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Magnetismo terrestre - 1 - Regina Gouveia Regina Gouveia Magnetismo Terrestre

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Magnetismo terrestre - 1 - Regina Gouveia

Regina Gouveia

Magnetismo Terrestre

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Tudo me prende à terra onde me dei:

O rio subitamente adolescente,

a luz tropeçando nas esquinas,

as areias onde ardi impaciente

….

Dizem que há outros céus e outras luas

e outros olhos densos de alegria

mas eu sou destas casas, destas ruas,

deste amor a escorrer melancolia

Eugénio de Andrade, “Canção Breve”

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Prefácio

A beleza das coisas só pode ser fruída por um espírito sensível e o artista, ao exprimir na obra a

estesia que alguma vez experimentou, inescapavelmente deixa nela as marcas da sua

idiossincrasia e das suas vivências. O título desta colectânea de poemas repassados de saudades

de um tempo e de um lugar (que afinal é um universo) é a transposição alegórica de uma temática

científica da área da Física, o que não surpreende porque a autora, docente de Física e Química

pode, com a maior naturalidade, emoldurar o seu estro em referentes científicos ainda que

metafóricos, como é o caso presente e foi também o caso das obras anteriores Reflexões e

Interferências e Poeira Cósmica.

A vertente poética que a autora manifesta e cultiva com mestria mostra, por um lado, que a

formação científica e a actividade profissional, ainda que empenhada (como é o caso) não

satisfazem cabalmente os anseios de uma alma sensível que busca a completude. Por isso, que a

prática da arte seja um complemento cabonde do frio racionalismo que enforma e estrutura a

ciência. A autora reconhece-o quando diz “ É difícil de explicar pois não há explicação que assente

só na razão “ (poema Sensações, nesta obra). Os poetas são seres sensíveis que, consonantes com

a Natureza, vêm e exprimem o que a razão não alcança. A mente do artista pode atribuir às

coisas características que a pessoa dita normal não vislumbra.” A paisagem é um estado de alma

“, Fernando Pessoa dixit.

Os vinte e sete poemas que a autora nos oferece estão impregnados da recordação saudosa das

coisas e dos seres dos lugares onde decorreu a sua meninice, infância e adolescência (o Universo

da autora) recordação que se aviva a cada visita ao seu rincão sito no Nordeste Transmontano. O

que está plasmado nos versos que nos deixa é a transfiguração pelo poeta que a autora é, do

sentimento induzido por esse pequeno / grande mundo para ela de tão gratas memórias.

A formação científica da autora transparece, como em António Gedeão, na obra poética. Assim,

às vezes, notas de cariz científico surgem integrados no discurso poético sem quebras de ritmo

nem significância, antes pelo contrário, como é, por exemplo o caso do final do poema Ilusão “ No

ocaso, o sol vermelho já se esconde, porém, já lá não está, é ilusão. Ainda o vemos devido à

refracção.” Outras vezes (poema Big Bang) noções científicas como a do Big Bang, ligado à

expansão do Universo são contrapostas à vivência da autora, cujo Universo, clama, se contrai no

tempo.

Dos vinte e sete poemas cinco não são inéditos, respigados que foram do primeiro livro publicado

pela autora - Reflexões e Interferências. Foram aqui incluídos por se referirem à temática

nordestina, foco polarizador da inspiração dos poemas agora dados à estampa. Muitos dos poemas

destilam nostalgia de um tempo que passou mas que deixou marcas indeléveis, agora

transfiguradas em poesia induzida pela revivência desse passado. No poema que tem

expressamente essa designação - Nostalgia - é dada conta do desaparecimento de práticas

ancestrais ligadas à economia de subsistência das populações nordestinas (cultura da oliveira e da

amendoeira, emblema da região agora substituído pela cerejeira, também objecto de um poema).

Curiosa a terminologia ligada a essas práticas como alpechim e infernos.

Sem curar de fazer uma recensão completa da obra, no conjunto de grande nível e valor artístico –

tarefa que competirá a quem for da arte da crítica literária - apraz-me salientar dois exemplos

paradigmáticos: No poema Sensações a autora poetiza “o cheiro da sua casa da aldeia”, o que

recorda Régio quando refere em uma das suas obras “ os bons e maus cheiros” de uma velha casa.

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No poema Entropia a degradação da matéria viva (medronhos apodrecendo no chão) é usada

como ilustração do 2º Princípio da Termodinâmica.

Já outros autores com formação científica de base poetaram glosando, por exemplo, temas de

Física (Niels Bohr) e / ou de Química (António Gedeão / Rómulo de Carvalho). Mas no caso da

presente autora a poesia, ainda que insira aspectos da sua cultura científica encadeados no

discurso poético, o lirismo dos temas e a forma como são tratados denunciam uma sensibilidade

que só pode ser feminina.

A presente obra, pela diversidade dos tópicos que percorre, todos ligados à vivência da autora na

terra das suas raízes ficará, sem dúvida, como um belo retrato poético do Nordeste Transmontano.

José Ferreira da Silva1

1 Professor Catedrático jubilado do Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.4

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Raízes

As minhas raízes estão em íngremes ladeiras, em terras de xisto,

onde crescem amendoeiras, carrascos, sobreiros, oliveiras,

e onde o sentir é outro, mais profundo.

Como que em busca da certeza de que existo,

gosto de vaguear pelas ladeiras, sentindo rumorejar o rio ao fundo.

Outrora

Outrora, seriam por certo diferentes

o achatamento polar, o campo magnético, a atracção lunar

e, como tal, o peso das coisas, as marés.

Diferença subtil, irrelevante,

pois se esse tempo, à escala humana é já distante,

à escala do Universo ainda é presente.

Outrora, seriam por certo diferentes as gentes que no castro habitavam

mas como hoje, sofriam, amavam e guerreavam em sangrentas batalhas,

deixando virgens, talvez para sempre, tímidas donzelas.

Testemunhas desse tempo, as muralhas,

naturais do lado do abismo, do outro lado humana construção,

como também humana a destruição que de onde em onde grassa.

Ignorou-se que enquanto o tempo passa,

as pedras guardam na memória os feitos da história,

o sangue derramado, a glória, o revés.

Em terras que com sangue foram adubadas,

florescem hoje papoilas encarnadas

por entre alvas estevas, roxas arçãs e giestas amarelas.

Na Primavera, todas elas salpicam a ladeira do castro até ao rio.

Deste, quem sabe, o rumor será ainda eco dum clamor,

outrora lançado no vazio.

Tempos agrestes

Eram tempos agrestes

quando da azeitona ou da amêndoa, a apanha.

Era o vento cieiro que vinha de Espanha

uma brisa seca, cortante, gelada

que gretava a pele já de si curtida,

era a soalheira que encardia o rosto no ateado Agosto

Eram tempos agrestes

de fugas para França e de passadores

de silêncios pesados, de densos suores

que iam desgastando dia a dia a vida

qual roupa delida já de tanto usada.

Eram tempos agrestes

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grávidos de sol, de frio e de nada.

Ocaso

Em Fevereiro, o dia quase exangue, era azul claro e rosa a cor do céu.

Depois escureceu; tornou-se cor de chumbo e cor de sangue.

Talvez anjos brincando na imensidão etérea

ou, simplesmente, a interacção da luz com a matéria.

O sol vai imergindo por detrás do monte e no horizonte

destaca-se a silhueta de um sobreiro. Difusa, voa rasante uma cotovia

e é então que, no céu, Vénus se anuncia.

Caminhada

Flores tímidas, selvagens, atapetam o chão.

Coberta de líquenes e musgo, a fraga, ao fundo,

onde frágil se equilibra uma oliveira

que espreita a queda de água que escorre na ladeira

onde agoniza um pombal, já sem função.

Um balir de rebanho rompe o ar dolente

e uma avezita, que emerge de um sobreiro,

toma por seu mundo o céu inteiro.

Medito enquanto calcorreio o caminho lentamente.

Quanta transformação química ocorrida

para transformar húmus em vida?

Quanta energia transformada?

Quanto neutrino atravessando o nada?

Moinho

Entre calhaus e areias, grossas, finas,

virgens porque há muito não pisadas,

e mescladas de vegetação rasteira,

resistem ao tempo, no fundo da ladeira

umas ruínas de um açude, um canal e um moinho,

cuja cobertura se perdeu como todos os anos se perdia

quando o rio, nas enchentes, lúbrico crescia.

Ainda hoje o rio umas vezes adormece outras galopa na viagem.

Do moinho que agoniza junto à margem

resta, corroída, uma mó que em tempos transformava grão em pó.

Restam também vestígios de uma antiga construção

e, numa fraga, escavada uma pequena cova, talvez a gamela de um cão.

Quiçá um perdigueiro, companhia de caça do moleiro.

Crepúsculo

Plana o falcão sobre a ravina.

O sol declina e todo um mistério invade o ar.

Num eco etéreo, há um rumor que se aproxima.

Talvez o vento cujo lamento cruza a neblina 6

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que esconde o dia e abraça a noite que se anuncia

numa acalmia, numa doçura crepuscular.

Porém, na Terra, algures há guerra, bombas, granadas a deflagrar.

Barca

Entardece. Ainda uns raios de sol, já desmaiados

que se reflectem nos calhaus rolados que o rio afaga.

No ar, um silêncio que apenas o rumor do rio apaga,

rumor, ou talvez prece ao Senhor da Barca, ali ao lado.

Já não existe mais a barca que outrora foi real

mas na margem do rio, enferrujado,

testemunha de um tempo intemporal,

jaz moribundo um pedaço do cabo

que, a cada viagem, guiava a barca de uma à outra margem.

Big-Bang

Na minha infância, o Universo estendia-se do Castelo até às Eiras,

envolvendo a Praça e o Cabecinho onde ficava a minha escola.

Á volta eram ladeiras que velavam o sono do rio lá no fundo

Era assim o meu mundo que para mim, era maior que o infinito

e que em cinco linhas aqui ficou descrito,

contrariando assim, à evidência, uma das conjecturas da ciência.

Desde o seu Big-Bang o meu Universo contrai-se, não se expande.

Teia

Com as recordações da minha infância fui tecendo, dia a dia, enredada teia.

O cheiro do azeite no lagar e no Outono a fermentar o mosto,

o céu estrelado, o luar de Agosto, as cores da Primavera e as do Outono,

o vermelho das papoilas, dos medronhos, o branco das flores de amendoeira,

o sabor das amoras de silva ou de amoreira, as histórias contadas à lareira o som da chuva , da

neve, do granizo, na escacha da amêndoa, o som do riso,

o rumorejar do rio no fundo da ladeira, o piar da coruja, o bramir do vento,

são imagens que preenchem os meus sonhos

e assim invadem o meu pensamento, enredando-o na emaranhada teia

que até hoje a minha vida prende

por um fio, que tanto se contrai como distende.

Ponte

Sempre em concordância com o traçado,

desventraram a ladeira de um e outro lado.

O rio, no fundo, parece alheado,

correndo ligeiro ou sonhando parado.

Sobre ele crescem, da ponte, pilares e tabuleiro.

Este, apoiado só no meio, cresce dia a dia

para um e outro lado, sempre em simetria.

As leis da física assim o determinam.7

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Pesos, momentos, reacções, tensões,

tudo se conjuga em equações

que os operários jamais imaginam.

Em busca da terra prometida

vêm daquém, dalém, vêm de Leste,

vêm de África, têm vida agreste,

chegam a pagar o sonho com a vida.

E o Sabor, em eterno devaneio,

beija a ladeira a tudo o mais alheio.

Flores de amendoeira

As flores de amendoeira, antes da Primavera,

cobrem a ladeira como um branco véu

ou como vestes de anjo que se esfumou no céu.

Impressa no código genético a química magia

da ebúrnea cor que recende a nostalgia

Casas de Xisto

Casas de xisto com, sem escaleiras,

traves de zimbro nas padieiras,

balcões, sacadas, toscas ombreiras,

foram com o tempo, há muito tempo…

Ficaram histórias entre as memórias que traz o vento

que chora, chora e no seu pranto

lembra o encanto das casas de outrora.

Estevas

Pegajosas as estevas, quando florescem,

ostentam flores majestosas de fino odor.

Porém as flores fenecem.

Resta uma além, murcha, esquecida.

Pobre flor! Uma das pétalas já não tem vida

mas, mesmo assim, desfalecida, mantém o odor.

Divagação

Com o olhar perdido entre rio e céu,

tendo por horizonte o infinito, divaga o meu eu, angustiado, aflito.

Se este rio fosse meu, não permitiria que algo o poluísse

e talvez um dia com ele me fundisse

num apertado e sempiterno abraço

quando a vida nada mais fosse que cansaço

Andorinhas

Sentada no terraço,

vejo as andorinhas entrar e sair dos ninhos na casa do vizinho.

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O vizinho morreu e a casa está abandonada,

mas as andorinhas, de luto, como é sempre o seu vestir,

talvez pelo vizinho, os que o antecederam e os que ainda hão-de vir,

continuam a voltear em torno dos ninhos na casa agora abandonada

do vizinho que morreu.

Sempre me lembro das andorinhas no beiral da casa do vizinho.

Sei que as de agora não são as mesmas que as de outrora

mas talvez de geração em geração, tal como passa o sentido de orientação,

tenha passado a informação

da minha existência no terraço em frente à casa do vizinho

desde quando o meu pai me dizia poesia que falava da sua migração.

Orientadas pelo campo magnético terrestre, pelo sol, pelas estrelas

ou simplesmente navegando à vista, aí vão elas seguindo uma pista

que as trará de volta novamente, quando se iniciar o tempo quente

Só que um dia já não haverá casa do vizinho,

nem eu estarei no terraço a recebê-las.

Cores outonais

O muro de xisto é já uma ruína mas a vinha, velha e tão cansada,

exibe de novo os seus tons outonais.

Numa subtil gradação de frequências a folhagem é agora amarelada, acobreada, cor de vinho,

acastanhada.

Ostentam cores outonais também, mais além, a pereira e o marmeleiro.

Enquanto transferências de electrões desencadeiam oxidações e reduções,

carotenos e antocianinas conjugam-se em paisagens quase surreais.

Sentada numa fraga, ao lado de um sobreiro,

quero perpetuar estes instantes, transformar em eterno este momento,

mas o agora de há pouco, já é antes, nesta implacável corrida do tempo.

Prodígio

Prodigiosa aquela cerejeira com seus frutos.

Sensual, rubro o epicarpo,

carnudo, nacarado o mesocarpo

da pudica semente protecção.

Tal como se fora a vez primeira

saboreio uma cereja calmamente

num misto de volúpia e devoção.

Lição

Constava no compêndio que eu tinha que estudar

que o azeite, no essencial, é um misto de oleína e palmitina

de diferente densidade e ponto de fusão

Falava ainda o meu compêndio em decantação, ponto de inflamação,

porém, ainda antes do compêndio, era bem pequenina e já sabia

que os negros frutos de todo o olival iriam ser esmagados no lagar

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para das entranhas o azeite retirar

junto com o alpechim do qual se iria separar

Amargo e negro, o alpechim, iria ser lançado nos infernos2.

Também antes do compêndio já sabia que em candeias o azeite iria alumiar

e que em gélidos Invernos iria talhar, em duas camadas se iria separar,

a inferior, pastosa, esbranquiçada, a superior , viscosa, amarelada.

Mas quando criança, também me apercebia que o tão dourado azeite,

à mesa sempre usado com deleite, na malga do pobre não ia ter lugar,

quando muito o azeite das sobras de fritar.

Só que isso não constava no compêndio.

Nostalgia

Quando passo num amendoal, após o verão,

sinto um misto de nostalgia e emoção

ao ver a amêndoa abandonada nas árvores e no chão.

Outrora significou prosperidade e eram guardados os amendoais

para garantir que os rebusqueiros não rebuscavam demais,

que rebuscavam só no chão, à claridade, só de dia e não ao lusco-fusco.

Hoje, já ninguém anda ao rebusco.

No Verão, sob um sol abrasador, era a apanha.

Hoje fica nas árvores e cai na terra que a arrebanha e com ela se funde; confundem-se os seus

tons. Da escacha já há muito não se ouvem sons.

Os escachadores ora em uníssono, ora desfasados, habilmente manejados

com gestos secos, certeiros e breves por mulheres, crianças, raparigas,

que enchiam o ar de risos e cantigas, iam partindo a amêndoa,

sempre cadenciados, deixando o grão intacto ou com mazelas leves,

enquanto das cascas, o monte crescia no chão.

Mais tarde, a par da lenha, na lareira, iriam servir para combustão.

O grão ia para sacos de serapilheira. Mais tarde era vendido

e o seu destino era assim perdido. Aquele que ficava imperfeito, esbotenado, iria ser, mais tarde,

laminado, misturado com ovos e açúcar, nos rochedos cujas receitas eram envoltas em segredos

e cuja doçura ocultava a agrura

de tanta fadiga e de tanto suor.

Eram a lavra, a limpa, a enxertia, ano após ano um ritual que se cumpria

e quando floriam as amendoeiras, o lavrador contemplava

do cimo das ladeiras aqueles véus de noiva a perder de vista,

não com o olhar breve de um turista,

mas com um profundo olhar, cheio de amor.

Stacatto

Ali onde o silêncio impera e onde o infinito faz sentido,

numa fraga, junto ao rio, foi esculpido algo que pode ser uma mensagem,

uma data, talvez de uma viagem, um nome, quiçá o de um romeiro,

que envolto num denso nevoeiro, surgiu num dealbar de primavera.

2 reservatórios para recolha do alpechim10

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Entropia

Desde o átomo à célula, toda uma evolução

que desafia os mais ousados sonhos.

E assim, no mato denso de carrascos,

salpicando de cor os dias baços

e dando aos espaços um ar de fantasia,

irrompem sensuais e rubros os medronhos.

Alguns logo ali se degradam, ao cair no chão.

Eis o sentido da evolução.

Chamou-se-lhe entropia.3

3 Para além destes 22 poemas e, por também terem a ver com o nordeste transmontano, serão incluídos no livro 5 poemas de Reflexões e Interferências. São eles: Ilusão, Hipocrisia, Castro, Flores, Sensações

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