Machado e Borges
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Entretextos: Borges e Machado
de AssisAndra Sirihal Werkema | UFMG
Resumo: A proposta deste artigo fazer um breve exame de dois autores,Borges e Machado de Assis, em dois textos que discutem, em sua escrita, a
presena inevitvel de outras vozes na constituio da obra. Isto , a
presena de outros textos, a influncia enquanto marca positiva e negativa.
Palavras-chave: Influncia; Intertextualidade; Semelhana; Diferena.
para a Ruth
Algum props um mtodo regressivo: Para localizar
o livro A, consultar previamente um livro B, que
indique o lugar de A; para localizar o livro B,
consultar previamente um livro C, e assim at o
infinito... (J. L. Borges)
Influncia: palavra anatematizada pela crtica (brasileira)
contempornea, preocupada em ser moderna, imparcial e politicamente correta.
At que ponto se justifica a mera mudana do termo influncia por correlativos
como influxo, ressonncia, confluncia, convergncia; por que no a mudana
da noo de influncia, criao de novo conceito? Repensar a imagem da
fonte, de onde mana a gua original para os vrios afluentes. Afluncia?
Alimentao? Transmisso? Intertextualidade? Observar o fenmeno, sem desviar
os olhos daquilo que no se quer ver; no deixar de falar, ainda, da influncia
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e do modo pela qual ela nos atinge em um pas, e uma cultura, marcados pela
importao de algo alheio, e sua transformao em algo prprio e, de
preferncia, diferente. Sempre se quis a diferena? Em que momento ela passa
a ser almejada, ou melhor, em que contextos? Em que tradies?
A proposta fazer um breve exame de dois textos, dois autores,
que discutem, em sua escrita, a presena inevitvel de outras vozes na constituio
da obra. Isto , a presena de outros textos, a influncia enquanto marca
positiva e negativa. Sem procurar respostas definidas para as questes expostas,
colocamo-nos merc das possveis influncias, no dilogo com outros crticos
que j enfrentaram uma tal tarefa. Aqui, em dois rpidos e inconclusos comentrios,
sobre textos (nem tanto) diferentes, alm da vontade de falar de questo to
problemtica quanto ingrata (no sentido de que quase sempre se sair perdendo),
que transparea, tambm, a vontade incessante de continuar lendo.
Da semelhana
Se no me engano, as peas heterogneas que
enumerei se parecem com Kafka; se no me engano,
nem todas se parecem entre si. Este ltimo fato o
mais significativo. (J. L. Borges)
Relendo mais uma vez o texto de Borges, Kafka y sus precursores,1
salta-nos novamente aos olhos o bvio sempre esquecido de que tal texto se
apresenta com ares de fico; fico crtica, claro, mas maneira borgiana de
fbula ou conto moral.2 Ao apontar em lugares diversos da literatura universal
os possveis precursores de Kafka, Borges estaria antes criando uma famlia
literria na qual ele prprio se insere, j que os traos kafkianos descobertos na
obra de um Kierkegaard ou de Han Yu dependem da leitura atenta de um Borges.
A filiao de Kafka se d a posteriori, claro, mas inaugura no presente o que
Borges chama de voz ou hbitos textuais kafkianos,3 certo tom ou inflexo, que,
de forma paradoxal, criam, depois de Kafka, uma tradio que lhe anterior
e, diramos, possibilita o ingresso de Borges em tal grupo, como legtimo
1. BORGES, 1974, p. 107-109.
2. NESTROVSKI, 1996, p. 104.
3. BORGES, 1974, p. 107.
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descendente de seu precursor Kafka. Num belo exerccio eliotiano de fundao
de sua prpria tradio, Borges afeta a princpio no reconhecer em Kafka qualquer
semelhana com outros autores; logo, a partir da leitura do prprio Kafka, sente-se
apto a indicar autores que lhe seriam aparentados. claro que tal movimento
s se faz possvel pela existncia do leitor Borges, conhecedor de todos os
precursores que cita, e se faz possvel atravs da moldura ficcional utilizada
para, kafkianamente, despistar, ou esfumaar as certezas de um ensaio crtico
formal, em oposio diametral aos contos falsamente crtico-historiogrficos do
prprio Borges. Em nossa rpida leitura do enigma crtico de Borges, importa-
nos considerar alguns dos aspectos a apresentados que contribuem para pensar
ainda uma vez a espinhosa questo da influncia na literatura.
O primeiro e bvio aspecto diz respeito semelhana encontrada
por Borges nos vrios textos que aponta: s vezes de forma, s vezes de
tom, o parentesco com Kafka mostra-se nos enredos, nos temas e nos
procedimentos de Browning, Bloy ou Zenn. Em cada um destes textos est a
idiossincrasia de Kafka, em grau maior ou menor, mas se Kafka no houvesse
escrito, no a perceberamos; isto , no existiria.4 Os textos seriam diferentes
entre si, podendo ser reunidos apenas a partir de um ponto referencial, a
idiossincrasia kafkiana. Ou seja, mais uma vez, o que realmente decide na
reunio de tantos e diferentes autores seria exatamente a diferena, ou aquilo
mais especfico de Kafka, destacado pela leitura atenta de Borges, que reconhece
em Kafka algo de sua prpria obra: a idiossincrasia5 borgiana estava prefigurada
em Kafka, ou, se no fosse Borges, no teramos percebido (no teria existido)
tal semelhana? Em suma: a semelhana vista por Borges entre os textos citados
transforma-se rapidamente na diferena encontrada em cada texto, em relao
uns aos outros e em relao ao texto de Kafka.6
4. BORGES, 1974, p. 109 (sempre que citamos este texto, traduzimos).
5. Cf. verbete idiossincrasia: constituio individual, em virtude da qualcada indivduo sofre diferentemente os efeitos da mesma causa; qualquer
detalhe de conduta peculiar a um indivduo determinado e que no possa
ser atribudo a processos psicolgicos gerais, bem conhecidos. MICHAELIS,
1998, p. 1123.
6. Seria interessante lembrar aqui as categorias de obra visvel e obrainvisvel pensadas pelo prprio Borges em seu famoso Pierre Menard,
autor do Quixote. BORGES, 1989, p. 29-38.
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Outro aspecto que nos interessa a formao, via palavra, no prprio
corpo do ensaio de Borges, de uma pequena biblioteca virtual, procedimento
tpico do autor, que, neste caso, aponta ironicamente para uma biblioteca
kafkiana e no borgiana. Aspecto ficcional por excelncia, j que a estratgia
usada por Borges nos faz seguir o trajeto de Kafka, em sua transformao de
precursores em descendentes, desviando nossa ateno da trajetria borgiana
to aparente na estrutura que constitui o ensaio. Borges nos joga de forma
abrupta no momento presente, ao mostrar que o texto de Kafka, modificador do
passado e do futuro, criador de uma tradio atemporal de leitura leitura
feita por Borges, nesse caso, sendo que cada leitor-escritor-crtico ser capaz
de operar a criao de sua prpria tradio. A pequena biblioteca kafkiana,
escolhida a dedo por Borges, metonmia das vrias tradies prontas a serem
fundadas e no apenas resgatadas, a partir dos elementos comuns entre seus
autores, como parecia querer Eliot em seu famoso Tradio e talento
individual.7 Nesse jogo entre individualidade e tradio, Borges parece
ultrapassar seu precursor Eliot por orientar a sua formao de um corpus literrio
a partir do centro irradiador da diferena: Kafka, to singular como o fnix,
espalha sua voz por textos de diversas literaturas e de diversas pocas.8 A
existncia simultnea de toda a literatura, prevista tanto por Eliot quanto por
Borges, aponta novamente para a idia da biblioteca, em cujas estantes convivem
as mais diversas escritas das mais diversas pocas, em dilogo incessante. Tudo,
em uma biblioteca, simultneo, quando visto pelos olhos de um leitor, que
passa, de forma aparentemente indiscriminada, de um livro para outro.9
O que nos leva ao terceiro aspecto que gostaramos de comentar,
ou seja, a noo propriamente de influncia como Borges a vislumbra em seu
ensaio. No vocabulrio crtico, a palavra precursor indispensvel, mas era
7. ELIOT, 1989, p. 38: (...) no apenas o melhor mas tambm as passagensmais individuais de sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos,
seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade.
8. BORGES, 1974, p. 107.
9. Veja-se a contrapartida ficcional-crtica de Borges sobre os livros de ABiblioteca de Babel: Esse pensador observou que todos os livros, por
diversos que sejam, possuem elementos iguais: o espao, o ponto, a vrgula,
as vinte e duas letras do alfabeto. Tambm alegou um fato que todos os
viajantes confirmaram: No h, na vasta Biblioteca, dois livros idnticos.
BORGES, 1989, p. 65.
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necessrio purific-la de toda conotao de polmica ou de rivalidade. O fato
que cada escritor cria seus precursores.10 Ao usar os termos polmica e
rivalidade, Borges parece nos dar pistas de sua viso do fenmeno da
influncia. Tais termos apontam para uma relao rancorosa entre precursor e
discpulo, ou descendente literrio. Borges reivindica um sentido puro, limpo
de rancores para o termo precursor, e, por extenso, parece querer dizer que a
influncia, enquanto elemento constitutivo da criao literria, deve dar-se fora
dos padres tradicionais de julgamento de valor. Mesmo concordando com Borges
na procura de outros valores que no os da literatura comparada tradicional
(centro e periferia poltico-culturais, passado e presente), parece-nos claro que
o apagamento da disputa e da rivalidade quando da insero de um autor em
um corpus delimitado tarefa impossvel; por outro lado, atravs da polmica
criada no ato mesmo dessa insero que se torna possvel a mudana no
elenco de valores para o julgamento da obra literria. A criao literria seria
por natureza agonstica, colocando em contnuo choque as foras da influncia
e da individualidade que gostaramos de resgatar como instncia fundamental
no processo criativo, em oposio a Eliot e ao prprio Borges.11 A exigncia de
uma noo de precursor da qual se filtrasse qualquer conflito individual trai
uma certa ambivalncia de Borges no lidar com seu legtimo precursor, Kafka,
e seus possveis aparentados.12 Tal ambivalncia j est expressa na prpria
natureza ficcionalizante do ensaio, que, ao afirmar, sugere, ao mesmo tempo,
seu carter hipottico.13 Por outro lado, e para alm de toda a sua universalidade
literria, estamos ainda falando de um escritor argentino condio que traz
em si marca inegvel de diferena, e se traduz, muitas vezes, em assimilao
agressiva polmica de possveis influncias. Nesses termos, a individualidade
(ou a pluralidade) dos homens no se apaga facilmente; importa antes a maneira
como cada escritor cria seus precursores, ou seja, como cada indivduo-escritor
10. BORGES, 1974, p. 109.
11. A evoluo de um art is ta ( . . . ) uma contnua ext ino dapersonalidade. ELIOT, 1989, p. 42; Nesta correlao, nada importa a
identidade ou a pluralidade dos homens. BORGES, 1974, p. 109. Note-
se a fora anti-romntica de tais argumentos.
12. Cf. NESTROVSKI, 1996, p. 106.
13. Cf. os termos ambguos usados no incio do ensaio de Borges: Eu premediteialguma vez um exame dos precursores de Kafka. BORGES, 1974, p. 107.
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se insere na tradio que escolheu, ou seja novamente, como tal sujeito trabalha,
em seu prprio texto, as influncias recebidas das mais diversas leituras
quebrando as hierarquias centro/periferia, passado/presente e afirmando a
possvel passagem periferia/centro, presente/futuro. Esse primeiro passo,
instalao de uma rua literria de mo dupla, seria seguido da j citada
simultaneidade literria, que ocuparia o lugar da continuidade, favorecedora
da associao de valores positivos aos textos ditos primeiros e negativos aos
chamados textos segundos.
Borges desvia nossa leitura de Kafka; em termos lgicos, portanto,
Borges acaba por criar Kafka. Tal procedimento s se torna possvel pela
admisso (polmica e ironizada pela fico borgiana) da influncia-presena
de Kafka em sua obra. O desejo de reconhecer e examinar os precursores de
Kafka mostra a Borges muito de sua prpria voz. Para ns, leitores de Kafka e
Borges, fica claro que ambos convivem na simultaneidade da mesma biblioteca,
lado a lado talvez na mesma estante.
Da diferena negada
A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o
primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas
o primeiro lugar da aldeia no contentava a este
Csar, que continuava a preferir-lhe, no o segundo,
mas o centsimo em Roma. (Machado de Assis)
Do conto de Machado de Assis, Um homem clebre,14 importa-
nos reter primeiro o fato de que estamos agora em guas totalmente ficcionais.
Nem por isso menos crticas. De fato, o conto um dos textos que melhor
problematizam a questo da influncia e da originalidade na cultura brasileira
e perifrica por extenso. Machado encena mesmo (atravs de um levemente
maldoso narrador em terceira pessoa) o agon criativo do compositor Pestana,
em constante sofrimento por no ser capaz de criar obra que se inclua entre as
de seus dolos musicais, Mozart, Beethoven, Bach, Schumann etc. Estes se enfileiram,
em seus retratos encaixilhados, ao lado do retrato do pretenso pai de Pestana,
um padre que o educara e lhe ensinara msica. A analogia bvia, e importante
para pensarmos a trajetria da relao escamoteada de paternidade entre
Pestana e suas obras efetivas as to lamentadas polcas.
14. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 497-504.
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As polcas nascem-lhe com facilidade: Compunha s, teclando ou
escrevendo, sem os vos esforos da vspera, sem exasperao, sem nada pedir
ao cu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tdio. Vida, graa, novidade,
escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.15 Sem esforo aparente, de
forma natural; no seria exagero dizer que as polcas nascem-lhe de acordo
com um esteretipo romntico, vindas do mago insondvel de seu criador,
emanao do divino fatalidade que subsiste no humano. Esbarramos no
mistrio criativo que constitui o personagem Pestana, pois o narrador nunca
nos informa de onde provm o frmito particular e conhecido16 que antecede
a composio das polcas. A partir de que instncias nasceriam? Do nada,
ganhando acabamento na hora mesma de sua criao? O cerne do personagem
Pestana, seria, portanto, sua contradio criadora,17 pois o msico no quer
ver em si as influncias bvias de seus amados mestres, se elas levam-no a
compor dentro de um gnero menor, popular. Pestana aceitaria compor como
Mozart ou Chopin dentro dos cnones clssicos, da msica erudita o que chega
a tentar vrias vezes. O seu fracasso, alis, se d porque, ao tentar compor como
Chopin, compe efetivamente uma pea de Chopin, o que lhe traz uma dolorosa
sensao de imitador sem originalidade, epgono.18 J reconhecer em si o
paradoxo do criador original, que trabalha as mesmas influncias clssicas na
composio das polcas, seria pedir demais ao melanclico Pestana. O msico no
v, em seu processo criativo, nas malhas da influncia, o trabalho de transformao
das referncias eruditas em novas formas, nesse caso as polcas, gnero musical
extremamente popular no Brasil da segunda metade do XIX (que desembocaria
no nacionalssimo chorinho); importa a Pestana a sua incluso em cnone
15. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 499.
16. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 502.
17. Expresso cunhada por Fausto Cunha em texto sobre lvares deAzevedo, portador de uma contradio entre sua postura crtica e sua
prtica potica, segundo o autor. Cf. CUNHA, 1971, p. 113-117.
18. No h aqui, note-se, a irnica e vingativa atitude do narrador deBorges ao proclamar o Quixote de Menard como sua obra imortal, herica.
H o sofrimento, ou melhor, a agonia de se estar eternamente entre a
ambio e a vocao. Cf. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 502.
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erudito e no-popular, uma perpetuao das hierarquias dos gneros musicais, e
no uma quebra de tais hierarquias pela admisso de um gnero novo.19
Pestana no percebe sua existncia simultnea dos compositores
de sua galeria musical; separou-se deles, encaixilhou-os, de forma que o ideal-
inatingvel passou a ser mera fonte de dor, porque inalcanvel em vez de servir
de motivo para a criao, para o movimento incessante das formas se
transformando em novas formas: o tornar s velhas fontes, donde lhe no
manava nada ope-se a vida, graa, novidade, [que] escorriam-lhe da alma como
de uma fonte perene.20
O esteretipo de Romantismo aqui lembrado faz-se significativo
ao lembramos o lugar central que as noes de originalidade e inspirao
ocuparam neste movimento. Pensa-se ainda no artista romntico como grande
criador ex nihilo, cuja obra nasceria fora de qualquer relao com seus antecessores
ou coetneos.21 A um tal esteretipo contraporamos duas teorias romnticas
da criao: uma teoria expressivista e outra reflexiva (sem fazer aqui o julgamento
valorativo das teorias expostas).
Em poucas palavras, a teoria expressivista da obra de arte romntica
estabeleceria uma ligao direta entre a obra e seu criador na medida em que a
primeira constituir-se-ia na expresso direta, ou traduo dos sentimentos do autor.
A obra seria um prolongamento da subjetividade autoral e portanto sempre
sincera, portadora de uma verdade encontrada nos elementos sentimentais
que a integram. Dilui-se ao mximo a separao entre vida e obra, cria-se a
idia de paternidade artstica, pois a obra filha dos sentimentos do indivduo-
19. Conferir o que diz o prprio Machado de Assis em crnica de 1887,escrita em quadras: Mas a polka? A polka veio/De longes terras estranhas,/
Galgando o que achou permeio/Mares, cidades, montanhas/Aqui ficou, aqui
mora;/Mas de feies to mudadas,/Que at discute ou memora/Cousas
velhas e intrincadas. MACHADO DE ASSIS, 1938, p. 317. No custa lembrar
que a polca, vinda do leste da Europa, adquiriu no Brasil ritmo peculiar e
danante da para Machado o gesto nacional de apropriar-se da cultura
estrangeira em traduo via popularidade.
20. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 500, p. 499.
21. Veja-se o belo texto de NESTROVSKI, 1996a, p. 143-148, sobre a criaoem Beethoven: uma das marcas do criador que ele se torna o precursor
de si mesmo: que ele absorve e transforma sua prpria obra e se constitui,
assim, numa nova tradio ou cnone individual.
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criador. O expressivismo romntico, largamente difundido nas histrias literrias
mais tradicionais, apagaria a criticidade inerente criao artstica; por outro
lado, fundamenta essa mesma criao ao dar-lhe uma fonte: os sentimentos do
autor. No se cria do nada; preciso sentir para depois criar.
Ope-se a uma tal teoria as concepes do Romantismo reflexivo:
a obra ainda liga-se diretamente ao autor, na medida em que fruto da reflexo
ocorrida dentro das instncias subjetivas que constituem um indivduo-autor.
Note-se a matriz mais filosfica da prpria noo de subjetividade que pensa a
si prpria, atravs da obra de arte. A criao se d a partir da continuada
reflexo do artista sobre suas formas e meios; sobre a tradio que o constitui
e suas novas configuraes a partir do olhar romntico. Romantizar, dentro
dessa teoria, acercar-se das obras de arte com olhos romnticos, busc-las
para o mbito da reflexo.
No conto de Machado de Assis, nem uma das duas teorias
romnticas parece fundamentar os processos criativos de Pestana, permanecendo
o esteretipo. No silncio do narrador em relao s fontes criativas de Pestana
acabamos por enxergar a ironia do autor. Pestana negaria at a morte a presena
de seus autores preferidos (sua biblioteca musical), ou de seus sentimentos
mais ntimos, nos meneios danarinos de suas polcas; estas seriam fruto da
fatalidade que o persegue a diferena. Voltemos a uma outra preocupao
romntica: a configurao de novos gneros no interregno do erudito e do
popular, entre o alto e o baixo, na mistura de elementos dspares como marca
da prpria obra de arte. Libertar um Mozart ou um Bach de sua circunscrio
temporal e de gnero; assegurar-lhes a possibilidade de continuar vivendo em
uma obra de outra poca, e de outro gnero esta seria uma cruzada
genuinamente romntica. Em Machado de Assis, encontramos, portanto, a
intuio genial de que a visada romntica assume implicaes quase polticas
num pas como o Brasil. A apropriao romntica traria para nosso mbito um
universalismo radical nas polcas de Pestana viveriam, ao mesmo tempo,
todos os autores de sua galeria musical, alm da brasilidade musa de olhos
marotos e gestos arredondados, fcil e graciosa22 que tanto mal lhe fazia.
Movimento dito criador da prpria noo de brasilidade, o
Romantismo brasileiro seria emblemtico de uma literatura criada no embate
22. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 500.
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entre influncia e originalidade; desde a aceitao por vezes submissa de modelos
ditos superiores at a negao agressiva das leituras formadoras de uma conscincia
crtica nacional. Na figura sofrida e romntica de Pestana, que nega sua verdadeira
obra at a morte, Machado de Assis personificou a imagem do criador brasileiro,
qui latino-americano, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambio e a
vocao...23 No acontece, para Pestana, nenhuma quebra de hierarquia, seja nos
gneros musicais, seja nos valores da msica europia em relao a sua msica
brasileira. A no ser momentaneamente, Pestana no v aquilo que ama (a
semelhana) na msica que compe. Ele s v a diferena, e nega-a.
Atentemos para o fato de que a diferena nem sempre se coloca
como elemento positivo para o artista da periferia cultural. Muitas vezes ela
estigma do no-pertencimento em uma tradio. A intuio machadiana,
repetimos, genial, porque percebe que, para aceitar a diferena enquanto
engendrada a partir da tradio, Pestana teria necessidade da reflexo sobre as
formas da arte, no caso a msica. Num segundo momento, Pestana passaria da
reflexo sobre a obra alheia (Releu e estudou o Requiem deste autor [Mozart]24)
para a reflexo sobre sua prpria obra o que no se d nunca, j que o
personagem se nega muitas vezes at a ouvir suas polcas. Veja-se que a tradio
j est escolhida (fundada?) e internalizada em Pestana, mas a ausncia da
reflexo leva-o a ser enganado pela memria (velha cidade de traies25) e a
confirmar em si mesmo um esteretipo de artista alucinado excludo de
uma tradio mal consigo mesmo.26
23. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 502.
24. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 503.
25. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 502.
26. MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 504. Em termos borgianos, portanto,Pestana no chega nunca a se criar enquanto artista, a despeito de sua
obra: ele no v os traos invisveis da tradio no tecido de suas polcas.
Releia-se tambm a nota 21 deste artigo: Pestana no se torna precursor
de si mesmo.
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Abstract: The present essay proposes a brief reading of two authors, Borgesand Machado de Assis, in two texts that are able to discuss the inevitable
presence of strange voices inside the work constitution, or, in other words,
the presence of various texts in one text, the question of influence as a
positive or negative feature.
Key words: Influence; Intertextuality; Similarity; Difference.
R e f e r n c i a s B i b l i o g r f i c a s
BORGES, Jorge Luis. Kafka y sus precursores. In: Obras completas. Buenos Aires:Emec, 1974.
BORGES, Jorge Luis. Fices. Trad. Carlos Nejar. So Paulo: Globo, 1989.
CUNHA, Fausto. lvares de Azevedo ou a contradio criadora. In: O Romantismono Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.
ELIOT, T. S. Tradio e talento individual. In: Ensaios. Trad. Ivan Junqueira. SoPaulo: Art, 1989.
MACHADO DE ASSIS. Crnicas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938. v.4
MACHADO DE ASSIS. Um homem clebre. In: Obra completa. Rio de Janeiro:Nova Aguilar, 1997. V. II.
MICHAELIS: moderno dicionrio da lngua portuguesa. So Paulo: CompanhiaMelhoramentos, 1998.
NESTROVSKI, Arthur. Influncia. In: Ironias da modernidade. So Paulo: tica, 1996.
NESTROVSKI, Arthur. Gerar um novo mundo do nada. In: Ironias da modernidade.So Paulo: tica, 1996a.