Maldita Professora!

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Maldita professora! Pedro Bandeira – Doutora Janaína, chamado na UTI! Chamada para Doutora Janaína no pronto socorro! - Doutora Janaína, favor comparecer ao centro cirúrgico! Doutora Janaína! Doutora Janaína! Janaína acordou sobressaltada. Olhou o relógio de pulso. Dormira apenas uma hora das duas a que se dera direito naquela noite de plantão. Mas, desperta, verificou que ninguém invadira a sala de repouso dos médicos a sua procura e ninguém a estava chamando pelo alto-falante. Ela havia mais uma vez sonhado com o estresse de verdade que era a rotina de quem ocupa cargos de chefia em um hospital. Apesar de ser diretora clínica, Janaína não aceitava as mordomias do cargo e fazia questão de partilhar dos plantões com o seu pessoal. Era o seu modo de pôr-se a par de tudo o que se passava no hospital. E aquele seu modo de ser, de agir, de dirigir pessoas, de apoiá-las, de estar sempre presente, tornara-se vitorioso. Aquela era a única clínica da cidade que conseguira diminuir os casos de infecção hospitalar pela metade, além de ter-se tornado um dos melhores centros de pesquisas científicas do país. Com menos de trinta anos, Janaína conquistara muito. Sua tese de doutorado já estava traduzida em três línguas e artigos seus já tinham sido publicados pelas mais importantes revistas médicas do mundo. Mas a jovem médica nunca parecia satisfeita. Cansaço era uma palavra que ela desconhecia e “furacão” era o modo com que os funcionários do hospital se referiam à doutora Janaína quando ela não estava por perto. “Bom, ainda tenho uma hora. Quinze minutos para um banho e ainda vai dar tempo para dar uma olhada no pronto-socorro antes de voltar para o plantão...” O terninho branco estava amarfanhado. Abriu o armário onde estava escrito seu nome. Tirou outro uniforme impecavelmente embrulhado em plástico. Sempre trazia três jogos completos, inclusive roupa de baixo. O dia a dia e o noite a noite de um hospital trazem sempre muitas surpresas, especialmente aquelas que mancham

Transcript of Maldita Professora!

Maldita professora!

Pedro Bandeira

Doutora Janana, chamado na UTI! Chamada para Doutora Janana no pronto socorro!

- Doutora Janana, favor comparecer ao centro cirrgico! Doutora Janana! Doutora Janana!

Janana acordou sobressaltada. Olhou o relgio de pulso. Dormira apenas uma

hora das duas a que se dera direito naquela noite de planto. Mas, desperta, verificou que ningum invadira a sala de repouso dos mdicos a sua procura e ningum a estava chamando pelo alto-falante. Ela havia mais uma vez sonhado com o estresse de verdade que era a rotina de quem ocupa cargos de chefia em um hospital. Apesar de ser diretora clnica, Janana no aceitava as mordomias do cargo e fazia questo de partilhar dos plantes com o seu pessoal. Era o seu modo de pr-se a par de tudo o que se passava no hospital. E aquele seu modo de ser, de agir, de dirigir pessoas, de apoi-las, de estar sempre presente, tornara-se vitorioso. Aquela era a nica clnica da cidade que conseguira diminuir os casos de infeco hospitalar pela metade, alm de ter-se tornado um dos melhores centros de pesquisas cientficas do pas.

Com menos de trinta anos, Janana conquistara muito. Sua tese de doutorado j estava traduzida em trs lnguas e artigos seus j tinham sido publicados pelas mais importantes revistas mdicas do mundo.

Mas a jovem mdica nunca parecia satisfeita. Cansao era uma palavra que ela desconhecia e furaco era o modo com que os funcionrios do hospital se referiam doutora Janana quando ela no estava por perto.

Bom, ainda tenho uma hora. Quinze minutos para um banho e ainda vai dar tempo para dar uma olhada no pronto-socorro antes de voltar para o planto...

O terninho branco estava amarfanhado. Abriu o armrio onde estava escrito seu nome.

Tirou outro uniforme impecavelmente embrulhado em plstico. Sempre trazia trs jogos completos, inclusive roupa de baixo. O dia a dia e o noite a noite de um hospital trazem sempre muitas surpresas, especialmente aquelas que mancham os uniformes dos mdicos de sangue, pus, vmito e excrementos. Era sempre bom estar preparada.

Despiu-se, jogando toda a roupa no cesto de desinfeco. Abriu o chuveiro ao

mximo e entrou sob o jato revigorante. Aos poucos, todo o banheiro estava invisvel com o vapor quente. Ensaboou-se vigorosamente, usando o sabonete desinfetante dos cirurgies.

Sob o vapor, dentro das paredes brancas do banheiro, o nico ponto negro era o seu lindo corpo nu.

Como , menina? Optou pela vagabundagem?

Mas, dona Vera, eu estudei... Varei a noite... Tanto que a senhora me deu nota oito...

Oito! Grande coisa! Vai se contentar com nota oito, ? E se o mais importante da matria estiver justo nos vinte por cento que voc desconhece? O que que voc vai ser na vida?

Eu... quero ser mdica...

Mdica?! No me faa rir! Com a sua vagabundagem, voc s vai entrar num

hospital como faxineira. Ou como paciente, em um hospital para indigentes!

Mas oito foi a maior nota da classe, dona Vera...

No quero saber. Voc vai fazer todos os exerccios complementares deste livro aqui, que eu trouxe de casa. E para amanh!

Mas, dona Vera...

Janana j passara por quatro anos de psicanlise, mas jamais conseguira se livrar daquelas lembranas amargas do colegial e daquela megera que tinha atormentado sua vida durante trs anos. Professora de Qumica! Maldita professora!

Tinha sido duro... Colegial noite, trabalho num laboratrio de dia, estudos pela madrugada, sem dinheiro para cursinho e, no fim, o primeiro lugar no vestibular para a melhor faculdade de medicina do pas. Por sorte, a faculdade era pblica, como tinham sido seus cursos anteriores. Mesmo assim, se no tivesse vencido o concurso para a bolsa especial, como ela poderia ter comprado todos aqueles livros carssimos que a bolsa lhe forneceu de graa? Nos dois primeiros anos, a bolsa s se renovava se ela conseguisse manter suas mdias em oitenta por cento.

Oitenta por cento! O eterno oito da dona Vera... Bruxa!

A partir do terceiro ano, a bolsa exigia noventa por cento de aproveitamento e Janana lutou como uma leoa. Comeou a fazer estgios em hospitais e, por uma dessas sortes que o destino raramente reserva aos despossudos, a sociedade mantenedora daquela clnica resolveu pagar-lhe um salrio durante todo o resto do estgio que, para todos os outros estudantes, era no remunerado.

Algum dinheiro comeou a entrar e Janana destacou-se. Ao formar-se, no primeiro lugar da turma, j era uma mdica procurada e comentada. Sua tese de mestrado foi defendida em dois anos e a de doutorado tornou-a nacionalmente conhecida pela originalidade e rigor cientfico. Com o sucesso que quase imediatamente suas pesquisas conseguiram no pas e no exterior, Janana foi convidada para assumir aquele cargo de chefia, tornando-se responsvel por equipes compostas por mdicos que, em sua maioria, tinham quase o dobro de sua idade.

Enxugou-se, friccionando o corpo com fora, como o noivo gostava de fazer, nos poucos momentos em que ela arranjava para estar com ele. Arrepiou-se, lembrando-se de Carlos Alberto. Com ele, virava menina, ficava frgil e gostava de ser mimada. O doutor Carlos Alberto era um conhecido cirurgio, oito anos mais velho que ela. E como era difcil encontrar perodos em que ele no estivesse numa sala de cirurgia e, ao mesmo tempo, ela no estivesse mergulhada em sua clnica!

Doze, at quatorze horas de trabalho por dia! Como que voc aguenta, minha filha? perguntava-lhe volta e meia o velho pai, sempre inchado de orgulho. Quem, um simples pedreiro como ele, quem, um negro pobre como ele, podia sequer sonhar em ter uma filha mdica? E ainda por cima uma cientista respeitada como Janana?

Quando que eu vou arranjar tempo para casar?, pensava ela acabando de vestir-se. O Carlos Alberto no para de perguntar... Ai, eu queria casar logo com ele, queria filhos... Mas como eu posso tirar frias, justo agora que...

Para Janana, sempre havia um justo agora que... para adiar planos pessoais. Ela pertencia quase exclusivamente aos seus pacientes, principalmente aos mais pobres, e aos jovens mdicos que se sentiam esmagados pela roda-viva enlouquecedora do hospital e contavam com ela em todos os momentos.

Quando abriu a porta da sala de repouso dos mdicos, Janana estava pronta, como se tivesse dormido oito horas seguidas. E l estava o eterno alto-falante a chamar por ela:

Doutora Janana, por favor, comparea UTI... Doutora Janana, chamada urgente na UTI...

Entrou no elevador junto com uma maca empurrada por uma enfermeira.

Bom dia, Clotilde cumprimentou ela, que conhecia todos os funcionrios pelo nome.

Bom dia? sorriu a moa. Ainda so trs horas da madrugada, doutora Janana!

Ento, boa madrugada! brincou ela. Seu marido j conseguiu o novo emprego?

J, doutora. Comeou na segunda-feira.

Parabns, querida.

Automaticamente, Janana pegou a ficha do paciente da maca, ao mesmo tempo em que agarrava seu pulso.

Oi, querido, o senhor parece timo! Paciente do doutor Macedo? perguntou ela, lendo o pronturio.

sim, doutora respondeu a enfermeira. Preparao para cirurgia.

O homem na maca sorria para ela. Para todos os pacientes, a fisionomia sempre alegre e segura de Janana funcionava como uma terapia. A qualquer hora do dia ou da noite, Janana sempre parecia um anjo salvador, lindo e perfumado, e sua simples presena j dava nimo ao doente, aumentando suas chances de recuperao.

Mas o caso ali presente era difcil. Janana folheou os exames rapidamente. Um cncer de prstata com metstases. Sobreviera um bloqueio urinrio e a cirurgia era urgente.

Macedo era um grande urologista, mas aquele pobre homem tinha poucas chances.

Boa sorte, querido disse ela no mais lindo dos sorrisos. O senhor est nas melhores mos.

Obrigado, doutora...

A porta do elevador abriu-se e a maca saiu para o corredor. Na maca, o homem seguia para os preparativos cirrgicos pensando que os anjos de verdade so negros...

Por mais dois andares, Janana continuou sozinha dentro do elevador. A fazer-lhe companhia, novamente a lembrana neurotizante da distante professora:

Como , Janana? Vai abandonar os estudos, ? Pelo jeito vai mesmo... O que vai ser na vida? Passista de escola de samba?

Maldita! Maldita!, pensava a pobre menina na ocasio. Vou mostrar para ela, ah, se vou! Quem vai danar ela! Eu vou ser mdica! Vou ser mdica! Ela vai ver!

Logo na sada do elevador, uma enfermeira a esperava:

Doutora, por favor, o doutor Gelson est esperando pela senhora.

Entrou na ante sala da UTI e o chefe do setor correu para ela.

Doutora, por favor, venha ver este caso. Consegui controlar a arritmia, mas... Bom, acho que sua especialidade e...

Deixe ver o pronturio, Gelson.

O mdico estendeu-lhe um pequeno mao de papis e radiografias. Era um tumor grande, e os exames mostravam que o paciente estava longe das condies necessrias para ser levado mesa de cirurgia.

Hum... Qual a idade dele?

Dela, doutora Janana. uma senhora...

Janana leu o nome da paciente no alto do pronturio e sentiu-se desfalecer.

Como?! Seus lbios tremiam, como se estivesse com febre, quando perguntou:

Dona Vera?! a dona Vera Moreira?

Sim, o nome dela Vera Moreira. No sabia que a senhora a conhecia, seno...

Em que leito ela est?

No onze...

Forando-se para no cambalear e no esbarrar nos outros leitos da UTI, Janana percorreu a fila. Nmero oito, nove, dez... onze! Afastou a cortina de plstico que ocultava o leito e encarou o rosto emoldurado pelo branco do travesseiro. Era um rosto velho, enrugado demais pelo sofrimento, e tinha um olhar bao que se fixou nela:

Janana...

Dona Vera? dona Vera mesmo?.

A voz lhe fugia da garganta, o ar parecia faltar-lhe nos pulmes e era como se o sangue tivesse se congelado em suas veias.

Eu... dona Vera mesmo?

A mulher esqueltica sorria agora docemente. Seu olhar tinha o brilho do triunfo:

Janana... minha querida... eu sabia que voc conseguiria... Venha c, venha mais perto, menina...

Janana nunca poderia imaginar que acabaria por encontrar aquela professora num momento como aquele, um momento de despedida. Mas a expresso da velha professora traduzia um orgulho tal, que a morte hesitaria em cumprir sua tarefa se chegasse naquele momento.

Voc nunca entendeu, no , querida? Voc sempre me odiou, no ?

Eu...

A mdica tremia ao aproximar-se. Estendeu a mo e a paciente tomou-a, apertado.

Estou indo embora, Janana. Por favor, no minta para os moribundos. O que voc pensava de mim naquela poca?

Dona Vera... Eu no sei... Por que s comigo, dona Vera? Por que a senhora me perseguia tanto? Por que comigo?

Voc mesma tem essas respostas, minha filha balbuciou. Voc chegou l. Chegou aonde eu sabia que poderia chegar. Voc era a melhor, Janana, a melhor. Mas isso no bastava, porque voc negra, seus pais eram pobres, no tinham poder... Voc tinha de conseguir ser melhor do que os melhores, para cumprir seu destino. Eu no podia trat-la igual aos outros, aos outros que eram brancos, que no sofreriam preconceitos no futuro... Eu tinha de exigir, de forar, de ser dura... E eu sabia! Eu sabia! Eu sabia que voc conquistaria tudo o que desejasse na vida, se aprendesse a lutar. A lutar contra todos, inclusive

contra mim... Ah, eu estava certa! Agora, posso ir em paz...

Dona Vera! Dona Vera! gritava Janana, descontrolada, esquecendo-se do silncio necessrio UTI, ao sentir sob os dedos o desaparecimento da pulsao da velha professora. Rpido! Ressuscitao! Gelson, Neide! Tragam o desfibrilador! J! Salvem essa mulher, pelo amor de Deus!

* * *

O doutor Carlos Alberto saa de uma cirurgia complicada. Acabava de lavar-se quando o chamaram ao telefone. Quem falava era um residente da UTI, muito nervoso:

Doutor Carlos Alberto, por favor, venha para c. a doutora Janana. Acho que o cansao. Ela sempre diz que a gente tem de lutar para no sofrer quando perde um paciente, mas...

O que houve?

Uma paciente acabou de falecer, e ela est chorando demais, doutor, ela...

www.bibliotecapedrobandeira.com.brPedro Bandeira

Nasceu em Santos, SP, em 9/3/1942. Em 1961, para estudar Cincias Sociais na USP, mudou-se para a capital de So Paulo. Atualmente reside em uma chcara na regio de Mata Atlntica prximo a So Paulo.

o autor de literatura juvenil que mais vende no Brasil (10,8 milhes de exemplares at 2009, alm de 11,2 milhes adquiridos pelo governo federal para distribuio s bibliotecas escolares).

Como especialista em letramento e tcnicas especiais de leitura, profere conferncias para professores em todo o Brasil. casado com Lia, tem trs filhos (Rodrigo, Maurcio e Marcelo) e uma poro de netinhos: Melissa, Michelle, Beatriz, Jlia e rico.

Escritor de literatura para crianas e jovens.Pesquisador e conferencista sobre Literatura, Educao e Psicologia do Desenvolvimento.

Escritor de muitos gneros: narrativas longas e curtas, poesia, teatro, traduo e adaptao. Uma produo de quase cem ttulos. Aproximadamente vinte e dois milhes de livros vendidos. vrios prmios literrios