O IDÍLIO XV DE TEÓCRITO: AS SIRACUSANAS OU AS...
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLSSICOS
O IDLIO XV DE TECRITO: AS SIRACUSANAS OU AS
MULHERES QUE CELEBRAM ADNIS.
Hlio Ramos da Silva
Mestrado em Estudos Clssicos
Edio e Traduo de Textos Clssicos
2011
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLSSICOS
O IDLIO XV DE TECRITO: AS SIRACUSANAS OU AS
MULHERES QUE CELEBRAM ADNIS.
Hlio Ramos da Silva
Mestrado em Estudos Clssicos
Edio e Traduo de Textos Clssicos
2011
Tese orientada pela Prof.
Doutora Ana Alexandra
Alves de Sousa
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1
Resumo
Este trabalho consiste na traduo do Idlio XV de Tecrito, a partir do texto editado por
A. S. F. Gow (Cambridge, 1952), acompanhada de um estudo introdutrio e respectivas
notas de comentrio.
Palavras-chave
Tecrito Idlio XV Mimo urbano Traduo Siracusanas
Abstract
The present work consists of a translation of Theocritus Idyll XV, based on the text
established by A. S. F. Gow (Cambridge, 1952), with an introductory study and
commentary notes.
Keywords
Theocritus Idyll XV Urban mime Translation Syracusans
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2
Index
3 Agradecimentos
4 Observaes preliminares
6 Parte I- O poeta e a sua obra
7 1. Vida
7 1.1. Fontes antigas
9 1.2. Fontes autobiogrficas
10 2. Obra
11 2.1. O conceito de e o significado de idlio
17 3. Histria do texto
17 3.1. Edio de Tecrito na Antiguidade
18 3.2. A tradio manuscrita e papirolgica
20 Parte II- O Idlio XV
21 1. Tradio literria e eventuais fontes
23 2. Insero do idlio na sua poca
24 3. O poema
24 3.1. Sinopse
25 3.2. Localizao da aco no tempo e no espao
26 3.3. Carcter dramtico do idlio
27 3.4. Caracterizao das personagens
28 3.4.1. As personagens principais
32 3.4.2. As personagens secundrias
33 3.4.3. As personagens mudas
34 3.5. Temas
36 3.6. Comentrio lingustico, estilstico e mtrico
36 3.6.1. Lngua
39 3.6.2. Estilo
44 3.6.3. Mtrica
46 Parte III Traduo e notas de comentrio
76 Anexos
83 Bibliografia
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3
Agradecimentos
Professora Doutora Ana Alexandra Alves de Sousa. Foi minha professora de
grego desde o primeiro momento e em muito me inspirou o gosto por esta lngua que j
estava destinada a acompanhar-me para sempre. Foi a escolha mais acertada para me
conduzir neste trabalho. Obrigado pelas crticas, solues e confiana.
Um muito obrigado a todo o restante corpo docente do Departamento de
Estudos Clssicos que ao longo de dez anos se tem cruzado no meu caminho abrindo-
me horizontes e partilhando os seus conhecimentos.
Aos amigos pelo seu contributo e amizade.
minha famlia e em especial minha me, inspirao diria e apoio contnuo
nos meus projectos e odisseias.
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4
Observaes preliminares
Na citao de autores e obras da Antiguidade grega, seguimos as abreviaturas de
Liddel, H. G. & Scott, R. 1996. A Greek-English Lexicon. Oxford (sigla LSJ); para a
Antiguidade latina aquelas de Glare, P. G. W. 1982. Oxford Latin Dictionary. Oxford.
Quando os exemplos provm do Idlio XV, entre parnteses coloca-se apenas o
verso em que ocorre o termo citado; quando provm de outro idlio, a localizao indica
o idlio e o verso.
As publicaes peridicas so identificadas pelas siglas de LAnne
Philologique.
Ao longo da exposio, as edies, tradues, lxicos, comentrios e estudos
citados na bibliografia final so apenas referidos pelo apelido do autor, ano de
publicao e pginas (quando conveniente).
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5
It is a page torn fresh out of the book of human life.
What freedom! What animation!
What gaiety! What naturalness!1
Matthew Arnold
1 Essays in Criticism (1
st series, 1900, 205).
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6
PARTE I - O POETA E A SUA OBRA
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7
1. Vida
1.1 Fontes antigas
A Antiguidade legou-nos escassos dados biogrficos sobre a vida de Tecrito.
Alm do que podemos retirar dos seus poemas, existem algumas informaes
controversas que encontramos nas fontes antigas. As mais fidedignas so a entrada no
lxico Suda, uma Vida de Tecrito, que se encontra nalguns manuscritos2, e um
epigrama da Antologia Palatina3, que comentaremos.
No lxico Suda l-se4:
[...]
, , ,
.
.
, , , , -
, , .
, , -
, .
[] h tambm um outro Tecrito, filho de Praxgoras e de Filina, ou de
Simico, dizem outros; siracusano ou de Cs (na opinio de alguns). Estabeleceu-se em
Siracusa. Escreveu os chamados poemas buclicos em dialecto drico. H quem lhe
atribua tambm estas obras: Prtides, Esperanas, Hinos, Heronas, Lamentos, elegias
e jambos, epigramas. Note-se que existiram trs poetas buclicos, o j referido Tecrito,
Mosco da Siclia e Bon de Esmirna, proveniente duma terriola chamada Flossa.
Vida de Tecrito (Wendel, 1914, 1-2):
a.
, , (VII 21) -
2 Nomeadamente em K, E, A, P, T, G.
3 Cf. Gow, 1952
2, vol. 1, xv-xvi, ou Garca Tejeiro & Molinos Tejada, 1986, 9-14 para um levantamento
completo dessas referncias (inclusive nos scholia). 4 As tradues so nossas, salvo quando indicao em contrrio.
-
8
, -
, '
. ,
(VII 40). -
.
. -
.
b. ,
.
(a) Tecrito, o poeta buclico, era siracusano de origem, filho de Simico como
ele mesmo diz: 'Simquidas, para onde arrastas tu os ps ao meio-dia?'5 (7.21). Alguns
afirmam que Simquidas alcunha (parece, de facto, que era de nariz chato6) e que teve
como pai Praxgoras e como me Filina; foi discpulo de Filitas e de Asclepades, aos
quais faz referncia (7.40). Viveu na poca de Ptolemeu Filadelfo, filho de Ptolemeu
filho de Lago. Nascendo dotado para a poesia buclica, alcanou grande fama. Foi
chamado Tecrito, ainda que, segundo alguns, se chamasse Mosco.
(b) Note-se que Tecrito foi contemporneo de Arato, de Calmaco e de
Nicandro. Viveu na poca de Ptolemeu Filadelfo.
Antologia Palatina 9.434:
, ' ,
,
' ' .
Existe outro de Quios; mas eu, Tecrito, o que escrevi estes poemas,
sou um dos muitos siracusanos
5 Traduo de Loureno, 2006, 161.
6 O nome Simico tem origem no adjectivo , de nariz achatado.
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9
e sou filho de Praxgoras e da ilustre Filina.
Nao adoptei nenhuma Musa alheia.7
A tradio que aponta Cs como lugar de nascimento e Simico como pai de
Tecrito descartada pelo facto de Tecrito em dois passos dos seus poemas dar a
entender que siracusano (11.7 e 28.16-18). Por outro lado, os nomes Praxgoras e
Filina esto devidamente atestados. A identificao de Tecrito com Simquidas, que
fala na primeira pessoa, no Idlio VII levou a considerar este nome como um
patronmico de Simico. Podemos ento concluir que Tecrito filho de Praxgoras e
Filina e ter nascido em Siracusa no ltimo quartel do sc. IV, por volta de 310, onde
passou uma parte da sua vida.
1.2 Fontes autobiogrficas
Ainda que se tenha colocado como hiptese do seu nascimento a ilha de Cs,
tendo por base a entrada no lxico Suda que sugere isso mesmo, em grande parte por
causa da figura de Simquidas no Idlio VII, Tecrito diz na sua obra que siciliano
(11.7 e 28.16).
A sua passagem por Cs, onde florescia uma influente escola potica, ter-se-
dado aps a partida da Siclia8. A ter conhecido personalidades importantes da poca,
como Filitas de Cs e Asclepades de Samos, e ter-se- tornado amigo do mdico e
poeta Ncias, todos eles mencionados nos seus Idlios9.
7 Duas questes tm sido levantadas em relao a este epigrama. Por um lado, a quem se refere este outro
de Quios? Seria a Homero como defendem uns (Wilamowitz, 1906, 125ss.; Halperin, 1983, 250-253) ou
a Tecrito, o sofista, contemporneo do poeta buclico e tambm originrio da mesma ilha? (como
defendem Gow, 19522, vol. 2, 549-550; Cameron, 1995, 422-426; Gutzwiller, 1996, 136-137). No entra
no mbito do nosso trabalho propor uma soluo nem to pouco resolver a questo. Tambm o ltimo
verso do epigrama difcil de compreender. Na nossa perspectiva explica-se por um novo tipo de poesia e
uma nova Musa terem surgido com Tecrito, no tendo por isso mesmo adoptado uma Musa alheia,
fosse ela da pica (como afirmam os que vem Homero no outro de Quios), da lrica ou outro gnero
literrio. 8 No Idlio XVI, Encmio a Hiero ou As Graas, Tecrito, sublinhando a importncia da poesia como
meio de glorificar e imortalizar os governantes, e destacando os seus poemas, que identifica com as
prprias Graas, faz um apelo a Hiero II de Siracusa (estratego por volta de 275) para obter patrocnio.
Esta tentativa frustrada de buscar patrocnio na sua terra natal ter levado Tecrito at Cs e depois a
Alexandria onde encontrou apoio na corte dos Ptolemeus. 9 Lindsell, 1937, 78-93, demonstrou que Tecrito era um grande conhecedor da flora do Egeu tendo posto
a hiptese de este ter desenvolvido estudos de botnica numa afamada escola da ilha. Filitas de Cs (tutor
-
10
Os Idlios XIV, XV e XVII deixam claro, tal como o fragmento de Berenice, que
o poeta j se encontraria sob influncia da realeza ptolemaica, qual teria apelado aps
a tentativa de patrocnio gorada dirigida a Hiero. Muito provavelmente conheceu
Calmaco, com quem partilhava princpios poticos (7.45ss.), e Apolnio de Rodes
tambm no lhe seria desconhecido. H, de facto, dependncias claras entre o Idlio
XVII e os Hinos a Zeus e a Delos, de Calmaco, e os Idlios XIII e XXII tm temas
comuns a episdios dos Argonautica de Apolnio10
. No h qualquer referncia a que
possa, nalgum momento, ter desempenhado funes no Museu ou na Biblioteca,
semelhana de Calmaco e Apolnio. As referncias a Arsnoe II como estando ainda
viva e casada com Ptolemeu II Filadelfo do-nos uma datao possvel para a sua
presena em Alexandria e para estes poemas, pois o casamento da rainha teria ocorrido
por volta de 278 e a sua morte em torno do ano 270. Logo, estes Idlios teriam sido
escritos dentro desse perodo. Tambm sabemos que Hiero II nomeado general em
Siracusa por volta de 275. Como Tecrito se refere ao perigo cartagins no Idlio XVI,
podemos pensar que ter abandonado a ilha por essa altura. No h notcia de uma data
para a sua morte mas, em geral, aceite a dcada de 260-50 para o seu
desaparecimento.
2. Obra
Da obra de Tecrito chegaram at ns trinta Idlios, que perfazem cerca de 2800
versos (posteriormente, no Papiro de Antnoe, apareceram fragmentos de um outro
poema); vinte e quatro epigramas provenientes da Antologia Palatina; um fragmento do
poema Berenice (fr. 3, Gow, 19522, vol. 1, 238, que nos chegou por intermdio de
Ateneu) e um intitulado Flauta de P, poema figurado, cujos versos de
diferente comprimento eram dispostos de modo a sugerir a forma de um objecto. Se
tomarmos em conta o que nos diz o lxico Suda (cf. p.7), seguramente o corpus
teocritiano teria uma extenso maior do que a que conhecemos. Consideram-se esprios
de Ptolemeu II Filadelfo) e Asclepades de Samos so referidos em 7.40. Ncias mencionado nos Idlios
XI, XIII e XXVIII. 10
Cf. Khnen, 2001, 73-92, para pormenores sobre a cronologia e as relaes entre os trs poetas e
possveis influncias.
-
11
os Idlios VIII, IX, XIX, XX, XXI, XXIII, XXV, XXVI, XXVII, alguns dos epigramas
e o poema Flauta de P.11
.
Os epigramas assumem as formas tradicionais associadas ao gnero:
dedicatrias, inscries fnebres, celebrao de poetas, entre outras. Sob a designao
de Idlios encontramos gneros e temas variados: poemas buclicos ou pastorais, mimos
urbanos e rsticos, eplios, encmios e poemas de amor.
A variedade de formas repercute-se tambm a nvel mtrico. Apesar da
prevalncia do hexmetro dactlico (I-XXVIII), temos tambm metros lricos nos
poemas de inspirao elica (XXIX-XXXI) e no Idlio XXVIII (pelo seu carcter e
tamanho quase um epigrama) e metros diversificados nos epigramas, nos quais se
destaca o dstico elegaco, tambm usado numa seco do Idlio VIII.
Segundo a tipologia dos prprios poemas h diferenas dialectais. Os poemas de
inspirao sfica e alcaica usam o dialecto elico (XXIX-XXXI). O dialecto jnico-
pico surge nos idlios XII-XIII, XVI-XVII, XXII, XXIV-XXV (eplios, hinos,
encmios). No ltimo grupo (I-XI, XIV, XV, XVIII-XXI, XXIII, XXVI, XXVII), no
qual se encontram os poemas que celebrizaram Tecrito, os chamados buclicos,
predominam os elementos dricos, embora seja possvel falar em mescla dialectal,
como veremos no captulo seguinte. Esta facies drica insere-se na tradio do teatro
siciliano de Sfron e Epicarmo.
2.1. O conceito de e o significado de idlio
Numa poca em que a lngua quotidiana servia um objectivo funcional a ,
lngua comum, era a lngua do povo, da burocracia, dos actos oficiais surge uma
poesia que olha para as formas poticas tradicionais com grande nsia de inovao. A
busca de variedade temtica e mtrica, aliada a um culto da perfeio, originou uma
poesia caracterizada por uma mistura de temas, formas e dialectos, segundo o princpio
da , preconizado por Calmaco, que praticou a diversidade temtica, lingustica,
mtrica e formal12
.
11
Limitamo-nos a listar os poemas que a tradio, por razes lingusticas e mtricas, tem apontado como
esprios. Para a autenticidade dos epigramas, cf. Rossi, 2001, 355-359. 12
Calmaco foi um defensor da e, em particular, da , como afirmou no Jambo XIII:
[....] ...[....]. , ' [], []
-
12
A etimologia sugere que os 13
, um plural neutro do diminutivo de ,
forma, significariam pequenas formas, ou seja, composies curtas de gnero
variado14
, o que se adequa s tendncias estticas da poca helenstica. O termo foi
adoptado pelos comentadores antigos para designar os poemas de Tecrito. Uns
scholia15
associam-no ideia de realismo, na medida em que as palavras retratam com
verosimilhana as personagens ( ); outros
relacionam o termo com as tipologia do discurso dramtico e narrativo, podendo
combinar ambos (
).
esta variedade de cenrios e de temas que pretendemos demonstrar no quadro
que se segue e que reflecte a presena deste princpio esttico na obra de Tecrito.
Quadro sinptico dos Idlios de Tecrito:
Idlios Ambiente e
tempo
Personagens
e ocupaes
Estrutura
enunciativa
Tema
I. Trsis Ambiente
campestre;
tarde
Pastor Trsis
e um
cabreiro
Dilogo e
canto
Mitolgico: a morte de
Dfnis
II. A
feiticeira
Ambiente
urbano;
noite
Simeta e a
escrava
Tstilis
Monlogo Simeta recorre a prticas
mgicas para recuperar
o seu amor
III. A Ambiente Um cabreiro Monlogo e O cabreiro faz uma
(Pfeiffer fr. 303.30-33). Estes conceitos reflectem-se na obra de Calmaco no cultivo de
vrias formas literrias, na variedade mtrica e dialectal: Aitia, Jambos, Hinos, Epigramas, Hcale. 13
Cf. Gutzwiller, 1996, 129ss.. 14
Plnio-o-Jovem (Ep. 4.14.9) usa o termo para designar poemas de curta extenso. 15
L-se nos Scholia (Wendel, 1914, 5):
, ,
.
, .
.
,
. ,
.
-
13
serenata pastoril canto serenata
()
sua amada Amarlis
IV. Os
pastores
Ambiente
pastoril
O cabreiro
Bato e o
vaqueiro
Cridon
Dilogo Conversa do quotidiano
entre os protagonistas
V. O
cabreiro e o
pastor de
ovelhas
Ambiente
pastoril
O cabreiro
Comatas e
Lcon
Dilogo e
canto
Os protagonistas trocam
acusaes atravs dum
canto amebeu
VI. Os
cantores
buclicos (I)
Ambiente
pastoril;
tarde de
Vero
O vaqueiro
Dfnis e
Dametas
Dilogo e
canto
Disputa entre os
protagonistas; tema: o
amor de Polifemo por
Galateia
VII. As
Talsias
Ambiente
pastoril;
tarde de
Vero em
Cs
Simquidas e
o cabreiro
Lcidas
Dilogo e
canto
A caminho das Talsias,
o encontro com Lcidas
desencadeia uma troca
de cantos
VIII. Os
cantores
buclicos
(II)
Ambiente
pastoril
Os pastores
Menalcas e
Dfnis
Dilogo e
canto
Menalcas desafia Dfnis
a cantar na presena
dum juiz
IX. Os
cantores
buclicos
(III)
Ambiente
pastoril
Os pastores
Menalcas e
Dfnis
Dilogo e
canto
Os protagonistas so
desafiados a cantar por
um annimo
X. Os
ceifeiros
Ambiente
agrcola; de
manh
Mlon e
Buceu
Dilogo e
canto
Os protagonistas entoam
cantos cujos temas so o
trabalho e o amor
XI. O Ambiente Polifemo Monlogo e Mitolgico: Repudiado
-
14
ciclope pastoril canto por Galateia, Polifemo
encontra consolo no
canto
XII. O
amado
Ambiente
pastoril
Um jovem Monlogo Celebra-se a chegada do
jovem amado
XIII. Hilas Ambiente
campestre
Narrador Narrao Mitolgico: o rapto de
Hilas e a busca
desesperada de Hracles
XIV.
squinas e
Tinico
Ambiente
urbano
squinas e
Tinico
Dilogo squinas lamenta-se
pelo insucesso da sua
relao amorosa. O
amigo aconselha-o a
juntar-se ao exrcito de
Ptolemeu para esquecer
os problemas.
XV. As
siracusanas
Ambiente
urbano; de
manh
Gorgo e
Praxnoa
Dilogo e
canto
As peripcias das
protagonistas num dia
de festa (em honra de
Adnis) em Alexandria.
XVI. As
Graas
Ambiente
urbano
Narrador Canto Encmio a Hiero II de
Siracusa. O narrador
reala a funo
imortalizadora da poesia
e tenta obter patrocnio
do governante.
XVII.
Encmio a
Ptolemeu
Ambiente
urbano
Narrador Canto Tecrito louva os feitos
e a grandeza de
Ptolemeu II Filadelfo
XVIII.
Epitalmio
de Helena
Ambiente
urbano
Narrador Canto Na noite de npcias um
grupo de donzelas canta
um epitalmio recm-
casada Helena.
-
15
XIX.
Ladro de
mel
Ambiente
campestre
Narrador Narrao Eros picado pelas
abelhas enquanto rouba
mel.
XX. O
pequeno
vaqueiro
Ambiente
pastoril
Vaqueiro Monlogo As tentativas goradas de
um vaqueiro para
conquistar a amada
Eunice.
XXI. Os
pescadores
Ambiente
campestre;
de noite
Asfalio e
outro
pescador
annimo
Narrao/
Dilogo
O tema da pobreza e o
sonho dum pescador
com um peixe de ouro
que lhe mudaria a vida.
XXII. Os
Dioscuros
Ambiente
campestre
Castor e
Plux
Canto
(hino)/dilogo
Mitolgico: A vitria de
Plux sobre mico e a
luta de Castor com
Linceu
XXIII. O
apaixonado
Ambiente
urbano
Dois jovens
amantes
Narrao Um jovem apaixonado
no resiste indiferena
do seu amante e enforca-
se. Eros castiga o
imperturbvel amante
matando-o debaixo da
sua prpria esttua no
ginsio.
XXIV. O
pequeno
Hracles
Ambiente
campestre
Hracles Narrao Mitolgico: Hracles
mata as duas cobras
enviadas por Hera.
XXV.
Hracles
matador do
leo
Ambiente
campestre
Hracles Narrao Mitolgico: Trs
episdios de Hracles na
corte do rei Augias.
XXVI. As
Bacantes
Ambiente
campestre
Penteu Narrao Mitolgico: A morte de
Penteu s mos das
-
16
Bacantes.
XXVII.
Conversa
amorosa
Ambiente
pastoril
Dfnis e uma
pastora
Dilogo Conversa amorosa entre
os protagonistas.
XXVIII. A
roca
Narrador Dedicatria Tecrito oferece uma
roca de marfim mulher
do seu amigo Ncias.
XXIX.
Canto de
amor (I)
Apaixonado Canto Declarao ao amado
indiferente.
XXX. Canto
de amor (II)
Apaixonado Canto O apaixonado lamenta-
se do amor que sente
pelo seu jovem amante.
A especificao semntica do termo idlio como composio potica
campestre, que se desenrola numa atmosfera como que encantada, deve-se ao grande
xito dos poemas de carcter tipicamente pastoril cultivados na poca helenstica por
Mosco, Bon e Tecrito16
. Entre os Romanos, no sc. I a.C., Verglio, tomando como
modelo esta poesia pastoril, nomeadamente os Idlios de Tecrito de ambincia
buclica, comps dez clogas, que, no decorrer das pocas, inspiraram os poetas
levando-os a versejar o amor em cenrios campestres. Foi por intermdio de Verglio,
alis, que a poesia buclica se tornou forma de expresso literria na Europa ocidental.
No sculo I d.C temos as clogas de Calprnio Sculo e mais tarde, no sculo III, as de
Nemesiano. No Renascimento italiano o tema pastoril volta a ganhar fora com a obra
de Dante, Petrarca, Boccaccio, atingindo o seu desenvolvimento mximo com a Arcdia
de Iacopo Sannazaro (c. 1484-85), onde o napolitano Sincero (o prprio autor), procura
refgio para os seus males de amor no mundo dos pastores da Arcdia. De Itlia, o
gnero buclico e a temtica pastoril espalharam-se por toda a Europa. Em Portugal,
merecem referncia S de Miranda, Bernardim de Ribeiro, Cames, Antnio Ferreira,
todos eles cultivadores de clogas.
16
Em mbito grego, so ainda de destacar as obras de Longo, Dfnis e Cloe, de Nono, As Dionisacas, ou
j na poca bizantina, Drosila e Cricles de Nicetas Eugeniano (sc. XII).
-
17
3. Histria do Texto
3.1. Edio de Tecrito na Antiguidade
O primeiro indcio que temos duma possvel recolha de poemas buclicos advm
dum epigrama atribudo ao gramtico Artemidoro de Tarso (primeira metade do sc. I
a.C.) que figura na Antologia Palatina como 9.205:
, '
, .
As Musas buclicas, outrora dispersas, esto agora todas reunidas
num s estbulo, num s rebanho.
Ainda que seja claro que este epigrama estaria destinado a acompanhar uma
edio de poemas ditos buclicos, no podemos ter a certeza se estes seriam apenas de
Tecrito ou se incluiriam outros poetas. Wilamowitz (1905, iii-v) ps a hiptese de que
Artemidoro tivesse reunido uma coleco de poemas buclicos de vrios autores e que o
seu filho Ton tivesse sido responsvel por uma edio comentada apenas de Tecrito,
precedida do epigrama da Antologia Palatina 9.434 que anteriormente apresentmos17
.
Mas, na realidade, no temos provas suficientes para comprovar esta situao, como j
Gow havia notado na sua edio, porque o facto de nenhum papiro apresentar poemas
buclicos de outro autor a no ser de Tecrito torna impossvel validar a hiptese da
edio de Artemidoro. Muitos dos papiros que foram descobertos durante o sc. XX
vieram corroborar essa situao; nestes os poemas so apresentados por uma ordem que
deita por terra a teoria da colectnea buclica. A notcia de que outros autores
helensticos teriam sido responsveis pelas suas prprias edies deixa sempre essa
possibilidade em aberto para o caso de Tecrito. Se houve edio do prprio, se os
poemas circularam individualmente e posteriormente algum conhecedor da obra de
Tecrito os reuniu so questes que at agora no obtiveram uma resposta consensual
entre os estudiosos.
17
cf. p.8.
-
18
Para alm de Artemidoro e de Ton conhecem-se outros comentadores de
Tecrito. J na Antiguidade prxima do autor, Asclepades de Mirleia (sc. I a.C.)
parece ter sido um dos seus comentadores, ainda que s conheamos algumas citaes
que se encontram nos scholia. Outros, dos quais pouco ou nada se sabe alm do nome,
so Muncio, Teeteto e Amaranto.
3.2. A tradio manuscrita e papirolgica
Os cerca de vinte papiros teocritianos situam-se entre o sc. I e os scs. VI-VII
d.C. e tm sido peas fundamentais para corrigir os erros da tradio manuscrita
medieval e para confirmar conjecturas. Destes, destacamos o Papiro de Oxirrinco 2064
+ 3548, de finais do sc. II, e o Papiro de Antnoe de cerca de 500 d.C., publicado em
193018
. Este papiro, o nico usado por Gow na sua edio, preserva nas dezasseis
folhas que o compem partes dos poemas I, V, X, XII, XIII, XVII, XXII, XXIV,
XXVIII, XXIX, XXX, XXXI e, praticamente na sua totalidade, os Idlios II, XIV, XV,
XVIII e XXVI. Este tem para o nosso trabalho uma especial importncia visto
apresentar por completo o Idlio XV.19
Dos cerca de cento e oitenta manuscritos buclicos que chegaram at ns
nenhum anterior ao sc. XIII, estando, portanto, todos eles, sob a influncia dos
estudiosos do renascimento bizantino, entre os quais se encontram os reputados
Mximo Planudes, Manuel Moscpulo e Demtrio Triclnio.20
Carl Wendel (1914) distinguiu trs famlias de manuscritos que esto
organizadas de acordo com a ordem apresentada pelos poemas:
Ambrosiana: Idlios I, VII, III-VI, VIII-XIII, II, XIV, XV, XVII, XVI,
XXIX; Epigramas e ainda os poemas figurados de Smias Asas e
Machado.
18
Hunt & Johnson, 1930, 19ss.. 19
Cf. a reproduo do Papiro de Antnoe, que contm parte do Idlio XV na seco dos Anexos (fig.3). 20
Manuel Moscpulo foi o autor dum comentrio aos Idlios I-VIII de Tecrito, posteriormente
aumentado por Demtrio Triclnio.
-
19
Laurenciana: Idlios I, V, VI, IV, VII, III, VIII-XIII (II, XIV-XVI, XXV;
Mosco e Bon; Flauta de P e Altar, poemas figurados de autoria
controversa)21
.
Vaticana: Idlios I-XVIII.
Destas trs famlias a Ambrosiana considerada a mais fidedigna e a Vaticana, a
menos credvel, com base na ordem dos poemas apresentada pelos papiros mais antigos.
A tradio manuscrita de Tecrito aponta para um nico arqutipo, devido aos
erros graves que apresenta. Gow representa-o como no seu stemma codicum22
.
A ordem tradicional dos poemas, de I a XVIII, segue a Editio princeps de Bonus
Accursius (Milo, 1480), que usou um manuscrito da famlia Vaticana, a nica que
apresenta esta ordem (as outras duas famlias e papiros contradizem-na); a sequncia de
XIX-XXIX deve-se edio de Henricus Stephanus (Genebra, 1566). Os poemas XXX
e XXXI s foram adicionados mais tarde de acordo com a descoberta dos mesmos.23
21
O interesse crescente suscitado pela poesia de Tecrito levou a que novas composies fossem
acrescentadas ao corpus buclico (e consequentemente atribudas a este); os poemas apresentados entre
parnteses foram acrescentados famlia Laurenciana, que por isso mesmo, recebeu a designao de
ampliada ou tricliniana j que vrios desses textos contm scholia de Demtrio Triclnio. Esta a
ordem por que aparecem no cdice identificado por Tr em Gow, 1952. 22
Cf. Gow, 1952, vol. 1, liii. 23
O Idlio XXX apesar de referido por Lscaris no sec. XVI (conhecido atravs dum manuscrito que se
encontrava no Monte Atos o qual posteriormente desapareceu) s foi redescoberto e publicado em finais
do sculo XIX (aparece no cdice Ambrosiano 104). Os escassos fragmentos que nos chegaram do Idlio
XXXI provm do Papiro de Antnoe publicado em 1930.
-
20
PARTE II O IDLIO XV
-
21
1. Tradio literria e eventuais fontes
O Idlio XV insere-se na tradio do mimo, designao que se atribui a pequenas
peas dramtico-cmicas, nas quais um ou mais actores encenavam uma cena da vida
quotidiana, em geral das camadas mais humildes da sociedade. Dava-se mais nfase
descrio das personagens do que ao cenrio. Grupos de actores representavam estes
textos que eram acompanhados de msica; as representaes tinham lugar em mercados
e simpsios e aconteciam desde o sc. V a.C..
O nico autor de mimos conhecido na poca pr-helenstica Sfron de
Siracusa, contemporneo de Eurpides, que os escreveu em prosa rtmica e dialecto
drico. Sabes-se que Plato foi seu admirador e que levou para Atenas os seus textos24
.
Os cerca de cento e cinquenta fragmentos e uma dezena de ttulos que possumos25
retratam situaes do dia-a-dia e profisses; exemplificam-no O mensageiro, O
pescador e o campons, As costureiras, O pescador de atum, entre outros. Seriam
declamados, cantados ou representados sem grande aparato cnico. Os mimos de Sfron
classificam-se em masculinos ou femininos de acordo com os protagonistas. Devido ao
limitado nmero de textos que nos chegaram deste poeta dficil avaliar at que ponto
Tecrito depende do seu conterrneo. Mas inspirar-se em Sfron26
seria, alm do mais,
uma forma de o homenagear, hiptese plausvel atendendo s semelhanas temticas
que os ttulos e alguns fragmentos deixam pressupor (cf. Idlio II). No entanto, com os
dados de que dispomos, no possvel avanar muito nesta anlise.
A hypothesis do Idlio XV refere como fonte para As siracusanas um mimo de
Sfron entitulado As mulheres que assistem s stmias; mas, pelo contexto do idlio, as
festas das Adnias, organizadas por Arsnoe II, em Alexandria, podemos supor que
Tecrito no dever muito ao mencionado mimo de Sfron, alm da ideia central da
visita de umas mulheres a uma celebrao pblica, como alis, a hypothesis a seguir
apresentada sublinha:
.
.
. 24
Cf. D. L. 3.18 25
Cf. Hordern, 2004, 40ss. 26
Cf. nota de comentrio ao v. 2.
-
22
. '
.
. , ,
' . (Wendel, 1914, 305)
Regista-se de seguida o idlio As siracusanas ou As mulheres que celebram
Adnis. Apresenta umas mulheres de origem siracusana que vivem em Alexandria e,
que de acordo com o ritual saem para ir festividade do cortejo de Adnis adornado por
Arsnoe, mulher do Filadelfo. Gorgo vai a casa de Praxnoa e sai com ela para a
festividade. O poema parte do texto de Sfron As mulheres que assistem s stmias e
diverge da feio cnica daquele. Em Alexandria durante as Adnias tinham o costume
de exibir imagens de Adnis e de as lanar ao mar de acordo com a tradio. As
siracusanas ao sair de casa surpreendem-se com a multido e com tudo o que acontece
no meio da multido. Tecrito, que vivia em Alexandria, descreve, em honra da rainha,
o violento tumulto dos homens, e uma jovem que entoa um canto e que celebra nesse
canto a excelncia de Arsnoe.
Um outro poeta autor de mimos (escritos, neste caso, em verso jmbico e
dialecto jnico, e por isso designados mimiambos) trata os temas que aparecem em
Sfron e em Tecrito. Referimo-nos a Herodas, contemporneo de Tecrito (ou um
pouco posterior, j sob o Evrgeta) e talvez oriundo de Siracusa ou de Cs, cenrio de
alguns dos seus poemas. Um papiro de Oxirrinco, publicado em 1891, restituiu tudo o
que se conhece deste autor: sete poemas completos, um oitavo muito fragmentado e os
primeiros versos do que seria o nono poema. O Mimiambo IV, As mulheres no templo
de Asclpio, tem assinalveis paralelos temticos com o Idlio XV: duas mulheres
acompanhadas pelas escravas dirigem-se ao templo de Asclpio para fazer uma
oferenda e maravilham-se a observar as obras de arte que a se encontram.27
27
Cf. Di Gregorio, 1997, 26ss.
-
23
2. Insero do idlio na sua poca
Costuma agrupar-se o Idlio XV com os Idlios II e XIV por todos eles se
passarem em ambientes citadinos, os chamados mimos urbanos28
. Decorrendo a aco
em Alexandria, As siracusanas constituem, de facto, um documento importante para
conhecermos esta cidade do sc. III a.C.: uma cidade cosmopolita (era a maior
metrpole do Mediterrneo na poca), plena de azfama, onde habitaria gente oriunda
de todo o mundo grego. O prprio poema reune personagens de vrias provenincias: as
protagonistas so duas siracusanas; um dos desconhecidos que critica o sotaque aberto
das mesmas seria originrio de outra zona do mundo grego; a cantora descrita como
filha da argiva e, por isso, oriunda da Grcia continental; por fim, feita uma
referncia aos nativos egpcios que coabitariam com todas estas gentes gregas.
O conhecimento que Tecrito demonstra da cidade e dos seus costumes, tornam
plausvel a tese da hypothesis de que o poeta se encontraria em Alexandria quando
escreveu o idlio.
H, no poema, vrias referncias a Arsnoe II, elogiada (e comparada a Helena)
pela organizao das festas em honra de Adnis29
, e tambm a Ptolemeu (vv. 23-24; 46-
50; 109-111). Podemos, portanto, dizer que As siracusanas exaltam a grandeza dos
Ptolemeus e de Alexandria, assumindo funes de poema propagandstico. Sob a
influncia da corte ptolemaica so lgicas e esperadas as referncias aos soberanos,
algumas vezes de forma explcita, outras nem tanto. Assim as aluses a Golgos e Idlio
(v. 100), a Mileto e Samos (v. 126) e aos perfumes da Sria (v. 114), na cano de
Adnis, remetem-nos para as recentes conquistas dos Ptolemeus e, por conseguinte,
para a sua grandeza. A forma como Tecrito faz esta mescla entre fico e realidade
merece realce.
A referncia a Arsnoe II j casada com o seu irmo Ptolemeu II permite-nos
datar com alguma segurana a composio do poema; o casamento real deu-se em 278
(ou 274) e Arsnoe II faleceu em Julho de 270 (ou 268). A aluso deificao de
Berenice (vv. 106ss.) ajudaria a encontrar o ano preciso, se soubssemos quando esta
28
Cf. o estudo de Burton, 1995, no qual se focam questes relacionadas com a mobilidade e imigrao,
as relaes entre homem e mulher e a influncia do patrocnio real no imaginrio potico. 29
Para Burton (1995,134), o valor deste encmio depreende-se com o facto de ser o principal testemunho
da celebrao das Adnias na poca helenstica.
-
24
teve lugar.30
As aluses histricas e referncias a personagens contempraneas so de
extrema importncia para a datao dos poemas. Mas poucos Idlios de Tecrito
possibilitam fazer estas associaes cronolgicas de forma coerente31
.
3. O poema
3.1. Sinopse
Gorgo, acompanhada pela escrava utiquis, chega a casa de Praxnoa com o
intuito de a levar consigo s festas em honra de donis, que decorreriam no palcio
real. unoa, a escrava da anfitri, prepara um banco com uma almofada para que a
visitante se instale.
Depois de uma breve troca de palavras sobre a azfama da cidade, sobre a
localizao geogrfica da casa de Praxnoa e sobre os maridos, Gorgo desafia a amiga
para ir ao festival (vv. 4-24). Praxnoa, depois de alguma hesitao em aceitar a
proposta feita, prepara-se para sair, tomando um banho e mudando de vestes (vv. 25-
39). Antes de deixar a casa, dirige-se ao filho, ainda beb, e d as ltimas ordens
escrava Frgia, que ficar a tomar conta da criana e do lar (vv. 40-43).
As duas senhoras, acompanhadas pelas suas escravas, avanam pelas ruas.
Praxnoa fica perplexa perante a azfama, elogia Ptolomeu e assusta-se quando surgem
os cavalos do rei (vv. 44-59). Encontram uma velha, a quem Gorgo pede informaes
(vv. 60-64). Finalmente chegam s portas do palcio, onde a confuso ainda maior (v.
65). Decidem dar as mos, na tentativa de entrar mais facilmente (vv. 66-68). Quando a
veste de Praxnoa se rasga aparece um primeiro desconhecido, que as auxilia; apenas
unoa fica para trs (vv. 69-76).
Vencida a extrema dificuldade que representou a entrada, j no interior do
palcio, falam com admirao das magnficas tapearias que decoram o recinto (vv. 77-
86). Um segundo desconhecido interrompe a conversa entusiasmada das duas mulheres,
30
Na mesma situao se encontra o Idlio XVII, ainda que o poderio de Ptolemeu descrito no poema
aponte para uma data em torno de 275/4. 31
Os Idlios XIV, XV e XVII servem propsitos propagandsticos, exaltando a realeza ptolomaica. No
entanto, tambm outros poemas, nomeadamente os Idlios XIII, XVIII, XXII e XXV, pelas figuras
mitolgicas a apresentadas, podem estar ligados aos Ptolomeus, j que so figuras intimamente
relacionadas com o panteo ptolomaico. J tivemos oportunidade de referir o caso especfico do Idlio
XVI, a Hiero de Siracusa.
-
25
criticando a sua pronncia. Praxnoa reage violentamente e defende os seus direitos (vv.
87-95). A altercao termina com o anncio feito por Gorgo de que iria comear o belo
canto de Adnis (vv. 96-99). Neste momento o tom torna-se solene. Depois de uma
invocao a Afrodite, na qual se insere um elogio a Arsnoe, a cantora descreve o
cenrio, onde estavam Adnis e Afrodite (vv. 100-131); a seguir descreve a procisso
que ter lugar no segundo dia das celebraes (vv. 132-135). O canto encerra com um
panegrico a Adnis, em que se referem vrios heris, menos afortunados, e se pede a
renovao cclica da festa (vv. 136-144). Gorgo tece um comentrio muito positivo
sobre a actuao da cantora, destacando a sua sabedoria e a sua voz (v. 145-146).
Apercebendo-se do avanar da hora, Gorgo regressa realidade e s preocupaes do
seu quotidiano, neste caso, o almoo que urgia preparar para o marido; despede-se ento
de Adnis (vv. 147-149).
3.2. Localizao da aco no tempo e no espao
Os ltimos versos do poema permitem concluir que a aco se desenrola da
parte da manh, terminando j perto da hora de almoo (v. 147).
Gow32
, com base nos frutos mencionados no v. 112, defende que a celebrao
ocorreria no final do Vero, princpios do Outono. A verdade que, como defende
White33
, uma meno aos frutos no obriga a que estes sejam mesmo reais, pois era
hbito neste tipo de celebraes usarem-se imitaes de cera, para fins decorativos. A
data da celebrao das Adnias teria, portanto, lugar, em Alexandria, no final da
Primavera. Esta data, alis, no diverge da que Simms sugere para as Adnias em
Atenas, que ocorerriam em 4 ( 11 de Junho)34
. Tambm a veste que
Praxnoa enverga designada e o chapu (, v. 39), levam-nos a supor
que o tempo estaria quente e soalheiro, corroborando a nossa concluso35
.
Tendo em conta as informaes que conhecemos da cidade de Alexandria e da
disposio da mesma36
, e pelo desenrolar dos acontecimentos no Idlio XV, podemos,
32
19522, vol. 2, 265.
33 1981, 191-206.
341997,45-53.
35 Sobre a associao das Horas Primavera cf. nota de comentrio ao v. 103.
36 Str. 17.793-795
-
26
de algum modo, tentar traar o possvel percurso das protagonistas37
. Sabemos que
Praxnoa habita numa zona remota da cidade, provavelmente fora do centro. A multido
que encontram pelas ruas permite inferir que se trataria de uma das artrias principais da
cidade, talvez a Via Canpica que atravessava Alexandria de Este (Porta do Sol) a
Oeste (Porta da Lua). O hipdromo encontrava-se na zona leste da cidade depois da
Porta do Sol, e seria para a que se dirigiam os cavalos do rei com que Praxnoa e Gorgo
se cruzam no v. 50. O palcio real e respectivos anexos ocupavam o promontrio de
, a norte da cidade, para onde vo as duas mulheres e de onde viriam no s os
cavaleiros, mas tambm a velha que encontram a seguir (v. 60). Conclumos, portanto,
que as duas amigas viriam da zona este da cidade, tendo entrado provavelmente pela
Porta do Sol, caminharam atravs da via principal, onde se cruzam com toda a multido
e com os cavalos do rei, e mais frente cortam direita para norte em direco ao
palcio real. A, e j perto do palcio, encontram a velha a quem pedem informaes,
chegando por fim s portas do palcio (v. 65).
3.3. Carcter dramtico do idlio
Se este idlio fosse uma pea de teatro poderamos dividi-lo em trs actos, tendo
em conta a sucesso dos espaos e das personagens. O primeiro acto decorreria em casa
de Praxnoa (vv. 1-43). O segundo teria lugar j nas atribuladas ruas de Alexandria,
quando as duas siracusanas se dirigem ao palcio real para assistir s celebraes que a
tero lugar (vv. 44-77). No ltimo acto, a aco desenrolar-se-ia no palcio de Ptolemeu
II Filadelfo (vv. 78-149). Nesta ltima seco ainda possvel considerar trs
momentos distintos de acordo com a tipologia discursiva: os versos 78 a 99 inserem-se
na parte mmico-dialgica, mantendo as protagonistas em destaque; nos quarenta e
cinco versos seguintes (vv. 99-144), uma cantora interpreta a cano de Adnis em tom
mais solene, que nos reporta lrica e pica como a prpria mtrica tambm sugere
(cf. comentrio estilstico e mtrico infra). A cena final do idlio, constituda pelos
ltimos quatro versos, surge como uma concluso, uma espcie de xodo teatral, que
reintegra as protagonistas no seu quotidiano e nas suas preocupaes dirias e pode ser
vista como uma forma de fazer os espectadores voltarem tambm realidade. Acabou o
37
Cf. Anexos, fig. 4.
-
27
espectculo, est na hora de voltar para casa, quer para as protagonistas quer para uma
hipottica plateia que estaria a assistir representao deste mimo. Ainda que no
tenhamos notcia de terem sido encenados, estes mimos, pela sua estrutura dramtica,
pelas personagens e situaes realsticas seriam totalmente representveis38
.
Em vrios momentos encontramos o que poderiam constituir indicaes cnicas.
De facto, os decticos (sobretudo advrbios de lugar, de tempo e de modo) permitem
visualizar os movimentos das personagens em cena e contribuem para o ritmo da aco:
(v. 1); (v. 6); (v. 27); (v. 29); (v. 33); (v. 43);
(v. 56). Alm disso, os vocativos, as invocaes feitas aos deuses ( , v.44)
e os imperativos constantes (, v. 3; , v. 3; , v. 21; , v. 22; , v.
27; , v. 29; , v. 30; et alia) tornam o dilogo vivo e realista.
3.4. Caracterizao das personagens
A aco centra-se em duas siracusanas da classe mdia, Gorgo e Praxnoa, duas
amigas residentes na metrpole egpcia, explorando-se o universo feminino, como no
Idlio II. No entanto, enquanto neste a mulher est associada temtica amorosa e
prtica de magia, no Idlio XV vive-se uma situao do quotidiano com as preocupaes
inerentes ao mundo feminino. Toda a aco se desencadeia em torno das festas de
Adnis39
, um festival em que participavam maioritariamente mulheres, que entoavam os
cnticos e acompanhavam a procisso solene40
.
So vrias as personagens que ajudam a retratar o dia-a-dia das duas mulheres.
Umas so o que no teatro se consideram personagens mudas; outras tm curtas falas e
um aparecimento pontual, o que permite classific-las como secundrias; alm destas,
ainda h que considerar aquelas que, sendo apenas referidas, ajudam a caracterizar as
protagonistas e o seu mundo.
38
Mastromarco, 1984, 95-96, sugeriu que os Mimiambos de Herodas seriam representados na corte ou
nas casas das famlias mais abastadas e cultas da sociedade alexandrina. A mesma hiptese poderia, na
nossa perspectiva, ser colocada para os mimos de Tecrito. 39
Parte da narrativa de A rapariga de Samos de Menandro decorre durante a celebrao das Adnias. 40
Lambert (2001, 87-103), considerando a herana da comdia e do mimo em Tecrito, defende que este,
no Idlio XV, parodia a perspectiva feminina de um festival religioso. Por outro lado, Griffiths (1981,
247-258), Burton (1995, 134) e Davies (1995, 152) defendem que Tecrito quer explorar o mundo
feminino e as suas atitudes, mostrando o ponto de vista emancipado das mulheres desta poca num dia
que lhes especialmente dedicado e realando o poder e importncia alcanados por Arsnoe II.
-
28
Como personagens secundrias temos uma velha, dois desconhecidos e uma
cantora; as personagens mudas so as escravas e o beb, filho de Praxnoa. Reforam o
realismo do ambiente e enriquecem a caracterizao das protagonistas os maridos Dnon
e Dioclides, personagens apenas mencionadas. As referncias aos soberanos Ptolemeu e
Arsnoe e a Adnis e Afrodite importam sobretudo no mbito da leitura do poema como
instrumento de propaganda ptolomaica.
3.4.1. As personagens principais
Praxnoa
Praxnoa juntamente com Gorgo a protagonista do Idlio XV, mas, se
confrontarmos ambas, notamos que aquela personagem se destaca pelo nmero de
intervenes que tem ao longo do poema e pela forma como se salienta, mais
interveniente e opinativa do que a amiga. O nome, etimologicamente, alia aco
() e pensamento (), o que se adequa ao seu carcter voluntarioso, obstinado e
desembaraado. Recordemos, por exemplo, que, diante do palcio, arquitecta
rapidamente uma forma eficiente de entrar, no obstante a confuso que se verificava
(vv. 66-68).
A referncia ao marido serve para a caracterizar, acentuando o seu lado
pragmtico e crtico. A etimologia do nome Dnon clarifica a forma como a mulher olha
para ele. Ele , na sua opinio, terrvel, pois mostra-se desptico e ciumento, ao
adquirir uma casa nos confins do mundo. So os cimes que tinha do bom
relacionamento entre as duas amigas, segundo Praxnoa, que explicam essa deciso.
Estamos perante os tradicionais cimes que as mulheres sempre atribuem aos maridos
pelas suas amizades.
Mas Praxnoa tem sobre Dnon a vantagem de entender o seu comportamento.
Quando aquele vai s compras e troca os produtos (vv. 15-17), f-lo por incapacidade de
perceber o que ia buscar concretamente; no era um homem de pensamento, tinha
apenas tamanho fsico, 41
. Praxnoa, pelo contrrio, como o nome
indica, uma mulher que pensa, interpreta e at cria vocbulos de grande complexidade
lingustica como aquele que acabmos de citar. De facto, esta personagem tem a
tendncia para o uso do adjectivo (vv. 10; 45; 50; 53; 75; 83, et alia), mostrando-se
41
Sobre a palavra cf. nota de comentrio ao v. 17.
-
29
hbil a criar novos compostos na sua necessidade de caracterizar o mundo que a rodeia,
por vezes de forma exagerada. Na realidade, o exagero tambm uma tendncia da
personagem (vv. 8; 36-37; 45; 80-83).
Tem uma personalidade autoritria que se revela nas ordens e at insultos que
dirige escrava, (vv. 27-33; 53-54; 76) e na forma como trata o desconhecido, que
interrompe a conversa das duas amigas, ordenando-lhes que se calem. Nesse momento
Praxnoa adopta uma atitude violenta, em que reclama os seus direitos, referindo os
antepassados(vv. 89-95). Alm de determinada, mostra que pensa por si prpria, no se
sujeitando opinio alheia.
Esta mulher que conhece a histria mtica de Corinto, donde provm os colonos
de Siracusa, orgulhosa das suas origens e dos seus ascendentes mais longnquos, o que
nos d a ideia de que, apesar de se viver numa poca j bastante globalizada dos reinos
helensticos e da , ainda prevaleciam os antigos traos e valores distintivos entre os
vrios povos gregos. Neste caso, o sentimento que o permite inferir o seu orgulho no
dialecto drico. Quando acusa os egpcios de atacar os transeuntes e os designa como
bons vigaristas, raa maldita, denota uma atitude xenfoba que reflecte os conflitos
que haveria entre os vrios povos (vv. 46-50). Ao preparar todas as comodidades para
receber Gorgo, estamos perante a observncia dos rituais de hospitalidade,
absolutamente sagrados para os gregos (vv. 2-3).
Como mulher, mostra-se preocupada com o lar e com a criana, ordenando
escrava Frgia que trate da casa, do beb e do animal domstico na sua ausncia. Ao
dissuadir o filho de as acompanhar, ameaando-o com o papo, revela, por um lado,
determinao, por outro, evidencia que os recursos usados pelas mes com as crianas
so os mesmos em todas as pocas. maternal, apesar de um pouco severa, porque, em
plena confuso na rua, face aos cavalos do rei, e, na sequncia do seu susto, recorda o
filho e congratula-se por o ter deixado em segurana, em casa. Fica claro que no se
quis desembaraar da criana, mas evitar situaes de risco para a mesma. O filho no
deixa de a acompanhar no seu pensamento. O prprio nome do beb, Zopiro, em grego
um diminutivo de , fasca ou fagulha, denuncia a fragilidade da criana e
justifica a preocupao de Praxnoa em proteg-lo.
Aparentemente pretende ser uma boa gestora da casa, pois censura a escrava por
esbanjar sabo (v. 30), mas ter feito um investimento excessivo na confeco do
vestido (vv. 36-37). O facto de ela prpria o admitir mostra-a apegada aos bens
-
30
materiais, o que se confirma quando lhe rasgam a veste e se preocupa com o xaile (vv.
69-71). No encontro com o primeiro desconhecido, que as ajuda (vv. 74-75), os
adjectivos qualificativos, que utiliza numa associao que a crase refora, salientam, de
forma exagerada, a utilidade do gesto e a piedade que este reflecte:
. como se sacralizasse a roupa que usa. A prpria admirao que sente
dentro do palcio face decorao do recinto, tecendo os maiores elogios s tapearias
que observa (vv. 80-86), pode ser interpretado no apenas como um reflexo da sua
sensibilidade artstica, mas tambm uma consequncia do fascnio pelo fausto e pelas
riquezas.
Apesar de obstinada, voluntariosa e desembaraada Praxnoa tem algumas
fobias, entre as quais se encontram os cavalos e as cobras, que teme j desde a infncia
(vv. 58-59). No entanto, est constantemente a referir animais, comparando, de forma
pejorativa, a escrava doninha (v. 28) e a multido s formigas (v. 45) e aos porcos (v.
73). A forma como refere a sua prpria casa, como um buraco (v. 9), servindo-se de
um vocbulo cujos outros sentidos so tambm o de toca ou covil, confirma a
presena do mundo animal no seu pensamento, quando se trata de fazer uma avaliao
negativa das situaes. Estas imagens recordam-nos a presena da figura animal na
Comdia Antiga. Na verdade, nesta, com frequncia os homens evocam animais. Para
mencionarmos apenas os que no Idlio XV surgem, lembramos em Acarnenses 255 a
figura da doninha, que Dicepolis refere a propsito da sua filha e mesmo as formigas
em Tesmofrias 100, numa expresso metafrica usada tambm em contexto pejorativo.
A importncia dos animais era tal como dinamizadores do cmico que chegam a
constituir os coros de algumas comdias, a partir dos quais estas recebem os seus
ttulos: Aves, Rs e Vespas de Aristfanes exemplificam-no42
.
Gorgo
O nome Gorgo mais antigo que se encontra atestado na literatura grega designa
um demnio feminino de olhar terrvel (Il. 8.349; 11.36). Esta relevncia do olhar
reflecte-se no poema de Tecrito, no qual a personagem de nome Gorgo tem um olhar
atento, vendo tudo antes da amiga. Os verbos que remetem para a viso so uma
constante nas intervenes desta personagem (vv. 12; 23; 25; 65; 78;). Apenas quando 42
Kenneth Rothwell estudou a relao entre os coros de animais e as origens da comdia grega em
Nature, Culture and the Origins of Greek Comedy: a Study of Animal Choruses (Cambridge, 2007).
-
31
chega a casa da amiga no a v, em todos os outros momentos chama a ateno para os
acontecimentos e mostra capacidade de os discernir a uma distncia incomum, como
sucede quando acalma Praxnoa anunciando que os cavalos do rei, j longe, tinham
chegado ao seu destino (vv. 56-57). Atenta s situaes, apercebe-se do olhar
amedrontado do beb (v. 12) e nota a cantora a preparar a voz para comear a cantar (v.
99). Acalma Zopirio, olhando-o nos olhos, qual Medusa, com a diferena de que o seu
efeito lenitivo em vez de destrutivo (vv. 13-14).
A impetuosidade e a vivacidade que o adjectivo pressupe reflectem-se
no facto de tomar a iniciativa de desafiar a amiga para ir ver Adnis e, de forma
decidida e vigorosa, fazer com que Praxnoa se arranje e abandone o lar para a
acompanhar ao palcio real.
A tendncia para exagerar as situaes est presente em Gorgo, tal como em
Praxnoa, quer quando se queixa da distncia percorrida e das dificuldades vividas para
chegar a casa da amiga (vv. 4-7), quer quando critica o seu marido, Dioclides, to
incompetente como Dnon (vv. 18-20), por fazer mal as compras, adquirindo produtos
de baixa qualidade, e por esbanjar dinheiro. No final do poema, quando surgem de
novo as preocupaes quotidianas das duas mulheres, critica Dioclides pelo seu mau
feitio (vv. 147-148).
Gorgo revela-se sensata e prudente. Acalma a amiga e d-lhe nimo, quando se
deparam inesperadamente com os cavalos do rei (v. 56). Pe tambm fim discusso
entre Praxnoa e o desconhecido que as critica evitando conflitos maiores (v. 96) e,
procura, de forma avisada e prudente, informar-se sobre a situao no palcio antes de
l chegarem (v. 63).
Revela-se uma mulher mais poupada do que Praxnoa quando se mostra
apreensiva com os gastos inteis do marido; a vaidade feminina impede-a, no entanto,
de criticar a amiga pela despesa avultada com a confeco do vestido.
A sua sensibilidade artstica reflecte-se na apreciao que faz da decorao do
interior do palcio (vv. 78-79) e da voz da cantora tanto antes (vv. 96-99) como depois
do canto (vv. 145-146). Na sua interveno final, ao despedir-se de Adnis, ecoam as
palavras proferidas pela cantora (v. 149), reflexo inconsciente da forma como interioriza
a arte (vv. 143-144).
-
32
3.4.2. As personagens secundrias
A velha
A velha com quem se encontram as protagonistas nos vv. 60-64 uma
personagem misteriosa e oracular. A sua resposta ouvida com estranheza pelas duas
siracusanas que a comparam a uma profetisa. Burton43
caracteriza a velha como mythic
helper, aproximando-a das figuras mticas (deuses por norma) que surgem na pica com
intuito de ajudar as personagens44
. Segundo a estudiosa, a expresso (v.
62) evoca o mundo homrico, aparecendo com frequncia em Homero em contextos
profticos (Il. 2.330; 14.48; Od. 2.176; 5.302; 13.178; 18.271).
A aproximao do universo pico torna a misso destas duas siracusanas uma
verdadeira empresa herica (comparvel dos Aqueus). Na verdade, a sua tentativa de
entrar no palcio real, um lugar quase mtico, no ser fcil e esta associao a Tria
serve precisamente para sublinhar as dificuldades que as mulheres encontraro.
Os desconhecidos
Os dois desconhecidos com quem as siracusanas se cruzam caracterizam as
personagens principais e realam alguns aspectos especficos da vida em Alexandria no
sc. III a.C.. As personalidades destes dois homens contrapem-se, pois o primeiro
mostra-se afvel e solidrio e o segundo, rspido e xenfobo.
O primeiro apresenta-se como uma personagem educada e prestvel, pois ajuda
Praxnoa sem a conhecer, ao v-la em apuros no meio da multido (vv. 70-75). Esta boa
aco insere-se na temtica da solidariedade humana, j explorada na Comdia Nova45
.
Porque ajuda as protagonistas a chegar ao seu destino, este desconhecido, pode, tal
como a velha, ser visto como um mythic helper.
J o segundo, numa atitude xenfoba, manda calar as duas siracusanas que
observam entusiasmadas a decorao do recinto (vv. 87-88). Praxnoa, que antes tinha
43
1995, 15-16. 44
Recordemos, Odisseia, 7.18ss., onde Atena disfarada de rapariga que transporta gua, aparece a
Ulisses e lhe indica o caminho para o palcio de Alcnoo ou em 10.276ss. em que Hermes, tambm este
sob disfarce, aparece a Ulisses e lhe revela os cuidados a ter com Circe, dando-lhe uma poo mgica que
o proteger dos encantos da feiticeira. Tambm na Ilada, 24.348ss., Hermes, novamente sob disfarce,
acompanha Pramo que se dirige s naus aqueias a fim de recuperar o corpo de Heitor. 45
O tema da solidariedade humana e da entreajuda foi largamente tratado na Comdia Nova. Exemplo
disso so as comdias de Menandro, em que, no poucas vezes, somos postos diante de tais situaes. No
Dscolo, Grgias salva o velho misantropo que tinha cado no poo, quando este pelo seu carcter nem
merecia ser salvo (vv. 620ss.).
-
33
tido a mesma atitude em relao aos egpcios, agora vtima desta mesma xenofobia. A
crtica feita sua pronncia drica reflecte as querelas sociais que existiriam na
sociedade alexandrina na poca dos Ptolemeus, onde coabitavam povos de todo o
mundo grego.
A cantora
A importncia da cantora restringe-se sua funo. Dela pouco sabemos para
alm do facto de ser a filha da argiva (v. 97) e exmia na sua arte (Gorgo faz-nos
saber que a cantora possui alguma tcnica, pois antes de comear a cantar, executa
exerccios de aquecimento vocal (, v.99)). Na verdade, Gorgo mostra-se
satisfeita com o seu desempenho, elogiando a sua sabedoria e a sua doce voz (vv. 145-
146). Talvez a sua carreira fosse uma herana, pois a sua identificao como a filha da
argiva, leva-nos a supor que a sua me tambm se celebrizara na mesma arte. Esta
referncia e o facto de encontrarem a velha a regressar do palcio permite supor que
haveria uma competio de cantoras que entoariam hinos a Adnis, entre as quais se
elegeria uma vencedora. A velha estaria de volta por ter assistido j performance de
outras cantoras e a filha da argiva que no ano anterior se distinguira no canto (v. 98)
seria mais uma das cantoras.
3.4.3. As personagens mudas
As escravas
No poema aparecem trs escravas, unoa e Frgia, escravas de Praxnoa, e
utiquis, escrava de Gorgo, de cuja presena s nos apercebemos no momento de
entrarem no palcio (v. 67).
Da escrava Frgia sabemos apenas a sua origem: a sia Menor. Era hbito os
Gregos apelidarem os escravos conforme a sua provenincia. Cumpre, como se espera,
os seus deveres de escrava domstica, tratando da casa e da criana (vv. 42-43).
Os nomes das outras duas escravas tm na sua formao o prefixo -, o que
remete para algo propcio e torna os nomes como que uma formulao de bom augrio.
Em utiquis, o prefixo junta-se ao substantivo , significando boa sorte.
Realmente as quatro mulheres precisariam de toda a sorte para chegar ao seu destino. O
termo leva-nos Comdia Nova, onde a Sorte desempenha um papel de relevo no
-
34
desenrolar da aco e no cumprimento do final feliz46
. No idlio como se fosse a
presena de utiquis que permitisse s protagonistas chegar ao seu destino.
O nome unoa significa aquela que pensa bem, como se o nome da sua
senhora, Praxnoa, se projectasse no da escrava. No caso desta parece tratar-se de uma
ironia, pois de mos dadas com a sorte (utiquis) unoa esmagada pela multido,
quando fica para trs (v. 76). Apesar de obediente, revela-se indolente, como uma
doninha (v. 28), desleixada, por deixar as coisas fora do stio (v. 27), e estulta, se
considerarmos justas as constantes crticas e chamadas de ateno feitas por Praxnoa,
que chega mesmo a insult-la pela sua pouca destreza e ausncia de iniciativa (vv. 29-
31). Esta escrava to inbil e preguiosa que nem mesmo para se salvar dum perigo
iminente reage (v. 44), sendo necessria a interveno da dona, que recorre mais uma
vez ao imaginrio animal comparando a sua impudncia de um co (v. 53). A sua falta
de aptncia para realizar qualquer tarefa torna-a um catalisador do cmico.
3.5. Temas
Numa poca em que a plis como centro unificador j no existe, assistimos ao
surgimento de um nova cultura que assenta no individualismo e no cosmopolitismo. A
cultura das cortes helensticas elitista e livresca, baseada essencialmente na palavra
escrita. A fruio desta individual, sentindo-se o homem parte de uma comunidade
intelectual ligada pela mesma lngua. Estes factores levaram ao desenvolvimento na
literatura de temticas de cariz mais intimista, que j se encontram na Comdia Mdia e
se consolidaram com a Comdia Nova, na qual se destaca Menandro. O bem-estar do
homem desloca-se da plis para a esfera da famlia e da vizinhana, ganhando relevo
46
No Escudo (vv. 97ss.) de Menandro, a deusa Fortuna aparece personificada e vem esclarecer a trama (
ela que faz o prlogo), e proclama-se aquela que tudo sanciona e comanda (traduo de Sousa e Silva,
M. F., 2007. Menandro obra completa. Lisboa). No Dscolo, embora no aparea como personagem, a
tem uma papel importante no desenrolar dos acontecimentos, explicando o deus P, logo no incio da
pea, que foi que o enamorado Sstrato chegara ao lugar onde se vai desenrolar a aco
(Dysc. 43). Em conversa com o pai, o jovem reala a fragilidade do homem que sujeito aos caprichos da
, nunca pode pensar que controla o seu destino, pois a qualquer momento possvel uma reviravolta
da fortuna (Dysc. 803-804). Com o individualismo crescente, o homem passa a venerar a , que se
sobrepe aos outros deuses.
-
35
temas como a amizade, o amor, as relaes familiares e a solidariedade humana47
.
Todos estes temas esto presentes em Tecrito e no Idlio XV em particular.
A tradio do mimo inclua o tratamento do quotidiano tendo como
protagonistas personagens de estratos sociais humildes. No caso do Idlio XV as
protagonistas pertencem a uma classe mdia e o facto de serem mulheres insere o
poema na tipologia dos mimos femininos (segundo a diviso feita por Sfron), como j
referimos. Consequentemente os temas tratados relacionam-se sobretudo com o
universo da mulher de um determinado estrato social, caracterizado por realidades
intemporais: os trabalhos domsticos, os caprichos das crianas, a gesto da casa, as
conversas tpicas entre amigas em que surgem as tradicionais crticas aos maridos com
as suas bizarrias, inpcia e exigncias; a valorizao da indumentria feminina e o
fascnio desencadeado pela arte entre as pessoas comuns48
.
Gorgo e Praxnoa entram no palcio real e ficam plenas de admirao e extse
ao verem as magnificas tapearias onde est representado Adnis. Os adjectivos que
usam para as qualificar reflectem sensibilidade e ao mesmo uma surpresa que prpria
da sua condio social. No seria todos os dias que teriam oportunidade de estar to
perto de tal esplendor (lembremos que Praxnoa diz que vive num buraco). Mas a
forma como as comentam reflecte o seu universo e as suas ocupaes habituais. Sendo
mulheres, o tear constituia para elas uma ocupao importante. Por isso Praxnoa reala
o trabalho que as fiandeiras tiveram para confeccionar aquelas tapearias e Gorgo
compara-as indumentria.
Do ponto de vista das relaes humanas encontramos para alm do tema da
amizade a temtica amorosa, retratada de duas maneiras diversas. Por um lado, temos a
relao conjugal das duas siracusanas com os respectivos maridos, fundamentada num
sentimento terreno, com os seus habituais confrontos. Por outro, temos um amor
idlico, aquele que une o semideus deusa Afrodite, e que introduz no poema o
elemento mitolgico e o erudito boa maneira alexandrina.
Do ponto de vista social esto presentes neste idlio as relaes entre donos e
escravos, que do ao poema um tom de comicidade, como vimos. A solidariedade
humana outro dos temas presentes graas figura do primeiro desconhecido.
47
Cf. Webster, 1974, 25-55. 48
Sobre esta temtica cf. Burton, 1995, 93-122.
-
36
Tambm esto patentes as tenses entre Gregos de vrias zonas geogrficas e
entre Gregos e Egpcios. A grandeza e riqueza de Alexandria atraa a esta metrpole
gentes vindas de todo o Mediterrneo, e Tecrito reala o sentimento xenfobo que se
fazia sentir de ambas as partes. Ele prprio era um brbaro oriundo do extremo
ocidental do mundo grego49
.
3.6. Comentrio lingustico, estilstico e mtrico
3.6.1. Lngua50
O Idlio XV, como vimos, insere-se no grupo dos poemas do corpus teocritiano
ditos dricos, pela prevalncia das caractersticas deste dialecto na sua lngua. Para
explicar a origem desta lngua e as dificuldades que muitas vezes apresentam os poemas
deste grupo, surgiram ao longo dos tempos vrias teorias, das quais faremos um
pequeno resumo.
Gow51
, cuja edio seguimos no nosso trabalho, faz eco da opinio de
Wilamowitz, segundo a qual a lngua usada por Tecrito artificial, de carcter
tipicamente potico, pois nunca ter sido falada.
Opinio bem diversa apresentou Magnien no seu vasto estudo52
, considerando
que Tecrito usou um dialecto literrio que teria as suas origens em Siracusa; inclui
neste grupo tanto poesia como prosa, reunindo autores to diversos como Epicarmo,
Sfron, os Pitagricos, Arquimedes e at mesmo Calmaco. Na opinio deste estudioso,
s os poetas da lrica coral teriam usado um dialecto diverso.
Ruijgh53
rejeitou a teoria de Magnien, propondo uma nova soluo para as
incongruncias e para a mescla dialectal apresentada pelos poemas de Tecrito.
49
(Verity &) Hunter (2002, 104), notou que as siracusanas do Idlio XV podem ser consideradas uma
alegoria do prprio poeta e do seu percurso at chegar corte dos Ptolemeus e angariar o seu patrocnio.
Segundo esta teoria, a casa de Praxnoa seria Siracusa, a ptria de Tecrito; o percurso efectuado pelas
duas amigas e todos os percalos vividos pelas ruas de Alexandria equivalem s dificuldades que o poeta
tambm teria vivido (a recusa de patrocnio por parte de Hiero II -nos relatada no Idlio XVI), com a
sua passagem por Cs, at finalmente chegar a Alexandria e ser acolhido na corte ptolemaica, o que
corresponderia entrada de Gorgo e Praxnoa no palcio real. 50
Os aspectos lingusticos que estejam associados ao estilo, sero comentados no ponto 3.6.2. 51
19522, vol. 1, lxxiiss.
52 1920, MSL 21, 49-85 e 112-138.
53 1984, Mnemosyne 37, 56-88.
-
37
Segundo este, Tecrito, para melhor se fazer entender pelo seu pblico, teria adoptado o
dialecto drico de Cirene, contaminado por bastantes elementos da , que seria a
lngua usada em Alexandria pela comunidade drica.
Mais recentemente, e aproveitando algumas crticas feitas por Molinos Tejada54
teoria de Ruijgh, Abbenes55
props uma nova soluo. Comparando a distribuio e
representao das vogais longas de timbre /e/ e /o/ ( ou e ou ) no s em
Tecrito mas tambm em Calmaco, lcman, Filolau, entre outros, Abbenes conclui que
o dialecto usado por Tecrito era um dialecto drico de tipo seuerior56
, influenciado
pela tradio literria drica (em particular lcman). Teria, no entanto, sofrido um
processo de modernizao categorial, de modo a no confundir o leitor. Assim termos,
em certas categorias gramaticais, resolues lingusticas diferentes das que ocorreriam
na doris seuerior e que estavam presentes na (por exemplo, no infinitivo do verbo
ser, o infinitivo coexiste com as formas de presente , ). O estudioso
defende que os poetas alexandrinos gostavam de usar os antigos dialectos, por isso
Tecrito imita Safo e Alceu, e usa, ao mesmo tempo, o drico e a lingua da pica como
acontece na lrica coral. Recorrer ao dialecto de lcman, que era linguisticamente e
literariamente consagrado, faria, portanto, todo o sentido, dada a tendncia dos
alexandrinos para cultivar o antiquado.
Podemos concluir, portanto, que o drico de Tecrito , na verdade, uma lngua
literria, usada com fins poticos, por ter uma longa tradio que remonta a Sfron,
tendo sido adaptada s necessidades do pblico. As siracusanas, protagonistas deste
idlio, no poderiam, alis, falar outro dialecto a no ser este.
Faremos um levantamento das principais caractersticas dialectais de Tecrito,
partindo, fundamentalmente, do Idlio XV57
. Remetemos para as notas de comentrio
aspectos lingusticos mais especficos, pois neste captulo optmos por tratar apenas
traos gerais. Achmos pertinente referir alguns exemplos de lcman que apresentam
caractersticas dialectais prximas das de Tecrito.
54
1990, 74-76; 341-343. 55
1996, 1-19. 56
Ahrens (1843) dividiu os dialectos dricos em dois grupos: o da doris seuerior, que formava o genitivo
do singular dos temas em -o em (e.g., ) e pronunciava e (timbres abertos) as longas resultantes
de contrao e de alongamento compensatrio (e.g., , ); outro, o da doris mitior, cujas resolues
( e para os timbres fechados) coincidiam com o jnico-tico (e.g., , e ).
-
38
A manuteno do originrio uma das caractersticas mais marcadas do
dialecto drico (na verdade, este fenmeno s no ocorre no dialecto jnico-tico),
verificando-se, por vezes, casos de hiperdorismo58
, e.g., (v. 4). Cf.
Alcm. fr. 1.51-52.
O intervoclico aparece muitas vezes representado como , e.g.,
(v. 16) e (v. 49). Cf. Alcm. fr. 3(1+3).72.
A manuteno do digama (), que j havia desaparecido no dialecto jnico-tico
desde o sc. VIII, sobrevive ainda em drico at poca helenstica. Ainda que no
venha notado graficamente, a sua presena clara na escanso mtrica, e.g., ()
(v. 25). Cf. Alcm. fr. 1.41,58; fr. 20.3.
O grupo fontico -() mantm-se sem evoluo fontica, e.g., (v. 82)
e (v. 139). Cf. Alcm. fr. 38.2,3.
A lquida -- passa a nasal em contacto com a dental por assimilao, e.g.,
(v. 2) e (v. 61). Cf. Alcm. fr. S4.9.
O dialecto drico apresenta tambm um vocalismo tpico em certas palavras,
e.g., (vv. 78; 85)59
.
Os segmentos / contraem em . Na primeira declinao dos nomes
masculinos o genitivo em (
-
39
A evoluo do grupo - origina um alongamento compensatrio em , da os
particpios femininos em -, e.g., (v. 25) e (v. 87). Cf. Alcm. fr.
1.73.
A partcula modal correspondente ao tico tem a forma , sendo no entanto
comum o uso da forma . Tambm os advrbios de tempo formados em tico pelo
sufixo tomam a forma , e.g., (v. 44) e (v. 144). Cf. Alcm. fr. 56.1.
O artigo aparece por vezes sob a forma / no nominativo do plural ao lado
das formas /, e.g. (v. 51). Cf. Alcm. fr. 1.56. O demonstrativo drico
corresponde forma tica , e.g., (v. 15). Nos pronomes pessoais
destacamos a forma de segunda pessoa do singular , usada quer para o nominativo
quer para o acusativo (quando encltico) e a forma de acusativo da terceira pessoa do
singular , e.g., (v. 7) e (v. 132).
No que respeita morfologia verbal, verifica-se o uso do futuro drico em -,
e.g., (v. 54) e (v. 79). Cf. Alcm. fr. 1.73. Tambm frequente a
flexo do perfeito fazer-se como se fosse um presente do indicativo com recurso vogal
temtica, mantendo o morfema -, e.g., (v. 58). Este perfeito foi designado
siracusano por Herodiano (Gramm. Grae., 3.2, p.81, 6), no entanto encontra-se em
elico, tesslico e becio. O verbo assume a forma em drico, e.g., (v.
146). A primeira pessoa do plural activa tem como desinncia a forma , e.g.,
(v. 15) e (v. 42). Cf. Alcm. fr. S3.5. Os infinitivos atemticos em
drico usam o morfema , e.g., (7.28). Cf. Alcm. fr. 1.45; para os verbos
temticos j tivemos ocasio de referir a mescla que se verifica em Tecrito, entre as
desinncias , - e , e.g., (v. 16) e (v. 24). Cf. Alcm. fr. 26.2.
3.6.2. Estilo
Para proceder anlise estilstica e mtrica do Idlio XV dividimo-lo em duas
partes, tendo em conta a estrutura enunciativa das mesmas. Deste modo, primeiro
consideraremos a seco mimco-dialgica do poema, que abarca os versos 1-99 e 145-
149, a seguir a seco lrica, que corresponde aos versos 100-144.
O poema est estruturado de modo antittico e circular, pois somos postos em
contacto, primeiro, com o plano do quotidiano das duas siracusanas, para depois sermos
-
40
levados ao plano mtico (ou mesmo buclico como bem notou Krevans60
) na cano de
Adnis. O final, com a ltima interveno de Gorgo, serve de concluso ao poema e
simultaneamente de regresso realidade. Esta ruptura do plano idlico causada pelo
vocativo no incio do v. 145.
O dilogo entre as protagonistas vivo e expressivo, pois retrata de forma
realista o que seria no sc. III a.C. uma conversa entre duas mulheres do mundo grego,
pertencentes a um estrato social mdio. Este realismo conseguido com o recurso a
diversos processos dos quais destacamos as locues proverbiais, os termos coloquiais,
fenmenos fonticos e sintcticos de eliso que do maior fluidez ao discurso e a
predominncia do ritmo dctilo61
.
O hbito de citar provrbios muito comum ainda nos nossos dias, encontra-se
sobretudo em posio final de verso como forma de rematar um pensamento e comentar
as situaes vividas. Praxnoa e a velha so as duas personagens que proferem frases
deste tipo, reflexo da sua cultura popular, que, no primeiro caso, ilustra a forma como a
protagonista pensa sobre o que a rodeia; no segundo caso, associa-se ao carcter
enigmtico e oracular da personagem. Considermos expresses proverbiais
(em casa farta tudo farto, v. 24); ( sempre festa
para os ociosos, v. 26); (as doninhas gostam de
se deitar no macio, v. 28); (tudo se alcana quando se tenta,
v. 62); (no niveles uma medida vazia, v. 95). Prximas
destas expresses encontram-se tambm imagens metafricas como
(formigas inmeras e incontveis, v. 45) equivalente expresso so
mais do que as mes; (o homem todo vinagre, v. 148), que
corresponde a ele est com os azeites. Todas estas frases acentuam o carcter
coloquial desta seco do poema.
O uso de termos simples advm por vezes da necessidade de as personagens se
adaptarem situao em que se encontram, o que mais uma vez sublinha o realismo do
poema. Assim, quando Gorgo se dirige ao beb, usa vocbulos infantis, repeties,
frases curtas ( , v. 14) e diminutivos afectuosos (, v. 13). A
60
2006, 119-146. Krevans procede ao levantamento dos traos buclicos presentes no Idlio XV
especialmente na parte lrica do poema, questo frequentemente ignorada pelos estudiosos. 61
Na parte mmico-dialgica h 67.7% de ps dctilos.
-
41
simplicidade sintctica das construes ( de notar o uso da elipse), que tinham como
destinatrio uma criana de tenra idade, denota o realismo do mimo.
Tambm contribuem para a vivacidade e rapidez do dilogo as ,
mudanas de interlocutor a meio do hexmetro, presentes sobretudo nos momentos em
que as personagens trocam ideias e colocam questes entre si (vv. 1-3; 60-61; 72-73).
Criam o mesmo efeito os fenmenos fonticos que originam uma omisso de slaba ou
de palavra como acontece com as apcopes (vv. 2; 8; 32; 56; 64; 67; 77;82; 83; 87), as
crases (vv. 18; 21 74; 75; 86; 147) e a elipse do predicado (v. 14).
O vocabulrio pe-nos constantemente em contacto com o dia-a-dia destas duas
mulheres: a soda e as algas (v. 16), usadas para limpar e tingir a l; os velos de l (v.
20); o fiado (v. 27); o tear (v. 35); o xaile (vv. 21; 39; 71); o vestido (v. 21; 34; 69), a
tnica (v. 31), o chapu (v. 39). E quando observam as tapearias, surge de novo este
imaginrio, como vimos no subcaptulo em que tratamos os temas do poema.
No obstante a coloquialidade de certos vocbulos e de algumas expresses e a
simplicidade sintctica das frases, verifica-se um trabalho minucioso com a linguagem.
De facto, muitos dos termos utilizados criam um efeito esttico de grande beleza
literria que reala as ideias e reflecte extraordinrio cuidado formal, como seria de
esperar num poeta alexandrino.
Deste modo, mesmo no momento em que a linguagem se adapta ao universo
infantil, h uma preocupao em diversificar os termos usados, pois as duas amigas
referem-se a Zopirio com trs palavras diferentes: pequeno (, v. 12), meu
menino (, v. 13) e beb (, v. 14). A prpria constituio dos sintagmas
merece a nossa ateno. Assim, neste mesmo passo, quando o progenitor referido,
verifica-se uma estrutura quistica que no s confere musicalidade ao texto como
sugere a mudana de registo na fala de Praxnoa, que aproveita as palavras da amiga
para criticar o marido: de pap bom para pap que no sabe fazer compras (
/ vv.14-15).
Servem tambm para realar vocbulos as figuras de repetio de palavras e de
sons62
. Na primeira fala mais extensa de Gorgo fica bem visvel a preocupao com a
escolha do vocabulrio e a sua colocao no verso. O recurso ao poliptoto
62
Em muitos passos do poema encontramos figuras de repetio de palavras, tais como anforas (e.g., vv.
6; 82; 91; 92; 123), paralelismos de construo (e.g., vv. 10/13; 73/74), figuras etimolgicas (e.g., vv. 81;
106; 146) e de repetio de sons, em poliptotos (e.g., vv. 5; 20; 24; 25; 29; 90; 122), aliteraes (e.g., vv.
7; 20; 31; 33; 34; 48), homeoteleutos (e.g., v. 5; 19).
-
42
... (v. 5) reala uma ideia de nmero (a multido e as quadrigas que
impressionaram Gorgo), que a anfora ... (v. 6) confirma; ao mesmo tempo
a aliterao da oclusiva labial surda cria uma relao sonora com o nome Praxnoa. A
sindoque que toma as sandlias pelo todo que so os transeuntes (eram sandlias por
todo o lado, v. 6) particularmente expressiva porque permite inferir que os ps de
Gorgo teriam sido macerados pelo calado da multido at chegar a casa da amiga.
A breve 63
(vv. 78-86) feita pelas protagonistas antes de iniciar o canto
de Adnis, por um lado, reafirma o princpio potico da (variedade), por outro,
deixa clara a funo deste processo descritivo. De facto, os adjectivos e
(v. 79) com que Gorgo qualifica as tapearias observadas, e a expresso
(v. 83) empregue por Praxnoa, remetem-nos para os princpios poticos de
(delicadeza), (graa) e (sabedoria) preconizados pelos poetas helensticos.
Por seu lado, os qualificativos (v. 81), (v. 82) e (v. 83), realam a
preciso do desenho e o realismo da postura e do movimento das figuras tecidas.
Pretendia-se com a dar vida aos objectos criando no leitor a sensao de os
estar a ver diante de si.
Embora a cano de Adnis tenha sido considerada por muitos como a parte
menos interessante do Idlio XV64
, ela cria um contraste lingustico, que tem as suas
raizes na Comdia Antiga. Recordemos as Rs de Aristfanes em que h um contraste
marcado entre a primeira parte, animada por dilogos apimentados e inmeras situaes
cmicas entre Xntias e Dioniso (com forte explorao do coprolgico e do obsceno), e
a segunda parte, em que decorre a contenda literria entre squilo e Eurpides,
comicamente enriquecida com um vocabulrio solene proveniente do gnero trgico.
Nos quarenta e cinco versos da cano o tom eleva-se e o hexmetro mais
rigoroso, pois apresenta menos crases e elises. comum o enjambement para ligar os
versos, pois o tema tratado origina uma sequncia expositiva que, mesmo que coincida
com o final do hexmetro, tem de ser explanada em mais do que uma hexapodia
63
O motivo da remonta famosa descrio do escudo de Aquiles na Ilada, 18.478-608. Os
poetas helensticos usam com frequncia esta tcnica descritiva, que procura transmitir vida aos objectos.
Outros exemplos famosos de so a descrio do manto de Jaso nos Argonautica de Apolnio
(1.721-768), a descrio das obras de arte no Mimiambo IV de Herodas (vv. 56-78) e a descrio da taa
do cabreiro no Idlio I (vv. 27-56). 64
Gow (1938, 202) apelidava mesmo de mediocre esta parte do poema. Tambm Dover (1971, 209-
210) olhou para o hino de Adnis como uma crtica de Tecrito aos poetas que compunham hinos de
forma rebuscada com tendncia para a enumerao exagerada de figuras mitolgicas (cf. v. 137ss.).
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dactlica. A associao do tema cantado ao amor feliz e renovao da natureza e da
vida explica a predominncia do rtmo dctilo65
.
Do ponto de vista do vocabulrio, h uma influncia ntida de alguns sintagmas
da linguagem pica, nomeadamente, (Il. 22.470), (Od.
20.69), (Od. 6.79), (Od. 12.44), ,
(Il. 8.78-79), que tm equivalentes directos nos versos 101, 117, 117,
135, 137-138, respectivamente.
O canto inicia-se com a invocao a Afrodite, marcada pelo vocativo
(v. 100) e pela enigmtica expresso ' (v. 101, cf. nota de
comentrio), introduzindo-se de seguida o tema da cano: chegou a Primavera, e com
ela as Horas trouxeram Adnis para junto da deusa do amor. Nos vv. 106-111, explica-
se que a rainha Arsnoe, agradecida pelo facto de Afrodite ter imortalizado a sua me,
cuidar de Adnis da melhor maneira. Faz-se neste passo um encmio claro figura da
rainha.
A seguir (vv. 112-135), e atravs de uma descrio minuciosa e vivaz (to ao
gosto alexandrino66
), a cantora pe-nos diante do cenrio onde esto expostas as figuras
de Adnis e da deusa. O toque, as cores, os sons, os cheiros e os sabores associam-se
numa verdadeira sinestesia idlica ao descrever-se este locus amoenus que envolve os
dois amantes. So muitos os substantivos que remetem para a viso e para a cor
(, v. 114; , v. 114; , v. 116; , v. 116; , v. 119;
, v. 123; , v. 125; , v. 128; , v. 130) mas tambm para
os outros sentidos: o perfume da Sria (v. 114) para o olfacto, o doce mel (v. 117)
para o sabor, o beijo que no pica (v. 130) para o tacto, as ondas que se lanam sobre
a costa (v. 133) para a audio, so alguns exemplos.
Apesar de ser um mimo urbano, como dissemos, a seco lirca deste poema
pode ser comparada a um verdadeiro poema buclico, pois alm de toda a flora e fauna
presentes (frutos da poca, v. 112 ; altas rvores, v. 112; delicados jardins, v. 113;
seres do ar e da terra, v. 118; pequenos rouxinis, v. 120, et alia ) at temos a
presena de um pastor de Samos no v. 126. Nos vv. 131-135 anunciada a hora da
65
71,1% dos ps so dctilos nesta seco. 66
Esta fuso entre carcter hnico e descritivismo tambm visvel nos Hinos a Atena e Demter de
Calmaco.
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partida e Adnis ter de voltar ao Hades para se juntar a Persfone. descrita a
procisso que levar a figura do semideus at ao mar .
Na ltima parte do canto (vv. 136-144), faz-se uma aluso a vrias figuras
hericas e mitolgicas (ligadas pelas anforas e aliteraes com os advrbios de
negao /), que apesar dos seus feitos no tiveram a mesma sorte de Adnis, que
o nico que pode voltar ao mundo dos vivos incessantemente. A cano acaba com os
votos de que as Adnias se repitam no prximo ano.
3.6.3. Mtrica
Nao obstante Aristteles afirmar67
que o hexmetro se encontra muito distante
da lngua falada, Tecrito consegue transmitir atravs dele, na parte mmico-dialgica,
extraordinria vivacidade e fluidez de discurso, tirando part