narrar suas memrias a uma toro que nega a serenidade da distncia entretempo do narrador e tempo do narrado, fundamento primeiro da possibilidade derelatar memrias (mesmo o autor estando morto...), mediante a apresentao dadvida sobre manter ou no parte do texto que o leitor acabou de ler, dvidadescabida desde sempre, porque o leitor no pode duvidar de que acabou de ler oque leu, e pode mesmo retornar pgina anterior para desmentir o giro retrico donarrador. Em chave irnica, a relao desconfiada, matreira, irnica de Machadocom o paradigma do realismo aparece em momentos inusitados, como por exemploem certa passagem do conto Maria Cora, publicado em 1906: o narrador-protagonista est a relatar um caso de paixo descabelada, tal que o faz entrarnuma guerra, a chamada Revoluo de 93, no Rio Grande do Sul, para assassinar omarido da mulher que deseja; e quando ocorre tal morte ele confessa que tentoudegolar o morto (prtica que foi bastante comum naquela guerra civil), mas seuintento era apenas levar uma prova da morte do marido desejada Maria Cora dottulo, que vivia no Rio, de forma que se contentou em cortar um chumao doscabelos dele; e bem nessa hora ele diz, tematizando em pauta brincalhona oproblema: Perdoa-me tu, realista sincero, h nisto tambm um pouco derealidade.18

    Sobre Borges, ser possvel lembrar passagens tambm de sua ao narrativa,por exemplo no j citado El sur, em que, quando o andamento do relato est paracontar cenas que poderiam talvez parecer algum tipo de forada de barra, algumtipo de falta de verossimilhana, o narrador se apressa em esboar pequenasteorias, como que para atenuar a eventual resistncia do leitor realista rigoroso: Ala realidad le gustan las simetras y los leves anacronismos, diz ele, para depoisengatar uma sucesso de coincidncias. (Parece mentira, mas o conselheiro Aires,em seu Memorial, anota, no dia 15 de junho de 1888: H na vida simetriasinesperadas. (...) Se isso fosse novela algum crtico tacharia de inverossmil o

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  • acordo dos fatos, mas j dizia o poeta que a verdade pode ser s vezesinverossmil.) Ou sirvamo-nos de outro preciso comentrio de Beatriz Sarlo,quando discute Funes, el memorioso, o sensacional conto filosfico sobre o tristedestino de Irineo Funes: o pobre peo memorioso guardava tudo, tudo mesmo, emsua lembrana, e por isso, diz o narrador, Funes no podia pensar, porque pensarimplica generalizar, coisa impossvel para ele, abarrotado de particularidades; aoconceber tal histria, Borges teria feito uma alegoria negativa do realismo, realismoque se apoya en la ilusin de que la representacin directa (el intercambio deobjetos por palabras) es posible. Assim, Funes es una imagen hiperblica de losdevastadores efectos del realismo absoluto19.

    Ou ser que o que estou querendo nomear no outra coisa que asobrevivncia, neles dois, em suas obras, de certo distanciamento de origem pica,quer dizer, daquela lei consuetudinria e por isso clssica, que obriga a vislumbrar amatria da experincia a ser relatada em sua completude e portanto distncia,distanciamento matizado pelo nimo comentador que os dois trazem desde ajuventude, quer dizer, pelo nimo do moralista, do ajuizador, do homem que pensasobre si e seu mundo em suma, a verve do narrador ancestral, clssico,temperada pelo tino do ironista tambm clssico , no ser?

    Sete Escritores europeus

    Machado de Assis escreveu em portugus, Jorge Luis Borges em espanhol;nenhum dos dois deixou de freqentar outras lnguas e outras literaturas. Para obrasileiro, em sua poca, a regra era ler os portugueses, de quem o processohistrico da Independncia, na gerao anterior a Machado, mandou buscarafastamento, ao lado dos franceses, principalmente; para alm disso, havia omundo latino, que em parte acolhia a tradio grega, e depois ainda, com muitomaior distncia, havia os mundos de lngua alem, de lngua espanhola, de lnguainglesa, e era isso. Em parte, como se sabe, Machado fugiu a essa regra; no queno tenha freqentado os portugueses e franceses, ou os latinos: leu-os bem, e aalguns franceses chegou a traduzir (de que forma aprendeu o francs ainda hojeobjeto de controvrsia, j que no teve escola regular por muito tempo; mas certoque aos 20 anos j dominava bem o idioma, a ponto de haver trabalhado comotradutor ao portugus no citado projeto dos franceses Victor Frond e CharlesRibeyrolles de escrever um livro-lbum sobre o Brasil). O caso que, alm dehaver lido mais que essa matriz, teve a sorte de encontrar uma parceira, sua esposaCarolina, que lia em ingls e, ao que indicam as biografias, ajudou muito seumarido no mergulho em Shakespeare, em Poe, em Sterne mesmo, este que tantopapel teria em sua carreira como modelo das Memrias pstumas de Brs Cubas.Segundo depoimentos, j tinha passado dos 50 quando comeou a aprender

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  • alemo; e so conhecidos rascunhos dele, tambm da maturidade, quandopenetrava nos mistrios da escrita do grego clssico. Como ter feito todo essepercurso, vindo to de baixo e sem estudos regulares? E que inteligncia potencialter tido, capaz dessas conquistas rarssimas para quem, numa sociedade desigual eexcludente como a brasileira, no tem a cultura letrada entre as coisas familiares?

    Borges, escritor da muito mais cosmopolita lngua espanhola, teve o inglscomo segunda lngua familiar; nela conversava com sua av materna, nessa mesmalngua de que a me e o pai traduziam ao espanhol. (Que diferena.) Dominava,portanto, duas lnguas de grande cultura letrada quando foi para a Europa, paraaqueles longos anos de estudos; l aprendeu o francs, lngua de trato dirio e deleituras cultas, e o alemo, em que chegou a ler pelo menos um livro inteiro,segundo seu relato, alm do latim, que tambm estudou bastante. Leu alguma coisaem portugus tambm, Cames, depois Euclides da Cunha, segundo declarouvrias vezes. Mas certo que o ingls foi para ele muito marcante, certamente maisque o francs, nisso se aproximando do Machado maduro. Seria um anglfilo,ento? Uma passagem de entrevista responde exemplarmente a questo.Perguntado, em entrevista concedida revista Veja em 1980, sobre como respondia crtica de escritores argentinos de que no tinha nada nem de argentino, nem delatino-americano consideremos a poca da pergunta, quando esse tema aindaempolgava o pensamento da regio, fruto da mesma raiz que havia gerado opensamento cepalino de Ral Prebisch e Celso Furtado, mas tambm de FernandoHenrique Cardoso, assim como havia gerado o clssico setentista As veias abertasda Amrica Latina, do uruguaio Eduardo Galeano , disse Borges: Todos eles[os escritores argentinos e latino-americanos LAF] como eu so europeus:e isto muito bom. Ns somos os nicos escritores europeus da Terra. Na Europa,eles so franceses, italianos, finlandeses, alemes, ingleses, mas nunca sereconhecem como europeus. Ns, pelo contrrio, com nossa multido defantasmas, somos os nicos que podemos pensar na Europa como uma unidade,somos os nicos escritores genuinamente europeus20.

    um jogo de palavras, naturalmente, mas no apenas isso, porque faz muitosentido. Para Borges absolutamente, j que no encontrar antepassados no-europeus entre seus ascendentes, ao passo que para Machado apenasrelativamente, no sentido tnico, j que era notvel (e um problema de difcilabordagem para ele) que parte de sua origem estava na frica, em algum ponto dopassado. Mas mesmo para Machado tal europesmo tinha valor dominante, talvezmesmo valor absoluto, do ponto de vista cultural; nem ele alimentava iluses demescla cultural com as culturas de tradio apenas oral, como se pode ler emalguns momentos de sua obra crtica, como naquele Notcia da atual literaturabrasileira Instinto de nacionalidade, texto de 1873 em que, comentando apresena do tema indianista na literatura, ele anota: certo que a civilizaobrasileira no est ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum21.Se dizia isso dos ndios, o que diria, se tivesse dito, sobre o elemento africano e suainfluncia na dita civilizao brasileira? Creio que diria o mesmo, porque at nocaso escancarado da cano popular urbana (o samba), que adiante examinaremos,

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  • caso em que no se pode negar larga presena de elementos afrobrasileiros,Machado foi reticente em reconhecer valor no conto Um homem clebre essetema o centro das atenes, mas ao final da trajetria do pianista Pestana ficamosem dvida sobre a posio do narrador (e mais ainda de Machado ele mesmo)acerca do dilema do personagem: O primeiro lugar na aldeia no contentava a esteCsar, que continuava a preferir-lhe, no o segundo, mas o centsimo em Roma.

    Oito Brasil, Rio de Janeiro Argentina, Buenos Aires

    Viveram os dois escritores em pocas muito distintas, que a seguirexaminaremos de perto, e em pases muito diferentes, apesar de prximosgeograficamente e por isso mesmo submetidos a processos histricos anlogos, quevamos pensar agora. Primeiro de tudo, o Brasil foi colnia portuguesa, com tudoque isso implica em matria de limites da colonizao (a comear, para o nossocaso, pela total restrio imposta pelos portugueses circulao de inteligncialetrada em sua colnia), ao passo que a Argentina um feito do imprio espanhol(nesse particular muito mais generoso com aquela circulao, como o atesta, parano ir longe, a criao de universidades na Amrica j no sculo 16). Na pontaoposta da vida, na dureza da condio social mais essencial e no no plano daliberdade mental, para medir a diferena entre os dois estilos de imprio colonial s contrastar a permanncia da escravido como instituto legal at 1888, no Brasil,onde ela sempre esteve na estrutura fundamental da atividade econmica desde oacar, passando pela minerao e pelo caf, e de outro lado a supresso daescravido j nos anos 1850, na Argentina, onde de resto ela no teve papeldecisivo em momento algum da histria econmica.

    Um estudo recente de grande interesse para a comparao, que alinha os dadosacima e inmeros outros, Brasil e Argentina Um ensaio de histriacomparada (1850-2002), de Boris Fausto e Fernando J. Devoto. Nele vo sendoapresentados paralelos de toda natureza, tanto para diferenciar quanto paraaproximar. No primeiro caso esto os grandes ciclos de prosperidade, estgios dematurao econmica que de alguma forma ensejam amadurecimento cultural,blocos histricos que permitem, pelo trao largo, enxergar tendncias de ordemmacro. O Brasil alcanou um momento de grande empuxo econmico a partir daIndependncia, com o caf produzido em esquema tradicional no pas (latifndio,mo-de-obra escrava, monocultura exportadora) em combinao com a estabilidadeinstitucional da monarquia (consolidada na represso s insurreies regionais dosanos 1830 e 40, madura no Segundo Imprio, com Pedro II no poder por quase 50anos). J a Argentina, com uma histria poltica muito mais instvel pela mesmapoca, tem um apogeu entre o final do sculo 19 e o perodo do ps-PrimeiraGuerra Mundial, em que vendeu carne, l e trigo para a Europa e acolheu

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  • imigrao espontnea num volume impressionante (na altura de 1914, metade dapopulao de Buenos Aires nascida em outro pas). De 1930 em diante, a foraprincipal estar com o Brasil.

    J por aqui temos uma indicao preciosa sobre os ambientes histricos deMachado, que nasceu em 1839 e portanto viveu aquele momento de foraeconmica e de estabilidade institucional no pas, e de Borges, que nasceu em 1899naquela cidade prspera e tambm estvel. De certo modo, cada um deles viveu oapogeu continental da histria de seu perodo, o que, se no explica muito emtermos de criatividade (ok, o gnio no tem causao direta, nem social, nempsicolgica), no pouco em matria de experincia histrica (o gnio vive nahistria, coletiva e pessoal, e s a se manifesta), porque tais pices, a que semprese seguem cadas, constituem oportunidades magnficas para um bom observadordivisar a encenao, em tom agudo, de dramas e dilemas histricos que, em outrosmomentos, se desenvolvem lentamente, imperceptivelmente. possvel que osmomentos de crise sirvam para enxergar mais claramente os conflitos de classe,porque ficam magnificados e explcitos, mas certo que os perodos de auge do aver o mximo da fora daquela formao cultural, e por a permitem a apreciaodo espetculo da civilizao.

    No basta, porm, haver vivido cada um deles um ponto alto do processo deacumulao econmica, de desenvolvimento das foras produtivas e de estabilidadepoltica e institucional. Ser preciso, antes de mais nada, o talento da observao eo da expresso, claro; mas igualmente ser preciso um elemento ao mesmo tempocentral e vago, decisivo e impreciso, que pode decidir o destino do gnio o leitor.A pergunta direta : como era a condio dos leitores no Brasil de Machado e daArgentina de Borges?

    Vejamos os nmeros, que so eloqentes. Hlio de Seixas Guimares, em seusensacional estudo justamente sobre os leitores de Machado22, pela primeira vezincorpora tradio machadiana esse tema de modo sistemtico, tomando comoreferncia bsica o Censo de 1872, que foi uma ducha de gua fria para osescritores nacionais: to-somente 18,6% da populao livre (e 15,7% da populaototal, incluindo os escravos, cerca de dez milhes de almas) sabiam ler e escrever.Sim, menos de 20%, menos de um quinto da populao estava em condies de lero que quer que fosse. Certamente no Rio de Janeiro, na Corte, a situao devia sermelhor, e podemos mesmo arbitrar que fosse o dobro, ali, o percentual de leitorespotenciais; mesmo assim, uma tristeza. Para comparar: em 1878, Frana eInglaterra tinham, respectivamente, 70 e 77% de alfabetizados; em meados dosculo 19, no menos que 90% da populao branca dos Estados Unidos sabia ler eescrever23. Machado no apenas percebe o tamanho do problema como,demonstra-o com detalhes o estudo de Hlio Guimares, trata de incorporar talproblema ao debate pblico, seja na forma de falar sobre as necessidades de educaro povo, modo mais simples e direto, seja na forma sutil de trazer para dentro desua fico o problema, fazendo o narrador tourear o leitor, zombar dele, educaresse escasso leitor, enfim, para os vos raros que empreende.

    O caso da Argentina de Borges bem outro. Na altura de 1920, a taxa de

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  • analfabetismo argentino de mais ou menos 30%, menos da metade da taxabrasileira no mesmo perodo. Em meados dos anos 1930, para uma taxa argentinanacional de uns 20% e para uma taxa brasileira nacional de uns 55%24, a taxa deanalfabetismo na capital, Buenos Aires, era s de 6,64% com o que, diz BeatrizSarlo, emerga un pblico de sectores medios y populares (...); para l seproducen un elenco de colecciones de folletos, libros y revistas25. No poucadiferena, vamos convir: uma coisa escrever para menos de um quinto dapopulao, e outra lidar com um potencial superior a 90%.

    Por esse e muitos outros motivos, Boris Fausto e Fernando Devoto alinhamoutro contraste entre os pases, uma observao de grande alcance: o Brasil temum Estado mais moderno, tomando a histria como um continuum, na longadurao, ao passo que a Argentina tem a Sociedade muito mais madura. Tais so,mesmo, motivos de inveja, de parte a parte: ns nos maravilhamos com os leitores,as livrarias e os cafs, as conversas, o teatro da terra vizinha, e eles, especialmentenas camadas superiores, invejam nossa destreza comparativamente maior emdiplomacia, em comrcio exterior, em gesto pblica, etc.

    Outra diferena importante, que em parte semelhana, no que se refere aosdois escritores: que Rio e Buenos Aires so, ao tempo de cada um dos doisescritores, capitais federais, o que implica dizer que se trata de cidadescosmopolitas, portos internacionais por onde escoa parte substantiva da produode cada pas, cidades enfim em que circula a melhor informao e as mais fortesdiscusses do mundo, sem falar ainda de serem ambas palco de lutas sociais epolticas da mais forte insero histrica, j por serem as capitais para dizer emuma palavra, so cidades modernas. A diferena, que para o caso em tela no decisiva (seria, para um debate sobre a formao das literaturas nacionais como umtodo, l e c), que Buenos Aires muito mais concentracionista do que o Rio,tomadas as coisas em rgua larga, abrangendo toda a histria nacional de cada pas.Mesmo durante o Imprio, com grande concentrao de poder no Rio, no se podeignorar que o Brasil mais descentralizado; pensemos no Sul, em So Paulo,Minas, Bahia ou Pernambuco; pensemos no Norte profundo, com Belm eManaus, mais So Lus e Fortaleza, cidades todas com vida cultural relevante,desde o tempo de Machado.

    Mais uma, que no pode passar em branco, por vrios motivos, entre os quaisaquele que o ponto de chegada do presente ensaio, como adiante se ver: queos dois pases ocupam uma posio parecida no contexto ocidental. So ambosperiferia imediata dos centros hegemnicos do lado de c do planeta na eramoderna, quer dizer, depois da revoluo industrial e poltica do sculo 18, essescentros sendo a Inglaterra, a Frana e os Estados Unidos. No por acaso, figurasintelectuais de proa nos dois pases que vo ser os inventores e formuladores daCepal, a Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe, rgo da ONU,criado em 1948, que se abriga no Chile e que foi o contexto de teses de grandepapel poltico nos ltimos 40 anos, por exemplo com o trabalho de Ral Prebisch,argentino, e Celso Furtado, brasileiro. Essa distncia paralela e igual entre o centrodo mundo (econmico, mas tambm cultural) e a periferia (Argentina e Brasil)

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  • conscientizada e pensada explicitamente por Machado e por Borges, cada um emseu tempo e conforme sua linguagem, constituindo esse processo um dos maisimportantes pontos de articulao de toda a obra de cada um.

    Nove Machado v a Argentina, Borges v o Brasil

    Pode-se avanar nesse paralelo histrico bastante, claro; mas para nossoraciocnio vale mais retornar a Borges e a Machado. O caso que os dois, mesmoque lateralmente, pensaram um sobre o pas do outro. Machado escreveu uminteressante texto de recordao, em 1888, relembrando episdio de 20 anos antes,1868, quando conheceu no Rio o poltico, escritor, educador argentino DomingoFaustino Sarmiento. Aps evocar as circunstncias do encontro, lembra que ovisitante estava a caminho de seu pas, aps haver sido eleito presidente, quandoainda estava no exterior, como embaixador nos Estados Unidos. E diz,textualmente: Com efeito, uma nao abafada pelo despotismo, sangrada pelasrevolues, na qual o poder no decorria mais que da fora vencedora e da vontadepessoal, apresentava este espetculo interessante: um general patriota, que algunsanos antes, aps uma revoluo e uma batalha decisiva, fora elevado ao poder efundara a liberdade constitucional [Machado refere-se a Bartolom Mitre LAF],ia entregar tranqilamente as rdeas do Estado, no a outro general triunfante,depois de nova revoluo, mas a um simples legista, ausente da ptria, eleitolivremente por seus concidados26.

    Em seu governo (1868-1874), Sarmiento para ilustrar a nossa compreensodo qu, afinal, Machado expressava em matria de esperanas civilizadas iriaduplicar o nmero de escolas pblicas e poria a funcionar em torno de cembibliotecas pblicas. (Algum paralelo com o Brasil? Talvez s com o governopositivista rio-grandense, com Jlio de Castilhos e Borges de Medeiros, e com otambm gacho Leonel Brizola, em seu estado natal e no Rio de Janeiro, nos anos1950 e 1980 respectivamente. Caudilhos de tipo platino, como diz a voz corrente?Sim, mas tambm modernizadores autoritrios, por certo.) Sarmiento foi piv deoutra ao poltico-cultural em Buenos Aires, que Machado tambm sada em suareminiscncia: que, quando retornou a seu pas, viu ser fundado por amigos deMitre um jornal, La Nacin, que o mesmo do tempo de Machado at agora,2008; para o escritor brasileiro, nada mais auspicioso que essa combinao decivilidade no trato poltico com o prestgio cultural expresso no apreo ao jornal.

    O ano do texto da evocao 1888, e talvez Machado estivesse sentindo afora dos ventos republicanos no Brasil, pelos quais no nutriu grande afeto, comose sabe, dada sua genuna (e grandemente explicvel) admirao por D. Pedro II(ainda mais que Sarmiento havia visitado o mesmo D. Pedro II, naquele 1868,sabedor de que o imperador brasileiro era um sujeito ligado a temas culturais e

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  • cientficos27), e por isso seu texto sada a civilidade da passagem do poder entreMitre e Sarmiento, fato realmente raro na Argentina, e no s no sculo 19, o queno plano poltico contrasta com a realidade do Segundo Imprio brasileiro, queconheceu turbulncia poltica em seu comeo, por aquelas revoltas provinciais, e naGuerra do Paraguai, em bem outro sentido, mas institucionalmente foi de grandeestabilidade. De todo modo, Machado termina o comentrio em tom positivo:Oxal caminhem sempre o Imprio e a Repblica, de mos dadas, prsperos eamigos. Machado saudava a continuidade, a relativa tranqilidade cidad que viano Brasil, e com isso condenava a brutalidade, a truculncia, a tomada fora dopoder.

    Borges, sobre o Brasil, tem uma viso menos estrutural, mais literria. Sorelativamente escassas suas referncias ao Brasil em geral; ao Rio Grande do Sul sereportou algumas vezes, creio que especialmente para referir uma experincia duraque teve na fronteira, em Santana do Livramento, onde, nos anos 40, passou unsdias e teve a infelicidade pessoal (que foi uma felicidade literria) de ver morrer umhomem, por golpe de faca. Em outros momentos, lembra ter lido Cames edescender de ancestrais portugueses, tanto pelo lado Acevedo quanto pelo ladoBorges. Para alm disso, diz ter lido Euclides da Cunha, com emoo28, e no maisparece ter uma viso pura e simplesmente fantasiosa. Na biografia de Mara EstherVsquez, consta que ele manteve na memria uma cena que na minha opinionunca ocorreu, e o leitor vai me dar razo, creio da passagem pelo Rio deJaneiro em navio, a caminho da Europa, em 1914, quando teria ouvido um rapazde sua idade (uns 15 anos), sentado na borda do cais, cantando Minha terra tempalmeiras / onde canta o sabi29. No chega a ser, convenhamos, umainterpretao de conjunto sobre o Brasil; mas permite alguma considerao sobre oque pensa ou o que sente a respeito, uma vez tomada em conta essa fantasia quemistura uma viso meio paradisaca com uma meno literria, que no estiveramjuntas na vida real mas apenas em sua sensibilidade.

    Se em algo os dois parecem concordar no temor ao que ocorre no Sul doBrasil e no da Amrica, mais amplamente. No foram poucas as vezes queMachado referiu com ironia, entre 1893 e 95, temores quanto ao que ocorria noestado gacho, na chamada Revoluo de 93, quando uma guerra civil nopequena foi o palco para resolver disputas que a poltica no tinha conseguidoequacionar. E no so poucas as aluses de Borges truculncia que ocorre nolado brasileiro do pampa. Tudo somado, a concluso linear e limpa: Machado eBorges so liberais esclarecidos, tanto na saudao normalidade democrtica e estabilidade das relaes polticas quanto na condenao ao caudilhismo (e modernizao autoritria, talvez).

    Dez Geraes e contemporneos

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  • Sempre ilustrativo, em comparaes que no querem perder o p na histriapoltica e social, mas tambm na histria cultural, localizar os comparados em seuambiente de criao, em sua gerao, entre os parceiros que trilharam o mesmocaminho e enfrentaram os mesmos drages metafricos. Tomando como refernciano a histria literria beletrista, aquela que pensa em escolas e que maisatrapalha do que ajuda a ver os fenmenos, mas a histria cultural em sentido maisamplo, Machado se criou no momento maduro do Romantismo e Borges noambiente das vanguardas do comeo do sculo 20. (Tendo sido os dois longevos,tiveram tempo, como ficou dito atrs, de deixar obra vasta e, mais ainda, de verpassarem as guas de vrias modas e estilos em que outros artistas nadaram, oudeixaram-se afogar.)

    Para fazer mais uma aproximao inicial panormica, preciso lembrar queentre os dois h outra gerao, a que nenhum bateu continncia mas que teveenorme sucesso: aquela que, na poesia, se chamou no Brasil de Parnasianismo e deSimbolismo, e na Argentina, assim como na generalidade dos paseshispanofalantes, se chamou, cuidado, de Modernismo sim, ambas as coisas soa mesma moda que ocupou coraes e mentes na periferia da Europa no perodo,entre mais ou menos 1880 e 1920, e que prezava o culto da forma, a escolhavocabular rara e mesmo preciosista, o rechao da realidade cotidiana em favor detemas e paisagens requintados (na opinio da poca); moda que ostentou um traopor isso mesmo aristocratizante e que compreendia a arte no como um elo decomunicao mas como a expresso de uma alma sofisticada, moda que obrigou aocultivo de metros clssicos (versos de dez ou 12 slabas na contagem lusobrasileira,11 ou 13 na contagem castelhana, eram os mais prestigiosos) e de formas clssicase neoclssicas (o soneto); moda que imps um repertrio de imagens fluidas, vagas,imateriais, como o inefvel Azul e um arquetpico Cisne, e por a afora. Exemplosaltos de poetas dessa famlia so, pelo lado brasileiro, o parnasiano Olavo Bilac(1865-1918, com o primeiro livro publicado em 1888) e o simbolista Cruz e Sousa(1861-1898, primeiro livro em 1893), e pelo lado hispano-americano Ruben Daro(1867-1916, nicaragense que correu todo o mundo hispnico, com enormesucesso, primeiro livro em 1887) e Leopoldo Lugones (1874-1938, argentino emais ou menos simbolista, com primeiro livro publicado em 1897)30.

    Desses escritores e tendncias, Machado e Borges tomam distncia: Machadov sua ascenso e mesmo diagnostica com detalhe sua viso de mundo ao mesmotempo triunfalista e classicizante (no artigo A nova gerao, de 1879), quando j um homem maduro de 40 anos e dotado de menos iluses do que era precisopara embarcar numa nova onda estilstica, e Borges os toma como paradigma a sersuperado, especialmente quando retorna a Buenos Aires e comea a escrever epublicar, momento em que necessrio, como vimos atrs, combater a mentalidadenefelibata dos afrancesados modernistas de sua terra, em favor de uma adeso matria e lngua locais e vivas.

    Vale apontar que a mesma gerao que na poesia foi parnasiana/simbolista noBrasil e modernista no mundo hispnico tambm a gerao que faz a implantaolocal dos preceitos realistas-naturalistas na prosa; a esto Alusio Azevedo (1857-

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  • 1913) sobre tema urbano, e Simes Lopes Neto (1865-1916) ao lado do MonteiroLobato inicial (1882-1948) no tema rural, para ficar em dois casos brasileiros; aesto Roberto Payr (1867-1928, narrador costumbrista muito menos importanteque o brasileiro Azevedo) no tema urbano e o j citado Lugones (com os contos deLa guerra gaucha, de 1905) e Ricardo Giraldes (1886-1927, autor de DonSegundo Sombra) no tema rural, os dois muitssimo mais famosos que os seusequivalentes brasileiros no tema no-urbano, rebaixados que foram condionefanda de regionalistas pela mentalidade modernistlatra31. (Esse tema danarrativa foi j apreciado antes, quando tratamos do modo de praticar o realismopor parte de nossos dois escritores.)

    Vejamos agora os contemporneos cruzados, de parte a parte. Na mesmssimagerao de Machado vamos encontrar um argentino de central importncia em seupas, mas por motivos totalmente distintos daqueles que colocam o brasileiro naposio destacada que tem entre ns. Trata-se de Jos Hernndez (1834-1886), oautor do Martn Fierro (primeira parte em 1872, segunda em 1879). Como sesabe, Hernndez como que culmina uma tradio larga em sua terra, a da poesialigada ao tema gauchesco, e o faz com ganhos estticos interessantes, por exemploo de haver passado a palavra ao protagonista, um gacho pobre mas honrado que conscrito fora no exrcito para combater os ndios e que lamenta a perda dainocncia e da vida paradisaca que levava, em seu rancho, com sua mulher, osfilhos, os amigos, o cavalo. Essa obra, Lugones colocava como centro da formaoda identidade nacional argentina, junto com outras de mesmo tema, como a deEstanislao del Campo (1834-1880) chamada Fausto (1866) e o Facundo (1845), abiografia escrita por Sarmiento e que tanto impacto teve na mentalidade argentina.

    Em termos brasileiros, essa tarefa de construo de identidade foidesempenhada por Jos de Alencar, nascido em 1829, apenas dez anos antes deMachado e cinco antes de Hernndez (e falecido em 1877). Veja-se que O guarani(1857) e Iracema (1865), mais que Ubirajara (1874), representam o possvelequivalente brasileiro em matria de fico concebida para enunciar o que era onacional, em cada caso, a figura do ndio ocupando no Brasil (na Corte, melhordito) o lugar que a figura do gacho ocupa no Prata (e no Rio Grande do Sul,falando nisso). Essa a coisa tal como vista por Alencar, no por Machado; estepor vrios motivos inventou outro caminho para si: no apenas no vinha daprovncia ou nela tinha interesse particular, como Alencar (nascido no Cear) eHernndez (nascido perto da capital, que viveu anos decisivos de sua formao nointerior), como lhe pareceu que de certo modo as tarefas nacionais estavamesgotadas, de tal maneira que se tratava de dar passagem ao debate maiscosmopolita, como se l em seu conhecido ensaio Notcia da atual literaturabrasileira Instinto de Nacionalidade, de 1873.

    Agora a outra ponta da comparao: da mesma gerao de Borges, tanto emmatria cronolgica como, mais importante, mental, esto os brasileiros que nossahistria literria conveio (lamentavelmente para rebaixamento do debate sobre oque moderno, em plano amplo, e para meu desgosto, em particular) em chamarde modernista. Vejamos alguns casos, com as datas de nascimento e morte: Mrio

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  • de Andrade (1893-1945); Oswald de Andrade (1890-1954); Carlos Drummond deAndrade (1902-1987); e um atento leitor de Borges, e especialista em Machado,Augusto Meyer (1902-1970). So aqui dois paulistas, um mineiro e um gacho,quer dizer, nenhum carioca, carioca hipottico que no entanto seria um bom termode comparao, dado que o Rio, para essa gerao, era ainda o centro absoluto dopoder e da produo cultural. (No que no houvesse cariocas escrevendo; quenenhum carioca esteve no centro da gerao dita modernista.)

    Deixando de lado a comparao entre talentos ou entre resultados formais,Mrio de Andrade, poeta de secundria importncia, poderia ser um termo decomparao bom em matria de preocupao com o novo, com a renovao mas no serve para a comparao de uma dimenso decisiva, o ser habitante docentro hegemnico, porque Mrio expressou o desejo modernizante mas a partir daprovncia paulista, que em sua poca tinha dinheiro, empuxo social, fbricamoderna, populao estrangeira (como Buenos Aires, a So Paulo do primeiroquarto do sculo 20 tinha mais ou menos metade de sua populao nascida fora dopas ou filha dos nascidos fora), mas no detinha a hegemonia cultural, que aindaestava no Rio, como estava em Buenos Aires. Uma comparao entre as histriasculturais do Brasil e da Argentina encontra esse curioso abismo: enquanto l acolnia, a Independncia, a consolidao econmica, a indstria e o mundo doEstado moderno ps-Segunda Guerra (tanto o da televiso quanto o da internet)foram feitos na mesma localidade, a cidade e a provncia de Buenos Aires, aqui nstivemos uma sucesso bem mais espalhada, entre Salvador (Bahia), Ouro Preto(Minas Gerais), Rio de Janeiro, So Paulo e Braslia. Essa diferena precisa sertratada como um dos eixos para pensar as duas formaes culturais.

    Mas, mesmo com toda a distncia entre a gerao de Machado e a de Borges,um trao comum as faz convergir, pelo menos: aquele que prestigia, quando noobriga, ao tema local e busca da contribuio da literatura para a configurao daidentidade nacional. Dizendo de modo esquemtico: tendo caractersticas derenovao formal de grande importncia, Romantismo eVanguardismo/Modernismo (este termo tomado no sentido brasileiro) sotambm empenhados no nacional, no identitrio, no local. E sintomtico queMachado e Borges tenham pensado sobre isso profundamente, e que tenhamfugido a tal constrangimento, ao menos no plano mais imediato do tema, doassunto, para bem de construrem sua maturidade, como veremos nos ltimoscaptulos deste ensaio. E completemos o percurso do captulo seguindo o raciocnioantes exposto: a gerao que h entre eles, na poesia especialmente (mas no s,porque tambm na prosa de tema urbano), ter um aspecto no-localista, e mesmoantilocalista, muito forte: Azul, Cisne ou habitante de grande cidade podia sermatria para escritor em qualquer parte. (E esse, observo parte, no deve ter sidoum argumento pequeno para que, nas provncias, muitos candidatos a escritor,mesmo depois de 1920, tenham praticado alguma modalidade refinada e tardia deParnasianismo ou de Simbolismo, como forma de emanciparem-se dascontingncias para eles mesquinhas da vida local, chegando a viver mentalmenteem francs.)

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  • Onze O difcil relacionamento com o popular: Machado

    Na mesma onda nacionalista que os dois encararam, cada qual a seu tempo,vinha junto uma questo conexa de grande relevncia histrica e matria dedisputas por muito tempo, e hoje reativada por outros motivos: estamos falando daperspectiva que associa nacional a popular. O Romantismo fez esse nexo commaior ou menor nfase conforme o caso considerado, mas sempre o fez: tratava-sede encontrar a identidade do pas ou da cultura que se expressava na lngua emquesto, na Europa assim como no circuito de suas colnias ou ex-colnias, a partirda suposta raiz local, que imediatamente se misturava com a vida do povo, ou doPovo, entidade com substncia histrica mas tambm dotada de alma idealizada.

    No Brasil, calhou de pensarem o nacional em conexo com uma figura ideal dendio, que entrou no lugar do passado e, de certa forma, do popular, do simples,isto , daquilo que, na opinio da poca, no havia sido prestigiado pela literaturaartificiosa desenvolvida sob parmetros neoclssicos. Por outro lado, e em partepela escassez de material encontrvel na matria indgena no pas naquele momento(lendas, histrias, episdios histricos, elementos poetizveis enfim), no mesmoRomantismo se criaram derivaes temticas e estilsticas que, com o mesmosentido de enlaar o erudito com o popular, chegaram aos limites do caipira, dogenrico homem rural visto pelo ngulo da Corte, que da mesma forma teria algode genuno, de no conspurcado pela Cidade. Tal foi o caso de poemas deJunqueira Freire, de Bernardo Guimares, de Laurindo Rabello e de poetas de forada Corte (vrios gachos, como Apolinrio Porto Alegre, Bernardo Taveira Jr.,etc.), como foi tambm o caso de romances de Alencar, do mesmo BernardoGuimares e de romancistas das provncias (alguns gachos, como Caldre e Fio).E por um terceiro lado, mais rarefeito ainda na poca mas no de todo ausente docenrio, houve tambm algum movimento dos escritores e artistas em geral nadireo de outro manancial popular, com o mesmo intento de encontrar overdadeiro aspecto nacional: o manancial das massas urbanas. Claro que no Brasilessa vertente esbarrava num obstculo intransponvel, nas condies reais depensamento, produo e circulao artsticos: a escravido. A maior parte dotrabalho, que transforma matria-prima natural em mercadoria, era desempenhadapor escravos, negros e mulatos, que por esse mesmo motivo no foram assunto,tema, inspirao para os poetas nacionalistas em busca do engate popular. Asexcees se resumem quase a uma s, Castro Alves, e ainda assim segundo pontode vista mais panfletrio do que humano, e j num momento, comeo dos anos1870, em que o abolicionismo ganhava fora entre os setores da opinio pblica.ndio, caipira (sertanejo nordestino, gacho ou roceiro de qualquer parte) etrabalhador braal, quer dizer, negro escravo, ento, seriam as figuras e os temasque garantiriam nexo direto entre o nacional e o popular, cada qual em seu caminhoe com seu preo, o menor de todos sendo pago pelo artista que escolhesse oindianismo, porque era assunto palatvel pelo menos at os anos 1860, o maior

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  • sendo pago pelo que escolhesse o escravo, assunto problemtico.Quando Machado chegou ao cenrio das letras, muito disso ainda tinha fora,

    se pensarmos que Alencar publica O gacho em 1870 e O sertanejo em 1875,momentos em que Machado j estava na rea, produzindo de tudo, poesia,romance, conto, crtica, teatro. Mas ele no se entusiasmou pela onda, como sesabe e ele mesmo disse, de viva voz, em artigos e comentrios, particularmente noj mencionado Notcia da atual literatura brasileira Instinto de nacionalidade,em que expe a equao de sua visada a respeito do tema: no cabe obrigar oescritor a escrever sobre paisagem local e ndio para consider-lo nacional noBrasil, porque se trata antes de ele ter a sensibilidade, certo instinto, de seutempo e espao. Naturalmente que a recusa queles temas tem a ver com essacompreenso crtica, mas antes ainda corresponde sua experincia de vida: eraum homem da cidade, da cidade que era a capital e a Corte, um porto internacionalde grande relevncia mundial, de forma que seu horizonte nada tem a ver com omundo rural, muito menos indgena.

    Poderia ter pensado em alianar sua obra com o mundo popular da cidade?Isso implicaria mexer no vespeiro da condio escrava, tema que para ele eraespinhoso, tema ao qual no se furtou mas que na prtica s abordou com clarezaem sua maturidade, depois de os fatos mais candentes do processo abolicionistaentrarem para a conta da histria. Quando aparece o mundo do trabalho em suaobra inicial, trata-se mais de item de composio da paisagem social do que deelemento-chave do enredo. Para lembrar um caso exemplar, e estranho para quemno conhece o Machado de antes dos 40 anos, vem no romance Helena, publicadoem 1876 (depois da Lei do Ventre Livre, de 71, uma das mais fortes tomadas deposio oficial sobre o tema). Ali temos um escravo domstico de 16 anos, Vicente,que cmplice de Helena em suas idas at a casinhola em que mora seu verdadeiropai, num arrabalde da cidade de ento, na Tijuca e esse pai, no o escravo-pajem, um trabalhador real, em seu passado (no presente ele apresentado comoum velho de uns... 38 anos, com aspecto de invlido para qualquer ofcio), passadoem que ele trabalhou em uma srie de misteres. Em romances da maturidade, otrabalho vai aparecer de modo muito mais apurado, com perspectiva crtica, como o caso da personagem Dona Plcida, das Memrias pstumas de Brs Cubas,que contratada pelo protagonista como fachada para os encontros dele com suaamante Virglia. A pobre, que tem uma histria pessoal de puro sofrimento, sempretrabalhando na costura e na cozinha (e ainda alfabetizando crianas, de vez emquando), conhece esse perodo de tranqilidade pelo trabalho para Brs, e depoisretorna misria, morrendo abjetamente. Nos contos, Machado algumas vezesesteve perto da dimenso popular, em casos como o de Noite de almirante (ummarinheiro e uma moa pobre como protagonistas de uma histria de amor edesiluso), O enfermeiro (histria de Procpio Valongo, sobrenome emblemticopor ser o nome do cais onde desembarcavam escravos no Rio, um sujeito que sabeler e escrever e vai servir de enfermeiro de um coronel autoritrio e rabugento) ouPai contra me (conto que coloca os destinos de um pobre que vivia comocaador de escravos fugidos, ele pai de um nen, e de uma escrava fugida, grvida

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  • quase parindo), contos todos eles produzidos a partir dos 40 anos do autor, anos1880 e depois.

    Outro aspecto de relacionamento com o popular pode ser entrevisto quando sepensa no campo da msica. Claro, preciso evitar um anacronismo sedutor: defato, o prestgio da cano popular, particularmente do samba, e do chorinho, nomundo brasileiro, s aparece nitidamente nos anos 1930, quer dizer, bem depois deMachado. No h, portanto, como argir Machado brandindo o exemplo alto desntese entre o popular e o artstico reconhecido como tal, por exemplo com a obrade Noel Rosa, porque no cabe no tempo. Mas uma aproximao pode ser feita,pelo menos com dois contrastes, um ligado aos contemporneos de Machado,outro ligado aos seus amigos da juventude.

    Os contemporneos: Machado vive na mesma poca e cidade de ChiquinhaGonzaga, uma das inventoras do chorinho e da msica popular em sentido amplo.Ela viveu entre 1847 e 1935 e foi notria desde pelo menos a dcada de 1870,como uma mulher muito estranha (avanada, diramos hoje, depois dofeminismo), porque se separou do marido, trabalhou como professora, musicista danoite e compositora de teatro popular de revista, convivendo com talentos mais emenos conhecidos, como Joaquim Calado (flautista e compositor negro, 1848-1880), e na gerao seguinte Ernesto Nazareth (pianista, compositor, 1863-1934),para ficar em dois exemplos. Quer dizer: Machado ouviu a polca misturando-secom a habanera e com ritmos afrobrasileiros, naquela panela cultural que resultariano samba e no chorinho; tanto ouviu que tematiza a questo, especialmente no jcitado conto Um homem clebre, em que o Pestana, pianista, gostaria de comporcomo seus modelos europeus de feio vetusta, mas no consegue, e mesmo semgostar compe polcas vitoriosas no gosto popular, a ponto de serem assobiadas narua32.

    Os amigos da juventude: no crculo de pessoas bem prximas a Machado deAssis no comeo de sua carreira, figuravam alguns que eram modinheiros epolquistas. Laurindo Rabello talvez o caso mais explcito, mas no o maissignificativo, que vem a ser ningum menos que Francisco de Paula Brito, oprimeiro empregador de Machado no mundo das letras, o editor da Marmota, emque Machado pde abrir suas asas de escritor; Paula Brito, por sinal mulato (etambm admirador de Pedro II, que subvencionava a revista), autor de pelomenos uma letra conhecida, a da sacudida polca A marrequinha de Iai, compostaem parceria com ningum menos que Francisco Manuel da Silva, sim, o mesmoautor da linda melodia do Hino Nacional brasileiro. A letra diz, no refro: Iai medeixe / ver a marreca / se no eu morro / leva-me breca esta marreca tendoum duplo sentido fortemente ertico, porque designa o lao que enfeitava a regiolombar dos vestidos armados de ento, mas tambm alude a alguma parte daanatomia feminina.

    Minha especulao a seguinte: como ter o jovem poeta reagido ante oespetculo da cano popular que se formava e certamente tinha sucesso (quandomenos entre os amigos, mas tambm com mulheres, por certo)? E o que pensava esentia diante da evidncia de que alguns prximos dele praticavam essa modalidade

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  • trivial de poesia que era compor para ser cantado? Imagino que ele podia atdivertir-se, naquele ambiente de amizade masculina em que ele prprio dava osprimeiros passos dentro do mundo culto da cidade, mas no se via fazendo aquilo:sua praia era outra, seu desejo era diferente, ele era um poeta srio, como de restose pode ler nos escritos dos 20 anos.

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  • Outra famlia musical o atraa mais, talvez, ou, dizendo de modo diverso, eleescolheu deixar-se atrair por outra parte do mundo da msica, aquele que lindavacom o erudito ou que era mesmo o erudito. Raimundo Magalhes Jnior conta que,em 1861, aos 22 anos, Machado escreveu letra para uma ria do jovem CarlosGomes (da mesma gerao dele, nascido em 1836 e falecido em 1896), peaencomendada pela pera Nacional para encerrar uma pera cmica que ele mesmotraduzira33. Na maturidade, seu contato com o pianista e compositor eruditoAlberto Nepomuceno (1864-1920) no Club Beethoven, sociedade de amigos damsica europia, renderia pelo menos uma parceria na cano (erudita) feita sobrepoema machadiano, Corao triste.

    Doze O difcil relacionamento com o popular: Borges

    Borges est em outro ponto da histria da criao da cano popular naAmrica. Ele contemporneo justo da gerao que fez acontecer o samba, noBrasil, e o tango, na Argentina (e os primeiros passos do jazz, nos Estados Unidos),e os viu ingressar no circuito das mercadorias culturais, no mundo da indstria dagravao e na do rdio, quer dizer, no mbito do gosto das classes mdias urbanas.Foi mais que contemporneo: discutiu o assunto, mais de uma vez ao longo davida, e chegou a escrever, na maturidade dos 60 anos, poemas que so letras demilongas (sendo a milonga um dos componentes da origem do tango, convmesclarecer) ele que comeou sua vida de artista como poeta, no melopaico masantes logopaico, admirador e mesmo crente de Walt Whitman que foi, najuventude. Em sua gerao, como vimos antes, a demanda pelo nacional tambmsugeria uma ida ao popular, e com mais fora at do que no Romantismo: para osvanguardistas / modernistas sempre em aspas, para marcar a restriobrasileira do sentido , era imprescindvel colher a experincia e a lngua das ruas(e secundariamente dos campos), para confrontar a pedanteria profissional dosmodernistas hispnicos/parnasianos-simbolistas e para salvar a arte, que pareciamergulhada em um poo sem fundo de maneirismos estreis.

    Para avaliar a presena dos contemporneos, vejamos algumas datas: CharlesRomuald Gards, dito Carlos Gardel, nasceu em 1885 ou 1887 (onde, parece ummistrio, entre Tacuaremb, Uruguai, e Toulouse, Frana) e faleceu, no auge dafama, em 1935, num acidente areo em que morreu tambm o brasileiro AlfredoLe Pera, filho de pais italianos nascido em So Paulo em 1900 e letrista clebre detangos legitimamente platinos. Gardel era mais velho, mas Le Pera, como tantosoutros tangueiros decisivos, a exemplo de Enrique Santos Discpolo (1901-1951) eHomero Manzi (1907-1951), era da mesma gerao de Borges. Da mesma fornadade Gardel era Juan de Dios Filisberto, argentino e um dos pais do tango, que viveuentre 1883 e 1964; eles dois equivalem, na rgua brasileira, gerao de

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  • Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna, RJ, 1897-1973) e de Sinh (Jos Barbosada Silva, RJ, 1888-1930), ambos negros e talentosos, ambos criadores ou ao menosestabilizadores de formas de msica popular brasileira.

    Essas datas precisam ser colocadas ao lado de outras, que dizem respeito amomentos decisivos na histria da dita estabilizao das formas (quando aquelamistura heterognea de candombe, payada, milonga, habanera, tango andaluz,polca e valsa comea a ser reconhecida como algo homogneo, digamos) e de suaaceitao pelo mercado, a que se segue a entronizao como gnero capaz de servisto como identitrio. Para no ir muito longe: em 1917 gravado um samba, noBrasil (o maxixe Pelo telefone), que chamado assim, com o qualificativosamba; mesmo que no seja o primeiro e mesmo que no seja samba tal como agerao seguinte o definir, ele figura como referncia; na Argentina, o tangoconhecidssimo La morocha, composio de Enrique Saborido de 1905, sergravado tambm na dcada de 1910, e depois inmeras vezes. Nos anos 1920,tanto o chorinho (no o samba com letra) quanto o tango conhecem certo sucessoem Paris; no final dessa dcada, com o advento da gravao eltrica (a mecnicaexistia na Amrica do Sul desde 1902, no Rio), os discos apresentaro maisqualidade e sero um forte atrativo para o consumo; poderamos acrescentar queem 1924 a gravadora Odeon promove, em Buenos Aires, o primeiro concurso detangos, para promover o gnero, que estava estourado no sucesso. Nos anos 30 ordio completa o servio, levando os novos gneros, tango l, samba aqui, paradentro das casas, para o cotidiano das pessoas em geral. Noves fora, o que importacom relao a Borges que ele, jovem, viu o tango passar de coisa popular semqualquer charme ou prestgio a forma artstica consagrada, isso tudo antes ainda deGardel falecer, em 35, no auge da fama, com filmes j feitos na Argentina e porHollywood.

    E o que pensava Borges a respeito desse processo e desse produto? Doisdepoimentos seus so decisivos: um em 1928, em ensaio para o renegado Elidioma de los argenti