Magia Erótica e Arte Poética no Idílio 2 de Teócrito - CORE · Fascinou-nos, mais ainda,...

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Cláudia Raquel Cravo da Silva Magia Erótica e Arte Poética no Idílio 2 de Teócrito Faculdade de Letras Universidade de Coimbra 2008

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  • Cludia Raquel Cravo da Silva

    Magia Ertica e Arte Potica no Idlio 2 de Tecrito

    Faculdade de Letras Universidade de Coimbra

    2008

  • Cludia Raquel Cravo da Silva

    Magia Ertica e Arte Potica no Idlio 2 de Tecrito

    Dissertao de Doutoramento na rea de Estudos Clssicos, Especialidade em Literatura Grega, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao do Prof. Doutor Manuel Garca Teijeiro, Professor Catedrtico da Universidade de Valladolid, e da Prof. Doutora Maria do Cu Zambujo Fialho, Professora Catedrtica da Universidade de Coimbra.

    Faculdade de Letras

    Universidade de Coimbra 2008

  • L idylle II est le chef-doeuvre de Thocrite.

    Jajoute: un des chefs-duvre de la posie grecque.

    Je dirais volontiers: un chef-duvre de la littrature damour universelle.

    LEGRAND (Bucoliques Grecs, I, p. 94)

  • I

    PREFCIO

    Durante os nossos anos de licenciatura e mestrado deixmo-nos absorver pelas

    grandes obras que a literatura grega das pocas pr-clssica e clssica nos legou e,

    consequentemente, nunca tivemos oportunidade de contactar com os autores do perodo

    denominado helenstico. Porque sentamos necessidade de colmatar esta grave lacuna,

    resolvemos dedicar algum tempo ao estudo dos maiores cultores da literatura alexandrina.

    Devemos confessar que a sensibilidade requintada que emana das suas obras de imediato

    nos cativou. Foi com entusiasmo que descobrimos a expresso de novas emoes e um

    lirismo sincero e pungente, animado por uma forte necessidade de perfeio formal. Pela

    mesma altura, um feliz acaso fez-nos chegar s mos uma comunicao1 da autoria de

    Pfeiffer, intitulada The Future of Studies in the Field of Hellenistic Poetry, que apelava ao

    estudo da poesia helenstica, ao mesmo tempo que chamava a ateno para um sem

    nmero de questes que, nessa rea, continuavam por explorar.

    Impunha-se, entretanto, elegermos um tema para a nossa dissertao de

    doutoramento e, embora j no tivssemos qualquer dvida a respeito do perodo literrio

    em que queramos trabalhar, no conseguamos decidir-nos por um assunto especfico. Foi

    ento que por intermdio do Prof. Doutor Emilio Surez de la Torre e da Prof. Doutora

    Maria do Cu Fialho travmos conhecimento com o Prof. Doutor Manuel Garca Teijeiro,

    da Universidade de Valladolid, que nos incentivou a estudar Tecrito e nos sugeriu um

    trabalho muito concreto: comentar, em pormenor, um dos idlios do poeta, na esteira de

    1 Publicada in JHS 75, 69-73.

  • II

    vrias dissertaes de doutoramento que, em anos transactos, haviam vindo a lume2,

    sobretudo sob a orientao do Prof. Doutor Giuseppe Giangrande. A ideia agradou-nos

    desde o primeiro momento e, em conjunto com o Prof. Doutor Manuel Garca Teijeiro,

    acabmos por assentar que a base do nosso estudo seria um dos mimos mais conhecidos

    de Tecrito, ou seja, o seu Idlio 2.

    Uma vez que a nossa investigao iria incidir sobre o principal documento literrio

    referente magia ertica antiga, decidimos, por sugesto da Prof. Doutora Maria Helena da

    Rocha Pereira, incluir no nosso plano de trabalho um primeiro captulo que apresentasse um

    historial da magia ertica na Grcia antiga. Mas a bibliografia cientfica sobre as prticas

    deste tipo de magia na Antiguidade revelou-se muito vasta e, como consequncia, durante

    um largo perodo de tempo (muito superior ao previsto!), dedicmo-nos quase

    exclusivamente ao estudo desta matria que era, para ns, to atractiva quanto

    desconhecida. O mundo secreto revelado pelos inmeros papiros mgicos, pelas

    defixiones e pelas recmdescobertas voodoo dolls3 fascinou-nos completamente.

    Fascinou-nos, mais ainda, perceber que a magia de teor ertico ter sido uma realidade

    muito comum na vida dos antigos Atenienses e que, com toda a probabilidade, ter sido

    largamente praticada antes, durante e depois dos dias do chamado milagre grego.

    Ao tomarmos conscincia de que seria difcil concentrarmos, num s captulo, toda a

    histria da magia ertica na Antiguidade grega, optmos por remodelar o plano inicialmente

    2 White (1979a), Chryssafis (1981), Hatzikosta (1982), Rossi (1989), Sens (1997). Vide ainda os trabalhos de Bhler (1960) e de Vaughn (1975), que tiveram como base duas composies de Mosco. 3 Preferimos, neste caso concreto, manter a designao inglesa, j que todas as tentativas de traduo para portugus soaram estranhas aos nossos ouvidos. Visto que o tema da magia grega de teor ertico praticamente ignorado pelos estudiosos portugueses, uma das grandes dificuldades que sentimos no incio do nosso trabalho adveio precisamente da necessidade de encontrarmos formas de exprimir, na nossa lngua, a terminologia especfica que lhe anda associada. S para registarmos dois exemplos, so da nossa inteira responsabilidade as tradues de por encantamento de atraco ou de por placa de maldio.

  • III

    previsto e, com a ajuda dos Professores Doutores Maria Helena da Rocha Pereira e Manuel

    Garca Teijeiro, fixmos um novo plano de trabalho, do qual deriva agora, com alguns

    pequenos ajustes, o presente estudo.

    O resultado final da nossa investigao vai aparecer estruturado em duas grandes

    partes. A primeira, que se encontra dividida em trs captulos, tem como principal objectivo

    realar a importncia especial do Idlio 2 de Tecrito no contexto da representao literria

    da magia ertica. Assim, num captulo inicial, procuraremos coligir os indcios da prtica

    desta classe de magia, dispersos pelos mais variados gneros literrios. Resolvemos limitar

    o nosso trabalho anlise dos testemunhos anteriores a Tecrito, j que, de outra forma, a

    tarefa tornar-se-ia muito morosa e ultrapassaria largamente os nossos propsitos. Importa

    aqui realar a nossa constante preocupao em evidenciar os pontos de contacto entre os

    textos literrios e os encantamentos erticos que encontramos nos documentos mgicos

    reais. O segundo captulo desta primeira parte tentar clarificar a problemtica questo da

    dependncia de Tecrito relativamente a Sfron, ilustre mimgrafo siracusano que ter

    vivido no sc. V a.C.. Este aspecto, que se encontrava documentado nos esclios antigos

    ao Idlio 2, volta a ser repetidamente salientado aps a descoberta, em 1933, do primeiro

    fragmento substancial de Sfron, proveniente de um papiro de Oxirrinco. No terceiro (e

    ltimo) captulo desta primeira parte, centraremos a nossa ateno na figura de Simeta,

    numa tentativa de provarmos a singularidade desta criao de Tecrito no contexto da

    magia ertica literria.

    A segunda parte do nosso trabalho ser consagrada ao estudo pormenorizado do

    Idlio 2, sob os mais diversos prismas. Comearemos por ter em conta a transmisso do

    texto, assunto que levanta sempre muitas dvidas e que se revela ainda mais complicado

    quando se trata de um autor como Tecrito, que apresenta inmeras particularidades

  • IV

    dialectais. Avanaremos depois com a nossa interpretao da questo insolvel que

    consiste em atribuir uma data ao Idlio A Feiticeira. No captulo seguinte, dedicado ao local

    da aco, procuraremos enumerar as razes que nos levam a defender que a principal

    cidade da ilha de Cs a mais provvel candidata a cenrio do poema em causa. Impe-se,

    depois, citar o texto grego. Seguindo o conselho da Prof. Doutora Maria Helena da Rocha

    Pereira, utilizaremos, como base, o texto da edio de Gow (21952, I: 16-29)4 que vem

    apoiado num aparato crtico muito completo, ponderado e coerente e justificaremos, no

    comentrio, todas as leituras discordantes adoptadas5. Aps apresentarmos uma sugesto

    de traduo do poema, passaremos ento parte fulcral do nosso trabalho, ou seja, ao

    comentrio alargado da composio teocritiana que nos detm.

    O exerccio filolgico de comentrio de textos abarca tantos aspectos da vida, cultura

    e civilizao, que sempre, obviamente, um trabalho inconcluso. Conscientes desta

    realidade, procuraremos sobretudo clarificar e desenvolver assuntos (das mais diversas

    reas) que, da parte da crtica, no tenham recebido a ateno que julgamos merecerem.

    No raras vezes daremos conta do nosso embarao perante determinada questo, mas

    tentaremos sempre registar as vrias hipteses de resoluo do problema em causa e

    sustentar a nossa preferncia por aquela que se nos afigurar mais razovel.

    Dentre as inmeras dificuldades com que nos iremos deparar, parece-nos

    conveniente realar as que lngua dizem respeito. Que o Idlio 2 um dos poemas dricos

    de Tecrito, disso no restam dvidas6, j que o drico7 o dialecto predominante. No

    4 Embora tenhamos sempre presente o texto da mais recente edio de Gallavotti (31993), que j teve em conta as ltimas descobertas papirolgicas de Tecrito. 5 Cf. infra, p. 97, n. 1. 6 Muitos dos testemunhos que o conservam chegam mesmo a acrescentar ao ttulo a nota . 7 Sem nos esquecermos, obviamente, de que o conceito de drico muito abrangente, na medida em que cobre muitos sub-dialectos falados de este a oeste do mundo grego.

  • V

    entanto, como por de mais sabido, o nosso poeta nunca pretendeu escrever num dialecto

    puro, mas antes fez uso de um drico literrio, que se caracteriza pela presena de

    elementos muito heterogneos, recolhidos em fontes to diversas quanto seriam os

    dialectos regionais do seu tempo e a tradio literria anterior. Prpria da liberdade criativa

    de Tecrito, esta nova linguagem, resultante da mistura de vrios ingredientes e adornada

    pelo emprego do hexmetro, , evidentemente, artificial. Nestas circunstncias, muito

    compreensvel que o texto do Idlio 2 tenha chegado at ns pejado de incorreces e

    inconsistncias, que remontam j a tempos muito antigos e que s em parte um fillogo

    actual poder emendar. que, se por vezes a mtrica permite detectar facilmente o erro,

    tambm acontece com muita frequncia as formas alternativas serem metricamente

    equivalentes. Ao longo do nosso comentrio, iremos deixando exemplos dos vrios tipos de

    dificuldades que assolam qualquer editor teocritiano.

    No obstante a complexidade dos problemas lingusticos com que nos havemos de

    deparar e a conscincia do elevado grau de incerteza que envolve algumas das leituras

    adoptadas, interessar-nos- principalmente demonstrar como as novas descobertas

    papirolgicas de Tecrito nos permitem hoje estar em melhores condies de julgar o drico

    do poeta, que at h bem pouco tempo era apenas avaliado pelos dados da tradio

    manuscrita. O recente trabalho de Molinos Tejada (1990), que tem j em conta todos os

    novos papiros, constitui um grande avano no sentido da recuperao do texto teocritiano

    original. Desta forma, os resultados da sua investigao estaro, quase sempre, na base da

    anlise dos fenmenos lingusticos que formos considerando merecedores de destaque e,

    consequentemente, sero da maior relevncia para a fixao do texto em algumas

    passagens concretas.

  • VI

    Ainda no que concerne a aspectos lingusticos, julgamos importante vincar que a

    influncia homrica particularmente evidente no Idlio 2 e que, por conseguinte, no ser

    difcil ilustrar a artificialidade da lngua de Tecrito a partir da composio potica que nos

    detm. Na realidade, os epicismos so aqui to frequentes que no podemos referi-los

    sempre que aparecem, pois tal procedimento resultaria infrutfero e tedioso. Assim sendo,

    destacaremos apenas alguns dos rasgos homricos presentes no texto, alertando, desde j,

    para a existncia de vrios outros que, por serem muito comuns ou muito citados pelos

    estudiosos do poema, no iro merecer ateno da nossa parte. A propsito dos genitivos

    em 8, por exemplo, comentaremos somente o caso em que, por comodidade mtrica, o

    poeta faz combinar formas em e (v.162). Adoptaremos o mesmo procedimento

    relativamente ao dativo do plural em , que destacaremos apenas quando vem

    acompanhado por uma forma em , numa sequncia de adjectivo + substantivo (v.107).

    Entre os homerismos que no sero mencionados em nenhum ponto concreto do nosso

    comentrio, encontram-se, por exemplo, as muitas formas verbais de pretrito sem aumento

    (vv.68, 71, 82, 86, 107, 108, 113, 140, 153 e 154) ou os dativos do plural em (vv.36,

    120, 125 e 153).

    Feitas estas ressalvas a propsito da lngua usada por Tecrito no seu Idlio 2, h

    pelo menos um outro aspecto que aconselha algumas breves consideraes da nossa parte.

    Porque notrio que o comentrio por ns sugerido dar especial ateno cena de magia,

    que ocupa os vv.1-63 do poema, no podemos deixar de destacar o trabalho que realizmos

    com papiros mgicos e defixiones, que a se tornar particularmente evidente. Os inmeros

    paralelismos assinalados entre o ritual protagonizado por Simeta e os documentos de magia

    reais permitem-nos depreender que o poeta estaria bem informado acerca dos

    8 Que o Idlio 2 atesta sobremaneira (vv.8, 66, 73, 78, 80, 97, 120, 134, 136, 148, 162 e 166). Vide, a propsito, infra, p. 258, n. 304.

  • VII

    encantamentos de magia ertica que se praticavam na sua poca. Por outro lado, como

    teremos oportunidade de registar, tambm so muitas as diferenas que separam os versos

    do poeta helenstico das receitas mgicas reais. Este facto deixa implcito que Tecrito no

    teria a mnima inteno de produzir uma fonte de informao rigorosa sobre operaes

    mgicas efectivas. Em suma, Tecrito ter feito uso do motivo da magia ertica em funo

    dos seus intentos artsticos, que passavam por criar um poema portentoso, um mimo

    trabalhado com arte e cuidado extremos. E este seu sublime objectivo ter sido, em nossa

    opinio, plenamente alcanado.

  • VIII

  • IX

    AGRADECIMENTOS

    Ao longo da realizao do presente estudo, pudemos usufruir do apoio de algumas

    instituies e pessoas individuais, a quem queremos agora render a nossa singela

    homenagem.

    Os agradecimentos mais calorosos devemo-los, sem dvida, ao Prof. Doutor Manuel

    Garca Teijeiro, que colocou ao nosso inteiro dispor o seu imensurvel saber a respeito dos

    mais variados assuntos que mereceram tratamento da nossa parte. Agradecemos-lhe ainda

    a gentileza com que, no decurso desta investigao, nos foi enviando material bibliogrfico,

    ao qual, de outra forma, dificilmente teramos acesso. E nunca poderemos esquecer as suas

    generosas palavras de incentivo em alturas de maior desalento. Muchas gracias por todo!

    Credora do nosso sincero apreo, pela leitura que fez de grande parte deste trabalho

    e pelas oportunas sugestes que nos deu, tambm a Doutora Mara Teresa Molinos

    Tejada.

    No podemos deixar de testemunhar o nosso sentido agradecimento Prof. Doutora

    Maria Helena da Rocha Pereira, que nos orientou na primeira etapa desta tarefa e que

    sempre se mostrou disponvel para acolher as inmeras dvidas com que nos debatemos

    no incio dos nossos trabalhos.

    Um reconhecimento especial merece, da nossa parte, a Prof. Doutora Maria do Cu

    Fialho, desde logo pelo seu grande empenho em fazer-nos deslocar Universidade de

    Valladolid, onde tivemos o privilgio de conhecer especialistas na rea em que

  • X

    pretendamos trabalhar; e depois, por ter prontamente assentido em substituir a Prof.

    Doutora Maria Helena da Rocha Pereira na orientao da presente dissertao.

    O apoio financeiro da Fundao Calouste Gulbenkian, sob a forma de duas bolsas

    de curta durao, e do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de

    Coimbra facilitou enormemente a nossa tarefa de pesquisa bibliogrfica no estrangeiro,

    nomeadamente em Valladolid e em Paris. A estas duas entidades, deixamos a expresso da

    nossa gratido.

    Aos professores e funcionrios do Instituto de Estudos Clssicos da Faculdade de

    Letras da Universidade de Coimbra, temos de agradecer a ateno que sempre nos

    dispensaram e as amveis palavras de encorajamento que nos dirigiram ao longo destes

    anos.

    Cumpre-nos ainda realar o apoio daqueles que, no crculo familiar, aceitaram

    incondicionalmente os sacrifcios que acompanham este tipo de trabalho. Uma meno

    especial devemo-la nossa me, pela constante preocupao, pela ajuda efectiva e pelo

    imprescindvel suporte emocional.

    As nossas ltimas palavras de gratido so dirigidas ao Manel, pois s a sua

    pacincia infinda e a sua intrpida colaborao (em particular, no campo da informtica)

    tornaram suportvel a recta final desta empreitada.

  • XI

    OBSERVAES PRELIMINARES

    Entendemos que estamos perante magia ertica sempre que h lugar a prticas mgicas relacionadas com situaes que envolvam amor sensual, nas suas mltiplas formas: paixo, cime, desejo desenfreado, etc.

    Ao longo do nosso estudo, usamos, como sinnimas, as designaes magia ertica e magia amorosa.

    Servimo-nos das seguintes siglas para os corpora bsicos dos textos mgicos

    gregos antigos: DT = Audollent, A. 1904. Defixionum Tabellae. Paris. DTA = Wnsch, R. 1897. Defixionum Tabellae Atticae. Inscriptiones Graecae 3.3.

    Berlin. PGM = Preisendanz, K. 1973-1974. Papyri Graecae Magicae. 2 vols. Stuttgart. SM = Daniel, R. W. & Maltomini, F. 1990-1992. Supplementum Magicum.

    Papyrologica Coloniensia 16.1 and 2. Opladen. 2 vols. Ocorrem tambm as seguintes siglas e formas de citao simplificadas: IG = Inscriptiones Graecae (Berlin 1902-). SEG = Supplementum Epigraphicum Graecum (Leiden 1923-). LIMC = Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (Zrich /Mnchen 1981-).

    Buck = Buck, C. D. 1955. The Greek Dialects. Chicago. Goodwin = Goodwin, W. W. 1912. Syntax of Greek Moods and Tenses. London.

    Khner-Gerth = Khner, R. & Gerth, B. 1898-1904. Ausfhrliche Grammatik der griechischen Sprache. 2 vols. Hannover.

    Lejeune = Lejeune, M. 1972. Phontique historique du mycnien et du grec ancien. Paris. Powell = Powell, J. U. 1925. Collectanea Alexandrina. Oxford. = Scholia

  • XII

    Na citao de autores e obras da Antiguidade grega, seguimos, quase sempre, as abreviaturas de Liddell & Scott. 1996. A Greek-English Lexicon. Oxford (obra citada pela sigla LSJ); para a Antiguidade latina, as de Glare, P. G. W. 1982. Oxford Latin Dictionary. Oxford. Excepes a esta regra, por razes de clareza: Hinos de Calmaco (H.); Histria Natural de Plnio-o-Antigo (HN); Luciano (Luc.); Lucano (Lucano). Os esclios ao texto teocritiano so frequentemente citados pelos manuscritos medievais que os conservam. As publicaes peridicas so identificadas pelas siglas de LAnne Philologique. Ao longo da exposio, as edies, tradues, lxicos, comentrios e estudos citados na bibliografia final so apenas referidos pelo apelido do autor e ano da publicao.

  • 1

    PARTE I ______________________________________________________

    O Idlio 2 de Tecrito no contexto da magia ertica literria

  • 2

  • 3

    I.1) O tema da magia ertica na literatura grega anterior a Tecrito

    No obstante a magia, e em particular a magia ertica, tenha sido amplamente

    praticada na Grcia antiga, a literatura grega no lhe dedicou muitas linhas, talvez porque a

    descrio alargada de um ritual de encantamento fosse considerada pouco consentnea com

    a respeitabilidade do seu carcter.

    Ainda assim, no deixamos de encontrar indcios da prtica da magia de teor ertico,

    dispersos pelos mais variados gneros literrios. A epopeia, a lrica, o drama, a comdia e

    at mesmo a prosa (nas suas diferentes manifestaes), encontram, aqui e ali, pretexto para

    tocarem neste tema, de forma mais ou menos profunda. So essas referncias literrias

    que muitas vezes no passam de aluses vagas e indirectas magia ertica que nos

    propomos reunir nas pginas que se seguem.

    Convm salientar que o nosso trabalho no ser mais do que uma tentativa de

    compendiar, de modo muito sucinto, a histria da magia ertica literria anterior a Tecrito.

    Sem quaisquer pretenses de esgotar a questo, o nosso principal objectivo to-somente

    vincar a ideia de que, embora o interesse pelas prticas mgicas ligadas aos assuntos do

    corao tenha sido uma constante ao longo da literatura grega antiga e variadssimos autores

    tenham aludido a este tema de acordo com o estilo que lhes era prprio, nenhum deles nos

    ofereceu uma descrio to pormenorizada de um encantamento de cariz amoroso como

    aquela que encontramos no Idlio 2 de Tecrito.

    realmente incontestvel a especial importncia deste poema no contexto da

    representao literria da magia ertica. Podemos mesmo afirmar que nenhum texto da

  • 4

    literatura grega antiga mais explcito nesta matria do que os seus versos 1-62, onde

    vemos aparecer, entrelaados, os mais variados ritos comummente utilizados ao servio da

    magia de pendor ertico.

    I.1.1) Homero A primeira aluso literria magia de cariz ertico encontramo-la no Canto 14 da

    Ilada, quando Hera chama Afrodite e lhe faz um pedido capcioso (vv.198-201; 205-210):

    ,

    .

    ,

    ,

    ()

    ,

    , .

    ,

    .

    pois desta forma, com o argumento de que pretende resolver os conflitos amorosos

    h muito existentes entre Oceano e Ttis, que Hera tenta convencer Afrodite a emprestar-lhe

    a sua cinta bordada. A deusa do amor predispe-se de imediato a ceder-lhe o

    que trazia ao peito (vv.214-221):

    ,

    .

  • 5

    , ,

    , .

    ,

    , ,

    ,

    , .

    Na posse da cinta mgica, Hera consegue ento seduzir Zeus e com a ajuda do

    deus Sono adormec-lo, de modo a desviar as suas atenes do campo de batalha, o que

    ir permitir a Posdon socorrer os Aqueus.

    Desconhecemos a natureza exacta do de Afrodite1 e o modo preciso

    como este adorno deveria ser usado para atingir os resultados pretendidos. O texto no deixa

    perceber claramente nenhum destes aspectos, nem mesmo quais seriam os efeitos concretos

    decorrentes do seu uso. Podemos imaginar que o tornasse a mulher irresistvel

    aos olhos do homem, mas na verdade isso nunca explicitamente referido. Omitindo o muito

    que se tem especulado volta de todas estas questes2, o nico facto que o texto homrico

    torna evidente e nos importa aqui realar apenas o de Afrodite ser detentora de um

    objecto com um grande poder de seduo, que funciona como o primeiro amuleto de magia

    ertica da literatura grega3.

    1 Nas esttuas gregas conservadas, a deusa Afrodite por vezes representada com um adereo que, pelo que se pode perceber, consiste em duas correias usadas na parte superior do corpo, a cruzar no peito. Vide LIMC, Aphrodite 779 e 1083. Vrios estudiosos entendem que esto perante a reproduo do homrico. Ainda recentemente, Ogden (2002: 262) defendeu esta mesma ideia, que sublinhe-se , apesar de atractiva, no passa de uma mera conjectura. 2 Faraone (1990: 220-222) resumiu as diferentes sugestes aventadas pelos helenistas que, desde o sc. XIX, vm tentando clarificar os muitos aspectos obscuros que rodeiam o homrico. Vide tambm Tupet (1976: 109). 3 O mesmo Faraone (1990: 222-229) chama a ateno para o facto de a histria relatada no Canto 14 da Ilada parecer reflectir actividades reais do mundo antigo. O estudioso cita vrios textos (alguns deles de pocas muito

  • 6

    Este episdio da Ilada, conhecido como o dolo de Zeus, no constitui a nica aluso

    homrica magia de teor amoroso. Na Odisseia vamos encontrar vrias outras passagens

    que parecem sugerir o mesmo tema. Comecemos por referir o episdio de Circe, onde, pela

    primeira vez, a literatura grega nos oferece a descrio de uma feiticeira em aco4.

    A histria por de mais conhecida: depois das aventuras passadas no pas dos

    Lestrgones, Ulisses e os companheiros aportaram ilha de Eeia, onde vivia Circe, uma bela

    e temvel deusa, filha do Sol. Com a ajuda de Hermes, que lhe oferece uma planta mgica

    (), Ulisses consegue escapar ao feitio que lhe estava destinado e fazer com que Circe

    solte os outros marinheiros, que entretanto haviam sido por ela transmutados em porcos.

    Ameaada pela espada do heri, a feiticeira jura que no voltar a causar-lhe qualquer outro

    sofrimento. Desde ento, Ulisses e os companheiros passam a gozar dos maiores privilgios

    no palcio de Circe, com comida e bebida em abundncia, e por l se deixam ficar durante

    um ano.

    Ao longo deste episdio, que ocupa os vv.135-574 do Canto 10 da Odisseia, vrios

    poderes sobrenaturais so explicitamente atribudos a Circe: ela consegue transformar

    homens em porcos5, fazendo uso de uma poo e de uma varinha mgicas (vv.230-240); ela

    recuadas) que testemunham a existncia de uma longa tradio de prticas mgicas que envolviam o uso de apetrechos muito semelhantes cinta de Afrodite. Vide ainda infra, pp. 42-43, um epigrama da Antologia Palatina que deixa perceber que, no sc. III a.C., as mulheres gregas fariam uso de adereos similares ao homrico. 4 Convm no esquecer que, se para ns incontestvel que Circe seja uma feiticeira, no texto de Homero nunca se evidencia este aspecto, j que, como sabido, a magia era uma categoria de pensamento que no existia no esprito dos primeiros autores gregos. A respeito da formao e da natureza do conceito grego de magia, vide o recente estudo de Dickie (2001: 18-46, esp. 23, sobre o facto de a literatura grega s muito tardiamente ter assumido Circe como uma feiticeira). 5 As razes que levam Circe a transformar em porcos (e, provavelmente, tambm noutros animais. Cf. Apollod. Epit. 7.14-18) os homens que a visitam so uma incgnita. Luck (1985: 10) levanta, a este propsito, algumas hipteses dignas de marca: It is not clear why she [Circe] does this: perhaps because she hates men; perhaps because she represents a more ancient matriarchal society; perhaps because she is just a semidivine power left

  • 7

    restitui-os novamente condio humana, mediante a frico de um unguento (vv.388-396);

    ao devolver aos marinheiros a forma que tinham antes, Circe mostra tambm a capacidade

    de rejuvenesc-los6 e de torn-los mais belos e mais altos (vv.395-396); ela consegue

    predizer o futuro, ao mesmo tempo que revela que entendida em necromancia, quando d

    a Ulisses instrues precisas relativas viagem que ele ter de fazer ao Hades para

    consultar a alma do adivinho Tirsias (vv.490-540); ela tem ainda a capacidade de se tornar

    invisvel (vv.569-574). Para alm de todos estes poderes que declaradamente lhe so

    atribudos, o texto de Homero deixa implcito que Circe detentora de uma outra

    competncia, que provavelmente escapar ao comum dos leitores, mas que nos importa

    aqui, em particular, realar. Quando Ulisses deixa a sua nau e se dirige para o palcio da

    maga, interceptado por Hermes que, na figura de um jovem, lhe revela o dolo de que os

    companheiros foram alvo, lhe d a conhecer a planta mgica que o h-de proteger dos

    encantamentos de Circe e lhe diz como proceder perante as vrias situaes com que ir

    deparar-se em casa da mesma. De acordo com Hermes, Ulisses deve tomar algumas

    precaues antes de se deitar com a bela Circe (vv.299-301):

    ,

    .

    over from an older culture, a relatively harmless power if one keeps ones distance, but very dangerous if one comes within her reach. 6 interessante notar como o rejuvenescimento pela magia uma capacidade que, na tradio, vai aparecer muito associada sobrinha de Circe, Medeia. O relato mais completo dos rejuvenescimentos mgicos protagonizados por Medeia foi-nos deixado por Ovdio (Met. 7.159-351).

  • 8

    A feiticeira deve jurar que no infligir nenhum outro sofrimento a Ulisses, uma vez

    que, como acabmos de escutar, ela tem poder para lhe tirar a coragem e a virilidade7

    quando ele estiver nu na sua cama. Subentende-se, por estas palavras de Hermes8, que

    Circe versada em magia ertica pois, caso contrrio, no teria a capacidade de roubar a

    Ulisses o seu vigor msculo. Este aspecto afigura-se-nos muito verosmil, j que, como

    vimos, Circe conhece todos os segredos de uma verdadeira feiticeira, e o que seria de

    estranhar era que ela no possusse conhecimentos de magia ertica.

    A associao de Circe a este tipo de magia vai aparecer na literatura grega, muitos

    sculos mais tarde, pela mo de Plutarco. Em Moralia 139a, o autor comea por afirmar que

    a pesca com veneno () um mtodo rpido e fcil para apanhar o peixe, mas que o

    torna no comestvel e sem valor. O mesmo se passa, em seu entender, quando as mulheres

    fazem uso de poes e feitios amorosos para apanharem os seus homens:

    .

    , ,

    .

    O intuito do moralista , obviamente, dissuadir as mulheres suas contemporneas de

    usarem filtros amorosos para controlarem os maridos. Interessante notar como, ao

    mencionar o episdio de Circe neste contexto, Plutarco deixa implcito que a poo mgica

    usada pela maga homrica pode ser interpretada como uma forma lograda de encantamento

    amoroso.

    7 Traduo de Loureno, F. (2003). 8 Repetidas depois por Ulisses, no v.341.

  • 9

    J antes havamos conhecido uma outra figura feminina sobrenatural que, tal como

    Circe, possua uma voz harmoniosa, lindas tranas e uma grande habilidade para trabalhar

    no tear. Tambm ela vivia isolada no meio da natureza selvagem e tambm ela retivera

    Ulisses na sua ilha. Referimo-nos, obviamente, a Calipso.

    Apesar dos muitos pontos de contacto que encontramos nos retratos das duas figuras

    femininas e da sensao que nos fica de que tambm a bela ninfa detentora de poderes

    mgicos9, no podemos afirmar que esta ltima seja uma feiticeira. Calipso ser aquilo a que

    Bernand (1991: 167) chamou une magicienne en puissance. Ela pode prometer a Ulisses a

    imortalidade e a juventude eterna (5.135-136) e ela sabe praticar a magia do tempo, j que,

    quando decide deixar partir o heri, faz soprar um vento suave, favorvel navegao (5.167

    e 268). Alm disso, Calipso aparece, ainda que de um modo muito discreto, ligada magia

    amorosa. Perdidamente apaixonada por Ulisses, ela dirige-lhe palavras doces e insinuantes,

    na tentativa de faz-lo esquecer taca e a sua querida Penlope. curioso notar que, quando

    pretende explicar a aco que as palavras da ninfa tm sobre o homem amado, o poeta se

    serve do verbo (1.57), exactamente o mesmo verbo (tpico do vocabulrio da magia)

    que Hermes vai usar quando explica a Ulisses que Circe no ser capaz de enfeiti-lo,

    estando ele na posse da planta mgica (): (10.291).

    E porque no ousarmos ir mais longe nesta associao de Calipso magia de teor

    amoroso e tentarmos encontrar, nesse contexto, uma explicao para a deteno de Ulisses

    na ilha de Oggia? No v.16 do Canto 5, Atena diz que o heri est retido na ilha de Calipso

    porque tem falta de naus equipadas de remos mas, no final, vemos que, na realidade, ele no

    precisa de uma grande embarcao para sair de Oggia. No seguimento deste raciocnio,

    9 Este sentimento partilhado por vrios estudiosos, como Eitrem (1941: 41-42) e Tupet (1976: 117). Opinio contrria tem-na, por exemplo, Hogan (1976: 190), para quem a magia se encontra completamente arredada do episdio de Calipso.

  • 10

    nada nos impede de conjecturar que Ulisses pode ter sido vtima de um encantamento ertico

    que o prendeu durante muito tempo a Calipso, embora ainda amasse Penlope.

    No podemos deixar a Odisseia sem antes nos determos no breve episdio das

    Sereias (12.39-54, 158-200), figuras enigmticas, de aspecto e natureza mal definidos10, que

    atraem os homens com a sua voz melodiosa e fatalmente os conduzem morte. Entendemos

    que, tambm elas so, de certa forma, feiticeiras. O poder da sua voz imperioso para as

    vtimas desprevenidas, tal como as drogas mgicas de Circe o eram. De realar que o poeta

    volta a fazer uso de (vv.40 e 44), verbo que utilizara em relao a Circe e Calipso11 e

    que est claramente associado magia. E no podemos tambm esquecer-nos de que o

    tema central da histria das duas Sereias , indubitavelmente, o canto mgico. O episdio

    abre com este tema (vv.39-40) e ele que vai dominar toda a passagem, do princpio ao fim

    (vv.41, 44, 49, 52-53, 158, 160, 183, 185, 187, 192-193 e 198).

    Num passo de Xenofonte (Mem. 2.6.10-12), o episdio das Sereias aparece

    associado magia de teor ertico. Scrates e Critobulo encetam uma interessante discusso

    sobre sortilgios amorosos e o primeiro apresenta o canto das Sereias homricas como um

    exemplo de um encantamento ertico:

    ,

    , , .

    , , ;

    , ,

    , , .

    10 As diferentes posturas da crtica relativamente a estas (e outras) questes foram resumidas por Gresseth (1970), num estudo inteiramente dedicado s Sereias de Homero. Vide ainda, a este propsito, Lambin (1995: 236-242). 11 Vide supra, p. 9.

  • 11

    , , , ,

    , ;

    12.

    Este passo reveste-se, para ns, de grande importncia, na medida em que deixa

    perceber as crenas existentes em torno da magia ertica na poca de Scrates, ao mesmo

    tempo que reflecte o modo como o famoso canto das Sereias era interpretado pelos Gregos

    ou, pelo menos, por alguns deles que viveram vrios sculos depois de Homero: como

    um encantamento mgico que elas usavam para atrair e prender os homens contra a sua

    vontade, ou seja, como um feitio amoroso.

    I.1.2) Hesodo De uma obra perdida de Hesodo, o Catlogo das Mulheres, chegou-nos um

    fragmento (76 Merkelbach-West) que preserva parte da histria de Atalanta, a herona virgem

    que fizera o voto de apenas desposar o homem que a vencesse na corrida. Este feito era

    praticamente impossvel porque a jovem tinha uma agilidade extraordinria, mas Hipmenes,

    um dos seus pretendentes, conseguiu tal proeza com a ajuda das mas que Afrodite lhe

    havia oferecido e que ele foi lanando, uma a uma, na direco de Atalanta, ao longo da

    prova de velocidade. Infelizmente, o fragmento de Hesodo est muito lacunoso e, talvez por

    essa razo, ficamos sem perceber qual foi o efeito que as mas tiveram sobre a jovem

    mulher. No entanto, os autores do perodo helenstico13 so unnimes em considerar que as

    12 Esta declarao de que as Sereias apenas usam os seus poderes contra os homens ambiciosos um juzo do prprio Xenofonte. 13 Depois de Hesodo, as fontes helensticas so os mais antigos testemunhos do mito de Atalanta e Hipmenes. A mesma histria foi inmeras vezes retomada por autores de pocas posteriores. Littlewood (1968: 152) apresenta uma listagem completa das referncias antigas a este mito.

  • 12

    mas de Afrodite acenderam o desejo ertico de Atalanta por Hipmenes, ou seja,

    funcionaram como um verdadeiro afrodisaco. De acordo com um esclio de Tecrito

    (2.12014), Filitas (Fr. 18 Powell) ter referido que . O

    prprio Tecrito mantm uma verso muito semelhante do seu contemporneo Filitas,

    quando alude, de passagem, histria de Atalanta e Hipmenes, em 3.40-42:

    , ,

    , , .

    O costume de lanar mas como sinal de afecto, ou mesmo com propsitos sexuais

    explcitos, mencionado muitas vezes ao longo da literatura greco-romana 15 e est

    amplamente atestado pela expresso popular ser atingido por uma ma16. A certeza,

    porm, da ligao desta conhecida tcnica de galanteio s prticas reais de magia ertica s

    recentemente nos foi dada, com a descoberta de um fragmento de um manual grego de

    magia da poca de Augusto. Publicado pela primeira vez em 197917, o papiro em causa

    contm precisamente aquilo a que podemos chamar um encantamento com mas e

    confirma o uso daqueles frutos como poderosos afrodisacos. Pela sua relevncia, citamos

    aqui as linhas 5-14 (col.1)18, que terminam com um apelo a Afrodite, final que muito comum

    em encantamentos de teor ertico:

    14 Sch. KUEA. 15 Vide, e.g., Ar. Nu. 997; AP 5.79; Theoc. 5.88, 6.6; Luc. DMeretr. 12.1; Verg. Ecl. 3.64. Littlewood (1968: 154--155) remete-nos para muitas outras referncias ao mesmo costume. 16 A propsito desta curiosa expresso grega, vide infra, p. 31, n. 51. 17 Brashear (1979). Este papiro (P. Berol. 21243) foi depois estudado por Maltomini (1980 e 1988) e por Janko (1988). Betz (1986: 316-317) traduziu-o para a lngua inglesa. 18 O texto aqui apresentado o da edio de Daniel & Maltomini (SM 72).

  • 13

    []

    [] [] -

    [] -

    .

    ,

    , []

    . . . . . . . .

    .

    .

    Estamos diante de um dos mais antigos papiros mgicos existentes. Alm disso, a

    enorme corrupo da mtrica deixa perceber que este encantamento ter sido alvo de vrias

    cpias, o que significa que o texto , muito provavelmente, de uma poca ainda anterior de

    Augusto e que o ritual mgico do lanamento da ma aqui descrito teria sido usado desde

    tempos mais recuados19.

    I.1.3) Poetas arcaicos Detenhamo-nos agora, por breves momentos, na poesia lrica arcaica, qual tambm

    no alheia a magia de pendor ertico.

    Comecemos por apreciar os vv.73-77 do clebre Grande Partenion (Fr. 1 Page) de

    lcman:

    []

    19 Faraone (1990: 233-236) defende que este tipo particular de ritual mgico era extremamente antigo. A sua argumentao baseia-se em indicaes retiradas do mito grego primitivo e dos rituais das cerimnias de casamento, bem como em evidncias textuais que remontam ao sc. IX a.C., encontradas fora dos limites do mundo grego.

  • 14

    []

    [] F

    .

    Tal como acontece com praticamente todas as linhas conservadas deste poema,

    tambm o entendimento do trecho em questo no bvio20. O contexto no nos permite

    identificar com clareza quem so as seis mulheres aqui mencionadas. Percebemos, no

    entanto, que Enesmbrota (v.73) tem um estatuto diferente do das outras figuras femininas.

    Das vrias interpretaes possveis para este passo, a mais sugestiva , sem dvida, aquela

    que reconhece em Enesmbrota uma capaz de fazer os outros apaixonarem-

    -se. A sustentar-se esta hiptese sugerida por West (1965: 200) e depois largamente

    repetida estaramos ento perante uma mulher versada nas artes da magia ertica, a

    quem poderiam recorrer todos aqueles que pretendessem conquistar o ser amado.

    Na obra de Safo no encontramos propriamente aluses prtica de magia ertica,

    mas vrios estudiosos tm chamado a ateno para o facto de o seu Hino a Afrodite (Fr. 1

    Lobel-Page) reflectir a forma, o contedo e a inteno de encantamentos amorosos reais que

    os papiros mgicos nos deram a conhecer. No pretendendo aprofundar esta questo, que j

    20 extenso o rol de conjecturas aventadas por todos aqueles que se esforam por decifrar o sentido do Grande Partenion, e nenhum detalhe interpretativo parece merecer a concordncia geral da crtica. Dentre os inmeros estudos dedicados a este poema de lcman, limitamo-nos a citar os que se nos afiguram mais relevantes: Page (1951), Puelma (1977), Eisenberger (1991), Pavese (1992), Robbins (1994); sem esquecer, obviamente, os valiosos comentrios de Garzya (1954) e, sobretudo, os de Calame (1983). Para uma lista ainda mais completa, vide Vetta (1982).

  • 15

    foi por de mais explorada21, convir talvez tocar nos seus pontos essenciais, para assim

    compreendermos a sua pertinncia.

    Num poema repleto de ardente e angustiada paixo, Safo invoca Afrodite e suplica a

    sua interveno naquele momento de sofrimento por um desejo insaciado. A poetisa recorda

    imagens das anteriores aparies da divindade em ocasies idnticas e, subitamente, a

    prpria Afrodite que comea a falar (vv.18-24):

    .]. ; ,

    , ;

    , ,

    , ,

    ,

    .

    A deusa pergunta amavelmente a Safo quem o actual objecto do seu desejo e

    promete-lhe que, tal como das outras vezes, tambm agora haver de dar cumprimento aos

    seus propsitos e fazer com que o seu amor no correspondido passe imediatamente a

    merecer retribuio.

    Se atentarmos, com algum cuidado, nos versos acabados de citar, facilmente

    encontramos vrios ingredientes que justificam a frequente associao desta composio

    potica aos encantamentos erticos de atraco tradicionais, conhecidos como .

    Desde logo, o facto de Afrodite querer saber quem deve convencer, daquela vez, a amar a

    21 Vide, a este respeito, Cameron (1939), Segal (1974), Burnett (1983: 254-256), Faraone (1992) e Petropoulos (1993).

  • 16

    poetisa, implica que as preces que esta normalmente lhe dirige tenham sempre uma nica

    finalidade: atrair a si o ente amado. Alm disso, quando prediz a mudana da situao

    amorosa de Safo, nos vv.21-24, a deusa utiliza uma formulao sintctica que nos reporta, de

    imediato, para a linguagem dos textos mgicos reais. De facto, as vrias proposies

    condicionais pronunciadas sob a forma de repetio antittica (se , ento )

    assemelham-se a certas enunciaes mgicas, como quela que encontramos em PGM

    4.1510-1520:

    , , , , , ,

    , , , , , , , ,

    , , , , , ,

    , , .

    Tambm a reiterao do advrbio , nos vv.21 e 2322, nos remete para o mundo

    da magia e, em particular, para os encantamentos de teor ertico, onde frmulas como

    , ; , ou mesmo , , , so

    extremamente comuns, reflectindo o princpio mgico de que a interveno da divindade se

    deseja imediata. Vide, entre muitos outros passos, PGM 1.262; 3.85, 123; 4.973, 1593;

    17a.25; 19a.52, 54; 68.11, 18. O advrbio pode encontrar-se, por exemplo, em PGM

    1.107; 4.72, 1265.

    No v.24, Afrodite reafirma a sua pretenso de forar a amada de Safo a am-la

    tambm, mesmo que aquela o no queira ( )23. Petropoulos (1993: 48), no

    22 Segal (1974: 158, n.16) chama ainda a ateno para a estratgica colocao da cesura: coming after the fifth syllable in the first and third lines (21 and 23), it reinforces the repetition of . 23 A orientao homossexual do poema explcita. O amor entre pessoas do mesmo sexo tambm encontra expresso nos encantamentos mgicos de atraco que chegaram at aos nossos dias, embora em muito pequena escala. Segundo pudemos verificar, das oitenta e uma publicadas, apenas trs so, inequivocamente, de ndole homoertica: SM 42, PGM 32 e PGM 32a.

  • 17

    seguimento de Cameron (1939: 9, n. 42), nota que esta capacidade, demonstrada por

    Afrodite, de induzir uma pessoa a amar outra mesmo contra a sua vontade, figura tambm

    num hino deusa, que aparece encaixado num encantamento amoroso muito elaborado

    (PGM 4.2934: ).

    Voltamos a ouvir a poetisa nos ltimos versos da composio (25-28):

    ,

    ,

    , ,

    .

    Tambm aqui possvel descobrirmos paralelos com a tradio grega de magia

    amorosa. O verbo , usado por Safo nos vv.26 e 27, aparece com muita frequncia no

    final dos encantamentos erticos de atraco. Faraone (1992) chamou a ateno para este

    facto e foi mais longe, ao interpretar o pedido de Safo ( ,

    ) como uma adaptao da frmula , tpica da parte final de vrios

    sortilgios erticos reais, alguns dos quais dirigidos a Afrodite, como o caso de PGM

    4.293924.

    Uma vez que desconhecemos as circunstncias externas que rodeiam o Hino a

    Afrodite, no podemos defender o argumento de que as palavras de Safo pressupem o

    acompanhamento de um acto mgico efectivo25. As evidncias de que dispomos permitem-

    -nos to-somente concluir que as muitas afinidades sintcticas encontradas entre o poema

    24 Abstemo-nos de desenvolver esta questo, que foi largamente estudada e exemplificada por Faraone, no artigo acima citado. Vide ainda Faraone (1999: 137). 25 Petropoulos (1993: 54) levanta essa hiptese: If () Hippon. Fr.115 (W) was an actual curse that realised its primary function in actual life as Fraenkel believed, there is no positive reason why Sapphos poem should not correspondingly have been a real love spell.

  • 18

    em causa e o discurso da magia no sero, decerto, mera obra do acaso. Parece, de facto,

    existir uma base comum entre as palavras de Safo e uma longa tradio de encantamentos

    erticos dirigidos a Afrodite.

    o mais ilustre de todos os poetas lricos gregos que nos oferece a primeira descrio

    detalhada de um rito de magia ertica. Pndaro, na sua Ptica 4, deixa-nos o relato das

    aventuras de Medeia e faz o elogio desta princesa da Clquida que, por ser muito entendida

    em drogas mgicas, merece o epteto de (v.233). Mas Jaso que,

    paradoxalmente, recorre magia amorosa para seduzir a feiticeira. Conta o poeta que

    Afrodite amarrou a uma roda o torcicolo de plumagem variada ( ), ligado pelos

    quatro membros, e que trouxe do Olimpo este pssaro delirante ( ), para

    benefcio dos homens. De acordo com Pndaro, a deusa teria assim inventado um poderoso

    instrumento de magia ertica, com o qual Jaso poderia inflamar de desejo o corao de

    Medeia e convenc-la a segui-lo at Grcia. Valer a pena recordar o passo em questo

    (vv.213-219)26:

    -

    26 Existem dois trabalhos recentes consagrados a estas linhas de Pndaro: Faraone (1993) e Johnston (1995). Embora apresentem duas interpretaes muito diferentes e at, em vrios pontos, contraditrias do mesmo passo, ambos os estudos so, em nossa opinio, de inegvel qualidade.

  • 19

    ,

    .

    Interessa salientar que o procedimento mgico aqui descrito por Pndaro alia a

    (o acto de atar o pssaro roda e a manipulao da prpria ) ao (

    que Afrodite ensinou a Jaso), como natural acontecer nos rituais de magia reais27.

    Estas linhas da Ptica 4 so extremamente valiosas para a histria da magia de teor

    ertico, na medida em que atestam, pela primeira vez, um encantamento amoroso de

    atraco (), um tipo de sortilgio que, como sabido, foi depois largamente usado em

    todo o mundo grego. Ainda mais preciosos sero estes versos de Pndaro se nos lembrarmos

    que eles constituem a primeira meno ao bizarro expediente mgico conhecido por 28,

    que haveremos de encontrar depois, repetidas vezes, nesses mesmos ritos de magia ertica

    de atraco. Em suma, e evitando entrar em delongas sobre um assunto que

    desenvolveremos mais tarde29, importa apenas reter que na breve descrio de Pndaro,

    um poeta pouco ou nada interessado em temas mgicos, que encontramos uma importante

    prova da antiguidade da prtica das e do recurso como instrumento de magia

    amorosa.

    I.1.4) Tragedigrafos Passemos agora a considerar a tragdia tica, gnero literrio que tambm nos h-de

    brindar com algumas referncias a actividades mgicas de teor amoroso.

    27 Sobre as muitas afinidades existentes entre a descrio pindrica do rito de magia ertica e os encantamentos de atraco preservados nos papiros e nas defixiones, vide Faraone (1993a). 28 A propsito das vrias acepes deste termo, vide infra, pp. 146-151. 29 A pretexto da utilizada por Simeta no poema de Tecrito que nos detm. Cf. infra, pp. 146-151.

  • 20

    De uma obra perdida de Sfocles, intitulada , chegou at ns um pequeno

    fragmento (536 Radt) que parece aludir a este tipo de prticas: . A

    crermos em Macrbio (5.19.8), o drama em questo desenvolver-se-ia em torno do tema das

    artes mgicas de Medeia e, de facto, as trs palavras conservadas, ao sugerirem o

    derretimento de uma figura de cera no fogo, fariam todo o sentido no contexto de um ritual de

    magia30. Esta interpretao, sublinhe-se, meramente conjectural, j que, a propsito da

    obra de Sfocles nada pode ser afirmado com segurana31.

    Evidncias incontestveis do uso de magia ertica encontramo-las em As Traqunias,

    do mesmo dramaturgo. O enredo desta pea muito conhecido: Hracles, no seu regresso a

    Trquis depois de uma vitria militar, resolve parar na Eubeia para oferecer sacrifcios a

    Zeus. Entretanto faz chegar a sua casa uma bela cativa de guerra, chamada ole, por quem

    se apaixonara. Dejanira fica desesperada quando percebe que a afeio de Hracles fora

    transferida para uma outra mulher, bem mais jovem do que ela. Na contingncia de perder o

    marido, decide ento fazer uso de um filtro amoroso que guardava h j muito tempo, desde

    o dia da morte do centauro Nesso. Atingido pela flecha de Hracles, o centauro recomendara

    a Dejanira que recolhesse o sangue coagulado volta da chaga, pois, deste modo, ficaria na

    posse de um poderoso amavio destinado a impedir o marido de olhar para qualquer outra

    mulher que no ela. com este filtro que Dejanira vai besuntar uma tnica que faz depois

    chegar a Hracles. Mas o sangue do centauro no surte o efeito esperado e, em vez de

    reconquistar o marido, Dejanira acaba por provocar a sua morte.

    30 Sobre a prtica comum de derreter imagens de cera em rituais de magia ertica, vide infra, pp. 165-169. 31 Outras leituras, diferentes da nossa, tm sido propostas para o Fr. 536 Radt. Vide comentrio do mesmo Radt, ad loc. O prprio ttulo () tem sido interpretado de vrias formas, pois, como explica Tupet (1976: 140): ce titre ne permet mme pas de dcider sil sagissait de cueilleuses d herbes magiques ou mdicinales, de sorcires ou de practiciennes de la mdicine lgale.

  • 21

    O presente que o centauro oferece esposa de Hracles pertence, sem dvida,

    categoria de sortilgios amorosos comummente usados por homens e mulheres para prender

    a afeio da pessoa amada, impedindo-a assim de se interessar por terceiros. Muitos papiros

    e defixiones contm frmulas especficas destinadas a este tipo de encantamentos de

    atraco, mas nenhum dos testemunhos remanescentes to antigo como o texto de

    Sfocles. Este facto, por si s, faria de As Traqunias uma obra marcante no contexto da

    magia de cariz ertico. Mas no podemos deixar sem meno um conjunto de outras

    circunstncias, que vm contribuir, de igual forma, para a importncia da pea no mbito em

    causa.

    Aps ter aplicado o filtro tnica de Hracles, Dejanira ainda hesita, por instantes, em

    envi-la ao marido. Decide ento pedir a anuncia do coro para o acto que est prestes a

    levar a cabo. As palavras que ela profere nesse momento constituem uma das raras provas

    de que, j na poca clssica, as prticas mgicas com finalidades erticas bem como os

    resultados catastrficos decorrentes do seu uso seriam muito comuns32. Diz Dejanira, nos

    vv.582-587:

    , .

    ,

    [ ]

    ,

    , .

    32 Em Antifonte, encontramos outro dos poucos testemunhos da utilizao desastrosa da magia ertica na Grcia clssica. Cf. infra, p. 38.

  • 22

    A esposa de Hracles faz questo de realar que no versada em prticas de magia

    e que o seu objectivo apenas atrair o marido e prevalecer sobre ole. Dejanira mostra uma

    enorme repugnncia pelas mulheres suas contemporneas que conhecem as artes mgicas

    e se dedicam a actos imorais e criminosos. Curiosamente, porm, j neste trecho ela deixa

    perpassar o seu receio relativamente s consequncias do uso do filtro amoroso, pois nas

    suas palavras vislumbra-se a hiptese de o efeito no ser o

    esperado. O mesmo sentimento de insegurana volta a estar implcito nos vv.596-597,

    quando Dejanira pede ao coro que guarde segredo quanto a esta sua aco, que ela prpria

    considera ignominiosa (). Uns versos mais adiante, ela admite abertamente que tem

    medo de se ter excedido (vv.663-664) e que a aco que acaba de empreender de

    resultado incerto (vv.669-670).

    Toda esta conscincia angustiante, revelada por Dejanira, das possveis

    consequncias nefastas resultantes da utilizao do amavio permite-nos inferir que o carcter

    ambguo dos sortilgios amorosos, testemunhado sobretudo por autores de perodos

    posteriores33, era j sobejamente conhecido no tempo de Sfocles.

    A angstia que o uso do filtro provoca em Dejanira uma questo que toca de perto

    numa outra, muito controversa, que tem feito correr rios de tinta entre os estudiosos da pea:

    a culpa (ou no) da mulher de Hracles pela morte do marido. Se Dejanira sincera quando

    diz que o seu objectivo reconquistar o homem que ama ou se, pelo contrrio, est a simular

    uma inteno benvola que na verdade no acalenta, esse , de facto, um assunto muito

    pouco consensual34. Porque est fora do propsito do nosso trabalho, no nos alongaremos

    33 Essa ambiguidade foi magnificamente ilustrada por Plutarco, em Moralia 139a, passo que citmos supra, p. 8. Para outras aluses aos efeitos catastrficos decorrentes do uso de sortilgios amorosos, vide infra, pp. 189-190. 34 Os crticos modernos so tudo menos unnimes no que concerne interpretao de As Traqunias, em particular no que diz respeito avaliao da figura de Dejanira. Se quisermos resumir a questo em breves palavras e sem esquecer que muitos estudiosos evitam atitudes radicais e se situam numa posio intermdia

  • 23

    sobre ele, mas no podemos deixar de mencionar um brilhante estudo de Faraone (1994)

    que, ao propor uma abordagem invulgar da questo da culpabilidade de Dejanira, acaba

    tambm por focar alguns detalhes importantes para quem, como ns, se preocupa em

    entender a realidade das prticas de magia ertica em pocas recuadas. Apoiado em vrios

    testemunhos antigos, Faraone argumenta que, entre os Gregos, era prtica comum as

    mulheres darem pequenas doses de veneno aos seus maridos, na crena de que essas

    substncias funcionassem como afrodisacos e fizessem com que os seus homens as

    amassem mais e melhor. A aco levada a cabo pela protagonista de As Traqunias deve

    pois, segundo o estudioso, ser entendida luz deste costume do folclore grego e,

    consequentemente, devemos aceitar que o erro de Dejanira consistiu apenas numa m

    avaliao do poder do veneno que enviou a Hracles. Esta interpretao dos factos, que nos

    parece muito verosmil, mitiga extraordinariamente a culpa de Dejanira, ainda mais se

    tivermos em conta que, na Atenas da poca clssica, o uso de veneno como remdio para

    recuperar um amor perdido nem sempre era considerado um acto ilegal e condenvel35.

    Desta evidncia chegaram at ns vrios testemunhos, entre os quais um episdio

    podemos dizer que, em termos gerais, a crtica segue duas direces. De um lado esto aqueles helenistas que vem a filha de Eneu como uma mulher bem-intencionada, que provoca a morte do marido involuntariamente, por um trgico engano. Vide, e.g., Bowra (1944), Kamerbeek (1959), Kirkwood (1967), Easterling (1968) e Winnington-Ingram (1980). Whitman (1951: 113) chega mesmo a dizer que Deianira is all love; she is probably the only completely dignified picture of a passionately devoted woman extant in Greek tragedy. No plo diametralmente oposto, encontramos aqueles que consideram que Dejanira mata Hracles de propsito, dominada que est pelos cimes da relao que ele mantinha com ole. Vide, e.g., Reinhardt (1947), Errandonea (1958) cujo ponto de vista o mais extremista de todos os que tivemos oportunidade de conhecer , LaRue (1965) e Albini (1968). Para uma smula mais completa das tendncias da crtica a este respeito, vide Hester (1980), estudioso que, antes de apresentar as suas prprias convices sobre o assunto, nos oferece um abalizado ponto da situao. Tambm Davies (1989) faz um breve historial da questo, antes de refutar a argumentao daqueles que vem Dejanira como uma mulher agressiva e sanguinria. 35 Que, em termos gerais, a lei ateniense condenava o uso de filtros, sabemo-lo por vrios autores antigos. Vide, e.g., os casos relatados pelos oradores ticos, infra, pp.38-40. No entanto, quando se tratava de ajuizar uma morte decorrente do emprego de substncias alegadamente afrodisacas, havia tambm de considerar-se a lei geral do homicdio que vigorava na Atenas de ento e que assentava, basicamente, na distino entre assassinato intencional e no-intencional. Sobre esta curiosa particularidade da lei ateniense, vide MacDowell (1978: 113-118).

  • 24

    anedtico, conservado pelo autor da obra aristotlica Magna Moralia, que relata o caso de

    uma mulher que, embora tenha provocado a morte do marido ao dar-lhe um poderoso filtro,

    foi absolvida pelo Arepago, que considerou que ela no agira deliberadamente, j que a sua

    inteno era conquistar a afeio () do homem que amava. Parece-nos pertinente, pela

    sua relevncia, citar o passo em causa (1188b):

    , ,

    . , ,

    .

    .

    Num contexto social onde, ao que tudo indica, existia o conceito de homicdio

    involuntrio aplicado ao uso de substncias txicas com fins amorosos, natural que o

    pblico de As Traqunias fizesse da questo do envenenamento de Hracles uma leitura

    muito diferente daquela que ns hoje tendemos a fazer. Se quisermos ir mais longe nas

    nossas suposies, podemos at imaginar que o facto de Sfocles ter produzido uma obra

    em torno da confuso existente entre venenos e amavios significaria que, para os Atenienses

    do sc. V a.C., este assunto estava na ordem do dia36.

    Tambm Eurpides recorre magia ertica em duas das suas tragdias.

    Curiosamente, os passos em que o dramaturgo alude a este tema esto envoltos numa

    ambiguidade desconcertante. Em Hiplito, Fedra mostra-se decidida a pr termo sua vida,

    como nico remdio que encontra para a paixo avassaladora que sente pelo enteado. Na

    36 Note-se que, sensivelmente pela mesma altura, Antifonte escreveu o seu primeiro discurso, que desenvolve o mesmo tema.

  • 25

    tentativa de dissuadir a patroa do suicdio, a ama dirige-lhe palavras de nimo e no termina

    o seu arrazoado sem antes evocar a existncia de encantamentos e palavras mgicas que

    podero ajud-la (vv.477-481):

    .

    .

    ,

    .

    O discurso da ama intencionalmente impreciso. No v.478, como diz Barrett (1964:

    247), she is speaking quite generally, with no particular magic in mind. Na linha seguinte, o

    uso da palavra acentua o tom de dvida que atravessa este passo37. Estar a ama

    a referir-se a um qualquer antiafrodisaco que viria atenuar o arrebatamento amoroso de

    Fedra ou, pelo contrrio, ter ela em mente um afrodisaco que induziria Hiplito a apaixonar-

    -se pela rainha, curando-a assim das suas penas? O texto admite ambas as possibilidades,

    embora a segunda hiptese parea fazer mais sentido na sequncia de um discurso de

    incitamento fruio do amor.

    Nas ltimas duas linhas, a ama alude facilidade com que as mulheres fabricam

    expedientes mgicos, ao contrrio dos homens, que so muito menos hbeis nessas

    matrias. Ao utilizar a primeira pessoa do plural, a ama est a sugerir que ela prpria se inclui

    no conceito estereotipado a que d voz. Estes dois versos esto investidos da maior

    importncia, pois constituem a prova de que j na Atenas do sc. V a.C. existia a ideia

    37 Como sabido, a palavra comporta vrios significados, que vo desde remdio, veneno a encantamento, sortilgio. Vide LSJ, ad loc. Sobre a perigosa instabilidade semntica do termo e sobre o modo como, em Hiplito, ele domina toda a cena de persuaso entre a ama e Fedra (vv.477-524), vide Goff (1990: 48--54).

  • 26

    preconcebida e comum de que o sexo feminino muito mais entendido em prticas mgicas

    do que o sexo masculino38.

    Apesar de destruda pelas agonias de um amor impossvel, Fedra no aprova as

    palavras de estmulo que lhe so dirigidas, por consider-las baixas e vergonhosas (,

    v.499). Perante a intransigncia da patroa, a ama resolve ento fazer uma nova investida,

    onde insiste na mesma ideia do recurso a prticas mgicas, acrescentando-lhe porm, desta

    feita, alguns detalhes mais concretos (vv.509-515):

    , ,

    , .

    ,

    , .

    A ama explica que detentora de filtros de amor que ho-de acabar com a doena de

    Fedra. As palavras que utiliza no desfazem a ambiguidade procedente dos vv.477-481, mas

    antes a acentuam39. Continuamos sem divisar qual seria o resultado pretendido com o

    recurso magia. Mais importante, no entanto, do que percebermos se o que est em jogo a

    cura ou a consumao do desejo desenfreado de Fedra, ser analisarmos as preciosas

    38 A noo generalizada, j evidente na poca de Eurpides, de que as mulheres seriam mais versadas nas artes mgicas do que os homens, contrasta inexplicavelmente com o facto de at ns ter chegado um nmero muitssimo maior de informaes sobre os feiticeiros que existiam em Atenas nos sculos V e IV a.C. do que sobre as suas congneres femininas. Este assunto mereceu, recentemente, especial ateno da parte de Dickie (2001: 47-95). 39 No seu comentrio da pea, Barrett (1964: 254-255) esmia os vrios sentidos possveis de cada uma das palavras e expresses usadas por Eurpides nesta passagem, no sem antes ter feito notar que the whole thing is a string of ambiguities e que the audience will be bemused.

  • 27

    informaes que estas linhas contm sobre o universo das prticas da magia ertica na

    Atenas contempornea de Eurpides.

    Ao sugerir a Fedra o uso de filtros, a ama deixa claro que eles no afectaro o

    intelecto ( ). Este esclarecimento a prova de que j no sc. V a.C.

    existia a crena 40 (provavelmente justificada) de que os amavios podiam prejudicar as

    faculdades mentais daqueles a quem eram ministrados. Por outro lado, a referncia, nos

    vv.513-515, necessidade de um sinal de Hiplito para a prossecuo do sortilgio

    testemunho de que o uso de objectos pessoais do ser amado, em contextos de magia

    ertica, era uma prtica j muito divulgada na poca clssica41.

    Fedra mostra-se tentada pela proposta da ama, como se pode inferir pela pergunta

    que lhe dirige logo de seguida (v.516: ;). A

    curiosidade da rainha em querer saber se o tal seria para besuntar ou para beber

    implica, necessariamente, que ela possua alguns conhecimentos relativos aos procedimentos

    que envolvem os rituais de magia ertica. Este aspecto que no vimos focado por nenhum

    dos estudiosos da pea afigura-se-nos da maior importncia, uma vez que nos permite

    depreender que at mesmo as mulheres da mais alta estirpe, para quem o uso de sortilgios

    amorosos parecia ser moralmente repugnante, no eram indiferentes s artes mgicas de

    teor ertico e ao modo como elas eram praticadas.

    A relevncia de toda esta cena de persuaso entre Fedra e a sua ama vai ainda mais

    alm, j que dela podemos extrair um outro dado essencial relativo ao exerccio da magia

    amorosa na Antiguidade. Referimo-nos ao facto de aqui se encontrar atestada a existncia de

    mulheres que, no sc. V a.C., punham os seus conhecimentos de magia disposio de

    40 Muitas vezes repetida por autores de pocas posteriores. Vide, entre outros, Plu. Luc. 43.2; Ach. Tat. 4.15.3; Plin. HN 25.25; Juv. 6.610-620; Suet. Cal. 50, Poet.16. 41 Cf. infra, pp.183-184.

  • 28

    terceiros 42 . Ao que sabemos, estamos perante o primeiro testemunho explcito desta

    importante realidade, que continua ainda a marcar presena nos nossos dias.

    Concomitantemente, tambm a primeira vez em que se vislumbra o clebre costume de

    mulheres de alto estrato social que recorrem s suas serviais quando pretendem exercer

    prticas de magia sobre outrem.

    Eurpides volta a aludir ao tema da magia ertica na sua Andrmaca. Tambm aqui,

    as passagens que abordam este assunto esto imbudas de uma ambiguidade intencional,

    que faz ressaltar a conjuntura dramtica da tragdia. Logo no monlogo inicial da pea,

    Andrmaca queixa-se de que a lacnia Hermone, esposa legtima de Neoptlemo, a acusa

    de fazer uso de secretos para a tornar estril e odiosa aos olhos do marido (vv.32-

    -33):

    .

    Um pouco mais frente, nos vv.155-160, ouvimos as mesmas duras incriminaes da

    boca da prpria Hermone:

    , ,

    42 Para melhor entendermos a importncia deste testemunho euripidiano, vale a pena citar a concluso do captulo que Dickie (2001: 95) dedicou ao estudo das feiticeiras existentes em Atenas nos sculos V e IV a. C.: There is a good deal of evidence for women practising sorcery on their own behalf in Athens in the fifth and fourth centuries BC, but rather less for women who put their expertise in sorcery at the disposal of others. Such women unquestionably existed; identifying them is largely a matter of guess-work.

  • 29

    Cega de cimes, Hermone acusa Andrmaca de querer ocupar o seu lugar na casa

    de Neoptlemo e de, com esse objectivo, ter provocado a sua runa, tornando-a infrtil43 e

    preterida pelo marido. Tanto no primeiro trecho como agora neste, o emprego da palavra

    obscurece o sentido exacto das crticas de que a viva de Heitor alvo44. No

    entanto, evidente que estamos perante um caso de alegado uso de prticas mgicas, at

    porque, se houvesse dvidas a esse respeito, a referncia, neste contexto, origem

    asitica45 de Andrmaca dissip-las-ia.

    Mais adiante, nos vv.205-208, ao tentar defender-se das acusaes de Hermone,

    Andrmaca sustenta que no por causa dos seus que Neoptlemo a repudia, mas

    sim porque ela no uma pessoa agradvel. E faz ainda questo de lhe explicar, com ironia,

    que um eficaz para atrair o homem com que se partilha a cama um carcter

    virtuoso.

    Pelo que acabmos de ver, fica claro que na tragdia em causa no existe um uso

    efectivo de magia ertica, mas apenas uma denncia baseada numa suspeita que , muito

    provavelmente, infundada. Ainda assim, importante termos presente que as acusaes de

    Hermone encontram eco em vrios encantamentos amorosos no-literrios, alguns deles

    datados ainda da poca clssica. Para alm das frmulas mgicas abortivas j

    43 Perante Menelau, Andrmaca explicita melhor esta grave delao que recai sobre os seus ombros. Fica claro, no v.356, que Hermone a acusa de ter recorrido a prticas mgicas que a fizeram abortar os filhos de Neoptlemo. A este propsito, curioso notar que chegaram, de facto, at ns registos de frmulas mgicas abortivas, das quais vale a pena citar pelo menos uma, do sc. III d.C., pela sua expressividade: , (PGM 62.102-103). Para outros exemplos que evoquem procedimentos mgicos associados ao aborto e esterilidade, vide Ogden (2002: 243-244). 44 A propsito dos vrios significados do termo , cf. supra, p. 25, n. 37. 45 Note-se que Eurpides usa (v.159) para se referir ao continente asitico. O mesmo volta a acontecer no v.652. Nos vv.1 e 119, no entanto, emprega .

  • 30

    mencionadas 46 , encontramos muitos cujo principal objectivo impedir o

    desempenho sexual da pessoa amada com terceiros47, eliminando assim a concorrncia. a

    este tipo de prticas mgicas que Hermone se refere quando culpa Andrmaca pelo facto de

    o marido a repudiar, o que s pode significar que, tambm aqui, o poeta est a aludir a uma

    forma de magia ertica largamente conhecida no seu tempo.

    Em suma, o teatro de Eurpides vem acentuar a ideia de que os rituais de magia

    ertica, nas suas mais diversas manifestaes, estariam j muito divulgados no apogeu da

    poca clssica, nomeadamente entre os Atenienses, que constituam o auditrio das peas

    trgicas.

    I.1.5) Comedigrafos Se voltarmos agora a nossa ateno para os autores cmicos, dos quais, na grande

    maioria dos casos, s conhecemos escassos e curtos fragmentos, ainda assim encontramos

    mltiplas aluses magia de teor ertico, o que significa que este tema no passou

    despercebido aos cultores do gnero literrio em questo. Sempre muito breves, as

    referncias dos comedigrafos s substncias e aos instrumentos que esto ao servio das

    prticas de magia amorosa so, no entanto, variadas e explcitas.

    upolis, em Mergulhadores (Fr. 83 Kassel-Austin), menciona o , um

    instrumento mgico de atraco tambm referido por Aristfanes, em Heris (Fr. 315 Kassel-

    46 Cf. supra, p. 29, n. 43. 47 Faraone (1999: 12-13) transcreve trs do sc. IV a.C. (dois dos quais provenientes de Atenas) escritos por mulheres que pretendem vedar aos homens que amam a possibilidade de se relacionarem sexualmente com qualquer outra pessoa. Como podemos constatar pelos documentos mgicos a que temos acesso, este gnero de encantamentos amorosos foi sempre muito popular ao longo de toda a Antiguidade.

  • 31

    -Austin). Um outro expediente de magia amorosa a 48 aludido em Lisstrata

    (v.1110)49.

    O mesmo Aristfanes refere, de passagem, o costume de lanar mas com

    propsitos erticos50. Na sua clebre comdia As Nuvens, a figura do Raciocnio Justo,

    defensor dos valores tradicionais atenienses, dirige a Fidpides um discurso pejado de

    preceitos morais, entre os quais consta o seguinte (vv.996-997):

    ,

    O rapaz aconselhado a ter cuidado para no ser atingido por uma ma (

    ) lanada por uma qualquer mulher de m fama. Este detalhe importante para ns,

    na medida em que parece sugerir que o ritual ertico da ma, usado tradicionalmente por

    homens contra mulheres, tambm era utilizado por prostitutas para seduzirem jovens

    inexperientes51.

    48 Desde Pndaro que conhecemos este instrumento mgico. Cf. supra, pp.18-19. A propsito da e do , e da sua ligao s operaes tpicas da magia de pendor ertico, vide infra, respectivamente, pp. 146-151 e 169-172. 49 Cf. infra, p. 150. 50 Sobre a ligao desta tcnica de seduo aos encantamentos erticos reais, vide supra, p.12. Cf. tambm infra, pp. 234-235. 51 A expresso pode ser entendida apenas metaforicamente, com o sentido de apaixonar-se por (que mais no do que uma consequncia do aoristo passivo: alcanado por uma ma > enamorado). Neste caso, o Raciocnio Justo estaria to-somente a dizer a Fidpides qualquer coisa como no te apaixones por uma prostituta!, sem que estivesse implcito o lanamento efectivo de uma ma. As explicaes do escoliasta e dos lexicgrafos tardios tendem para este sentido figurado. Vide Hsch. s.v. ; Phot. s.v. ; Suid. s.v. , e . Parece-nos, no entanto, muito mais atraente (e at mais verosmil) aceitar que estamos perante uma aluso ao receio concreto sentido pelos Atenienses contemporneos de Aristfanes relativamente ao uso que as prostitutas fariam de certos rituais de magia ertica neste caso, do lanamento da ma para atrair clientela. Sobre a estreita ligao das prostitutas e das cortess s prticas de magia ertica, vide Faraone (1999: 146-160).

  • 32

    Em As Mulheres no Parlamento, Aristfanes alude s propriedades afrodisacas das

    cebolas, num passo hilariante, que no resistimos a citar. Encontramo-nos na cena final da

    pea, quando o moo est a ser impetuosamente assediado pelas trs velhas. Este pequeno

    trecho (vv.1090-1092) passa-se entre o jovem (.) e a terceira velha (. ):

    . (...) .

    ;

    . , .

    Conhecemos, por intermdio de Ateneu, muitos passos de comedigrafos do sc. IV

    a.C. que contm referncias a alimentos afrodisacos, com especial destaque para as

    cebolas, os caracis e o marisco. Entre as vrias citaes que encontramos em Ath. 2.63d-

    -64b e que passam por autores como Eubulo52, Alxis53 e Xenarco54, entre outros

    destacamos a de Heraclides de Tarento e a de Dfilo, pela sua conciso e clareza. Diz o

    primeiro:

    , ,

    .

    O passo de Dfilo, por seu turno, fala exclusivamente das virtudes das cebolas:

    , , ,

    .

    52 = Fr. 6 Kassel-Austin. 53 = Fr. 281 Kassel-Austin. 54 = Fr. 1 Kassel-Austin.

  • 33

    Em 8.356e-f, Ateneu cita ainda uma curiosa passagem de Pnfila, obra perdida de

    Alxis, que revela uma srie de produtos comestveis de alto valor afrodisaco, entre os quais

    se encontram de novo as cebolas, mas tambm peixe e, sobretudo, vrias espcies de

    marisco55.

    Os poucos dados que temos acerca do mais ilustre representante da Comdia Nova

    no nos permitem adiantar muito relativamente ao lugar que o tema da magia ertica teria

    ocupado na sua obra. Ainda assim, num exame atento da produo teatral remanescente de

    Menandro, encontramos duas breves referncias a este motivo. No Fr. 351 Kassel-Austin, o

    poeta alude, genericamente, a comidas que provocam desejos sensuais (

    ) e, no Fr. 794 Kassel-Austin, fala da nobreza de carcter como sendo um

    verdadeiro filtro amoroso56:

    , ,

    .

    No dispondo de outros testemunhos directos que provem a importncia do tema da

    magia ertica na Comdia Nova, ainda assim acreditamos que este assunto tenha

    interessado os comedigrafos daquele perodo, uma vez que Luciano, escritor satrico que foi

    sobretudo influenciado por esta realidade literria, se revela muitssimo bem informado sobre

    as prticas de magia associadas a questes do corao. Basta recordarmos como, em

    DMeretr. 4.4-5, ele descreve em pormenor as aces de uma feiticeira da Sria que perita

    em recuperar os amantes das suas clientes; ou ainda como, em Philops. 13-15, nos relata

    55 = Fr. 175 Kassel-Austin. 56 As suas palavras lembram as de Andrmaca, nos vv. 207-208 da pea homnima de Eurpides. Cf. supra, p. 29.

  • 34

    uma histria anedtica que gira volta de um feiticeiro hiperbreo que executa um

    encantamento de atraco altamente elaborado para que Glucias consiga consumar o amor

    que sente pela sua vizinha.

    I.1.6) Filsofos Encontramos a mesma atitude satrica para com as actividades ligadas magia

    ertica num passo dos Memorveis que relata a dilogo humorstico que Scrates manteve

    com uma cortes chamada Tedota. Conta-nos Xenofonte que o filsofo e os seus discpulos

    tinham ido visitar aquela famosa beldade e que a conversa estava acesa a propsito dos

    artifcios por ela utilizados para atrair os homens. A dada altura, a cortes pede a Scrates

    que este a visite com mais frequncia. A resposta do filsofo to espirituosa e inusitada que

    no resistimos a cit-la (3.11.16):

    , , ,

    ,

    .

    Tedota mostra-se muito surpreendida com esta revelao e pergunta ao ilustre

    mestre se ele , de facto, entendido em assuntos de magia ertica. Scrates replica no

    mesmo tom facecioso (3.11.17):

    , , ;

    ; ,

    .

  • 35

    A cortes pede-lhe ento emprestada a tal 57 que Scrates diz usar para atrair e

    conservar perto de si todos aqueles que o rodeiam. Com ironia, a bela mulher alega querer

    utiliz-la, antes de mais, para atrair o prprio filsofo.

    No de somenos importncia a contribuio destas linhas de Xenofonte para a

    histria da magia antiga. certo que Scrates se limita a gracejar com Tedota quando se

    apresenta como algum entendido em sortilgios amorosos, mas o tom irnico e jocoso que

    perpassa todo o dilogo nem por isso ofusca alguns pormenores dignos de realce. Desde

    logo, o facto de o mundo das cortess se encontrar inquestionavelmente ligado magia de

    teor ertico, cujas prticas, ao que parece, eram vistas como mais um dos truques do ofcio.

    Mas o aspecto essencial a reter deste episdio a naturalidade com que Scrates introduz o

    tpico da magia ertica e faz uso de termos tcnicos que lhe esto associados (como ,

    ou ), o que s pode querer significar que a sociedade grega de ento estava

    muito familiarizada com o assunto e com a sua respectiva terminologia. S assim, de resto,

    seria possvel a Xenofonte fazer humor a partir daquela matria58.

    Longe do tom jocoso deste episdio dos Memorveis esto os passos em que Plato

    se refere ao exerccio de prticas mgicas. Contemporneo de Xenofonte, Plato revela-se

    muito preocupado em libertar a sua sociedade de todas as aces injustas. No , por isso,

    de estranhar que o ilustre filsofo se tenha insurgido contra as principais crenas e tradies

    mgicas do seu tempo e, sobretudo, contra aqueles que as praticavam em troca de dinheiro.

    Nos vrios passos em que Plato reage, de forma contundente, contra a actividade dos

    57 A propsito deste poderoso instrumento de atraco usado no exerccio da magia de pendor ertico, vide supra, pp.18-19 e infra, pp. 146-151. 58 Esta no a nica vez em que Xenofonte alude, de modo divertido, ao tema da magia ertica. Na mesma obra, em 2.6.10-13, j havamos assistido a uma curiosa discusso entre Scrates e Critobulo sobre encantamentos erticos (cf. supra, pp. 10-11) e sobre a suposta ligao de Pricles a esse tipo de magia.

  • 36

    feiticeiros59, f-lo sempre de um modo muito geral, sem nunca aludir abertamente magia de

    pendor ertico. Os seus textos deixam-nos, no entanto, testemunhos valiosos sobre prticas

    que esto intimamente ligadas a este tipo de magia. S para ficarmos com um exemplo

    elucidativo deste facto, consideremos um passo de As Leis em que o filsofo, ao insistir no

    carcter enganador das artes mgicas, adianta o seguinte (933b):

    ,

    ,

    .

    Se tivermos em considerao que o uso de figurinhas de cera era um fenmeno muito

    comum no contexto da magia ertica de atraco60, facilmente percebemos a relevncia que

    tm para ns as informaes contidas nestas linhas. Diz-nos Plato que essas

    podiam ser colocadas entrada das portas, nas encruzilhadas ou nos sepulcros,

    esclarecimento muito til para quem se esfora por entender os procedimentos que

    envolviam este tipo de operaes mgicas na Antiguidade grega.

    I.1.7) Herdoto Abandonamos o maior autor da prosa grega, mas prosseguimos no encalo daqueles

    que privilegiaram este veculo de expresso.

    A historiografia grega passou praticamente em silncio o tema da magia ertica.

    Herdoto abriu uma pequena excepo e, em 2.181, brindou o seu auditrio com a histria

    59 Vide, especialmente, R. 364b-e; Lg. 909a-d, 933a-e. Todos estes passos mereceram o comentrio de Ogden (2002: 20-22). Vide tambm Eitrem (1941: 51-53). 60 Cf. infra, pp. 165-169.

  • 37

    surpreendente de Ldice, uma jovem grega originria da cidade de Cirene. Esta mulher

    estava casada com o fara do Egipto, masis, que se debatia com um srio problema: ele

    era incapaz de consumar o casamento, embora conseguisse relacionar-se sexualmente com

    outras mulheres. Enfurecido com a situao, masis acusou a esposa de lhe ter lanado um

    feitio () e avisou-a de que ela no escaparia morte mais terrvel.

    Assustada, Ldice dirigiu ento uma prece silenciosa a Afrodite, com a promessa de que

    enviaria para Cirene uma esttua da deusa, caso o problema de impotncia do marido se

    resolvesse naquela mesma noite. masis recuperou de imediato a virilidade e, a partir

    daquele dia, passou a am-la profundamente.

    Para alm da prece dirigida a Afrodite, que, como j vimos61, uma manifestao

    muito frequente em contextos de magia ertica de atraco, o que importa realar desta

    histria a indicao de que o alegado exerccio de prticas mgicas conduziria Ldice a

    uma morte atroz. As palavras ameaadoras de masis so muito sugestivas pois permitem-

    -nos imaginar o que sucederia (ou poderia suceder) a uma pessoa que, na Grcia do sc. V

    a.C., fosse declarada culpada pelo uso de magia ertica com prejuzo de outrem62. Tambm

    o desfecho da histria de Andrmaca, relatada por Eurpides na pea com o mesmo nome,

    corrobora esta ideia de que as pessoas que eram acusadas de feitiaria de teor amoroso

    contra terceiros recebiam um severo castigo. Os casos de Ldice e de Andrmaca so dos

    poucos testemunhos que nos permitem entrever uma realidade que est praticamente

    remetida ao obscurantismo.

    61 A propsito do Hino a Afrodite de Safo. Cf. supra, pp.14-18. 62 Embora a histria de Ldice tenha lugar no Egipto, bvio que Herdoto considerava que o castigo era perfeitamente compreensvel para a mentalidade grega pois, caso contrrio, teria certamente explicado que se tratava de um costume particular egpcio. Por outro lado, temos tambm de ter em conta que provvel que as medidas tomadas contra aqueles que recorriam s artes mgicas para prejudicar terceiros no fossem exactamente as mesmas em todo o mundo grego, mas tudo o que a esse respeito poderamos acrescentar no passaria de meramente conjectural.

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    I.1.8) Oradores ticos Deixamos o pater historiae, que no seguramente uma das melhores fontes para o

    conhecimento da magia ertica antiga, mas continuamos entre os cultores da prosa grega,

    pois valer a pena considerar as informaes que nos chegaram pela mo dos oradores

    ticos.

    de Antifonte o testemunho mais importante que a oratria nos legou sobre a prtica

    de magia ertica na Grcia antiga. No seu primeiro discurso, escrito na segunda metade do

    sc. V a.C., o orador ateniense d-nos a conhecer um drama familiar que ter tido origem no

    uso de uma poo supostamente afrodisaca. As circunstncias que rodeiam todo o processo

    legal, que nos narrado na primeira pessoa, so um pouco intrincadas, pelo que tentaremos

    resumi-las da forma mais clara possvel.

    Um sujeito annimo explica, em 1.14-20, as razes que o levam a processar a sua

    madrasta como instigadora do crime que tirara a vida ao seu pai (e marido dela) h alguns

    anos atrs. Conta-nos o queixoso que o seu pai tinha um amigo chamado Filneo e que este

    homem sustentava uma concubina, da qual a sua madrasta se fizera amiga. Ao saber que

    Filneo pretendia colocar a rapariga numa casa pblica, a mulher do seu pai ter-lhe- dito

    que tambm ela prpria tinha queixas do marido e que deviam unir-se, em torno de um plano

    comum, para recuperar o afecto dos dois homens. O combinado foi ento o seguinte: ela

    ficava encarregada de arranjar o amavio e a concubina de Filneo tinha a incumbncia de

    fazer com que os dois amigos o ingerissem. Depressa encontraram a ocasio ideal para

    executar o seu intento: um jantar que Filneo iria oferecer ao amigo, aps um sacrifcio que

    teria lugar no Pireu. Quando esse dia chegou, a concubina esperou pelo momento das

    libaes, j no fim do jantar, para misturar o com o vinho. Filneo teve morte

    imediata, pois a rapariga, crente de que estava na posse de um filtro amoroso, vertera uma

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    quantidade muito maior no seu copo. O pai do queixoso, que bebera uma pequena dose da

    tal poo, adoeceu e morreu vinte dias depois. A concubina de Filneo foi torturada e morta,

    mas a outra mulher, aquela que a aconselhara a usar o , escapara ilesa at quele

    momento. o seu enteado, o filho do amigo de Filneo, que reivindica agora em tribunal que

    ela seja acusada de homicdio intencional. Um pouco atrs no seu discurso (1.9), o queixoso

    fizera saber que os escravos da madrasta poderiam ser testemunhas de que j anteriormente

    ela havia atentado contra a vida do marido:

    ,

    (...) ,

    , , .

    No ficamos a conhecer o desenlace desta demanda judicial, nem mesmo as razes

    que a acusada apresenta em defesa prpria. Acabmos de ouvir a argumentao por ela

    utilizada quando, da primeira vez, quis debelar as suspeitas do marido a respeito das

    motivaes que a levaram a fazer uso de . Perante as acusaes do enteado, de

    crer que a mulher tenha voltado a alegar que a sua inteno era apenas fazer com que o seu

    marido a amasse mais. Se, de facto, foi esta a estratgia da defesa, a madrasta do autor da

    aco pode perfeitamente ter sido ilibada, j que, como vimos num passo dos Magna

    Moralia63, o argumento de homicdio involuntrio funcionava em casos muito semelhantes a

    este.

    No obstante o discurso de Antifonte seja, ao que parece, um simples exerccio

    retrico construdo a partir de uma situao imaginria64, evidente que o autor encontrou

    63 Vide supra, p. 24. 64 interessante notar, como fez Ogden (2002: 103), a correspondncia entre os acontecimentos narrados neste primeiro discurso de Antifonte e o mito de Dejanira. Cf. supra, p. 24, n. 36.

  • 40

    inspirao na realidade circundante e, nesse sentido, a histria narrada pelo filho do amigo

    de Filneo esclarecedora em vrios aspectos: para alm de testemunhar o uso catastrfico

    da magia amorosa na poca clssica, deixa claro que o conhecimento deste tipo de magia

    no estava confinado s mulheres de condio humilde, que podiam ser bem mais inocentes

    nestas matrias do que algumas senhoras de posio social elevada.

    Da oratria do sc. IV a.C. chegou-nos apenas uma breve aluso velada ao uso de

    magia de cariz ertico. Em 19.281, Demstenes refere, de passagem, a condenao de uma

    mulher morte. O orador diz-nos apenas que Glauctea, me de squines, costumava

    convocar reunies bquicas, e que, por causa dessas reunies, uma outra sacerdotisa

    acabou por ser executada. A crermos num esclio a este passo, Demstenes est a aludir a

    uma mulher chamada Nino que fora condenada morte por fazer amavios () para

    jovens do sexo masculino.

    I.1.9) Autores de obras cientficas No podemos sair dos textos em prosa sem antes recordarmos os escritores de obras

    cientficas, que nos ofereceram registos de grande relevncia para o entendimento da magia

    amorosa na Grcia antiga. Destes, alguns, pelo menos, merecem especial meno. ,

    obviamente, o caso do grande mestre Aristteles que, em diferentes passos da sua Histria

    dos Animais65, explica em pormenor a natureza controversa do famoso afrodisaco conhecido

    por hipmanes, que um lugar-comum da magia ertica literria 66 . Para alm deste

    importante esclarecimento, Aristteles vai mencionando, sempre que o assunto vem a

    65 Vide, sobretudo, 572a19-29; 577a8-14; 605a2-8. 66 Desenvolveremos este assunto mais frente, a propsito da aluso de Tecrito ao efeito que o hipmanes exerce sobre as guas. Vide infra, pp. 178-183.

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    propsito, os poderes mgicos de determinadas substncias vegetais e animais. Em HA

    505b18-20, por exemplo, ao descrever um pequeno peixe a que damos o nome de rmora,

    diz-nos que esse animal era utilizado na preparao de filtros amorosos67.

    O seu discpulo Teofrasto (que tambm no se esquece do hipmanes! 68 )

    especialmente prolixo em referncias aos poderes mgicos das plantas. Tendo como

    principais fontes de informao os (herbanrios profissionais que reuniam razes e

    erva