MALEVAL, Maria Do Amparo Tavres (Org) - Poesia Medieval No Brasil

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Poesia medieval no Brasil EDITORA ÁGORA DA ILHA MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL AUTORA/ORGANIZADORA

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 1

Poesia medieval no Brasil

EDITORA

ÁGORA DA ILHA

MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVALAUTORA/ORGANIZADORA

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MALEVAL. Maria do Amparo Tavares / Poesia medieval no Brasil304 páginas – Rio de Janeiro, junho de 2002.

Editora Ágora da Ilha ISBN 7576Ensaio em português CDD 869.4Poesia em português CDD 869.1Poesia galega CDD 869.91

A Editora Ágora da Ilha é filiada aoSindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL)

Ficha catalográfica

EDITORA ÁGORA DA ILHA

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Copyright: Maria do Amparo Tavares Maleval (autora / organizadora)UERJ - RJ- Tel./Fax (0xx21) 25877701

Esta obra não pode ser copiada ou republicada, no todo ou emparte, sem o consentimento prévio e por escrito da organizadora.

Apoio: Dirección Xeral de Política Lingüística, Consellería deEducación e Ordenación Universitária da Xunta de Galicia.CRÉDITOS: Agir Editora Ltda. (por José Martins Fontes); AntonioManuel Bandeira R. Cardoso, José Cláudio Bandeira R. Cardoso, CarlosAlberto Bandeira R. Cardoso, Maria Helena C. de Sousa Bandeira eMarcos Cordeiro de Sousa Bandeira (por Manuel Bandeira, Poesiacompleta e prosa, da Editora Nova Aguilar); Celso Dantas da Silveira(por Myriam Coeli); Condomínio indivisível dos proprietários dosdireitos de Cecília Meireles – direitos cedidos por Solombra Books(Obra completa e Romanceiro da Inconfidência, da Editora NovaFronteira S.A.); Edison Moreira (herdeiros); Francisca Nóbrega; HildaHilst; José Rodrigues de Paiva; Maria Isabel de Almeida (por Guilhermede Almeida); Marly Vasconcelos; Onestaldo de Pennafort (herdeiros),Paulo Lebéis Bonfim (herdeiros) e Stella Leonardos.PESQUISADORES-COLABORADORES (Alunos-bolsistas de Iniciação Cientificada UERJ): Caroline Moreira Reis, Daniele R. Laurindo, DeniseNascimento, Geórgia Barbosa Morgado, Giuliano Francesco P. da Rochae Tatiana Monteiro.REVISÃO: Ana Maria Esteves, Maria do Amparo Tavares Maleval eSimone de Souza Braga.CAPA: Gino Christiam Rodrigues.

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Nossos agradecimentos àDirección Xeral de Política Lingüística,Consellería de Educación e OrdenaciónUniversitária da Xunta de Galicia, pelo apoioà publicação deste livro, através do Programade Estudos Galegos, da UERJ (PROEG).

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Maria do Amparo Tavares MalevalA tradição poética medieval no Brasil.................................9

1 Do Trovadorismo medieval galaico-português........131.1 Cantigas de amigo........................................................141.2 Cantigas de amor .........................................................151.3 Cantigas de escárnio e maldizer ...................................171.4 Cantigas de Santa Maria.......... ...................................18

2 Do Romanceiro hispânico........................................19

3 Atualizações da poesia medieval..............................223.1 O Neotrovadorismo .....................................................22

4 O Modernismo brasileiro e a tradição medieval........274.1 Mário de Andrade ........................................................284.2 Augusto Meyer..............................................................34

5 O Neomedievalismo no Brasil.....................................375.1 Onestaldo de Pennafort...................................................375.2 Martins Fontes.............................................................395.3 Guilherme de Almeida...................................................425.4 Manuel Bandeira..........................................................455.5 Cecília Meireles...........................................................485.6 Paulo Bonfim...............................................................545.7 Edison Moreira..............................................................555.8 Hilda Hilst...................................................................575.9 Stella Leonardos..........................................................595.10 Myriam Coeli...............................................................645.11 Francisca Nóbrega.......................................................675.12 Marly Vasconcelos.......................................................685.13 José Rodrigues de Paiva...............................................69

6 Conclusão...................................................................71

Sumário

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Antologia

1 Poesia medieval

1.1 Cantigas......................................................................83Afonso Sanches...............................................................85Airas Carpancho .............................................................87Airas Nunez.....................................................................89Alfonso X, o Sábio..........................................................93Bernal de Bonaval............................................................99D.Dinis...........................................................................101Estevan Coelho ..............................................................107Fernan Froiaz.................................................................109Fernan Garcia Esgaravunha............................................111Fernand’ Esquio................................................................113Fernão Rodrigues de Calheiros........................................115Johan Airas de Santiago.................................................117Johan [de Leon]..............................................................123Johan Garcia de Guilhade...............................................125Johan Lobeira.................................................................127Johan Lopes Ulhoa.........................................................129Johan Zorro ...................................................................131Juião Bolseiro.................................................................135Lourenço [Jogral]...........................................................137Martin Codax.................................................................139Martin de Caldas............................................................143Martin Soares................................................................145Mendinho ......................................................................147Nuno Fernandez [Torneol].............................................149Pai Gomez Charinho .....................................................151Pai Soares de Taveirós ..................................................153Pedr’Eanes Solaz...........................................................155Pero da Ponte.................................................................157Pero Gonçalves de Porto Carreiro ...................................159Pero Meogo....................................................................161Pero Viviaez...................................................................163Roi Fernandiz de Santiago ............................................165Sancho I ........................................................................167

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1.2 Romances............................................................169Romance de Gerineldo y la Infanta...............................171La amiga de Bernal Francés..........................................173Romance de la linda Alba..............................................175

2 Poesia brasileira neomedievalistaOnestaldo de Pennafort ..........................................................179Martins Fontes .....................................................................191Guilherme de Almeida ..........................................................195Manuel Bandeira ..................................................................205Cecília Meireles ...................................................................211Paulo Lebéis Bonfim ...........................................................229Édison Moreira ....................................................................233Hilda Hilst ...........................................................................241Stella Leonardos .................................................................247Myriam Coeli ......................................................................271Francisca Nóbrega ..............................................................279Marly Vasconcelos ...............................................................285José Rodrigues de Paiva .......................................................291

3 Glossário...............................................................297

4 Bibliografia..............................................................301

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Se vistes o meu amadoQue me pôs neste cuidadoDizei-me: voltará cedo?

Cercando os litoraisDe verdes vocábulos e gestasD. Diniz planta pinhaisE em plantando escreve versos.Sua tarefaDe rei e de poetaSó se completaHaveis de concordarQuando do troncoBrota a nauE outra navegaçãoEntão começa.(Neide Archanjo)

Uma epígrafe pode funcionar como ponto de chegada ou departida em um texto, onde poderá ser mote a ser glosado outema ou conclusão ou até mesmo adorno, etc.. Ao escolhermosos versos acima, da poetisa paulista Neide Archanjo(ARCHANJO, 1984, p. 53), para iniciarmos as presentes refle-xões, o fizemos por vários motivos. Primeiramente, pela magní-fica síntese poética do que tínhamos em mente ao pretendermosmostrar a presença da poesia medieval ibérica, notadamentegalaico-portuguesa, na poesia brasileira do século XX. Isto se-ria impossível se não fossem as duas navegações a que se refere

A tradição poéticamedieval no Brasil

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a epígrafe: a dos trovadores ancestrais, através de verdes vocá-bulos iniciando a nossa tradição lírica, e a das caravelas portu-guesas, que trouxeram para o Brasil não apenas sede de rique-zas e de poder, mas este legado magnífico de uma língua e umacultura nascidas no antigo reino de Galicia, ao qual já pertence-ram terras portuguesas, como a Gallaecia Bracarense onde hojese situa Braga e arredores.

Neide Archanjo não deixa de apontar-nos esta nossa origemgalaica, ao fazer anteceder a estrofe em que exalta D. Dinispelos versos do jogral galego Martim Codax, que no séculoXIII imortalizara em suas cantigas as oraculares “ondas do marde Vigo”; só lamentamos que o faça utilizando-se da traduçãopara o português moderno feita por Natália Correia (CORREIA,1978, p. 77), ao invés do original medievo: “Se vistes meu ama-do, / por que ey gran coydado? / E ay Deus, se verrá cedo!”(CUNHA, 1999, p. 40).

O rei-poeta, D. Dinis, já fora por muitos apresentado empoesia. Por exemplo, Fernando Pessoa, que, como sabemos, éo maior poeta português ao lado de Camões, também o repre-senta como “plantador de naus a haver” (PESSOA, 1936, 1972,p. 73), no seguinte poema:

D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de AmigoO plantador de naus a haver,E ouve um silêncio múrmuro consigo:É o rumor dos pinhais que, como um trigoDe Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,Busca o oceano por achar;E a fala dos pinhais, marulho obscuro,É o som presente desse mar futuro,É a voz da terra ansiando pelo mar.

O poema remete-nos para a época do rei-trovador, acentu-ando-lhe os presságios do futuro Império ultramarino embelíssimas imagens (dos pinhais), dotadas de cor sugestiva deriqueza (“como um trigo de Império”), movimento (“ondulam”)

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e som (“rumor”, “fala”, “marulho”), que se confundem com oseu cantar de “arroio”, na busca do oceano desconhecido.

Essa concepção, retomada por Neide Archanjo, como vi-mos, tem respaldo na História de Portugal: D. Dinis, ao aterrarpântanos e neles plantar pinhais, demonstrara intuir a vocaçãomarítima de Portugal e a necessidade de madeira para a cons-trução de embarcações futuras. Muito mais que isso, contribuí-ra de modo fundamental para a firmação da cultura que noslegaram: além de ter sido o criador dos Estudos Gerais em Lis-boa, isto é, da primeira Universidade portuguesa, que se fixariaem Coimbra, e ordenar o uso do galego-português em docu-mentos, em substituição ao latim, fora um dos mais fecundostrovadores dos Cancioneiros medievos, compondo cantigas nosvários gêneros aí presentes.

Portanto, dignificou como poucos a língua-romance, que naGalicia cairia em progressivo desprestígio, ficando relegada àoralidade, principalmente praticada por rudes campesinos, apóster sido a língua da poesia usada por todos os poetas ibéricos (enão só). Mais que nenhum outro soberano português da primeiraDinastia portuguesa, Afonsina ou de Borgonha chamada, trariapara o interior do palácio real a escola trovadoresca do noroestepeninsular, o que fora favorecido pelo fato de seu pai, Afonso III,ter como sogro Alfonso X, de Leão e Castela.

Abrimos aqui um parêntese para lembrar que este avô mater-no de D. Dinis, cognominado o Sábio, reunira na sua cortetoledana, como um mecenas, uma profusão de artistas e sábios,além de ter sido responsável pela produção das mais de 400 can-tigas de Santa Maria, documentadas à época com pauta musical ericas miniaturas, que, a modo das histórias em quadrinhos de hoje,representam o teor das cantigas e documentam usos da época,como, por exemplo, os concernentes ao vestuário e aos instru-mentos musicais, etc.. Alfonso X fora também autor de cantigasprofanas, afora textos codificadores e outros, como o Foro Reale as Sete Partidas. A corte do Rei Sábio teria proporcionado aoneto, D. Dinis, o aprimoramento da veia poética herdada do avô,a aquisição de conhecimentos para tal, e a valorização das inicia-tivas em prol do desenvolvimento cultural em terras portuguesas.

Enfim, voltando aos versos de Neide Archanjo, e tendo por

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base tal formação do rei-poeta, D. Dinis, teria ele o que expor-tar para a nossa terra: uma língua que ajudou a firmar e umatradição lírica, da qual foi um dos mais fecundos construtores.

Mas as caravelas trouxeram, primeiramente, pela voz, pelocanto dos colonizadores pioneiros, um tipo de composição anô-nima, coletiva, épico-lírica: os romances, que, após uma longatradição oral, ibérica, foram documentados pela escrita, refun-didos e recriados, nos séculos XV-XVI. E o são ainda hoje, nãoapenas por cantadores nordestinos, mas por poetas “cultos”,como veremos adiante. Para terminar com poesia esta introdu-ção com poesia iniciada, invocaremos versos do poema“Alumbrado vaguear”, de Stella Leonardos, uma das grandescultivadoras do gênero no Brasil, que serve de introdução aoseu Romançário (LEONARDOS, 1974):

Antes que o de mim errasseNas vogais vogando vagasE consoantes azuleantesDo litoral que me indaga,Houve cantos me contandoDe maravilhosas plagas.

Antes que eu – ai! – naufragasseNas contas – como nas fragasDe desgostos incontáveis –Houve ritmos tons das vagas.Dos idos mares-magia,Das idas às terras magas,Meus ontens marejam no hojeSobrevivências de saga... (LEONARDOS, 1974, p. 3-4).

Dessa forma, Stella se inscreve na tradição do Romanceirohispânico, já que, precedendo-a, “houve cantos... houve ritmostons das vagas...”; e “no hoje / sobrevivências de saga”. Compro-va a perenidade das duas navegações a que se referiu NeideArchanjo: a material, das caravelas, e a cultural, por elas tornadapossível, trabalhando, enquanto poetisa, com “vocábulos e gestas”,da mesma forma que o rei-poeta, outrora.

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1. Do Trovadorismo medieval galaico-português

Iniciaremos lembrando que por Trovadorismo é nomeada, naIdade Média central, a produção dos fidalgos trovadores, regidapor normas rígidas coligidas nas Artes de trovar, em tudo diversado que hoje se entende por “trova”, composição de cunho popu-lar, de versos curtos, geralmente redondilhos. Essa produçãomedieva, feita para ser musicada e cantada, ou até dançada, deno-minou-se “cansó” nos territórios localizados ao sul da hoje Fran-ça e “cantigas” na Península Ibérica. Dela divergiam também, emfins da Idade Média, por volta do século XV, as “trovas” e “can-tigas” que foram documentadas nos cancioneiros ibéricos tardo-medievos, como o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende,publicado em Portugal em 1516. Tais composições apareciam aolado dos vilancetes, cantigas de vilão (de origem não fidalga),embora também praticados por nobres, por ser a escrita uma prer-rogativa das classes altas. O termo trovar derivou do provençal trobar, compor versos,correspondendo ao francês trouver, ao italiano trovare, ao catalãotrobar. Sua origem procede, ao que tudo indica, do latim vulgartropare, deduzido de contropare, com a acepção de falarfiguradamente, fazer comparações, derivado, por sua vez, dogreco-latino trorus, figura de retórica, donde “inventar” e, daí,“falar” (MACHADO, 1989, v. 5, p. 346). A escola trovadoresca ibérica foi certamente favorecida pelasperegrinações a Santiago de Compostela, que tiveram o seu apo-geu no século XII, proporcionando interações culturais várias.Delas participaram muitos dos poderosos da época, inclusiveGuilherme IX da Aquitânia, primeiro trovador em langue d’oc.Do final deste século XII datariam os primeiros poemas escritosem galaico-português que se conhece, terminando a sua docu-mentação por volta de 1350, com a morte do conde de BarcelosD. Pedro, filho bastardo de D. Dinis. Mas infelizmente só muito posteriormente seria feita a reco-lha da maior parte da produção trovadoresca, nos Cancioneirosda Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa (antigo Colocci-Brancuti) – este, o mais completo de todos, contendo, emboraincompleta, uma Arte de trovar. Ambos são cópias italianas do

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início do século XVI, feitas por iniciativa de Angelo Colocci. Daépoca do Trovadorismo são apenas os códices das Cantigas deSanta Maria alfonsinas, ricamente iluminados e com pautas mu-sicais, como já lembramos, e o Cancioneiro da Ajuda, do séculoXIII, contendo este apenas cantigas de amor, anteriores a D.Dinis, e algumas miniaturas. As notações musicais, no que concerneà música profana, somente se encontram praticamente intactas noPergaminho Vindel, em seis das sete cantigas de amigo de MartimCodax. Apenas recentemente, em 1990, foram descobertas setefragmentadas e mal conservadas cantigas de amor de D. Diniscom as pautas musicais, por Harvey Sharrer, na Torre do Tombode Lisboa.

Compostas pelos nobres trovadores, ou pelos jograis que,junto com os menestréis, as apresentavam em feiras, romarias,cortes senhoriais diversas, etc., tinham como gêneros predomi-nantes as cantigas de amor, as de amigo e as de escárnio emaldizer, além de outros gêneros ou sub-gêneros menos explo-rados e das cantigas de louvor e milagres da Virgem, estas reu-nidas em seu Cancioneiro específico.

1.1. Cantigas de amor

Nas cantigas de amor, masculinas, o trovador expressa via deregra a sua renúncia ou sua dor, a sua coita, provocada pelasintomatologia amorosa e pela indiferença, pela falta de mercê dadama, da senhor inalcançável; desta louva as virtudes e a belezasem par, mas sem particularizar-lhe o físico: sabemos que é jo-vem, esbelta (“delgada”) e clara (“alva”), sendo que o trovadorJohan Garcia de Guilhade acrescentaria a esses dados o dos “olhosverdes”, inaugurando uma longa tradição que até os nossos diasperdura. Algumas poucas vezes, os trovadores expressarão a suaalegria (a joi provençal) por amar, e outras muitas o tema damorte por amor. Nelas se fazem nítidas as influências doTrovadorismo occitano ou provençal, como ficou mais conheci-do, praticado no sul da hoje França.

Após o apogeu alcançado no século XII, a poesia em langued’oc sofreria a perseguição da Igreja, que à época combatia aheresia sob todas as suas formas, notadamente a dos cátaros ou

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albigenses; daí o culto à dame sans merci da cansó ter sido cana-lizado para o culto à Virgem, mãe de Jesus. Mas o amor profanocontinuaria a ser cantado na cantiga de amor galaico-portuguesaque, embora com matizes ibéricos, alguns deles decorrentes docontágio com a poesia feminina autóctone, propugnava avassalagem amorosa, o amor como um serviço militar, segundoas regras da fin’amors, que hoje conhecemos sob a denominaçãode amor cortês.

A maestria dos provençais serviu de paradigma para os com-positores ibéricos, que muitas vezes conseguiram furtar-se ao usodo refrão, típico da poesia popular, não-palaciana. As marcasoccitanas se fazem presentes em muitos recursos, definidos naArte de trovar, como a fiinda (remate da cantiga, de um a quatroversos), o dobre (repetição paralela de uma palavra na estrofe), omordobre (repetição de vocábulos através de formas derivadas) ea palavra perduda (verso que não rima com outros na estrofe).Se “menos variadas do que as provençais”, essas técnicas “ga-nham, por outro lado, em poder de concentração”, como ressaltaYara Fratescchi Vieira (VIEIRA, 1992, p. 54).

1.2. Cantigas de amigo

As cantigas de amigo se filiam aos cânticos femininos de ex-tração autóctone, muito embora escritos, ainda que documentan-do a tradição, também pelos mesmos autores dos demais gêne-ros, e apresentando por vezes uma clara influência da cantiga deamor. Nelas, as jovens solteiras, alvas, delgadas, todas igualmentebelas, exprimiam anseios amorosos, o desejo de encontrar ou re-encontrar o namorado, amigo chamado, a saudade provocadapela sua ausência; tinham por interlocutores a mãe ou as irmãs ouo próprio amigo ou algum elemento da natureza ou da religião,etc.. Exercendo um papel ativo no processo de sedução, não selimitavam, principalmente nas paralelísticas, a serem objeto dorespeitoso culto prestado à mulher incorpórea das cantigas deamor. Antes, dirigiam-se às fontes e ermidas, onde, nos seus adros,ou sob as avelaneiras frolidas, bailavam para atrair os jovenscom a sua beleza e desenvoltura.

Em estudos anteriores (MALEVAL, 1999, p. 47-61, 97-98)

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já destacáramos a antigüidade desses cantos de mulher, os quais,se não foram os únicos praticados na Europa medieval, apre-sentam características que os distinguem dos demais – dentreelas, e principalmente, as imagens através das quais se insinuaum sensualismo desconhecedor das noções de pecado ou culpatrazidas pela Igreja cristã. Assim, as ondas do mar são não ape-nas oráculos consultados pela jovem desejosa de novas do ami-go ausente, mas elementos evocadores/incitadores da libido oulocais do banho de amor preparador do encontro amoroso; afonte deixa de ser exclusivamente lugar que propicia o abasteci-mento de água doméstico, onde cântaros são enchidos, ou ondeas roupas são lavadas, para se transformar em ponto de namoroe símbolo da sexualidade e fecundidade femininas, buscada peloamante sedento, por sua vez representado na imagem do cervonas cantigas de Pero Meogo (AZEVEDO FILHO, 1995). Estaimagem do cervo é típica do paganismo hispânico e, acrescen-tamos, relacionada com o culto ao deus com chifres de veado, oCernuno dos celtas; fora, também, representada na Bíblia comotermo comparante do enamorado.

Enfim, afora esta e outras imagens evocadoras de uma sensu-alidade que persistira a par da ação coercitiva da Igreja, por sernecessária à reprodução e manutenção do grupo, constantementeameaçado por peste, fomes e guerras, também a música e os as-pectos formais dessas cantigas dão provas da sua ancianidade.Assim, não são estranhos à sua composição o céltico alálá e astécnicas do paralelismo, facilitadoras da memorização – como oleixa-pren e o refrão –, bem como outras formas de repetição,literal ou de palavras, estrutural ou sintática e rítmica, e mental ousemântica, isto é, de significação ou conceito. A estruturaparalelística dos dísticos (geralmente seis a oito estrofes, que sereduzem à metade, se levada em conta a unidade de sentido decada par) seguidos de refrão, sua pouca variação interestróficaaproximam a poesia das formas ritualísticas da magia.

Portanto, a natureza, a magia, a religião e a sexualidade secongregam nesses cânticos, também chamados, de acordo comos locais ou circunstâncias que representam, cantigas de fonte, deromaria, marinhas, barcarolas, bailadas....; e apontam as suasorigens imemoriais. Esses antigos cantos de mulher foram, de

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resto, condenados pela Igreja em vários documentos eclesiásti-cos, já que considerados de caráter licencioso.

Justamente na sua especificidade simbólica, as cantigas deamigo diferem essencialmente das carjas moçárabes, que muitosjulgavam as suas ancestrais. As carjas eram pequenas composi-ções de caráter popular em língua romance arabizada, usadas comoremate de poemas (muuaxahas) por poetas hispano-árabes ouhispano-judeus dos séculos XI a XIII. Também eram cânticosamorosos expressos em voz de mulher; mas, além de apresenta-rem situações e emoções mais variadas que as da cantiga de ami-go, a sua ambientação é urbana, e não rural. Scudieri-Ruggieri(1962, p. 7-33) defende a ancianidade dos cantos de mulhergalaicos, que teriam sido levados para a Andaluzia por escravosgalegos. Já Yara Frateschi Vieira opta por “supor como provávela existência na Península Ibérica de uma poesia feminina pré-trovadoresca”; esta ter-se-ia “diversificado segundo os contextossócio-culturais: em ‘cantigas de amigo’ no Noroeste, em ‘canti-gas moçárabes’, na Espanha muçulmana”. Ressalta ainda a espe-cialista o caráter reelaborado de muitas cantigas de amigo, feitaspor poetas aristocráticos, ainda que baseados na tradição popular(VIEIRA, 1992, p. 48-49).

1.3. Cantigas de escárnio e maldizer

As cantigas de escarnho e maldizer, também compostas pe-los mesmos autores dos demais gêneros, atacavam, direta (as demaldizer) ou indiretamente (as de escarnho, principalmente atra-vés da aequivocatio, do duplo sentido), pessoas, tipos sociais einstituições, muitas vezes sob forma de tenção (desafio ou debatepoético). Algumas poucas se aproximavam do sirventês provençal,gênero nobre utilizado para a crítica social, moral ou política.Mas a maioria apresenta um modo bastante rude ou burlesco decaricaturizar ou atacar. Serviam-lhes de alvo, por exemplo, oscavaleiros covardes e desleais, as prostitutas, os que se dedica-vam a cantar/servir mulheres indignas de culto pela sua posiçãosocial, como as amas de meninos (uma vez que as regras do amorcortês determinavam que a mulher teria de ser hierarquicamentesuperior ao homem para ser por ele servida). Através de grande

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variedade de temas e formas e de uma riqueza lexical admirável,não raro descendo à obscenidade, denunciam o reverso do mun-do cortês e cavaleiresco, relacionando-se com a “cultura cômicapopular” (BAKHTIN, VIEIRA, 1987), mesmo que “filtrada pe-las convenções aristocráticas” (VIEIRA, 1992, p. 54).

1.4. Cantigas de Santa Maria

As Cantigas de Santa Maria foram documentadas em quatropergaminhos de finais do século XIII, desiguais quanto ao núme-ro de composições. São 420 cantigas (ou 427, se considerarmostambém as cantigas de festas não exclusivamente marianas), com-postas por narrativas de milagres e louvores à Virgem, estes apa-recendo de dez a dez cantigas. A coletânea é antecedida por can-tiga biográfica de Alfonso X, apresentado como o cantor devotode Maria, e cantiga-prólogo em que este se assume como seu“trobador”, atividade à qual é imprescindível “entendimento” egosto. Tornado cantor exclusivamente da Virgem, por ela aban-donando o “trobar” por qualquer outra dona, mostra-se confiantena sua mercê, no galardão que ela “dá aos que ama”. Na “Pitiçon”,cantiga que só não aparece na edição mais suntuosa, embora in-completa, a modo de epílogo é retomado o objetivo do(s)compositor(es): a recompensa celestial.

Os “loores” apresentam uma rica variedade de formulas mé-tricas, e os “miragres” seguem o esquema do zejel ou do virelai.Via de regra, a narração dos milagres, feita de forma breve e res-peitosa, é conservadora em relação às fontes, especialmente aslatinas, muito embora por vezes rivalizem com os “miragres” deSantiago, por exemplo.

A autoria das cantigas vem gerando especulações que ora ten-dem para o reconhecimento de Alfonso X apenas como autor dascantigas autobiográficas, ora para a aceitação do seu papel funda-mental, senão na composição integral das cantigas, na seleção dotema, no modo de o tratar e na revisão do texto. De qualquerforma, foi o Rei Sábio responsável pela maior coletânea medievalde poesias dedicadas à Virgem, mesmo que nela tivessem colabo-rado numerosos poetas que lhe freqüentavam a corte, como tal-vez Airas Nunez, que aparece mencionado em uma nota marginaldo códice. Alfonso X, inclusive, aparece não apenas como sujeito

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2. Do Romanceiro hispânico

Um Romanceiro é, obviamente, uma coleção de romances,que não devem ser confundidos com o gênero literário, tambémnarrativo, embora mais extenso e em prosa, que representou comonenhum outro o século XIX, romântico-burguês-nacionalista.Também não se trata das línguas regionais surgidas na Europaromanizada, sendo que o termo romance (do adv. latino romanice,derivado de romanicu-) fora de início usado para designar a lín-gua vulgar, oposta à língua culta que era o latim; depois, a línguaderivada da latina; e, finalmente, a língua vernácula. Mas, comomuitas narrativas eram na Idade Média escritas em romance, otermo tomou o sentido de “conto”, de “romance de aventuras”,muitos deles em versos, promovendo a contaminação dessa pala-vra com rima, resultando o termo sinônimo rimance. No séculoXV, na França, designaria as narrativas de cavalaria em prosa, e,também aí, no século XVII, assumiria o sentido moderno (MA-CHADO, 1989, v. 5, p. 113).

A matéria coligida nos Romanceiros são poemas épico-líri-cos breves, documentados na Península Ibérica, tendo por basea tradição oral, a partir dos séculos XIV (raros) e XV até àsegunda metade do século XVII, quando passam a ser depreci-ados pela estética neoclássica e relegados à oralidade. Sob osímpetos democrático-nacionalistas do Romantismo, ressurgemno século XIX em coletâneas, como, para só citarmos um exem-plo, em Portugal, o Romanceiro de Almeida Garrett (GARRETT,1966, v. II, p. 677-1094).

Composições tipicamente espanholas, não foram originaria-mente exclusivas da Espanha, uma vez que podem ser considera-

em textos líricos, mas como personagem em poemas narrativos,relacionando alguns milagres à sua pessoa, a familiares e corte-sãos. Por fim, visando à sua salvação, destina a recolha exortativado culto mariano à igreja em que será sepultado, através de testa-mento (1284). Através das suas notações musicais e das suasminiaturas, o Cancioneiro Mariano é um dos documentos maiscompletos do contexto sócio-cultural da época áurea dotrovadorismo ibérico, expresso em galego-português.

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das suas congêneres as viser suecas e dinamarquesas, as baladasinglesas e escocesas, certos cantos franceses, italianos, alemães,sérvios, gregos, finlandeses, etc..

No entanto, segundo a competente argumentação de RamónMenéndez Pidal, nenhum país foi “más tenaz, más tradicionalistaen mantener en actualidad un viejo género literário” (1946, p.10); nem mais original, pelo uso do fragmentarismo como proce-dimento literário (MENÉNDEZ PIDAL, 1946, p. 26-29). Istoporque os romances hispânicos não apenas se constituíam de frag-mentos de canções de gesta, ou de crônicas, ou ainda deserranilhas, etc., e se prestavam à divulgação dos acontecimen-tos histórico-políticos (e outros) da época, mas caracterizavam-se pelo corte brusco, incitador da imaginação do receptor. Tam-bém o caráter ético e tolerante para com o inimigo (judeu, mouro,etc.) distingue-o de outros, por exemplo, dos franceses. E, ainda,a sua especificidade se observa por “usar exclusivamente, o pocomenos, la versificación épica”, isto é, versos de dezesseis sílabascom assonância monórrima. Este fato, na apreciação do eruditoespecialista que vimos citando, “revela una vez más las condicionesespeciales de sus orígenes, más ilustres que los de la canción épi-co-lírica de los otros pueblos” (MENÉNDEZ PIDAL, 1946, p.18). Isto porque, lembra ele, as baladas e viser apresentam estro-fes de dois a quatro versos geralmente, afastando-se das formasestróficas dos velhos poemas germânicos; e as canções épico-líricas francesas, provençais ou piemontesas, embora tambémempreguem as monórrimas das gestas, usam os dísticos, tercetos,etc., preferentemente à ausência de divisão em estrofes.

Os romances, documentados também em Portugal e nos paí-ses de colonização ibérica, revivem hoje inclusive no Brasil, naescrita ou na boca de poetas de diversa formação. Originalmente,eram cantados “al son de un instrumento, sea en danzas corales,sea en reuniones tenidas para recreo simplemente o para el trabajoen común” (MENÉNDEZ PIDAL, 1946, p. 9). Evidentementeque hoje esses poemas não mais se subordinam necessariamenteà música, pelo menos em suas versões ditas “cultas”, como é ocaso das que serão aqui coligidas. Mas nas versões “populares”,por exemplo as dos cantadores nordestinos, o acompanhamentomusical ainda se perpetua.

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Segundo a conclusão do mestre folclorista Câmara Cascudo,foram originalmente “feitos para o canto nas cortes e salões aris-tocráticos”, e não “poesia democrática e vulgar, feita para o povo”.Mas no século XVI

a recriação foi um processo de acomodoção ao gêniopopular e muitos motivos surgiram, dentro dos metrose modelos passados, versificados ao sabor do gostopopular, mas fiéis aos tipos antigos. Passaram asassonâncias e tonâncias às rimas simples, e neste ca-ráter o romance teve voga extraordinária, cantadas etrazidas para o Brasil, como para toda a América es-panhola, pela memória do colonizador. A gesta mili-tar de outrora, o poema nacional ao gosto de Laveleye,epopéia nacional, anônima e coletiva, passou ao pla-no popular, número e heterogêneo, buscando os efei-tos da emoção do lirismo do amor, temas sempre sen-síveis e poderosos no espírito popular, alheios aosmotivos fidalgos, de luta e de conquista, às lutas ca-valheirescas do Voto do Pavão e aos sonhos do domí-nio cristão nas terras onde Cristo nascera(CASCUDO, LEONARDOS, 1974, p. 133).

Cremos que o folclorista quis acentuar a hegemonia, nãoa exclusividade dos temas amorosos, em relação aos temasbélicos, no Romanceiro popular, já que no Brasil fecunda foia herança de Carlos Magno no cordel nordestino, para sócitarmos um exemplo de herói guerreiro perpetuado na nos-sa literatura de cordel.

É importante assinalar que a voga do Romanceiro ocorreuem Portugal no século XVI, época também da conquista doBrasil. Os romances vieram para aqui cantados, e o foram até oséculo XVIII, quando saíram do uso, mas não da memória co-lonial. Na segunda metade do século seguinte, começam a serregistrados no norte, a exemplo do que ocorria em Portugalatravés de Almeida Garrett, ou na Inglaterra, com Walter Scott,etc.. E hoje documentam-se em inúmeras publicações, que vãodesde a literatura de cordel ou ao registro de pesquisadores combase na oralidade – por exemplo, o Romanceiro ibérico na Bahia(ALBÁN, ALCOFORADO, 1996) – aos poetas ditos “cultos”,como os que adiante registraremos.

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Quanto à forma, os romances se compõem predominan-temente de versos octossílabos pela contagem castelhana,ou setessílabos pela nossa (com uma oitava átona facultati-va), também chamados de redondilha maior. O tipo de rimamais típico é a toante, muito embora em romances mais re-centes ocorra a rima consoante; estabelece-se de forma al-ternada, somente nos versos pares (xaxaxa). Este modo derealização rímico reforça a estruturação binária do verso, umavez que cada par de versos forma sintaticamente uma só fra-se. Além do mais, geralmente duas duplas de versos formamum bloco quaternário, delimitado por ponto ou ponto-e-vír-gula; mas ocorrem também blocos de dois ou mais versos.Muito raramente apresentam refrão, e as estrofes são de ta-manho variável, irregulares, na verdade blocos de tamanhoaleatório geralmente compostos por versos de mesma rima.

3. Atualizações da poesia medieval

Deixaremos de lado maiores cogitações sobre a fortuna doRomanceiro no Brasil, documentada em numerosas recolhas datradição oral. O nosso objetivo é lembrar apenas algumas dasrecriações de romances por poetas eruditos no século XX, tendojá focalizado aspectos das mesmas em estudo anterior(MALEVAL, 2000, p. 259-287). Destacamos que, em 1923-1931,Onestaldo de Pennafort compôs um pequeno Romanceiro, comotal denominado (PENNAFORT, 1954, p. 163-203); CecíliaMeireles, na década de 50, renovaria o gênero com o Romanceiroda Inconfidência (1989); Stella Leonardos, nos anos setenta,publicaria o seu Romançário. Deixando de lado por ora o gêneroe seus outros cultores, incluído o próprio Mário de Andrade, líderdo Modernismo brasileiro, vamos nos ater à tendência que Ma-nuel Rodrigues Lapa denominou Neotrovadorismo, referindo-sea poemas do galego Bouza-Brey (BOUZA BREY, 1980, p. 47).

3.1. O Neotrovadorismo

Antes de passarmos aos poetas brasileiros que podem ser in-cluídos no Neotrovadorismo, reunidos em sua maioria na presen-

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te Antologia, achamos conveniente observar as peculiaridades domesmo na Galicia ancestral. Aí, surgiria a par das vanguardasliterárias acontecidas no pré-Guerra Civil Espanhola do séculoXX, ligado a questões de identidade, pondo em evidência o can-tar das origens, dos áureos tempos da hegemonia cultural galegana Península Ibérica, antes de a Galiza ser submetida a séculos desilenciamento ditado pela centralização do poder na Espanha,unificada pelos Reis Católicos em fins do século XV.

Apesar da sua importância, o Trovadorismo galaico-portu-guês ficara por séculos envolto em densas trevas, a ponto decausar espanto ao erudito Padre Sarmiento, em 1745 (ALONSOMONTERO, 1995, p. 18-19), a referência feita pelo marquês deSantillana ao apogeu trovadoresco, quando o galego fora língualiterária de prestígio. O marquês, em carta-poêmio de meados doséculo XV, dirigida a D. Pedro, Condestável de Portugal, já sereferia a esse prestígio lingüístico como coisa do passado (LÓPEZDE MENDONZA, 1980, II, p. 218). E os Cancioneiros medievossomente a partir de fins do século XIX seriam publicados – o daVaticana em edição paleográfica de Monaci (1875), o de Colocci-Brancuti em edição paleográfica de Molteni (1880) e crítica deBraga (1878), e o da Ajuda em edição crítica de Carolina Michaëlisde Vasconcellos (1904).

Tal movimento neotrovadoresco – se é que podemos assimcaracterizá-lo, uma vez que sem manifestos ou outro tipo dedoutrinamento – não fora meramente saudosista do esplendorpassado. Embora heterogêneo, pode ser definido como, na sínte-se de Xosé Manuel Enríquez, uma “recriación do universo poéti-co medieval (ambiente e recursos formais: paralelismo, refrán,leixa-pren...) co espírito do século XX” (BOUZA BREY, 1992,p. 30). Nele se uniriam as audácias metafóricas da poesia moder-na com as velhas formas de expressão lírica, tornando-o um fenô-meno também original, além de autóctone, extremamente propí-cio ao sentimento de nacionalidade, de preocupação com a terraque dominava então o contexto sócio-político-cultural galego.Surgira estreitamente ligado ao Partido Galeguista, cujo Estatu-to de Autonomía para Galicia, de 1936, se viu frustrado pormotivo da Guerra Civil. Tomando Franco o poder, a sua políticacentralizadora sufocou com mãos de ferro as manifestações do

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socialismo e do anarquismo tão profusas na Espanha da época,quando ocorriam movimentos pró-autonomia regionais.

Portanto, o Neotrovadorismo galego inscreve-se nos movi-mentos de afirmação das identidades regionais reprimidas emmaior ou menor grau desde o advento das Nações, observadosna atualidade, a par dos avanços tecnológicos que tornam cadavez mais possível a internacionalização da cultura. Constituemverdadeiros “bolsões de resistência” à descaracterização políti-co-cultural, fragmentando o que parecia tendente a desaparecerna globalização aludida, retrocedendo às origens medievais,quando se forjavam as línguas do Ocidente, fatores por excelên-cia de identidade de cada povo. Nesse contexto, a Galiza é umadas vozes que buscam firmar a sua diferença essencial, exemploa ser seguido por nós, brasileiros, expostos intensivamente aosperigos da massificação globalizadora.

Fermín Bouza Brey (Nao senlleira, 1933, e Seitura, 1955) eÁlvaro Cunqueiro (Cantiga nova que se chama ribeira, 1933,Dona do corpo delgado, 1950, e Herba aqui e acolá, 1979) sãoos representantes mais significativos dessa “fase histórica” doNeotrovadorismo galego (LÓPEZ, 1997, p. 36). O primeiro se-ria o seu criador, apesar de Eduardo Pondal, em 1905, ter escri-to uma “Cantiga trobadoresca al estilo de Johan Zorro”, só re-centemente divulgada (FERREIRO, 1998, p. 232). TambémJohán Vicente Viqueira fora autor de poema datado de 1919,intitulado “Poemeto da vida”, em que são evidentes os traçosformais e topológicos das cantigas de amigo paralelelísticas,mas que somente seria publicado em 1930. Lembraríamos ain-da, como um dos primeiros recriadores da poesia medieval, ocatalão Carles Riba (Cantares d’ amor e d’ amigo, escritos em1911, mas publicados apenas em 1987), motivado por um na-moro com uma jovem de ascendência galega. Quanto aCunqueiro, foi o principal cultor e cânone seguido em fasesposteriores, já que, mesmo sofrendo um compreensível proces-so de desgaste, o “movimento” conseguiria sobreviver, atravésde autores vários, até os dias de hoje.

Deixando de lado outras especificidades do Neotrovadorismogalego, que desenvolvemos em lugar próprio (MALEVAL, 1999,p. 81-103), lembramos que foram decisivas, para essa retomada

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poética do medievo, as publicações de matéria trovadoresca, prin-cipalmente as Cantigas d’amigo e de amor editadas por JoséJoaquim Nunes, em 1928 e 1932, respectivamente, que as torna-ra acessíveis a um público mais vasto, sem ser iletrado.

Sabe-se que, mesmo antes das atuais conquistas da tecnologia,que possibilitam a universalização da cultura, também portugue-ses e brasileiros poetaram ou buscaram poetar sobre temas e/ou àmoda dos cantares medievais galaico-portugueses – ou porexperimentalismo, ou pela demanda das origens e do exótico, viade regra movidos por uma auto-consciente intertextualidade quefaz dialogar, mantendo-lhes as diferenças, o presente com o pas-sado. Citemos alguns nomes (e obras), sem levar em conta o graumaior ou menor de mimetismo por eles estabelecido na recriaçãode tópicos e/ou técnicas do Trovadorismo medievo: Afonso LopesVieira (In Canções do vento e do sol, 1911; Ilhas de bruma, 1917;País Lilás, 1922; Onde a terra se acaba e o mar começa, 1940);Onestaldo de Pennafort (In Espelho d’água, 1922-1931); AugustoMeyer (In Poemas de Bilu, 1929); Martins Fontes (In Sombra,silêncio e sonho, 1933); Mário de Andrade (In Remate de males,1941; Lira paulistana 1944-1945); Guilherme de Almeida(Cancioneirinho, in Poesia vária, 1944-1947); Manuel Bandeira(In Lira dos cinqüent’ anos, 1944; Mafuá do Malungo, 1948);Cecília Meireles (In Mar absoluto, 1945; Amor em Leonoreta,1951); Paulo Bonfim (In Antônio Triste, 1946; Cantiga dodesencontro, 1954); Edison Moreira (In Cais da eternidade, 1951;O jogral e a rosa, 1954-1958); Hilda Hilst (Trovas de muito amorpara um amado senhor, 1960); Jorge de Sena (In O físico prodi-gioso, 1964); Fiama Hasse Pais Brandão (Barcas novas, 1967);Stella Leonardos (Amanhecência, 1974); Myriam Coeli (Canti-gas de amigo, 1981), Marly Vasconcelos (Cãtygua proençal,1985); e José Rodrigues de Paiva (Cantigas de amigo e amor,1987-1988). Ou ainda as ressonâncias do Trovadorismo em poe-mas de Neide Archanjo (As marinhas, 1984), para não falar dealguns professores universitários brasileiros que vêm experimen-tando fazer poesias-leituras dos cantares arcaicos, como – alémdos já citados Marly Vasconcelos, ex-professora da UFC, e JoséRodrigues de Paiva, da UFPE –, Nadiá Paulo Ferreira, da UERJ,e Francisca Nóbrega, da UFRJ (MALEVAL, 1996, p.157-165),

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ou Teresa Cristina Meireles de Oliveira, da PUC e da UFRJ(MALEVAL, 1998, p. 265-267). Também poderiam ser arrola-dos os repentistas nordestinos, por serem tão afetos a certos te-mas medievos e ao recurso do leixa-pren, este igualmente explo-rado pelo “desafio” gaúcho (ARMANDO, 1995, p. 106), etc..

Antes de nos atermos às peculiaridades das obras/autores bra-sileiros, frisamos que a reflexão sobre o diálogo estabelecido dopresente com o passado, pela via do Neotrovadorismo, tem sidovalorizada pela Academia da forma mais relevante, através deteses de Doutoramento. Tal é o caso da tese de William MyronDavis, defendida em 1969, na New York University, intituladaNew-troubadourism in Galicia, Portugal and Brazil, que assina-la a questão da influência de trovadores ou cantigas sobre poemasneotrovadorescos, e que, até pela época já distante em que foielaborada, deixa de lado autores importantes e mais atuais.

Outras teses, posteriores, também se debruçaram sobre oassunto, mas restringindo-se ao Neotrovadorismo galego, comoa de Pilar Castro, defendida em 1989, na UniversidadeComplutense de Madrid, sob o esclarecedor título de Antologíacrítica de la Poesía Neotrovadoresca Gallega. Ou a de MaríaTeresa López Fernández, defendida em 1993, na Universidadeda Coruña, intitulada A recuperación da tradición lírica medi-eval en Galicia: o Neotrobadorismo. Esta encara o fenômenonuma perspectiva historicizante, destacando o papel da literatu-ra medieval no ideário nacionalista.

Lembraria ainda que, no tocante ao Trovadorismo medieval,além de muitos estudos e edições críticas parciais de trovadores,efetivadas por professores universitários de vários países, foi re-centemente publicada uma monumental edição da Lírica profanagalego-portuguesa – corpus completo das cantigas medievais,con estudio biográfico, análise retórica e bibliografia específi-ca, levada a termo por uma equipe de pesquisadores do Centrode Investigacións Lingüísticas e Literárias “Ramón Piñeiro” daXunta de Galicia, coordenada por Mercedes Brea (1996). Ape-sar de não ser ainda a esperada edição crítica da matéria dos Can-cioneiros medievos, embora se baseie em edições preferentementecríticas de alguns trovadores; e apesar de não apresentar umadesejável uniformização ortográfica, fornece boas notícias dos

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trovadores e textos, além de ser a mais completa edição da líricaprofana até hoje publicada.

Voltando à nossa reflexão sobre o Neotrovadorismo, observa-ríamos ainda, nessas preliminares, que o português Afonso LopesVieira (1878-1946) teve, sem dúvida, fundamental importâncianos seus primórdios, dada a circulação e receptividade da suaobra e das suas idéias nos principais círculos culturais e naciona-listas de Galiza à volta dos anos vinte (LÓPEZ, 1997, p. 123),bem como no Brasil, através de autores ligados ao Saudosismolusitano, como Guilherme de Almeida. Já observara Teresa López(1997, p. 132) que ele fora o primeiro autor português a usar “demaneira sistemática”, os “recursos e temas do cancioneiro medi-eval”, mesmo que antes dele João de Deus compusesse o “Desa-lento”, “Retoque da lírica 505 do Cancioneiro da Vaticana”, pu-blicado em 1919 na Galiza (LÓPEZ, 1997, p. 132).

Quanto ao Brasil, embora não possamos determinar com pre-cisão quem teria sido o seu primeiro realizador, citamos, comopioneiros, Onestaldo de Pennafort, Martins Fontes, Paulo Bonfim(COELHO, 1981, p. 19-26), Augusto Meyer (ARMANDO, 1995,p. 106), etc., além dos mais famosos Guilherme de Almeida eManuel Bandeira.

4. O Modernismo brasileiro e a tradição medieval

Antes de destacarmos algumas particularidades individuais,na recriação do poema medieval, lembraríamos que muitos dosprimeiros “neomedievalistas” brasileiros são contemporâneosou participantes do movimento modernista, que no Brasil sefirmou com a Semana de Arte Moderna, realizada de 13 a 17 defevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, através desessões ou festivais literato-musicais, acompanhados de exposi-ções de escultura, pintura e arquitetura. É importante esta ob-servação, dado que dentre os postulados básicos do nosso Mo-dernismo se encontravam justamente a luta pela emancipaçãoda nossa literatura, da nossa língua, em relação aos modelosportugueses e o combate aos extenuados valoreseuropocentristas, proclamando-se uma nova concepção da artee uma nova consciência da realidade nacional. Mas a poesia

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lírica medieval galaico-portuguesa, raramente revisitada nos sé-culos da nossa colonização, apresentava-se no início do séculoXX como novidade redescoberta, pois, como vimos, os Canci-oneiros medievais só a partir do final do século XIX passaram aser divulgados através de publicações integrais. Quanto à poe-sia épico-lírica do Romanceiro hispânico, tendo em vista o seucaráter de oralidade, integrara-se ao imaginário do nosso povo,sem poder ser considerada uma “receita”, ou uma forma de sub-serviência a modelos estrangeiros.

4.1. Mário de Andrade

O próprio Mário de Andrade (1893-1945), que foi o principallíder do Modernismo brasileiro, retomou o Trovadorismo medie-val em alguns poemas, evidentemente que renovando-lhe o ideárioe a linguagem. Aliás, ele próprio se autodefiniria em Pauliceadesvairada, obra composta de 1920 a 1922, mais precisamenteno seu “Prefácio interessantíssimo”, que foi um dos principaismanifestos modernistas no Brasil, nos seguintes termos: “Sou umtupi tangendo um alaúde” (ANDRADE, 1987, p. 83).

Tal retomada da lírica medieval se observa no poema “Cantigado ai” (ANDRADE, 1987, p. 232), publicado em “Tempo deMaria”, Remate de males, 1941:

CANTIGA DO AI

Ai, eu padeço de penas de amor,Meu peito está cheio de luz e de dor!

Ai, uma ingrata tão fria me olhou,Que vou-me daqui sem saber pra onde vou!

Eu cheirei um dia um aroma de florE vai, fiquei doendo de penas de amor!

Foi minha ingrata que por mim passou!Ai, gentes! Eu parto! Não sei pra onde vou!

Ai, malvada ingrata que escolhi vem!Eu sofro e não posso queixar de ninguém!

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Sofro mas me orgulho de meu sofrer,É linda a malvada que fui escolher!

Tem a mansidão dos portos de marMas porém é arisca que nem pomba-do-ar!

Ela é quieta e clara, ela é rosicler,É a boca-da-noite virada mulher!

Ai, unhas de vidro para me encantar!Ai, olhos riscados para não me enxergar!

Ai, peito liso, boca de carmim!Ingrata malvada que não pensa em mim!

Ai, pena tamanha que me quebrou!Adeus! Vou-me embora! Não sei pra onde vou!

Lastimem o poeta que vai partir,Oh, amantes se amando no imenso Brasil! …

Neste poema, além do título (“Cantiga”) e da estrutura biná-ria das estrofes, comum nas cantigas de amigo paralelísticas, éretomado o motivo da “coita” amorosa, decorrente da indife-rença da mulher amada, cujas virtudes são causa de orgulho dotrovador por amá-la, o que é uma tópica comum nas cantigas deamor medievas. A utilização reiterada da interjeição “Ai” tam-bém se inscreve na tradição lírica medieval. A esta tradição vêmse juntar as audácias metafóricas e metonímicas ou sinedóquicasdo modernismo, relacionando o poeta a mulher amada à “boca-da-noite”, representando-a pelas suas “unhas de vidro”, etc.

Em “Lira paulistana”, longo poema composto de peças vari-adas, escritas entre 1944 e 1945, temos revisitadas principal-mente as paralelísticas do jogral galego do século XIII, MartinCodax. Em “Minha viola bonita...” (ANDRADE, 1987, p. 351)reminiscências medievas são evocadas não apenas pelo termo“viola”, já que as violas ou fístulas eram instrumentos usadospelos jograis, segréis, menestréis etc.; mas também pelo uso datécnica do paralelismo, mais precisamente do paralelismo sintá-tico – deslocação dos termos na frase – objetivando a variaçãodo verso: “Minha viola bonita / bonita viola minha”:

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Minha viola bonita,Bonita viola minha,Cresci, cresceste comigo

Nas Arábias.

Minha viola namorada,Namorada viola minha,Cantei, cantaste comigo

Em Granada.

Minha viola ferida,Ferida viola minha,O amor fugiu para leste

Na borrasca.

Minha viola quebradaRaiva, anseios, lutas, vida,Miséria, tudo passou-se

Em São Paulo.

Em “São Paulo pela noite...” (ANDRADE, 1987, p. 352)temos a evocação da bailia de Martin Codax, “Eno sagrado enVigo...”, sendo substituído o bailado da jovem pelo do “espíri-to” do sujeito da poesia:

São Paulo pela noite.Meu espírito alertaBaila em festa a metrópole.

São Paulo na manhã.Meu coração abertoDilui-se em corpos flácidos.

São Paulo pela noite.O coração alçadoSe expande em luz sinfônica.

São Paulo na manhã.O espírito cansadoSe arrasta em marchas fúnebres.

São Paulo noite e dia …

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A forma do futuroDefine as alvoradas:Sou bom. E tudo é glória.

O crime do presenteEnoitece o arvoredo:Sou bom. E tudo é cólera.

Neste poema é utilizada a técnica do paralelismo, de formadialética, substituindo-se em cada estrofe a euforia de “São Paulopela noite” pelo estado contrário de “São Paulo na manhã”. Numaevocação também das antigas albas provençais, ocorre a prefe-rência pela noite, se bem que não já por motivo de esta proporci-onar a união dos amantes, e o dia a sua separação; na noitepaulistana de Mário, “baila em festa a metrópole” e o seu “cora-ção alçado / se expande em luz sinfônica”, ao passo que pelamanhã o seu “coração aberto / dilui-se em corpos flácidos” e seu“espírito cansado / se arrasta em marchas fúnebres”. O labor diá-rio, cansativo, desumano na grande metrópole, em contraposiçãoà luminosidade feérica da noite que nela se observa é, pois, ocontraponto que se estabelece, com a explicação final de que “aforma do futuro / define as alvoradas”: o amor como motivo es-sencial é substituído por preocupações pautadas na desumanida-de da existência no mundo industrializado. Tal se consubstancializana “fiinda”, recurso medieval que remata a cantiga, constituindoagora a síntese da sua dialética, complementada pela oposiçãoromântica do poeta ao mundo: “Sou bom. E tudo é cólera”.

Em “Garoa do meu São Paulo” (ANDRADE, 1987, p. 353)e, ainda mais claramente, levando-se em conta os elementos for-mais (refrão e paralelismo), em “Ruas do meu São Paulo”(ANDRADE, 1987, p. 355) podemos observar um diálogo com“Ondas do mar de Vigo...”, desde o ritmo dos versos hexassílabos:

Ruas do meu São Paulo,Onde está o amor vivo,Onde está?

Caminhos da cidade,Corro em busca do amigo,Onde está?

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Ruas do meu São PauloAmor maior que o cibo,Onde está?

Caminhos da cidade,Resposta ao meu pedido,Onde está?

Ruas do meu São Paulo,A culpa do insofrido,Onde está?

Há de estar no passado,Nos séculos malditos,Aí está.

Abre-te a boca e proclamaEm plena praça da Sé,O horror que o Nazismo infameÉ.

Abre-te boca e certeira,Sem piedade por ninguém,Conta os crimes que o estrangeiro tem.

Mas exalta as nossas rosas,Esta primavera louca,Os tico-tico mimosos,Cala-te boca.

Mas as preocupações com a injustiça social e o Nazismosubstituem agora as indagações que outrora a donzela, a “ami-ga”, fazia às oraculares ondas do mar, trocadas por Máriopela cidade (de São Paulo) e sua garoa, no poema “Garoa domeu São Paulo. Garoa que, na “fiinda” deste poema, é pelosujeito da poesia introjetada: “Garoa, sai dos meus olhos”.

Com relação aos poemas de cunho primacialmente narra-tivos do Romanceiro, podemos comprovar a sua herança empeças como a da “triste história de Pedro” em Lira paulistana,uma das últimas compostas pelo poeta. Mas já nas suas pri-meiras obras tal se observa, por exemplo em “Coco do ma-jor” (ANDRADE, 1987, p. 197), publicado na época do Pri-meiro Modernismo, em 1927:

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COCO DO MAJOR a Antonio Bento de Araújo Lima

(Rio Grande do Norte)

O major Venâncio da SilvaGuarda as filhas com olho e ferrolho,Que vidinha mais caningada

– seu mano –Elas levam no engenho do velho!

Nem bem a arraiada sonoraVem tangendo as juremas da estradaJá as três se botam na renda

– seu mano –Trequetreque de bilros, mais nada.

Vai, um mocetão paroaraDestorcido porém sem cabeçaApostou num coco da praia

– seu mano –Que daria uma espiada nas moças.

Pois a fala do lambanceiroFoi parar direitinho no ouvidoDo major Venâncio da Silva

– seu mano –Que afinal nem se deu por achado.

Bate alguém na sede do engenho .– Seu major, ando morto de sede,Por favor me dê um copo de água …

– seu mano –Pois não, moço! Se apeie da égua.

Dois negrões agarram o afoito,O major assobia pra dentro.Vêm três moças lindas chorando

– seu mano –Com quartinhas de barro cinzento.

– Esta é minha filha mais velha,Beba, moço que essa água é de sanga.E os negrões obrigam o pobre

– seu mano –A engulir a primeira moringa.

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– Esta é minha filha do meio,beba, moço, que essa água é do corgo.E os negrões obrigam o pobre

– seu mano –a engulir a moringa, já vesgo.

– Esta é minha filha mais nova,Beba, moço, que essa água é de fonte.E os negrões afogam o pobre

– seu mano –que adubou os faxineiros do monte.

O major Venâncio da SilvaTem as filhas mais lindas do norteMas ninguém não viu as meninas

– seu mano –Que ele as guarda com água de pote.

A propósito, já observara Sonia Inez Gonçalves Fernández(FERNÁNDEZ, MALEVAL, 1996, p. 67-75) que Mário deAndrade procedeu à assimilação de temas da literatura medie-val pela via da cultura popular: o pai, guardião da honra dasfilhas, tem-nas prisioneiras, sem voz, sem direito a namorados,aos quais extermina: “O major Venâncio da Silva / guarda asfilhas com olho e ferrolho...”; ao passo que a prisão das donzelaspela mãe no Trovadorismo medieval ibérico não lhes inibe avoz, o desejo, como podemos ver na cantiga-tenção de PeroAmigo de Sevilha “Dizede, madre, porque me metestes / en talprison e porque mi tolhestes / que non possa meu amigo veer?”(BREA, 1996, p. 736).

Dessa forma, as tradições épica e lírica medievas sãoreaproveitadas por Mário, não apenas no que concerne a elemen-tos formais – inclusive o uso do refrão e o paralelismo –, e temáticosamalgamados, mas à união da poesia com a música, já expressadesde o título das composições: “lira”, “coco”, “cantiga”, etc.

4.2. Augusto Meyer

Augusto Meyer, nascido em Porto Alegre, 1902, e faleci-do no Rio de Janeiro, 1970, embora mais conhecido pelosseus excelentes ensaios, foi também poeta, além de jornalis-

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ta, memorialista e folclorista. Enquanto poeta, fez algumasincursões neotrovadorescas de forma lúdica, humorística,publicadas em 1929 na obra Poemas de Bilu, composta nosanos 1928-1929 (ARMANDO, s.d., p. 371). Por exemplo,na “Canção do chus”:

Amigo, trobemos clus,O non trobemos, bailemosA dança d’ombros, e sus!Que malmaridada é a almaE a vida, lá vai perdida.

Deixá-la, sem chus nem bus... (MEYER, 1957, p. 147).

Aí se observa uma brincadeira a partir da expressão trobarclus, isto é, o poetar hermético da arte de trovar occitana. Re-cria-se uma nova bailia, na qual a malmaridada, outro termoligado ao Trovadorismo, é a “alma”. Mas a estrofe-verso finalcorrói a aura de seriedade dessa reflexão, com o jogo verbalestabelecido através dos termos “chus” e “bus”, com conotaçõesinclusive obscenas.

Em outra “Bailada”, como tal denominada, Meyer substituia imagem, as qualidades do artista medievo – trovador, jogral,segrel, menestrel – pelo “desenxabido” e “desenganado” Bilu“de corincho caído / quebrado” (“corincho” significa topete ouarrogância, basófia; daí a expressão “quebrar o corinxo” no RioGrande do Sul):

Ai Bilu de corincho caído,Ai Bilu de corincho quebrado,Quem te viu tão desenxabido,Quem te vê tão desenganado.

Ai Bilu, já não serás bom jogral,Já não serás nem jogral, nem segrel.Nem trovarás, ai! como proençal,Nem cantarás, ai! qual menestrel!

Mas bailemos, mentr’al non fazemos.Bailemos poemas, cantigas, bailadas,Bailemos, ai Bilu, bailemos ao menosNo ritornelo destas retornadas! (MEYER, 1957, p. 158).

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A Bilu só resta a dança de ombros, sinônimo de irrealizaçãoou de indiferença. Nesta mesma cantiga é feita uma referênciaexpícita, no primeiro verso da terceira estrofe, à bailia de AirasNunez de Santiago – “Bailemos nós já todas três, ai amigas...”(BREA, 1996, p. 122) –; e também uma alusão paródica à canti-ga de D. Dinis “Proençaes soen mui bem trobar (BREA, 1996, p.217); bem como às retornadas, cantigas que se mantiveram nofolclore português e das quais se aproximam as desgarradas e osdesafios, ou as pelejas nordestinas e desafios gaúchos, como jáobservara Maria Luiza Armando (ARMANDO, s.d., p. 374).

Já na composição denominada “Rimance”, a nota cômica édada pelo descompasso entre a erudição demonstrada no usode termos e expressões em latim (quo vadis) ou do galego-português (várias) e a estrofe-verso final, que apresenta o po-pular “mardades”; o abuso do sufixo verbal -des contribui paraa “brincadeira” de Meyer, um dos mais importantes críticosliterários do Brasil:

Senhora minha, quo vadis?Que me enchedes de soidades,A esta façon me feredesDeperecer por mi féDe vossas blandas beldades.

A esta façon me deixades?

Senhora minha, haveredesDe avelenar coraçom,y ay quão cuitado deixadesa quem tão mal atendedes!

Deixaredes de mardades (MEYER, 1957, p. 162).

Portanto, o poema-piada, tão caro à iconoclastia moder-nista, teve em Mayer um dos seus cultores, nos casos apre-sentados dialogando com a nossa lírica ancestral occitano-galaico-portuguesa.

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5. O Neomedievalismo no Brasil

Na Antologia apresentada na segunda parte desta obra, opta-mos por reunir poetas famosos ao lado de outros menos conheci-dos que, sobretudo à volta de universidades, praticaram as suasincursões poéticas no medievo. Certamente que não recolhemostodos os autores e poemas encontrados, que retomam a IdadeMédia, principalmente, mas não só, através do Trovadorismo. Oscritérios de exclusão variaram desde a dificuldade de conseguir-mos autorização para publicação (como foi o caso de Mário deAndrade e Augusto Meyer) ao número muito escasso de experi-ências neomedievalistas (por exemplo, o das professoras NadiáPaulo Ferreira e Teresa Cristina Meireles).

Observamos que esse Neomedievalismo brasileiro é uma prá-tica muito heterogênea. Alguns poetas, mesmo intitulando osseus poemas por gêneros medievais, apenas se restringiram amanter-lhes alguns vocábulos específicos, outras vezes a para-frasear um texto arcaico, tomá-lo como mote a ser glosado oucom ele dialogar literalmente, trazendo-o para o interior do novopoema. Poucos são os que retomam, completamente ou quase,as estruturas medievas.

A seguir, abordaremos os autores de poemas coligidos naAntologia. Nesta podem ser lidos na íntegra os poemas a quenos referirmos.

5.1. Onestaldo de Pennafort

A poesia do carioca Onestaldo de Pennafort (1902-1987) re-cebeu a influência dos mestres parnasianos e simbolistas france-ses, e ainda dos portugueses Bernardim Ribeiro e Eugênio deCastro. Esta é a competente avaliação de Manuel Bandeira, quedestaca ter sido ele “exímio tradutor de Shakespeare (Romeo andJuliet), de Verlaine (Fêtes galantes)” (BANDEIRA, 1996, p. 606).

Além de tradutor, foi ensaísta e memorialista. Certamente queestas atividades facilitaram-lhe tornar-se um dos primeiros poe-tas, senão o primeiro, a retomar claramente as cantigas dos trova-dores medievos, na obra Espelho d’água, que recolhe poemasescritos de 1922 a 1931. Principalmente nos poemas “Cantar de

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amigo” (PENNAFORT, 1954, p. 117) e “Cantar de amiga”(PENNAFORT, 1954, p. 121) tal se observa, desde o título àepígrafe, no primeiro, e à forma de dístico e a voz feminina, nosegundo. Em “Pastoral” (PENNAFORT, 1954, p. 123) sugere,pelo título, a evocação das pastorelas, mas, sem apresentar-lhes ocostumeiro diálogo, delas se afasta, constituindo um quadro des-maiado e melancólico da natureza ao entardecer.

Dedicou-se sobretudo à revitalização da tradição tardo-medieva, compondo um Romanceiro, com composições elabo-radas de 1923 a 1931. Este se divide em “Romances d’além-mar”, que recriam temas da Idade Média, e “Romances d’aquém-mar”, que dão continuidade ao gênero, com temas já da suamundividência brasileira, mais especificamente carioca. Dentreos primeiros, encontram-se o “Romance dos sete cavaleiros”, o“Romance do vilão”, o “Romance da rosa”, o “Romance do Condearagonês” e o “Romance das três irmãs ou Miramar”. Destes, osque mais claramente se reportam à tradição ibérica, através dasepígrafes, são o do Conde aragonês e o do vilão.

O “Romance do Conde aragonês” reapresenta uma tradiçãoque deita raízes no Romanceiro ibérico, remetendo, através daepígrafe, para o conhecido romance da erva que engravida, ouda Infanta prenhada, em versão que não conseguimos identifi-car, mas que teve uma variante, “Dona Ausenda”, publicada porAlmeida Garrett (GARRETT, 1966, v. II, p. 823-826). No en-tanto, Pennafort transforma o tema da filha transgressora no daesposa adúltera, e faz uso da rima consonântica, ao invés daassonância, mas conservando a unicidade estrófica do antigoRomanceiro hispânico.

No “Romance do vilão”, a epígrafe remete para o contextodas cantigas descarnho dos trovadores galaico-portugueses, rei-no da aequivocatio realizada na dupla acepção do verbo “comer”(alimentar-se / copular), glosada no poema através doscomparantes boca / vinho, seios / frutos. A rima consoante esta-belece-se agora entre palavras oxítonas, nos versos pares, e a es-trofe é única, como nos romances viejos. E o tema é o da mulhervirtuosa e esperta, que não apenas desmascara o embusteiro, masa falta de gentileza do esposo, oposta à atitude cortês do amante.

Guarda certo parentesco com o romance “La amiga de Bernal

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Francés”, um dos mais antigos, que trata também de um embus-te: o marido que se faz passar pelo amante para desvelar o adul-tério da esposa. Já Pennafort faz o vilão, candidato a amante,passar-se pelo marido, sendo no entanto descoberto o estrata-gema pela esposa fiel.

Quanto aos demais “Romances d’aquém-mar”, destacaría-mos dois, que, pelas epígrafes, remetem à tradição das cantigasde roda: “Romance da lavadeira das encostas de Santa Teresa”(“As lavadeiras fazem assim, assim, assim”) e “Romance dotranseunte antigo” (“Se estas ruas fossem minhas / eu mandavaladrilhar”). O primeiro deles ainda evoca-nos a cantiga de D.Dinis “Levantou-s’a velida, / levantou-s’alva, / e vai lavar cami-sas / e-no alto. / Vai-las lavar alva. (...) O vento lh’as desvia...”(BREA, 1996, p. 196-197): “Roupas secando na corda / ao rijovento de agosto, / desde que a manhã acorda / até que seja solposto. // O vento dá-lhes pancada / com suas maneiras brutas. /Quanto mais forte a lambada, / tanto mais ficam enxutas ”(PENNAFORT, 1954, p. 186).

Os demais romances pelos próprios títulos desvelam o cará-ter intimista ou de atualidade ou de circunstancialidade que apre-sentam: “Romance da fonte e da lua ou o artista”, “Romance doPasseio Público”, “Romance do vento de cismas”, “Romanceda Rua Constante Jardim”, “Romance do Largo do Capim”,“Romance do menino no jardim”, “Romance dos olhos no es-pelho”, “Romance da Praça Gonçalves Dias”, “Romance doemparedado”, “Romance do ignorante” e “Romance dos so-brados da Rua das Laranjeiras”.

5.2. Martins Fontes

Martins Fontes, paulista de Santos (1884-1937), foi um dospioneiros na recriação de cantigas trovadorescas, embora o façaem poucos exemplos. Apesar de médico, ajudando Oswaldo Cruzna profilaxia urbana do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, noinício da década de 10, nunca se afastou das Letras. Além dejornalista, mantinha estreito contato com escritores, participandoda eclosão do Modernismo no Brasil. No entanto, mesmo sendoesse movimento uma reação à tradição literária (e não só), de

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cunho extremadamente nacionalista, não impediu que o poetafizesse as suas já mencionadas experiências neotrovadorescas. Asua eleição para a Academia das Ciências de Lisboa, em 1924, e aviagem à Europa em 1930, no séquito do presidente eleito JúlioPrestes, certamente que teriam contribuído para o estreitamentode laços com a cultura avoenga. Num dos seus poemas, retoma o pranto do jogral leonês Johansobre a morte de D. Dinis, em 1325, paradigma ao qual não obe-dece integralmente. Limita-se a, através de quadras, lamentar amorte do “Dom Lavrador” e tecer-lhe o panegírico, sobretudo dasua feição de “Rey Trobador”, de “troveiro das velhas Tenções”“do tempo da frôl”, considerando-o superior aos provençais. Lembramos que o gênero, derivado do provençal planh, apre-sentava-se em galego-português nas raras realizações de Pero daPonte (quatro), que o aproximara do sirventês moral, e na deJohan de Leon, já citada acima. Em outro poema, denominado “Solau”, retoma a cantiga deamigo do jogral galego Juião Bolseiro, parafraseando o elogionela estabelecido pela jovem ao trovador, que tão bem a louvaraem “liras no son”. Embora usando o refrão medieval, no entantoa forma é também outra. Abrimos um parêntese para lembrar que a Arte de Trovar doCancioneiro da Biblioteca Nacional não registra nenhuma com-posição com tal título, solau. Apenas sabemos que era um gêneropoético-musical tardo-medievo, não exemplificado nos Cancio-neiros, ao qual aludem escritores quinhentistas como Sá deMiranda, Jorge F. de Vasconcelos e Bernardim Ribeiro. Este últi-mo põe na boca da ama de Arima, personagem de Menina emoça, um “cantar à maneira de solam” ou solau:

Pensando-vos estou, filha,vossa mãe me está lembrando;enchem-se-me os olhos d’águanela vos estou lavando.Nascestes, filha, entre mágoa,para bem inda vos seja,que no vosso nascimentovos houve a fortuna inveja.Morto era o contentamentonenhuma alegria ouvistes:

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vossa mãe era finada,nós outras éramos tristes.Nada em dor, em dor crescida,não sei onde isto há-de ir ter!Vejo-vos, filha, formosa,cos olhos verdes crescer.Não era esta graça vossapara nascer em desterro.Mal haja a desaventuraque pôs mais nisto que o erro!Tinha aqui a sepulturavossa mãe, e a mágoa nós.Não éreis vós, filha, não,para morrerem por vós!Não houve, em fados, razãonem se consente rogar.De vosso pai hei mor dó,que de si se há de queixar.Eu vos ouvi a vos sóprimeiro que outrem ninguém.Não fôreis vós, se eu não fora;não sei se fiz mal se bem.Mas não pode ser, senhora,para mal nenhum nascerdescom este riso graciosoque tendes sobre olhos verdes.Conforto mais duvidosome é este que tomo assim.Deus vos dê melhor venturaque a que tivestes té qui.Que a dita e a formosura,dizem patranhas antigasque pelejaram um diasendo dantes muito amigas.Muitos hão que é fantasia.Eu, que vi dias e anosnenhuma cousa duvidocomo ela é causa de danos.Mas nenhum mal não é crido,O bem só é esperado.E na crença e na esperançaem ambas há i mudança,em ambas há i cuidado! (RIBEIRO, [1985], p.104-105)

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Como se pode observar, apresenta as seguintes característi-cas: inicia-se por um verso octonário branco e segue com rimascruzadas, sempre variadas (XABA-BCDC-DEFE-FGHG). Aoque tudo indica, seria o solau uma adaptação da terça-rima ita-liana à quadra, aproximando-se, pelo tom de tristeza, do fado,que também por vezes lança mão do encadeamento.

Almeida Garrett, analisando os gêneros narrativos popu-lares em verso, distingue-o do romance e da xácara, consi-derando-o mais plangente e lírico:

o solau será sempre cantar triste como indicaBernardim Ribeiro? Narrativo é ele também peloque tão claro nos diz Sá de Miranda. Mas uma coisanão exclui a outra. Eu inclino-me a crer que o solaué um canto épico ornado, em que as efusões líricasacompanham a narrativa de tristes sucessos, maispara gemer e chorar sobre eles, do que para os con-tar ponto por ponto (GARRETT, 1966, v. 2, p. 780).

Martins Fontes aproximou o seu poema muito mais da cantigamedieval de Juião Bolseiro, tanto no esquema rímico, que só rompepor acrescentar mais um verso a cada estrofe (ABBA+A), quan-to na repetição de alguns versos, com pequena variação: “Fex ¢acantiga d’amor” / “Fez umas trovas de amor”, etc.. Só que, aoinvés de apresentar a amiga agradecida e seduzida pelo cantoelogioso, cortês, do trovador, apresenta-a também agradecida,mas pelo trovar que lhe traduziu o sofrimento.

5.3. Guilherme de Almeida

O paulista de Campinas Guilherme de Almeida (1890-1969)publicara, em 1920, o Livro de Horas de Sóror Dolorosa. Aí, naopinião da crítica (COELHO, 1973, p. 40), “o parnasianismocede lugar ao simbolismo”. E, o que nos interessa, nele já seregistra a referência a um gênero literário medieval, o livro dehoras, retomado em aspectos gráficos (capa, vinhetas e letrascapitulares tardo-medievas ou renascentistas). Este livro era opredileto do poeta, segundo o testemunho de Odylo Costa Fi-lho (COSTA FILHO, 1972), para quem esta obra seria “um atode criação que encarna o amor num ser feminino pra lhe dar

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‘toda’ a dimensão humana”. Mas seria no posteriorCancioneirinho (Poesia vária, 1944-1947, 1952) que o poetamergulharia ainda mais na Idade Média, retomando, das canti-gas de amigo paralelísticas, os seus mais característicos aspec-tos formais. Entre estas duas experiências, elaborou umabelíssima lição sobre o percurso lírico da nossa poesia brasileira,desde as origens occitano-galaico-portuguesas, constituida peloseu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em1932, que adiante comentaremos.

Apresenta, em quase todos os vinte poemas que compõem ocitado Cancioneirinho, o mais nítido paralelismo, acompanhan-do-os de refrão, em perfeita obediência ao modelo medieval.Não bastassem essas evidências, faz sempre uso de epígrafescompostas por versos dos trovadores galaico-portugueses, maisespecificamente cantigas de amigo.

No entanto coloca, diferentemente dos paradigmas evoca-dos, questões que não se esgotam nos temas do sofrimento poramor, mas em perquirições existenciais que via de regradescambam na angústia existencial, na nostalgia de um tempoperdido, de um passado feliz irrecuperável. A saudade que nelese observa não é mais tão somente a da amiga pelo namorado,senão a Saudade maiusculada – aliás, em visível sintonia com oSaudosismo português, ao qual era tão caro o nosso poeta, porser um dos primeiros doutrinadores do idealismo/nacionalismotradicionalista (COELHO, 1973, p. 1006). Por exemplo, con-forme demonstramos em estudo anterior (MALEVAL, 1999, p.121-130), no poema “Senhora Saudade” percebe-se claramen-te o diálogo com a Renascença Portuguesa, uma vez que o ideáriosaudosista se desvela na distinção entre a “saudade” enquantoestado sentimental correntemente reconhecido e a “Saudade”,com S maiúsculo, tida pelo mentor do movimento, Teixeira dePascoaes (1912), como a “realidade essencial”, o “sangue espi-ritual da Raça” galaico-portuguesa.

Acrescente-se que, em poemas indicativos da sua concep-ção poética, ora a poesia aparece ligada à inspiração, como nopoema “Destino” (“e cercaram-me as ondas da inspiração”),ora como trabalho, embora de feição idealística, como se perce-be nos versos de “Envoi”: “El-rei dom Ideal / versos mandou

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lavrar”. Versos que, ademais, são expressão de um segredo: “elá vai, / cheio de medo, em meus versos, meu segredo”.

Enfim, nenhum outro poeta novecentista conseguiu ser tãoversado no paralelismo medieval como Guilherme de Almeida,muito embora veiculando através dele outras preocupações quenão a dos trovadores. No seu discurso de posse na AcademiaBrasileira de Letras, em 1932, ao qual já nos referimos, demons-trou profundo conhecimento e apreço pela lírica ancestral. Com-pondo o que ele chamou de “árvore genealógica da nossa poe-sia”, remonta a sua gênese à Provença, estabelecendo o seu per-curso até as terras galaicas:

Desceu daí, dessa Provença capitosa, do cheiro deamor das suas flores de laranjeira, do sabor aperitivodas suas olivas, do beijo de boca pintada das suasamoras quentes, do mosto fresco das suas uvas acrespisadas nas tinas...; desceu daí uma fina e perfuranteraiz da árvore sonora e alastrou-se, estirou-se, subter-rânea, longa, verrumante, furando a rocha funda dosPirineus, varando as terras eriçadas de Espanha, pararebentar o solo simples e laborioso da Galiza e aí res-pirar, tomar fôlego e subir no ar em planta nova eforte (ALMEIDA, 1937, p. 243-244).

Mas já reconhecia também a existência da escola poéticaautóctone desse noroeste da Península Ibérica, à qual se uni-ria a canção occitana para gerar novos rebentos:

Ora, um lirismo próprio, independente, original, jáaí cantava pelo ritmo mais velho dessa língua, pelamonotonia plangente e repetida do verso“paralelístico”, que em Espanha se chamou“cossante”: cantava “solo ramo verde frolido, soloverde frolido ramo”; e cantava as “ondas do marsalido” e as “ondas do mar levado”... Cantava... Eraa Galiza. Era a Arcádia Católica: terra de romarias elavras, com avelaneiras, estorninhos, pastoraslouçanas, verdes pinos, ribeiras, bodas, hermanas, ma-dres e amigos... Cantava... Ia cantando sozinha, plantaagreste de serras, as suas serranilhas soluçadas dealalalas, quando pelo seu caule se enroscou a árvoremoça e estimada de Provença. E, juntas e trançadas,

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cresceram no céu pastoril. E, na voz e na sombra daárvore dupla, começou a bailar o ritmo novo, estran-geiro dos “troubadours” (ALMEIDA, 1937, p. 244).

Daí para o apogeu trovadoresco na corte portuguesa de D.Dinis seria um pulo, sendo suplantados os provençais pela “sin-ceridade” portuguesa:

Já então reinava, metrificando a vida, a corte poéticad’El Rei Dom Denis. A lei era a poesia. A canção eraa fala do trono. Mas o Rei Trovador não invejava oprovençal, porque sentia que “os proençais soem muybem trobar” mas “non an tal coyta qual eu ey sempar”... Verdade! Dom Denis descobria, definia e fun-dava, assim, intuitivamente, a poesia mais poética, olirismo mais lírico, a melhor poesia e o maior lirismode todas as línguas. Só mesmo a tristura dulçurosa dePortugal e a doçura triste do português seriam capa-zes de dar o que faltava – sentimento e alma – à bra-vura e gentileza da canção de Provença (ALMEIDA,1937, p. 244-245).

Portanto, Guilherme de Almeida conhecia como poucos alírica galaico-portuguesa em seus vários aspectos. Saber, en-genho e arte concorreram para que fosse um dos mais fecun-dos recriadores da forma paralelística, mesmo que para ex-pressar a sua angústia e a sua nostalgia de um passado idíliconão mais recuperável.

5.4. Manuel Bandeira

O pernambucano do Recife Manuel Bandeira (1886-1968),radicado no Rio de Janeiro, além de ensaísta, professor e histori-ador da literatura, foi, como Guilherme de Almeida, um dos maisconhecidos poetas do Modernismo brasileiro, muito embora assuas primeiras poesias denunciem traços parnasianos e simbolis-tas, bem como românticos. Na sua vasta obra os poemasneotrovadorescos não são muito numerosos, restringindo-se a três,intitulados “Cantar de amor”, “Cantiga de amor” e “Cossante”.

Com relação ao “Cantar de amor”, publicado na Lira doscinqüent’anos em 1944, o próprio autor revela o caráter cir-

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cunstancial da sua elaboração: tornando-se, a partir de 1938,professor de literatura do Colégio Pedro II, foi levado a ler osCancioneiros galaico-portugueses. Confessa-nos ele que aos 52anos ainda “ignorava a admirável forma lírica da cançãoparalelística”. E que o “Cantar de Amor” fora “fruto de mesesde leitura dos cancioneiros”:

Li tanto e tão seguidamente aquelas deliciosas can-tigas que fiquei com a cabeça cheia de ‘velidas’e‘mha senhor’ e ‘nula ren’; sonhava com as ondasdo mar de Vigo e com as romarias a San Servando.O único jeito de me livrar da obsessão era fazer umacantiga (a obsessão era sintoma de poema em esta-do larvar). Escrevi o ‘Cantar de amor’ no vão pro-pósito de fazer um poema cem por cento trecentista(BANDEIRA, 1996, p. 91).

No entanto, apenas na forma conseguiria esse objetivo – “fa-zer um poema cem por cento trecentista” –, muito embora o te-nha feito através de uma cantiga de refrão, sem reduplicar a can-tiga de mestria do rei-trovador evocada na epígrafe, por sua vezindicativa do modelo provençal: “Quer’eu en maneyra de proençal/ fazer agora hum cantar d’amor”. Ao invés de elogiar as qualida-des morais e a beleza inigualável da senhor, ou chorar a coitaamorosa, Bandeira expressará a dor de existir.

Em outro poema, intitulado “Cantiga de amor”, sim, estabele-ceria o elogio da amada, vista como mulher incomparável pelabeleza apenas, – cuja visão detonaria a paixão e o sofrimento,outro lugar-comum retomado dos trovadores. Mas sem mencio-nar as (outras) virtudes, elogiadas pelos paradigmas medievais. Aestes, somos remetidos, além do título, também por alguns aspec-tos formais – como o refrão e as três estrofes de seis versos rema-tadas pela fiinda. Também o lado andarilho do amante evoca osantigos trovadores, como Johan Airas de Santiago, que, transi-tando por reinos diversos, por cortes diversas, igualmente estabe-lecera o elogio da mais “fremosa”, nas cantigas “Vy eu donas,senhor, en cas d’el-rey” e “ Andey, senhor, Leon e Castela”(MALEVAL, 1999, p.107-110).

No “Cossante”, publicado na Lira dos cinquent’anos (1944),buscaria recriar uma cantiga de amigo paralelística, que, pela

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temática, se inscreve no campo das marinhas. Desde o título já talse indicia, uma vez que cossante fora o termo adotado por AubreyBell, em 1922, para designar as paralelísticas, o que foi considera-do um equívoco por alguns especialistas1. De imediato se impõeo confronto com o cânone mais óbvio – a paralelística de MartinCodax, “Ondas do mar de Vigo”. Não apenas o motivo das ondasé comum aos dois poemas, como também a estrutura estróficaparalelística, embora não tão rigorosamente seguida pelo poetamodernista. Além do mais, conforme demonstramos em estudoanterior (MALEVAL, 1999, p. 116), as ondas, emanações sedu-toras dos olhos verdes, despertam a libido do novo trovador, damesma forma que as ondas e as “muit’altas ribas” a despertavamno cantar de Rui Fernandes de Santiago, “Quand’eu vejo las on-das” (BREA, 1996, p. 900). Assim, o mar lembra a amada para otrovador galego medieval, e a amada lembra os perigos do marpara o poeta brasileiro. Ambos confessam o sofrimento provoca-do pelo desejo. Mas Bandeira, na total desesperança do amante,apresenta como solução o esquecimento. Aliás, o mesmo se per-cebe em outra sua “Cantiga” (1983, p. 230) que, anterior à con-fessada “febre” trovadoresca, já articulava o desejo de felicidadeàs “ondas da praia/do mar”, mas dirigindo-o a algo inalcançável,à “estrela-d’alva”.

Voltando ao diálogo com os cantores do passado, lembramosque não apenas o faz, no poema em questão, através do motivodas ondas ligadas ao erotismo. Já o trovador Joam Garcia deGuilhade, na cantiga “Amigos, non poss’eu negar”, atribuía a suacoita a uns olhos verdes, pelo visto tão sedutores e impiedososquanto os que atormentaram o neotrovador.

Valeria ainda lembrar que a expressão “olhos verdes” serepete a modo de dobre, e o refrão-suspiro, tão corrente nolirismo medievo ibérico, é também utilizado, dele constando oneologismo “Avatlântica”, interpretado de maneiras diversaspela crítica. Para Dalma Braune Portugal do Nascimento,Avatlântica seria “formado pola unión de Av – abreviatura deAvenida, que, polo son, tamén lembra o saúdo latino Ave, sal-ve – con Atlântica”, abrindo o poema à “polissemia de senti-do” (MALEVAL, 1995, p. 93).

Para concluir, lembraríamos que Bandeira ainda teve de co-

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mum com os trovadores medievos o fato de alguns de seus poe-mas – dentre eles a Cantiga – terem sido musicados, e por famo-sos compositores coevos, como Villa Lobos, Mignone, CamargoGuarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radamés Gnattali,etc.. E, embora não tendo explorado o Neotrovadorismo de for-ma sistemática em sua obra, pelo fato de ser um dos poetas maislidos no Brasil contribuiu decisivamente para a divulgação dessatendência poética entre nós.

5.5 Cecília Meireles

A carioca Cecília Meireles (1901-1964), uma das maioresglórias da poesia brasileira, na apresentação de Darcy Damaceno,

surge para a poesia brasileira em 1922, apresentadapelo grupo de escritores católicos que entre 1919 e1927, através das revistas Árvore Nova, Terra deSol e Festa, defendiam a renovação de nossas letrasna base do equilíbrio e do pensamento filosófico.Seu aparecimento coincide com a eclosão do movi-mento modernista, do qual pretenderam aqueles es-critores representar uma tendência, malgrado a di-versidade de pontos de vista no enfocamento do fe-nômeno literário por parte dos grupos concorrentes(DAMACENO, MEIRELES, 1967, p. 13).

Poetisa premiada, com incursões pelo teatro, também dedi-cou-se ao magistério, ao jornalismo, ao folclorismo, tendo aindafeito estudos de música, que abandona para concentrar-se na suaprodução literária. A par disso, o seu interesse pelos estudos ori-entais, nascido na adolescência, acompanhá-la-ia por toda a vida.

A presença do Trovadorismo medieval em sua obra já se indiciapelos títulos de diversos poemas: Canção, Cantiga, Cantar... de-terminados ou não por qualificativos. Além do mais, alguns delesconstituíam letras de músicas. Mas é uma presença formalmentemuito tênue, restringindo-se a alguns sintagmas e versos evocativosda lírica dos antigos trovadores, ou a algumas situações que re-metem para quadros por eles pintados.

Por exemplo, “Miraclara desposada”, apresentando a lavadei-ra a lavar o seu “antigo enxoval”, sugere-nos certo parentescocom a lavadeira “alva” da cantiga de D. Denis, a “lavar camisas /

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e-no alto”, lutando contra o “vento” que “as desvia”.“Cantata matinal” mostra um certo parentesco com as albas e

pastorelas, por retratar um amanhecer pastoril, apresentando in-clusive vestígios do paralelismo medieval, na repetição, com pe-quenas variações, do verso inicial “Acordai, descuidadas”,“Acorrei, descuidadosas”, etc. (MEIRELES, 2001, p. 602-603);mas, diversamente do gênero provençal, em que os amantes la-mentavam o nascer do dia por terem que se separar, essa cantatapõe em evidência a festa da natureza: “a luz da alvorada” que“brilhou nas palmeiras / que eram pura esmeralda”, etc..

Também em “A pastora descrida”, que retoma o tradicio-nal diálogo com o eco (“antigo”), podem ser observadas remi-niscências das pastorelas; no entanto, a pastora que aí se apre-senta tem como gado as “estrelas da madrugada / pelas campi-nas do vento”.

Em “A amiga deixada”, é estabelecida uma reflexão sobreo tema-título, que nos remete à existência passada das ami-gas, a cantarem o abandono, a saudade do amado, nas canti-gas chamadas de amigo, finamente evocadas também pelasrimas em /a/ e /i/.

Em “Cantar de vero amor”, os mesmos fonemas aparecerãonas palavras rimantes, como acordes de uma música fugidia, queestá “sendo levada” e que outra não é senão “a cantiga da tuaAmada, da tua Amiga”. Também impossível é a visualização des-ta no plano físico, uma vez que “de sombra a estrada”, só atravésda (precária) memória aparecendo “a estrada antiga”, que “leva-ria à Amiga, à Amada”.

Em “Cantar guaiado” as reminiscências das “flores do verdepino” de D. Dinis e das “ondas do mar de Vigo” de Martin Codaxse fazem presentes no verso-refrão – “ai, verde terra! ai, verdemar!” –, mas enfatizando-se não já a saudade do amigo distante,senão a certeza da incompletude, da busca, da dor existencial,que tornam o canto “guaiado”, isto é, sofrido. Também em “Can-ção” (MEIRELES, 2001, p. 1693-1694) é retomado o mesmomotivo medieval, para acentuar a precariedade da existência di-ante do imponderável, do destino.

Em “Confessor medieval” rememora as bailias medievais atra-vés de sintagmas (bailia, sirgo, anel) e da forma estrófica (dísticos),

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questionando a (im)possibilidade de sua ocorrência na falta doamor: “Irias à bailia com teu amigo, / se ele não te dera saia desirgo? / (...) / Irias à bailia, já sem teu amigo, e sem nenhum suspi-ro?” (MEIRELES, 2001, p. 1883-1884).

Já no poema “Todas as aves do mundo de amor cantavam...”a presença do trovadorismo medievo é ainda mais explícita, umavez que retoma o verso da célebre alba de Nuno Fernandes(Torneol), trovador-cavaleiro do século XIII, ligado à corte deAlfonso X, que assim se inicia:

Levad’, amigo, que dormides as manhãs frias;todalas aves do mundo d’amor dizian:leda m’and’eu.

Levad’, amigo, que dormide’-las frias manhãas;Todalas aves do mundo d’amor cantavan:Leda m’and’eu....................................................... (BREA, 1996, p. 688).

Nesta cantiga, divergindo das albas provençais que apre-sentam a maldição dos amantes pelo nascer do dia, que osseparará, apresenta-se o desencanto da mulher em relação aoseu insensível amigo, ao mesmo tempo em que é evocado opassado em que as “aves do mundo d’amor cantavan”.

Este passado idílico será igualmente desejado por CecíliaMeireles, contrapondo a ele o presente – um mundo (e nãoapenas um amante, como na cantiga medieval) povoado pelaangústia, por “amargos corações”:

“Todas as aves do mundo de amor cantavam...”e os grandes horizontes se estendiam multicorese os dias da vida eram tão raros aindaque se podiam enumerar, só por lembranças.

“Todas as aves do mundo de amor cantavam...”mas grandes mares se abriram para passagens belas como ritos,e os dias se tornaram tão numerosos e densos e duroscomo essas pedras das fortalezas em montanhas antigas.

E agora na verdade são os dias inumeráveise cada um com sua angústia, e todos eles se entrechocam,e a noite vem mais cedo e há tempestades entre nuvens.

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E eu queria que todas as aves do mundo de amor cantassem,mas um vasto silêncio, uma vigília de morteestende céus frios, céus escuros sobre amargos corações. (MEIRELES, 2001, p. 1832-1833)

Também no poema “Amor em Leonoreta” (MEIRELES, 2001,p. 689-701) é explicitado o mote medieval. Tem por epígrafe olais atribuído a João Lobeira, que a poetisa diz ter recolhido danovela Amadis de Gaula, publicada em 1508 na versão de GarcíRodríguez de Montalvo. Mas o termo “bela (sobre toda fror)”,ao invés de “blanca (sobre toda flor)”, presente na edição deMontalvo, não deixa dúvida quanto à fonte primária (Lobeira).

Possivelmente Cecília Meireles conheceu o lais do trovadorna versão de Amadis de Gaula feita por Afonso Lopes Vieira,intitulada Romance de Amadis (VIEIRA, p. 131-132) onde é re-gistrada, no capítulo XVII, “A canção de Leonoreta”.

Na novela, Leonoreta, a irmã de Oriana-a-sem-par, amada deAmadis, ganhara deste o poema, em meio às brincadeiras na cortedo rei seu pai, esclarecendo Montalvo, em estrofe não encontrávelno texto de Lobeira, que outra era a destinatária do poema (naverdade, era uma declaração de amor a Oriana, que o namoravaàs escondidas dos pais). No entanto, a Leonoreta de agora, talcomo no poema anterior a Amiga, a Amada, é apenas um “vultoamado” que “longe vai”, mas cuja “sombra resiste” e “eterna”vive no Plano das Idéias (“Mas para que eterna vivas / que épreciso? / Que pensem meus pensamentos”). Isto porque “entrepólos inviolados, / entre equívocos momentos, / vem e volta avida humana, / que se engana e desengana / em redor do Paraíso”(MEIRELES, 2001, p. 411-412). Portanto, a rodareincarnacionista propugnada pelos orientais e o pensamento dePlatão se encontram nesta “reinvenção” ceciliana.

Colocam-se, pois, esses poemas (e não são os únicos a evo-carem a mundividência trovadoresca da Meia Idade), emsintonia com os temas fundamentais da poesia de Cecília, comoos da “humana insuficiência”, dos “desacertos humanos”,gravitando em torno do sentimento de ilusão da existência, daaparência ilusória que vela e faz ignorar a realidade, enfim,do “véu de Maia” para os hindus, já que

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Pela celeste ampulheta,cai a cinza dos meus dias.Cai a cinza do meu corpo,da minha alma, Leonoreta,e o tempo é um límpido soproque liberta de alegriase de queixas (MEIRELES, 2001, p. 700).

Daí a consciência de que “a vida só é possível reinventada”,como diria a poetisa no poema “Reinvenção”, de Vaga música(MEIRELES, 1967, p. 230-231). Tal destacara também LêniaMárcia de Medeiros Mongelli (MONGELLI, MALEVAL,2000, p. 233-258), em excelente estudo que constitui a maiscompleta análise dessa enigmática “Leonoreta” ceciliana, parao qual remetemos os interessados.

Mas Cecília se notabilizara aos olhos da crítica, no queconcerne à revitalização da tradição poética medieva, sobre-tudo pela composição do Romanceiro da Inconfidência.

No entanto, como ela própria declara em conferência so-bre a obra, em Ouro Preto, 1955, não se ateve a “normaspreestabelecidas”: há nele “metros curtos e longos, poemasrimados e sem rima, ou com rima assoante – o que permitemaior fluidez à narrativa” (MEIRELES, 1989, p. 22). Dequalquer modo, trata-se “de um ‘Romanceiro’, isto é, de umanarrativa rimada, um romance; não é um ‘Cancioneiro’ – oque implicaria o sentido mais lírico da composição cantada”(MEIRELES, 1989, p. 22).

Essa conferência é um primor de reflexão sobre o processoda elaboração e da natureza da poesia. Por exemplo, adianta atão em voga discussão acerca dos limites entre o “registrohistórico” e a “invenção poética”, nos seguintes termos:

O primeiro fixa determinadas verdades que servem àexplicação dos fatos; a segunda, porém, anima essasverdades de uma força emocional que não apenas co-munica fatos, mas obriga o leitor a participar inten-samente deles, arrastado no seu mecanismo de sím-bolos, com as mais inesperadas repercussões(MEIRELES, 1989, p. 21).

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Partindo de minuciosa pesquisa, à busca do “essencial ex-pressivo” que “constitui o trabalho do artista”, registra o modocomo “ele se foi compondo”, e não “que foi sendo compos-to”, observando “a maneira por que um tema encontra sozi-nho ou sozinho impõe seu ritmo, sua sonoridade, seu desen-volvimento, sua medida” (MEIRELES, 1989, p. 21).

Nessas pesquisas a poetisa pôde observar como “as pala-vras registradas nos depoimentos do processo, ou na memóriatradicional, vinham muitas vezes, e inesperadamente, jámetrificadas” (MEIRELES, 1989, p. 20). Um dos exemplosque arrola são as palavras de “Marília”, ao lhe falarem sobre ocasamento de Gonzaga em Moçambique: “Só se estivesse ali-enado”. Serão transformadas em refrão no belo “RomanceLXXIII ou da inconformada Marília” (MEIRELES, 1989, p.240-241). Outro exemplo são as palavras do alferes-mártir,“Ah! se eu me apanhasse em Minas”, incorporadas ao “Ro-mance LXIII ou do silêncio do alferes” (MEIRELES, 1989,p. 209-210), em que condensa, lançando mão daqueles ele-mentos essenciais sobre os quais teorizara acima, a história donosso herói máximo, Joaquim José da Silva Xavier, oTiradentes. Essa história da luta pela nossa independência forafeita, na observação da autora, “de coisas eternas e irredutíveis:ouro, amor, liberdade, traições...” (MEIRELES, 1989, p. 23),prestando-se generosamente de matéria para a poesia.

Enfim, mesmo sem subordinar-se à forma do Cancioneirotradicional, não deixa de utilizá-la muitas vezes, bem comoincorporar-lhe motivos, como o das maias, não mais festi-vas, no “Romance LXVIII ou de outro maio fatal”, que tratado degredo de Tomás Antônio Gonzaga. O “outro maio”fora o referido no “Romance XXXVII ou de maio de 1789”,que trata da perseguição a Tiradentes. Vejamos o LXVIII(início), cotejando-o com romance da tradição hispânica,transcrito à direita, na reconstituição de Menéndez Pidal:

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Destacamos em negrito alguns aspectos da tradição reto-mados por Cecília Meireles: o tema da prisão, os campos, areferência ao maio, as aves típicas do imaginário europeu(calhandra e rouxinol); e até mesmo o verso inicial, a métrica(redondilha maior) e outros elementos (o advérbio “quando”,usado reiteradas vezes, etc.).

Não iremos adiante, mas fica patente que a leitura da tradiçãomedieva ou tardo-medieva na obra da grande poetisa é um ricoveio a ser melhor explorado em estudos futuros.

5.6. Paulo Bonfim

O paulistano Paulo Bonfim, nascido em 1926, além de poetadedicou-se ao jornalismo. As suas incursões neotrovadorescasnão são muitas, e nelas se torna evidente a apropriação de canti-gas de amigo de D. Dinis, principalmente da que se inicia com acopla (estrofe) “Ai flores, ai flores do verde pino, / se sabedesnovas do meu amigo! / Ai Deus, e u é?” (BREA, 1996, p. 176).

No poema “Onde andará”, da obra Antônio Triste (1946), osujeito da poesia, agora masculino, indaga às “árvores desfolhadas”e às “folhas soltas dos ramos” sobre a amada, numa ambiência jásem o viço da natureza verdejante evocada pelo rei-trovador,

Era em maio, foi em maio,Sem calhandra ou rouxinol,Quando se acaba nos camposDa roxa quaresma a cor,E às negras montanhas friasVagaroso sobe o sol,Embuçado em névoa fina,sem vestígio de arrebol.

Era em maio, foi por maio,Quando a ti, pobre pastor,Te vieram cercar a casa,De prisão dando-te voz (...)

Que por mayo era por mayo,cuando hace la calor,cuando los trigos encañany están los campos en flor,cuando canta la calandriay responde el ruiseñor,cuando los enamoradosVan a servir al amor;sino yo, triste, cuitado,que vivo en esta prisión;que ni sé cuándo es de díani cuándo las noches son,sino por una avecillaQue me cantaba al albor.Matómela un ballestero;Déle Dios mal galardón.(MENÉNDEZ PIDAL, 1946, p.217-218)

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substituída pelo “crepúsculo triste”, pelas “noites sem luar”,pelas “manhãs cor de cinza”, pelas “auroras sem cor”. Alémdo refrão, o paralelismo, estabelecido por associações, e o leixa-pren também são reutilizados a seu modo, embora os versossejam quase sempre brancos, sem os rígidos esquemas rímicosda lírica medieval.

E no “Canto VIII” da Cantiga do desencontro (1954), essasmesmas “flores do verde pino” são tranformadas em “flores doverde tempo”, percorrendo, a modo de refrão inicial de quadras,todo o poema. Esse “verde tempo”, situado no pretérito, nãopossui apenas função oracular, como em D. Dinis. Mas, pela viada memória, também a função de “enfeitar o sorriso / quandomurchar a esperança”.

5.7. Edison Moreira

O mineiro Edison Moreira (1919-1989), formado em Letras,além de poeta foi jornalista e editor. Ao publicar o livro Cais daeternidade, reunindo poemas escritos de 1945 a 1951, recebeude Alphonsus de Guimaraens Filho elogio pela pesquisa demons-trada, e “em especial os belos sonetos” da primeira parte da obra.“Pesquisa de quem procura, através de uma sondagem no misté-rio, atingir a substância mesma da vida. Nem é por outro caminhoque se chega ao verdadeiro lirismo” (GUIMARAENS F.,MOREIRA, 1999, p. 173).

Mas, para além dos sonetos, retomara gêneros medievais líri-cos, como a cantiga, ou épico-líricos, como o romance. Aliás, jáà época dizia Antônio Brant Ribeiro que “com rara felicidade” eleo transportara “pela simples manipulação de algumas locuçõesbrandamente arcaicas e pela oportuna incorporação à sua lírica datemática do ‘morro-me de amor’, às épocas remotas de El-Rei D.Dinis” (RIBEIRO, MOREIRA, 1999, p. 172).

Em O jogral e a rosa (1954-1958), já desde o título nos reme-te ao mundo trovadoresco, dizendo-se, no poema “Oferenda”,jogral em claros burgos da senhora, de quem é o pajem, tal comose apresenta na “Cantiga I”. Portanto, assume a vassalagem amo-rosa típica do amor cortês, bem como a poesia como serviçoprestado à amada. No entanto, apesar dessa proposta, não obe-

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dece à poética medieval. Quando muito, dela se aproxima no“Cantar de amor”, através da rima dos fonemas /i/ e /a/, do refrãoe do panegírico da “mais fremosa”, apresentada como a pastora,evocando o gênero provençal pastorela, que teve poucos segui-dores entre os trovadores galego-portugueses.

Numa outra sua “Cantiga de amor”, apesar de apresentar comoepígrafes versos de D. Dinis, no entanto desenvolverá uma canti-ga dentro dos moldes do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende,publicado em 1516, seguindo a estrutura do mote constituído pelaprimeira estrofe e das voltas que o desenvolvem na(s) estrofe(s)subseqüente(s). Assim, o que se comprova em sua obra é o dese-jo de compor a “Cantiga cavalheiresca”, “simples, clara, leve efresca, / como as do tempo d’el-rei” (MOREIRA, 1999, p. 81). Eo faz apesar de algumas confusões, como por exemplo indicar D.Dinis, em “Evocação a D. Dinis”, como cantor das “ondas domar de Vigo”, que sabemos ser do galego Martin Codax; ou oemprego do termo “cavalheiresca”, ao invés de “cavaleiresca”,uma vez que de Idade Média se trata.

Mas, se não realizou cabalmente uma cantiga nos moldesdos trovadores-cavaleiros, conseguiu recriar quase que total-mente dentro dos paradigmas originais específicos um roman-ce. Notadamente na composição denominada “Rimance”(MOREIRA, 1999, p. 112-115), inserta no seu Romanceirodo desencanto, vai aproximar-se do Romanceiro hispânico.Não tanto do modelo evocado pela epígrafe, retirada doRomanceiro gitano de Federico García Lorca, publicado em1928 (LORCA, 1989, p. 66-68). Mas de romances medievais,como o “Romance de Gerineldo y la Infanta” ou “La amiga deBernal Francés” (MENÉNDEZ PIDAL, 1946, p. 58-61, 124-127), embora sem utilizar a rima assoante e o final inconclusodos espanhóis. Conforme já observamos, guarda muitos pon-tos de contato com o “Romance do Conde aragonês” e com o“Romance do vilão”, de Pennafort. Desde o tema da trans-gressão sexual feminina do primeiro às imagens que relacio-nam o corpo da amada a frutos do segundo, além de palavrasou expressões iguais, como “mai-la sua companhia”, “o bomdo...”, “casa da estudaria” – o que é comum nos romances deum modo geral, fazendo parte da sua “gramática”.

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As demais peças do seu Romanceiro do desencanto são: “Ro-mance da renúncia da noite”, sem maiores ligações com a tradi-ção, da mesma forma que “Romance de minha morte”;“Rimancete”, que retoma a imagem da fiandeira, tornando-a abs-tração ao “fiar, / no estranho fuso do tempo / os dias do meupenar” (MOREIRA, 1999, p.118); “Romance da que me negou amão”, que trabalha com alguns elementos medievais, como “se-nhora casta e serena”, “jogral” oposto a “vilão”, sem no entantoremontar ao Romanceiro, o mesmo acontecendo com o “Ro-mance da dama desprotegida”.

5.8. Hilda Hilst

Hilda Hilst, paulista de Jaú (1930), autora de significativa epremiada obra, foi a primeira mulher a escrever um livro de clarareferência, a partir do título, aos trovadores do passado – Trovasde muito amor para um amado senhor (HILST, 1960, 1980).Mas não buscou nos cânones medievos a estrutura para os seuspoemas. Antes, seguiu-os, e também aos renascentistas, naquiloque têm de “mais íntimo e vinculante – a própria concepção dotexto poético”. Tal observação já a estabelecera José CarlosBarcellos (MALEVAL, 1995, p. 105), para quem tal concepçãose apresenta como “apreensão e substância do vivido”, “em con-traste com a concepção romântica, que o vê como expressão,confissão ou desnudamento”.

A par disso, em sua obra são evidentes as apropriações delugares-comuns trovadorescos no nível temático, bem como ainspiração em poetas quatrocentistas e quinhentistas, comoBernardim Ribeiro e Camões. A própria escolha do termo trovas,ao invés de cantigas, já remete para a herança do CancioneiroGeral de Garcia de Resende. E das quadrinhas da tradição popu-lar se aproxima, senão pelo número de versos e estrofes, peladelicadeza que expressam e pela dominância da arte-menor.

Do genial Camões é a própria epígrafe que encabeça a obra:“Canção, não digas mais; e se teus versos / À pena vêm pequenos,/ Não queiram de ti mais, que dirás menos”. Funcionando a modode poética, esses versos camonianos são o respaldo para os cur-tos versos e poemas que a seguir virão. Na impossibilidade de os

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rastrearmos mais detidamente, o que já fizemos em estudo anteri-or (MALEVAL, 1966, p. 77-88), observaremos a seguir algunsaspectos revitalizadores da tradição lírica medieval, mesmo queretomados alguns indiretamente, pela via de autores renascentistas.

Logo no primeiro poema, a mesma doação, a mesma abnega-ção dos antigos trovadores se apresenta como proposta amatória:“Nave / Ave / Moinho / E tudo mais serei / Para que seja leve /Meu passo / Em vosso caminho” (HILST, 1980, p. 227). Masesses versos também indicam uma proposta poética, ligando-seao trovar antigo não pela forma, transformada, mas pelo entendi-mento do fazer poético como experiência vital, serviço de amor.

Na esteira de tantas novelas do ciclo bretão, ou de cançõesde amor trovadorescas, ou de tratados medievais sobre o amor,chamado posteriormente cortês, como o do Capelão André(1985, p. 49), é a condição adulterina do amor que se observanos versos “Seria menos eu / Dizer-vos, senhor meu, / Por serdesvós casado / (E bem por isso mesmo) / É que sereis amado? / Aisim seria.” (HILST, 1980, p. 23). A fonte, por sua vez herdeiradessa tradição, é Bernardim Ribeiro, citado em epígrafe, comos versos: “Não sou casado, senhora, / Que ainda que dei a mão/ Não casei o coração”.

Também a delicadeza da fin’amors se reconhece na “fineza”de “repetir um amor já confessado” (HILST, 1980, p. 233), ou decalar-se para não magoar o amado (HILST, 1980, p. 234), ou namesura de cantar da rival “a cintura e a valia”. Mas esse amorrefinado se reapresenta não já como meio de alcance do Bem,enfatizando a nova amante: “... se não morro de amores / morrode delicadezas” (HILST, 1980, p. 232).

Ressonâncias das bailadas sob as avelaneiras pelas velidasansiosas por namorado – por exemplo nas cantigas de NunoFernandez Torneol, Johan Zorro ou Airas Nunez –, são nítidasnos versos “Moças donzelas / Querem cantar o amor / (...) Seforem belas / Ficam melhor à tarde / Ai, nas janelas” (HILST,1980, p. 240). Postar-se às janelas seria o novo meio, urbano, decriarem as jovens oportunidade para o namoro, menos livre queno passado das bailias, mas ainda assim mal-visto pela moralidadereinante na década de 1960. A poetisa assume o papel de repre-sentante dos anseios femininos nas estrofes monósticas, a modo

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de refrão: “Canto... Fico... Saio ... por elas”. Isto porque possuio dom da poesia e a liberdade, uma vez que não a cerceiam can-celas como às moças donzelas.

Em outro poema as ações de conhecer, entender, saber defini-riam a superior condição da nova amante-trovadora: “Amo e co-nheço. / Eis porque sou amante / E vos mereço. // De entendi-mento / Vivo e padeço. // Vossas carências / Sei-as de cor...”(HILST, 1980, p. 228). O tópico arcaico do merecimento apre-senta-se relacionado a novos valores ou prerrogativas da mulher,uma vez que o conhecimento substitui agora as qualidades (retó-ricas) que tornavam a senhor de outrora digna de ser louvada,como beleza, mesura e correlatos.

A nova mulher não é mais aquele ser incorpóreo das cançõesmasculinas galaico-portuguesas. Antes, retoma a lição das jo-vens sequiosas de amor nas cantigas de mulher (de amigo),mas apontando para a condição daquela abadessa “sabedor detodo bem” do escarnho de Afonso Eanes de Coton (LAPA,1970, p. 69). Tal se percebe nos versos: “Tendes comigo / Taisdependências / Mas eu convosco / Tantas ardências // Que sóme resta / O amar antigo”.

Em continuidade, apresenta a questão da sinceridade poética,fazendo eco a trovadores como D. Dinis, crítico dos provençaispor trovarem apenas “no tempo da flor” (NUNES, 1972, p. 148):“Não sei dizer-vos / Amor, amigo // Mas é nos versos / Que maisvos sinto. E na linguagem / Desta canção / Sei que não minto”(HILST, 1980, p. 228). Retornamos aqui àquela relação sinonímicaentre o amar e o trovar, destacada por trovadores como MartínMoxa (MALEVAL, 1995, p. 11-61).

Portanto, desprezando os aspectos formais dos cantos primei-ros, assume Hilda Hilst a posição de “Mulher / Vate / Trovador”,como se auto-denominaria em outro poema (HILST, 1980, p.229), pondo em questionamento prerrogativas androcêntricas dosprimórdios do Ocidente.

5.9. Stella Leonardos

A premiadíssima escritora carioca Stella Leonardos (1923)conseguiu, com a obra Amanhecência (1972), o prêmio do Insti-

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tuto Nacional do Livro, que o publicou em parceria com a Aguilar(1974). Esta obra compõe-se de duas partes intituladas “Códiceancestral” e “Reamanhecer”, sendo que a primeira nos interessamais de perto por retomar o trovadorismo galaico-português.Como esclarece em Prefácio a própria autora (LEONARDOS,1974, p. 35), nesta parte, que “acaba onde o Brasil começa” (dasegunda parte diria: “não acaba porque o Brasil é semprenovo esemprelírico”), e onde são revisitados textos ancestres dos sécu-los XII a XVI,

prescindimos propositadamente da ‘medida velha’dos trovadores, e escrevemos os poemas do modoque nos pareceu melhor condizer com as sucessi-vas fontes documentais – em prosa e verso, histó-ricas ou literárias. Daí a variedade da ortografia(LEONARDOS, 1974, p. 35).

Adianta igualmente a motivação da obra: “obra de amor àslíricas raízes de nossa língua, e ao semprelirismo brasileiro”. Bemcomo destaca o ano em que foi escrita, correspondente aoSesquicentenário da Independência do Brasil e ao 50º Aniversárioda Semana de Arte Moderna.

O estudo introdutório de Gilberto Mendonça Teles – “O có-digo do códice: a estella de Stella” (LEONARDOS, 1974, p.13-31) – é uma reflexão sobre o uso da epígrafe, de que a obraé pródiga; acentua ao final que a autora tem feito mais “pelamoderna filologia românica no Brasil do que muitos professo-res e membros de academia”. E não apenas neste mas em mui-tos outros textos retoma a escritora a tradição dos Cancioneiros(romeno, catalão, moçárabe...), bem como dos Romanceiros elendas brasileiras.

Muitos são os poemas de “Códice ancestral” que retomamcantares dos trovadores galaico-portugueses, já indicados a partirdas epígrafes em trinta e uma composições. Mas também sãofeitas, em outras muitas, remissões às carjas moçárabes, à matériade crônicas, de livros de falcoaria e alveitaria, de conselhos e regi-mentos, bem como a composições do Cancioneiro Geral de Garciade Resende e a estudos sobre a época.

O procedimento, que à primeira vista seria o do mote a ser

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glosado, é o da apropriação de versos medievais, literalmenteou não, no corpo da nova cantiga. Só que as mais das vezesbusca completar o sentido da cantiga a que pertencem, amplian-do-lhe o aspecto narrativo. Dessa forma, a assumidaintertextualidade por vezes reveste-se de acentos outros, porexemplo trágicos, como podemos perceber no poema intitulado“Plang” . Este é construído a partir de epígrafe composta porverso de cantiga atribuída a D. Sancho I, relacionada à sua aman-te, “Ai eu, coitada, como vivo...”, que analisamos mais detida-mente em estudo anterior (MALEVAL, 1999, p. 131-140). Aí,o lamento medieval da amada pela ausência do amigo é trans-formado em dolorido pranto pela sua morte, indiciada atravésda atmosfera lúgubre, das “antorchas que se consomem”, etc..

Na impossibilidade de examinarmos por ora os seus muitospoemas, e refletirmos sobre o processo de intertextualização ne-les operado, gostaríamos de nos reportar ao que lhes serve dePrólogo, intitulado “Ancestre canção” (LEONARDOS, 1974, p.39). Tem como epígrafe os versos, atribuídos a Paay Soares deTaveiroos: “Mia senhor branca e vermelha! / Queredes que vosretraya?...” Mas, divergindo do modelo e sua musa (a mesmaRibeirinha amante de Sancho I, a que já nos referimos), a senhorretratada será a própria poetisa, a indagar sobre os avós portu-gueses dos quais herdara uma “face, claro códice”, que “traztinta negra e vermelha” – não já a guarvaia do cantar de outrora,isto é, o manto vermelho da realeza ganho pela cortesã. A suacerteza é a de que “existe o códex / de uma facies portuguesa”, ede ser “coda de ancestres canções, às vezes”. Num processoreiterativo dessa herança poética que traz “nas veias”, terminapor legar “ao vento o lírico manuscrito” que a “inscreve” e “trans-cende – dom de códice ancestral”.

Dita apresentação será continuada no poema seguinte, “Infinibus Galleciae” (LEONARDOS, 1974, p. 40-41), compostoa partir de citação de Oliveira Martins, sobre as origens lendáriasde Portugal, reportando-se aos celtas e a Viriato. E conclui porevocar traços procedentes da mistura de raças e de culturas dasorigens: “coração de celta”, “altivez ibera”, “invasão de godo”,“nostálgico mouro”, “vivência moçárabe”, “ares cristãos-novos”,“cigano ária nômade”.

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“Códice ancestral” apresenta, a modo de Epílogo, o poema“Na guitarra”, que significativamente retoma outra citação deOliveira Martins, explicativa da interpretação e indagações susci-tadas na autora pelos velhos cantares:

essas cantigas, monótonas como o ruído do mar,tristes como a vida dos nautas, desferidas à noitesobre o Vouga, o Mondego, sobre o Tejo e sobre oSado, traduzirão lembranças de alguma antigaraça? (LEONARDOS, 1974, p. 107).

No mesmo ano em que foi publicado Amanhecência tam-bém o seria o Romançário (1974). Esta obra recebeu o prêmioCasimiro de Abreu, 1972, da Secretaria de Educação e Culturado Estado do Rio de Janeiro. Aí, Stella Leonardos recria ro-mances muito conhecidos do Romanceiro hispano-moçárabe-luso-brasileiro: Nau Catarineta, Dona Leonor, Donzela Teodora,Roberto do Diabo, A moura cativa, Conde Lindo, Capitão-da-armada, O cego andante.

O processo é semelhante ao que já observáramos na poesialírica neotrovadoresca, mas com uma participação mais explíci-ta da autora, que se coloca enquanto repositária e transmissora,que leva em conta os receptores, de uma tradição recebida dosseus ancestrais. Dessa forma, as citações do Romanceiro sãoantecedidas e/ou sucedidas por versos que meditam sobre a tra-dição, sobre a memória, sobre a participação da poetisa nesseprocesso de recriação das mesmas, preenchendo-lhes as lacu-nas com emoção e imaginação. Por exemplo, em “Naucatarineta” fala da “nave” que lhe acena da infância, através davoz grave do avô, e que a navega, provocando-lhe tremores(LEONARDOS, 1974, p. 9-22).

Mas o Romançário de Stella é fruto também de trabalho inte-lectual, da maior seriedade. As pesquisas efetivadas na sua elabo-ração se documentam em Apêndice, através de notas que reme-tem para as fontes bibliográficas (LEONARDOS, 1974, p. 133-138). Nestas, encontram-se desde a definição de romance feitapor Câmara Cascudo à distinção efetivada por Almeida Garrettpara as três espécies do gênero narrativo popular – romance (maisépico e narrativo), xácara (mais dramático) e solau (mais plan-

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gente e lírico) –; como também referências a versões brasileirasdos romances, que coteja minuciosamente com os versos em quese baseou para a recriação de cada novo poema, da mesma formaprocedendo com a música das variantes em confronto, fornecen-do “pistas” importantíssimas para a observação da intertextualidadee interdisciplinariedade em sua obra.

Também o histórico de cada peça é observado. Assim, a “xá-cara” denominada “Nau catarineta” teria como uma das hipóte-ses mais plausíveis para a sua gênese, segundo Câmara Cascudo(LEONARDOS, 1974, p. 134), o episódio trágico da nau SantoAntônio, na qual Jorge de Albuquerque Coelho se dirigira de Olindaa Lisboa em 1565, dando origem à narrativa de Bento TeixeiraPinto e projetando-se na memória coletiva.

O “Romance de Dona Leonor”, isto é, da donzela que vai àguerra, teve larga fortuna nos países de cultura neolatina, sendoque no Brasil estaria na base também da personagem travestidade Guimarães Rosa (1908-1967), Diadorim, em Grande sertão,veredas. Teria por base os seguintes casos históricos, referidospor Théo Brandão e retomados por Fernando de Castro Pires deLima (LEONARDOS, 1974, p. 134): da espanhola Dona Catarinade Erausto (“La monja alferes”); da brasileira Dona Úrsula deAbreu Lencastre, guerreira disfarçada na Índia, assunto da novelaA senhora de Pangim, de Gustavo Barroso; e da portuguesa DonaAntônia Rodrigues, que igualmente disfarçada de homem terialutado em Mazagão, na África. Em Portugal, o romance, surgidona Idade Média, misturar-se-ia a este último episódio, sendo os“campos de Mazagão” referidos em várias versões lusas.

Já o “Romance da Donzela Teodora”, na lição de CâmaraCascudo (LEONARDOS, 1974, p. 135), teria origem árabe, fir-mando, na Espanha e em Portugal, o tipo da moça astuta e sábia.Como indica o especialista, é citada por Tirso de Molina e Lopede Vega e incluída no Índice Expurgatório da Santa Inquisição(relação de 1624); além de figurar em várias coleções, como as“Mil e uma noites”.

O “Romance de Roberto do Diabo” não possui fundamenta-ção histórica, mas entronca-se em tradição corrente na França,Inglaterra e Alemanha, passando à Espanha, onde propiciou nu-merosas versões e edições no século XVI, e daí a Portugal e ao

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Brasil, aqui a partir de 1840.“A moura cativa” (ou “encantada”), que se basearia no

romance conhecido como “Conde de Torres”, teria vindo deVinhais e do Algarve, enfim, de Portugal, para o Brasil, se-gundo o folclorista Antonio Lopes (LEONARDOS, 1974,p. 136); lá, “estaria ligado a tradições referentes a um castelomourisco de Tavira”.

O “Conde Lindo” (ou Lindes, ou Niño, etc.) teria sido vistopor Menéndez Pidal “muito estropiado, num cancioneiro espa-nhol do século XV” (LEONARDOS, 1974, p. 136). Liga-se àmatéria de Bretanha, aos amores de Tristão e Isolda.

O “Capitão-da-armada” (ou “A bela Infanta”), aprendido como auxílio da genitora da poetisa, aproxima-se de versão colhidapor Dulce Martins Lamas em Parati, “Dão Laurindo”, por suavez guardando traços do folclore pernambucano (LEONARDOS,1974, p. 137).

O “Cego andante”, de larga repercussão em terras brasileiras,originar-se-ia, segundo Almeida Garrett, de “temática das bala-das escocesas do rei Jaime V, falecido a 13 de dezembro de 1542com trinta e três anos e homem divertido, amigo de disfarçar-seem mendigo e correr aventuras noturnas, de amor e luta”(LEONARDOS, 1974, p. 137).

Enfim, remontando às origens européias ou orientais dosromances, e apontando as versões gaúchas, alagoanas, baianas,maranhenses, paulistas, fluminenses, pernambucanas,capixabas, sergipanas, riograndenortenses... Stella Leonardosmostra a fecundidade do gênero no Brasil, por ela recriadocom saber e sabor.

5.10. Myriam Coeli

Myriam Coeli (Manaus, 1926 – Natal, 1982) foi, além de es-critora, professora e jornalista, sendo a primeira mulher norte-rio-grandense a obter diploma de curso superior de jornalismo noexterior (Madrid, 1954) e a enfrentar o “masculino” universonoturno da redação de jornais. Foi recentemente, postumamente,eleita Mulher do Século do Rio Grande do Norte.

Dentre os seus cinco livros publicados, interessa-nos o que se

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intitula Cantigas de amigo publicado em 1981, Prêmio OthonielMenezes de poesia. Mereceu de Stella Leonardos duas homena-gens em poesia (COELI, 1981): o “Canto arcaico”, preconizan-do que as suas “cantigas florindas / hão de estrelar chão e céus”, eo “Cantar amigo”, destacando-lhe a “voz de leda cotovia”, o “se-reno cantar na tarde”, o trovar de “cantigas eternas”. E foi assun-to da Dissertação de Mestrado de Diva Sueli Silva Tavares, Can-tigas de ontem e de hoje (1999), apresentada na UFRGN. Nesta,a estudiosa observou o diálogo estabelecido por Myriam Coelicom os trovadores medievais, especificamente com D. Dinis, re-ferindo-se ainda ao Cântico dos cânticos de Salomão enquantopresença fundadora no palimpsesto desenvolvido pela poetisa.

O livro compõe-se de vinte e três “cantigas” sem título, apenasnumeradas, antecedidas por um poema significamente intitulado“Fundamentos” (COELI, 1981, s/p.). Neste, ela na verdade com-põe um romance, isto é, um poema narrativo, com versosredondilhos, rimas e assunto que em tudo nos remetem para atradição ibérica. Remonta aos tempos das lutas entre cristãos emouros, às gestas a que deram motivo, aos amores expressos nascanções dos trovadores, jograis e segréis, às coitas de mulheresmoçárabes ou cristãs: pastoras que “entre ovelhas no prado / (...)entretinham seus cismares / (...) com cantigas de amigo / que elasmesmas inventavam / com donaire provençal / que as ousançasalongavam”; castelãs que “em castelos esperavam” o retorno doamado; fiandeiras que “doces cantigas de amigo / com os fios quetrançavam, / cantavam com voz sentida”. Funciona, pois, comouma introdução, a que dará seqüência nos poemas subseqüentes,poucas vezes estruturalmente fiéis ao gênero cantigas de amigo.

Na verdade, trata-se também de cantigas de mulher, nas quaispor vezes o caráter épico sobrepuja o lírico, remetendo-nos maispara os Romanceiros que para os Cancioneiros. Essas mulheresora são “filhas dalgo” (COELI, 1981, p. 1), ora pastoras que apas-centam “na terra, ovelhas, / no céu, estrelas” (COELI, 1981, p.7), como as de Cecília Meireles. E, à medida em que os poemas sesucedem, vemos o estado eufórico da donzela cortejada ser subs-tituído pelo sofrimento proveniente da desilusão amorosa que atin-gia não apenas às mulheres do passado, mas às do presente.

Na cantiga XXII, que encerra a modo de epílogo a obra, o

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sujeito feminino da poesia se coloca ainda como “senhora de muicastelos”, mas estes agora se apresentam “flutuando no ar / ouinconstantes nas areias”. A torre que lhe “dá triste degredo” é um“vigésimo segundo andar” de um edifício, “masmorra que amor-talha / com capuz de asfalto e medo”. Com humor (negro) a saídaatravés do suicídio é a possibilidade que se apresenta não de solu-ção mas de compensação: “E se me seduz um salto / convosconão vou ficar / mas manchete, certamente” (COELI, 1981, p. 35).

Quanto à forma, vemos que diálogos semelhantes aos daspastorelas são reapresentados, por exemplo na cantiga I, em queum cavaleiro de passagem requesta a “grácil donzela”, agora no-meada, Florinda, sem a discrição propugnada pelas regras da cor-tesia, até porque desnecessária, já que o sujeito principal da poe-sia é feminino. Na cantiga V, observamos reminiscências doparalelismo e uso de refrão, em poema que retoma tópica muitocorrente nos Cancioneiros, que é a indagação por novas do ami-go ausente. Na cantiga VIII, é estabelecido um evidente diálogocom a cantiga de D. Dinis “Ai flores do verde pino”, ou a deMartin Codax “Ai ondas que eu vim veer”, etc.. Os dísticos se-guidos de refrão aí se apresentam, como também o paralelismo,se bem que não inteiramente utilizado. Mas, como Guilherme deAlmeida, as perguntas dirigem-se agora a entidades abstratas, aos“amores de amargos anos” (COELI, 1981, p. 13). Na cantiga X(COELI, 1981, p. 16), além de ressonâncias da estruturaparalelística, o refrão, pela forma e pelo sentido, remete aosparadigmas: “Meu amigo / por quem morro” (ou “por quem vivo”).Na XI, a tenção em dísticos retoma moldes arcaicos, embora so-brepujando o lírico pelo épico. Na XII, apesar do refrão e damanutenção de um certo paralelismo, as novas do amado sãosolicitadas aos jograis, não já à natureza, às amigas, a Deus, etc.,como no passado. Na cantiga XIII, ocorre uma recriaçãoparalelística da cantiga atribuída a D. Sancho I, na qual a suaamante, a Ribeirinha, se lamentaria do amigo (o rei) que “tarda /na Guarda”. Também Stella Leonardos a recriara como vimos,atribuindo-lhe acentos lúgubres. Só que a morte em Myriam Coelié motivo, não de sofrimento, como em Stella; mas de desejo:“Porque tarda / morte amiga? ...” (COELI, 1981, p. 21). Na can-tiga XV, ainda o refrão em dístico nos remete ao Trovadorismo.

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Nas demais cantigas, ele é evocado muito mais por sintagmas outemas que por recursos versificatórios.

5.11. Francisca Nóbrega

Francisca Nóbrega, fluminense de Macaé (1925), além depoetisa quase inédita e autora de livros infantis, é ensaísta e pro-fessora (aposentada) de Letras (Teoria da Literatura). Como elaprópria esclarece, as suas cantigas neotrovadorescas “foram es-critas como se fossem um recurso didático incentivador para acriação” dos seus alunos de oitava série no Colégio de Aplica-ção da UFRJ, nos anos 70 (MALEVAL, 1966, p. 161). Istoporque, acrescenta ela:

A música popular brasileira contava, no momento,com uma farta criação poética muito parecida com ados trovadores medievais. O que causava espanto aosmeus alunos era a precisão com que um poeta comoChico Buarque de Holanda, por exemplo, exercia umdiscurso atravessado, de ponta a ponta, por sentimen-tos tão femininos como se viam na sua canção “Olhosnos olhos”. Ocorreu-me, então, estudar com os alu-nos algumas Cantigas trovadorescas, mostrar-lhes aestrutura paralelística como a fala do coração que dizsempre e só a mesma coisa, o refrão invariável, atécnica do leixa-pren, as muitas variedades de com-posições (barcarolas, bailias, cantigas de maldizer...etc.). O sucesso do trabalho me estimulou a organi-zar com eles uma Antologia de Novos Trovadores,que infelizmente se perdeu. Guardo apenas as Canti-gas que eu mesma escrevi (MALEVAL, 1996, p. 161).

Na “Cantiga 71”, somos remetidos ao Trovadorismo pelosdísticos seguidos de um refrão com pequenas variantes, e tam-bém através do entrecruzamento de vários motivos correntes nascantigas de amigo: os “prados” presentes nas pastorelas, as“águas” das barcarolas e as “romarias” aí estão. Mas as inquieta-ções, as incertezas próprias do nosso século, expressas no refrão,e a compreensão da falta existencial imprimem novo sentido aopoema, que retrata, de hoje, os verdes ausentes, as águas semespuma e as romarias menos costumeiras. Acrescente-se que os

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“prados” a que se refere o poema não são rurais, mas urbanos, jáque “de asfalto”, cortados por “rios de óleo e lama”. Poluição edegradação nos afastam dos límpidos cenários de outrora, ondese viam a esperançada amiga ou a cortejada pastorinha.

Na “Bailia”, são retomadas as características formais do gê-nero, com refrão variável e paralelismo só quebrado na estrofefinal, a modo de finda, recurso provençal, que dessa forma sejunta à herança das paralelísticas. Mas a bem talhada e lembra-da amiga – a expressão era uma tópica particularmente cara àscantigas de amor – de outrora é substituída pela sua negação. Eo sujeito da poesia, feminino, se coloca no espaço da exclusão edo desencanto.

Na “Barcarola”, apesar da clara referência à cantiga de MartinCodax, no entanto é outro o “mar de Vigo” da poetisa, não maisoráculo ao qual a amiga do passado interrogava confiante.

E na “Cantiga como se fosse de mal-dizer ou canção de aman-te” a poetisa, assumindo o lugar do trovador, retomando osmotivos da “coita” amorosa, do “morrer de amor”, estabelece o(desen)canto do “senhor arredio”. Aí, as formas trovadorescassão evocadas também através de alguns recursos, como a fiindae o refrão-suspiro.

5.12. Marly Vasconcelos

A cearense Marly Vasconcelos (1955), formada em Letras eDireito, publicou em 1985 um livrinho de poemas intituladoCãtygua proençal. Desde o título somos remetidos à lírica me-dieval em langue d’oc, praticada nos territórios ao sul da hojeFrança. No entanto, o Índice já indica que ela retomaria tambémos gêneros mais típicos do Trovadorismo galaico-português,dando inclusive preferência ao termo cantiga (de amigo, deamor, alva, bailada, romaria, marinha, de escárnio, de mal-dizer), ao invés do provençal cansó (embora utilize o termo,também provençal, pastorela). Assim, misturam-se no seu(re)fazer elementos occitanos e ibéricos, bem como gêneroslíricos de outras regiões (canção de gesta, balada) e posterio-res (acalanto, xácara).

Mesmo no interior dos poemas as duas tradições

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trovadorescas, e outras, se confundem. Por exemplo, na “Can-tiga de amigo”, embora seja um canto de voz feminina e neleretome os seus componentes ibéricos habituais (amigo, madre,prado, fontes), mas sem ater-se aos recursos formais típicos dogênero, a amiga expressa o desejo de cantar em... proençal. Na“Cantiga de amor” coloca em cena não o nobre trovador, mas oguerreiro mouro que anseia por uma lusitana. Na “Pastorela”apresenta, não o diálogo do cavaleiro com a pastora, mas assuas indagações aos elementos da natureza sobre o paradeiroda amada, o que vimos ser recurso típico das cantigas de amigoparalelísticas galaicas. Na “Bailada” insere a pastora, etc..

Enfim, amalgamando a tradição lírica medieval, sem buscarater-se aos seus rígidos esquemas formais, a poetisa nos colocadiante do passado medieval, dos seus quadros mais típicos e atédo som dos lamentos dos amantes, como na “Marinha” dedicadaa Roberto Pontes, onde o choro das donzelas se confunde como das “ondas que vogam”. E também assume por inteiro o lu-gar, antes masculino, do trovador ibérico, principalmente des-velado na “Cantiga de maldizer” contra o “filho dalgo desprezí-vel”, o mesmo que outrora não apenas louvava a senhor fremosanas cantigas de amor, mas ridicularizava e reificava sem piedadeas feias e soldadeiras.

5.13. José Rodrigues de Paiva

O português coimbrão José Rodrigues de Paiva (1945), ra-dicado no Recife (1951), formado em Direito e Professor deLiteratura Portuguesa, é, além de poeta, contista, ensaísta e edi-tor. Publicou em 1987 Cantigas de amigo e amor, com o subtí-tulo explicativo: “Dez exercícios de canto segundo a maneiraantiga seguidos de uma poética fragmentária”. Desta poética,extraímos alguns trechos, úteis para a reflexão sobre oNeotrovadorismo. Inicialmente, trata de resgatar a importânciado Trovadorismo na gênese da tradição lírica do Ocidente:

Entre o aedo e o rapsodo gregos, o vate latino, o bar-do celta e o poeta moderno, está o trovador provençal.É sobretudo a ele, antes de se pensar nos gregos elatinos, que a nossa poética remonta e se desenvolve

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no tempo a partir de velhas e primitivas raízes.A ele e ao seu caminho francês, de vila em vila, defeira em feira, de castelo em castelo, até Santiago, atéSan Servando, até San Leuter, até San Clemenço, àságuas de Vigo (etc.).A eles, trovadores, e aos segréis, jograis, menestréis,esfumados artistas que no tempo se diluem como ofumo das fogueiras dos acampamentos que anima-ram com a sua arte nômade ou como os perdidos bri-lhos das cortes e paços da nobreza antiga que abri-ram as suas portas à poesia, é que regressa o poetamoderno, pelo caminho lírico do retorno ao passado,a refazer os passos da História e da Tradição a quenão pode estar indiferente.

Passa, então, a falar dos modos de resgate da tradiçãomedieval, inconsciente ou consciente:

Inconscientemente, o Poeta poderá caminhar, por estaverde Galiza mítica, ao encontro da ribeira do seurio. Inconscientemente, poderá tomar, desta fonte deséculos, algumas formas, algumas medidas, ouvir nocorrer dessas águas alguns fios melódicos que se vãorevelar, depois, em certos poemas seus.Mas poderá também, com a consciência da razão so-lar, retornar à primitiva pureza de certas formas sim-ples e dar-lhes outra voz, e dar-lhes outra música...

E conclui pela dupla feição deste resgate, a unir modernidadee tradição, assinalando a necessária busca de identidade comoseu motor:

Modernidade e tradição neste ato de resgate paradar continuidade a formas vivas. Necessário re-gresso às origens, em busca da própria identida-de. Aprendizagem iniciática que se impõeindispensavelmente num tempo de algumas tãoinconseqüentemente vazias vanguardas falsamen-te poéticas ... (PAIVA, 1988, p. 31-37).

Nos poemas, o poeta dá preferência às cantigas de amigo,como vimos o mais autóctone dos gêneros trovadorescos. E ofaz de forma consciente, dado o trabalho de reconstrução das

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formas arcaicas a que procede. Em “À sombra florida dasavelaneiras”, retoma a tradição dos bailados sob as avelaneirasfrolidas e durante as romarias, no caso, a peregrinação a Santi-ago de Compostela. Usa aí recursos do paralelismo, emborasem segui-lo rigidamente como na “Cantiga do mar de Vigo”.“Em Lisboa sobre o mar” constitui desenvolvimento da barcarolade Johan Zorro, lançando mão novamente de recursosparalelísticos, inclusive variação do leixa-pren – por exemplo,entre o primeiro verso da última estrofe e o verso anterior: “umacanção de atafinda. // Uma canção sobre o mar”. Também arima utilizada faz eco à do paradigma, apenas nasalisando a rimaem /i/ e mantendo a rima em /a/. Já na “Cantiga de amigo”,estabelece um diálogo com o gênero como tal considerado, con-cluindo pela necessidade do canto para distrair o sofrimento.

Enfim, se nessas e em outras cantigas de amigo conseguiureproduzir até mesmo o som de versos e estrofes, tal não o feznas de amor, que na verdade são duas “quase esparsas” – asesparsas são poemas curtos do século XV, de tom melancólico,constituídos por oito a dezesseis versos redondilhos, sem refrãoou variação – como ele próprio as nomeia.

Depois, só lhe resta o acordar do sonho, na cantiga sobre a“noite do poema” que, a modo de epílogo, encerra o pequenocancioneiro.

6. Conclusão. Outros caminhos

Para concluir, das experiências aqui retratadas, vimos queMário de Andrade, cabeça do Modernismo no Brasil, não repu-diou a nossa lírica ancestral; antes, substituiu as preocupaçõesamorosas arcaicas por preocupações de cunho político-socio-lógico, decorrentes do contexto industralizado e do nazismo,com as suas desumanidades e ilusões. Augusto Mayer, voz su-lista da iconoclastia modernista, canalizou para o poema-piadaa sua retomada do medievo. Já Pennafort procederia mais deacordo com as suas realizações no campo do memorialismo, datradução e do ensaísmo. Martins Fontes teve estimulado o seuinteresse pela revalidação do nosso passado luso-galaico pormotivo da sua ligação com Portugal, pela distinção de ter sido

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eleito para a Academia das Ciências de Lisboa. Ao passo queGuilherme de Almeida, escritor mais assumido, vinculara-semuito provavelmente ao Saudosismo lusitano, interagindo comos seus escritores e ideólogos, mas acentuando a angústia porum tempo existencial não mais recuperável. Bandeira, ele pró-prio desvelara o caráter circunstancial de seus poemas ditosmedievais, motivados pela impressão que lhe provocara a des-coberta dos Cancioneiros ao preparar aulas, certamente que in-cutindo-lhes a dor da precariedade existencial. Também a cir-cunstância docente se ligam os poemas de José Rodrigues dePaiva e Francisca Nóbrega. Cecília Meireles certamente que va-lorizara o medievalismo por sua tendência filosófico-espiritualista, expressa em poesia, sendo-lhe o conhecimentofacilitado pela sua dedicação ao magistério e ao folclorismo.Hilda Hilst retomaria dos mestres as lições de brevidade do po-ema e a relação sinonímica amar/trovar, assumindo um particu-lar feminismo ao ocupar o lugar outrora atribuído aos homens-trovadores no contexto ibérico. Nesta perspectivação feministase inclui Miriam Coeli e, sem ser a determinante principal, tam-bém Francisca Nóbrega. Já Stella Leonardos comporia guiadapelo seu confessado amor às nossas raízes líricas, que percebe-mos também ser a mola-mestra de Marly Vasconcelos, sem es-tar ausente em todos os demais, inclusive os jornalistas PauloBonfim e Edison Moreira.

Merece destaque Stella Leonardos, que reconstitui, pela viado processo poético íbero-brasileiro, a história pátria e aspectosdo imaginário popular expressos no Romanceiro, tornando-se,sem dúvida, a grande especialista e mais fecunda cantora dasnossas tradições, em numerosos poemas que aliam o delectareao docere proposto pelos antigos.

Por essas amostras de poemas de autores e épocas diversas,fica claro que não tivemos, no Brasil, uma doutrina ou sistemaque justifique o termo Neotrovadorismo em sua acepção maisrígida. Mas os poemas apresentam uma constante inquestionável:terem sido construídos a partir das cantigas dos trovadores ga-lego-portugueses, e algumas vezes dos occitanos, o que se tor-na ainda mais claro nos poemas que se antecedem de epígrafesremissivas aos modelos poéticos (e são muitos). Muito embora

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a sua relação com esse modelo seja extremamente variável, qualseria outro melhor termo para denominarmos ditas incursões?...E, voltando à epígrafe inicial, vemos que D. Dinis é figura dedestaque nesse processo, revivendo como tema ou como mes-tre na poesia brasileira do século XX.

Com relação aos romances, pode-se constatar a suafloração também em alguns dos nossos poetas eruditos. Oraseguem a tradição oral, documentada embora pela escrita,como Onestaldo de Pennafort e Edison Moreira, ora dialo-gam com ela, dando frutos de novo sabor, como o faz StellaLeonardos; ora criam novos romances a partir de dados darealidade brasileira, como é o caso de Onestaldo de Pennafort,Mário de Andrade e Cecília Meireles.

Enfim, as sementes poéticas trazidas nas caravelas em nos-sos primórdios histórico-culturais continuam até hoje vivificadaspelos poetas, através de obras que documentam uma tendênciana História da Literatura Brasileira – o Neomedievalismo. Este,embora não tanto significativo em termos numéricos, se levadaem conta a extensa demografia do nosso Brasil, não pode serdeixado de lado pelos especialistas e professores, já que se apre-senta em poetas canônicos ou não canônicos, de diversas regi-ões brasileiras.

Evidentemente que não esgotamos o rico veio do Neomedie-valismo brasileiro, por demais fecundo na literatura de cordel ena literatura oral, mas que não é por ora nosso objeto de estudo.Mesmo nos atendo à literatura considerada “culta” ou erudita,deixamos de lado, por exemplo, um dos grandes poetas do sé-culo XX no Brasil, João Cabral de Melo Neto. Este tambémretomou, de forma admirável, o romance ibérico, mesclando-oao auto medieval, ao pranto e à tenção trovadorescos, bem comoà literatura “popular” brasileira, em peças admiráveis como Mortee vida severina. A injustiça social no Brasil, polarizada no dra-ma do retirante nordestino, tem nessas formas mescladas ummeio de expressão altamente impressivo.

O próprio poeta revelou, em entrevista publicada em 1985,que a partir de 1947, quando foi residir na Espanha em decor-rência de cargo diplomático, apaixonou-se pela literatura tradi-cional ibérica, assimilando e recriando-lhe as formas arcaicas e

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temas, nunca mais abandonando a rima toante:

Com Morte e vida severina quis prestar uma home-nagem a todas as literaturas ibéricas. Os monólo-gos do retirante provêm do romance castelhano. Acena do enterro na rede é do folclore catalão. O en-contro com os cantores de incelenças é típico doNordeste. Não me lembro se a mulher da janela é deorigem galega ou se está em Pereira da Costa. Aconversa com Severino antes de o menino nascerobedece ao modelo da tenção galega (MELO NETO,SECCHIN, 1985, p. 303-304).

Também Marly de Oliveira, poetisa e esposa do poeta,destacara o medievalismo desta obra, principalmente a suadívida para com o Romanceiro Ibérico através de algumascenas e do uso dos versos heptassílabos e da rima assonante;bem como para com as tenções dos trovadores galaico-por-tugueses e autos. Diz ela:

os monólogos do Retirante têm em comum com oromanceiro ibérico o uso do heptassílabo e aassonância; a cena do Irmão das almas homena-geia o romance catalão do conde Arnaut; (...) ada mulher na janela é um poema narrativo emportuguês arcaico incorporado ao folclorepernambucano (...). O diálogo do Retirante como Mestre Carpina segue os processos da tençãogalega; (...). As ciganas estão nos autos antigos(...) (OLIVEIRA, MELO NETO, 1994, p. 18).

Através da competente análise de Maurice van Woensel (1998,p. 115-143), vemos que a obra é rica destes e de outros recursosmedievos, principalmente do Romanceiro hispânico: além da pre-ferência pelo verso de sete sílabas (ou de oito, na contagem espa-nhola) e pela rima toante entre os versos pares, que redunda emum esquema binário, nela se percebem a ausência de refrão e airregularidade na extensão das estrofes; bem como a mistura dosgêneros lírico, épico e dramático. Observou o especialista que apeça juntamente com o poema “O rio”, de 1953, “constituem asprimeiras obras ostentando a técnica e o estilo que se tornariam amarca registrada do poeta” (WOENSEL, 1998, p. 141). Publi-

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cando trinta anos depois O auto do frade, poema para vozes , opoeta provou que “suas afinidades com a poética ibérica antiga”“não eram nenhum modismo passageiro, mas o reflexo de seugênio poético e de sua personalidade que descobriram e assimila-ram modelos e temas medievais” (WOENSEL, 1998, p. 141).Enfim, Voensel conclui ressaltando o papel da literatura popularnordestina na mediação desse processo de assimilação do medievopelo grande poeta pernambucano:

Um elo intermediário entre a poética cabralina e oromanceiro tradicional é sem dúvida a literatura po-pular nordestina. Esta é inegavelmente uma conti-nuação direta daquela tradição antiga, tanto pelaforma (...), como pelo estilo oral e de todo despoja-do (WOENSEL, 1998, p. 137).Cabral, que confessou ter descoberto na Espanha,adulto já, o romanceiro ibérico, já entrara, quandomenino, em contato com a versão moderna daquelegênero. Aliás, na época da infância do poeta, a artedos cantadores de feira tinha um impacto bem mai-or do que agora no interior e mesmo na capital dePernambuco (WOENSEL, 1998, p. 139).

Mas este é outro rico veio do medievalismo no Brasil, certa-mente que extremamente sedutor. Fica o convite de Maurice vanWoensel, infelizmente falecido em inícios de 2001, para que oexploremos. E a nossa homenagem a ele, que foi um dos maisdedicados medievalistas no Brasil do século XX e um apaixona-do pela cultura do Nordeste brasileiro.

Nota p. 47(1) Para Massaud Moisés (1978, p. 386) o termo cossante “mostrou-se inadequado paradesignar tal espécie de cantiga de amigo, uma vez que resultou de uma falha de leitura:entendeu-se cos(s)ante em vez de cosaute, ou corsaute, originário do francês coursault,que não apresenta qualquer vínculo com os cantares paralelísticos”. Segismundo Spina(1991, p. 369-370) também ressalta a inaceitabilidade do termo por parte de especialistascomo Agostinho de Campos, tradutor da Literatura Portuguesa de Aubrey Bell, ou ManuelRodrigues Lapa, que preferiu a denominação cantigas paralelísticas puras ou bailadas.Tal designação, paralelísticas (puras), tem conseguido mais larga aceitação, apesar deoutras terem sido criadas, como retornadas (Leite de Vasconcelos), serranilhas (TeófiloBraga), ou ainda, anteriormente, Parallelistic songs e serranas (Henri Lang), além daadaptação de A. Jeanroy chansons à répétitions, ou da tradução alemã verkettungslieder.

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Antologia

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1. Poesia medieval:1.1 Cantigas

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Afonso Sanches

Filho de D.Dinis e de Dona Aldonça Rodrigues dePilha, nasceu pouco antes de 1289. Gozou de um importanteestatuto na corte de seu pai.

Foi exilado em Castela após 1325 pelo Infante D.Afonso, herdeiro legítimo do rei.

Sua produção poética possui traços dos mais singu-lares e consta de oito cantigas de amor, duas cantigas deamigo, uma tenção de amor (com Vasco Martinz de Resende)e quatro cantigas de escárnio.

Morreu por volta de 1328 no cerco de Escalana, con-tudo só mais tarde seu corpo foi levado para o Mosteiro daVila do Conde.

DIZIA LA FREMOSINHA

Dizia la fremosinha:“ai, Deus, val!Com’ estou d’amor ferida!ai, Deus, val!Com’ estou d’amor ferida!”

Dizia la ben talhada:“ai, Deus, val!Com’estou d’amor coitada!ai, Deus, val!Com’estou d’amor ferida!”

“Com’ estou d’ amor ferida!ai, Deus, val!Non ven o que ben queria!ai, Deus, val!Com’ estou d’ amor ferida!”

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“Com’ estou d’ amor coitada!ai, Deus, val!Non ven o que muit’ amava!ai, Deus, val!Com’ estou d’ amor ferida!”

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Airas Carpancho

Trovador galego, ativo em meados do século XIII,possivelmente no segundo terço do século. É muito arrisca-do estabelecer conjecturas sobre um autor do qual nem se-quer o apelido (Carpancho ou Corpancho) está claro.

Ao certo sabemos que seu cancioneiro é constituídode cinco cantigas de amor e oito cantigas de amigo.

AY, DEUS, COM’ANDO CUYTADO D’AMOR!

Ay, Deus, com’ando cuytado d’amor!E, se o for dizer à mha senhor,logo dirá que lhi digo pesar;e quero-mh-ante mha coyta ‘ndurarca lhi dizer, quando a vir, pesar.

Pero m’eu moyro querendo-lhi ben,se lhi disser a coita ‘n que me ten,logo dirá ca lhi digo pesar;e quero-mh-ante mha coita ‘ndurarca lhi dizer, quando a vir, pesar.

Ben m’oyrá, se al dizer quiser!Mays, se lhi ren de mha coyta disser,logo dirá c[a lhi] d[igo] p[esar];e q[uero]-m[h-ante] m[ha] c[oyta ‘n]d[urar]c[a lhi] d[izer, quando a vir, pesar].

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)88

POR FAZER ROMARIA , PUG’EN MEU CORAÇON

Por fazer romaria, pug’ en meu coraçon,a Santiag’, un dia, por fazer oraçone por veer meu amigo logu’i.

E sse fezer tenpo, e mha madre non for,querrey andar mui leda, e parecer melhor,e por veer meu amigo logu’i.

Quer’eu ora mui cedo provar se podereyhir queymar mhas candeas, con gran coita que ey,e por veer meu amigo logu’i.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 89

Airas Nunez

Foi um clérigo, provavelmente galego. Compôs as suascantigas na corte de Sancho IV, no período entre 1284 e 1289.Airas Nunez parece ter sido um homem culto, dono de umarespeitável técnica.

Suas cantigas constam no Cancioneiro da BibliotecaNacional e no Cancioneiro da Vaticana. São cerca de sete cantigasde amor, três de amigo, uma pastorela e quatro de escárnio emaldizer. Atribui-se a ele co-autoria em algumas das Cantigasde Santa Maria.

BAILEMOS NÓS JA TODAS TRES, AI AMIGAS

Bailemos nós ja todas tres, ai amigas,so aquestas avelaneiras frolidas,e quen for velida como nós, velidas,se amigo amar,so aquestas avelaneiras frolidasverrá bailar.

Bailemos nós ja todas tres, ai irmanasso aqueste ramo d’estas avelanas,e quen for louçana como nós, louçanas,se amigo amar,so aqueste ramo d’estas avelanasverrá bailar.

Por Deus, ai amigas, mentr’al non fazemosso aqueste ramo frolido bailemos,e quen ben parecer como nós parecemos,se amigo amar,so aqueste ramo, sol que nós bailemos,verrá bailar.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)90

AMOR FAZ A MIN AMAR TAL SEÑOR

Amor faz a min amar tal señorque é mais fremosa de quantas sei,e faz-m’ alegr’ e faz-me trobador,cuidand’ en ben sempr’; e mais vos direi:..............................[-ar]faz-me viver en alegrança,e faz-me todavia en ben cuidar.Pois min amor non quer leixare da-m’ esforç’ e asperança,mal veñ’ a quen se d’el desasperar.

Ca per amor cuid’ eu mais a valere os que d’ el desasperados sonnunca poderán ne¢u ben aver,mais aver mal. E por esta razon........................... [-ar]trob’ eu, e non per antollança,mais pero que sei lealment’ amar.Pois min amor [non quer leixare da-m’ esforç’ e asperança,mal veñ’ a quen se d’el desasperar].

Cousecen min os que amor non hane non cousecen si, ¡vedes que mal!,ca trob’ e canto por señor, de pran,que sobre quantas oj’ eu sei mais valde beldad’ e de ben falar,e é cousida sen dultança.Atal am’ eu, e por seu quer’ andar.Pois min amor [non quer leixare da-m’ esforç’ e asperançamal veñ’ a quen se d’el desasperar].

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 91

OÍ OG’ EU ¢¢¢¢¢A PASTOR CANTAR

Oí og’ eu ¢a pastor cantardu cavalgaba per ¢a ribeira,e a pastor estava senlleira;e ascondi-me pola escuitar,e dizia mui ben este cantar:“Solo ramo verd’ e frolidovodas fazen a meu amigo;¡choran ollos d’ amor!”

E a pastor parecia mui ben,e chorava e estava cantando;e eu mui passo fui-mi achegandopola oír, e sol non falei ren;e dizia este cantar mui ben:“¡Ai estorniño do avelanedo,cantades vós, e moir’ eu e pen’e d’ amores ei mal!”

E eu oí-a sospirar entone queixava-sse estando con amorese fazia guirlanda de flores;des i chorava mui de coraçone dizia este cantar enton:“¡Que coita ei tan grande de sofrer,amar amigu’ e non ousar veer!E pousarei solo avelanal!”

Pois que a guirlanda fez a pastorfoi-se cantando, indo-ss’ én manseliño;e tornei-m’ eu logo a meu cam{ o,ca de a nojar non ouve sabor;e dizia este cantar ben a pastor:“Pela ribeira do ríocantando ía la virgo d’amor;

¿quen amores ácomo dormirá,[a]i, bela frol?”

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 93

Alfonso X, o Sábio

Filho de Fernando III, o Santo, e de Beatriz de Suábia,nasceu em Toledo em 1221. É sem dúvida o protagonista daorganização do Estado Medieval da Península Ibérica. Sen-do infante e em posse dos cargos de alferes-mor (1242) e detenente de Salamanca e Leão (1243 a 1246), leva a cabo aconquista de Murcia em 1243 e de Jaen em 1246.

Foi coroado rei de Leão e Castela em 1252, tendo exerci-do o poder por vinte anos. Seu reinado coincidiu com a faseáurea da lírica galaico-portuguesa.

Trovador prolífico, compôs quarenta e quatro poesiasprofanas, sendo trinta e sete escárnios, três tenções, três deamor e uma de amigo. Foi autor e/ou responsável pela publi-cação das 427 Cantigas de Santa Maria. Sua corte converteu-se em ponto de encontro para trovadores, tanto galego-portu-gueses como provençais, além de outros intelectuais, artistase sábios diversos. Por essas atividades foi conhecido como OSábio.

Morreu em Sevilha, em 1284.

Como Santa Maria feze estar o monge trezentosanos ao canto da passarynna, porque lle pediaque lle mostrasse qual era o vem que auían osque eran en Paraíso.

Quen a Uirgen ben serviráa Paraýso irá.

E d’aquest’ un gran miragreuos quer’ eu ora contarque fezo Santa Mariapor un monge que rogarlh’ ía sempre que lle mostrassequal ben en Paraís’á,

Quen a Uirgen ben servirá…

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)94

E que o uiss’ en ssa uida,ante que fosse morrer.Et porend’ a Grorïosauedes que lhe foi fazer:fez-lo entrar en h¢a orta,en que muitas vezes ia,

Quen a Uirgen ben servirá…

Entrarára; mais aquel diafez que h¢a font’ achoumui crara et mui fremosa,et cab ela s’ assentou;et pois lauou mui bem sas mãos,diss’: − ¡Ay Uírgen! ¿Que será?

Quen a Uirgen ben servirá…

¡Sei uerei do Paraýso,o que ch’ eu muito pidí,algun pouco de seu uiçoánte que saýa d’aquí,et que sábia do que ben obraqué galardon auerá!

Quen a Uirgen ben servirá…

Tan toste que acabadaouu’ o mong’ a oraçon,oyú h¢a passarinnacantar log’ eu tan bon sonque ss’ escaeceu seendoe catando sempr’ alá. Quen a Uírgen ben seruirá.. .

Atan gran sabor auíad’aquel cant’ e d’ aquel lais,que grandes trezentos anosesteuo assí, ou máys,cuidando que non esteuerasenon pouco, com’ está

Quen a Uírgen ben seruirá...

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 95

Mong’ alg¢a uez no ano,quando sal ao uergeu;des í foiss’ a passarynna,de que foi a él mui greu,et diz’: − Eu d’aquí ir-me quero,ca oy máis comer querrá.

Quen a Uírgen ben seruirá...

O convent’. – E foi-sse logo,et achou un gran portalque nunca uíra, et disse:− ! Ai, Santa Maria, ual!Non é est’ o meu mõesteiro;Pois de mi? qué se fará?-

Quen a Uírgen ben seruirá...

Des í entrou na eigreia,et ouueron gran pauoros monges quando o uíronet demandou-ll’ o prior,dizend’: − Amigo, ¿uós quén sodesou qué buscades acá¿ –

Quen a Uírgen ben seruirá...

Diss’él: − Busco meu abade,que agor’ aqui leixey,et o prior et os fradesde que mi agora quiteyquando fui a aquela orta;ú séen? quén mi o dirá? −

Quen a Uírgen ben seruirá...

Quand’ est’ oyú o abade,téue-o por de mal sen,et outrossí o conuento;mais desque souberon bende como fora este feyto,disseron: − !Quén öyrá

Quen a Uírgen ben seruirá...

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)96

Nunca tan gran marauillacomo Deus por éste fezpólo rogo de ssa Madre,Uírgen santa de gran prez!Et por aquesto a loemos;mais ¿quén a non loará

Quen a Uírgen ben seruirá...

Máis d’aoutra cousa que seia?ca, par Deus, gran dereit’ é,pois quanto nós lle pedimosnos dá seu Fill’ a la ffepor ela, et aqui nos mostrao que nos depois dará.

Quen a Uírgen ben seruirá,a Paraýso irá.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 97

ESTA É DE LOOR DE SANTA MARIA .

Dized’ ¡ai, trovadores!a Sennor das Sennores¿por qué a non loades?

Se uós trobar sabedes,a porque Deus auedes¿por qué a non loades?

A Sennor que dá uidaet é de bem comprida,¿por qué a non loades?

A que nunca nos menteet nossa coita sente,¿por qué a non loades?

A que é máis que boaet por que Deus perdõa,¿por qué a non loades?

A que nos dá conortena uida et na morte,¿por qué a non loades?

A que faz o que morreuiu’, e que nos acorre,¿por qué a non loades?

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)98

ESTA É DE LOOR DE SANTA MARÍA ,COM’ É FREMOSA ET BOA, ET Á GRAN PODER.

Rosa das rosas et Fror das frores,Dona das donas, Sennor das Sennores

Rosa de beldad e de parecer,et Fror d’ alegria et de prazer;Dona en mui piadosa seer,Sennor en toller coitas et doores. Rosa das rosas et fror das frores.....

Atal Sennor deu’ ome muit’amarque de todo mal o pode guardar,et pode-ll’ os peccados perdõarque faz no mundo per máos sabores. Rosa das rosas et fror das frores.....

Deuémol-a muit’ amar et seruir,ca punna de nos guardar de falir;des í dos erros nos faz repentirque nós fazemos come pecadores. Rosa das rosas et fror das frores.....

Esta Dona que tenno por Sennoret de que quero seer trobador,se eu per ren poss’ auer seu amor,dou ao demo os outros amores.

Rosa das rosas et Fror das frores, Dona das donas, Sennor das Sennores.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 99

Bernal de Bonaval

Provavelmente natural do sudoeste da Galiza, seriaum jogral ligado, segundo alguns estudiosos, à poderosa cortesenhorial dos Sousas.

Sua atividade poética parece estar situada na primei-ra metade do século XIII. Seu cancioneiro compõe-se dedez cantigas de amor, oito de amigo e uma tenção.

AY, FREMOSINHA , SE BEN AJADES!

“Ay, fremosinha, se ben ajades!Longi de vila quen asperades?”.“Vin atender meu amigo’’.

“Ay, fremosinha, se gradoedes!Longi de vila quen atendedes?”.“Vin atender [meu amigo]”.

“Longi de vila quen asperades?”.“Direy-vo-l’ eu, poys me preguntades:vin atender [meu amigo]”.

“Longi de vila quen atendedes?”“Direy-vo-l’ eu, poi-lo non sabedes:vin atender meu [amigo]”.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 101

D. Dinis

Filho de Afonso III de Portugal e de Dona Beatriz de Castelae, portanto, neto de Afonso X, nasceu em 1261. Reinou de 1279a 1325, data de sua morte. Continuou a linha iniciada por seu pai,convertendo sua corte em local para muitos trovadores e no núcleode sobrevivência da tradição lírica galaico-portuguesa.

Produziu 137 cantigas (72 de amor, 51 de amigo, 11 escárniose 3 pastorelas), o que o torna o trovador mais fecundo da líricagalaico-portuguesa. Empreendeu uma política cultural quedesembocou no surgimento de novos gêneros na literaturaportuguesa (os Livros de Linhagens e a historiografia) e nacriação da Universidade, em 1290.

AI FLORES, AI FLORES DO VERDE PINO...

Ai flores, ai flores do verde pino,se sabedes novas do meu amigo!Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,se sabedes novas do meu amado!Ai, Deus e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,aquel que mentiu do que pos commigo?Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,aquel que mentiu do que mh a jurado,Ai Deus, e u é?

Vós preguntades polo voss’ amigo?E eu bem vos digo que é san’ e vivo.Ai Deus, e u é?

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)102

Vós preguntades polo voss’ amado?E eu bem vos digo que é viv’ e sano.Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é san’ e vivo,e será vosc’ ant’ o prazo saido.Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é viv’ e sano,e será vosc’ ant’ o prazo passado.Ai Deus, e u é?

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 103

UM TAL OME SEI EU, AI BEM TALHADA

Um tal ome sei eu, ai bem talhada,que por vós tem a sa morte chegada;veedes quem é, seed’em nembrada:eu, mha dona.

Um tal ome sei [eu] que perto sentede si [a] morte [chegada] certamente;veedes quem é, venha-vos em mente:eu, mha dona.

Um tal ome sei [eu], aquest’oide,que por vós morre, vo-lo [em] partide;veedes quem é, nom xe vos obride:eu, mha dona.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)104

PROENÇAES SOEN MUI BEM TROBAR

Proençaes soen mui bem trobare dizem eles que é com amor;mais os que trobam no tempo da flore nom em outro, sei eu bem que nomam tam gram coita no seu coraçomqual m’eu por mha senhor vejo levar.

Pero que trobam e sabem loarsas senhores o mais e o melhorque eles pódem, sõo sabedorque os que trobam quand’a frol sazoma, e nom ante, se Deus mi perdom,nom am tal coita qual eu ei sem par.

Ca os que trobam e que s’alegrarvam e-no tempo que tem a colora frol comsigu’ e tanto que se fôraquel tempo, logu’ em trobar razomnom am, nem vivem em qual perdiçomoj’eu vivo, que pois m’a de matar.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 105

LEVANTOU-S’ A VELIDA

Levantou-s’ a velida,levantou-s’ alva,e vai lavar camisase-no alto.Vai-las lavar alva.

Levantou-s’ a louçana,levantou-s’ alva,e vai lavar delgadase-no alto.Vai-las lavar alva.

[E] vai lavar camisas,levantou-s’ alva;o vento ih’ass desviae-no alto.Vai-las lavar alva.

E vai lavar delgadas,levantou-s’ alva;o vento lh’as levavae-no alto.Vai-las lavar alva.

O vento lh’as desvia,levantou-s’ alva;meteu-s’alva em irae-no altoVai-las lavar alva.

O vento lh’as levava,Levantou-s’ alva;Meteu-s’ alva em sanha,e-no alto.Vai-las lavar alva.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)106

MESURA SERIA, SENHOR

Mesura seria, senhor,de vós amercear de mi,que vós em grave dia vi,e em mui grave voss’amor,tam grave, que nom ei poderd’aquesta coita mais sofrerde que, muit’a, fui sofredor.

Pero sabe nostro senhorque nunca vo-l’ eu mereci,mais sabe bem que vós servi,des que vos vi, sempr’ o melhorque nunca [eu] pudi fazer;porem querede vos doerde mim, coitado pecador.

Mais Deus que de tod’ é senhor,me queira poer conselh’i,ca se meu feito vai assi,e m’el nom fôr ajudadorcontra vós que el fez valermais de quantas fezo nacer,moir’eu, mais nom merecedor.

Pero se eu ei de morrersem vo-lo nunca merecer,nom vos vej’ i prez nem loor.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 107

Estevan Coelho

Trovador português, nasceu no último terço do sé-culo XIII. Há problemas para sua identificação, pois existemduas personagens com esse nome, ambas descendentes deJohan Soares Coelho.

A hipótese mais provável sugere a sua participação nacorte de D. Dinis, onde teria realizado composições entre 1300e 1325, aproximadamente. Compôs duas cantigas de amigo.

SEDIA LA FREMOSA SEU SIRGO TORCENDO

Sedia la fremosa seu sirgo torcendo,sa voz manselinha fremoso dizendocantigas d’ amigo.

Sedia la fremosa seu sirgo lavrando,sa voz manselinha fremoso cantandocantigas d’ amigo.

– Par Deus de Cruz, dona, sei eu que avedesamor mui coitado que tan ben dizedescantigas d’ amigo.

Par Deus de Cruz, dona, sei [eu] que andadesd’ amor mui coitada que tan ben cantadescantigas d’ amigo.

– Avuitor comestes, que adevinhades.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 109

Fernan Froiaz

O sobrenome Froiaz tornou-se um apelido utilizado porfamílias nobres portuguesas e galegas, o que dificulta a identificaçãode pessoas assim chamadas durante o século XIII. Contudo, oFroiaz ao qual nos referimos é, provavelmente, um dos descen-dentes do conde D. Nuno de Lara e deve ter vivido na segundametade do referido período. Compôs quatro cantigas de amigo.

QUE TRIST’ ANDA MEU AMIGO

Que trist’ anda meu amigo,por que me querem levard’aqui, e, se el falarnon poder ante comigo,nunca já ledo seráe, se m’ el non vir, morrerá.

Que trist’ oje que eu sejo!e, par Deus, que pod’ e val,morrerá, u non jaz al;se m’eu for e o non vejonunca já ledo seráe, se m’ el non vir, morrerá.

E, pero sôo guardada,Se soubess’ i á morrer,i-lo-i’ ante veerca bem sei d’esta vegadanunca já ledo seráe, se me’ el non vir, morrerá.

E, se m’el visse, guaridoseria logo por en,mais quite será de ben,pois el fôr de min partido,nunca já ledo seráe, se m’ el non vir, morrerá.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 111

Fernan Garcia Esgaravunha

Nasceu no princípio do século XIII, filho do também poetaD. Garcia Mendiz D’Eixo e irmão do conde D. Gonçalo Garcia,da linhagem dos Sousas. Era tenente de Celorico da Beira em1230. A partir deste ano, a linhagem perdeu grande parte desua importância política, o que pode explicar o silênciodocumental sobre o autor entre 1230 e 1247.

Teria sido um dos primeiros a ter contato com a culturaprovençal e difundi-la na lírica galaico-portuguesa. Compôsdezoito cantigas de amor e duas de escárnio.

Entre 1248 e 1251 casou-se com Urraca Abril de Lumiares.Morreu, provavelmente, após janeiro de 1251.

SE DEUS ME LEIXE DE VOS BEN AVER

Se Deus me leixe de vos ben aver,senhor fremosa! Nunca vi prazerdes quando m’eu de vos parti.

E fez mi-o voss’amor tan muito mal,que nunca vi prazer de min, nen d’al,des quando m’eu de vos parti.

Ouv’eu tal coita no meu coraçonque nunca vi prazer, se ora non,des quando m’eu de vos parti.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 113

Fernand’ Esquio

Trovador galego, membro dos Esquio, da pequena no-breza galega. A linhagem manteve uma estreita relação com oMosteiro de São Martinho de Júbia.

Supõe-se que ele fosse reconhecido por Fernando doLago. Se assim consideramos, sua obra é composta de duascantigas de amor, cinco de amigo e três de escárnio.

Por sua colocação nos cancioneiros, esteve ativo poeti-camente no final do século XIII e início do XIV. Certos indíciostextuais fazem supor que freqüentou a corte de Dom Dinis.

VAYAMOS, IRMANA , VAYAMOS DORMIR

Vayamos, irmana, vayamos dormirnas rrybas do lago, hu eu andar vya las aves, meu amigo.

Vaiamos, hirmana, vaiamos folgarnas rribas do lago, hu eu vi andara las aves, meu amigo.

Enas rribas do lago, hu eu andar vi,seu arco na maão as aves ferir,a las aves, meu amigo.

Enas rribas do lago, hu eu vi andar,seu arco na mano a las aves tirar,a las aves, meu [ amigo].

Seu arco na mano as aves ferir,e las que cantavan leixa-las guarir,a las aves, meu [amigo].

Seu arco na mano a las aves tyrar,e las que cantavam non-nas quer matar,a las aves, m[eu amigo].

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 115

Fernão Rodrigues de Calheiros

Cavaleiro de provável origem portuguesa e que seriairmão de Paio Rodrigues e de Pero Rodrigues de Calheiros,filhos de Rodrigo Fernandes.

Do trovador, só podemos conjecturar que esteve comseu irmão Paio na corte senhorial dos Sousas no início dasegunda década do século XIII, época de sua atividade poé-tica. Sua obra constitui-se de vinte e uma cantigas de amor,oito de amigo e três de escárnio

MADRE, PASSOU PER AQUI UN CAVALEIRO

Madre, passou per aqui un cavaleiroe leixou-me namorad’ e com marteiro:ai, madre, os seus amores ei;se me los ei,ca mi-os busquei,outros me lhe dei;ai, madre, os seus amores ei.

Madre, passou per aqui un filho d’ algoe leixou-m’ assi penada, com’ eu ando:ai, madre, os seus amores ei;se me los ei,ca mi-os busquei,outros me lhe dei;ai, madre, os seus amores ei.

Madre, passou per aqui quen non passassee leixou-m’ assi penada, mais leixasse:ai madre, os seus amores ei;se me los ei,ca mi-os busquei,outros me lhe dei;ai, madr’, os seus amores ei.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)116

QUE FAREI AGOR’, AMIGO ?

Que farei agor’, amigo?pois que non queredes migoviver,ca non poss’ eu al ben querer.

En gran coita me leixades,se vós alhur ir cuidadesviver,ca non poss’ eu al ben querer.

Se aquesta ida vossafôr, non sei eu como possaviver,ca non poss’ eu al ben querer,

Matar-m’ ei, se mi-o dizedesque vós ren sen mi podedesviver,ca non poss’ eu al ben querer.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 117

Johan Airas de Santiago

Foi um trovador galego, originário de Santiago deCompostela e pertencente a uma das famílias burguesas davila jacobéia. Quanto a sua cronologia, não há como garantirnada, porém, o mais provável é que sua produção esteja situadaapós 1270.

É considerado um dos autores mais significativos dalírica galaico-portuguesa, com oitenta e uma poesias (47 deamigo, 22 de amor, 11 escárnios e uma tenção, além da tençãoiniciada por Johan Vasquez), o que o torna, no que diz respeitoao volume de sua produção poética, inferior apenas a D. Dinis.

JOAN AIRAS, ORA VEJ’ EU QUE Á

– Joan Airas, ora vej’ eu que áDeus mui gran sabor de vos destroir,pois que vós tal cousa fostes comedir,que, de quantas molheres no mund’ á,de todas, vós gran mal fostes dizer,cativ’, e non soubestes entendero mui gran mal que vos sempr’ én verra.

– Joan Vaasquiz, sempr’ eu direi jade molheres moito mal, u as vir;ca, porque eu foi end’ ¢a servir,sempre mi gran mal quis e querra ja,por gran ben que lh’ eu sabia querer;casou-s’ ora, por mi pesar fazer,con quena nunca amou nen amará.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)118

– Joan Airas, non tenh’ eu por razond’ as molheres todas caeren malpor end’ ¢a soo que a vós fal,ca Deulo sabe que é sen razon;por end’ a vós ¢a tolher o séne dizerdes das outras mal por én,errades vós, assi Deus mi pardon.

– Joan Vaasquiz, todas taes sonque, pois viren que non amades alsenon elas, logo vos faran talqual fez a min ¢a; e todas sonaleivosas; e quen lhis d’ esto bendisser, atal prazer veja da renque máis amar no seu coraçon.

– Joan Airas, vós perdestes o sén,ca enas molheres sempr’ ouvo bene avera ja, mais pera vós non.

– Joan Vaasquiz, non dizedes ren,ca todos se queixan d’ elas poren,senon vós, que filhastes por én don.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 119

PELO SOUTO DE CRECENTE

Pelo souto de Crecente¢a pastor vi andarmuit’ alongada de gente,alçando voz a cantar,apertando-se na saia,quando saía la raiado sol, nas ribas do Sar.

E as aves que voavan,quando saía l’ alvor,todas d’ amores cantavanpelos ramos d’ arredor;mais non sei tal qu’ i ‘stevesse,que en al cuidar podessesenon todo en amor.

Ali ‘stivi eu mui quedo,quis falar e non ousei,empero dix’ a gran medo:– Mia senhor, falar-vos-eiun pouco, se mi ascuitardes,e ir-m’ ei quando mandardes,máis aqui non [e]starei.

– Senhor, por Santa Maria,non estedes máis aqui,mais ide-vos vossa via,faredes mesura i;ca os que aqui chegaren,pois que vos aqui acharen,ben diran que máis ouv’ i.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)120

VI EU DONAS, SENHOR, EN CAS D’ EL-REI

Vi eu donas, senhor, en cas d’ el-rei,fremosas e que parecian ben,e vi donzelas muitas u andei;e, mia senhor, direi-vos ¢a ren:a máis fremosa de quantas eu vi,long’ estava de parecer assi

Come vós. Eu muitas vezes proveise ac[h]aria de tal pareceralg¢a dona, senhor, u andei;e, mia senhor, quero-vos al dizer:a máis fremosa de quantas eu vi,[long’ estava de parecer assi]

Come vós. E, mia senhor, pregunteipor donas muitas, que oi loarde parecer nas terras u andei;e, mia senhor, pois mi as foron mostrar,a máis fremosa de quan[tas eu vi,long’ estava de parecer assi].

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 121

ANDEI , SENHOR, LEON E CASTELA

Andei, senhor, Leon e Casteladespois que m’ eu d’ esta terra quitei,e non foi i dona nen donzelaque eu non viss’, e máis vos én direi:quantas máis donas, senhor, ala vi,tanto vos eu mui máis precei des i.

[E] quantas donas eu vi, des quandome foi d’ aqui, punhei de as cousir,e poilas vi, estive cuidandoen vós, senhor, e por vos non mentir,quantas máis donas, senhor, ala vi,[tanto vos eu mui máis precei des i].

E as que ala maior prez avianen todo ben, todalas fui veer,e cousi-as, e ben parecian,pero, senhor, quero-vos al dizer:quantas máis do[nas, senhor, ala vi,tanto vos eu mui máis precei des i].

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 123

Johan [de Leon]

Jogral, provavelmente leonês. Contudo, desenvolveusua atividade em Portugal, na corte de D. Dinis, a quemdedicou um pranto após a sua morte em 1325.

É autor, também, de uma cantiga que homenageia D.Afonso IV de Portugal e o conde de Barcelos, composta porvolta de 1355.

OS NAMORADOS QUE TROBAM D’AMOR

Os namorados que trobam d’amortodos deviam gram doo fazere nom tomar em si nem ¢u prazer,por que perderam tam boo senhorcomo el rei dom Denis de Portugal,de que nom pode dizer nem ¢u malhomem, pero seja posfazador.

Os trobadores que pois ficaromeno seu regno e no de Leom,no de Castela, [e] no d’Aragom,nunca pois de sa morte trobarom.E dos jograres vos quero dizer:nunca cobrarom panos nem avere o seu bem muito desejarom.

Os cavaleiros e cidadãosque d’este rei aviam dinheirose outrossi donas e scudeirosmatar se deviam com sas mãos,por que perderom a tam bõo senhor,de que posso eu bem dizer sem pavorque nom ficou d’al nos cristãos.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)124

E mais vos quero dizer d’este reie dos que d’el aviam bem fazer:deviam-se d’este mundo a perderquand’el morreu, per quant’eu vi e sei,ca el foi rei atam mui prestadore saboroso e d’amor trobador:tod’o seu bem dizer nom poderei!

Mais tanto me quero confortarem seu neto, que o vai semelharem fazer feitos de muito bõo rei.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 125

Johan Garcia de Guilhade

Natural de Guilhade, perto de Barcelos, viveu na se-gunda metade do século XIII. Provavelmente foi cavaleiro aserviço da linhagem dos Sousas e manteve contato tambémcom outros membros da nobreza portuguesa.

Além de um dos mais fecundos poetas do período, commais de cinqüenta composições (14 cantigas de amor, 17 de ami-go, 21 de escárnio e de maldizer e duas tenções), também émuito considerado por sua individualidade e originalidade.

AMIGOS , NON POSS’ EU NEGAR

Amigos, non poss’ eu negara gran coyta que d’amor ey,ca me vejo sandeu andar,e con sandece o direy:os olhos verdes que eu vime fazen ora andar assí.

Pero quen quer x’ entenderáaquestes olhos quaes son,e d’ est’ alguen se queyxará;mays eu ja quer moyra quer non:os olhos verdes que eu vime fazen ora andar assí.

Pero non devia a perderome que ja o sen non áde con sandece ren dizer,e con sandece digu’ eu ja:os olhos verdes que eu vime fazen ora andar assí.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)126

PER BÕA FE, MEU AMIGO

Per bõa fe, meu amigo,muy ben sey eu que m’ouvestesgrand’amor e estevestesmuy gran sazon bem con migo;mays vede-lo que vos digo:já çafou!

Os grandes nossos amores,que mí e vós sempr’ouvemos,nunca lhi cima fezemoscomo Brancafrol e Flores;mays tempo de jogadoresjá çafou.

Já eu faley en foliacom vosq’[e] en gran cordura,e en sem e en loucura,quanto durava o dia;mays esto, Joan Garcia,já çafou!

E d’essa folia todaja çafou!Já çafou de pan de voda,Já çafou!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 127

Johan Lobeira

Trovador português, meio-irmão do trovador MartinPerez Alvin e sobrinho de Men Soarez de Melo, conselheirodo rei Afonso III. Exerceu sua atividade poética entre 1258 e1304 (na corte de Afonso III a partir de 1261). Morreu em1304, aproximadamente. A autoria da cantiga a seguir lhe éatribuída por alguns especialistas, como a douta filóloga D.Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Mas atualmente isso temsido contestado por vários estudiosos. Compôs mais cincocantigas de amor e um escárnio.

SENHOR GENTA

Senhor genta,mi tormentavoss’ amor em guisa tal,que tormentaque eu sentaoutra non m’ é ben nen mal,mays la vossa m’ é mortal!Leonoreta,fin roseta,bela sobre toda fror,fin roseta,non me metaen tal coi[ta] voss’amor!

Das que vejonon desejooutra senhor se vós non,e desejo,tan sobejomataria h¢u leom,

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)128

senhor do meu coraçon!Leonoreta,fin roseta,[bela sobre toda fror,fin roseta,non me metaen tal coita voss’amor!]

Mha venturaen loucurame meteu de vos amar.É loucuraque me duraque me non posso én quitar.Ay fremusura sem par!Leonoreta,fin roseta,[bela sobre toda fror,fin roseta,non me metaen tal coita voss’amor!]

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 129

Johan Lopes de Ulhoa

Trovador originário da Galiza, viveu entre Santiago eLugo entre os anos de 1238 e 1286. Alguns registros fazemsupor que mudou-se para Portugal junto com um nobrecastelhano (ou talvez galego) e lá permaneceu até o fim da vida.

Quase todos os cancioneiros que chegaram até nósconservaram, senão toda, ao menos parte de sua obra. Estacompõe-se de onze cantigas de amor e sete de amigo.

AI DEUS, U É MEU AMIGO

Ai Deus, u é meu amigoque non m’envia mandado?Ca preit’ avia comigo,ergo se fosse coitadode morte, que se veesseo mais cedo que podesse.

Quando s’el de mi partia,chorando, fez-mi tal preitoe disse quand’ e qual dia,ergo se fosse mal treitode morte, que se veesseo mais cedo que podesse.

E já o praz’ é passadoque m’el disse que verriae que mi avia jurado,sen gran coita todaviade morte, que se veesseo mais cedo que podesse,

E, se eu end’al soubesse,que nunca lhi ben quisesse.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 131

Johan Zorro

Há poucos documentos confiáveis sobre sua pessoa,o que tira a certeza de qualquer fato em sua trajetória. Dequalquer maneira, sua atividade poética, pelas freqüentesreferências a Lisboa e ao rei de Portugal, situa-se durante oreinado de Dom Dinis (1279-1325). Compôs dez cantigasde amigo e uma de amor.

EL REY DE PORTUGALE

El-rey de Portugalebarcas mandou lavrare,e lá iran nas barcas migomya filha e noss’ amigo.

El-rey Portugueesebarcas mandou fazere,e lá iran nas barcas migomya filha e noss’ amigo.

Barcas mandou lavraree no mar as deyatare,e lá iran nas barcas migomya filha e noss’ amigo.

Barcas mandou fazeree no mar as metere,e lá iran nas barcas migomya filha e noss’ amigo.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)132

EN LIXBOA SÔBRE O MAR

En Lixboa sôbre lo marbarcas novas mandey lavrar,ay mya senhor velida!

En Lixboa sôbre lo lezbarcas novas mandey fazer,ay mya senhor velida!

Barcas novas mandey lavrare no mar as mandey deytar,ay mya senhor velida!

Barcas novas mandey fazere no mar as mandei meter,ay mya senhor velida!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 133

BAYLEMOS AGORA, POR DEUS, AY VELIDAS

Baylemos agora, por Deus, ay velidas,sô aquestas avelaneyras frolidase quen fôr velida, como nós velidas,s’ amig’ amar,sô aquestas avelaneyras frolidasverrá baylar!

Baylemos agora, por Deus, ay loadas,sô aquestas avelaneyras granadase quen fôr loada, como nós loadas,s’ amig’ amar,sô aquestas avelaneyras granadasverrá baylar!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 135

Juião Bolseiro

Como ocorre com quase todos os trovadores, é difícilsituarmos a existência de Juião Bolseiro. Sabemos, no entanto,que trata-se de um jogral de origem galega e que viveu emmeados do século XIII.

FEX ¢¢¢¢¢A CANTIGA D’ AMOR

Fex ¢a cantiga d’ amorora meu amigo por mi,que nunca melhor feita vi.mais, como x’ é mui trobador,fez ¢as lirias no sonque mi sacan o coraçon.

Muito bem se soube buscar,por mi ali quando a fez,en loar-mi muit’ e meu prez,mais de pran, por xe mi matar,fez ¢as lirias no sonque mi sacan o coraçon.

Per bõa fé ben baratouDe a por mi bõa fazerE muito lho sei gradecer,Mais vedes de que me matou,fez ¢as lirias no sonque mi sacan o coraçon.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 137

Lourenço [Jogral]

Jogral considerado de origem portuguesa pela maio-ria dos estudiosos. Não há muitas certezas no que diz respei-to à sua biografia. Sabe-se que exerceu sua atividade poéticaem meados do século XIII e que se relacionou com trovado-res portugueses – como Johan Soares Coelho e Johan Garciade Guilhade – e com trovadores castelhanos como PeroGarcia Burgalês.

São atribuídas a esse jogral três cantigas de amor, seisde amigo, uma cantiga de escárnio, três tenções (com PeroGarcia, Rodrigu’Eanes Redondo e João Vasquez de Talaveira)e mais outras cinco, em que responde a poetas satíricos.

HUNHA MOÇA NAMORADA

Hunha moça namoradadizia hun cantar d’amor,e diss’ ela: – “ Nostro Senhor,oj’ eu foss’ aventuradaque oyss’ o meu amigocom’ eu este cantar digo!”

A moça ben parecia,e en ssa voz manssel{ acantou e diss’ a men{ a:“ Prouguess’ a Santa Mariaque oyss’ o meu amigo[com’ eu este cantar digo!”]

Cantava mui de coraçone mui fremosa estava;e disse, quando cantava:“ Peç’ eu a Deus por pediçonque oyss’ o meu amigo[com’ eu este cantar digo!”]

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 139

Martin Codax

Jogral ou segrel, cuja origem é possivelmente galega, seaceitarmos as constantes referências a Vigo contidas em suascantigas. Tais alusões podem servir não só como prova de suanaturalidade plausível, como também do centro geográfico desua atividade poética.

Suas composições demonstram uma educação ligada aambientes clericais ou aristocráticos e está situada na segundametade do século XIII.

Sua obra consiste em sete cantigas de amigo, presentesnos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional deLisboa. Além disso, um pergaminho encontrado por PedroVindel contém a melodia de seis dessas suas cantigas.

ONDAS DO MAR DE VIGO

Ondas do mar de Vigo,se vistes meu amigo?E ay Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,se vistes meu amado?E ay Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,o por que eu sospiro?E ay Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,por que ey gran coydado?E ay Deus, se verrá cedo!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)140

AY ONDAS, QUE EU VIN VEER,

Ay ondas, que eu vin veer,se me saberedes dizerporque tarda meu amigosen min?

Ay ondas, que eu vin mirar,se me saberedes contarporque tarda meu amigosen min?

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 141

ENO SAGRADO, EN VIGO

Eno sagrado, en Vigo,baylava corpo velido:Amor ey!

En Vigo, no sagrado,baylava corpo delgado:Amor ey!

Baylava corpo velido,que nunca ouver’ amigo:Amor ey!

Baylava corpo delgado,Que nunca ouver’ amado:Amor ey!

Que nunca ouver’ amigo,Ergas no sagrad’, en Vigo:Amor ey!

Que nunca ouver’ amado,Ergas en Vigo, no sagrado:Amor ey!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 143

Martin de Caldas

O sobrenome Caldas é comum à Galiza e a Portugal, oque dificulta a identificação do trovador. O mais provável, po-rém, é que seja um jogral de origem galega.

Sua produção cultural parece estar situada entre o se-gundo e o terceiro quarto do século XIII. Conservam-se des-te autor apenas sete cantigas de amigo.

FOI-S’ UN DIA MEU AMIGO D’AQUI

Foi-s’ un dia meu amigo d’aquitrist’e cuitad’e muit’a seu pesar,por que me quis d’el mia madre guardar,mais eu, fremosa, des que o non vi,non vi depois prazer de nulha ren,nen veerei ja mais, se m’el non ven.

Quando s’el ouve de mi a partir,chorou muito dos seus olhos entone foi coitado no seu coraçon,mais eu, fremosa, por vos non mentir,non vi depois prazer de nulha rennen veerei já mais, se m’el non ven.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 145

Martim Soares

Trovador português originário de Riba de Lima, noMinho, é considerado grande trovador. Irmão do tambémtrovador Garcia Soares, casou-se com Maria, com quem tevea Johan Martins, também trovador.

Nasceu por volta de 1200 e conheceu, na cortecastelhana de Fernando III, os trovadores Pero da Ponte e PaiSoares de Taveirós, entre outros. São-lhe atribuídas perto de40 cantigas (22 de amor, 16 de escárnio e uma tenção, além deoutras de origem duvidosa). Morreu por volta de 1260.

NON OUSO DIZER NULHA REN

Non ouso dizer nulha rena mha senhor e sen seu bennon ei mui gram coyt’ a perder.Vedes que coyta de sofrer:

d’amar a quen non ousareifalar; pero non perdereigran coita sem seu ben fazer.Vedes que coyta de sofrer!

Por gran coita per-tenho tald’amar a quen nunca meu malnen mha coita ei a dizer.Vedes que coita de sofrer!

E vejo que moyro d’ amorE pero vej’ a mha ssenhorNunca o per min á a ssaber.Vedes que coyta de sofrer!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 147

Mendinho

A documentação sobre esse trovador é escassa. Delenos chegou uma única cantiga, considerada pelos especialistascomo uma das mais belas cantigas de amigo documentadas.

Por referências nela contidas, acredita-se que sejagalego da região de Vigo.

SEDIA-M’ EU NA ERMIDA DE SAN SIMIÓN

Sedia-m’ eu na ermida de San Simióne cercaron-mi-as ondas que grandes son.Eu atendend’ o meu amigu’! E verrá?

Estando na ermida, ant’ o altar,cercaron-mi-as ondas grandes do mar.Eu atenden[d’ o meu amigu’! E verrá?]

E cercaron-mi-as ondas que grandes son:non ei [i] barqueiro nen remador.Eu [atendend’ o meu amigu’! E verrá?]

E cercaron-mi-as ondas do alto mar:non ei [i] barqueiro nen sei remar.Eu aten[dend’ o meu amigu’! E verrá?]

Non ei i barqueiro nen remador:morrerei [eu], fremosa, no mar maior.Eu aten[dend’ o meu amigu’! E verrá?]

Non ei [i] barqueiro nen sei remar:morrerei eu, fremosa, no alto mar.Eu [atendend’ o meu amigu’! E verrá?]

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 149

Nuno Fernandez [Torneol?]

Trovador de origem provavelmente galega, de condiçãocavaleiro, exerceu sua atividade poética durante o segundo terçodo século XIII. De acordo com referências contidas em suascomposições satíricas, pode-se deduzir que esteve ligado à cortecastelã de Alfonso X. Alguns especialistas o identificam comNuno Fernandez de Mirapeixe, e explicam o termo Torneol,que aparece por vezes como se fosse sua alcunha, como umaalteração de tornello (refrão), que figura em nota collociana.

Compôs nove cantigas de amigo (a que se transcreve aseguir é uma variante galaica da pastorela provençal), doze deamor e uma de escárnio.

LEVAD’, AMIGO , QUE DORMIDES AS MANHÃAS FRIAS

Levad’, amigo, que dormides as manhãas frias;todalas aves do mundo d’ amor dizian:leda m’ and’ eu.

Levad’, amigo, que dormide’-las frias manhãas;todalas aves do mundo d’ amor cantavan:leda m’ and’ eu.

Toda-las aves do mundo d’ amor dizian;do meu amor e do voss’ en ment’ avian:leda m’ and’ eu.

Toda-las aves do mundo d’ amor cantavan;do meu amor e do voss’ i enmentavan:leda m’ and’ eu.

Do meu amor e do voss’ en ment’ avian;vós lhi tolhestes os ramos en que siian:leda m’ and’ eu.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)150

Do meu amor e do voss’ i enmentavan;vos lhi tolhestes os ramos en que pousavan:leda m’ and’ eu.

Vós lhi tolhestes os ramos en que siiane lhis secastes as fontes en que bevian:leda m’ and’ eu.

Vós lhi tolhestes os ramos en que pousavane lhis secastes as fontes u se banhavan:leda m’ and’ eu.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 151

Pai Gomez Charinho

Trovador galego, descende de uma linhagem assentada naprovíncia de Pontevedra. Nasceu por volta de 1225, mas somentealcançou projeção ao ser nomeado Almirante do Mar, em 1284.Anterior a esta data, sabemos de sua participação na conquista deSevilha, em 1248, e de sua relação com a corte de Alfonso X. Apartir de 1284, tornou-se uma figura de importância para o reiSancho IV, a quem acompanhou em peregrinação a Santiago.

Supõe-se que exerceu sua atividade poética entre 1248 e1295. São atribuídas a Pai Gomez Charinho vinte e oitocomposições, sendo seis cantigas de amigo, duas de escárnio(uma tenção) e 19 de amor.

Morreu assassinado por Rui Perez Tenório, em 1295.

AS FFROLES DO MEU AMIGO

As ffroles do meu amigobriosas van no navyo.E vanss’ as froresd’ aquí ben con meus amores,idas som as froresd’ aquí ben con meus amores.

As ffrores do meu amadobriosas van no barco.E vanss’ as froresd’aquí ben con meus amores,idas som as froresd’ aquí ben con meus amores.

Briosas van eno navíopara chegar ao ferido.E vanss’as froresd’ aquí ben con meus amores,idas som as froresd’ aquí ben con meus amores.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)152

Briosas van eno barcopera chegar ao fossado.E vanss’as froresd’ aquí ben con meus amores,idas som as froresd’ aquí ben con meus amores.

Pera chegar ao feridoservirmi, corpo velido. E vanss’as froresd’ aquí ben con meus amores,idas som as froresd’aquí ben con meus amores.

Pera chegar ao fossado(de) servirmi, corpo loado. E vanss’as froresd’ aquí ben con meus amores,idas som as froresd’ aquí ben con meus amores.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 153

Pai Soares de Taveirós

Trovador de origem galega, pertenceu à pequenanobreza de seu país. Através de algumas referênciascronológicas, é possível concluir que exerceu sua atividadepoética na primeira metade do século XIII, mais precisamenteno segundo quarto. Provavelmente esteve na corte portuguesade Sancho I, na galega do Conde de Trastámara e na castelhanade Fernando III, onde teria se relacionado com Martim Soarese produzido, com ele, uma tenção. São-lhe atribuídas oitocantigas de amor, três de amigo e dois escárnios.

NO MUNDO NON ME SEI PARELLA

No mundo non me sei parellamentre me for como me vay,ca ja moiro por vós e, ay!mia sennor branca e vermella,queredes que vus retrayaquando vus eu vi en saya?Mao dia me levanteique vus enton non vi fea!

E, mia sennor, des aquel[la]me foi a mi mui mal di’ ay!E vus, filla de don PaayMoniz, e ben vus semellad’aver eu por vós guarvaya?pois eu, mia sennor, d’ alfayanunca de vós ouve nen eivalia d’ ¢a correa.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 155

Pedr’ Eanes Solaz

Unindo todas as informações possíveis, podemosconcluir que foi um trovador galego, nascido provavelmenteem Pontevedra, e que teria exercido sua atividade poéticaem meados do século XIII.

Atribui-se a este poeta quatro cantigas de amigo,duas cantigas de amor e um escárnio, que revelam algumaoriginalidade e capacidades formais dignas de atenção.

EU VELIDA NON DORMIA

Eu velida non dormia,lelia doura,e meu amigo venia,edoi lelia doura.

Non dormia e cuidava,lelia doura,e meu amigo chegava,edoi lelia doura.

E meu amigo venia,lelia doura,e d’ amor tan ben diziaedoi lelia doura.

E meu amigo chegava,lelia doura,e d’ amor tan ben cantava,edoi lelia doura.

Muito desejei amigo,lelia douraque vos tevesse comigo,edoi lelia doura.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)156

Muito desejei amado,lelia doura,que vos tevesse a meu lado,edoi lelia doura.

Leli leli, par Deus, leli,lelia doura,ben sei eu que[n] non diz leli,edoi lelia doura.

Ben sei eu que[n] non diz leli,lelia doura,demo x’ é quen non diz lelia,edoi lelia doura.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 157

Pero da Ponte

Segrel galego, de condição escudeiro, foi um dos autoresmais fecundos da lírica galaico-portuguesa.

De acordo com suas próprias palavras, dedicou a vida àarte de trovar, exercendo sua atividade poética entre 1235 e1275. Neste tempo, esteve assentado nas cortes reais deFernando III e de Alfonso X, ainda que fossem freqüentessuas viagens pelas cortes senhoriais.

Atribui-se a este trovador 53 cantigas, sendo sete de ami-go, sete de amor, quatro prantos, uma tenção, um jogo-par-tido, dois elogios e uma sátira.

SENHOR DO CORPO DELGADO

Senhor do corpo delgado,en forte pont’ eu fuy nado!Que nunca perdi coydadonen afan, des que vus vi.En forte pont’ eu fui nado,senhor, por vos e por mi!

Con est’ affan tan longado,en forte pont’ eu fui nado!Que vus amo sen meu gradoe faç ‘a vos pesar hy.En forte pont’ eu fui nado,senhor, por vos e por mi!

Ay eu, cativ’ e coitado,en forte pont’ eu fui nado!Que servi sempr’ endonadoond’ un ben nunca prendi.En forte pont’ eu fui nado,senhor, por vos e por mi!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 159

Pero Gonçalves de Porto Carreiro

Trovador português, filho de Gonçalo Viegas, oAlfeirão, e de Sancha Perez, segundo consta nos Livros deLinhagens. É membro da família dos Porto Carreiro, que secaracterizou por participação turbulenta em certos aconteci-mentos fundamentais da vida portuguesa medieval e por suarelação com a corte portuguesa e de Castela.

Desenvolveu sua atividade poética no último quarto doséculo XIII, sendo-lhe atribuídas quatro cantigas de amigo.

O ANEL DO MEU AMIGO

O anel do meu amigoperdi-o so lo verde pinoe chor’eu, bela!

O anel do meu amadoperdi-o so lo verde ramoe chor’eu, bela!

Perdi-o so lo verde pino;por en chor’eu, dona-virgo,e chor’eu, bela!

Perdi-o so lo verde ramo,por en chor’eu, dona d’algo,e chor’eu, bela!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 161

Pero Meogo

Provavelmente foi um jogral galego, do qual se formu-lam diversas propostas de identificação. A sua colocação no hi-potético Cancioneiro dos Jograres Galegos reforça a idéia da suanaturalidade galega. Atuou durante a segunda metade do séculoXIII, sem que possamos, contudo, determinar quais eram seuscírculos de relação.

De sua obra constam apenas nove cantigas de amigo, quejuntas apresentam uma espécie de enredo, sendo uma delas dialo-gada entre duas personagens e outra escrita em terceira pessoa.

LEVÓUS’ A LOUÇANA , LEVÓUS’ A VELIDA

Levóus’ a louçana, levóus’ a velida,vai lavar cabelos na fontana fría,leda dos amores, dos amores leda.

Levóus’ a velida, levóus’a louçana,vai lavar cabelos na fría fontana,leda dos amores, dos amores leda.

Vai lavar cabelos na fontana fría,passou seu amigo que lhi ben quería,Leda dos amores, dos amores leda.

Vai lavar cabelos na fría fontana,passa seu amigo que muit’a amava,leda dos amores, dos amores leda.

Passa seu amigo que lhi ben quería,o cervo do monte a augua volvía,leda dos amores, dos amores leda.

Passa seu amigo que a muito amavao cervo do monte volvía a augua,leda dos amores, dos amores leda.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)162

DIGADES, FILHA , MIA FILHA VELIDA

– “Digades, filha, mia filha velida,porque tardastes na fontana fría?”.– “Os amores ei”.

– “Digades, filha, mia filha louçana,porque tardastes na fría Fontana?”.– “Os amores ei”.

– “Tardei, mia madre, na fontana fria,cervos do monte a augua volvían.– Os amores ei.

– Tardei, mía madre, na fria Fontana,Cervos do monte volvían a augua.– Os amores ei.”.

– “Mentis, mía filha, mentis por amigo,nunca vi cervo que volvess’ o rio”.– “Os amores ei”.

– “Mentis, mía filha, mentis por amado,nunca vi cervo que volvess’ o alto”.– “Os amores ei”.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 163

Pero Viviaez

Encontram-se registros deste nome em Portugal e naGaliza. O mais provável, porém, é que fosse galego e quetenha exercido sua atividade poética no terceiro quartel doséculo XIII.

As cantigas de sua autoria que chegaram até nós sãoem número de oito, sendo duas de amor, duas de amigo equatro de escárnio e de maldizer.

POYS NOSSAS MADRES VAN A SAN SIMON

Poys nossas madres van a San Simonde Val de Prados candeas queymar,nos, as meninhas, punhemus d’ andarcon nossas madres, e elas entonqueymen candeas por nos e por sy,e nos meninhas baylaremus hy.

Nossus amigus todus lá hiranpor nos veer, e andaremus nosbayland’ant’eles, fremosas, en cos,e nossas madres, pois que alá van,queymen candeas por nos e por ssy,e nos meninhas [baylaremus hy].

Nossus amigus hiran por cousircomo baylamus, e poderan veerbaylar moças de .... bon parecer;e nossas madres, poys lá queren hir,queymen candeas por nos e por ssy,e nos meninhas [baylaremus hy].

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 165

Roi Fernandiz de Santiago

É o possível autor de sete cantigas de amigo e dezoitode amor. Como muitos dos demais trovadores, é difícilestabelecer a sua origem e realizações durante a vida; no entanto,teria vivido e/ou produzido no segundo terço do século XIII.

Algumas hipóteses afirmam que se tratava de um clérigo-trovador galego; outras o relacionam com Mendinho e MartinCodax por algumas alusões textuais.

QUAND’ EU VEJO LAS ONDAS

Quand’ eu vejo las ondase las muyt’ altas ribas,logo mi veen ondasal cor, pola velyda:maldito se[j]a ‘l mareque mi faz tanto male!

Nunca ve[j]o las ondasnen as altas debrocasque mi non venham ondasal cor, pola fremosa:maldito se[j]a ‘l mare[que mi faz tanto male!].

Se vejo las ondase vejo las costeyras,logo mi veen ondasal cor, pola ben feyta:maldito se[j]a ‘l mare[que mi faz tanto male!].

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 167

Sancho I

Segundo rei de Portugal, nasceu em 1154, em Coimbra, emorreu em 1211 na mesma cidade. Subiu ao trono em dezembrode 1185 e ajudou a firmar a autonomia do Estado Português.Para isso trabalhou no povoamento de terras.

Era ligado a instituições como as Ordens dos Templários e dosHospitalários. Envolveu-se em disputas com a igreja que lhesgrangearam a excomunhão, só sendo perdoado na proximidadede sua morte.

Apreciava a prática de exercícios físicos, dedicando-se a di-versos esportes. Procurou em seu governo incentivar a cultura,ligando-se a artistas, sendo ele próprio compositor de algumascantigas. No entanto, a cantiga que aqui lhe é atribuída é de auto-ria duvidosa, atribuída a Alfonso X por alguns especialistas.

AI EU COITADA ! COMO VIVO EN GRAM CUIDADO

Ai eu coitada! Como vivo en gram cuidadopor meu amigo que ei alongado!

Muito me tardao meu amigo na Guarda!

Ai eu coitada! Como vivo en gram desejopor meu amigo que tarda e non vejo!

Muito me tardao meu amigo na Guarda!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 169

1.Poesia medieval:1.2 Romances

Nota: Os romances a seguir coligidosforam reconstituídos por RamónMenéndez Pidal (Flor nueva deromances viejos. Buenos Aires –México: Espasa Calpe Argentina,1946, p. 58-61 e 122-126).

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 171

ROMANCE DE GERINELDO Y LA INFANTA

– Gerineldo, Gerineldo,paje del rey más querido,quién te tuviera esta nocheen mi jardín florecido.Válgame Dios, Gerineldo,cuerpo que tienes tan lindo.– Como soy vuestro criado,señora, burláis conmigo.– No me burlo, Gerineldo,que de veras te lo digo.– ¿Y cuándo, señora mía,cumpliréis lo prometido?– Entre las doce y la una,que el rey estará dormido. Media noche ya es pasada.Gerineldo no ha venido.“¡Oh, malhaya, Gerineldo,quien amor puso contigo!”– Abráisme, la mi señora,abráisme, cuerpo garrido.– Quién a mi estancia se atreve,quién llama así a mi postigo?– No os turbéis, señora mía,que soy vuestro dulce amigo.Tomáralo por la manoy en el lecho lo ha metido;entre juegos y deleitesla noche se les ha ido,y allá hacia el amanecerlos dos se duermen vencidos.Despertado había el reyde un sueño despavorido.“O me roban a la infantao traicionan el castillo.”Aprisa llama a su pajepidiéndole los vestidos:“¡Gerineldo, Gerineldo,el mi paje más querido!”Tres veces le había llamado,ninguna le ha respondido.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)172

Puso la espada en la cinta,adonde la infanta ha ido;vió a su hija, vió a su pajecomo mujer y marido.“Mataré yo a Gerineldo,a quien crié desde niño?Pues si matare a la infantami reino queda perdido.Pondré mi espada por medioque me sirva de testigo.”Y salióse hacia el jardínsin ser de nadie sentido.Rebullíase la infantatres horas ya el sol salido;con el frior de la espadala dama se ha estremecido.– Levántate, Gerineldolevántate, dueño mío,la espada del rey mi padreentre los dos ha dormido.– ¿Y adónde iré, mi señora,que del rey no sea visto?– Vete por ese jardíncogiendo rosas y lirios;pesares que te vinierenyo los partiré contigo.– ¿Dónde vienes, Gerineldo,tan mustio y descolorido?– Vengo del jardín, buen rey,por ver cómo ha florecido;la fragancia de una rosala color me ha desvaído.– De esa rosa que has cortadomi espada será testigo.– Matadme, señor, matadme,bien lo tengo merecido.Ellos en estas razonesla infanta a su padre vino:– Rey y señor, no le mates,mas dámelo por marido.O si lo quieres matarla muerte será conmigo.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 173

LA AMIGA DE BERNAL FRANCÉS

– Sola me estoy en mi camanamorando mi cojín;¿ quién será ese caballeroque a mi puerta dice: “Abrid”?– Soy Bernal Francés, señora,el que te suele servirde noche para la cama,de día para el jardín.Alzó sábanas de Holanda,cubrióse de um mantellín;tomó candil de oro en manoy la puerta bajó a abrir.Al entreabrir de la puertael dió un soplo en el candil.– ¡Válgame Nuestra Señora,válgame el senõr San Gil!Quien apagó mi candelapuede apagar mi vivir.– No te espantes, Catalina,ni me quieras descubrir,que a un hombre he muerto en la calle,la justicia va tras mí.Le ha cogido de la manoy le ha entrado al camarín;sentóle en silla de platacon respaldo de marfil;bañole todo su cuerpocon agua de toronjil;hízole cama de rosa,cabecera de alhelí.– ¿Qué tienes, Bernal Francés?que estás triste a par de mí?¿Tienes miedo a la justicia?No entrará aquí el alguacil.¿Tienes miedo a mis criados?Están al mejor dormir.– No temo yo a la justicia,que la busco para mí,ni menos temo criadosque duermen su buen dormir.

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– ¿Qué tienes, Bernal Francés? ¡No solías ser así!Otro amor dejaste en Franciao te han dicho mal de mí.– No dejo amores en Francia,que outro amor nunca serví.– Si temes a mi marido,muy lejos está de aquí.– Lo muy lejo se hace cercapara quien quiere venir,y tu marido, señora,lo tienes a par de ti.Por regalo de mi vueltate he de dar rico vestir,vestido de fina granaforrado de carmesí,y gargantilla encarnadacomo en damas nunca vi;gargantilha de mi espada,que tu cuello va a ceñir.Nuevas irán al francésque arrastre luto por ti.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 175

ROMANCE DE LA LINDA ALBA

– ¡Ay, cúan linda que eres, Alba,más linda que no la flor;blanca sois, señora mía,más que los rayos del sol!¡Quién la durmiese esta nochedesarmado y sin temor;que siete años había, siete,que no me desarmo, no!– Dormidla, señor, dormidla,desarmado y sin pavor;Alberto es ido a cazaA los montes de León.– Si a caza es ido, señora,cáigale mi maldición:rabia le mate los perrosy aguilillas el falcón,lanzada de moro izquierdole traspase el corazón.– Apead, conde dos Grifos,porque hace muy gran calor.¡Lindas manos tenéis, conde!¡Ay, cuán flaco estáis, señor!– No os maravilléis, mi vida,que muero por vuestro amor,y por bien que pene y muerano alcanzo ningún favor.– Hoy lo alcanzaréis, don Grifos,en mi lindo mirador.Ellos en aquesto estando,Albertos toca el portón:– ¿Qué es lo que tenéis, señora?¡Mudada estáis de color!– Señor, mala vida paso,pásola con gran dolor,que me dejáis aquí solay a los montes os vais vos.– Esas palabras, la niña,no eran sino traición.– ¿Cúyo es aquel caballoque allá abajo relinchó?

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– Señor, era de mi padre,y envíalo para vos.– ¿Cúyas son aquellas armasque están en el corredor?– Señor, eran de mi hermano,y agora os las envió.– ¿Cúya es aquella lanzaque tiene tal resplandor?– Tomadla, Albertos, tomadla,matadme con ella vos,que aquesta muerte, buen conde,bien os la merezco yo.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 177

2. Poesia brasileira

neomedievalista

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 179

Onestaldo de Pennafort

Poeta e tradutor, nasceu no Rio de Janeiro em 25 dejunho de 1902, filho do Dr. Raimundo de Pennafort Caldas eMaria Luísa da Rocha Caldas. Morreu no Rio de Janeiro em18 de abril de 1987.

Já adulto, iniciou o curso de Direito, que não concluiu.Trabalhou nos Ministérios da Agricultura e da Justiça, noInstituto Nacional de Previdência e no Banco do Brasil.

Colaborou nas revistas Fon-Fon, Careta, Ilustraçãodo Brasil e na Revista do Brasil. Traduziu Shakespeare eVerlaine. Sua obra poética é normalmente classificada comosimbolista, porém, esta classificação é questionável.

Publicou, entre outras obras, Escombros floridos(1921); Perfume & outros poemas (1924); Interior e outrospoemas (1924); Espelho d’água – Jogo da noite (1931); Poesia(1954); Nuvens da tarde (1954); O festim, a dança e adegolação (1960) e Romanceiro (1981).

ROMANCE DOS SETE CAVALEIROS

Ouvide agora, senhores, uma história de pasmar.

Vinham sete cavaleirossua dama disputar.Que ela sendo uma e eles setenão lhes podia bastar.Nem a sete cavaleirosuma só podia amar.Que o coração de uma damasó deve ter um lugar;uma vez ele tomado,a porta se há de fechar,por onde nem mesmo a morte,nem a morte pode entrar.Assim pensam cavaleiros

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que assentam de disputara ver quem vence a pelejae com a dama há de ficar.Correi, correi, cavaleiros,vinde a peleja encetar,que o coração de uma damanão é de muito esperar.Ei-la na torre suspira,suspira por entregarsua mão e sua vidaao que as souber conquistar,que mostre que o seu desejonão pára em só desejar.Antes, que é forte em quererquanto é forte em pelejar.Correi, correi, cavaleiros,vinde a peleja encetar.O mais valente de todoscom a dama há de ficar.Armaram-se os cavaleiros,começam logo a lutar.O primeiro com o segundo,o terceiro com o seu par,o quinto e o sexto, em seguida,põem-se logo a batalhar.Os mais valentes dos paresque vencerem o seu par,com o sétimo cavaleirohão de em seguida lutar.Se for um, se forem mais,quantos hajam de sobrar,o sétimo cavaleirocom eles há de brigar.Armaram-se os cavaleiros,começam logo a lutar.O primeiro com o segundo,o terceiro com o seu par,o quinto e o sexto, em seguida,põem-se logo a batalhar.Mas por igual que eram bravos,todos podem-se igualar.Todos tombam mortos juntosao mesmo tempo e lugar.Tombando mortos os seisao mesmo tempo e lugar,o sétimo cavaleiro

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não tinha com quem brigar.– Ai de mim, que sou valentee não o posso amostrar!Daqueles com quem brigaranem um me poude sobrar!Sem disputar minha dama,como a hei de desejar?Ei-la na torre suspira,suspira por se casar.Sem honras, um cavaleiroComo a pode desposar?Ai de mim, que sou valentee não o posso amostrar!Venham vinte cavaleiros,com eles posso lutar!– Alvíssaras, cavaleiro,correi, correi a escutar.Nem são os anjos do céu,nem as sereias do mar.É a dama dos vossos sonhosque convosco quer falar.– Se sois tão valente assime provas me quereis dar,arrancai com este punhalo coração do lugar.Que se ele for amante,Melhor há de me falar.– Ai de mim, que sou valentee não o posso amostrar!Sem o coração que tenho,Como vos podia amar?Mil corações que tivera,Não vô-los iria eu dar.Guardá-los-ia comigopara melhor vos amar.Palavras não eram ditas,escurecia-se o ar.E nunca mais ninguém poudea torre e a dama avistar.O cavaleiro era um anjoque o demo estava a atentar.Aos outros vencer pudera,que se deram a matar.Mas o último cavaleiro,salvou-o o modo de amar.

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ROMANCE DO VILÃO

Escudeyro, pois armas queredes,dized’ ora con quen comedes?

Era uma vez uma dama,um cavaleiro e um vilão.Novas à terra chegaramDos mouros contra o cristão.Grandes luzes no castelo,adeuses aos que se vão.O cavaleiro partiramontado em seu alazão.A cavalgada que o segueainda se escuta no chão.A castelã no casteloficara, não fora, não.Um vilão por lá passavacom feia e porca tenção.Altas horas, no casteloestranhas cousas se dão.– A mão, Senhora, primeiro,dái que eu beije a vossa mão.É o vosso esposo que volta,à dor não resistiu, não.– Esposo amado, que estranhotanta consideração!Tomai a mão, que ela é vossa,como outras cousas o são.– Senhora minha, que sedesenti na separação!A vossa boca, que o vinhotão fresco assim não é, não!– Esposo amado, que estranhotanta consideração!Tomai a boca, que é vossa,como outras cousas o são.– Senhora minha, que fomesenti na separação!

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Os vossos peitos são frutos,frutos verdes na sazão!– Esposo amado, que estranhotanta consideração!Tomai os peitos, são vossos,como outras cousas o são.– Senhora minha, que noitede tão má escuridão!Guiai-me neste caminho,que eu por mim não vejo, não.– Vassalos, os meus vassalos,salvai-me de mau vilão!Meteu-se de meu esposo,comigo teve tenção.Nos modos que me falavanotava transformação.Julgava que eram excessosdepois da separação.Mas quando me acometia,logo vi que era vilão.Senão, bem que enxergariaatravés da escuridão.

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ROMANCE DA ROSA

La rose que voicy ressemble à ceste rose.

– Lindos olhos tem a belade enlouquecer o seu rei.Verdes, verdes como o mar,com o mar os compararei.

O cavaleiro juravapela lei e pela grei.E a donzela ria, ria,mas porque ria, não sei.

– Belas mãozinhas de fada,tão brancas nunca avistei!Mais macias do que a seda,com a seda as compararei.

O cavaleiro juravapela lei e pela grei.E a donzela ria, ria,mas porque ria, não sei.

– Cabelos da cor do ouro,cada fio é ouro de lei.São como raios de sol,com o sol os compararei.

O cavaleiro jurava,pela lei e pela grei.E a donzela ria, ria,mas porque ria, não sei.

– Boca mais fresca que um frutoque está dizendo “mordei”.Doce, doce como o mel,com o mel a compararei.

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O cavaleiro juravapela lei e pela grei.E a donzela ria, ria,mas por que ria, não sei.

E eis que uma rosa ali perto,abrirei, não abrirei,tímida abriu, parecendo...ora, o que não vos direi.

Como a folha leva-a o vento,como a guerra leva o rei,no jardim abriu-se a rosa,mas porque abria, não sei.

– Linda rosa, esta rosinha,rosa do jardim do rei,tão corada, tão medrosa,com outra a compararei...

O cavaleiro juravapela lei e pela grei.E a donzela ria, ria,mas porque ria, eu bem sei.

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ROMANCE DO CONDE ARAGONÊS

Alli nace un arboledoque azucena se llamaba.Qualquier mujer que la comeluego se siente preñada.

Volta da caça contentemai-la a sua companhia,o bom Conde Aragonês,capitão de cortesia.Volta da caça contentecom a caçada que fazia.Maior, porém, do que tudovinha a ser sua alegriade tornar ao seu casteloonde a condessa estaria.Volta da caça contente(mas para que voltaria!)para ver sua condessanos braços (quem tal diria!)nos braços do seu vassalo,na casa da estudaria.Ao vê-lo entrar, a condessaMuito enxuta lhe dizia:– Esperai o bom do Conde,que eu aqui esperariaa ver até onde chegadeste vassalo a ousadia.Torna-lhe o conde raivoso:– Esperar esperaria,para ver a minha espadaaté onde chegaria!Deu-lhe três golpes tão fortesque a casa toda tremia.Deu-lhe uma morte tão tristeque em noite tornou-se o dia.– Esperai o bom do conde,que eu aqui esperariapara ver o seu amoraté onde chegaria!

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ROMANCE DAS TRÊS IRMÃS OU MIRAMAR

C’erano tre zitelle e tutti tre d’amore.

Nós éramos três irmãsnum castelo ao pé do mar.A primeira era Marfida,a segunda Guiomar.A terceira por desgraçaMiramar se foi chamar.Nós éramos três irmãs,todas las três por casar!A primeira tinha um colopara um punhal se cravar.A segunda tinha uns braços,oh, quem m’os dera a abraçar!A mais formosa de todas,tinha os olhos cor do mar.Logo por desgraça delaMiramar se foi chamar!Mira, mira, que remira,passa os dias a miraras ondas que vão e vêmnas águas verdes do mar.Nós éramos três irmãsnum castelo ao pé do mar!Cavaleiros que passavamno seu lindo galopar.Cavaleiros que passavam,Marfida que ia a espiar.Tanto espiou, que algum diaum deles que ia a apear,tão bem que a mão lh’a pedia,que ela a não soube negar.Montou logo na garupa,puseram-se a galopar.Passava mais de ano e dia

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que tinham ido a casar,em derredor do castelose escuta um belo cantar.O trovador que trovava,Guiomar que ia a escutar.A voz que entrava no ouvido,A saia de lhe apertar!Chamam dois xastres, a saianão n’a podem consertar.Só um frade é que o podia,que o remédio era casar.Tão cheinha que ela estavadas trovas de aquel trovar!Chamam um frade, ali mesmomuito bem que os vai juntar.Miramar, a mal fadada,estava mirando o mar.Passam dias, passam noites,passam anos de contar,Miramar, a mal fadada,estava mirando o mar.Arde o castelo com o fogoque o demo foi a atear.Miramar, a mal fadada,estava mirando o mar!

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CANTAR DE AMIGO

Et todolos que me veem preguntar qual est a dona que eu quero bem.

Fiz esta canção para a minha amigabem simplesmentecomo o oleiro faz o seu vasode cera nova ou de argila antiga.

Se alguém vier perguntar-me por acasopara quem fiz esta cantiga,eu o olharei nos olhos tranqüïlamentee em meus olhos ele há de lero nome da minha amiga!

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Martins Fontes

José Martins Fontes, poeta e médico brasileiro, nasceu emSantos, Estado de São Paulo, em 23 de junho de 1884, ondefaleceu em 25 de junho de 1937. Enquanto menino, fez os estudosprimários com a mãe, Dona Isabel Martins, e o pai, Dr. SilvérioFontes, médico, sociólogo e jornalista. Em 1º de maio de 1892,estréia como orador lendo, no “Centro Socialista”, um hino aCastro Alves. Concluídos os estudos em escolas ginasianas, em1901 matricula-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.Durante os anos de estudante, trabalhou na Gazeta de notícias,n’O País, na revista Careta e em outros periódicos.

Doutorando-se, inicia sua carreira como interno na ClínicaDr. Juliano Moreira no Hospital dos Alienados, em 1906. Em1908 toma parte, como médico, na Comissão de Obras do Acre,sob a direção de Bueno de Andrade. E em 1910 é designadochefe da Assistência Escolar da Prefeitura Carioca, auxiliar deOsvaldo Cruz na profilaxia urbana do Distrito Federal.

Funda, com Olavo Bilac, uma Agência Americana, em 1914,para serviço de propaganda dos produtos brasileiros em Paris,Havre, Hamburgo e Nova Iorque. Volta a residir em Santos em1915, onde em 1917 se casa com Dona Nicota Neto. Em 1924 éeleito para a Academia das Ciências de Lisboa. E acompanhaJúlio Prestes em viagem que este, então eleito Presidente daRepública, fez à Europa e aos Estados Unidos em 1930.

Entre seus livros, contam-se: Verão, Arlequinada (de cujarepresentação toma parte, em 1922), Vulcão, As cidades eternas,Volúpia, Rosicler, A flauta encantada, Sombra, silêncio e sonhoe Sol das almas.

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SOLAU

Fez umas trovas de amorPara mim, o meu amigo,Que, com franqueza, vos digoQue não sei de trovadorCapaz de maior primor!

Fez umas liras no sonQue sacon mi coraçon.

Muito bem soube trovarAs desventuras que sinto,Que eu, certo, melhor não pinto,Com as tintas do meu pesar,A dor que me faz chorar.

Fez umas liras no sonQue sacon mi caraçon.

Agenor, folgo em dizerO bem que tu me fizeste,O consolo que me desteLoando o meu padecer,Que me dá mágua e prazer.

Com as liras que no teu sonMi sacon o coraçon.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 193

DON GALAOR

(A Jaime Franco)

Sonho que sou Lisuarte!Sinto que sou Galaor!Um Gran Cavalleiro da ArteE Gran Príncipe do Amor!A glória do meu bravorPelo mundo se reparte!Sonho que sou Lisuarte!Sinto que sou Galaor!

Flammeja o meu estandarte!Fulge a minha Escalibor!Que, a pender do talabarte,Lembra um raio furta-cor!E, por Vós, clara Senhor!Irman de Iseu e de Isarte,Sonho que sou Lisuarte!Sinto que sou Galaor!

O tristor de Dom Duarte,Se espelha no meu tristor,Mas a paz, em toda a parte,Meu olhar consegue impor!E, heróico, seja onde for,Chantando a Cruz-Baluarte,Sonho que sou Lisuarte!Sinto que sou Galaor!

OffertaBrancaflor! para adorar-teE servir-te, Brancaflor!Sonho que sou Lisuarte!Sinto que sou Galaor!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)194

PLANH POR EL REY DON DENIS

Os mil trobadores, que trobam de amor– Gran dó e gran coita deviam haver –Por terem perdido seu Rey Trobador,Que acaba, trobando, do agora morrer.

Cantares d’Amigo, Mansobres, Canções,Donaires, Rimances do Grande Amadis!E’ morto o Troveiro das velhas Tenções!Em planh vo-lo eu conto: morreu Dom Denis!

Garridas, louçanas, fremosas, chorai!– Oriana, Genevra, Guimar, Brancafrôl!Em prantos e rimas soltai vosso guay:E’morto o Troveiro do tempo da frôl!

– “Amigos, Amigos, eu morro de Amor” –– “Ay, flores! Ay, flores! dos pinos gentis!” –Assim celebrastes a Terra Gensor!Assim vós trovaveis, El Rey Dom Denis!

Os metros galantes dos bons provençaes,– Balleta, Descordo, Rondel, Sirventês,Embora digades que são sem rivaes,Melhor os fazedes em bom português!

Devemos, carpindo, fazer o louvorDo pai piadoso do meu Portugal,Cantando as soidades do Dom Lavrador,De quem ninguém poude dizer nenhum mal.

Aquelle que troba, sabendo trobar,Aquelle que troba, sabendo o que diz,A planh tôe agora, pranteie o Sem-Par,De todolos homens, –El Rey Dom Denis!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 195

Guilherme de Almeida

Guilherme de Andrade e Almeida, um dos mais conhecidosdos nossos poetas, nasceu em Campinas, São Paulo, em 1890 efaleceu em São Paulo, em 11 de julho de 1969.

Estudou na Faculdade de Direito em São Paulo,terminando o curso em 1912. Iniciou-se no jornalismo, escrevendoem vários jornais de seu Estado.

Embora tenha participado da Semana de Arte Modernade 1922, sua obra se caracteriza por inegável inspiração romântica,pela habilidade na elaboração de rimas e ritmos poéticos e pelopreciosismo verbal.

Em 1930 passou a ocupar a cadeira de número 15 daAcademia Brasileira de Letras. Foi agraciado, em 1959, com otítulo de “ Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Também foi membroda Academia Paulista de Letras e do Instituto Histórico eGeográfico de São Paulo.

Guilherme de Almeida possuía o seu próprio critérioe suas próprias normas, singularizadoras de sua técnica doverso livre.

Foi o autor, entre outros, de: Nós (1917); A dança dashoras (1919); Messidor / Era uma vez (1920); A frauta que euperdi (1924); Meu / Raça (1925); Simplicidade (1929); Cartaà minha noiva / Você (1931); Pequeno romanceiro (1957) eRua (1961).

Além de poeta, foi tradutor de obras como: Eu e você,de Paul Géraldy (1932); Flores das flores do mal, de CharlesBaudelaire (1944), e Entre quatro paredes, de Jean-PaulSartre (1950). Foi também ensaísta, colaborando com Oswaldde Andrade em Théâtre brésilien (1916) e em Do sentimentonacionalista na poesia brasileira (1926). Escreveu obras emprosa como: O meu Portugal (1933); A casa (1935) eHistórias talvez (1948).

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)196

PASSAI...

“Levad’ amigo, que dormides as manhãas frias;todalas aves do mundo d’ amor dizian: leda m’ and’ eu.” (Nuno Fernandez Torneol)

Passai, lembranças, que passais pelas tardes claras;todas as tardes de amor por mim já passaram:

só fiquei eu.

Passai, lembranças, que passais pelas claras tardes:das tardes todas de amor de que vos lembrardes

só fiquei eu.

Todas as tardes de amor por mim já passaram:das sombras todas que então na sombra deixaram

só fiquei eu.

Das tardes todas de amor de que vos lembrardes,dos restos todos de dor das suas saudades

só fiquei eu.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 197

EU, ESQUECIDO ...

“Aí eu coitada! Como vivo em gram cuidado por meu amigo que hei alongado! Muito me tarda o meu amigo na Guarda!” (El-rei Dom Sancho I)

Eu, esquecido!Como vivo só chorandopor um passadoque vou recordando!Muito esta vidame custa a mim ser vivida!Eu, esquecido!Como vivo só morrendopor um passadoque vou revivendo!Muito esta vidame custa a mim ser vivida!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)198

Ó SOMBRAS...

“Ai, flores, ai, flores do verde pino,se sabedes novas do meu amigo?Ai,Deus, e u é?”(El-rei Dom Denis)

Ó sombras, ó sombras do esquecimento,que novas trazeis do meu pensamento? (Meu Deus, onde estás?)

Ó sombras, ó sombras do amor vivido,que novas trazeis do tempo perdido? (Meu Deus, onde estás?)

Que novas trazeis do meu pensamento,daquele que andou nas asas do vento? (Meu Deus, onde estás?)

Que novas trazeis do tempo perdido,daquele por quem sou tão perseguido? (Meu Deus, onde estás?)

– As novas que trago? O teu pensamentojá nada mais é que arrependimento. (Meu Deus, onde estás?)

As novas que trago? O tempo perdidoé o único que não foi esquecido. (Meu Deus, onde estás?)

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 199

À TOA

“O anel do meu amigoperdi-o so lo verde pinoe chor’eu, bela!”(Pedro Gonçalves Porto Carreiro)

O fio do meu destinopartiu-se no teu caminho e vou à toa.

O fio do meu passadopartiu-se na tua estrada e vou à toa.

Partiu-se no teu caminho;por isso tu não és minha e vou à toa.

Partiu-se na tua estrada;por isso vou desnorteado e vou à toa.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)200

AS ANDORINHAS

“Ai estorninho do avelanal!Quando cantades vós, moir-eu;e pen’ e d’amores ei mal”.(Ayras Nunes, clérigo)

Ai andorinhas do meu beiral!Quando chegais aqui sofro eu,que o bem que trazeis é o meu mal.

Ai andorinhas do meu beiral!Vindes fazer o ninho onde euenterro o meu tédio mortal!

Ai andorinhas do meu beiral!Enquanto sois sempre outras, eusou eu, sempre um só, sempre igual.

Ai andorinhas do meu beiral!Sois reticências no ar, quando eunão sou mais que um ponto final.

Ai andorinhas do meu beiral!Quando partis daqui, fico eu,e o bem que deixais é o meu mal.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 201

O GESTO

“So lo ramo verde frolidovodas fazem a meu amigoe choran olhos d’amor”.(Ayras Nunes, clérigo)

Houve um gesto de mão amigana paisagem da minha vida, mas era um gesto de adeus.

Acenando no alto e de longe,parecia céu e horizonte, mas era um gesto de adeus.

Ele fez florir o caminhodesolado do meu destino, mas era um gesto de adeus.

Fez cantar ao mesmo compassodo meu coração o meu passo, mas era um gesto de adeus.

Sua sombra foi luz que envolve,sua luz foi sombra que acolhe, mas era um gesto de adeus.

E pensei poder alcançá-lo,e atirei as mãos para o alto, mas era um gesto de adeus.

E baixaram as mãos vaziassob o gesto que prometia, mas era um gesto de adeus.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)202

SENHORA SAUDADE

“ Sedia la fremosa seu sirgo torcendo,sa voz manselinha fremoso dizendocantigas d’amigo”.

(Estevam Coelho)

Estava a Saudade seu livro relendo,a voz de mansinho saudosa dizendo palavras de outrora.

Estava a Saudade seu livro folheando,a voz de mansinho saudosa lembrando palavras de outrora.

– Senhora Saudade, bem sei eu que vedesmeus olhos chorando no livro em que ledes palavras de outrora.

Bem sei eu que ledes, Senhora Saudade,no livro da minha feliz mocidade palavras de outrora.

– Tão pouco vivestes, e tendes saudade!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 203

DESTINO

“Sedia-m’eu na ermida de San Simone cercaram-m’as ondas que grandes son:e eu attendendo o meu amigo,e eu attendendo o meu amigo...”.

(Meendinho)

Fechei-me na paz do meu coraçãoe cercaram-me as ondas da inspiração:e eu entendo o meu destino,e eu entendo o meu destino...

Estando fechado dentro de mim,cercaram-me os sonhos que são sem fim:e eu entendo o meu destino,e eu entendo o meu destino...

E cercaram-me as ondas da inspiração:e não sei sair do meu coração:e eu entendo o meu destino,eu entendo o meu destino...

Cercaram-me os sonhos que são sem fim,e não sei sair de dentro de mim:E eu entendo o meu destino,e eu entendo o meu destino...

E não sei sair do meu coração:morrerei sozinho de solidão:E eu entendo o meu destino,e eu entendo o meu destino...

E não sei sair de dentro de mim;morrerei feliz por morrer assim:E eu entendo o meu destino,e eu entendo o meu destino...

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)204

“E NVOI ”

“El-rei de Portugalebarcas mandou lavrare… e lá irá nas barcas migo,mia filha, o voss’amigo”.(João Zorro, jogral d’el-rei)

El-rei dom Idealversos mandou lavrar:e lá vai, cheio de medo,em meus versos, meu segredo.

El-rei, era uma vez,versos mandou fazer:e lá vai, cheio de medo,em meus versos, meu segredo.

Versos mandou lavrare no mundo os deixar:e lá vai, cheio de medo,em meus versos, meu segredo.

Versos mandou fazere no mundo os perder:e lá vai, cheio de medo,em meus versos, meu segredo.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 205

Manuel Bandeira

Manuel Bandeira, natural do Recife (1886) mas radicadono Rio de Janeiro, onde viria a falecer em 1968, foi um dos maisconhecidos poetas do Modernismo brasileiro, além de ter sidoensaísta e historiador da literatura, universal e nacional. Mas oque nos interessa ressaltar no momento é que a sua obra apresentaa assimilação de várias tendências estéticas, e até mesmo dalição dos trovadores medievais galaico-portugueses.

Suas primeiras poesias apresentam-se impregnadas detraços parnasianos e simbolistas, bem como românticos, comose percebe em A cinza das horas (1917), Carnaval (1919) eRitmo dissoluto (publicado na primeira edição das Poesiascompletas, de 1924). A partir de Libertinagem (1930), imprimiriafeições iconoclastas, modernistas, à sua obra, dando a lumeEstrela da manhã (1936), Opus 10 (1952), Lira doscinqüent’anos (na 3a ed. das Poesias completas, de 1944),Belobelo (na 3a ed., de 1958), e Mafuá do Malungo (1948).

Os principais temas por ele explorados ligam-se à nostalgiada infância e à condição solitária, não faltando críticos biografistasque perceberam nos seus poemas reflexos, transfigurados embora,da experiência da tuberculose e suas seqüelas, com a sombra damorte iminente a suscitar-lhe desânimo e tristeza. Ele próprio otestemunha no autobiográfico Itinerário de Pasárgada, onde dizter vivido “sempre provisoriamente”, mas por muitos anos, apósa manifestação da doença. Fazendo um balanço da sua vida nestaobra memorialista, conclui por lembrar o crítico Otto MariaCarpeaux, que via na sua poesia um percurso que partiria “davida inteira que poderia ter sido e não foi” para outra vida quefora ficando “cada vez mais cheia de tudo”.

Enfim, a obra do poeta caracteriza-se pelo individualismo,e até pelo egocentrismo, mesmo ao enfocar aspectos do social;como também pela auto-reflexibilidade, destacando, por exemplo,a intenção demolidora dos modernistas com relação aos aspectos

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)206

CANTIGA

Nas ondas da praiaNas ondas do marQuero ser felizQuero me afogar.

Nas ondas da praiaQuem vem me beijar?Quero a estrela-d’alvaRainha do mar.

Quero ser felizNas ondas do marQuero esquecer tudoQuero descansar.

da lírica consagrados pela tradição.Como professor, crítico e historiador da literatura, possuía

fecundo conhecimento das literaturas portuguesa, brasileira egalego-portuguesa, tornando-se-lhe inclusive, como veremos,familiares as cantigas dos Cancioneiros arcaicos. Assim é que,dominando os meios e processos expressivos tradicionais, bemcomo as conquistas da poesia modernista, soube, através do seutalento e virtuosismo, recriar a tradição e assegurar para si umdestacado lugar na história da poesia brasileira.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 207

COSSANTE

Ondas da praia onde vos vi,Olhos verdes sem dó de mim,Ai Avatlântica!

Ondas da praia onde morais,Olhos verdes intersexuais.Ai Avatlântica!

Olhos verdes sem dó de mim,Olhos verdes, de ondas sem fim,Ai Avatlântica!

Olhos verdes, de ondas sem dó,Por quem me rompo, exausto e só,Ai Avatlântica!

Olhos verdes, de ondas sem fim,Por quem jurei de vos possuir,Ai Avatlântica!

Olhos verdes sem lei nem rei,Por quem juro vos esquecer,Ai Avatlântica!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)208

CANTAR DE AMOR

Quer’eu en maneyra de proençal,Fazer agora hum cantar d’amor...

D. Dinis

Mha senhor, com’oje dia son,Atan cuitad’e sen cor assi!E par Deus non sei que farei i,Ca non dormho á mui gran sazon.Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,Meu coraçon non sei o que ten.

Noit’e dia no meu coraçonNulha ren se non a morte vi,E pois tal coita non mereci,Moir’eu logo, se Deus mi perdon.Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,Meu coraçon non sei o que ten.

Des oimais o viver m’é prison:Grave di’aquel en que naci!Mha senhor, ai rezade por mi,Ca per’ço sen e perç’a razon.Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,Meu coraçon non sei o que ten.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 209

CANTIGA DE AMOR

Mulheres neste mundo de meu DeusTenho visto muitas – grandes, pequenas,Ruivas, castanhas, brancas e morenas.E amei-as, por mal dos pecados meus!Mas em parte alguma vi, ai de mim,Nenhuma que fosse bonita assim!

Andei por São Paulo e pelo Ceará(Não falo em Pernambuco, onde nasci),Bahia, Minas, Belém do Pará...De muito olhar de mulher já sofri!Mas em parte alguma vi, ai de mim,Nenhuma que fosse bonita assim!

Atravessei o mar e, no estrangeiro,Em Paris, Basiléia e nos Grisões,Lugano, Gênova por derradeiro,Vi mulheres de todas as nações.Mas em parte alguma vi, ai de mim,Nenhuma que fosse bonita assim!

Mulher bonita não falta, ai de mim!Nenhuma porém, tão bonita assim!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 211

Cecília Meireles

Uma das maiores glórias da poesia brasileira, nasceu noRio de Janeiro, em 1901, aí falecendo em 1964. Professoraprimária aos 16 anos, estudou violino, canto, chegando aingressar no Conservatório Nacional de Música. EstudouFilosofia e Literatura. Publicou seu primeiro livro, Espectros,em 1919. No início da década de 20, aproximou-se do grupotradicionalista e católico que tinha na revista Festa seu principalveículo de expressão. Em 1930 começou a dirigir a página deeducação do Diário de notícias.

Em 1934 criou uma biblioteca infantil, pioneira no país.De 1935 a 1938 lecionou literatura luso-brasileira e técnica ecrítica literária na recém-criada Universidade do DistritoFederal. Seu primeiro grande livro, Viagem, foi publicado em1938, premiado pela Academia Brasileira de Letras. No anoseguinte, fez uma série de viagens pela América Latina, Índia(onde escreveu o poema Elegia a Gandhi) e Israel, atétransferir-se para os Estados Unidos, onde lecionou literaturae folclore na Universidade do Texas. Trabalhou também comojornalista no Observador econômico e financeiro.

Poetisa conhecida internacionalmente, seus livros foramtraduzidos em várias línguas. Lírica e intimista, abordou emsua poesia os temas da fugacidade do tempo, da precariedadedas coisas, do amor, da morte, da eternidade. Seus principaislivros de poesia são: Vaga música (1942), Mar absoluto (1945),Retrato natural (1949), 12 noturnos da Holanda (1952),Romanceiro da Inconfidência (1953), Canções (1956),Poemas escritos na Índia (1961) e Solombra (1963).

Escreveu também memórias: Olhinhos de gato(1940), livros infantis: Giroflê, giroflá (1956), e crônicas:Escolha seu sonho (1964). Traduziu autores como GarcíaLorca (Bodas de sangue, Yerma), Virginia Woolf (Orlando)e Ibsen (Peer Gynt). Em 1994 foi publicada uma nova ediçãode sua obra, Poesia completa, revista na edição comemorativado centenário de nascimento, de 2001.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)212

ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA

ROMANCE LXIII OU DO SILÊNCIO DO ALFERES

“Vou trabalhar para todos!”– disse a voz no alto da estrada.Mas o eco andava tão longe!E os homens, que estavam perto,não repercutiam nada …

“Bebamos, pois, ao futuro!”– exclamara na pousada.Todos beberam com ele,todos estavam de acordo.E agora não sabem nada.

“Levai bem pólvora e chumbo!”– disse a voz aos da boiada.Mas o rosilho passava,e os homens riam-se dela,sem lhe responderem nada.

“Quem me segue? Que me querem?”– pergunta a voz espantada.Mas o traidor escondidoe as sentinelas esquivasnão lhe esclarecem mais nada.

Já se afastam os amigos,e já não tem mais amada.Leva uma dobla no bolso,leva uma estrela no sonho,e uma tristeza sem nada.

(“Ah se eu me apanahasse em Minas…”)– suspira a voz fatigada.Mas largo é o rio na serra!“Quem tivesse uma canoa …”(Não servira para nada …)

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 213

(Já vão subindo os algozes,com duros passos na escada.No bacamarte que empunha,há quatro dedos de chumbo,porém não dispara nada.

Tanto tempo na masmorra!Tanta coisa mal contada!Os outros têm privilégios,amigos, ouro, parentes…Só ele é que não tem nada.

E vós bem sabeis, ó Vilas,e tu bem sabes, estrada,quem galopava essa terra,quem servia, quem sofria,por quem não fazia nada!

Dizem que por sua línguaanda a terra emaranhada…Pois quem quiser faça agoraperguntas sobre perguntas,– que já não responde nada.

Já lhe vão tirando a vida.Já tem a vida tirada.Agora é puro silêncio,repartido aos quatro ventos,Já sem lembrançade nada.)

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)214

ROMANCE LXXIII OU DA

INCONFORMADA MARÍLIA

Pungia a Marília, a bela,negro sonho atormentado:voava seu corpo longe,longe, por alheio prado.Procurava o amor perdido,a antiga fala do amado.Mas o oráculo dos sonhosdizia a seu corpo alado:“Ah, volta, volta Maríliatira-te desse cuidado,que teu pastor não se lembrade nenhum tempo passado…”E ela, dormindo, gemia:“Só se estivesse alienado!”

Entre lágrimas se erguiaseu claro rosto acordado.Volvia os olhos em roda,e logo, de cada lado,piedosas vozes discretasdavam-lhe o mesmo recado:“Não chores tanto, Marília,por esse amor acabado:que esperavas que fizesseo teu pastor desgraçado,tão distante, tão sozinho,em tão lamentoso estado?’A bela, porém, gemia:“Só se estivesse alienado!”

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 215

E a névoa da tarde vinhacom seu véu tão delicadoenvolver a torre, o monte,o chafariz, o telhado…Ah, quanta névoa de tempolongamente acumulado…Mas os versos! Mas as juras!Mas o vestido bordado!Bem que o coração dizia– coração desventurado –“Talvez se tenha esquecido …”“Talvez se tenha cansado …”Seu lábio, porém, gemia:“Só se estivesse alienado!”

envolver a torre, o monte,o chafariz, o telhado …Ah quanta névoa de tempolongamente acumulado …mas os versos! mas as juras!Mas o vestido bordado!Bem que o coração dizia– coração deventurado –“talvez se tenha esquecido…”“talvez se tenha cansado…”Seu lábio, porém, gemia:“só se estivesse alienado!”

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)216

MIRACLARA DESPOSADA

Mãos de coral dentro da água,na tina, entre o sol e o sal,Miraclara vai lavandoo seu antigo enxoval.

Ai, doce mágoaver o futuro passar!Libélulas de esmeraldavêem Miraclara lavar.

Mãos de coral dentro da água,na tina, entre o sal e o sol,Miraclara torce a nuvemcintilante do lençol.

O azul que dorme redondonuma bacia de prataé do anil do próprio céuque ali dentro se retrata.

Miraclara, sal e sol,Miraclara, sol e sal,canta e lava, lava e cantacom uma dourada garganta,defronte à minha janela.

E à luz da manhã levantaa sua colcha amarelanas destras mãos de coral.

Quem viu colcha igual àquela,como um grande girassolnum canteiro de cristal!

Em redor de Miraclaradançam borboletas:brancas, e encarnadascom riscas pretas.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 217

CANTAR DE VERO AMOR

Assim aos poucos vai sendo levadaa tua Amiga, a tua Amada!

E assim de longe ouvirás a cantigada tua Amada, da tua Amiga.

Abrem-se os olhos – e é de sombra a estradapara chegar-se à Amiga, à Amada!

Fechem-se os olhos – e eis a estrada antiga,a que levaria à Amada, à Amiga.

(Se me encontrares novamente, nadate faça esquecer a Amiga, a Amada!)

Se te encontrar, pode ser que eu consigaser para sempre a Amada Amiga.

II

E assim aos poucos vai sendo levadaa tua Amiga, a tua Amada!

E talvez apenas uma estrelinha sigaa tua Amada, a tua Amiga.

Para muito longe vai sendo levada,desfigurada e transfigurada.

sem que ela mesma já não consigadizer que era a tua profunda Amiga,

sem que possa ouvir o que tua alma brada:que era tua Amiga e que era tua Amada.

Ah! do que disse nada mais se diga!Vai-se a tua Amada – vai-se a tua Amiga!

Ah! do que era tanto, não resta mais nada...Mas houve essa Amiga! mas houve essa Amada!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)218

CANTAR GUAIADO

Também cantarei guaiado– ai, verde terra! ai, verde mar! –por haver buscado tantoe ter tão pouco que amar!

Morrerei sem ter contado– ai, verde terra! ai, verde mar! –quantas bagas do meu prantoficam no mundo a rolar.

Mas em meu lábio cerrado– ai, verde terra! ai, verde mar! –fica o vestígio do canto,ai!do grande canto guaiadopara quem o interpretar...

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 219

A AMIGA DEIXADA

Antigacantigada amigadeixada.

Musgo da piscina,de uma água tão fina,sôbre a qual se inclinaa lua exilada.

Antigacantigada amigachamada.

Chegara tão perto!Mas tinha, decerto,seu rosto encoberto...Cantava – mais nada.

Antigacantigada amigachegada.

Pérola caídana praia da vida:

primeiro, perdidae depois – quebrada.

Antigacantigada amigacalada.

Partiu como vinha,

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)220

leve, alta, sòzinha,– giro de andorinhana mão da alvorada.

Antigacantigada amigadeixada.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 221

AMOR EM LEONORETA

Leonoreta, fin’ roseta,Bela sobre toda fror;Fin’ roseta, nom me metaEn tal coita vosso amor!(do “Amadis de Gaula”)

IPela noite nemorosa,só por alma te procuro,ai, Leonoreta!Leva a seta um rumo claro,desfechada no ar escuro …O licorne beija a rosa,canta a fênix do alto muro:mas é tal meu desamparo,Leonoreta, fin’roseta,Que a chamar não me aventuro.

Rondo em sonho a tua porta,por silêncios esvaída.Ai, Leonoreta,sejas viva, sejas morta,apesar de sofrer tanto,puro amor é minha vida.Com três séculos de pranto,fez-se de sal a espinetaque me acompanhava o canto.

Leonoreta, fin’roseta,branca sobre toda flor,ai, Leonoreta,nos bosques atrás do mundo,por mais que eu não to prometa,encontrarás meu amor,desgraçado mas jucundo,sem desgosto e sem favor.Leonoreta, não te metaen gran coita a minha dor!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)222

O licorne beija a rosa,canta a fênix do alto muro …Ai, Leonoreta,salamandras e quimerasvêm saber o que procuro,Pela noite nemorosa,tornam-se os picos das erasvales rasos de violeta …Não me digas que me esperas!Não me acenes com o futuro …

Eu sou das sortes severas,Leonoreta, fin’roseta.Ai, Leonoreta,e só do sonho inseguro.

IIDo teu nome não sabia,mas buscava tua face.E, algum dia,se de ti me aproximasse,Leonoreta, fin’roseta,“Leonoreta!”–exclamaria.

Meus olhos, ricos de amor,sofriam de indiferença.De que estrela,ou que mundo, ou que planeta,Leonoreta,é nascida a branca florem que, antes de a amar, se pensa,mesmo sem precisar vê-la …?

Das varandas da alta lua,recordo o estremecimento:era a tuavoz que me trazia o vento.Fin’roseta!Esta, que apenas flutua,mais leve que borboleta;que, longe, nada insinua …esta é a voz de Leonoreta!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 223

Podia morrer de pena.E comecei a cantar-te.Amor é arte.Mas a vida é tão pequena,bela sobre toda flor!– tão pequena para amar-te …E em toda partecausa espanto o meu amor.

Se como te ouvi me ouviras,mais feliz não me fizeras.Sei que é tantomeu amor que, noutras eras,Leonoreta,viverás por esse encanto.Mas é tão de outras esferas,fin’roseta,que não se ama, por enquanto…

Nem de ti desejo nadasenão saber que exististe.A adoradaausência não me põe triste.Nem te metaen gran coita, Leonoreta,se te vi mas não me viste:que foste a mais derrotada …

Pois, se vi que me não queres,tu não viste como te amo …Leonoreta,só terei do que me deres,que, por mim, nada reclamo.Meu amor é flor sem ramo,fin’roseta!Por alheia não me feres:sei teu nome e não te chamo.

Leonoreta, que doçura,andar por onde estiveste!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)224

A mais puraimagem do amor celeste,Leonoreta,é minha humana aventura.Sem fogo que o lírio creste,sem que o sangue comprometao sonho, pela criatura…

Ai Leonoreta, quem eras,Leonoreta, fin’roseta,entre esfinges e quimeras,branca sobre toda flor?Teu semblante chorariade alegria,se te visses debuxadapelo meu poder de amor.

Tu, que me não deste nada!Que nem viste quem te via!

Leonoreta,não te metaen gran coita a minha dor:se te amava, não sofria…

IIILeonoreta.fin’ roseta,longe vai teu vulto amado.Porém resiste ao meu ladoo espaço que ocuparias.

Leonoreta,fin’ roseta,como poderei ser triste,se a tua sombra resistee tu não resistirias?

Leonoreta,fin’ roseta,não mais penso por onde andas...Guardo por altas varandastua fala em meus ouvidos.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 225

Leonoreta,fin’ roseta,como os puros amadores,eu vivo a bordar de floresa sombra dos teus vestidos.

Leonoreta,fin’ roseta,feliz da barca e da vela,do vento que leva a belamão sobre saudosos mares...

Leonoreta,fin’ roseta,não me vês, mas eu te vejo.Não te quero nem desejo:morrerei, se suspirares.

IVMorrerei, se suspirares.Pois, se és o meu grande bem,se eu te vejo sobre os mares,Leonoreta,se mais ninguémpara mim valia tem,fin’ roseta,sofrendo por te afastares,bela sobre toda flor(que todos os meus pesaressão por saudade do amor),Leonoreta,se tambémpor mim visse que sofrias,quando tudo é tão de além...

Leonoreta,não te metaen gran coita a minha dor...

Não venhas por onde eu for,que eu nunca fui por onde ias!Não venhas, que és o meu bem,ai!outras são as companhias,porém.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)226

Leonoreta,fin’ roseta:olha os sonhos singularesque existem porque não vêm...

VPela celeste ampulheta,flui-me a vida em cinza breve,sem que eu saiba aonde me leve,Leonoreta,O enlevo – que foi tão raro,O sonho – que era tão certo,O amor – que, apesar de claro,nem foi visto, de encoberto.

Desconheço a quem remetaa experiência a que me entrego:todos querem amor cego,Leonoreta,e o meu é clarividente.Amor cego, fiel, cativo,todos querem. E eu, somente,sei do isento e sem motivo…

Grave amor que não submetaasas próprias nem alheias,amor de límpidas veias,Leonoreta,onde o tempo é eternidade,e alegrias e tristezassão igual felicidade,indelevelmente acesas.

Que meteoro, que cometaconhece campo florenteem que prospere a semente,Leonoreta,deste amor que te proponho?Amor que apenas contemplo,em que sou meu próprio sonho,flor de meu silêncio e exemplo?

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 227

VILeonoreta,fin’ roseta,deixo meus olhos fechadossobre os acontecimentos.

Não te metaen gran coita o meu amor:

podem, por todos os lados,duros, tenebrosos ventosquebrar muitas tentativas.

Mas, para que eterna vivas,que é preciso?Que pensem meus pensamentos.

E entre pólos inviolados,entre equívocos momentos,vem e volta a vida humana,que se engana e desenganaem redor do Paraíso.

Branca sobre toda flor,a Verônica levanto,num transparente estandarte:celebro por toda partea alegria de adorar-tecom o meu pranto.

VIIPela celeste ampulheta,cai a cinza dos meus dias.Cai a cinza do meu corpo,da minha alma, Leonoreta,e o tempo é um límpido soproque liberta de alegriase de queixas...

Leonoreta,fin’ roseta,alta estrela, a minha sorte!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)228

Pela celeste ampulheta,vai-se a luz da primavera...A ventura que se aprendenos adeuses, Leonoreta,vale o que neles se perde...Tudo quanto sou te espera,e me deixas...

Leonoreta,não te metaen gran coita a minha dor.

Puro sonho, a minha morte,pura morte, o meu amor.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 229

Paulo Lebéis Bonfim

Nasceu em São Paulo, em 30 de setembro de 1926. Alémde poeta, foi jornalista e relações públicas. Foi Membro daAcademia Paulista de Letras e do Pen Clube. Recebeu o prêmioOlavo Bilac, da ABL, e o troféu Juca Pato, da UBE (1981).

Suas obras são: Antônio Triste (1946), Transfiguração(1951), Relógio de sol (1952), Cantiga do desencontro (1954),Poema do silêncio (1955), Sinfonia branca (1955), Armorial(1956), Quinze anos de poesia (1957), Poema da descoberta(1957), Sonetos (1959), O colecionador de minutos (1956), Ramosde rumos (1961), Antologia poética (1962), Sonetos da vida e damorte (1963), Tempo reverso (1964), Canções (1966), Calendário(1968), Poemas escolhidos (1973), Praia de sonetos (1981) eSonetos do caminho (1983).

CANTIGA DO DESENCONTRO

Canto VIII

Ai flores do verde tempo,Cheias de sol e distância...Em que canteiro deixastesO aroma de minha infância?

Ai flores do verde tempo,Alvas luas que semeei...Em que camada da terraMora o pranto que chorei?

Ai flores do verde tempo,Perfume que o vento traz...Em que silêncio repassamOs dias do nunca mais?

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Ai flores do verde tempo,Que refloris na lembrançaEnfeitai o meu sorriso.Quando murchar a esperança!

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ANTÔNIO TRISTE

Onde andará

Onde andará minha amadaNeste crepúsculo tristeNestas noites sem luar?

Ó árvores desfolhadas,Falai-me de meu amor!

Onde andará minha amadaNestas manhãs cor de cinza,Nestas auroras sem cor?

Ó folhas soltas dos ramos,Falai-me de meu amor!

Ó árvores desfolhadas,Ó folhas soltas dos ramos,Peregrinos ventania,

Daime-me notícias de alguém,Falai-me de meu amor!

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POEMAS ESPARSOS

Serenata

Em meu silêncioDe rua antiga,– És serenata.

Em minha angústiaDe cais deserto,– És o oceano.

Em meu lirismoDe tarde triste,– És o destino.

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RIMANCE

...pero tenia marido. Garcia Lorca

A formosa Infanta Ausendabem que já correspondia.Em vão não foram os cantaresdo Conde d’Albergaria,trovador mui afamado,senhor de cavalaria,que à côrte estava em visitade amizade e cortesia.

Certo dia, o bom do Reiao Conde d’Albergariaroga ir consigo à caçase tal cousa lhe aprazia.Este de tenção formadapelo pagem respondiaque disposto não estava,não estava nesse dia;ficava a estudar os livrosna casa da estudaria.

Edison Moreira

Edison Crisóstomo Moreira nasceu em São Franciscoda Glória, Minas Gerais, em 27 de janeiro de 1919. Diplomadoem Letras, exerceu as profissões de jornalista e editor, além desua atividade poética, pela qual foi laureado com o Prêmio OtonBezerra de Melo. Colaborou em periódicos e participou deantologias poéticas.

Suas principais obras são: Cais da eternidade (1951), Ojogral e a rosa, Poemas existenciais e Tempo de poesia (todosde 1962).

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Recado não era dadoe o bom do Rei se partialevando toda a matilhamail-a sua companhia.

Mal na curva do caminhoo Rei desaparecia,já o Conde para os braçosda bela Infanta corria,

e esta por sua vezmui enxuta lhe dizia:– Meus cabelos, “trigais louros”,o vosso trovar dizia;quantas vezes fossem meustantas eu vo-los daria:sempre os colhêsseis nos dedosque ventura não seria.

Cabelos da Infanta, o Conde,nos nobres dedos colhia.

– Minha boca, “como a vinha”,o vosso trovar dizia,quantas vezes fossem meustantas eu vô-los daria:sempre a tomásseis nos lábiosque vindima não teria!

Lábios tão doces, o Conde,mais que os beijava, os bebia.

– Meus peitos, “dois frutos verdes”,o vosso trovar dizia,quantas vezes fossem meustantas eu vô-los daria:quando os beijásseis, amado,que ventura não seria!

Peitos tão alvos, o Conde,mais que os beijava, os mordia.

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Palavras não eram ditas,eis que o Rei ali surgia.Voltara a meio caminho,que fora à caça fingiaa ver se a formosa Ausendaem sua ausência o traíae a feia tenção do Condeaté onde chegaria...

– Alvíssaras, meu nobre Conde (diz o Rei com ironia)que amáveis a minha Infanta,ai de mim que não sabia!Se tivesse adivinhadovô-la dado já teria,sem que preciso fizésseistudo à minha revelia;deste modo o nobre Condede um Rei não se queixariapor faltar a um visitantecom as normas da cortesia.

– Tão belo corpo da Infanta(cruel o Rei prosseguia)em mãos tão nobres vos juro,vos juro, nunca o veria.Abraçai tão belo corpoque vos tanto apetecia.Quanto a mim, me fora dadoabraçar, abraçaria.

Tal qual um vilão o Condesem querer obedecia,abraçando a Infanta Ausendaque de terrores tremia.

Tendo-os assim abraçados,um servo o Rei despedia,que logo voltou trazendopunhal de oiro que luzia,arma de mui grande estimaque em sua panóplia havia.

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Tomando o punhal o Rei,sua mão sequer tremia,deu sete golpes profundoscom toda sua mestria,traspassando sete vezes,com crueldade tão fria,a formosa Infanta Ausendae o Conde d’Albergaria.

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EVOCAÇÃO DE D. DINIS

As tuas canções de amigo:ondas do mar de Vigo

D. Dinis.

Desde que as levo comigo,as tuas canções de amigo

me fizerammais feliz.

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CANTIGA DE AMOR

Um tal ome sei eu, ai ben-talhada,que por vós ten a sa morte chegada.

D’el-rei D. Dinis

Senhora, causais a mágoaque a vida me faz tão brevedentro de um corpo de fogo,guardais um’alma de neve.

Meu mal vem de amar-vos tanto,sem vossa correspondência,pois nunca mostrei meu prantoà vossa gentil ciência,Dizer-vos meu quebrantomeu coração não se atreve:dentro de um corpo de fogoguardais um’alma de neve...

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CANTAR DE AMOR

Se na campina frolidavires por todos loadauma pastora velida:

é minha amada.

A mais fremosa e querida,a louçãa, a bem talhada,pola ribeira frolida:

é minha amada.

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Hilda Hilst

Filha de Bedecilda Vaz Cardoso e de Apolônio de AlmeidaPrado Hilst, Hilda Hilst nasceu na cidade de Jaú, Estado de SãoPaulo, no dia 21 de abril de 1930.

Poetisa, dramaturga e ficcionista, Hilda Hilst vem obtendocom a sua obra alguns dos mais significativos prêmios literáriosbrasileiros. Seu trabalho tem sido, freqüentemente, tema de tesesuniversitárias em nível de pós-graduação; e, mais recentemente,com a tradução de poemas e textos seus para o francês, alemão,inglês e italiano, tem chamado a atenção da crítica internacional.

Em 1935 iniciou a vida escolar fazendo o jardim deinfãncia no Instituto Brás Cubas, na cidade de Santos, Estadode São Paulo. Cursou o primário e o ginasial como aluna internado Colégio Santa Marcelina, em São Paulo, e o curso secundário(Clássico e Científico) no Instituto Presbiteriano Mackenzie. Comdezoito anos de idade, iniciou a faculdade de Direito, naUniversidade São Francisco. Dois anos depois publicou seuprimeiro livro de poesia (Presságio – Revista dos tribunais, SP).Formou-se bacharel em Direito em 1952. Em 1963 mudou-separa a fazenda São José, de propriedade de sua mãe, emCampinas. Em 1966 construiu, próxima à fazenda São José, acasa que denominou “Casa do Sol”, onde reside até hoje.

Em 1967 iniciou a produção de peças teatrais, queterminaria em 1969. Seu primeiro livro de ficção (Fluxo-floema– Ed. Perspectiva, SP) foi publicado em 1970. Outras obras:O verdugo (1970); Júbilo, memória, noviciado da paixão(1974); Ficções (1977); Poesia (1959/1979), Da morte; Odesmínimas e Tu não te moves de ti (1980); Poemas malditos,gozosos e devotos (1984); Sobre a tua grande face e Commeus olhos de cão e outras novelas (1986); O caderno rosade Lori Lamby (1990).

Em 1982 participou do Programa do Artista Residente,subsidiado pela Universidade de Campinas (UNICAMP), doqual faz parte até hoje.

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Seu arquivo pessoal, contendo registros de sua criação artísticaacumulados ao longo de quase meio século, foi comprado, em1995, pelo “Centro de Documentação Alexandre Eulálio”, daUNICAMP, e está aberto a pesquisadores do mundo inteiro.Em 1997 publicou o livro Estar sendo. Ter sido. e anunciou seuafastamento do trabalho literário. Dois anos depois teve suadramaturgia publicada pela Nankim Editorial, de São Paulo.

TROVAS DE MUITO AMOR

PARA UM AMADO SENHOR

Poema II

Amo e conheço.Eis porque sou amanteE vos mereço.

De entendimentoVivo e padeço.

Vossas carênciasSei-as de cor.E o desvarioNa vossa ausência

Sei-o melhor.

Tendes comigoTais dependênciasMas eu convoscoTantas ardências

Que só me restaO amar antigo:Não sei dizer-vos

Amor, amigoMas é nos versosQue mais vos sinto.E na linguagemDesta canção

Sei que não minto.

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Poema IV

Convém amarO amor e a rosaE a mim que souMoça e formosaAos vossos olhosE poderosaPorque vos amoMais do que a mim.

Convém amarAinda que sejaPor um momento:Brisa leve aPrincípio e seu

Breve momentoTambém é jeitoDe ser, do tempo.

Porque ai senhorA vida é pouca:Um bater de asaUm só caminhoDa minha à vossaCasa...

E depois, nada.

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POEMA VII

Fineza minha, senhor,É o muito vos repetirUm amor já confessado.(A princípio sem cuidadoPorque não vos conhecendoÀ força de repetirO que não é acaba sendo.)

Mas hoje vos conhecendoE tendo sido afligidaPor males próprios do amor,Não é fineza tão grandeFazer-vos tal juramento?

Ai é sim meu senhor.

Porque se acaso depoisPassado tanto tormentoEu nunca mais vos lembrasseDo amor o encantamento,Fineza é que não seria.

E é pois o que venho tendo.

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POEMA XVII

Moças donzelasQuerem cantar amorSem mais aquelas.

Canto eu por elas.

Se forem belasFicam melhor à tardeAi, nas janelas.

Fico eu por elas.

E se as cancelasDas casas onde vivemAi, cuidam delas

Saio eu por elas.

E em sendo belasPretendam conseguirGrinalda e perlas

Velo eu por elas.

Mas ai daquelaQue em vós deitar o olhar...Solteira e bela

Ao, pobre dela.

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Stella Leonardos

Poetisa, romancista, tradutora, ensaísta e teatróloga,nasceu no Rio de Janeiro, em 1 de agosto de 1923.

Iniciou-se na carreira literária em 1941 com o livro depoesias Passos na areia. No mesmo ano foram publicadosmais dois livros: E assim se formou a nossa raça e A grandevisão. Sua obra, hoje, é composta por mais de duzentos títulosentre poesia, ficção, teatro e livros infantis. Os mais recentessão: Mítica e Cancioneiro capixaba, publicados em 2000.

Suas peças infantis já foram traduzidas em vários idiomase encenadas em muitos países. Recebeu diversos prêmios no Brasile no exterior, entre eles o “J.M. Batista i Roca” 2001, do Institutde Projecció Exterior de la Cultura Catalana (Barcelona, Espanha),sendo a primeira autora brasileira a recebê-lo; e nove láureas daAcademia Brasileira de Letras: “Coelho Neto” (teatro em verso)por Trilogia biográfica (1945), “Olavo Bilac” por Poesia em trêstempos (1957); “Júlia Lopes de Almeida” por Estátua de sal(1960); “Odorico Mendes” por O século das luzes, de AlejoCarpentier, (1978); “Monteiro Lobato” por Macaquezas domacaco Malaquias (1979); “João Ribeiro” por De líricasromânicas e outras líricas (1980); “Roquete Pinto” por Memorialde Rondon (1986), “Arthur Azevedo” por Auto dos Reis e seuscamelos reais (1987) e “Coelho Neto” por Água brava (1994).

Foi também condecorada com a Medalha “Estácio deSá”, pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro.Recebeu ainda outras distinções, como o “Prêmio Nacional deLiteratura Infantil” (Fundação Nacional de Brasília) porMacaquezas do macaco Malaquias (1971).

Stella Leonardos é membro do Instituto Brasileiro deCultura Hispânica, do PEN Clube do Brasil, da SBAT e daUnião Brasileira de Escritores, onde se destaca como SecretáriaGeral. É também integrante da Academia Carioca de Letras,do Instituto Histórico Geográfico do Rio de Janeiro e da

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International Writens and Artists Association (IWA) do BlufftonCollege, Ohio, E.U.A.

Uma das vertentes de seu trabalho em poesia éjustamente a inspiração na lírica medieval neolatina e noromanceiro hispano-brasileiro.

ROMANCE DA NAU CATARINETA

De que ondesvêm estas ondas

de música em meu vagar?

De que vagas Submarinhos?

De que búzios beira-mar?

Eis que acenam lenços brancos

de uma naveem meu lembrar.

Eis que voganau de azares

no mistério secular.

E minha infância estremece

– ai vento estranho harpejar!

“Lá vem a Nau Catarineta,que tem muito que contar.Ouvide agora, senhores,Uma história de pasmar”.

Quanto tempo quanto tempo

a nave me navegando?

Ao litoral pervagado

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vaga vou, vago indagando

– horas a fio nas rocas

fluidas dúvidas confiando,refluindo de um cais,

de buscaao casco da nau

– de quando?

Entre bússolas insones

a insônia de um memorando.

“Passava mais de um ano e diaque a nau andava no mar .Já não tinham que comer.Já não tinham que tomar.”

De sol a sol,calmaria .

Marasmode itinerário.

Na memória paira a nave

sólita no mar invário.

Solo de Solinclemência.

De meu medo solitário

a só naude sol e dó

fadada a insolaz fadário,

marujos inconsoláveiscurtindo

viver contrário.

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“Deitaram sola de molhopara o outro dia jantar,Mas a sola era tão rijaQue a não puderam tragar”.

Terror que assola. Inda tremo.

Vivo pânicatremura.

Arregalo olhos infantes.

Uma nuvemmuito escura

cresce mais que o sol,me cega,

sinto até quedesfigura

meu ouvinte rosto pálido,

minha cândida figura

de criança de expectativa

pupilas de noite pura.

“Deitaram sorte à ventura:matar a qual deles? Qual?Logo foi cair a sorteno Capitão-general”.

Rola o trágico baralho.

Ah impiedosa quiromância!

Um rei de ouros – de ouro ou sangue?

cai no convésà distancia.

E surdemsúbitas ondas

de inquieta significância.

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E rondam rostos ferozes

de faminta concordância.

Mas sobre a ronda se eleva

aquela voz de antes e ânsia.

“Sobe sobe, meu gajeiro.sobe àquele mastro real!Vê se vês terras de Espanha,areias de Portugal!”.

De sete mares aflitos

sete pássarosviageiros

seteiam nuvens obscuras

nos sete dardos

certeiros.

Sete instantes sustam vôo,

pesam sete anos inteiros.

De sete mastros afiados

poreja suor

marinheiro.

E na setêmplice angústia

retine a voz do gajeiro:

“Não vejo as terras de Espanha,areias de Portugal.Vejo sete espadas nuas,Sete gumes no ar fatal”.

- Aqui-d’ el-rei, Capitão!

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Combate.Bravura em riste.

Empunhando o inquebrantável

da esperança.Sim, resiste.

E seu canto – timbre de aço

boa têmpera – subsiste.

E encoraja minha infância,

desafia o que há de triste,

afirma de encontro

ao não,sob a gávea

que me assiste.

– “Acima, acima gajeiro,acima até o tope real!Olha se avistas Espanha,Areias de Portugal!”

Mãos de brisa tocam velas,

dedilhamsete maretas.

Sete vezes sete olharesde clepsidras e ampulhetasacompanham mastro acimao gajeiro veste preta.

Canta o gajeiro do luto– ardis talvez do Capeta? –ao som de uma viola etérea.

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Ou de uma clara espineta?

– “Alvíssaras, Capitão,meu Capitão-general!Já vejo terras de Espanha,areias de Portugal!”

E vagas-meninas vêm

e vagas-meninas vão

– meninas verdes e azuis

e tão de encanto, de tão,

que marujos encantados

– cativos de encantação? –

vêem meninas de olhos d’água,três imagens de soidão.

– “Mais avisto três meninasdebaixo de um laranjal.Uma sentada a coser,E a outra na roca a fiar,e a mais formosa de todasentre as duas, a chorar”.

Debaixo de um sol laranjacomo ninguém viu, ninguém,meninas vagas que vão,meninas vagas que vêm.

Uma cose fina espumanumas anáguas

– pra quem? –

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Outra fia numa rocamais de cem mágoas – de cem? –A terceira conta às águassaudades do pai, além.

– “Todas três são minhas filhas.Oh! Quem m’as dera abraçar!A mais formosa de todasContigo a hei de casar”.

Sete vezes sete olharesardem presos de cobiça.

Sete vezes sete vidasque a imagem da bela atiça.

O gajeiro veste preta a resposta, prestes,

iça.

Um gajeiro de desdém.

Por excesso de justiça?

– “A vossa filha não queroque vos custou a educar.– Dou-te pois tanto dinheiroque o não poderás contar!– Não quero vosso dinheiroque vos custou a ganhar”.

Sete vezes sete juízos

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reprimidos no convés.Sete vezes sete corpostensos da cabeça aos pés.

Sete vezes sete bocasávidas por mil tonéis.

Sete vezes sete peitossonando árdegos corcéis.

E o gajeiro lá da gávea?Gajeiro de olás e olés?

– “Dou-te meu cavalo brancoo meu cavalo sem par!– Guardai a vosso cavaloque vos custou a ensinar”.

De que praias que se escondem

fluem presságios devagar?

A que aondes vagam medosde marujo segredar?

De que roteiros perdidos?A que funduras do mar?

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O vento arrepia as velasda nave de singular.

E o gajeiro veste preta?Lá do alto do recusar?

– “Dou-te a Nau Catarinetapara ser teu navegar.– Não a Nau Catarinetaque não a sei governar”.

Sete vezes sete vagasde surpresa face enchente.

Sete vezes sete soprosdo vento com ar de gente.

Sete vezes sete pasmosna tripulação silente.

E a nau como que encravadanum rochedo de repente.

E o Capitão- generalperplexidade crescente:

– “Que queres tu, meu gajeiro?Que alvíssaras te hei de dar?– Capitão, quero tua almapara comigo a levar”.

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Das cordas de uma garganta a crença criança dá grito.E lá da gávea o gajeirominha infância fita e o fito.

O Capitão- generalolha impávido o Maldito.

É o Capitão- general?É meu avô! vivo mito.E o romance oral da navesingra sendas de infinito.

– “Renego de ti, domônio,que me estavas a tentar!A minhalma é só de Deus:Meu corpo darei ao mar”.

Irremovível rochedose parte por sob a nave.

E corre na correntezao veleiro jeito de ave.

E ouço e vejo meu avôcabeça branca, olhar suave– almo avô levando a estória,rezando a estória,

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voz grave:

“Tomou-o um anjo nos braços,não no deixou se afogar.Houve estouro do demônio!Acalmaram vento e mar.E eis a Nau Catarinetade noite em terra a tocar”.

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AA SOMBRA DAS “C ANTIGAS DE SANTA MARIA ”

... “Tan toste que acabada ouu’ o mong’ a oraçon,oyu h¢a passarinha cantar log’en tan bon son”…“Dized’, ai trobadores!”...“Rosa de beldad e de parecer”…

D. Afonso X, o Sábio (A Frei Ludovico Gomes de Castro)

Eu trobador acá viindosõo vindo de muyto longe.Trobadores, escutadeque canto o miragre lindoda passarinha d’arcanosen cantar celeste, e o mongedo extase trezentos anosgran sabor d’eternidade.

“Dized’, ai trobadores!a senhor das senhores,por que a non loades?’’

Con migo cantadeoo aves, loores:“Rosa das rosas et Fror das Frores’’...

“Se vos trobar sabedesa por que Deus avedespor que a non loades?’’

Con migo cantadeoo alas d’alvores:“Dona das donas, Senhor das Senhores’’...

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O SEGREL E A LAVADEIRA

... “ en forte pont’ eu fui nado!”“Poys uoss’ amor en tal coyta me trage,

Ay eu!”Pero da Ponte

(So la ponte, ponte vedra,saluçan áuguas nas pedras:– “ Senhor do corpo delgado,en forte pont’ eu fui nado!’’)

Lavandeiras so la ponte,per la ponte, ponte vedra,Pero da Ponte passou:– “Ay eu!’’

Per la ponte d’ altas pedras,lavandeiras so la ponte,Pero da Ponte cantou:– “Ay eu!’’

Vedra ponte, tristes pedras,baten áuguas contr’ as pedras,pero Pero non voltou.– Ay eu!

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PLANG

“Ai eu, coitada, como vivo...”El – Rei Dom Sancho

(A Cleonice Berardinelli)

Sobolas sombras do paaçodel-rei D.Sancho Iplange dona en doilo negro.

(“Ai eu, coitada, como vivoen gran cuidado por meu amigoque ei alongado! Muito me tardao meu amigo na Guarda!’’)

Guarda-moor: passo passinholeixaredes quen aguardaaiar doilo que desviva?

(“Ai eu, coitada, como vivoen gran desejo por meu amigoque tarda e non veio!’’...) Tarde.

Antorchas que se consomemcomo vidas comovidas:ai que ¢a vida se some!

Du surde la fontainha?Sobolas sombras.De lagrymas.

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DO SEGREL AA DONA-D’A LGO

“D’amar a quen non ousarei falar”…Martin Soares

Sõo nascido filho dalgopero por vilaão me teen.Seed’en nembrada, senhor,podedes ben vos nembrar:por vos sõo nobre d’honor,

“d’amar a quennon ousareifalar.’’

Se algo nobre tenho dalgocomo por vilaão me teen?Seed’en nembrada, senhor:posso vender meu cantar.Non aqueste vero amor

“d’amar a quennon ousareifalar.’’

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MARINHA

“As ffrolles do meu amigo...” Pai Gomes Charinho

(A Natércia Freire)

“As frores do meu amigo ”van, “briosas van no navyo’’.E frores vagas sospyranaa fror das vagas, sospyran.Ay frores!

“As frores do meu amado’’van, “briosas van eno barco’’.E alá per azures altosvan barcos alvos, van altosalvores.

Van, “briosas van eno barcopera chegar ao fossado’’as frores do meu amigo,as frores do meu amado.Ay frores!

E vagas frores amigas,aa fror das vagas que vagan,e alvas e altas velas vagana velar vago navyod’amores.

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CANTIGA DE ROMARIA

…“queymen candeas por nos e por sy”…Pero Vyvyães

Amigos romeiros,vaiamos ligeyrocandeas levar.

Meninhas da romaria,meninhas d’olhos que vi,vossos olhos son candeasa queimar ardor de riiso:“Queymen candeas por nos e por sy,e nos, meninhas, baylaremos hy.’’

Meninhas da romaria,h¢s olhos, meninhas, vi,h¢s olhos almas candeasa queimar lumes infiindos.

“Baylen, meninhas, por nos e por sy.’’Eu e a meninha quedaremos hy.

Con olhos romeirosvaiamos ligeyrocandeas queimar.

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LA FREMOSINHA

“Dizia la fremosinha”… D. Afonso Sanches

“Dizia la fremosinha:ay deus, val!Com’estou d’amor ferida,ay deus, val!”

Caçador qu’ides aa caçacaçador d’afoito passo:ay que moyro, caçador,ca me teen presa no laço!

“Dizia la ben talhada:ay deus, val!Com’ estou d’amor coytada,ay deus, val!”

Caçador, meu caçador!Caçador d’ afoito passo:ay que moyro, caçador,aa mingua de voss’ abraço.

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NO VIRGEU

“Se Deus me leixe de vos ben aver”...Fernan Garcia Esgaravunha

No virgeu das vinhas virgensvi-vos eu, Dona Amavide,mais de viço do que as vides.

“Se Deus me leixe de vos ben aver,Senhor fremosa, nunca vi prazerdes quando m’eu de vos parti”.

No virgeu dos amaviosamei-vos, Dona Amavide,dona-virgo fror das vides.

“E fez-mi o voss’amor tan mui mal,que nunca vi prazer de min, nem d’al,des quando m’eu de vos parti.”

No virgeu das vinhas virgensem vivo amor me desvivo,amada Dona Amavide,que o vento que ven aas vinhasnon vos vee viinda entre vides.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 267

A DONA-VIRGO DO ANEL

…“por en chor’eu, dona virgo”…Pero Gonçalves de Porto Carreiro

– O anel do meu amigoperdi-o so lo verde pinho,e chor’eu, bela!

Non chorade aquel anelque de coraçon vos sei.Lumbroso anel achado eina vossa voz, mia senhor.

Achado ei lumbroso anelmui belo e de moor valia:vosso cuidar, senhor mia,anel d’oiro fin amor.

Aque so lo verde pinhomeu coraçon, dona-virgo;e cant’eu, bela!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)268

ALVA

“(Levou-s’ a louçana),levou-s’ a velida”…

Pero Meogo

Levou-se, louçana.Ja tanjo minh’alva,con alva ja venho.

“(Levou-s’a louçana,levou-s’a velida:vai lavar cabelosna fontana fria,leda dos amores,dos amores leda.)”

Levou-se, louçana.Ja canto minh’alva,con alva ja chego.

(Levou-s’ a ben viinda,velida cor d’alva,dos olhos de cervodos montes sen magoa,leda dos amoresdos amores leda.)

Por ve-la louçanatan d’alva nas áuguasalvoro tan ledo.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 269

BARCAROLA

...“Ondas do mar de Vigo”…Martin Codax

(A Naumim Aizen)

Capelinha aa beira-mar:que canta a dona atristadatornando trist’o rochedo?

– “Ondas do mar de Vigo,se vistes meu amigo!E ay Deus, se verra cedo!”

Capelinha aa beira-mar:Que reza a dona de doairoaas ondas do aire sagredo?

– “Ondas do mar levado:se vistes meu amado!E ay Deus, se verra cedo!”

Navega en ondas de Vigo,navega, vago cantar.Navega, cantar amaro.Mareja, cantar d’amigo,¢s olhos de ben amar.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)270

O TROVADOR E A COTOVIA

“Seu arco na mano a la aues tirar:a las que cantauan nõ nas que’ ( r ) er matar,

a las aues meu amigo.”Fernando Esguio

Nas ribas do lago ouviFernando Esguio passar.Cantava ¢a cotoviacon apenado cantar:

– Vaiamos, irmãas, vaiamos fugirdas ribas do lago, u eu andar via las aves meu imigo.

Nas ribas do lago viFernando Esguio acenar:– Cantade, pequena amigaque vos non quero apenar!

E ouvi nas ribas do lagoFernando Esguio cantar.E cantavam cotoviasque a seu lado ian pousar:

– “Vaiamos, irmãas, vaiamos folgarnas ribas do lago, u eu vi andara las aves meu amigo.”

(E vosso trovar no lago,amável Fernando Esguio,alou-se de cotoviasvozes d’amavioso afago)

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 271

Myriam Coeli

Myriam Coeli nasceu em 1926, em Manaus (AM), masfoi criada em São José de Mipibu (RN), para onde foi com doismeses de idade devido ao falecimento de seu pai. Foi criadapelas tias paternas, todas com uma rígida formação religiosa.

Estudou no Atheneu Norte-rio-grandense e no ColégioSão José (Recife), onde cursou a Faculdade de Filosofia eLetras. Em Madri, Espanha, graduou-se em jornalismo,tornando-se a primeira mulher norte-rio-grandense a obterdiploma estrangeiro e a primeira de seu estado a trabalhar naredação de um jornal (A República). Trabalhou ainda na Tribunado Norte e no Diário de Natal. Redigiu mais de mil artigos,poemas, reportagens, cartas e contos, todos catalogados pelaBiblioteca Pública do Estado e pela Biblioteca Central daUniversidade Federal do Rio Grande do Norte.

Myriam Coeli foi professora do Atheneu durante 25 anos,onde ensinou português, espanhol, italiano e francês. Tambémlecionou história da língua portuguesa na já extinta Faculdadede Filosofia de Natal. Além disso, deu aulas de História daImprensa na Faculdade de Jornalismo Eloy de Souza, deportuguês na Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte(ETFRN, atual CEFET) e de francês em escolas da Prefeiturade Natal. Foi membro da Associação Norte-rio-grandense deJornalistas e do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RGN.

Era casada com Celso da Silveira, seu colega de redaçãoem A República de quem teve dois filhos e com ele publicou aobra Imagem virtual (1961). Suas obras individuais são:Vivência sobre vivência (1980); Cantigas de amigo (1981);Inventário (1981) e Catarse, que deixou inédita ao falecer noano de 1982, vítima de câncer generalizado. Foi indicada, numalista de dez nomes, a Mulher do Século / Rio Grande do Norte.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)272

FUNDAMENTOS

Naqueles campos distantesCristãos e mouros lutavam.Só nascia flor vermelhaDe corpos que arrebentavam.Vermelhos rios vermelhosQue os campos alagavam.E os delgados cavaleirosPelas vias inda andavam,Pela Fé e pela EspadaSuas honras adestravam.Longe, outros, pelas águasAventura aventuravam.Velhos castelos distantesCavaleiros visitavamCantando gestas de amorQue poetas lhes legavam.Naqueles tempos de antanhoPaixões a todos bruxavam.Todos tinham na lembrançaAs mulheres que sonhavam– Flores morenas ou alvas –Nos campos que se alagavam.Outros, com esperança e o sonhoNas vias e águas que andavamTinham no peito cantares,Desejos que despontavamDa lonjura ser presenteDaquelas por quem tristavam.

Distantes mulheres mourasDe altas torres ais soltavamMui sós, cristãs ou moçárabesAgonias castigavam.Os segréis tanta tristezaEm violas cantigavamO amor, alfinete em peito,Que os dias espetavam.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 273

Rios de Portugal e EspanhaBuscando o mar soluçavam.Malferidas as mulheresEm teares que teavamDoces cantigas de amigoCom os fios que trançavam,Cantavam com voz sentidaSaudades que descantavam;Ou entre ovelhas no pradoQue sozinhas pastoravam,Suspirando em solidãoDuas fontes derramavam.Os jograis essa tristezaEm violas cantigavam.E as mulheres recolhiamToda dor que desatavam.

Naquele tempo as mulheresEm castelos esperavam.Ou entre ovelhas no pradoQue sozinhas pastoravam.E entretinham seus cismaresQue as distâncias já cansavamCom cantigas de amigoQue elas mesmas inventavamCom donaire provençalQue as ousanças alongavam.

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POEMA VIII

Ai amores, ai amores de amargos anos,Se sabeis para onde fugiram as esperançasAi, dizei-me onde estão.

Ai amores, ai amores, de mim partidos,Quando encontrardes amores bem mais sentidos,Oh! fazei prazo comigo.

Ai, como eu maldigo amores de grande lida,Cuidai bem prejuízos de quem de amor ferida,Mal está sem seu senhor.

Ai, aquele que sabeis a quem muito amavaE para quem, por destino só, fui talhada,Não me pergunteis, por Deus.

Que ai, os gaios amores dos verdes anos,Oh! bem sabeis, que já tendo passado o prazo,Guardam-se somente os danos.

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POEMA XII

Se avistardes, ó jograis, meu amigo,Dizei-lhe já, ardendo por quem ardo,Que o meu peito é chama, eu esquivo fogoE duas candeias meus olhos lagrimam.

Ai, ó meu amigo,Que tarda.

Trazei alegres novas, bem asinhasPois minha lembrança nele se aninhaE este vero amor castiço de antanhoBem guardado está em guarda guarida.

Ai, ó meu amigo,Que tarda.

Dizei, jograis, dizei onde o encontrardesDos ousados desejos desvividosSob penas de quem penada estáPois tem punhal silêncio amaro dentro.

Ai, ó meu amigo,Que tarda.

Negro suspiro por presença amémSem valia. Eu formosa – Fenecida.Sem avisamento a saudade armaMeu coração-ponte, perdido em vias.

Ai, ó meu amigo,Que tarda.

Jograis, chorai, que pastora tão belaEm vãs tristuras entretendo ovelhasNa paz do prado tem canção cativaDe quem amando sente dasamada.

Ai, ó meu amigo,Que tarda.

Reparai bem, jograis, por meu amigoApartado. No peito jaz guardadoNa saudade minha, visão errante.Sem azul cantar, vilão, o amor, mata.

Ai, ó meu amigo,Que tarda.

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POEMA XIX

Se sabeis novas de meu amigo,Se está bem, se inda sonha comigo,

Ai, dizei-me por Deus.

Como louvar amigo alongadoSe peito é punhal azinhavrado?

Ai, dizei-lhe por Deus.

Onde está ele, flores do pinho,Prazo passado, cravado espinho?

Ai, buscai-o por Deus.

Valados, céus, ais, espelhos dágua,Onde comportar a minha mágoa?

Ai, Deus, tapai-lhe o pranto.

Onde estará quem me prometeuPôr-me na terra o eterno céu?

Ai, Deus, que o praza tanto?

Deus, onde andará meu doce amigo?Se sabeis, por que morte comigo?

Ai, Deus, e o seu encanto?

Meu sonhado amigo era o pastorQue flautas em mim tocava amor.

Ai, Deus de gran valia,Trazei quem me queria.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 277

POEMA XXII

Senhora de mui castelosNão de pedras ou de ameias.Castelos flutuando no arOu inconstantes nas areias.Uns bizarros, outros belos,Ventos uns a velejar.

Com as traves destravadasDestravo traves que envergamDuras portas envergadas– Palavras ensangüentadasCelas que da língua selamPelo espanto fustigadas.

Edifício que me rasgaDo almo a alma o almarE me dá triste degredoVigésimo segundo andarMasmorra que amortalhaCom capuz de asfalto e medo.

Que me preservem os átomosNa construção dos castelosE inventos não os desfaçam,Nem drama urdido em um átimoOu o progresso que é o eloMonstro de nossa des / graça.

Artefatos coloridosDe plásticos, aço e isopor.Tudo aquém de minha janelaSó traz solidão e dor.Pesam fardos sem sentido.Senhor, dividir pudera!

Que outros castelos sonhados(Que castelos, meu senhor!).Só pássaros, nuvens, plumas,Mais belos que o de Almançor,Já no tempo arrebatadosCom anjos, flores, escumas.

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Vigésimo segundo andarÉ castelo muito altoJaz entre Oriente e OcidenteE se me seduz um saltoConvosco não vou ficarMas manchete, certamente.

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Francisca Nóbrega

Nascida em Macaé, no Estado do Rio de Janeiro, éProfessora Mestra e Doutora aposentada da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, autora quase bissexta e estudiosapermanente de Literaturas. Cresceu, até os seis anos de idade,em companhia da natureza e de pessoas simples, com as quaisadquiriu o hábito de olhar longamente as mudanças dosambientes, inclusive os modos de falar. O “vício” de ver e ouviradquirido em Macaé a guiou pelos caminhos um tantoparodísticos que segue em suas canções.

Suas cantigas foram escritas como se fossem um recursodidático incentivador para a criação dos seus alunos de oitavasérie no Colégio de Aplicação da UFRJ, nos anos 70. Naquelemomento, a música popular brasileira contava com uma vastacriação poética muito parecida com a dos trovadores medievais.Francisca Nóbrega teve, então, a idéia de estudar com os alunosalgumas cantigas trovadorescas, mostrando-lhes a estruturaparalelística “como a fala do coração que diz sempre e só amesma coisa”, o refrão invariável, a técnica do leixa-pren e asmuitas variedades de composições (as barcarolas, as bailias eas cantigas de maldizer, por exemplo).

Obteve grande sucesso com seu trabalho, fato que aestimulou a organizar com seus alunos uma “Antologia denovos trovadores”, que infelizmente foi perdida. FranciscaNóbrega guarda somente as cantigas escritas por ela, aquireproduzidas a seguir.

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BARCAROLA

Onda do meu Mar de Vigo,nada sabes de mim,quanto mais do meu amigo.

E se nada sabes,é que não te acresçodo chorado prantocheio da históriado meu belo amigo.

E se não te acresçoé porque não seide outra serventiapara meus dois olhos,que te olhar e ver-te,Ai onda, onda do meu Mar de Vigo.

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BAILIA

Bailai, irmãs, que podeis.Eu não sou a bem talhada,nem mesmo sou bem lembradado meu senhor.

Bailai, irmãs, que podeis.Eu não sou a bem amadanem sei s’inda sou pensadapor meu senhor.

Bailai, irmãs, que podeis.Eu sou a bem esquecida,de quem se ocultou Amor.

Que faço agora da vida,eu, meu senhor!

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CANTIGA D’AMIGO 71

Figura recortada em meu silêncio,Discreto traço na palavra rara,– Saberá de mim?

Prados de asfalto, rios de óleo e lama,Ausentes verdes, águas sem espumas,– Quem será por mim?

Sem romarias, sigo-me às ermidas,Buscando lá o que não vejo aqui:– O senhor de mi(m).

Quero uma nova do meu belo amigo,Que achei à tarde, na Fonte dos Tempos.– Saberá de mim?

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 283

CANTIGA COMO SE FOSSE DE MALDIZER OU

CANÇÃO DE AMANTE

Como se eu fosse um trovadorigual a tantos que ouvi trovar,já que me morro por voss’amor,– ai, meu senhor arredio,vos diria, por opostoo tamanho do desgostoque tenho por vos amar,– ai meu senhor arredio!

Mal dia o em que vos olheie vi vossa luz guardadana pupila que hoje seinão quer ser luz desvelada,– ai, meu senhor arredio.É que esse dia, senhor,muito e mui gran mal me fez.Enganei-me quanto ao preçoque valia a vosso apreço,ai, meu senhor arredio!

Leve-me a mortea encontrar-meconvosco, no vosso frio,Ai meu senhor arredio!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 285

Marly Vasconcelos

Marly Vasconcelos nasceu no Ceará, em 1944. Cursouas faculdades de Direito e de Letras na Universidade Federal doCeará. Publicou: Água insone (1973), Cãtygua proençal (1985),Coração de areia (1992) e Sala de retratos (1998). RecebeuMenção Honrosa do Prêmio Graciliano Ramos da UniãoBrasileira de Escritores do Rio de Janeiro, em 1989, pela obraCoração de areia (romance). Ocupa a cadeira número sete daAcademia Cearense de Letras.

PASTORELA

Dizei-me lírios e gerâniosde uma formosa donzelavestida de sedas brancas.

– Não sabemos, cavaleyroda donzela que procurascom tanto empenho e zelo.

– Passarinhos e passantesnão vistes entre os peregrinosa donzela que eu amo?

– Nestes prados, nestes montesnão passou donzela algumacristalina como a fonte.

– Vento que sopra nos ramos que é da minha donzelade tez macia e branca?

– Com seu coração que sangrachorará em algum lugartoda a sua mal-andança.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)286

– Que terra esconderiaminha formosa donzeladevota de Santa Iria?

– Não te aflijas, cavaleyroque acharás a tua noiva,coberta de brancas sedas.

– Dizei-me vento andarilhoonde posso encontrá-lae tornar-me seu marido?

– No primeiro rio mansoestará tua donzelaalvejando as lembranças.

– Adeus, adeus, vento brandoque a branca noiva esperao meu trobar e constância.

– Fico soprando nos ramoscavaleyro, meu amigocavaleyrinho de honra.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 287

BAILADA

No bosque calmo e frolidocon a sua louçaniauma pastora caminha.Ben talhada e prazerosanas mãos leva a pucarinha.

Miram as frores con alegriaseus olhos grandes, atentossempre sós, sem companhia.Enquanto as mãos sem tormentoslevam leve a pucarinha.

E porque vai ver o amadosob o trobador pinheirobaila, baila a pastorzinha.Baila, baila em suas mãosa doirada pucarinha.

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CANTIGA DE MALDIZER

Nenhuma molher cantoucantiga de maldizermas meu ódio é tan grandetan feroz e assassinoque maldigo sempre o diaem que amei teu sorrisoo teu falso juramento.Filho dalgo desprezível!

Molher nenhuma cantoucantiga de maldizermas imenso é meu ódioraiva que queima recintose aos poucos apaga o tempoem que louvei teu sorrisoa palavra mentirosa.Filho dalgo desprezível!

Cantar ninguém me escutacantiga de maldizermas o ódio tem o brilhodo ferro que esgota o sanguee se foste meu amadose sonhei com teu sorrisohoje já não és mais nada.Filho dalgo desprezível!

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 289

MARINHA

A Roberto Pontes

Choram tanto as donzelasque tornam meu sono inquietoas águas vagam sozinhascheias de dores secretas.

Ondas, ondas vogam e vogamvogam e vogam ondas dourovão e vêm, vêm e vãobailando com suas flores.

As donzelas ainda chorame atravessando distânciasno meu corpo caem gotaslágrimas cheias de pranto.

Ondas, ondas vogam e vogamvogam e vogam ondas dourovão e vêm, vêm e vãobailando com suas flores.

Sossegai, minhas donzelasde Portucale e Bragançalembrarei os vossos lábiosembora ame a inconstância.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 291

José Rodrigues de Paiva

Nasceu em Coimbra, Portugal, a 30 de outubro de1945. Radicado em Recife desde 1951, diplomou-se em Direitopela Universidade Católica de Pernambuco em 1969.

Com a dissertação intitulada Mudança: romance-limiterealizou estudo crítico do conjunto da obra romanesca de VergílioFerreira, obtendo com este ensaio, em 1981, o título de Mestreem Teoria Literária, pela Universidade Federal de Pernambuco.No Departamento de Letras da mesma universidade, leciona adisciplina Literatura Portuguesa. É presidente da Associação deEstudos Portugueses Jordão Emerenciano, da UniversidadeFederal de Pernambuco, e diretor da revista Estudos portugueses,editada pela entidade.

Foi diretor cultural do Gabinete Português de Leiturade Pernambuco, onde criou, em 1983, a revista Encontro, quedirigiu até 1987. Poeta, contista e ensaísta, publicou a coletâneade contos Três noites no sobrado (1969) e os livros de poemasO círculo do tempo (1972), Memórias do navegante (1976),Vozes da infância (1979), Os frutos do silêncio (1980), Eros noverão (1983) e Cantigas de amigo e amor (1987). Publicou,também, os seguintes volumes de ensaios teóricos e de críticaliterária: O espaço-limite no romance de Vergílio Ferreira (1984),As surpresas do mágico & outros ensaios (1985) e Reflexos dosigno (1988). Organizou e editou o volume Estudos sobreFlorbela Espanca (1995). Tem colaboração publicada em jornaisculturais e revistas especializadas editados no Brasil e no exterior.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)292

O SONHO DO TROVADOR

Na noite antiga, Senhor,qual Dom Dinis quis cantarum cantar de amigo ou amor.

Mas a noite antiga, amor,eram sombras de embalarum cantar de amigo e amor.

E a noite antiga, Senhor,como um canto de ninar,no tempo veio embalaro senhor do trovador.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 293

CANTIGA DE AMIGO

– Cantigas de amigovim vos perguntarse ouvistes meu cantoseu amor louvar.

Cantigas de amigoqueria saberpor que é triste o cantodeste meu viver.

Cantigas de amigovim vos perguntaronde pode o cantoviver a sonhar.

– Perguntais se vimosvoss’ canto louvaro amor das airosas?Nós vos respondemosque a cantar bailemosenquanto formosas.

Perguntais porquêé triste esse cantoe o vosso viver?Nós vos respondemos:bailemos, bailemos,mais val não saber.

Perguntais, amigo,onde pode o cantoviver a sonhar?Nós vos respondemos:cantemos, cantemospara não chorar!

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)294

Á SOMBRA FLORIDA DAS AVELANEIRAS

Amigas e amigos, ai, vamos rezar.A Santiago vamoso santo louvar,amigas, amigos, ai vamos rezar.

A Santiago vamos, homenagear,amigas, amigos, ai vamos rezar,mais santos louvemosdo que há no altar,amigos, amigas, ai vamos rezar.

Mas depois das rezas, ai, vamos bailar,amigas, amigos,à sombra florida das avelaneiras,ao som de alaúdes, ao som dos pandeiros,bailemos, amigas, depois de rezar.

À sombra florida das avelaneiras,amigas, amigos,tocam flautas doces, vibram pandeiretas,soam alaúdes, tocam cordas secas,à sombra florida das avelaneiras,amigas, amigos,bailemos até nosso corpo agüentare amanhã, amigas, mal o dia nasça,a Santiago iremos depressa a rezar.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 295

EM LISBOA SOBRE O MAR

(Cantiga à maneira de Joan Zorro)

Em Lisboa, sobre o mar,minha Senhora tão linda,barcas novas vou lavrare dentro delas cantaruma canção que não finda.

Nessas barcas, sobre o mar,esta cantiga tão lindaem Lisboa vou cantar,Senhora, por te louvarqueria uma vida infinda.

Barcas novas vou levar,Senhora minha, tão linda,e nessas águas cantarem teu louvor, sobre o mar,uma canção de atafinda.

Uma canção sobre o mar,minha Senhora tão linda,Em Lisboa vou cantarapenas por te louvarmeu coração pulsa ainda.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)296

AS FLORES DO VERDE PINHO

As flores do verde pinhonos navios se vão ao mar.

Ai, Dom Dinis, em Leiriahá pinhos a semear.

As flores do verde pinhonos barcos vão navegar.

Ai, Dom Dinis, em Leiriahá pinheiros a plantar.

As flores do verde pinhoos mastros vão a enfeitar.

Ai, Dom Dinis, em Leiriahá pinheiros a cortar.

As flores do verde pinhovão ao leme a comandar.

Ai, Dom Dinis, em Leiriaos pinheiros chamam o mar.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 297

Glossário

AA – à.ACÁ – aqui, cá.AFAGO – agrado.AFAN – trabalho, pena.AI – interjeição. Ai.AIAR – gemer.AIRE – ar.AL – outra coisa.ALA – asa.ALEIVOSO – desleal.ALONGADO – distante.ALOU-SE – voou.ALVORES – clarões da madrugada.AM – tem, hão.AMARO – amargo.AMAVIOS – gorjeios ou filtro de amor (duplo sentido).AMAVIOSO – feiticeiro.ANHO – carneiro.ANTOLLANÇA – semelhança.ANTORCHA – tocha.AO PEE – ao pé.APENADO – triste.APENAR – entristecer.AQUESTA – esta.AQUESTE – este.ARCANO – mistério.ASPERAR – esperar.ATAN – tão.ATRISTADO – entristecido.ÁUGUA – água.AVER – ter, haver.AVELANEYRAS – árvores frutíferas cujos frutos são as avelãs.AZUR – azul.BEN AVER – ser amado, felicidade.BRIOSO – orgulhoso.CA – pois, porque.CANDEA – candeia, vela.CANDURA – pureza, brancura.CHORAR – lamentar.COYDADO – cuidado, inquietação.

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MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL (ORG.)298

COYTADO – angustiado.COUSENCE – censura.COUSIDO – visto, admirado.COUSIR – olhar, considerar, examinar.CUIDADO – espera, preocupação.D’HONOR – de honra.DELGADO – esbelto, formoso, delicado.DE PRAN – certamente, seguramente.DES – desde.DESVIVER – matar.DIX’ – disse.DOAIRO – donaire, elegância.DOILO – dor.DONA-D’ALGO – fidalga, senhora nobre.DONA-VIRGO – donzela.DOO – dor, sofrimento.DU – de onde.DULTANÇA – dúvida.EI – v. Ey.EY – tenho.EMPERO – porém.EN FORTE PONT’ EU FUI NADO – em má hora nasci.ENO – no.END’– daí.ERMIDA – capela.ESTORNINO – estorninho, pássaro.EXTASE – elevação espiritual, êxtase.FERIDO – lugar onde ocorria a guerra, fossado.FEZO – fez.FILHO-D’ALGO – fidalgo.FIN – morte; fim; perfeição.FONTAINHA – fontezinha.FONTANA – fonte.FOSSADO – lugar da batalha.FREMOSO – formoso, belo.FROLIDO – florido.FROR – flor.GRADO – gosto, agrado.GRADOER – agradar.GRANADA – vermelha; coberta de grãos, ou botões.GREU – difícil, custoso.GUARIDO – curado.HU – onde, quando.H%A – v. hunha.HUNHA – uma.

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POESIA MEDIEVAL NO BRASIL 299

H%S – uns.HY – ali.IMIGO – inimigo.LAVRAR – construir, trabalhar, cultivar.LEDA – alegre.LEIXAR – deixar.LEVADO – bravo.LEVOU-SE – levantou-se, acordou.LILIO – lírio.LOADO – louvado.LOAR – louvar.LONGI – longe.LOOR – louvor.LOUÇANA – vistosa.LUMBROSO – luminoso.MAGOA – mácula.MANSSELIA – suave.MARTEIRO – martírio.MENINHAS – donzelas, jovens de boa família.MESURA – medida, cortesia.MIRAGRE – milagre.MOYRO – morro.NEMBRAR – lembrar.NOJAR – prejudicar.NULHA – nenhuma.OME – homem.OO – ó.OYMAIS – de hoje em diante.PASSARINHA – passarinho.PASSO PASSINHO – devagar e sem ruído.PEL – pele.PER – através.PERA – para.PERO – porém.PINO – pinheiro.PLANGER – chorar.PODEDES – podeis.POER – pôr, colocar.PREZ – honra.QUEDO – quieto.QUEDAR – sossegar.QUITAR – livrar.RAZOM – argumentação, maneira.REBANHO – fila.REN – coisa, pessoa.

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RIBA – margem.RÍVOLO – rio.SA – sua.SALUÇAR – soluçar.SANDEU – louco.SE BEN AIADES – se fazeis favorSEDIA – estavaSEED’ EN NEMBRADA – lembrai-vosSÉN – juízo, entendimento, critério.SENLLEIRO – sozinho.SIRGO – seda.SO LA – sob a.SO LO – sob o.SOBOLAS – sobre as.SOO – só.SOUTO – bosque de castanheiras.SURDE – surge.SY – si.TALHADO – proporcionado.TAN – tanto.TANJO – toco.TOLHER – tirar, roubar.TOSTE – cedo, logo, depressa.TRIGUENHA – cor de trigo, típica dos latinos.TROBAR – produção trovadoresca, disciplina trovadoresca.U – onde.U% – um.UOS – vos.VAL – valei-me!VEDRA – velha, antiga.VEGADA – vez.VELIDA – formosa.VERO – verdadeiro.VERRA CEDO – virá cedo.VIÇO – gozo, prazer.VIDES – videiras.VILA – cidade.VILAÃO – plebeu.VIRGEU – bosque.

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Bibliografia utilizadana pesquisa pelos alunos

ALMEIDA, Guilherme. Toda a poesia. São Paulo: Livraria Martins Ed.,1952.——— et alii. Discursos acadêmicos (1927-1932). Vol. VII. Rio deJaneiro: Empresa Editora ABC Ltda., 1937.ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Ed. crítica de Diléa ZanottoManfio. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EDUSP, 1987.BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: NovaAguilar, 1996.BONFIM, Paulo Lebéis. António Triste. São Paulo: Martins, 1947.______. Poemas escolhidos. São Paulo: Círculo do Livro, 1977. São Paulo:Martins, 1978.BRAGA, Marques (pref. e notas). Cancioneiro da Ajuda – vol. 1. LivrariaSá da Costa, Lisboa, 1945.BREA, Mercedes (coord.). Lírica profana galego-portuguesa, 2 vols.Santiago de Compostela: Xunta de Galicia. Centro de InvestigaciónsLingüísticas e Literárias Ramón Piñeiro,1996.COELHO, Nelly Novaes. “A poesia brasileira contemporânea e suas raízesportuguesas”. In: Cadernos de Literatura, nº 8: 19-26. Centro de LiteraturaPortuguesa da Universidade de Coimbra, 1981.COELI, Myriam. Cantigas de amigo. Natal: Clima, 1980.CORREIA, Natália. Cantares dos trovadores galego-portugueses. 2ª ed.,Lisboa: Estampa, 1978.COUTINHO, Afrânio. Enciclopédia de Literatura Brasileira. 2 vols. Riode Janeiro: OLAC-FAE, 1990.COUTINHO, Eduardo F. e CARVALHAL, Tânia Franco. Literaturacomparada; textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.FONTES, Martins. Poesias completas. Santos: Bazar Americano, 1928.5º volume.HILST, Hilda. Poesia. São Paulo: Quíron, Brasília: INL, 1980.JENNY, Laurent et alii. Intertextualidades. Trad. de Clara Crabbé Rocha.Coimbra: Almedina, s/d .LAPA, Manuel Rodrigues. Cantigas d’escarnho e de maldizer doscancioneiros medievais galego-portugueses. 2ª ed., Coimbra: EditorialGaláxia, 1970.LEONARDOS, Stella. Amanhecência. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974.______. Romançário. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília: InstitutoNacional do Livro / MEC, 1974.MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. “Hilda Hilst, leitora dos trovadores

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galego-portugueses”. In Estudos galegos 1. Niterói: EDUFF, 1996. p. 77-88.______. “Fundamentos lendários e míticos dos símbolos galegos”. In:Estudos galegos 2. Niterói: EDUFF, Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998.p. 63-77.______ Peregrinação e poesia. Série Raízes, Rio de Janeiro: Ágora daIlha, 1999.______ (org.). Atualizações da Idade Média. Livro do semináriointerdiciplinar realizado no Instituto de Letras da Uerj (23 a 24 de outubrode 2000). Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2000.______(org.) Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievaisda ABREM. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2001.MEIRELES, Cecília. Obra poética. 2ª. ed. Rio de Janeiro: José Aguilar,1967.______. Romanceiro da Inconfidência. 9ª. ed. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1989.______. Poesia completa. 2 vols. Edição organizada por Antonio CarlosSecchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.MEYER, Augusto. Poesias (1922-1956). Rio de Janeiro: Liv. São JoséEd., 1957.MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros et alli. A Literatura Portuguesaem perspectiva. Trovadorismo / Humanismo. Vol. 1. Dir: Massaud Moisés.São Paulo: Atlas S/A, 1992.MOREIRA, Édison. Tempo de poesia. Rio de Janeiro / Belo Horizonte:Livraria Garnier, 1999.NÓBREGA, Francisca. “Cantigas”. In: MALEVAL, Maria do AmparoTavares (org.) Estudos galegos 1. Niterói: EDUFF, 1996.PAIVA, José Rodrigues de. Cantigas de amigo e amor. 2ª. ed. Recife:GPL/AEPJE, 1988 (1ª. ed. 1987).PENNAFORT, Onestaldo de. Poesias. Rio de Janeiro: Ed. da OrganizaçãoSimões, 1954.SARAIVA, Antônio José, e LOPES, Oscar. História da LiteraturaPortuguesa. 7ª ed., Porto: Porto Editora Ltda, s/d.Prontuário ortográfico da Língua Galego-Portuguesa das Irmandadesda Fala, Revista Galaico-Portuguesa de Sócio-Pedagogia e Sócio-Lingüística, 1984.VASCONCELOS, Marly. Cãtigua proençal. Fortaleza: Nação CaririEd., 1985.VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: Literatura Portuguesa. SãoPaulo: Global, 1987.

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OBRAS DA SÉRIE RAÍZES

1) Peregrinação e poesia (1999) - Maria do Amparo TavaresMaleval.2) Poesia barroca (2000) - Nádia Paulo Ferreira.3) Atualizações da Idade Média (2000) - Diversos.4) Das rias ao mar oceano (2000) - Reynaldo Valinho Alvarez.

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EDITORA

ÁGORA DA ILHA

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