Mania e Melancolia - Foucault

30
II. MANIA E MELANCOLIA A noção de melancolia era considerada, no século XVI, entre uma certa definição pelos sintomas e um princípio de explicação oculto no próprio termo que a designa. Do lado dos sintomas, encontram-se todas as idéias delirantes que um indivíduo pode ter a respeito de si mesmo: Alguns deles acreditam ser animais, cuja voz e gestos imitam. Alguns pensam que são vasilhas de vidro e, por isso, recuam diante dos outros, com medo de se quebrarem; outros temem a morte, à qual no entanto acabam se entregando freqüentemente. Outros imaginam que são culpados de algum crime, e tanto que tremem e têm medo quando vêem alguém ir em sua direção, pensando que querem pôr-lhes as mãos em cima, para levá-los prisioneiros e fazê-los morrer pela justiça 22 . Temas delirantes que permanecem isolados e não comprometem o conjunto da razão. Sydenham observará ainda que os melancólicos são 21 PINEL, Nosographie philosophique, ed. de 1818, III, p. 130. 22 J. WEYER, De praestigiis daemonum, trad. francesa, p. 222. 290 pessoas que, fora disso, são muito comportadas e muito sensatas, e que têm uma argúcia e uma sagacidade extraordinárias. Aristóteles também observou, com razão, que

description

de historia da loucura

Transcript of Mania e Melancolia - Foucault

Page 1: Mania e Melancolia - Foucault

II. MANIA E MELANCOLIA

A noção de melancolia era considerada, no século XVI, entre uma certa definição pelos

sintomas e um princípio de explicação oculto no próprio termo que a designa. Do lado

dos sintomas, encontram-se todas as idéias delirantes que um indivíduo pode ter a

respeito de si mesmo:

Alguns deles acreditam ser animais, cuja voz e gestos imitam. Alguns pensam que são

vasilhas de vidro e, por isso, recuam diante dos outros, com medo de se quebrarem;

outros temem a morte, à qual no entanto acabam se entregando freqüentemente. Outros

imaginam que são culpados de algum crime, e tanto que tremem e têm medo quando

vêem alguém ir em sua direção, pensando que querem pôr-lhes as mãos em cima, para

levá-los prisioneiros e fazê-los morrer pela justiça22.

Temas delirantes que permanecem isolados e não comprometem o conjunto da razão.

Sydenham observará ainda que os melancólicos são

21 PINEL, Nosographie philosophique, ed. de 1818, III, p. 130. 22 J. WEYER, De

praestigiis daemonum, trad. francesa, p. 222.

290

pessoas que, fora disso, são muito comportadas e muito sensatas, e que têm uma argúcia e

uma sagacidade extraordinárias. Aristóteles também observou, com razão, que os

melancólicos têm mais espírito que os outros23

.

Ora, este conjunto sintomático tão claro, tão coerente, vê-se designado por uma palavra

que implica todo um sistema causal, o da melancolia:

Peço-lhes que observem mais de perto os pensamentos dos melancólicos, suas palavras,

suas visões e ações, e verão como todos os seus sentidos são depravados por um humor

melancólico espalhado pelos seus cérebros.24

Delírio parcial e ação da bílis negra se justapõem na noção de melancolia, sem outras

relações, no momento, além de um confronto sem unidade entre um conjunto de signos e

uma denominação significativa. Ora, no século XVIII a unidade será encontrada, ou

melhor, uma troca se realizará — com a qualidade desse humor frio e negro tornando-se a

Page 2: Mania e Melancolia - Foucault

coloração maior do delírio, seu valor próprio diante da mania, da demência e do frenesi, o

princípio essencial de sua coesão. E enquanto Boerhaave ainda define a melancolia

somente como "um delírio longo, obstinado e sem febre, durante o qual o doente está

sempre ocupado com um único .e mesmo pensamento"25

. Alguns anos mais tarde,

Dufour fez com que todo o peso de sua definição recaísse sobre "o temor e a tristeza",

doravante encarregados de explicar o caráter parcial do delírio:

Assim se explica o fato de os melancólicos gostarem da solidão e evitarem as

companhias; é isso que os torna mais apegados ao objeto de seu delírio ou a sua paixão

predominante, seja qual for, enquanto parecem indiferentes a todo o resto26.

A fixação do conceito não se caracteriza por um novo rigor na observação, nem por uma

descoberta no domínio das causas, mas por uma transmissão qualitativa que parte

de uma causa implícita na designação para uma percepção significativa nos efeitos.

Por muito tempo — até o começo do século XVII — o debate sobre a melancolia

permaneceu preso à tradição dos quatro humores

23 SYDENHAM, Dissertação sobre a afeçção histórica. In Médecine pratique. trad. Jault,

p. 399.

24 WEYER, loc. cit., ibid.25 BOERHAAVE, Aphorismes, 1089. 26 DUFOUR, loc. cit.

291

e suas qualidades essenciais: qualidades estáveis que de fato pertencem a uma substância,

que só pode ser considerada como causa. Para Fernel, o humor melancólico, aparentado à

Terra e ao Outono, é um suco "de consistência espessa, frio e seco de temperamento"27

.

Mas na primeira metade do século, organiza-se toda uma discussão a respeito da origem

da melancolia28

: é necessário ter um temperamento melancólico para se ver atacado pela

melancolia? O humor melancólico é sempre frio e seco, nunca acontecendo de ser quente

ou úmido? É de fato a substância que age, ou as qualidades que se comunicam? Pode-se

resumir do seguinte modo o que se conseguiu nesse longo debate:

1. A causalidade das substâncias é cada vez mais freqüentemente substituída por um

percurso das qualidades que, sem o auxílio de suporte algum, transmitem-se

Page 3: Mania e Melancolia - Foucault

imediatamente do corpo para a alma, do humor para as idéias, dos órgãos para o

comportamento. Assim, a melhor prova, para o Apologista de Duncan, de que o suco

melancólico provoca a melancolia, é que nele se encontram as próprias qualidades da

doença:

O suco melancólico está mais capacitado a ter as condições necessárias para a produção

da melancolia do que vossas cóleras queimadas, pois com sua frieza diminui a quantidade

dos espíritos, com sua secura torna-os capazes de conservar por bastante tempo a espécie

de uma imaginação forte e obstinada, e com seu negrume priva-os de sua claridade e

sutilidade naturais29.

2. Além dessa mecânica das qualidades, há uma dinâmica que analisa em cada uma delas

a força que .nela se encerra. É assim que o frio e a secura podem entrar em conflito com o

temperamento, e dessa oposição vão nascer signos de melancolia tanto mais violentos na

medida em que existe uma luta: a força que prevalece e que carrega consigo todas as que

lhe resistem. Assim é que as mulheres, as quais por sua natureza estão pouco inclinadas à

melancolia, quando a ela sucumbem o fazem com mais gravidade:

Elas são mais cruelmente tratadas por esse mal, e agitam-se de modo mais violento, pois,

sendo a melancolia mais oposta a seu temperamento, ela as afasta mais de sua

constituição natural30

.

27 FERNEL, Physiologia in Universa medica, 1607, p. 121.28 A razão desse debate foi o

problema de saber se se podia assimilar os

possuídos aos melancólicos. Seus protagonistas, na França, foram Duncan

e La Mesnardière.29 Apologia pour Monsieur Duncan, p. 63. 30 Ibidem, pp. 93-94.

292

3. Mas por vezes é no próprio interior de uma qualidade que surge o conflito. Uma

qualidade pode alterar-se por si mesma em seu desenvolvimento e tornar-se o contrário

do que era. Assim, quando "as entranhas se aquecem, quando tudo fica assando dentro do

corpo... quando todos os sucos se incendeiam", nesse momento todo esse abrasamento

pode transformar-se em fria melancolia — produzindo

quase a mesma coisa que representa a cera num archote caído... Esse resfriamento do

Page 4: Mania e Melancolia - Foucault

corpo é o efeito comum que se segue aos calores imoderados quando estes se desfizeram

e esgotaram seu vigor31.

Existe uma espécie de dialética da qualidade que, livre de toda coação substancial, de

toda destinação primitiva, caminha por entre inversões e contradições.

4. Finalmente, as qualidades podem ser modificadas pelos acidentes, pelas circunstâncias,

pelas condições da vida, de modo que um ser seco e frio pode tornar-se quente e úmido,

se sua maneira de viver a isso o inclina. É o que acontece às mulheres: elas

ficam na ociosidade, seus corpos transpiram menos (que os dos homens), o calor, os

espíritos e os humores permanecem dentro deles32.

Assim libertadas do suporte substancial onde tinham permanecido prisioneiras, as

qualidades vão representar um papel organizador e integrador na noção de melancolia.

Por um lado, elas vão desenhar, entre os sintomas e as manifestações, um certo perfil da

tristeza, do negrume, da lentidão, da imobilidade. Por outro lado, vão constituir um

suporte causal que não mais será a fisiologia de um humor, mas a patologia de uma idéia,

de um temor, de um erro. A unidade mórbida não é definida a partir dos signos

observados nem das causas supostas; mas, a meio caminho e acima de uns e outros, ela é

percebida como uma certa coerência qualitativa, que tem suas leis de transmissão,

desenvolvimento e transformação. É a lógica secreta dessa qualidade que ordena o devir

da noção de melancolia, e não a teoria médica. Isto é evidente a partir dos textos de

Willis.

A primeira vista, a coerência das análises está assegurada ao nível da reflexão

especulativa. A explicação, em Willis, é inteiramente tomada de empréstimo dos espíritos

animais e de suas propriedades

31 LA MESNARDIÉRE, Traiti de la mélancolie, 1635, p. 10. 32 Apologie pour

Monsieur Duncan, pp. 85-86.

293

mecânicas. A melancolia é uma "loucura sem febre nem furor, acompanhada pelo temor e

pela tristeza". Na medida em que é delírio — isto é, ruptura essencial com a verdade —,

sua origem reside num movimento desordenado dos espíritos e num estado defeituoso do

Page 5: Mania e Melancolia - Foucault

cérebro; mas esse temor e essa inquietação que tornam os melancólicos "tristes e

meticulosos" podem ser explicados apenas pelos movimentos? Pode existir uma

mecânica do temor e uma circulação dos espíritos que sejam próprias da tristeza? Isso é

uma evidência para Descartes, mas já não o é para Willis. A melancolia não pode ser

tratada como uma paralisia, uma apoplexia, uma vertigem ou uma convulsão. No fundo,

não é possível nem mesmo analisá-la como uma simples demência, embora o delírio

melancólico pressuponha uma mesma desordem no movimento dos espíritos; as

perturbações da mecânica explicam bem o delírio — este erro comum a toda loucura,

demência ou melancolia —, mas não a qualidade própria do delírio, a cor da tristeza e do

temor que lhe tornam singular a paisagem. É necessário penetrar no segredo das

diáteses33

. Enquanto isso, são essas qualidades essenciais, ocultas no próprio grão da

matéria sutil, que explicam os movimentos paradoxais dos espíritos.

32. 33.

Na melancolia, os espíritos são arrastados por uma agitação, porém uma agitação débil,

sem poderes nem violência: espécie de empurrão impotente que não segue os caminhos

traçados nem as vias abertas (aperta opercula) mas atravessa a matéria cerebral criando

poros novos, incessantemente; no entanto, os espíritos não se perdem muito nos caminhos

que traçam; sua agitação logo esmorece, sua força se esgota e o movimento se detém: non

longe perveniunt34

. Desse modo, uma perturbação semelhante, comum a todos os

delírios, não pode produzir na superfície do corpo nem esses movimentos violentos, nem

esses gritos observados na mania e no frenesi; a melancolia jamais chega ao furor;

loucura, nos limites de sua impotência. Esse paradoxo é resultado das alterações secretas

dos espíritos. Normalmente elas têm a rapidez quase imediata e a transparência absoluta

dos raios luminosos, mas na melancolia carregam-se de sombras; tornam-se "obscuros,

opacos, tenebrosos".

33 WILLIS, Opera, II, pp. 238-239. 34 Idem, ibid., II, p. 242.

294

E as imagens das coisas que levam para o cérebro e para o espírito estão veladas "por

Page 6: Mania e Melancolia - Foucault

sombras e trevas"35

. Ei-los pesados, e mais próximos de um obscuro vapor químico do

que da pura luz. Vapor químico que seria de natureza ácida, mais do que sulfuroso ou

alcoólico, pois nos vapores ácidos as partículas são móveis, e mesmo incapazes de

repouso, mas sua atividade é fraca, sem alcance; quando destiladas no alambique, resta

apenas um fleuma insípido. Não têm os valores ácidos as mesmas propriedades da

melancolia, enquanto os vapores alcoólicos, sempre prestes a se inflamar, fazem pensar

antes no frenesi, e os vapores sulfurosos na mania, já que são agitados por um movimento

violento e contínuo? Portanto, se se devia procurar "a razão formal e as causas" da

melancolia, dever-se- ia fazê-lo do lado dos vapores que sobem do sangue para o cérebro

e que teriam degenerado em vapor ácido e corrosivo36

. Aparentemente, é toda uma

melancolia dos espíritos, toda uma química dos humores que guia a análise de Willis.

Mas, de fato, o fio diretor é fornecido sobretudo pelas qualidades imediatas do mal

melancólico: uma desordem impotente e depois essa sombra sobre o espírito com essa

aspereza ácida que corrói o coração e o pensamento. A química dos ácidos não é a

explicação dos sintomas; é uma opção qualitativa: toda uma fenomenologia da

experiência melancólica.

Uns setenta anos mais tarde, os espíritos animais perderam seu prestígio científico. É aos

elementos líquidos e sólidos do corpo que se pede o segredo das doenças.

O Dictionnaire universel de médecine, publicado por James na Inglaterra, propõe, no

verbete "Mania", uma etiologia comparada entre essa doença e a melancolia:

É evidente que o cérebro é a sede de todas as doenças dessa espécie... É aí que o Criador

fixou, embora de maneira inconcebível, a morada da alma, o espírito, o gênio, a

imaginação, a memória e todas as sensações... Todas essas nobres funções serão

substituídas, depravadas, diminuídas e totalmente destruídas, se o sangue e os humores,

que pecarem em qualidade e em quantidade, não forem mais levados ao cérebro de

maneira uniforme e temperada, nele circulando com violência ou impetuosidade, ou

movendo-se lentamente. com dificuldades ou languidamente37.

É esse curso lânguido, esses vasos obstruídos, esse sangue

35 Idem, ibid., II, p. 242.36 Idem, ibid., p. 240.37 JAMES, Dictionnaire universel de

Page 7: Mania e Melancolia - Foucault

médecine, verbete «Mania», VI, p. 1125

295

pesado e carregado que o coração tem dificuldade em espalhar pelo organismo e que tem

dificuldade para penetrar nas artérias tão finas do cérebro, onde a circulação deve ser bem

rápida para permitir o movimento do pensamento; é toda essa situação deplorável que

explica a melancolia. Carga, peso, obstrução, tais são as qualidades primitivas que

orientam a análise. A explicação efetua-se como uma transferência para o organismo das

qualidades percebidas no aspecto, no comportamento e nos propósitos do doente. Passa-

se da apreensão qualitativa para a explicação suposta. Mas é esta apreensão que não deixa

de prevalecer, predominando sempre sobre a coerência teórica. Para Lorry, as duas

grandes formas de explicação médica pelos sólidos e pelos fluidos se justapõem e,

acabando por se identificar, permitem distinguir duas espécies de melancolia. A que tem

sua origem nos sólidos é a melancolia nervosa: uma sensação particularmente forte abala

as fibras que a recebem; em conseqüência, a tensão aumenta nas outras fibras, que se

tornam simultaneamente mais rígidas e mais suscetíveis de vibrar. Mas se a sensação

aumentar, a tensão torna-se tal nas outras fibras que elas se tornam incapazes de vibrar; o

estado de rigidez é tal, que o curso do sangue se detém e os espíritos animais se

imobilizam. A melancolia se instala. Na outra forma da doença, a "forma líquida", os

humores vêem-se impregnados de atrabílis, tornando-se mais espessos; carregado desses

humores, o sangue torna-se mais pesado, estagnando nas meninges a ponto de comprimir

os órgãos principais do sistema nervoso. Vê-se surgir de novo a rigidez da fibra, mas

neste caso ela é apenas uma conseqüência de um fenômeno dos humores. Lorry distingue

duas melancolias; na verdade é o mesmo conjunto de qualidades que asseguram à

melancolia sua unidade real que ele introduz sucessivamente nos dois sistemas

explicativos. A única coisa que se desdobra é o edifício teórico. A base qualitativa

experimental permanece a mesma.

Unidade simbólica formada pela languidez dos fluidos, pelo obnubilamento dos espíritos

animais e pela sombra crepuscular que eles espalham sobre as imagens das coisas, pela

viscosidade de um sangue que se arrasta com dificuldade pelos vasos, pela espessura dos

vapores que se tornaram escuros, deletérios e acres, pelas funções viscerais diminuídas e

Page 8: Mania e Melancolia - Foucault

como que coladas — esta unidade, mais sensível do que conceitual ou teórica, dá à

melancolia o caráter que lhe é próprio.

296

É este trabalho, bem mais que uma observação fiel, que reorganiza o conjunto dos signos

e o modo de surgimento da melancolia. O tema do delírio parcial desaparece cada vez

mais como sintoma maior dos melancólicos em proveito dos dados qualitativos, como a

tristeza, o amargor, o gosto pela solidão, a imobilidade. Ao final do século XVIII serão

classificadas como melancolia, sem maiores problemas, as loucuras sem delírio, porém

caracterizadas pela inércia, pelo desespero, por uma espécie de estupor morno38

. Já no

Dictionnaire de James fala-se numa melancolia apoplética, sem idéias delirantes, na qual

os doentes

não querem mais sair da cama; ... quando se levantam, só caminham quando coagidos por

seus amigos ou pelos que os servem; não evitam os homens, mas parecem não prestar

atenção alguma ao que lhes é dito; nada respondem39

.

Se, neste caso, a imobilidade e o silêncio prevalecem e determinam o diagnóstico da

melancolia, indivíduos há nos quais só se observam o amargor, a languidez e o gosto pelo

isolamento; mesmo sua agitação não deve iludir, nem autorizar um julgamento apressado

que conclua pela mania; o que se tem nesses doentes é a melancolia, pois

evitam companhia, gostam dos lugares isolados e erram sem saber para onde vão; a cor

da pele é amarelada, a língua é seca como a de alguém muito perturbado, os olhos são

secos, vazios, nunca umedecidos por lágrimas; o corpo todo é seco e áspero, e o rosto

sombrio e coberto pelo horror e pela tristeza40

.

As análises da mania e sua evolução no decorrer da era clássica obedecem a um mesmo

princípio de coerência.

Willis opõe a mania à melancolia, termo a termo. O espírito do melancólico é

inteiramente ocupado pela reflexão, de modo que a imaginação permanece em repouso e

em estado de lazer. No

38 Um soldado tornou-se melancólico em virtude da recusa manifestada pelos pais de

uma moça de quem gostava muito. Conduzia-se como um sonhador, queixaya-se de uma

Page 9: Mania e Melancolia - Foucault

forte dor de cabeça e de um peso contínuo nessa parte. Emagreceu a olhos vistos; seu

rosto empalideceu; estava tão fraco que soltava seus excrementos sem se aperceber... Não

delirava, embora o doente não desse respostas positivas e parecesse estar sempre absorto.

Nunca pedia para comer ou beber, (Observation de Musell. Gazette salutaire, 17 de

março de 1763).

39 JAMES, Dictionnaire universal, IV, verbete «Melancolia», p. 1215. 40 Idem, ibid., p.

1214.

297

maníaco, pelo contrário, fantasia e imaginação vêem-se ocupadas por um eterno fluxo de

pensamentos impetuosos. Enquanto o espírito do melancólico se fixa num único objeto,

impondo-lhe, apenas a ele, proporções irracionais, a mania deforma conceitos e noções;

ou então perdem sua congruência, os seus valores representativos são falseados; de todo

modo, o conjunto do pensamento é atingido em seu relacionamento essencial com a

verdade. Enfim, a melancolia sempre se faz acompanhar pela tristeza e pelo medo; no

maníaco, pelo contrário, pela audácia e pelo furor. Quer se trate de mania ou de

melancolia, a causa do mal está sempre no movimento dos espíritos animais. Mas esse

movimento é bastante particular na mania: é contínuo, violento, sempre capaz de abrir

novos poros na matéria cerebral, e constitui como que o suporte material dos

pensamentos incoerentes, dos gestos explosivos, das palavras ininterruptas que traem a

mania. Toda esta perniciosa mobilidade não é a mesma da água infernal, feita de líquido

sulfuroso, essas aquae stygiae, ex nitro, vitriolo, antimonio, arsenico et similibus

exstillatae: nela, as partículas têm um movimento eterno; são capazes de provocar em

toda matéria novos poros e novos canais; e têm força suficiente para ir longe, tal como os

espíritos maníacos, que são capazes de fazer entrar em agitação todas as partes do corpo.

A água infernal abriga no segredo de seus movimentos todas as imagens nas quais a

mania assume forma concreta. De uma maneira indissociável, ela constitui

simultaneamente o mito químico e a verdade dinâmica da mania.

No decorrer do século XVIII, a imagem, com todas suas implicações mecânicas e

metafísicas, de espíritos animais nos canais dos nervos é freqüentemente substituída pela

imagem, mais estritamente física porém de valor mais simbólico ainda, de uma tensão à

Page 10: Mania e Melancolia - Foucault

qual estariam submetidos os nervos, os vasos e todo o sistema das fibras orgânicas. A

mania é, então, uma tensão das fibras levada a seu paroxismo, e o maníaco uma espécie

de instrumento cujas cordas, através de uma tração exagerada, se poriam a vibrar à

excitação mais distante e mais débil. O delírio maníaco consiste numa vibração contínua

da sensibilidade. Através dessa imagem, as diferenças com a melancolia tornam-se mais

precisas e organizam-se numa antítese rigorosa: o melancólico não, é mais capaz de

entrar em ressonância com o mundo exterior, ou porque suas fibras estão distendidas, ou

porque foram imobilizadas

298

por uma tensão maior (vê-se como a mecânica das tensões explica tanto a imobilidade

melancólica quanto a agitação maníaca): apenas algumas fibras vibram no melancólico,

as que correspondem ao ponto preciso de seu delírio. Pelo contrário, o maníaco vibra a

qualquer solicitação, seu delírio é universal; as excitações não vêm perder-se na espessura

de sua imobilidade, como no melancólico; quando seu organismo as restitui, elas são

multiplicadas, como se os maníacos tivessem acumulado na tensão de suas fibras uma

energia suplementar. Aliás, é exatamente isso que por sua vez os torna insensíveis, não da

insensibilidade sonolenta dos melancólicos mas duma insensibilidade tensa de vibrações

interiores; sem dúvida é por isso

que eles não temem nem o frio, nem o calor, rasgam suas vestes, deitam- se nus na época

mais fria do inverno sem se resfriarem.

É também por isso que eles substituem o mundo real, que no entanto os solicita

incessantemente, pelo mundo irreal e quimérico de seus delírios:

Os sintomas essenciais da mania provêm do fato de esses objetos não se apresentarem aos

doentes tais como eles de fato são41.

O delírio dos maníacos não é determinado por um vício particular do juízo; constitui uma

falha na transmissão das impressões sensíveis ao cérebro, uma perturbação da

informação. Na psicologia da loucura, a velha idéia da verdade como "conformidade do

pensamento com as coisas" transpõe-se na metáfora de uma ressonância, de uma espécie

de fidelidade musical da fibra às sensações que a fazem vibrar.

Esse tema da tensão maníaca desenvolve-se, além de uma medicina dos sólidos, em

intuições mais qualitativas ainda. A rigidez das fibras no maníaco pertence sempre a uma

Page 11: Mania e Melancolia - Foucault

paisagem seca; a mania faz-se acompanhar regularmente por um esgotamento dos

humores e uma aridez geral em todo o organismo. A essência da mania é desértica,

arenosa. Bonet, em seu Sepulchretum, assegura que os cérebros dos maníacos, tal como

pôde observar, estavam sempre secos, duros e friáveis42

. Mais tarde, Albrecht von Haller

41 Encyclopédie, verbete «Mania». 42 BONET, Sepulchretum, p. 205.

299

também dirá que o cérebro do maníaco é duro, seco e quebradiço43

. Menuret lembra uma

observação de Forestier que mostra claramente que uma perda de humor demasiado

grande, secando com isso os vasos e as fibras, pode provocar um estado de mania;

tratava-se de um jovem que,

tendo-se casado no verão, tornou-se maníaco em virtude do comércio excessivo que

manteve com sua mulher.

O que outros imaginam ou supõem, o que vêem numa quase- percepção, Dufour

constatou, mediu, enumerou. No decorrer de uma autópsia, retirou uma parte da

substância medular do cérebro de um indivíduo morto em estado de mania; cortou nela

"um cubo de seis linhas em todos os sentidos", cujo peso era de 3 j.g. III, enquanto o

mesmo volume, observado num cérebro ordinário, era 3 j.g. V:

Esta desigualdade de peso, que inicialmente parece de pouca importância, não é tão

pequena assim se atentarmos para o fato de que a diferença específica entre a massa total

do cérebro de um louco e o de um homem que não o é, é de 7 gros a menos no adulto,

cuja massa inteira do cérebro pesa normalmente três libras44

.

O ressecamento e a leveza da mania manifestam-se até mesmo na balança.

Esta secura e este calor não são, aliás, comprovados pela facilidade com a qual os

maníacos suportam os maiores frios? Estabeleceu-se que é comum verem-se os maníacos

passeando nus na neve45

, que não é necessário aquecê-los quando são encerrados nos

asilos46

, que é mesmo possível curá-los pelo frio. A partir de Van Helmont, é muito

praticada a imersão dos maníacos em água gelada, e Menuret assegura ter conhecido uma

Page 12: Mania e Melancolia - Foucault

pessoa maníaca que, escapando da prisão em que estava,

percorreu várias léguas sob uma chuva violenta sem chapéu e quase sem roupas, tendo

com isso recobrado sua perfeita saúde47.

43 A. VON HALLER, Elemente Physiologiae, Lausanne, 1763, Livro XVII, ser. I, § 17,

t. V, pp. 571-574.

44 DUFOUR, loc. cit., p. 370-371.45 Encyclopédie, verbete «Mania».46 A mesma idéia

encontra-se ainda em DAQUIN (loc. cit., pp. 67-68) e em Pinel.

Ela fazia parte, igualmente, das práticas do internamento. Num registro de Saint-Lazare, a

respeito de Antoine de la Haye Monbault: «O frio, por mais rigoroso que seja, não tem

nenhum efeito sobre ele» (B.N., Clairambault, 98b, p 117;

47 Encyclopédie, verbete «Mania».

300

Montchau, que curou um maníaco fazendo com que lhe "jogassem em cima, do mais alto

possível, água gelada", não se surpreende com um resultado tão favorável assim; para

explicá-lo, coleta todos os temas de aquecimento orgânico que se sucederam e

entrecruzaram desde o século XVII:

Devemos-nos surpreender com o fato de a água e o gelo produzirem uma cura tão rápida

e tão perfeita num momento em que o sangue em ebulição, a bílis em furor e todos os

líquidos amotinados levavam a toda parte a perturbação e a irritação?

Com a sensação do frio

os vasos se contraíram com maior violência e se libertaram dos líquidos que os

obstruíam; a irritação das partes sólidas causada pelo calor extremo dos líquidos que

continha desapareceu, e com os nervos se distendendo, o curso dos espíritos que se

comportavam de modo irregular, de um lado e do outro, se restabeleceu em seu estado

natural48

.

O mundo da melancolia era úmido, pesado e frio; o da mania é seco, ardente, feito

simultaneamente de violência e fragilidade; mundo que um calor não-sensível, mas

sempre manifesto, torna árido, friável e sempre prestes a se abrandar sob o efeito de um

frescor úmido. No desenvolvimento de todas essas simplificações qualitativas, a mania

Page 13: Mania e Melancolia - Foucault

assume ao mesmo tempo sua amplitude e sua unidade. Sem dúvida ela continuou a ser o

que era no começo do século XVII, "furor sem febre"; mas além desses dois caracteres,

que ainda eram apenas sinaléticos, desenvolveu-se um tema perceptivo que foi o

organizador real do quadro clínico. Quando os mitos explicativos desaparecerem e

quando não mais tiverem curso as idéias de humores, espíritos, sólidos e fluidos, sobrará

apenas o esquema de coerência de qualidades que não serão sequer nomeadas; e aquilo

que essa dinâmica do calor e do movimento agrupou lentamente numa constelação

característica da mania será encarado agora como um complexo natural, como uma

verdade imediata da observação psicológica. O que tinha sido entendido como calor,

imaginado como agitação dos espíritos, sonhado como tensão da fibra, será doravante

reconhecido na transparência neutralizada das noções psicológicas: vivacidade exagerada

das impressões internas, rapidez na associação das idéias, desatenção com o mundo

exterior. A descrição de De La Rive já tem essa limpidez:

48 MONTCHAU. Observação enviada à Gazette salutaire, n. 5, 3/2/1763.

301

Os objetos exteriores não produzem sobre o espírito dos doentes a mesma impressão que

produzem num homem sadio; estas impressões são fracas e raramente ele presta atenção a

elas; seu espírito é quase totalmente absorvido pela vivacidade das idéias produzidas pelo

estado desorganizado de seu cérebro. Essas idéias têm um grau de vivacidade tal, que o

doente acredita que elas representam objetos reais, emitindo seus juízos em concordância

com essa opinião49.

Mas não se deve esquecer que essa estrutura psicológica da mania, tal como ela aflora ao

final do século XVIII para fixar-se de modo estável, é apenas o esboço superficial de toda

uma organização profunda que vai soçobrar

e que se havia desenvolvido segundo leis meio perceptivas e meio imaginárias de um

mundo qualitativo.

Sem dúvida, todo esse universo do calor e do frio, da umidade e da secura, lembra ao

pensamento médico, que está na véspera de sua ascensão ao positivismo, em que céu ele

nasceu. Mas essa carga de imagens não é apenas uma recordação; é, também, trabalho.

Para formar a experiência positiva da mania ou da melancolia, foi necessário, num

Page 14: Mania e Melancolia - Foucault

horizonte de imagens, essa gravitação das qualidades atraídas uma para as outras por todo

um sistema de pertinências sensíveis e afetivas. Se a mania e a melancolia assumem

doravante um rosto que nosso saber reconhece como sendo o delas, não é porque

aprendemos, com o correr dos séculos, a "abrir os olhos" para seus signos reais; não é por

termos purificado, até a transparência, nossa percepção; é que na experiência da loucura

esses conceitos foram integrados ao redor de certos temas qualitativos que lhes deram

uma unidade, uma coerência significativa, tornando-os enfim perceptíveis. Passou-se de

uma assinalação nocional simples (furor sem febre, idéia delirante e fixa) para um campo

qualitativo, aparentemente menos organizado, mais fácil, delimitado com menor precisão,

mas que foi o único a poder constituir unidades sensíveis, reconhecíveis, realmente

presentes na experiência global da loucura. O espaço de observação dessas doenças foi

retirado de paisagens que obscuramente lhe deram seu estilo e sua estrutura. De um lado,

um mundo molhado, quase diluviano, onde o homem é surdo, cego e está adormecido

para tudo que não constitui seu terror único; um mundo simplificado ao extremo e

desmedidamente grande num único de seus detalhes. Do

49 DE LA RIVE. Sobre um estabelecimento para a cura dos alienados. Bibliothèque

britannique, VIII, p. 304.

302

outro, um mundo ardente e desértico, um mundo-pânico onde tudo é fuga, desordem,

sulco instantâneo. E o rigor desses temas em sua forma cósmica — não as aproximações

de uma prudência observadora — que organizou a experiência (já quase nossa

experiência) da mania e da melancolia.

E a Willis, a seu espírito de observação, à pureza de sua percepção médica, que se atribui

a honra da "descoberta" do ciclo maníaco-depressivo; digamos melhor, da alternância

mania- melancolia. Com efeito, a démarche de Willis é do maior interesse. Inicialmente,

por esta razão: a passagem de uma afecção a outra não é percebida como um fato de

observação cuja explicação se teria de descobrir em seguida, mas sim a conseqüência de

uma afinidade profunda que é da ordem de sua natureza secreta. Willis não cita um único

caso de alternância que ele teve ocasião de observar; o que ele de início decifrou foi um

parentesco interior que acarreta estranhas metamorfoses:

Page 15: Mania e Melancolia - Foucault

Após a melancolia, é preciso tratar da mania, que tem com ela tantas afinidades, que

essas afecções freqüentemente se substituem uma à outra:

acontece mesmo à diátese melancólica, se ela se agrava, de tornar- se furor. O furor, pelo

contrário, quando decresce, quando perde força e entra em estado de repouso, transforma-

se em diátese atrabiliária50

. Para um empirista rigoroso, haveria aí duas doenças

conjuntas, ou ainda dois sintomas sucessivos de uma mesma e única doença. De fato,

Willis não coloca o problema nem em termos de sintomas, nem em termos de doença;

procura apenas a ligação desses dois estados na dinâmica dos espíritos animais. No

melancólico, como se recorda, os espíritos eram sombrios e obscuros; projetavam suas

trevas contra as imagens das coisas e constituíam, na luz da alma, como que a ascensão

de uma sombra; na mania, pelo contrário, os espíritos agitam-se numa crepitação eterna;

são arrastados por um movimento irregular, sempre recomeçado; um movimento que

corrói e consome, e mesmo sem febre irradia seu calor. Da mania à melancolia, é

evidente a afinidade: não é a afinidade de sintomas que se encadeiam na experiência: é a

50 WILLIS, Opera, II, p. 255.

303

afinidade, bem mais forte .e muito mais evidente nas paisagens da imaginação, que

enlaça, num mesmo fogo, a fumaça e a chama.

Se se pode dizer que na melancolia o cérebro e os espíritos animais são obscurecidos por

uma fumaça e algum vapor espesso, a mania parece dar início a um incêndio por elas

provocado51

.

A chama, com seu movimento vivo, dissipa a fumaça; mas esta, quando cai, abafa a

chama e apaga sua claridade. A unidade da mania e da melancolia não é, para Willis, uma

doença: é um fogo secreto no qual lutam chamas e fumaça, é o elemento portador dessa

luz e dessa sombra.

Nenhum dos médicos do século XVIII, ou quase nenhum, ignora a proximidade entre a

mania e a melancolia. No entanto, vários recusam-se a reconhecer numa e noutra duas

manifestações de uma única e mesma doença52

. Muitos constatam uma sucessão, sem

Page 16: Mania e Melancolia - Foucault

perceber uma unidade sintomática. Sydenham prefere dividir o domínio da mania: de um

-lado, a mania comum — devido a "um sangue demasiado exaltado e vivo"; do outro,

uma mania que, regra geral, "degenera em estupidez". Esta "provém da fraqueza do

sangue que uma fermentação demasiado longa privou de suas partes mais

espirituosas"53

. De modo ainda mais freqüente, admite-se que a sucessão entre mania e

melancolia é um .fenômeno ou de metamorfose ou de distante causalidade. Para

Lieutaud, uma melancolia que dura muito e se exaspera em seu delírio perde seus

sintomas tradicionais e assume uma estranha semelhança com a mania: "O último grau da

melancolia tem muitas afinidades com a mania"54

. Mas o estatuto dessa analogia não foi

elaborado. Para Dufour, a ligação é ainda mais frouxa: trata-se de um encadeamento

causal longínquo: a melancolia pode produzir a mania, pela mesma razão que "os vermes

nos senos frontais, ou os vasos dilatados ou varicosos"55

. Sem o suporte de uma imagem,

nenhuma observação consegue transformar a constatação de uma sucessão numa

estrutura sintomática simultaneamente precisa e essencial.

Sem dúvida, a imagem da chama e da fumaça desaparece nos sucessores de Willis, mas é

ainda no interior das imagens que o

51 Idem, ibid.52 Por exemplo, d'Aumont no verbete «Melancolia» da Encyclopédie. 53

SYDENHAM, Médecine pratique, trad. Jault, p. 629. 54.54 LIEUTAUD, Précis de

médecine pratique, p. 204.55 DUFOUR, Essai sur I'entendement, p. 369.

304

trabalho organizador é realizado — imagens cada vez mais funcionais, cada vez mais

inseridas nos grandes temas fisiológicos da circulação e do aquecimento, cada vez mais

afastadas das figuras cósmicas das quais Willis as tomava de empréstimo. Em Boerhaave

e seu comentador Van Swieten, a mania constitui, de modo natural, o grau superior da

melancolia — não apenas como conseqüência de uma freqüente metamorfose, mas como

efeito de um encadeamento dinâmico necessário: o líquido cerebral, estagnado no

atrabiliário, entra em agitação ao fim de um certo tempo, pois a bílis negra que atravanca

as vísceras torna-se, por sua própria imobilidade, "mais acre e mais maligna"; formam-se

Page 17: Mania e Melancolia - Foucault

nela elementos mais ácidos e mais finos que, transportados para o cérebro pelo sangue,

provocam a grande agitação dos maníacos. A mania, portanto, não se distingue da

melancolia a não ser por uma diferença de grau: é a seqüência natural desta, surge das

mesmas causas e normalmente é curada pelos mesmos remédios56

. Para Hoffmann, a

unidade entre a mania e a melancolia é um efeito natural das leis do movimento e do

choque; mas o que é mecânica pura ao nível dos princípios, torna-se dialética no

desenvolvimento da vida e da doença. A melancolia, com efeito, caracteriza-se pela

imobilidade, o que significa que o sangue grosso congestiona o cérebro onde se acumula;

lá por onde deveria circular, tende a deter-se, imobilizado em seu peso. Mas se o peso

diminui o movimento, ao mesmo tempo torna mais violento o choque, no momento em

que este se produz; o cérebro, os vasos pelos quais é atravessado, sua própria substância,

atingidos com mais força, tendem a resistir mais, portanto a endurecer, e com esse

endurecimento o sangue pesado é empurrado com mais força; seu movimento aumenta e

logo ele se vê prisioneiro dessa agitação que caracteriza a mania57

. Assim, passa-se

naturalmente da imagem de um congestionamento imóvel para as da seca, da dureza, do

movimento acentuado, e isto por um encadeamento no qual os princípios da mecânica

clássica são, a cada momento, dobrados, desviados, falseados pela fidelidade a temas

imaginários, que são os verdadeiros organizadores dessa unidade funcional.

A seguir, outras imagens virão acrescentar-se, porém não terão mais um papel

constituinte, funcionarão apenas como outras tantas

56 BOERHAAVE, Aphorismes, 1118 e 1119; VAN SWIETEN, Commentaria, III, p.

519-520.

57 HOFFMANN, Medicina rationalis systematica, IV, pp. 188 e seg.

305

variações interpretativas do tema de uma unidade doravante adquirida. Disso é

testemunho, por exemplo, a explicação que Spengler propõe para a alternância entre

mania e melancolia, cujo modelo ele retira da pilha elétrica. De início, haveria uma

concentração do poder nervoso e de seu fluido nesta ou naquela região do sistema; apenas

esse setor é excitado, permanecendo o resto em estado de dormência: é a fase

Page 18: Mania e Melancolia - Foucault

melancólica. Mas quando esta atinge um certo grau de intensidade, esta carga local se

espalha bruscamente por todo o sistema por ela violentamente agitado durante um certo

tempo, até que a descarga seja completada: é o episódio maníaco58

. Neste nível de

elaboração, a imagem é demasiado complexa e demasiado completa, é emprestada de um

modelo demasiado distante para servir como organizadora na percepção da unidade

patológica. Pelo contrário, ela é convocada pela percepção que repousa por sua vez em

imagens unificantes, porém bem mais elementares.

São elas que estão secretamente presentes no texto do Dictionnaire de James, um dos

primeiros autores nos quais o ciclo maníaco-depressivo é dado como verdade de

observação, como unidade facilmente legível para uma percepção liberada.

É absolutamente necessário reduzir a melancolia e a mania a uma única espécie de

doença e, conseqüentemente, examiná-las conjuntamente, pois verificamos em nossas

experiências e observações cotidianas que uma e outra têm a mesma origem e a mesma

causa... As observações mais exatas e a experiência de todos os dias confirmam a mesma

coisa, pois vemos que os melancólicos, sobretudo aqueles nos quais esta disposição é

inveterada, tornam-se facilmente maníacos, e quando a mania cessa, a melancolia

recomeça, de modo que há ida e volta de uma para a outra conforme certos períodos59

.

Portanto, aquilo que se constituiu, no século XVIII, sob o efeito do trabalho das imagens,

é uma estrutura perceptiva, e não um sistema conceitual ou mesmo um conjunto de

sintomas. Prova é que, tal como numa percepção, deslizamentos qualitativos poderão

ocorrer sem que se altere a figura de conjunto. Assim, Cullen descobrirá na mania, tal

como na melancolia, "um objeto principal do delírio"60

— e, inversamente, atribuirá a

melancolia "a um tecido mais seco e mais

58 SPENGLER, Briefe, welche einige Erfahrungen der elektrischen Wirkung in

Krankheiten enthalten, Copenhague, 1754.

59 CULLEN, Institutions de médecine pratique, II, p. 315. 60 Idem, ibid., p. 315.

306

firme da substância medular do cérebro"61

.

Page 19: Mania e Melancolia - Foucault

O essencial não é que o trabalho se realize da observação à construção de imagens

explicativas; pelo contrário, o essencial é que as imagens asseguraram o papel inicial de

síntese, que sua força de organização tenha tornado possível uma estrutura de percepção

onde, enfim, os sintomas poderão assumir seu valor significativo e organizar-se como

presença visível da verdade.