O IDÍLIO XV DE TEÓCRITO: AS SIRACUSANAS OU AS...

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLÁSSICOS O IDÍLIO XV DE TEÓCRITO: AS SIRACUSANAS OU AS MULHERES QUE CELEBRAM ADÓNIS. Hélio Ramos da Silva Mestrado em Estudos Clássicos Edição e Tradução de Textos Clássicos 2011

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLSSICOS

    O IDLIO XV DE TECRITO: AS SIRACUSANAS OU AS

    MULHERES QUE CELEBRAM ADNIS.

    Hlio Ramos da Silva

    Mestrado em Estudos Clssicos

    Edio e Traduo de Textos Clssicos

    2011

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLSSICOS

    O IDLIO XV DE TECRITO: AS SIRACUSANAS OU AS

    MULHERES QUE CELEBRAM ADNIS.

    Hlio Ramos da Silva

    Mestrado em Estudos Clssicos

    Edio e Traduo de Textos Clssicos

    2011

    Tese orientada pela Prof.

    Doutora Ana Alexandra

    Alves de Sousa

  • 1

    Resumo

    Este trabalho consiste na traduo do Idlio XV de Tecrito, a partir do texto editado por

    A. S. F. Gow (Cambridge, 1952), acompanhada de um estudo introdutrio e respectivas

    notas de comentrio.

    Palavras-chave

    Tecrito Idlio XV Mimo urbano Traduo Siracusanas

    Abstract

    The present work consists of a translation of Theocritus Idyll XV, based on the text

    established by A. S. F. Gow (Cambridge, 1952), with an introductory study and

    commentary notes.

    Keywords

    Theocritus Idyll XV Urban mime Translation Syracusans

  • 2

    Index

    3 Agradecimentos

    4 Observaes preliminares

    6 Parte I- O poeta e a sua obra

    7 1. Vida

    7 1.1. Fontes antigas

    9 1.2. Fontes autobiogrficas

    10 2. Obra

    11 2.1. O conceito de e o significado de idlio

    17 3. Histria do texto

    17 3.1. Edio de Tecrito na Antiguidade

    18 3.2. A tradio manuscrita e papirolgica

    20 Parte II- O Idlio XV

    21 1. Tradio literria e eventuais fontes

    23 2. Insero do idlio na sua poca

    24 3. O poema

    24 3.1. Sinopse

    25 3.2. Localizao da aco no tempo e no espao

    26 3.3. Carcter dramtico do idlio

    27 3.4. Caracterizao das personagens

    28 3.4.1. As personagens principais

    32 3.4.2. As personagens secundrias

    33 3.4.3. As personagens mudas

    34 3.5. Temas

    36 3.6. Comentrio lingustico, estilstico e mtrico

    36 3.6.1. Lngua

    39 3.6.2. Estilo

    44 3.6.3. Mtrica

    46 Parte III Traduo e notas de comentrio

    76 Anexos

    83 Bibliografia

  • 3

    Agradecimentos

    Professora Doutora Ana Alexandra Alves de Sousa. Foi minha professora de

    grego desde o primeiro momento e em muito me inspirou o gosto por esta lngua que j

    estava destinada a acompanhar-me para sempre. Foi a escolha mais acertada para me

    conduzir neste trabalho. Obrigado pelas crticas, solues e confiana.

    Um muito obrigado a todo o restante corpo docente do Departamento de

    Estudos Clssicos que ao longo de dez anos se tem cruzado no meu caminho abrindo-

    me horizontes e partilhando os seus conhecimentos.

    Aos amigos pelo seu contributo e amizade.

    minha famlia e em especial minha me, inspirao diria e apoio contnuo

    nos meus projectos e odisseias.

  • 4

    Observaes preliminares

    Na citao de autores e obras da Antiguidade grega, seguimos as abreviaturas de

    Liddel, H. G. & Scott, R. 1996. A Greek-English Lexicon. Oxford (sigla LSJ); para a

    Antiguidade latina aquelas de Glare, P. G. W. 1982. Oxford Latin Dictionary. Oxford.

    Quando os exemplos provm do Idlio XV, entre parnteses coloca-se apenas o

    verso em que ocorre o termo citado; quando provm de outro idlio, a localizao indica

    o idlio e o verso.

    As publicaes peridicas so identificadas pelas siglas de LAnne

    Philologique.

    Ao longo da exposio, as edies, tradues, lxicos, comentrios e estudos

    citados na bibliografia final so apenas referidos pelo apelido do autor, ano de

    publicao e pginas (quando conveniente).

  • 5

    It is a page torn fresh out of the book of human life.

    What freedom! What animation!

    What gaiety! What naturalness!1

    Matthew Arnold

    1 Essays in Criticism (1

    st series, 1900, 205).

  • 6

    PARTE I - O POETA E A SUA OBRA

  • 7

    1. Vida

    1.1 Fontes antigas

    A Antiguidade legou-nos escassos dados biogrficos sobre a vida de Tecrito.

    Alm do que podemos retirar dos seus poemas, existem algumas informaes

    controversas que encontramos nas fontes antigas. As mais fidedignas so a entrada no

    lxico Suda, uma Vida de Tecrito, que se encontra nalguns manuscritos2, e um

    epigrama da Antologia Palatina3, que comentaremos.

    No lxico Suda l-se4:

    [...]

    , , ,

    .

    .

    , , , , -

    , , .

    , , -

    , .

    [] h tambm um outro Tecrito, filho de Praxgoras e de Filina, ou de

    Simico, dizem outros; siracusano ou de Cs (na opinio de alguns). Estabeleceu-se em

    Siracusa. Escreveu os chamados poemas buclicos em dialecto drico. H quem lhe

    atribua tambm estas obras: Prtides, Esperanas, Hinos, Heronas, Lamentos, elegias

    e jambos, epigramas. Note-se que existiram trs poetas buclicos, o j referido Tecrito,

    Mosco da Siclia e Bon de Esmirna, proveniente duma terriola chamada Flossa.

    Vida de Tecrito (Wendel, 1914, 1-2):

    a.

    , , (VII 21) -

    2 Nomeadamente em K, E, A, P, T, G.

    3 Cf. Gow, 1952

    2, vol. 1, xv-xvi, ou Garca Tejeiro & Molinos Tejada, 1986, 9-14 para um levantamento

    completo dessas referncias (inclusive nos scholia). 4 As tradues so nossas, salvo quando indicao em contrrio.

  • 8

    , -

    , '

    . ,

    (VII 40). -

    .

    . -

    .

    b. ,

    .

    (a) Tecrito, o poeta buclico, era siracusano de origem, filho de Simico como

    ele mesmo diz: 'Simquidas, para onde arrastas tu os ps ao meio-dia?'5 (7.21). Alguns

    afirmam que Simquidas alcunha (parece, de facto, que era de nariz chato6) e que teve

    como pai Praxgoras e como me Filina; foi discpulo de Filitas e de Asclepades, aos

    quais faz referncia (7.40). Viveu na poca de Ptolemeu Filadelfo, filho de Ptolemeu

    filho de Lago. Nascendo dotado para a poesia buclica, alcanou grande fama. Foi

    chamado Tecrito, ainda que, segundo alguns, se chamasse Mosco.

    (b) Note-se que Tecrito foi contemporneo de Arato, de Calmaco e de

    Nicandro. Viveu na poca de Ptolemeu Filadelfo.

    Antologia Palatina 9.434:

    , ' ,

    ,

    ' ' .

    Existe outro de Quios; mas eu, Tecrito, o que escrevi estes poemas,

    sou um dos muitos siracusanos

    5 Traduo de Loureno, 2006, 161.

    6 O nome Simico tem origem no adjectivo , de nariz achatado.

  • 9

    e sou filho de Praxgoras e da ilustre Filina.

    Nao adoptei nenhuma Musa alheia.7

    A tradio que aponta Cs como lugar de nascimento e Simico como pai de

    Tecrito descartada pelo facto de Tecrito em dois passos dos seus poemas dar a

    entender que siracusano (11.7 e 28.16-18). Por outro lado, os nomes Praxgoras e

    Filina esto devidamente atestados. A identificao de Tecrito com Simquidas, que

    fala na primeira pessoa, no Idlio VII levou a considerar este nome como um

    patronmico de Simico. Podemos ento concluir que Tecrito filho de Praxgoras e

    Filina e ter nascido em Siracusa no ltimo quartel do sc. IV, por volta de 310, onde

    passou uma parte da sua vida.

    1.2 Fontes autobiogrficas

    Ainda que se tenha colocado como hiptese do seu nascimento a ilha de Cs,

    tendo por base a entrada no lxico Suda que sugere isso mesmo, em grande parte por

    causa da figura de Simquidas no Idlio VII, Tecrito diz na sua obra que siciliano

    (11.7 e 28.16).

    A sua passagem por Cs, onde florescia uma influente escola potica, ter-se-

    dado aps a partida da Siclia8. A ter conhecido personalidades importantes da poca,

    como Filitas de Cs e Asclepades de Samos, e ter-se- tornado amigo do mdico e

    poeta Ncias, todos eles mencionados nos seus Idlios9.

    7 Duas questes tm sido levantadas em relao a este epigrama. Por um lado, a quem se refere este outro

    de Quios? Seria a Homero como defendem uns (Wilamowitz, 1906, 125ss.; Halperin, 1983, 250-253) ou

    a Tecrito, o sofista, contemporneo do poeta buclico e tambm originrio da mesma ilha? (como

    defendem Gow, 19522, vol. 2, 549-550; Cameron, 1995, 422-426; Gutzwiller, 1996, 136-137). No entra

    no mbito do nosso trabalho propor uma soluo nem to pouco resolver a questo. Tambm o ltimo

    verso do epigrama difcil de compreender. Na nossa perspectiva explica-se por um novo tipo de poesia e

    uma nova Musa terem surgido com Tecrito, no tendo por isso mesmo adoptado uma Musa alheia,

    fosse ela da pica (como afirmam os que vem Homero no outro de Quios), da lrica ou outro gnero

    literrio. 8 No Idlio XVI, Encmio a Hiero ou As Graas, Tecrito, sublinhando a importncia da poesia como

    meio de glorificar e imortalizar os governantes, e destacando os seus poemas, que identifica com as

    prprias Graas, faz um apelo a Hiero II de Siracusa (estratego por volta de 275) para obter patrocnio.

    Esta tentativa frustrada de buscar patrocnio na sua terra natal ter levado Tecrito at Cs e depois a

    Alexandria onde encontrou apoio na corte dos Ptolemeus. 9 Lindsell, 1937, 78-93, demonstrou que Tecrito era um grande conhecedor da flora do Egeu tendo posto

    a hiptese de este ter desenvolvido estudos de botnica numa afamada escola da ilha. Filitas de Cs (tutor

  • 10

    Os Idlios XIV, XV e XVII deixam claro, tal como o fragmento de Berenice, que

    o poeta j se encontraria sob influncia da realeza ptolemaica, qual teria apelado aps

    a tentativa de patrocnio gorada dirigida a Hiero. Muito provavelmente conheceu

    Calmaco, com quem partilhava princpios poticos (7.45ss.), e Apolnio de Rodes

    tambm no lhe seria desconhecido. H, de facto, dependncias claras entre o Idlio

    XVII e os Hinos a Zeus e a Delos, de Calmaco, e os Idlios XIII e XXII tm temas

    comuns a episdios dos Argonautica de Apolnio10

    . No h qualquer referncia a que

    possa, nalgum momento, ter desempenhado funes no Museu ou na Biblioteca,

    semelhana de Calmaco e Apolnio. As referncias a Arsnoe II como estando ainda

    viva e casada com Ptolemeu II Filadelfo do-nos uma datao possvel para a sua

    presena em Alexandria e para estes poemas, pois o casamento da rainha teria ocorrido

    por volta de 278 e a sua morte em torno do ano 270. Logo, estes Idlios teriam sido

    escritos dentro desse perodo. Tambm sabemos que Hiero II nomeado general em

    Siracusa por volta de 275. Como Tecrito se refere ao perigo cartagins no Idlio XVI,

    podemos pensar que ter abandonado a ilha por essa altura. No h notcia de uma data

    para a sua morte mas, em geral, aceite a dcada de 260-50 para o seu

    desaparecimento.

    2. Obra

    Da obra de Tecrito chegaram at ns trinta Idlios, que perfazem cerca de 2800

    versos (posteriormente, no Papiro de Antnoe, apareceram fragmentos de um outro

    poema); vinte e quatro epigramas provenientes da Antologia Palatina; um fragmento do

    poema Berenice (fr. 3, Gow, 19522, vol. 1, 238, que nos chegou por intermdio de

    Ateneu) e um intitulado Flauta de P, poema figurado, cujos versos de

    diferente comprimento eram dispostos de modo a sugerir a forma de um objecto. Se

    tomarmos em conta o que nos diz o lxico Suda (cf. p.7), seguramente o corpus

    teocritiano teria uma extenso maior do que a que conhecemos. Consideram-se esprios

    de Ptolemeu II Filadelfo) e Asclepades de Samos so referidos em 7.40. Ncias mencionado nos Idlios

    XI, XIII e XXVIII. 10

    Cf. Khnen, 2001, 73-92, para pormenores sobre a cronologia e as relaes entre os trs poetas e

    possveis influncias.

  • 11

    os Idlios VIII, IX, XIX, XX, XXI, XXIII, XXV, XXVI, XXVII, alguns dos epigramas

    e o poema Flauta de P.11

    .

    Os epigramas assumem as formas tradicionais associadas ao gnero:

    dedicatrias, inscries fnebres, celebrao de poetas, entre outras. Sob a designao

    de Idlios encontramos gneros e temas variados: poemas buclicos ou pastorais, mimos

    urbanos e rsticos, eplios, encmios e poemas de amor.

    A variedade de formas repercute-se tambm a nvel mtrico. Apesar da

    prevalncia do hexmetro dactlico (I-XXVIII), temos tambm metros lricos nos

    poemas de inspirao elica (XXIX-XXXI) e no Idlio XXVIII (pelo seu carcter e

    tamanho quase um epigrama) e metros diversificados nos epigramas, nos quais se

    destaca o dstico elegaco, tambm usado numa seco do Idlio VIII.

    Segundo a tipologia dos prprios poemas h diferenas dialectais. Os poemas de

    inspirao sfica e alcaica usam o dialecto elico (XXIX-XXXI). O dialecto jnico-

    pico surge nos idlios XII-XIII, XVI-XVII, XXII, XXIV-XXV (eplios, hinos,

    encmios). No ltimo grupo (I-XI, XIV, XV, XVIII-XXI, XXIII, XXVI, XXVII), no

    qual se encontram os poemas que celebrizaram Tecrito, os chamados buclicos,

    predominam os elementos dricos, embora seja possvel falar em mescla dialectal,

    como veremos no captulo seguinte. Esta facies drica insere-se na tradio do teatro

    siciliano de Sfron e Epicarmo.

    2.1. O conceito de e o significado de idlio

    Numa poca em que a lngua quotidiana servia um objectivo funcional a ,

    lngua comum, era a lngua do povo, da burocracia, dos actos oficiais surge uma

    poesia que olha para as formas poticas tradicionais com grande nsia de inovao. A

    busca de variedade temtica e mtrica, aliada a um culto da perfeio, originou uma

    poesia caracterizada por uma mistura de temas, formas e dialectos, segundo o princpio

    da , preconizado por Calmaco, que praticou a diversidade temtica, lingustica,

    mtrica e formal12

    .

    11

    Limitamo-nos a listar os poemas que a tradio, por razes lingusticas e mtricas, tem apontado como

    esprios. Para a autenticidade dos epigramas, cf. Rossi, 2001, 355-359. 12

    Calmaco foi um defensor da e, em particular, da , como afirmou no Jambo XIII:

    [....] ...[....]. , ' [], []

  • 12

    A etimologia sugere que os 13

    , um plural neutro do diminutivo de ,

    forma, significariam pequenas formas, ou seja, composies curtas de gnero

    variado14

    , o que se adequa s tendncias estticas da poca helenstica. O termo foi

    adoptado pelos comentadores antigos para designar os poemas de Tecrito. Uns

    scholia15

    associam-no ideia de realismo, na medida em que as palavras retratam com

    verosimilhana as personagens ( ); outros

    relacionam o termo com as tipologia do discurso dramtico e narrativo, podendo

    combinar ambos (

    ).

    esta variedade de cenrios e de temas que pretendemos demonstrar no quadro

    que se segue e que reflecte a presena deste princpio esttico na obra de Tecrito.

    Quadro sinptico dos Idlios de Tecrito:

    Idlios Ambiente e

    tempo

    Personagens

    e ocupaes

    Estrutura

    enunciativa

    Tema

    I. Trsis Ambiente

    campestre;

    tarde

    Pastor Trsis

    e um

    cabreiro

    Dilogo e

    canto

    Mitolgico: a morte de

    Dfnis

    II. A

    feiticeira

    Ambiente

    urbano;

    noite

    Simeta e a

    escrava

    Tstilis

    Monlogo Simeta recorre a prticas

    mgicas para recuperar

    o seu amor

    III. A Ambiente Um cabreiro Monlogo e O cabreiro faz uma

    (Pfeiffer fr. 303.30-33). Estes conceitos reflectem-se na obra de Calmaco no cultivo de

    vrias formas literrias, na variedade mtrica e dialectal: Aitia, Jambos, Hinos, Epigramas, Hcale. 13

    Cf. Gutzwiller, 1996, 129ss.. 14

    Plnio-o-Jovem (Ep. 4.14.9) usa o termo para designar poemas de curta extenso. 15

    L-se nos Scholia (Wendel, 1914, 5):

    , ,

    .

    , .

    .

    ,

    . ,

    .

  • 13

    serenata pastoril canto serenata

    ()

    sua amada Amarlis

    IV. Os

    pastores

    Ambiente

    pastoril

    O cabreiro

    Bato e o

    vaqueiro

    Cridon

    Dilogo Conversa do quotidiano

    entre os protagonistas

    V. O

    cabreiro e o

    pastor de

    ovelhas

    Ambiente

    pastoril

    O cabreiro

    Comatas e

    Lcon

    Dilogo e

    canto

    Os protagonistas trocam

    acusaes atravs dum

    canto amebeu

    VI. Os

    cantores

    buclicos (I)

    Ambiente

    pastoril;

    tarde de

    Vero

    O vaqueiro

    Dfnis e

    Dametas

    Dilogo e

    canto

    Disputa entre os

    protagonistas; tema: o

    amor de Polifemo por

    Galateia

    VII. As

    Talsias

    Ambiente

    pastoril;

    tarde de

    Vero em

    Cs

    Simquidas e

    o cabreiro

    Lcidas

    Dilogo e

    canto

    A caminho das Talsias,

    o encontro com Lcidas

    desencadeia uma troca

    de cantos

    VIII. Os

    cantores

    buclicos

    (II)

    Ambiente

    pastoril

    Os pastores

    Menalcas e

    Dfnis

    Dilogo e

    canto

    Menalcas desafia Dfnis

    a cantar na presena

    dum juiz

    IX. Os

    cantores

    buclicos

    (III)

    Ambiente

    pastoril

    Os pastores

    Menalcas e

    Dfnis

    Dilogo e

    canto

    Os protagonistas so

    desafiados a cantar por

    um annimo

    X. Os

    ceifeiros

    Ambiente

    agrcola; de

    manh

    Mlon e

    Buceu

    Dilogo e

    canto

    Os protagonistas entoam

    cantos cujos temas so o

    trabalho e o amor

    XI. O Ambiente Polifemo Monlogo e Mitolgico: Repudiado

  • 14

    ciclope pastoril canto por Galateia, Polifemo

    encontra consolo no

    canto

    XII. O

    amado

    Ambiente

    pastoril

    Um jovem Monlogo Celebra-se a chegada do

    jovem amado

    XIII. Hilas Ambiente

    campestre

    Narrador Narrao Mitolgico: o rapto de

    Hilas e a busca

    desesperada de Hracles

    XIV.

    squinas e

    Tinico

    Ambiente

    urbano

    squinas e

    Tinico

    Dilogo squinas lamenta-se

    pelo insucesso da sua

    relao amorosa. O

    amigo aconselha-o a

    juntar-se ao exrcito de

    Ptolemeu para esquecer

    os problemas.

    XV. As

    siracusanas

    Ambiente

    urbano; de

    manh

    Gorgo e

    Praxnoa

    Dilogo e

    canto

    As peripcias das

    protagonistas num dia

    de festa (em honra de

    Adnis) em Alexandria.

    XVI. As

    Graas

    Ambiente

    urbano

    Narrador Canto Encmio a Hiero II de

    Siracusa. O narrador

    reala a funo

    imortalizadora da poesia

    e tenta obter patrocnio

    do governante.

    XVII.

    Encmio a

    Ptolemeu

    Ambiente

    urbano

    Narrador Canto Tecrito louva os feitos

    e a grandeza de

    Ptolemeu II Filadelfo

    XVIII.

    Epitalmio

    de Helena

    Ambiente

    urbano

    Narrador Canto Na noite de npcias um

    grupo de donzelas canta

    um epitalmio recm-

    casada Helena.

  • 15

    XIX.

    Ladro de

    mel

    Ambiente

    campestre

    Narrador Narrao Eros picado pelas

    abelhas enquanto rouba

    mel.

    XX. O

    pequeno

    vaqueiro

    Ambiente

    pastoril

    Vaqueiro Monlogo As tentativas goradas de

    um vaqueiro para

    conquistar a amada

    Eunice.

    XXI. Os

    pescadores

    Ambiente

    campestre;

    de noite

    Asfalio e

    outro

    pescador

    annimo

    Narrao/

    Dilogo

    O tema da pobreza e o

    sonho dum pescador

    com um peixe de ouro

    que lhe mudaria a vida.

    XXII. Os

    Dioscuros

    Ambiente

    campestre

    Castor e

    Plux

    Canto

    (hino)/dilogo

    Mitolgico: A vitria de

    Plux sobre mico e a

    luta de Castor com

    Linceu

    XXIII. O

    apaixonado

    Ambiente

    urbano

    Dois jovens

    amantes

    Narrao Um jovem apaixonado

    no resiste indiferena

    do seu amante e enforca-

    se. Eros castiga o

    imperturbvel amante

    matando-o debaixo da

    sua prpria esttua no

    ginsio.

    XXIV. O

    pequeno

    Hracles

    Ambiente

    campestre

    Hracles Narrao Mitolgico: Hracles

    mata as duas cobras

    enviadas por Hera.

    XXV.

    Hracles

    matador do

    leo

    Ambiente

    campestre

    Hracles Narrao Mitolgico: Trs

    episdios de Hracles na

    corte do rei Augias.

    XXVI. As

    Bacantes

    Ambiente

    campestre

    Penteu Narrao Mitolgico: A morte de

    Penteu s mos das

  • 16

    Bacantes.

    XXVII.

    Conversa

    amorosa

    Ambiente

    pastoril

    Dfnis e uma

    pastora

    Dilogo Conversa amorosa entre

    os protagonistas.

    XXVIII. A

    roca

    Narrador Dedicatria Tecrito oferece uma

    roca de marfim mulher

    do seu amigo Ncias.

    XXIX.

    Canto de

    amor (I)

    Apaixonado Canto Declarao ao amado

    indiferente.

    XXX. Canto

    de amor (II)

    Apaixonado Canto O apaixonado lamenta-

    se do amor que sente

    pelo seu jovem amante.

    A especificao semntica do termo idlio como composio potica

    campestre, que se desenrola numa atmosfera como que encantada, deve-se ao grande

    xito dos poemas de carcter tipicamente pastoril cultivados na poca helenstica por

    Mosco, Bon e Tecrito16

    . Entre os Romanos, no sc. I a.C., Verglio, tomando como

    modelo esta poesia pastoril, nomeadamente os Idlios de Tecrito de ambincia

    buclica, comps dez clogas, que, no decorrer das pocas, inspiraram os poetas

    levando-os a versejar o amor em cenrios campestres. Foi por intermdio de Verglio,

    alis, que a poesia buclica se tornou forma de expresso literria na Europa ocidental.

    No sculo I d.C temos as clogas de Calprnio Sculo e mais tarde, no sculo III, as de

    Nemesiano. No Renascimento italiano o tema pastoril volta a ganhar fora com a obra

    de Dante, Petrarca, Boccaccio, atingindo o seu desenvolvimento mximo com a Arcdia

    de Iacopo Sannazaro (c. 1484-85), onde o napolitano Sincero (o prprio autor), procura

    refgio para os seus males de amor no mundo dos pastores da Arcdia. De Itlia, o

    gnero buclico e a temtica pastoril espalharam-se por toda a Europa. Em Portugal,

    merecem referncia S de Miranda, Bernardim de Ribeiro, Cames, Antnio Ferreira,

    todos eles cultivadores de clogas.

    16

    Em mbito grego, so ainda de destacar as obras de Longo, Dfnis e Cloe, de Nono, As Dionisacas, ou

    j na poca bizantina, Drosila e Cricles de Nicetas Eugeniano (sc. XII).

  • 17

    3. Histria do Texto

    3.1. Edio de Tecrito na Antiguidade

    O primeiro indcio que temos duma possvel recolha de poemas buclicos advm

    dum epigrama atribudo ao gramtico Artemidoro de Tarso (primeira metade do sc. I

    a.C.) que figura na Antologia Palatina como 9.205:

    , '

    , .

    As Musas buclicas, outrora dispersas, esto agora todas reunidas

    num s estbulo, num s rebanho.

    Ainda que seja claro que este epigrama estaria destinado a acompanhar uma

    edio de poemas ditos buclicos, no podemos ter a certeza se estes seriam apenas de

    Tecrito ou se incluiriam outros poetas. Wilamowitz (1905, iii-v) ps a hiptese de que

    Artemidoro tivesse reunido uma coleco de poemas buclicos de vrios autores e que o

    seu filho Ton tivesse sido responsvel por uma edio comentada apenas de Tecrito,

    precedida do epigrama da Antologia Palatina 9.434 que anteriormente apresentmos17

    .

    Mas, na realidade, no temos provas suficientes para comprovar esta situao, como j

    Gow havia notado na sua edio, porque o facto de nenhum papiro apresentar poemas

    buclicos de outro autor a no ser de Tecrito torna impossvel validar a hiptese da

    edio de Artemidoro. Muitos dos papiros que foram descobertos durante o sc. XX

    vieram corroborar essa situao; nestes os poemas so apresentados por uma ordem que

    deita por terra a teoria da colectnea buclica. A notcia de que outros autores

    helensticos teriam sido responsveis pelas suas prprias edies deixa sempre essa

    possibilidade em aberto para o caso de Tecrito. Se houve edio do prprio, se os

    poemas circularam individualmente e posteriormente algum conhecedor da obra de

    Tecrito os reuniu so questes que at agora no obtiveram uma resposta consensual

    entre os estudiosos.

    17

    cf. p.8.

  • 18

    Para alm de Artemidoro e de Ton conhecem-se outros comentadores de

    Tecrito. J na Antiguidade prxima do autor, Asclepades de Mirleia (sc. I a.C.)

    parece ter sido um dos seus comentadores, ainda que s conheamos algumas citaes

    que se encontram nos scholia. Outros, dos quais pouco ou nada se sabe alm do nome,

    so Muncio, Teeteto e Amaranto.

    3.2. A tradio manuscrita e papirolgica

    Os cerca de vinte papiros teocritianos situam-se entre o sc. I e os scs. VI-VII

    d.C. e tm sido peas fundamentais para corrigir os erros da tradio manuscrita

    medieval e para confirmar conjecturas. Destes, destacamos o Papiro de Oxirrinco 2064

    + 3548, de finais do sc. II, e o Papiro de Antnoe de cerca de 500 d.C., publicado em

    193018

    . Este papiro, o nico usado por Gow na sua edio, preserva nas dezasseis

    folhas que o compem partes dos poemas I, V, X, XII, XIII, XVII, XXII, XXIV,

    XXVIII, XXIX, XXX, XXXI e, praticamente na sua totalidade, os Idlios II, XIV, XV,

    XVIII e XXVI. Este tem para o nosso trabalho uma especial importncia visto

    apresentar por completo o Idlio XV.19

    Dos cerca de cento e oitenta manuscritos buclicos que chegaram at ns

    nenhum anterior ao sc. XIII, estando, portanto, todos eles, sob a influncia dos

    estudiosos do renascimento bizantino, entre os quais se encontram os reputados

    Mximo Planudes, Manuel Moscpulo e Demtrio Triclnio.20

    Carl Wendel (1914) distinguiu trs famlias de manuscritos que esto

    organizadas de acordo com a ordem apresentada pelos poemas:

    Ambrosiana: Idlios I, VII, III-VI, VIII-XIII, II, XIV, XV, XVII, XVI,

    XXIX; Epigramas e ainda os poemas figurados de Smias Asas e

    Machado.

    18

    Hunt & Johnson, 1930, 19ss.. 19

    Cf. a reproduo do Papiro de Antnoe, que contm parte do Idlio XV na seco dos Anexos (fig.3). 20

    Manuel Moscpulo foi o autor dum comentrio aos Idlios I-VIII de Tecrito, posteriormente

    aumentado por Demtrio Triclnio.

  • 19

    Laurenciana: Idlios I, V, VI, IV, VII, III, VIII-XIII (II, XIV-XVI, XXV;

    Mosco e Bon; Flauta de P e Altar, poemas figurados de autoria

    controversa)21

    .

    Vaticana: Idlios I-XVIII.

    Destas trs famlias a Ambrosiana considerada a mais fidedigna e a Vaticana, a

    menos credvel, com base na ordem dos poemas apresentada pelos papiros mais antigos.

    A tradio manuscrita de Tecrito aponta para um nico arqutipo, devido aos

    erros graves que apresenta. Gow representa-o como no seu stemma codicum22

    .

    A ordem tradicional dos poemas, de I a XVIII, segue a Editio princeps de Bonus

    Accursius (Milo, 1480), que usou um manuscrito da famlia Vaticana, a nica que

    apresenta esta ordem (as outras duas famlias e papiros contradizem-na); a sequncia de

    XIX-XXIX deve-se edio de Henricus Stephanus (Genebra, 1566). Os poemas XXX

    e XXXI s foram adicionados mais tarde de acordo com a descoberta dos mesmos.23

    21

    O interesse crescente suscitado pela poesia de Tecrito levou a que novas composies fossem

    acrescentadas ao corpus buclico (e consequentemente atribudas a este); os poemas apresentados entre

    parnteses foram acrescentados famlia Laurenciana, que por isso mesmo, recebeu a designao de

    ampliada ou tricliniana j que vrios desses textos contm scholia de Demtrio Triclnio. Esta a

    ordem por que aparecem no cdice identificado por Tr em Gow, 1952. 22

    Cf. Gow, 1952, vol. 1, liii. 23

    O Idlio XXX apesar de referido por Lscaris no sec. XVI (conhecido atravs dum manuscrito que se

    encontrava no Monte Atos o qual posteriormente desapareceu) s foi redescoberto e publicado em finais

    do sculo XIX (aparece no cdice Ambrosiano 104). Os escassos fragmentos que nos chegaram do Idlio

    XXXI provm do Papiro de Antnoe publicado em 1930.

  • 20

    PARTE II O IDLIO XV

  • 21

    1. Tradio literria e eventuais fontes

    O Idlio XV insere-se na tradio do mimo, designao que se atribui a pequenas

    peas dramtico-cmicas, nas quais um ou mais actores encenavam uma cena da vida

    quotidiana, em geral das camadas mais humildes da sociedade. Dava-se mais nfase

    descrio das personagens do que ao cenrio. Grupos de actores representavam estes

    textos que eram acompanhados de msica; as representaes tinham lugar em mercados

    e simpsios e aconteciam desde o sc. V a.C..

    O nico autor de mimos conhecido na poca pr-helenstica Sfron de

    Siracusa, contemporneo de Eurpides, que os escreveu em prosa rtmica e dialecto

    drico. Sabes-se que Plato foi seu admirador e que levou para Atenas os seus textos24

    .

    Os cerca de cento e cinquenta fragmentos e uma dezena de ttulos que possumos25

    retratam situaes do dia-a-dia e profisses; exemplificam-no O mensageiro, O

    pescador e o campons, As costureiras, O pescador de atum, entre outros. Seriam

    declamados, cantados ou representados sem grande aparato cnico. Os mimos de Sfron

    classificam-se em masculinos ou femininos de acordo com os protagonistas. Devido ao

    limitado nmero de textos que nos chegaram deste poeta dficil avaliar at que ponto

    Tecrito depende do seu conterrneo. Mas inspirar-se em Sfron26

    seria, alm do mais,

    uma forma de o homenagear, hiptese plausvel atendendo s semelhanas temticas

    que os ttulos e alguns fragmentos deixam pressupor (cf. Idlio II). No entanto, com os

    dados de que dispomos, no possvel avanar muito nesta anlise.

    A hypothesis do Idlio XV refere como fonte para As siracusanas um mimo de

    Sfron entitulado As mulheres que assistem s stmias; mas, pelo contexto do idlio, as

    festas das Adnias, organizadas por Arsnoe II, em Alexandria, podemos supor que

    Tecrito no dever muito ao mencionado mimo de Sfron, alm da ideia central da

    visita de umas mulheres a uma celebrao pblica, como alis, a hypothesis a seguir

    apresentada sublinha:

    .

    .

    . 24

    Cf. D. L. 3.18 25

    Cf. Hordern, 2004, 40ss. 26

    Cf. nota de comentrio ao v. 2.

  • 22

    . '

    .

    . , ,

    ' . (Wendel, 1914, 305)

    Regista-se de seguida o idlio As siracusanas ou As mulheres que celebram

    Adnis. Apresenta umas mulheres de origem siracusana que vivem em Alexandria e,

    que de acordo com o ritual saem para ir festividade do cortejo de Adnis adornado por

    Arsnoe, mulher do Filadelfo. Gorgo vai a casa de Praxnoa e sai com ela para a

    festividade. O poema parte do texto de Sfron As mulheres que assistem s stmias e

    diverge da feio cnica daquele. Em Alexandria durante as Adnias tinham o costume

    de exibir imagens de Adnis e de as lanar ao mar de acordo com a tradio. As

    siracusanas ao sair de casa surpreendem-se com a multido e com tudo o que acontece

    no meio da multido. Tecrito, que vivia em Alexandria, descreve, em honra da rainha,

    o violento tumulto dos homens, e uma jovem que entoa um canto e que celebra nesse

    canto a excelncia de Arsnoe.

    Um outro poeta autor de mimos (escritos, neste caso, em verso jmbico e

    dialecto jnico, e por isso designados mimiambos) trata os temas que aparecem em

    Sfron e em Tecrito. Referimo-nos a Herodas, contemporneo de Tecrito (ou um

    pouco posterior, j sob o Evrgeta) e talvez oriundo de Siracusa ou de Cs, cenrio de

    alguns dos seus poemas. Um papiro de Oxirrinco, publicado em 1891, restituiu tudo o

    que se conhece deste autor: sete poemas completos, um oitavo muito fragmentado e os

    primeiros versos do que seria o nono poema. O Mimiambo IV, As mulheres no templo

    de Asclpio, tem assinalveis paralelos temticos com o Idlio XV: duas mulheres

    acompanhadas pelas escravas dirigem-se ao templo de Asclpio para fazer uma

    oferenda e maravilham-se a observar as obras de arte que a se encontram.27

    27

    Cf. Di Gregorio, 1997, 26ss.

  • 23

    2. Insero do idlio na sua poca

    Costuma agrupar-se o Idlio XV com os Idlios II e XIV por todos eles se

    passarem em ambientes citadinos, os chamados mimos urbanos28

    . Decorrendo a aco

    em Alexandria, As siracusanas constituem, de facto, um documento importante para

    conhecermos esta cidade do sc. III a.C.: uma cidade cosmopolita (era a maior

    metrpole do Mediterrneo na poca), plena de azfama, onde habitaria gente oriunda

    de todo o mundo grego. O prprio poema reune personagens de vrias provenincias: as

    protagonistas so duas siracusanas; um dos desconhecidos que critica o sotaque aberto

    das mesmas seria originrio de outra zona do mundo grego; a cantora descrita como

    filha da argiva e, por isso, oriunda da Grcia continental; por fim, feita uma

    referncia aos nativos egpcios que coabitariam com todas estas gentes gregas.

    O conhecimento que Tecrito demonstra da cidade e dos seus costumes, tornam

    plausvel a tese da hypothesis de que o poeta se encontraria em Alexandria quando

    escreveu o idlio.

    H, no poema, vrias referncias a Arsnoe II, elogiada (e comparada a Helena)

    pela organizao das festas em honra de Adnis29

    , e tambm a Ptolemeu (vv. 23-24; 46-

    50; 109-111). Podemos, portanto, dizer que As siracusanas exaltam a grandeza dos

    Ptolemeus e de Alexandria, assumindo funes de poema propagandstico. Sob a

    influncia da corte ptolemaica so lgicas e esperadas as referncias aos soberanos,

    algumas vezes de forma explcita, outras nem tanto. Assim as aluses a Golgos e Idlio

    (v. 100), a Mileto e Samos (v. 126) e aos perfumes da Sria (v. 114), na cano de

    Adnis, remetem-nos para as recentes conquistas dos Ptolemeus e, por conseguinte,

    para a sua grandeza. A forma como Tecrito faz esta mescla entre fico e realidade

    merece realce.

    A referncia a Arsnoe II j casada com o seu irmo Ptolemeu II permite-nos

    datar com alguma segurana a composio do poema; o casamento real deu-se em 278

    (ou 274) e Arsnoe II faleceu em Julho de 270 (ou 268). A aluso deificao de

    Berenice (vv. 106ss.) ajudaria a encontrar o ano preciso, se soubssemos quando esta

    28

    Cf. o estudo de Burton, 1995, no qual se focam questes relacionadas com a mobilidade e imigrao,

    as relaes entre homem e mulher e a influncia do patrocnio real no imaginrio potico. 29

    Para Burton (1995,134), o valor deste encmio depreende-se com o facto de ser o principal testemunho

    da celebrao das Adnias na poca helenstica.

  • 24

    teve lugar.30

    As aluses histricas e referncias a personagens contempraneas so de

    extrema importncia para a datao dos poemas. Mas poucos Idlios de Tecrito

    possibilitam fazer estas associaes cronolgicas de forma coerente31

    .

    3. O poema

    3.1. Sinopse

    Gorgo, acompanhada pela escrava utiquis, chega a casa de Praxnoa com o

    intuito de a levar consigo s festas em honra de donis, que decorreriam no palcio

    real. unoa, a escrava da anfitri, prepara um banco com uma almofada para que a

    visitante se instale.

    Depois de uma breve troca de palavras sobre a azfama da cidade, sobre a

    localizao geogrfica da casa de Praxnoa e sobre os maridos, Gorgo desafia a amiga

    para ir ao festival (vv. 4-24). Praxnoa, depois de alguma hesitao em aceitar a

    proposta feita, prepara-se para sair, tomando um banho e mudando de vestes (vv. 25-

    39). Antes de deixar a casa, dirige-se ao filho, ainda beb, e d as ltimas ordens

    escrava Frgia, que ficar a tomar conta da criana e do lar (vv. 40-43).

    As duas senhoras, acompanhadas pelas suas escravas, avanam pelas ruas.

    Praxnoa fica perplexa perante a azfama, elogia Ptolomeu e assusta-se quando surgem

    os cavalos do rei (vv. 44-59). Encontram uma velha, a quem Gorgo pede informaes

    (vv. 60-64). Finalmente chegam s portas do palcio, onde a confuso ainda maior (v.

    65). Decidem dar as mos, na tentativa de entrar mais facilmente (vv. 66-68). Quando a

    veste de Praxnoa se rasga aparece um primeiro desconhecido, que as auxilia; apenas

    unoa fica para trs (vv. 69-76).

    Vencida a extrema dificuldade que representou a entrada, j no interior do

    palcio, falam com admirao das magnficas tapearias que decoram o recinto (vv. 77-

    86). Um segundo desconhecido interrompe a conversa entusiasmada das duas mulheres,

    30

    Na mesma situao se encontra o Idlio XVII, ainda que o poderio de Ptolemeu descrito no poema

    aponte para uma data em torno de 275/4. 31

    Os Idlios XIV, XV e XVII servem propsitos propagandsticos, exaltando a realeza ptolomaica. No

    entanto, tambm outros poemas, nomeadamente os Idlios XIII, XVIII, XXII e XXV, pelas figuras

    mitolgicas a apresentadas, podem estar ligados aos Ptolomeus, j que so figuras intimamente

    relacionadas com o panteo ptolomaico. J tivemos oportunidade de referir o caso especfico do Idlio

    XVI, a Hiero de Siracusa.

  • 25

    criticando a sua pronncia. Praxnoa reage violentamente e defende os seus direitos (vv.

    87-95). A altercao termina com o anncio feito por Gorgo de que iria comear o belo

    canto de Adnis (vv. 96-99). Neste momento o tom torna-se solene. Depois de uma

    invocao a Afrodite, na qual se insere um elogio a Arsnoe, a cantora descreve o

    cenrio, onde estavam Adnis e Afrodite (vv. 100-131); a seguir descreve a procisso

    que ter lugar no segundo dia das celebraes (vv. 132-135). O canto encerra com um

    panegrico a Adnis, em que se referem vrios heris, menos afortunados, e se pede a

    renovao cclica da festa (vv. 136-144). Gorgo tece um comentrio muito positivo

    sobre a actuao da cantora, destacando a sua sabedoria e a sua voz (v. 145-146).

    Apercebendo-se do avanar da hora, Gorgo regressa realidade e s preocupaes do

    seu quotidiano, neste caso, o almoo que urgia preparar para o marido; despede-se ento

    de Adnis (vv. 147-149).

    3.2. Localizao da aco no tempo e no espao

    Os ltimos versos do poema permitem concluir que a aco se desenrola da

    parte da manh, terminando j perto da hora de almoo (v. 147).

    Gow32

    , com base nos frutos mencionados no v. 112, defende que a celebrao

    ocorreria no final do Vero, princpios do Outono. A verdade que, como defende

    White33

    , uma meno aos frutos no obriga a que estes sejam mesmo reais, pois era

    hbito neste tipo de celebraes usarem-se imitaes de cera, para fins decorativos. A

    data da celebrao das Adnias teria, portanto, lugar, em Alexandria, no final da

    Primavera. Esta data, alis, no diverge da que Simms sugere para as Adnias em

    Atenas, que ocorerriam em 4 ( 11 de Junho)34

    . Tambm a veste que

    Praxnoa enverga designada e o chapu (, v. 39), levam-nos a supor

    que o tempo estaria quente e soalheiro, corroborando a nossa concluso35

    .

    Tendo em conta as informaes que conhecemos da cidade de Alexandria e da

    disposio da mesma36

    , e pelo desenrolar dos acontecimentos no Idlio XV, podemos,

    32

    19522, vol. 2, 265.

    33 1981, 191-206.

    341997,45-53.

    35 Sobre a associao das Horas Primavera cf. nota de comentrio ao v. 103.

    36 Str. 17.793-795

  • 26

    de algum modo, tentar traar o possvel percurso das protagonistas37

    . Sabemos que

    Praxnoa habita numa zona remota da cidade, provavelmente fora do centro. A multido

    que encontram pelas ruas permite inferir que se trataria de uma das artrias principais da

    cidade, talvez a Via Canpica que atravessava Alexandria de Este (Porta do Sol) a

    Oeste (Porta da Lua). O hipdromo encontrava-se na zona leste da cidade depois da

    Porta do Sol, e seria para a que se dirigiam os cavalos do rei com que Praxnoa e Gorgo

    se cruzam no v. 50. O palcio real e respectivos anexos ocupavam o promontrio de

    , a norte da cidade, para onde vo as duas mulheres e de onde viriam no s os

    cavaleiros, mas tambm a velha que encontram a seguir (v. 60). Conclumos, portanto,

    que as duas amigas viriam da zona este da cidade, tendo entrado provavelmente pela

    Porta do Sol, caminharam atravs da via principal, onde se cruzam com toda a multido

    e com os cavalos do rei, e mais frente cortam direita para norte em direco ao

    palcio real. A, e j perto do palcio, encontram a velha a quem pedem informaes,

    chegando por fim s portas do palcio (v. 65).

    3.3. Carcter dramtico do idlio

    Se este idlio fosse uma pea de teatro poderamos dividi-lo em trs actos, tendo

    em conta a sucesso dos espaos e das personagens. O primeiro acto decorreria em casa

    de Praxnoa (vv. 1-43). O segundo teria lugar j nas atribuladas ruas de Alexandria,

    quando as duas siracusanas se dirigem ao palcio real para assistir s celebraes que a

    tero lugar (vv. 44-77). No ltimo acto, a aco desenrolar-se-ia no palcio de Ptolemeu

    II Filadelfo (vv. 78-149). Nesta ltima seco ainda possvel considerar trs

    momentos distintos de acordo com a tipologia discursiva: os versos 78 a 99 inserem-se

    na parte mmico-dialgica, mantendo as protagonistas em destaque; nos quarenta e

    cinco versos seguintes (vv. 99-144), uma cantora interpreta a cano de Adnis em tom

    mais solene, que nos reporta lrica e pica como a prpria mtrica tambm sugere

    (cf. comentrio estilstico e mtrico infra). A cena final do idlio, constituda pelos

    ltimos quatro versos, surge como uma concluso, uma espcie de xodo teatral, que

    reintegra as protagonistas no seu quotidiano e nas suas preocupaes dirias e pode ser

    vista como uma forma de fazer os espectadores voltarem tambm realidade. Acabou o

    37

    Cf. Anexos, fig. 4.

  • 27

    espectculo, est na hora de voltar para casa, quer para as protagonistas quer para uma

    hipottica plateia que estaria a assistir representao deste mimo. Ainda que no

    tenhamos notcia de terem sido encenados, estes mimos, pela sua estrutura dramtica,

    pelas personagens e situaes realsticas seriam totalmente representveis38

    .

    Em vrios momentos encontramos o que poderiam constituir indicaes cnicas.

    De facto, os decticos (sobretudo advrbios de lugar, de tempo e de modo) permitem

    visualizar os movimentos das personagens em cena e contribuem para o ritmo da aco:

    (v. 1); (v. 6); (v. 27); (v. 29); (v. 33); (v. 43);

    (v. 56). Alm disso, os vocativos, as invocaes feitas aos deuses ( , v.44)

    e os imperativos constantes (, v. 3; , v. 3; , v. 21; , v. 22; , v.

    27; , v. 29; , v. 30; et alia) tornam o dilogo vivo e realista.

    3.4. Caracterizao das personagens

    A aco centra-se em duas siracusanas da classe mdia, Gorgo e Praxnoa, duas

    amigas residentes na metrpole egpcia, explorando-se o universo feminino, como no

    Idlio II. No entanto, enquanto neste a mulher est associada temtica amorosa e

    prtica de magia, no Idlio XV vive-se uma situao do quotidiano com as preocupaes

    inerentes ao mundo feminino. Toda a aco se desencadeia em torno das festas de

    Adnis39

    , um festival em que participavam maioritariamente mulheres, que entoavam os

    cnticos e acompanhavam a procisso solene40

    .

    So vrias as personagens que ajudam a retratar o dia-a-dia das duas mulheres.

    Umas so o que no teatro se consideram personagens mudas; outras tm curtas falas e

    um aparecimento pontual, o que permite classific-las como secundrias; alm destas,

    ainda h que considerar aquelas que, sendo apenas referidas, ajudam a caracterizar as

    protagonistas e o seu mundo.

    38

    Mastromarco, 1984, 95-96, sugeriu que os Mimiambos de Herodas seriam representados na corte ou

    nas casas das famlias mais abastadas e cultas da sociedade alexandrina. A mesma hiptese poderia, na

    nossa perspectiva, ser colocada para os mimos de Tecrito. 39

    Parte da narrativa de A rapariga de Samos de Menandro decorre durante a celebrao das Adnias. 40

    Lambert (2001, 87-103), considerando a herana da comdia e do mimo em Tecrito, defende que este,

    no Idlio XV, parodia a perspectiva feminina de um festival religioso. Por outro lado, Griffiths (1981,

    247-258), Burton (1995, 134) e Davies (1995, 152) defendem que Tecrito quer explorar o mundo

    feminino e as suas atitudes, mostrando o ponto de vista emancipado das mulheres desta poca num dia

    que lhes especialmente dedicado e realando o poder e importncia alcanados por Arsnoe II.

  • 28

    Como personagens secundrias temos uma velha, dois desconhecidos e uma

    cantora; as personagens mudas so as escravas e o beb, filho de Praxnoa. Reforam o

    realismo do ambiente e enriquecem a caracterizao das protagonistas os maridos Dnon

    e Dioclides, personagens apenas mencionadas. As referncias aos soberanos Ptolemeu e

    Arsnoe e a Adnis e Afrodite importam sobretudo no mbito da leitura do poema como

    instrumento de propaganda ptolomaica.

    3.4.1. As personagens principais

    Praxnoa

    Praxnoa juntamente com Gorgo a protagonista do Idlio XV, mas, se

    confrontarmos ambas, notamos que aquela personagem se destaca pelo nmero de

    intervenes que tem ao longo do poema e pela forma como se salienta, mais

    interveniente e opinativa do que a amiga. O nome, etimologicamente, alia aco

    () e pensamento (), o que se adequa ao seu carcter voluntarioso, obstinado e

    desembaraado. Recordemos, por exemplo, que, diante do palcio, arquitecta

    rapidamente uma forma eficiente de entrar, no obstante a confuso que se verificava

    (vv. 66-68).

    A referncia ao marido serve para a caracterizar, acentuando o seu lado

    pragmtico e crtico. A etimologia do nome Dnon clarifica a forma como a mulher olha

    para ele. Ele , na sua opinio, terrvel, pois mostra-se desptico e ciumento, ao

    adquirir uma casa nos confins do mundo. So os cimes que tinha do bom

    relacionamento entre as duas amigas, segundo Praxnoa, que explicam essa deciso.

    Estamos perante os tradicionais cimes que as mulheres sempre atribuem aos maridos

    pelas suas amizades.

    Mas Praxnoa tem sobre Dnon a vantagem de entender o seu comportamento.

    Quando aquele vai s compras e troca os produtos (vv. 15-17), f-lo por incapacidade de

    perceber o que ia buscar concretamente; no era um homem de pensamento, tinha

    apenas tamanho fsico, 41

    . Praxnoa, pelo contrrio, como o nome

    indica, uma mulher que pensa, interpreta e at cria vocbulos de grande complexidade

    lingustica como aquele que acabmos de citar. De facto, esta personagem tem a

    tendncia para o uso do adjectivo (vv. 10; 45; 50; 53; 75; 83, et alia), mostrando-se

    41

    Sobre a palavra cf. nota de comentrio ao v. 17.

  • 29

    hbil a criar novos compostos na sua necessidade de caracterizar o mundo que a rodeia,

    por vezes de forma exagerada. Na realidade, o exagero tambm uma tendncia da

    personagem (vv. 8; 36-37; 45; 80-83).

    Tem uma personalidade autoritria que se revela nas ordens e at insultos que

    dirige escrava, (vv. 27-33; 53-54; 76) e na forma como trata o desconhecido, que

    interrompe a conversa das duas amigas, ordenando-lhes que se calem. Nesse momento

    Praxnoa adopta uma atitude violenta, em que reclama os seus direitos, referindo os

    antepassados(vv. 89-95). Alm de determinada, mostra que pensa por si prpria, no se

    sujeitando opinio alheia.

    Esta mulher que conhece a histria mtica de Corinto, donde provm os colonos

    de Siracusa, orgulhosa das suas origens e dos seus ascendentes mais longnquos, o que

    nos d a ideia de que, apesar de se viver numa poca j bastante globalizada dos reinos

    helensticos e da , ainda prevaleciam os antigos traos e valores distintivos entre os

    vrios povos gregos. Neste caso, o sentimento que o permite inferir o seu orgulho no

    dialecto drico. Quando acusa os egpcios de atacar os transeuntes e os designa como

    bons vigaristas, raa maldita, denota uma atitude xenfoba que reflecte os conflitos

    que haveria entre os vrios povos (vv. 46-50). Ao preparar todas as comodidades para

    receber Gorgo, estamos perante a observncia dos rituais de hospitalidade,

    absolutamente sagrados para os gregos (vv. 2-3).

    Como mulher, mostra-se preocupada com o lar e com a criana, ordenando

    escrava Frgia que trate da casa, do beb e do animal domstico na sua ausncia. Ao

    dissuadir o filho de as acompanhar, ameaando-o com o papo, revela, por um lado,

    determinao, por outro, evidencia que os recursos usados pelas mes com as crianas

    so os mesmos em todas as pocas. maternal, apesar de um pouco severa, porque, em

    plena confuso na rua, face aos cavalos do rei, e, na sequncia do seu susto, recorda o

    filho e congratula-se por o ter deixado em segurana, em casa. Fica claro que no se

    quis desembaraar da criana, mas evitar situaes de risco para a mesma. O filho no

    deixa de a acompanhar no seu pensamento. O prprio nome do beb, Zopiro, em grego

    um diminutivo de , fasca ou fagulha, denuncia a fragilidade da criana e

    justifica a preocupao de Praxnoa em proteg-lo.

    Aparentemente pretende ser uma boa gestora da casa, pois censura a escrava por

    esbanjar sabo (v. 30), mas ter feito um investimento excessivo na confeco do

    vestido (vv. 36-37). O facto de ela prpria o admitir mostra-a apegada aos bens

  • 30

    materiais, o que se confirma quando lhe rasgam a veste e se preocupa com o xaile (vv.

    69-71). No encontro com o primeiro desconhecido, que as ajuda (vv. 74-75), os

    adjectivos qualificativos, que utiliza numa associao que a crase refora, salientam, de

    forma exagerada, a utilidade do gesto e a piedade que este reflecte:

    . como se sacralizasse a roupa que usa. A prpria admirao que sente

    dentro do palcio face decorao do recinto, tecendo os maiores elogios s tapearias

    que observa (vv. 80-86), pode ser interpretado no apenas como um reflexo da sua

    sensibilidade artstica, mas tambm uma consequncia do fascnio pelo fausto e pelas

    riquezas.

    Apesar de obstinada, voluntariosa e desembaraada Praxnoa tem algumas

    fobias, entre as quais se encontram os cavalos e as cobras, que teme j desde a infncia

    (vv. 58-59). No entanto, est constantemente a referir animais, comparando, de forma

    pejorativa, a escrava doninha (v. 28) e a multido s formigas (v. 45) e aos porcos (v.

    73). A forma como refere a sua prpria casa, como um buraco (v. 9), servindo-se de

    um vocbulo cujos outros sentidos so tambm o de toca ou covil, confirma a

    presena do mundo animal no seu pensamento, quando se trata de fazer uma avaliao

    negativa das situaes. Estas imagens recordam-nos a presena da figura animal na

    Comdia Antiga. Na verdade, nesta, com frequncia os homens evocam animais. Para

    mencionarmos apenas os que no Idlio XV surgem, lembramos em Acarnenses 255 a

    figura da doninha, que Dicepolis refere a propsito da sua filha e mesmo as formigas

    em Tesmofrias 100, numa expresso metafrica usada tambm em contexto pejorativo.

    A importncia dos animais era tal como dinamizadores do cmico que chegam a

    constituir os coros de algumas comdias, a partir dos quais estas recebem os seus

    ttulos: Aves, Rs e Vespas de Aristfanes exemplificam-no42

    .

    Gorgo

    O nome Gorgo mais antigo que se encontra atestado na literatura grega designa

    um demnio feminino de olhar terrvel (Il. 8.349; 11.36). Esta relevncia do olhar

    reflecte-se no poema de Tecrito, no qual a personagem de nome Gorgo tem um olhar

    atento, vendo tudo antes da amiga. Os verbos que remetem para a viso so uma

    constante nas intervenes desta personagem (vv. 12; 23; 25; 65; 78;). Apenas quando 42

    Kenneth Rothwell estudou a relao entre os coros de animais e as origens da comdia grega em

    Nature, Culture and the Origins of Greek Comedy: a Study of Animal Choruses (Cambridge, 2007).

  • 31

    chega a casa da amiga no a v, em todos os outros momentos chama a ateno para os

    acontecimentos e mostra capacidade de os discernir a uma distncia incomum, como

    sucede quando acalma Praxnoa anunciando que os cavalos do rei, j longe, tinham

    chegado ao seu destino (vv. 56-57). Atenta s situaes, apercebe-se do olhar

    amedrontado do beb (v. 12) e nota a cantora a preparar a voz para comear a cantar (v.

    99). Acalma Zopirio, olhando-o nos olhos, qual Medusa, com a diferena de que o seu

    efeito lenitivo em vez de destrutivo (vv. 13-14).

    A impetuosidade e a vivacidade que o adjectivo pressupe reflectem-se

    no facto de tomar a iniciativa de desafiar a amiga para ir ver Adnis e, de forma

    decidida e vigorosa, fazer com que Praxnoa se arranje e abandone o lar para a

    acompanhar ao palcio real.

    A tendncia para exagerar as situaes est presente em Gorgo, tal como em

    Praxnoa, quer quando se queixa da distncia percorrida e das dificuldades vividas para

    chegar a casa da amiga (vv. 4-7), quer quando critica o seu marido, Dioclides, to

    incompetente como Dnon (vv. 18-20), por fazer mal as compras, adquirindo produtos

    de baixa qualidade, e por esbanjar dinheiro. No final do poema, quando surgem de

    novo as preocupaes quotidianas das duas mulheres, critica Dioclides pelo seu mau

    feitio (vv. 147-148).

    Gorgo revela-se sensata e prudente. Acalma a amiga e d-lhe nimo, quando se

    deparam inesperadamente com os cavalos do rei (v. 56). Pe tambm fim discusso

    entre Praxnoa e o desconhecido que as critica evitando conflitos maiores (v. 96) e,

    procura, de forma avisada e prudente, informar-se sobre a situao no palcio antes de

    l chegarem (v. 63).

    Revela-se uma mulher mais poupada do que Praxnoa quando se mostra

    apreensiva com os gastos inteis do marido; a vaidade feminina impede-a, no entanto,

    de criticar a amiga pela despesa avultada com a confeco do vestido.

    A sua sensibilidade artstica reflecte-se na apreciao que faz da decorao do

    interior do palcio (vv. 78-79) e da voz da cantora tanto antes (vv. 96-99) como depois

    do canto (vv. 145-146). Na sua interveno final, ao despedir-se de Adnis, ecoam as

    palavras proferidas pela cantora (v. 149), reflexo inconsciente da forma como interioriza

    a arte (vv. 143-144).

  • 32

    3.4.2. As personagens secundrias

    A velha

    A velha com quem se encontram as protagonistas nos vv. 60-64 uma

    personagem misteriosa e oracular. A sua resposta ouvida com estranheza pelas duas

    siracusanas que a comparam a uma profetisa. Burton43

    caracteriza a velha como mythic

    helper, aproximando-a das figuras mticas (deuses por norma) que surgem na pica com

    intuito de ajudar as personagens44

    . Segundo a estudiosa, a expresso (v.

    62) evoca o mundo homrico, aparecendo com frequncia em Homero em contextos

    profticos (Il. 2.330; 14.48; Od. 2.176; 5.302; 13.178; 18.271).

    A aproximao do universo pico torna a misso destas duas siracusanas uma

    verdadeira empresa herica (comparvel dos Aqueus). Na verdade, a sua tentativa de

    entrar no palcio real, um lugar quase mtico, no ser fcil e esta associao a Tria

    serve precisamente para sublinhar as dificuldades que as mulheres encontraro.

    Os desconhecidos

    Os dois desconhecidos com quem as siracusanas se cruzam caracterizam as

    personagens principais e realam alguns aspectos especficos da vida em Alexandria no

    sc. III a.C.. As personalidades destes dois homens contrapem-se, pois o primeiro

    mostra-se afvel e solidrio e o segundo, rspido e xenfobo.

    O primeiro apresenta-se como uma personagem educada e prestvel, pois ajuda

    Praxnoa sem a conhecer, ao v-la em apuros no meio da multido (vv. 70-75). Esta boa

    aco insere-se na temtica da solidariedade humana, j explorada na Comdia Nova45

    .

    Porque ajuda as protagonistas a chegar ao seu destino, este desconhecido, pode, tal

    como a velha, ser visto como um mythic helper.

    J o segundo, numa atitude xenfoba, manda calar as duas siracusanas que

    observam entusiasmadas a decorao do recinto (vv. 87-88). Praxnoa, que antes tinha

    43

    1995, 15-16. 44

    Recordemos, Odisseia, 7.18ss., onde Atena disfarada de rapariga que transporta gua, aparece a

    Ulisses e lhe indica o caminho para o palcio de Alcnoo ou em 10.276ss. em que Hermes, tambm este

    sob disfarce, aparece a Ulisses e lhe revela os cuidados a ter com Circe, dando-lhe uma poo mgica que

    o proteger dos encantos da feiticeira. Tambm na Ilada, 24.348ss., Hermes, novamente sob disfarce,

    acompanha Pramo que se dirige s naus aqueias a fim de recuperar o corpo de Heitor. 45

    O tema da solidariedade humana e da entreajuda foi largamente tratado na Comdia Nova. Exemplo

    disso so as comdias de Menandro, em que, no poucas vezes, somos postos diante de tais situaes. No

    Dscolo, Grgias salva o velho misantropo que tinha cado no poo, quando este pelo seu carcter nem

    merecia ser salvo (vv. 620ss.).

  • 33

    tido a mesma atitude em relao aos egpcios, agora vtima desta mesma xenofobia. A

    crtica feita sua pronncia drica reflecte as querelas sociais que existiriam na

    sociedade alexandrina na poca dos Ptolemeus, onde coabitavam povos de todo o

    mundo grego.

    A cantora

    A importncia da cantora restringe-se sua funo. Dela pouco sabemos para

    alm do facto de ser a filha da argiva (v. 97) e exmia na sua arte (Gorgo faz-nos

    saber que a cantora possui alguma tcnica, pois antes de comear a cantar, executa

    exerccios de aquecimento vocal (, v.99)). Na verdade, Gorgo mostra-se

    satisfeita com o seu desempenho, elogiando a sua sabedoria e a sua doce voz (vv. 145-

    146). Talvez a sua carreira fosse uma herana, pois a sua identificao como a filha da

    argiva, leva-nos a supor que a sua me tambm se celebrizara na mesma arte. Esta

    referncia e o facto de encontrarem a velha a regressar do palcio permite supor que

    haveria uma competio de cantoras que entoariam hinos a Adnis, entre as quais se

    elegeria uma vencedora. A velha estaria de volta por ter assistido j performance de

    outras cantoras e a filha da argiva que no ano anterior se distinguira no canto (v. 98)

    seria mais uma das cantoras.

    3.4.3. As personagens mudas

    As escravas

    No poema aparecem trs escravas, unoa e Frgia, escravas de Praxnoa, e

    utiquis, escrava de Gorgo, de cuja presena s nos apercebemos no momento de

    entrarem no palcio (v. 67).

    Da escrava Frgia sabemos apenas a sua origem: a sia Menor. Era hbito os

    Gregos apelidarem os escravos conforme a sua provenincia. Cumpre, como se espera,

    os seus deveres de escrava domstica, tratando da casa e da criana (vv. 42-43).

    Os nomes das outras duas escravas tm na sua formao o prefixo -, o que

    remete para algo propcio e torna os nomes como que uma formulao de bom augrio.

    Em utiquis, o prefixo junta-se ao substantivo , significando boa sorte.

    Realmente as quatro mulheres precisariam de toda a sorte para chegar ao seu destino. O

    termo leva-nos Comdia Nova, onde a Sorte desempenha um papel de relevo no

  • 34

    desenrolar da aco e no cumprimento do final feliz46

    . No idlio como se fosse a

    presena de utiquis que permitisse s protagonistas chegar ao seu destino.

    O nome unoa significa aquela que pensa bem, como se o nome da sua

    senhora, Praxnoa, se projectasse no da escrava. No caso desta parece tratar-se de uma

    ironia, pois de mos dadas com a sorte (utiquis) unoa esmagada pela multido,

    quando fica para trs (v. 76). Apesar de obediente, revela-se indolente, como uma

    doninha (v. 28), desleixada, por deixar as coisas fora do stio (v. 27), e estulta, se

    considerarmos justas as constantes crticas e chamadas de ateno feitas por Praxnoa,

    que chega mesmo a insult-la pela sua pouca destreza e ausncia de iniciativa (vv. 29-

    31). Esta escrava to inbil e preguiosa que nem mesmo para se salvar dum perigo

    iminente reage (v. 44), sendo necessria a interveno da dona, que recorre mais uma

    vez ao imaginrio animal comparando a sua impudncia de um co (v. 53). A sua falta

    de aptncia para realizar qualquer tarefa torna-a um catalisador do cmico.

    3.5. Temas

    Numa poca em que a plis como centro unificador j no existe, assistimos ao

    surgimento de um nova cultura que assenta no individualismo e no cosmopolitismo. A

    cultura das cortes helensticas elitista e livresca, baseada essencialmente na palavra

    escrita. A fruio desta individual, sentindo-se o homem parte de uma comunidade

    intelectual ligada pela mesma lngua. Estes factores levaram ao desenvolvimento na

    literatura de temticas de cariz mais intimista, que j se encontram na Comdia Mdia e

    se consolidaram com a Comdia Nova, na qual se destaca Menandro. O bem-estar do

    homem desloca-se da plis para a esfera da famlia e da vizinhana, ganhando relevo

    46

    No Escudo (vv. 97ss.) de Menandro, a deusa Fortuna aparece personificada e vem esclarecer a trama (

    ela que faz o prlogo), e proclama-se aquela que tudo sanciona e comanda (traduo de Sousa e Silva,

    M. F., 2007. Menandro obra completa. Lisboa). No Dscolo, embora no aparea como personagem, a

    tem uma papel importante no desenrolar dos acontecimentos, explicando o deus P, logo no incio da

    pea, que foi que o enamorado Sstrato chegara ao lugar onde se vai desenrolar a aco

    (Dysc. 43). Em conversa com o pai, o jovem reala a fragilidade do homem que sujeito aos caprichos da

    , nunca pode pensar que controla o seu destino, pois a qualquer momento possvel uma reviravolta

    da fortuna (Dysc. 803-804). Com o individualismo crescente, o homem passa a venerar a , que se

    sobrepe aos outros deuses.

  • 35

    temas como a amizade, o amor, as relaes familiares e a solidariedade humana47

    .

    Todos estes temas esto presentes em Tecrito e no Idlio XV em particular.

    A tradio do mimo inclua o tratamento do quotidiano tendo como

    protagonistas personagens de estratos sociais humildes. No caso do Idlio XV as

    protagonistas pertencem a uma classe mdia e o facto de serem mulheres insere o

    poema na tipologia dos mimos femininos (segundo a diviso feita por Sfron), como j

    referimos. Consequentemente os temas tratados relacionam-se sobretudo com o

    universo da mulher de um determinado estrato social, caracterizado por realidades

    intemporais: os trabalhos domsticos, os caprichos das crianas, a gesto da casa, as

    conversas tpicas entre amigas em que surgem as tradicionais crticas aos maridos com

    as suas bizarrias, inpcia e exigncias; a valorizao da indumentria feminina e o

    fascnio desencadeado pela arte entre as pessoas comuns48

    .

    Gorgo e Praxnoa entram no palcio real e ficam plenas de admirao e extse

    ao verem as magnificas tapearias onde est representado Adnis. Os adjectivos que

    usam para as qualificar reflectem sensibilidade e ao mesmo uma surpresa que prpria

    da sua condio social. No seria todos os dias que teriam oportunidade de estar to

    perto de tal esplendor (lembremos que Praxnoa diz que vive num buraco). Mas a

    forma como as comentam reflecte o seu universo e as suas ocupaes habituais. Sendo

    mulheres, o tear constituia para elas uma ocupao importante. Por isso Praxnoa reala

    o trabalho que as fiandeiras tiveram para confeccionar aquelas tapearias e Gorgo

    compara-as indumentria.

    Do ponto de vista das relaes humanas encontramos para alm do tema da

    amizade a temtica amorosa, retratada de duas maneiras diversas. Por um lado, temos a

    relao conjugal das duas siracusanas com os respectivos maridos, fundamentada num

    sentimento terreno, com os seus habituais confrontos. Por outro, temos um amor

    idlico, aquele que une o semideus deusa Afrodite, e que introduz no poema o

    elemento mitolgico e o erudito boa maneira alexandrina.

    Do ponto de vista social esto presentes neste idlio as relaes entre donos e

    escravos, que do ao poema um tom de comicidade, como vimos. A solidariedade

    humana outro dos temas presentes graas figura do primeiro desconhecido.

    47

    Cf. Webster, 1974, 25-55. 48

    Sobre esta temtica cf. Burton, 1995, 93-122.

  • 36

    Tambm esto patentes as tenses entre Gregos de vrias zonas geogrficas e

    entre Gregos e Egpcios. A grandeza e riqueza de Alexandria atraa a esta metrpole

    gentes vindas de todo o Mediterrneo, e Tecrito reala o sentimento xenfobo que se

    fazia sentir de ambas as partes. Ele prprio era um brbaro oriundo do extremo

    ocidental do mundo grego49

    .

    3.6. Comentrio lingustico, estilstico e mtrico

    3.6.1. Lngua50

    O Idlio XV, como vimos, insere-se no grupo dos poemas do corpus teocritiano

    ditos dricos, pela prevalncia das caractersticas deste dialecto na sua lngua. Para

    explicar a origem desta lngua e as dificuldades que muitas vezes apresentam os poemas

    deste grupo, surgiram ao longo dos tempos vrias teorias, das quais faremos um

    pequeno resumo.

    Gow51

    , cuja edio seguimos no nosso trabalho, faz eco da opinio de

    Wilamowitz, segundo a qual a lngua usada por Tecrito artificial, de carcter

    tipicamente potico, pois nunca ter sido falada.

    Opinio bem diversa apresentou Magnien no seu vasto estudo52

    , considerando

    que Tecrito usou um dialecto literrio que teria as suas origens em Siracusa; inclui

    neste grupo tanto poesia como prosa, reunindo autores to diversos como Epicarmo,

    Sfron, os Pitagricos, Arquimedes e at mesmo Calmaco. Na opinio deste estudioso,

    s os poetas da lrica coral teriam usado um dialecto diverso.

    Ruijgh53

    rejeitou a teoria de Magnien, propondo uma nova soluo para as

    incongruncias e para a mescla dialectal apresentada pelos poemas de Tecrito.

    49

    (Verity &) Hunter (2002, 104), notou que as siracusanas do Idlio XV podem ser consideradas uma

    alegoria do prprio poeta e do seu percurso at chegar corte dos Ptolemeus e angariar o seu patrocnio.

    Segundo esta teoria, a casa de Praxnoa seria Siracusa, a ptria de Tecrito; o percurso efectuado pelas

    duas amigas e todos os percalos vividos pelas ruas de Alexandria equivalem s dificuldades que o poeta

    tambm teria vivido (a recusa de patrocnio por parte de Hiero II -nos relatada no Idlio XVI), com a

    sua passagem por Cs, at finalmente chegar a Alexandria e ser acolhido na corte ptolemaica, o que

    corresponderia entrada de Gorgo e Praxnoa no palcio real. 50

    Os aspectos lingusticos que estejam associados ao estilo, sero comentados no ponto 3.6.2. 51

    19522, vol. 1, lxxiiss.

    52 1920, MSL 21, 49-85 e 112-138.

    53 1984, Mnemosyne 37, 56-88.

  • 37

    Segundo este, Tecrito, para melhor se fazer entender pelo seu pblico, teria adoptado o

    dialecto drico de Cirene, contaminado por bastantes elementos da , que seria a

    lngua usada em Alexandria pela comunidade drica.

    Mais recentemente, e aproveitando algumas crticas feitas por Molinos Tejada54

    teoria de Ruijgh, Abbenes55

    props uma nova soluo. Comparando a distribuio e

    representao das vogais longas de timbre /e/ e /o/ ( ou e ou ) no s em

    Tecrito mas tambm em Calmaco, lcman, Filolau, entre outros, Abbenes conclui que

    o dialecto usado por Tecrito era um dialecto drico de tipo seuerior56

    , influenciado

    pela tradio literria drica (em particular lcman). Teria, no entanto, sofrido um

    processo de modernizao categorial, de modo a no confundir o leitor. Assim termos,

    em certas categorias gramaticais, resolues lingusticas diferentes das que ocorreriam

    na doris seuerior e que estavam presentes na (por exemplo, no infinitivo do verbo

    ser, o infinitivo coexiste com as formas de presente , ). O estudioso

    defende que os poetas alexandrinos gostavam de usar os antigos dialectos, por isso

    Tecrito imita Safo e Alceu, e usa, ao mesmo tempo, o drico e a lingua da pica como

    acontece na lrica coral. Recorrer ao dialecto de lcman, que era linguisticamente e

    literariamente consagrado, faria, portanto, todo o sentido, dada a tendncia dos

    alexandrinos para cultivar o antiquado.

    Podemos concluir, portanto, que o drico de Tecrito , na verdade, uma lngua

    literria, usada com fins poticos, por ter uma longa tradio que remonta a Sfron,

    tendo sido adaptada s necessidades do pblico. As siracusanas, protagonistas deste

    idlio, no poderiam, alis, falar outro dialecto a no ser este.

    Faremos um levantamento das principais caractersticas dialectais de Tecrito,

    partindo, fundamentalmente, do Idlio XV57

    . Remetemos para as notas de comentrio

    aspectos lingusticos mais especficos, pois neste captulo optmos por tratar apenas

    traos gerais. Achmos pertinente referir alguns exemplos de lcman que apresentam

    caractersticas dialectais prximas das de Tecrito.

    54

    1990, 74-76; 341-343. 55

    1996, 1-19. 56

    Ahrens (1843) dividiu os dialectos dricos em dois grupos: o da doris seuerior, que formava o genitivo

    do singular dos temas em -o em (e.g., ) e pronunciava e (timbres abertos) as longas resultantes

    de contrao e de alongamento compensatrio (e.g., , ); outro, o da doris mitior, cujas resolues

    ( e para os timbres fechados) coincidiam com o jnico-tico (e.g., , e ).

  • 38

    A manuteno do originrio uma das caractersticas mais marcadas do

    dialecto drico (na verdade, este fenmeno s no ocorre no dialecto jnico-tico),

    verificando-se, por vezes, casos de hiperdorismo58

    , e.g., (v. 4). Cf.

    Alcm. fr. 1.51-52.

    O intervoclico aparece muitas vezes representado como , e.g.,

    (v. 16) e (v. 49). Cf. Alcm. fr. 3(1+3).72.

    A manuteno do digama (), que j havia desaparecido no dialecto jnico-tico

    desde o sc. VIII, sobrevive ainda em drico at poca helenstica. Ainda que no

    venha notado graficamente, a sua presena clara na escanso mtrica, e.g., ()

    (v. 25). Cf. Alcm. fr. 1.41,58; fr. 20.3.

    O grupo fontico -() mantm-se sem evoluo fontica, e.g., (v. 82)

    e (v. 139). Cf. Alcm. fr. 38.2,3.

    A lquida -- passa a nasal em contacto com a dental por assimilao, e.g.,

    (v. 2) e (v. 61). Cf. Alcm. fr. S4.9.

    O dialecto drico apresenta tambm um vocalismo tpico em certas palavras,

    e.g., (vv. 78; 85)59

    .

    Os segmentos / contraem em . Na primeira declinao dos nomes

    masculinos o genitivo em (

  • 39

    A evoluo do grupo - origina um alongamento compensatrio em , da os

    particpios femininos em -, e.g., (v. 25) e (v. 87). Cf. Alcm. fr.

    1.73.

    A partcula modal correspondente ao tico tem a forma , sendo no entanto

    comum o uso da forma . Tambm os advrbios de tempo formados em tico pelo

    sufixo tomam a forma , e.g., (v. 44) e (v. 144). Cf. Alcm. fr. 56.1.

    O artigo aparece por vezes sob a forma / no nominativo do plural ao lado

    das formas /, e.g. (v. 51). Cf. Alcm. fr. 1.56. O demonstrativo drico

    corresponde forma tica , e.g., (v. 15). Nos pronomes pessoais

    destacamos a forma de segunda pessoa do singular , usada quer para o nominativo

    quer para o acusativo (quando encltico) e a forma de acusativo da terceira pessoa do

    singular , e.g., (v. 7) e (v. 132).

    No que respeita morfologia verbal, verifica-se o uso do futuro drico em -,

    e.g., (v. 54) e (v. 79). Cf. Alcm. fr. 1.73. Tambm frequente a

    flexo do perfeito fazer-se como se fosse um presente do indicativo com recurso vogal

    temtica, mantendo o morfema -, e.g., (v. 58). Este perfeito foi designado

    siracusano por Herodiano (Gramm. Grae., 3.2, p.81, 6), no entanto encontra-se em

    elico, tesslico e becio. O verbo assume a forma em drico, e.g., (v.

    146). A primeira pessoa do plural activa tem como desinncia a forma , e.g.,

    (v. 15) e (v. 42). Cf. Alcm. fr. S3.5. Os infinitivos atemticos em

    drico usam o morfema , e.g., (7.28). Cf. Alcm. fr. 1.45; para os verbos

    temticos j tivemos ocasio de referir a mescla que se verifica em Tecrito, entre as

    desinncias , - e , e.g., (v. 16) e (v. 24). Cf. Alcm. fr. 26.2.

    3.6.2. Estilo

    Para proceder anlise estilstica e mtrica do Idlio XV dividimo-lo em duas

    partes, tendo em conta a estrutura enunciativa das mesmas. Deste modo, primeiro

    consideraremos a seco mimco-dialgica do poema, que abarca os versos 1-99 e 145-

    149, a seguir a seco lrica, que corresponde aos versos 100-144.

    O poema est estruturado de modo antittico e circular, pois somos postos em

    contacto, primeiro, com o plano do quotidiano das duas siracusanas, para depois sermos

  • 40

    levados ao plano mtico (ou mesmo buclico como bem notou Krevans60

    ) na cano de

    Adnis. O final, com a ltima interveno de Gorgo, serve de concluso ao poema e

    simultaneamente de regresso realidade. Esta ruptura do plano idlico causada pelo

    vocativo no incio do v. 145.

    O dilogo entre as protagonistas vivo e expressivo, pois retrata de forma

    realista o que seria no sc. III a.C. uma conversa entre duas mulheres do mundo grego,

    pertencentes a um estrato social mdio. Este realismo conseguido com o recurso a

    diversos processos dos quais destacamos as locues proverbiais, os termos coloquiais,

    fenmenos fonticos e sintcticos de eliso que do maior fluidez ao discurso e a

    predominncia do ritmo dctilo61

    .

    O hbito de citar provrbios muito comum ainda nos nossos dias, encontra-se

    sobretudo em posio final de verso como forma de rematar um pensamento e comentar

    as situaes vividas. Praxnoa e a velha so as duas personagens que proferem frases

    deste tipo, reflexo da sua cultura popular, que, no primeiro caso, ilustra a forma como a

    protagonista pensa sobre o que a rodeia; no segundo caso, associa-se ao carcter

    enigmtico e oracular da personagem. Considermos expresses proverbiais

    (em casa farta tudo farto, v. 24); ( sempre festa

    para os ociosos, v. 26); (as doninhas gostam de

    se deitar no macio, v. 28); (tudo se alcana quando se tenta,

    v. 62); (no niveles uma medida vazia, v. 95). Prximas

    destas expresses encontram-se tambm imagens metafricas como

    (formigas inmeras e incontveis, v. 45) equivalente expresso so

    mais do que as mes; (o homem todo vinagre, v. 148), que

    corresponde a ele est com os azeites. Todas estas frases acentuam o carcter

    coloquial desta seco do poema.

    O uso de termos simples advm por vezes da necessidade de as personagens se

    adaptarem situao em que se encontram, o que mais uma vez sublinha o realismo do

    poema. Assim, quando Gorgo se dirige ao beb, usa vocbulos infantis, repeties,

    frases curtas ( , v. 14) e diminutivos afectuosos (, v. 13). A

    60

    2006, 119-146. Krevans procede ao levantamento dos traos buclicos presentes no Idlio XV

    especialmente na parte lrica do poema, questo frequentemente ignorada pelos estudiosos. 61

    Na parte mmico-dialgica h 67.7% de ps dctilos.

  • 41

    simplicidade sintctica das construes ( de notar o uso da elipse), que tinham como

    destinatrio uma criana de tenra idade, denota o realismo do mimo.

    Tambm contribuem para a vivacidade e rapidez do dilogo as ,

    mudanas de interlocutor a meio do hexmetro, presentes sobretudo nos momentos em

    que as personagens trocam ideias e colocam questes entre si (vv. 1-3; 60-61; 72-73).

    Criam o mesmo efeito os fenmenos fonticos que originam uma omisso de slaba ou

    de palavra como acontece com as apcopes (vv. 2; 8; 32; 56; 64; 67; 77;82; 83; 87), as

    crases (vv. 18; 21 74; 75; 86; 147) e a elipse do predicado (v. 14).

    O vocabulrio pe-nos constantemente em contacto com o dia-a-dia destas duas

    mulheres: a soda e as algas (v. 16), usadas para limpar e tingir a l; os velos de l (v.

    20); o fiado (v. 27); o tear (v. 35); o xaile (vv. 21; 39; 71); o vestido (v. 21; 34; 69), a

    tnica (v. 31), o chapu (v. 39). E quando observam as tapearias, surge de novo este

    imaginrio, como vimos no subcaptulo em que tratamos os temas do poema.

    No obstante a coloquialidade de certos vocbulos e de algumas expresses e a

    simplicidade sintctica das frases, verifica-se um trabalho minucioso com a linguagem.

    De facto, muitos dos termos utilizados criam um efeito esttico de grande beleza

    literria que reala as ideias e reflecte extraordinrio cuidado formal, como seria de

    esperar num poeta alexandrino.

    Deste modo, mesmo no momento em que a linguagem se adapta ao universo

    infantil, h uma preocupao em diversificar os termos usados, pois as duas amigas

    referem-se a Zopirio com trs palavras diferentes: pequeno (, v. 12), meu

    menino (, v. 13) e beb (, v. 14). A prpria constituio dos sintagmas

    merece a nossa ateno. Assim, neste mesmo passo, quando o progenitor referido,

    verifica-se uma estrutura quistica que no s confere musicalidade ao texto como

    sugere a mudana de registo na fala de Praxnoa, que aproveita as palavras da amiga

    para criticar o marido: de pap bom para pap que no sabe fazer compras (

    / vv.14-15).

    Servem tambm para realar vocbulos as figuras de repetio de palavras e de

    sons62

    . Na primeira fala mais extensa de Gorgo fica bem visvel a preocupao com a

    escolha do vocabulrio e a sua colocao no verso. O recurso ao poliptoto

    62

    Em muitos passos do poema encontramos figuras de repetio de palavras, tais como anforas (e.g., vv.

    6; 82; 91; 92; 123), paralelismos de construo (e.g., vv. 10/13; 73/74), figuras etimolgicas (e.g., vv. 81;

    106; 146) e de repetio de sons, em poliptotos (e.g., vv. 5; 20; 24; 25; 29; 90; 122), aliteraes (e.g., vv.

    7; 20; 31; 33; 34; 48), homeoteleutos (e.g., v. 5; 19).

  • 42

    ... (v. 5) reala uma ideia de nmero (a multido e as quadrigas que

    impressionaram Gorgo), que a anfora ... (v. 6) confirma; ao mesmo tempo

    a aliterao da oclusiva labial surda cria uma relao sonora com o nome Praxnoa. A

    sindoque que toma as sandlias pelo todo que so os transeuntes (eram sandlias por

    todo o lado, v. 6) particularmente expressiva porque permite inferir que os ps de

    Gorgo teriam sido macerados pelo calado da multido at chegar a casa da amiga.

    A breve 63

    (vv. 78-86) feita pelas protagonistas antes de iniciar o canto

    de Adnis, por um lado, reafirma o princpio potico da (variedade), por outro,

    deixa clara a funo deste processo descritivo. De facto, os adjectivos e

    (v. 79) com que Gorgo qualifica as tapearias observadas, e a expresso

    (v. 83) empregue por Praxnoa, remetem-nos para os princpios poticos de

    (delicadeza), (graa) e (sabedoria) preconizados pelos poetas helensticos.

    Por seu lado, os qualificativos (v. 81), (v. 82) e (v. 83), realam a

    preciso do desenho e o realismo da postura e do movimento das figuras tecidas.

    Pretendia-se com a dar vida aos objectos criando no leitor a sensao de os

    estar a ver diante de si.

    Embora a cano de Adnis tenha sido considerada por muitos como a parte

    menos interessante do Idlio XV64

    , ela cria um contraste lingustico, que tem as suas

    raizes na Comdia Antiga. Recordemos as Rs de Aristfanes em que h um contraste

    marcado entre a primeira parte, animada por dilogos apimentados e inmeras situaes

    cmicas entre Xntias e Dioniso (com forte explorao do coprolgico e do obsceno), e

    a segunda parte, em que decorre a contenda literria entre squilo e Eurpides,

    comicamente enriquecida com um vocabulrio solene proveniente do gnero trgico.

    Nos quarenta e cinco versos da cano o tom eleva-se e o hexmetro mais

    rigoroso, pois apresenta menos crases e elises. comum o enjambement para ligar os

    versos, pois o tema tratado origina uma sequncia expositiva que, mesmo que coincida

    com o final do hexmetro, tem de ser explanada em mais do que uma hexapodia

    63

    O motivo da remonta famosa descrio do escudo de Aquiles na Ilada, 18.478-608. Os

    poetas helensticos usam com frequncia esta tcnica descritiva, que procura transmitir vida aos objectos.

    Outros exemplos famosos de so a descrio do manto de Jaso nos Argonautica de Apolnio

    (1.721-768), a descrio das obras de arte no Mimiambo IV de Herodas (vv. 56-78) e a descrio da taa

    do cabreiro no Idlio I (vv. 27-56). 64

    Gow (1938, 202) apelidava mesmo de mediocre esta parte do poema. Tambm Dover (1971, 209-

    210) olhou para o hino de Adnis como uma crtica de Tecrito aos poetas que compunham hinos de

    forma rebuscada com tendncia para a enumerao exagerada de figuras mitolgicas (cf. v. 137ss.).

  • 43

    dactlica. A associao do tema cantado ao amor feliz e renovao da natureza e da

    vida explica a predominncia do rtmo dctilo65

    .

    Do ponto de vista do vocabulrio, h uma influncia ntida de alguns sintagmas

    da linguagem pica, nomeadamente, (Il. 22.470), (Od.

    20.69), (Od. 6.79), (Od. 12.44), ,

    (Il. 8.78-79), que tm equivalentes directos nos versos 101, 117, 117,

    135, 137-138, respectivamente.

    O canto inicia-se com a invocao a Afrodite, marcada pelo vocativo

    (v. 100) e pela enigmtica expresso ' (v. 101, cf. nota de

    comentrio), introduzindo-se de seguida o tema da cano: chegou a Primavera, e com

    ela as Horas trouxeram Adnis para junto da deusa do amor. Nos vv. 106-111, explica-

    se que a rainha Arsnoe, agradecida pelo facto de Afrodite ter imortalizado a sua me,

    cuidar de Adnis da melhor maneira. Faz-se neste passo um encmio claro figura da

    rainha.

    A seguir (vv. 112-135), e atravs de uma descrio minuciosa e vivaz (to ao

    gosto alexandrino66

    ), a cantora pe-nos diante do cenrio onde esto expostas as figuras

    de Adnis e da deusa. O toque, as cores, os sons, os cheiros e os sabores associam-se

    numa verdadeira sinestesia idlica ao descrever-se este locus amoenus que envolve os

    dois amantes. So muitos os substantivos que remetem para a viso e para a cor

    (, v. 114; , v. 114; , v. 116; , v. 116; , v. 119;

    , v. 123; , v. 125; , v. 128; , v. 130) mas tambm para

    os outros sentidos: o perfume da Sria (v. 114) para o olfacto, o doce mel (v. 117)

    para o sabor, o beijo que no pica (v. 130) para o tacto, as ondas que se lanam sobre

    a costa (v. 133) para a audio, so alguns exemplos.

    Apesar de ser um mimo urbano, como dissemos, a seco lirca deste poema

    pode ser comparada a um verdadeiro poema buclico, pois alm de toda a flora e fauna

    presentes (frutos da poca, v. 112 ; altas rvores, v. 112; delicados jardins, v. 113;

    seres do ar e da terra, v. 118; pequenos rouxinis, v. 120, et alia ) at temos a

    presena de um pastor de Samos no v. 126. Nos vv. 131-135 anunciada a hora da

    65

    71,1% dos ps so dctilos nesta seco. 66

    Esta fuso entre carcter hnico e descritivismo tambm visvel nos Hinos a Atena e Demter de

    Calmaco.

  • 44

    partida e Adnis ter de voltar ao Hades para se juntar a Persfone. descrita a

    procisso que levar a figura do semideus at ao mar .

    Na ltima parte do canto (vv. 136-144), faz-se uma aluso a vrias figuras

    hericas e mitolgicas (ligadas pelas anforas e aliteraes com os advrbios de

    negao /), que apesar dos seus feitos no tiveram a mesma sorte de Adnis, que

    o nico que pode voltar ao mundo dos vivos incessantemente. A cano acaba com os

    votos de que as Adnias se repitam no prximo ano.

    3.6.3. Mtrica

    Nao obstante Aristteles afirmar67

    que o hexmetro se encontra muito distante

    da lngua falada, Tecrito consegue transmitir atravs dele, na parte mmico-dialgica,

    extraordinria vivacidade e fluidez de discurso, tirando part