Mania - Luísa Costa Gomes

7/24/2019 Mania - Lusa Costa Gomes

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Contos Digitais DN

A coleo Contos Digitais DN-lhe oferecida pelo

Dirio de Notcias, atravs da Biblioteca Digital DN.

Autor:Lusa Costa Gomes

Ttulo: Mania

Ideia Original e Coordenao Editorial:Miguel Neto

Design e conceo tcnica de ebooks: Dania Afonso

ESCRITORIO editora | www.escritorioeditora.com

2012 os autores, DIRIO DE NOTCIAS, ESCRITORIO editora

ISBN: 978-989-8507-10-5

Reservados todos os direitos. proibida a reproduo desta obra por qualquer meio, sem o

consentimento expresso dos autores, do Dirio de Notcias e da Escrit orio editora, abrangendo esta

proibio o texto e o arranjo grfico. A violao destas regras ser passvel de procedimento judicial, de

acordo com o estipulado no Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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sobre a autora

Lusa Costa Gomes

Nasceu em Lisboa, em 1954. Licenciada em Filosofia, professora, contista, roman-

cista, dramaturga, argumentista, cronista, tradutora, guionista. Publicou 7 romances,7 livros de contos, 2 librettos, 11 peas de teatro. Dirigiu, entre 2000 e 2009, a revista

FICES(revista de contos), de que se publicaram vinte e dois nmeros. Recebeu o

Prmio D. Dinis da Casa de Mateus pelo romance

O Pequeno Mundoem 1990, o Prmio Revista Mxima de Literatura pelo romance

Olhos Verdesem 1994, o Prmio Ea de Queirs da Cidade de Lisboa pelo livro de peas

Ubardo e a Minha Austrliaem 1995, o Prmio Camilo Castelo Branco da Associao

Portuguesa de Escritores porContos Outra Vezem 1998, o Prmio Pen Club (Fico)

e o Prmio Fernando Namora com o romance Iluso, ou o que quiseremem 2010.

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Mania

Lusa Costa Gomes

O carvo gasto; o balde vazio; a p sem sentido;

o fogo respirando frio; o quarto embaciado de gelo;

frente janela, as rvores rgidas de geada;

o cu um escudo de prata contra quem quiser a sua ajuda.

Tenho de arranjar carvo; no posso morrer gelado;atrs de mim o fogo impiedoso, adiante o cu impiedoso,

por isso tenho de cavalgar, cortante, entre ambos,

e na viagem procurar a ajuda do carvoeiro.

KAFKA. Der Kbelreiter.

Surio levantou o auscultador e pousou-o no ombro. Desligou a mquina deescrever. Sou eu, disse a voz. Surio procurava os cigarros por baixo das folhas ma-

nuscritas, e depois os fsforos. A voz insistiu.

Sim, estou respondeu, apontando ao bocal.

Amanh, no Caf Lisboa, s trs. Eu vou de chapu alto, ponha uma braa-

deira azul.

Surio apanhou o lpis e escreveu, desenhando, trs horas, Lisboa, braadeira

azul, acendeu o cigarro, desligou. Telefonavam-lhe de um lugar pblico, era mais

um engano. Se acontecia receber chamadas destas, ficava de auscultador suspenso,

perplexo, desconfiando do acaso. Agora olha as chvenas vazias onde o acar em-

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pedernira, os copos dispersos, com marcas roxas de vinho.

A sala grande demais, pensa. No aqueo. Sentava-se secretria de cachecol e

bluso apertado at ao queixo, s vezes mesmo um cobertor sobre os joelhos. Algum

se quer encontrar com algum, algum leva um chapu alto, algum uma braadeira

azul. V-se reflectido no vidro da janela, acrescenta:

Ainda no tens trinta anos, j s quase extravagante.

A sala no tem luz. Escreve de candeeiro aceso, aquecendo as mos em concha

no calor da lmpada. Distrai-se a olhar o estore da nica janela que ainda abre,

encravado, de tabuinhas oblquas. Concentra-se depois na histria que no consegue

escrever, percorrendo as personagens vagas, desfocadas, deambulando pelo enredo

que no vislumbram. Sete dias de meias pginas para se enfurecer, para lamentar a

improduo, a produo defeituosa, o alastrar das folhas inteis.

Vamos ao terceiro caf da tarde. Ao passar pelo radiador trata-o com uma

pancadinha para lhe avivar a chama, h uma baforada de cheiro a petrleo, Surio

escolhe a chvena menos suja, esboroada, de meia asa. Deitado na cama inclinada

(trs pernas e um tijolo quase medida), Surio volta ao telefonema e ao encontro

marcado. A sua curiosidade sonolenta, mas ainda curiosidade. E h a questo das

meias pginas e a perspectiva de caar o real onde ele se mostra mais denso. Escolhe

termos que sirvam a descrio da sala, velha, srdida, lgubre, hmida, como uma

esquina, um canto no fundo de uma esquina, e ocorrem-lhe outros como fechamen-

to, tristeza fria; como o tempo, de chuva sem intervalo, mudando s a qualidade eo brilho da pouca luz, em que os dias que no foram j propriamente dias acabam

ainda por cima s cinco da tarde.

Uma voz de homem marca um encontro. Surio tem mais frio: da vir, talvez,

um episdio para a escrita. H-de ser um marginal, ou no se teria esquivado,

marcado de raspo essa hora, de um lugar pblico e ele annimo. Mas o chapu alto,

a braadeira azul, apontam outra coisa, incomodativa, ostensiva, fora do protocolo.

Surio j decidiu ir, vai adormecendo e acordando ao longo da noite, bebendo na

insnia entrecortada; desenha na parede a sombra da mo esquerda. Uma cabeavazia, a mo esquerda; o retrato de Letra, espantada na moldura, colada na parede

amarela em que a fenda se interrompe acima do cabelo e retorna no peito, vertical,

cortando-a em metades desiguais.

Antes de sair, preparando-se ao espelho, Surio conclui que no se parece

com ningum e que, mesmo assim, um rosto neutro. Talvez passe por estudante

retardado, ainda na rotina das ausncias e das presenas, fixo no prazer de faltar aos

deveres. Passeia devagar, embora no v com muito tempo. Quando vira direita,

para a Travessa do Cego, colhido de surpresa pelos cnticos de uma congregao

clamando intramuros com indiferena. Mistura-se com a gente, finge fazer parte

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de grupos; pra para ver os cartazes dos cinemas, onde as filas so j desencorajan-

tes. Entra finalmente no caf, encosta-se ao balco da tabacaria esfregando as mos,

sacudindo a chuva; viu logo o homem do chapu na mesa de canto.

Magro, branco o homem da cartola levanta os olhos; curvado sobre a

chvena, erguera s um rosto translcido, os olhos azuis carregados de kohl,pacientes.

Mau sinal pensou Surio sabe esperar. Desdobrou o jornal e consultou

a pgina dos cinemas. Depois enfiou a braadeira e chegou-se mesa, sentando-se,

deslizando para a frente do outro, estendendo-lhe a mo. Recebeu o envelope, tocou

no bolso interior do casaco. O outro tirara o chapu e passava o dedo no rebordo da

aba enquanto Surio abria o envelope.

Os cinco mil.

No trago tanto comigo. S tenho dois. Calaram-se, Surio embaraado.

Interessa-te o relgio?

O outro estendeu-lhe a cartola, Surio desapertou a correia, despejou o relgio

de entre dois dedos.

O Boris e os relgios! sorriu o outro. Sopesou-o, virou-o, bateu-lhe ao de

leve no mostrador quase antigo! disse Surio, para lhe acalmar a explorao,

e ele sorriu com algum saber, brincando com a corda, esticando, experimentan-

do a correia. Passou-a afinal entre a cava e o decote do colete, fixando o relgio

sobre a clavcula. Levantava-se j, Surio apontou-lhe num gesto rpido a cadeira,

ele voltou a sentar-se. Talvez ainda precise de ti. Perdi o teu contacto. Ficara sem o dinheiro, sem

o relgio, e sem saber o que comprara.

No h contacto disse o outro.

Agora parecia no querer ir-se embora. Acomodara-se, apoiando os braos em

cruz nas costas da cadeira, estava para passar o resto da tarde. Surio, sentado na

ponta da cadeira, remexe o envelope sem impacincia, mudando-o de bolso, e o

silncio instala-se. Surio disse que continuava a chover.

O melhor esperar respondeu Boris, como se lhe tivesse perguntadoalguma coisa.

Bebemos? e Boris concordou. Ainda no a hora de as velhinhas encomenda-

rem os seus garotos. De repente h um arrastar de cadeiras, duas mulheres levantam-

-se e esperam porta que a chuva abrande. Surio anota tudo isto, obrigado a olhar.

Mas j est vontade com Boris, cumplicidade de se terem sentado mesma mesa,

com direito a todas as frases, indecididas, ntimas, todo o material das conversas.

Muito trabalho? perguntou Surio, displicente.

Muito estudo. Dantes o Boris andava nuns sapatinhos de palerma, abreviava.

Se lhe davam que fazer, era incmodo. Nessa altura tinha uns cabelos encarnados,

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era um viquingue. Ainda no se mandara ao loiro-branco.

Agora ests muito mais apresentvel... adiantou Surio.

Agora olha, observa, estuda, verifica Surio arma-se contra a atitude plcida

e violenta de Boris, coloca vocabulrio medida nos seus gestos, estilizando-o em

personagem, enquanto Boris fala em direco ao outro canto da sala onde um ho-

menzinho fascinado se obriga a ouvi-lo. Boris olha-o com fora, passando ao largo

da orelha esquerda de Surio (ele volta-se para trs constantemente) atingindo o

homenzinho em cheio, que no distingue os sons mas se sente talvez no dever de

os decifrar; Boris fala baixo, quase murmurando, e faz-se ouvir. Comea a cair um

granizo forte, irrompe no caf gente foragida, parando porta e olhando, confusa,

os habituais do escuro.

O Boris uma obra de engenharia Surio sente-se de repente ameaado, o

rapaz toma-se a srio, de tal modo que se impe ao homem sentado do outro lado da

sala, preso e alheio, bebendo aguardente, a mo tremendo na luz acinzentada.

O Boris achava-se um heri que ainda no tinha livro. Mas no andava para

a a ensaboar pastilhas, nem comeu o po que o diabo amassou, nem esvoaou para

a salvao. Se morria, soltava a pomba, se no, matava gente.

Surio encolhe os ombros. Matar abstracto. Quer voltar para a mquina de

escrever, adiantar a histria, produzir palavragem.

Aquela figura afinal no lhe serve, parecera-lhe que sim, a princpio, quando

Boris segurara no guarda-chuva e na cartola como se fossem armas de ilusionistae quisera sair, porque se movera de uma forma inefvel e mantivera uma ginstica

de suspenses, lenta, como um caador indgena, diria Surio, e era uma analogia

imediata e tambm injusta. Surio luta com a literatura dentro de si. Olha para trs,

para a porta. O homenzinho escapara-se, aproveitando uma distraco de Boris. Que

agora se comportava fora das expectativas e no era mais interessante por isso. Es-

forava-se, como um personagem. Surio insistiu que era intil para a histria que

escrevia, e que se imobilizara, e s ficou sentado porque no encontrou as palavras

de sada e queria adiar os prximos passos, a leitura do envelope comprado e o queteria de seguir-se. Pergunta:

E como , o crime? surpreendido, porque tem mais medo do que curiosida-

de em saber, e Boris recosta-se amuado, de cabea baixa.

Diz-me tu.

Despe a braadeira, este um jogo para adolescentes; conclui que Boris apenas

um marginal menor, um exibicionista, um actor. Levanta-se, Boris continua a

desenhar. Surio julga reconhecer um conhecimento entrada do caf, esconde-se

por trs do arco.

Abre o envelope e l a carta pelo caminho. Em casa entala-a com cuidado sobre

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o retrato de Letra, fungando e bebericando brandy. J a sabe de cor: querida Belle,

estou em Lisboa por uma semana, estou no hotel Fnix, espero que no me tenhas

esquecido, eu penso sempre em ti, queria tanto explicar-te, bacci, teu, Fabrizio.

Traz o carimbo dos Restauradores, um post scriptum em letras maisculas NO

ME TELEFONES NUNCA. ESCREVE-ME.

Um namoro antigo, sem dvida. Mas cinco contos por uma carta? Procura na

lista o nmero do hotel; agora passam-se as coisas com urgncia, e Surio s se sente

a perder tempo. Tem que escrever. Para qu esbanjar-se por histrias paralelas que

no lhe dizem respeito?

Do hotel respondem-lhe que no h Fabrizio nenhum, nenhum senhor italiano.

Nem julgam que venha a estar no dia seguinte. Surio j o esperava, mas h dema-

siadas direces nos factos para que se possam abarcar num s sentido o mal-en-

tendido primeiro, o encontro com o punk, a compra de uma carta, a carta de algum

que no estava onde dizia estar.

Irrita-o no ter sabido interrogar Boris que se mostrara predisposto conversa-

o e inconfidncia. Sentado mquina, olhando a folha entalada, rev as hipteses

habituais, chantagem, falsificao, roubo, crimes sobre a emoo, e decide procurar

a mulher, Belle, vigi-la, dar-lhe a carta? Se a morada que ela escreveu no envelope

estiver certa, a casa no longe. Esgueira-se pela janela da cozinha, e corre at

mercearia da frente para se abrigar da chuva. Decorre uma discusso terica acerca

do aumento dos preos. O merceeiro lamenta-se, perdeu h muito a f no futuro dopas. Surio espera vez, compra uma laranja, verifica-lhe o peso, so cento e setenta

e cinco gramas, vai ser uma conta complicada.

Parado porta, olhando para baixo, para a direita, v-se includo no enfiamento

dos candeeiros sados das fachadas como sinos, projectados do perfil plano das casas.

Pouco abrigo pelo caminho. S alguma porta aberta, alguma ombreira, se continuar

a chover assim a pique. Chegando Rua dos Navegantes, procura a casa de Belle, e

depois um nicho para esperar. A porta do prdio em frente da casa est entreaberta,

Surio encaixa-se, rgido, dizendo: repara no passeio alto, de empedrado; repara nafeia casa ao fundo da rua; sentindo ao mesmo tempo as outras coisas, inmeras, em

que no pode reparar.

V uma mulher sair, com pressa. Aflige-o uma grande indeciso; h toda

a estpida futilidade, e a zanga de uma espera to vaga. Retira a carta e volta a

guard-la no bolso; quer uma ideia sbita que o desembarace, ter a viso imediata

da coisa certa, o sentimento da evidncia, da justeza o que deve fazer. Mas a igno-

rncia, a morte ignorando, a morte estpida. No saber ler factos. quando Surio

se revolta, envolvido pela rua, o amarelado das casas, o passeio de empedrado e os

detalhes: o azulejo, a janela de forma nica, a varanda de ferro. Estar assim rodeado

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de coisas que apertam, na rua a ver a mulher sair. Ter que se mover em qualquer

direco. Agarrar a oportunidade em cheio, lcido, senhor de si. E tudo lhe escapa,

ao ignorante. Corre at ao fundo da rua, v-a mandar parar um txi, abrir a porta.

Vai desaparecendo at deixar uma perna de fora, na meia escura, uma canela, a ponta

do sapato. E depois uma sombra dentro do carro.

Volta ao mesmo stio, para vigiar. Devem ser seis horas, comea a chegar gente.

Rel a pgina dos anncios de casas para alugar, reforando o crculo negro das

que j assinalara, agora que o jornal uma massa empastelada, debotada. Quando

Surio guarda a caneta, aproxima-se um homem do porto da casa. Rel o nome e

a morada de Belle. No sabe. Precipitar-se para o homem, ou esperar mais, at vir a

resposta, ou subir a rua, correndo? O outro retirou as chaves, escolhe. alto, anota

Surio. Dirige-se-lhe num impulso, atravessa-se no caminho dele de olhos baixos, o

envelope na mo estendida, estacando, curvado, tremendo de frio; repara na grade

do porto, pensa, e olha de soslaio para o ferro forjado, sem distinguir as lanas que

o rematam, porque no quer virar a cabea. Repara, acrescenta, veste gabardina.

O homem olha-o um instante, tem um murmrio de surpresa indignada,

empurra Surio ao de leve sem querer faz-lo cair, um abano de fria contida.

Voc doido? O que est aqui a fazer? Surio compreende que foi este o

homem que quis comprar a carta, o primeiro telefonema era-lhe destinado. Com

um sinal de cabea, aponta-lhe a porta aberta onde Surio esperara e apressa-se,

puxando-o pela manga com as pontas dos dedos. Recolhem-se no vo da escada, ohomem espiara as janelas da rua uma por uma antes de entrar, parece mais calmo,

numa ira mais serena, resmunga:

Imbecil, imbecil Surio mantm-se muito quieto, respirando pouco, como

morto, no escuro. Depois de uma pausa, o homem acende a luz da escada.

Quanto ?

Sete murmura Surio.

Tinha-se falado em quatro mil.

Surio calava-se. O outro abriu o envelope, chegou-se para a luz.Est satisfeito. Retira uma nota de cinco mil.

Ficamos assim?

No disse Surio, a voz baixa para se notar menos o tremor. Sete mil.

Deu-me muito trabalho.

No me aparea mais aqui.

O homem recua um pouco, depois puxa Surio para a luz pela gola do casaco

(um colrico!) e olha-o de perto friamente, uma das mos enluvada, a outra nua,

agarrando-lhe a cara, voltando-a para a lmpada, que se apaga.

No aqueo diz Surio na sala enorme. O homem a repuxar-me, eu batia

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os dentes de frio. H um espao em branco. Agora o Fabrizio. Surio, novamente

sentado na cama, aquecendo as mos no copo de caf. Ouve baterem em baixo

janela da cozinha, s Letra sabe que por ali a entrada, Surio abre devagar a porta

da sala, espreita varanda de um dos quartos vazios. V de cima a querida cabea de

Letra (arbusto entre arbustos do brbaro jardim), aps tanto tempo de abandono.

Mas recolhe-se com disciplina, diz para si:

Agora no, Letra, agora estou a brincar.

Letra espera ainda, Surio senta-se secretria, apaga a luz. Depois ouve-a abrir

o porto e sair, fechando-o atrs de si. Querida Letra, sempre a fechar os portes

com cuidado.

J anda na rua a gente da noite. Ao entrar, Surio nota que os hotis costumam

abafar os passos. Este no. Dirige-se recepcionista, o porteiro olhava-o indeciso.

Surio imagina-se vestido de porteiro, a ideia desconfortvel, mal-vinda. Respira

fundo, comea:

Chamo-me Fabrizio Ciardi, queria pedir um favore la signorina.

A mulher debrua-se com solicitude. Tem no cabelo um ganchinho vermelho

em forma de corao.

Io estou em Lisboa por uma semana, no? Fiquei em casa di amici, ma ho detto

a outri amici que ficaria en este hotel. Se me procuran ou me escreven, no? Ento

eu pedia signorina que me guardasse as cartas ou outras coisas para mi e me tele-

fonasse a este nmero quando houvesse mensagem, si? Fabrizio o meu nome. Este o nmero.

Surio parara sem flego, envergonhado e orgulhoso do espectculo. A imitao

fora miservel, mas no desagradara rapariga que aceita o papel e o nmero; Surio

acha-se com vitria fcil, o que lhe d nervo para acrescentar encenao um olhar

lnguido, uma hesitao, e uma sada terna.

Grazie, ciao.

Voltando para casa, vai apanhando no ar falas entrecortadas, tentando manter-se

distncia das arestas dos guarda-chuvas; sente mesmo vergonha. E de cada vez quese lembra da cena, da arregalada ingenuidade da recepcionista, do seu papel de in-

dustrioso meio gigoldesenvolto, estremece, fecha os olhos para a afastar. Indigna-o

ao mesmo tempo a facilidade da torpeza e a avidez com que a gente se deixa iludir.

Deitado, vestido, em cima da cama, com febre, tem uma exaltao, h-de escrever isto

tudo, a fico coitada monstruosa devora o que a antecipa, o que a imita, pobre realidade.

A recepcionista telefonou de manh, tinham trazido uma carta para Fabrizio.

To cedo? perguntou Surio. Doa-lhe o corpo todo da batalha do sono,

tinha os olhos inchados. A sair do quarto tropeou no alguidar entretanto cheio das

gotas que pingavam do tecto. Parou a olhar a forma que o charco tomava, repara na

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sombra da janela no cho, repara na sombra da janela no cho, e repetia-se pela rua

abaixo ao ritmo dos passos que o levavam pelo caminho mais longo. A recepcionista

apresentou-lhe a carta e um ar reservado, e Surio no queria enveredar pelo espec-

tculo indecente mais uma vez, mascarou-se de tmido, sorrindo a meia boca.

A carta no tinha selo, nem carimbo. Surio teve medo, perguntou quem a

entregara ali; a recepcionista descreveu uma mulher, displicentemente, apoiando

dois dedos no telefone. Talvez nem fosse Belle. Surio s a vira de longe, e a rapariga

descrevia olhos, boca, expresso, ar de pessoa bem criada, bem na vida, e Surio

invejava-lhe o apetite pela exactido. Tornou a fazer-lhe as recomendaes e saiu,

guardando a carta por baixo da camisa, onde ainda no estava molhado.

Escolheu um caminho cheio de desvios, parando para ler a carta de Belle, emo-

cionado, como se fossem para ele esses suspiros no, Fabrizio, no te esqueci, penso

em ti, vem buscar-me amanh s duas horas, podemos passar a tarde juntos, tua,

Belle, vem buscar-me s duas horas, no te esqueci, passaremos a tarde juntos,

Belle, amanh, s duas horas, no te esqueci, temos a tarde, Belle. Vogando nos

guarda-chuvas, rasando gente hmida. Letra nunca lhe escrevera, nunca se tinham

separado at se separarem. O que lhe sugere o carto de Belle antes a imagem

dos bilhetes passados entre carteiras no liceu, com comentrios, combinaes: vais

ao jogo amanh? Queres vir estudar matemtica comigo? A carta de Belle dera-lhe

uma disposio benigna, talvez estivesse um bocadinho apaixonado ou, pelo menos,

com febre. Pede o nome do proprietrio e o nmero de telefone pela morada, liga,esperando que seja o homem a responder, mas Belle quem atende; Surio deseja

falar com Leo Averal, o dono do telefone. Do outro lado a sala est muito silencio-

sa, Surio ouve-o pegar no auscultador, diz-lhe:

Ela escreveu. Na estao do Rossio, hoje, s sete? porta principal? Ela pede

que Fabrizio a v buscar a casa, amanh s duas, para passarem a tarde juntos.

Desligam o telefone.

Estou inquieto diz Surio para o bocal.

Chega adiantado. Sacode-se da chuva, l as parangonas dos jornais encostado ombreira, no caminho de toda a gente. Tire-se da, grita-lhe o ardina. Leo pra a

alguns passos, faz-lhe sinal. Uma direco determinada, observa Surio, olhando a

gente que sobe a escada. Entram num caf, Leo escolhe uma mesa discreta e senta-se

de costas para a porta. Empurra um envelope para a frente de Surio, que o abre,

desdobrando a carta. Fabrizio cancelava o encontro, tinha que sair de Lisboa por uns

dias, voltaria em breve.

Se voc me pudesse fabricar isso para amanh, com data de hoje disse Leo,

sem grande nfase. Tem de ser entregue pela uma.

Pediu caf para ambos, e lcool, e deixou-se curvar sobre a mesa como se desaper-

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tasse a gravata talvez achasse intil a pose digna dizendo, numa voz em queda:

Belle desapareceu.

Surio teve o seu calafrio. O desaparecimento de Belle implicava o seu prprio

desaparecimento. Procurou o amparo de algum conhecido no caf compre-

endendo, enfim, que procurava Boris. Leo olhava para ele, bebendo, pousando

o balo. Surio procurava nos bolsos uma arma qualquer; encontrou apenas duas

canetas de feltro e as chaves de casa, onde a ferrugem comeava a pegar. Usara em

tempos um canivete que deixara de abrir. Devia estar em casa, no copo dos lpis.

Leo convocou-o para jantar. Estava impaciente, chegava-se para Surio como se

quisesse empurr-lo, apress-lo, quase lhe tocava, mas afastava-se, para recomear

logo. Fazia um marido abandonado pouco credvel.

Surio, esse, paralisara. Via as aproximaes e recuos de Leo. Estava no centro

da armadilha, seria de novo a morte ignorante, perplexo com essa rigidez, pergun-

tando-se o que sentia, desejando pergunt-lo a Leo.

Nessa noite, percorreram os bares e os cafs, os que um conhecia, os que outro

conhecia. E quando j estavam bebidos, Leo equilibrando-se numa gravidade sem

propsito, Surio encostou-se ao balco e perguntou:

Quando olhas para a gente, o que vs?

Carne. Se sangra porque tem recheio.

Sangue! disse Surio, enjoado, para dentro do copo. E quando mulher,

o que sentes? A minha? Surio reparou que ele ocupava agora mais espao, os braos que

usava aferrados ao corpo afastavam-se. Nojo.

Leo cabeceava moderadamente sem perder a dignidade, acotovelando mltiplos

bebedores. Surio, mais sbrio, lana-se procura. Quer saber verdades.

E Fabrizio?

Amante dela.

Como se previa.

Olhavam pela porta da copa entrevendo, quando instantaneamente aberta, umhomem de branco que esfaqueava um alguidar. Enterrava e desenterrava a faca,

torcendo, apunhalando.

gelo disse Leo.

Saram, amparando-se. Levantaram as golas ao mesmo tempo, tiveram o mesmo

encolhimento, o de Surio, reflexo, o de Leo, castigado; e olharam para o cu.

Ainda chovia muito, era a mesma noite. Curioso, pensou Surio pomposamente,

repara que de dia a luz a todas as horas diferente mas a noite sempre da mesma

escurido. E, no entanto...

s tu ento quem escreve as cartas de Fabrizio? perguntou, afastando-se,

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mas Leo j seguia o seu caminho, subitamente sbrio em direco a casa.

Talvez j l esteja... disse para trs, e Surio voltou-se para a rua e leu ovos

frangos perus patos codornizes no dorso de uma camioneta que passava devagar.

Espantou-se por ser j to tarde ouvira algures o carro do lixo roncar e tinha de

escrever, andava a perder tempo e afinal seguia Leo que dobrava esquinas e se metia

por ruelas como se quisesse perd-lo.

Em casa, Leo desfalecia ao piano, gritava Belle de vez em quando. Surio vai

abrindo portas at encontrar a cozinha, meio limo no frigorfico e garrafas vazias.

No corredor, tropea na mesinha do telefone, dobra-se para apanhar uma agenda

que cara, guarda-a no bolso. Ao fundo do corredor, pelo vitral, aparece a primeira

luz da manh, a primeira chuva.

Ouve grande comoo na sala, Leo tenta desemaranhar-se do piano e caminha

quase a direito sobre Surio, de braos estendidos, entornando vasinhos e bibelots.

Encontra-ma, Boris, s tu ma podes encontrar.

absurda repete Surio esta noite em claro. Afasta Leo, senta-o no sof.

Sabes onde encontrar Fabrizio. Foi ele quem ma levou.

Fabrizio? rindo-se, tendo que se rir.

Subiu as escadas, entrou nos quartos, procura do de Belle, mas nada lhe

permitia identific-lo. Esperava porventura um cor-de-rosa, com cama de dossel e

cortinas de renda; acabou por se deitar num canap de veludo, desconfortvel, que

lhe abrandava as tonturas. Dura-lhe pouco o sono, ao acordar procura Leo, talvezadormecido ao piano; a meio das escadas esquece-se inexplicavelmente dele, tem

urgncia em sair, em chegar a casa, para pr a cabea em ordem e arrumar-se; sente

a familiaridade da ressaca, que considerar a vaidade de todo o movimento.

Boris esperava-o porta de casa, a gabardina curta manchada pela chuva nos

ombros ao longe parecia uma sobrecapa. Surio demorou a reconhec-lo, de cara

lavada, depois percebeu que chegara o momento de confisses e de admitir no s o que

Boris j descobrira o nome, a casa, talvez mais , mas o que o assustava, as hipteses

que faziam de Leo um matador, primeiro na inteno, agora na aco, ideias que lhesugeriam confusamente, mas com grande energia, o perigo certo, uma cilada.

Corre-te bem o negcio, mas isto no pelo dinheiro disse Boris. O tom era

terno. Aproveitamo-nos de um erro humano para uma aventura? Bom material

para a mania de o escrever?

Entram pela janela da cozinha; na sala, Surio passa-lhe um copo para a mo,

deita caf aquecido, contente da inteligncia de Boris, da sua vigilncia, da suspeita

finalmente fundada, e da oportunidade de fazer dele um aliado contra Leo. Ainda

bem, diz Surio, e sorri, apontando a gabardina de Boris onde, altura do peito, ele

pregou a bandeira dos piratas.

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Sentam-se como para uma grande conversa; Surio, cansado, quer dizer verdades

e justamente a Boris, que ali est para as ouvir:

Parece que me telefonaste por engano de propsito.

Boris sorri, mas pouco, abomina os dilogos que escorregam nessa vertente,

antecipava que lhe perguntassem se tivera uma infncia feliz quando ele era, feliz-

mente, ainda a mesma criana. Mas Surio desiste logo, chegou a fazer um gesto de

apaziguamento, como se soubesse dos desagrados de Boris. Curvou-se sobre o caf

para esfregar algum vapor na cara.

Belle respondeu carta de Fabrizio. Se a primeira carta era verdadeira,

escrita por Fabrizio s tu? Ou ela? Ou o marido dela? Diz que Belle desapareceu.

Diz que ele a levou. Pede-me que a descubra, e ao mesmo tempo, que escrevas mais

esta carta de Fabrizio. Eu acho que ele a matou.

Primeiro ele deu-me a carta de Fabrizio. Depois disse que Belle tinha desapa-

recido, continumos a beber. Acabmos em casa dele, tocou piano, chorou, quis que

lhe trouxesse a mulher. Se ele a matou, uma carta de Fabrizio capaz de lhe ser til.

Boris ouvia. Surio adormecia. Sentados, separados pela mquina de escrever; o

candeeiro iluminava as mos de Boris sobre a mesa, a cabea de Surio apoiada nos

braos, sobre a mquina.

A menos que... disse Boris, e Surio soobrou definitivamente em cima do

teclado. Dormiu uma hora agitada.

Quando acordou, Boris mantinha-se na mesma atitude, olhando, sonhador, aparede onde as fendas abriam caminho. Disse:

Belle escreve um postal ilustrado.

Do Algarve, a dizer que est em casa de uns amigos, que volta daqui a cinco,

dez dias. Estou bem, no te preocupes, quis estar sozinha por uns tempos. Amo-te...

Belle concluiu Boris.

Tens a letra dela? lembrou-se da agenda, Boris procurava papel branco,

uma caneta. Surio vigiava-o, retirava-lhe das mos folhas meio escritas, protector.

Afastou a mquina de escrever, ps frente de Boris a agenda aberta, onde Belleescrevera notas dispersas, gastos, afazeres, e, em Janeiro, duas frases amanh um

novo dia e, mais adiante, no dia vinte no fim, veremos.

Boris folheava quase sem tocar o papel, parecia interessado por tudo, pelo

formato e pelo peso da agenda, e Surio disse: de 1980, no estranho? E o ms de

Fevereiro est riscado.

O Boris faz um de Albufeira. De Barcelona... De Anturpia, afastando-se.

Barcelona j longe demais. Chega um postal.

Olha o mtodo de escrever: movimentos incertos, mas a desigualdade regular,

a comoo que se prev; nervosismo, sensibilidade, instabilidade; repentino aprumo,

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c est, susceptibilidade.

A letra a mulher disse Surio.

Em trs saltos, Boris est junto porta; desce a correr, por cima dos caixotes

e espalhando lixo que se acumulou nas escadas, na luz amarela a sombra a de um

espio de filme animado, a cala curta, riscada pelos fios de chuva que deslizam no

vidro. graflogo, grita Surio, do patamar, isto no fica assim!

Ouve-o abrir a janela da cozinha, saltar e, pela clarabia, v-o dar um encontro

num vizinho, virar para a Travessa do Cego. Surio ri-se sozinho da cumplicidade

com Boris; so todos criminosos, ele, Boris, Leo, mas daqui em diante h mais em

jogo: Surio e Boris esto do mesmo lado.

Boris vem de tarde com o postal de Belle, uma vista de Albufeira, o carimbo com

data quase indistinguvel.

Quanto tempo demora um postal a chegar? perguntou Surio.

Surio mergulha na penumbra da sala enorme, acordando a meio da noite para

beber, e pensar, ou jogar solitrias, tentando adivinhar a sua sorte, o azar, dispondo

as cartas de acordo com as regras. Dormia durante a tarde, e acordava depois para

escrever, para desesperar de escrever.

Quando finalmente Boris aparece, saem ambos abrigados no mesmo guarda-chu-

va, divergindo no meio da gente, Surio eufrico, liberto da casa, e Boris, todo imagem,

silencioso. Sobre o rio entreabre-se a nuvem e a luz raia, batendo na gua. Separam-se

antes de chegarem a casa de Leo, escreve, diz Boris, telefona mais, diz Surio.Boris acena com o guarda-chuva, parado num charco junto ao passeio. Sem saber

se Boris o ouviu, Surio afasta-se, subindo e chega Rua dos Navegantes esperando

que a chuva no passe de poeira. Quando dobra a esquina, sai um velho pequenino e

magro carregando um saco fora de proporo, da porta em frente. Surio deixa-o de-

saparecer ao fundo da rua, aproxima-se e deixa o postal na caixa, olhando as janelas

fechadas, as portadas verde-escuras, depois a imobilidade momentnea da rua, no

intervalo um instante de absoluta fixidez, em que nada sucede. Surio tivera o

cuidado de espreitar a caixa do correio que estava ainda cheia.Quando chega, Boris espera-o porta.

J est diz Surio. Talvez telefone para o hotel, pode haver mensagens

para Fabrizio.

Boris senta-se secretria a ler as semifolhas de Surio, que marca o nmero

do hotel, ouve tocar e desiste quando ningum responde. Imita a letra de Surio,

escreve disciplinadamente, firme, desviando os olhos s para o original, at ter meia

pgina. Mistura-a com as outras folhas e arruma-as junto mquina: est disposto a

conversar quando toca a campainha do telefone.

Surio levanta o auscultador, contrariado:

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Belle escreveu diz Leo. Parece que est bem. A carta j est pronta?

Queria t-la c quando ela voltar.

Ainda no. Tem pressa?

Leo cala-se um instante e parece a Surio um tom de suspeita quando ele diz:

Estranho que ela esteja em Albufeira. Ou ser Quarteira? Fala-me de uns

amigos que no conheo. E desapareceu a agenda. No a viu?

J est a falar sozinho disse Surio, para Boris. Respondeu: No, no vi.

Alis, eu nem sequer entrei no quarto dela... no sabia...

Eu no disse que estava no quarto, estava no corredor, na mesa do telefone...

era uma destas agendas que...

Conversa disse Boris.

No tenho ideia repetiu Surio. Amanh passo a entregar a carta de

Fabrizio.

Sim, noite. Deite-a na caixa.

Se ele matou, sabe que o postal falso. Isso pe-me numa situao ridcula.

Ateno acentuou Boris Fabrizio s tu. Vide, a recepcionista.

Sim, reconhece Surio. A recepcionista, o seu nmero de telefone, a carta, Belle

fugiu com ele, Fabrizio.

Mas no lembra Surio se Fabrizio diz na carta que est fora de Lisboa.

Boris sentou-se na cama. Nem um nem outro queriam falar mais de cartas falsas.

Surio esperava que as coisas se resolvessem por si. Falava da histria que escrevia,deixada a meio; Boris ouvia-o de cabea baixa, as mos escondidas nos bolsos da

gabardina molhada, at que teve um arrepio e Surio ofereceu-lhe um cobertor.

E quem s tu? perguntou Boris, a manta pelos ombros, metido na cama.

Eu no entro nesta histria.

tramada, essa tua constante prospeco de analogias. Para o Boris muito

cansativo.

Estranho disse Surio. Parecias-me um tipo com queda para a criao.

No, no. Ele estuda.E, num movimento, virou-se para a parede, acomodou melhor a cabea na

almofada, fechou os olhos.

Surio d-se o tempo de arrumar a secretria e senta-se para escrever.

Na escurido, escreve sobre a luz. Uma pgina de nomes. A histria que escrevia

j se diluiu na palavragem. E Leo, o enredo, Surio vagamente na expectativa, como

se estivesse no recreio, a viver entre episdios.

J estarei morto? Devia tremer, preparam-me ciladas. Devia sentir-me em

perigo e s me ocorrem nomes. Levanta-se e aproxima-se de Boris. Pe-lhe a

mo no ombro, est quente, agita-se quase, nota a linha de contacto entre a cara e

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o lenol, da mesma cor, escondendo a boca. uma forma de a conhecer, minha

morte. De a criar, para que venha com uma cara conhecida.

Boris acordou, veio sentar-se do outro lado da secretria.

Fumaram. Dormimos por turnos, como na selva, nas expedies, mas Surio

no o disse, j conhecia a averso de Boris pelas frases. Acompanhou-o ao patamar,

esperou at o ouvir na rua.

Voltou a sentar-se, releu a folha, colocou-a junto das outras. Esvaziara a garrafa.

No aqueo.

Tinham concludo que era melhor no levarem a carta de Fabrizio a Leo, pelo

menos enquanto Belle no aparecesse. Surio deitou-se, estava disposto a dormir

dias seguidos. Saiu no outro dia para comprar o jornal e enlatados; passeou, admi-

rando-se da capacidade que o tempo tem de se distender e de encher os cios. Assim

perdeu a tarde, a vaguear. De volta a casa leu a pgina dos cinemas, deliberando,

sabendo j que qualquer deslocao seria um esforo. Janta das latas aquecidas des-

pejadas no prato nico, e recosta-se na cama a beber, abre o jornal. Primeiro, os

crimes. Menor violada em Odivelas. Casal desavindo alvoroa vizinhana. Morte

misteriosa na Lapa.

O doutor Leo Averal, mdico, casado, de trinta e trs anos de idade, residente

na Rua dos Navegantes, foi encontrado morto dentro do seu automvel, na garagem

de sua casa. Ao que foi apurado, a morte ocorreu por asfixia devida a monxido de

carbono, desconhecendo-se ainda as razes do sucedido. O doutor Averal foi cola-borador do nosso jornal entre Agosto de 1980 e Maro de 1982, publicando artigos

de divulgao cientfica.

Surio volta ao princpio. Leo Averal suicidado? Por Belle? Por Boris? Veste-se,

o bluso ainda hmido da ltima chuvada, no sabe onde encontrar Boris mais sai

como se soubesse, desce at ao rio, caminha junto linha do elctrico. Aproximam-

-se trs homens que falam alto, Surio espera que eles estejam mais perto para tentar

reconhec-los, um deles esmurra-lhe a cara, outro agarra-o pelas costas. Tiram-lhe

a carteira, despejam-lhe os bolsos do casaco, entre puxes, em silncio. Afastam--se gingando, Surio senta-se na borda de um canteiro, amparando-se aos arbustos;

retoma o caminho de casa coxeando embora no sinta dores, ou outra coisa, excepto

talvez espanto. Vai rente s paredes, contornando caixotes do lixo, obstinando-se

em no olhar para trs. Como que eles eram? pergunta-se eram trs res-

ponde-se sim, eram trs, mas como eram?

No sei, no reparei.

Surio estaca, indignado, no reparei, repete.

No pude ver. Terei de inventar uma coisa que me aconteceu! Agora fala-se

como a uma criana, para no chorar, nem os vi, no reparei neles, estava demasiado

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ocupado a sobreviver.

Senta-se de novo secretria, arrasta o telefone para junto da mquina de

escrever, vai marcando dgitos sem levantar o auscultador. Carrega devagar nas teclas

da mquina, sentindo o lbio inchar, palpando o rosto procura de sangue ou outro

sinal, mas s a boca que se desloca progressivamente, presa de grande secura. A sala

parece-lhe o nico lugar do mundo isento de ameaa.

Letra tambm pode confort-lo. Mas esqueceu-se do nmero, e para o recons-

truir seria precisa uma teimosia que o ultrapassa. Demora-se a escrever combinaes de

nmeros sem qualquer esperana de acertar no telefone de Letra, sem qualquer esperana.

Quando lhe parece ouvir passos no jardim, avana at ao patamar e espreita. No

v ningum. Entra na sala e fecha-se chave, a mo no peito, a acalm-lo.

Junto janela, curva-se para olhar a rua. Amanheceu. Para o lado do rio, o

nevoeiro espesso. Chove uma poalha esbranquiada, bloqueando a luz. Ouve o

telefone tocar vrias vezes antes de se mexer.

Surio? Belle. Vem esta tarde a minha casa? s quatro?

Este mesmo para mim, pensa.

No me sinto. Mas tremia quando pousou o auscultador na mesa. Eu no

queria nada disto.

Senta-se na cama a beber, ouve a gua nos canos e os passinhos dos ratos no

sto, de vez em quando um motor esforado a subir a rua. O frigorfico roncando e

parando. Depois adormece. Resolvera que afinal no iria ao encontro de Belle, aqueleassunto no lhe dizia respeito, era uma histria que se podia ter passado sem ele,

desde o incio. Passar-se-ia sem ele, da em diante. Boris substitu-lo-ia a responder

convocao de Belle. Boris a quem nada podia perturbar, muito menos um renasci-

mento encenado como este, de surpresa previsvel; Boris saberia movimentar-se de

suspeita em suspeita, flexvel, evadindo-se das mos dos outros jogadores.

Que grande falta de jeito para a vida real diz Surio, e agarra-se frase-de-

-salvao, inseguro, sorri porque se sabe ao contrrio homem de sentido prtico,

desfazendo-se do que o atravanca, buscando do que precisa.Puxa a campainha, tem as mos molhadas. Passa-as pelo cabelo que escorre

chuva. Belle uma apario vestida de negro, o cabelo loiro solto, liso. A Surio

aparece distorcida, como o corredor pulsante, e as paredes que recuam, onduladas.

Na sala, a mesa respira, bojuda, engordada, e o armrio de portas de vidro vibra,

oscilando, at se harmonizar num movimento redondo. Depois abranda-se um

pouco a agitao. Belle faz-lhe um gesto amvel para que se sente e Surio deixa-se

cair no sof, esforando-se por se manter social, sbrio; sente que vai entrar mais

uma vez na zona obrigatria da verdade, mas que agora a aposta maior, h que

tomar precaues das quais se sente, no momento, incapaz.

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Afunda-se no sof de couro, estudando a melhor posio dos braos a melhor

posio defensiva mas o cadeiro , j de si, uma fortaleza. Surio acende o cigarro,

firme, como se fosse fruto de uma deciso muito pensada. Belle compe-se e comea

suavemente, Surio recorda as profecias de Boris, sorri, est tudo certo, ele tinha

razo. Esta mulher capaz de grandes coisas com razo de ser.

O que dir Boris da minha letra? capaz de o revelar pusilnime, enredado,

lento, pesado. Surio tem um sbito desgosto pela sua caligrafia que o pode revelar

assim, tal como ele se v naquele momento, e medo de tudo o que o desvende aos

outros, a comear pelos olhos. Por isso fecha-os, mas abre-os logo sentindo-se

ridculo, pior que fraco.

Sei que conhecia Leo vai dizendo Belle ele contou-me que eram colegas,

amigos? O que aconteceu ao seu lbio? Est muito magoado?

Surio esfora-se agora por manter os olhos bem abertos, abanando a cabea sim

e no, para responder s sucessivas perguntas de Belle, que refora:

Quer beber alguma coisa?

Obrigado.

Ela levanta-se, rodopia mas que devagar! pensou Surio, como que se pode

rodopiar to lentamente? e apresentou a Surio um copo cheio de conhaque.

J agradeci disse ele, estupidamente.

Belle sentava-se; Surio reparou que ela no se deixava cair, mas que se sentava

com rigor, calculando o ngulo e a fora necessria a cada fraco de movimento.Depois, estranhando o silncio, Surio perguntou:

O qu?

Eu ainda no disse nada respondeu Belle, e continuou: Posso dizer-lhe o

que penso? Acha que Leo se suicidou? Tambm no me parece. Era mais de matar

que morrer, no era? Disto que eu lhe queria falar.

Surio juntava os joelhos, imitando Belle, e reparou que as suas posies eram

quase imagens especulares uma da outra. Pensou em diz-lo, mas Belle, ainda

indecisa, antecipou-se: Teria ele inimigos?

Surio comeou a rir, do nervoso, mas tambm da pergunta, e Belle juntou-se-

-lhe num risinho contrariado primeiro, depois estendendo-se francamente cada vez

mais largo, acabando numa espcie de gemido.

Ficaram a olhar-se, a medir-se. Surio avanou:

Eu acho que tu o mataste. O homem no se ia suicidar na garagem. Deste-lhe

uma droga e meteste-o no carro, e par causa de Fabrizio ainda por cima.

Fabrizio? perguntou Belle.

Se calhar at te ajudou a transport-lo.

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Belle calou-se. Parecia, na verdade, apanhada em falso. Depois lembrou-se,

estendeu o brao para pousar o copo:

Mas eu nem sequer estava. verdade que Fabrizio me escreveu, e que eu lhe

respondi, mas arrependi-me logo. Fui para casa de uns amigos, em Albufeira, queria

estar sozinha. No acredita? Posso provar-lho?

Para Surio, a sala rodava lentamente. Suspeitava. Era como se estivesse quase a

lembrar-se de uma palavra adequada.

Isso falso, inventado!

Belle sara da sala, voltava agora, estendendo a Surio o postal que ele e Boris

tinham escrito, imitando a caligrafia dela.

Tem a data do dia da morte de Leo. Quer ver?

Corrigira a data no carimbo, grosseiramente.

No prova nada.

Belle recolheu o postal, releu.

Foi voc, no foi? Fez-se passar por Fabrizio, no sei porqu, talvez para fazer

chantagem comigo, ou com ele? Ou ento meteram-se num negcio qualquer, Leo

no resistia clandestinidade. No me quer dizer o que se passou?

Mas no espera resposta nenhuma, Surio cala-se, as mos pousadas nos joelhos,

os ps juntos, caricato, como um boneco de cera, pronto a ser levado em bloco para o

asilo, ou cadeia. Belle aprecia a vitria sobre Leo, contemplando mais um trofu:

Surio derrocado. Leo gostava muito de jogos. Lembro-me de um, por exemplo, eu ainda o

conhecia mal; reunia amigos e fazia-me falar. Eu nessa altura ainda gostava de falar,

achava-me inteligente. E ele deixava-me dizer idiotices, encorajava-me, todos se

divertiam muito.

No finja que est a fingir disse Surio. Eu sei.

Voc tem a mania que escritor, tem uma viso evasiva das coisas. Para si,

o principal o como se. Eu vivi com Leo dez anos. Para mim o principal era co-

nhecer-lhe exactamente as brincadeiras, para me poder defender. Educou-me numagrande severidade. Com ele tudo era falso, como estar sempre sentada ao tabuleiro

tudo o que se fazia era estratgico. Isso deu-me uma grande disciplina.

Como que isto vai acabar? Belle dobrou a manga do vestido, estendeu-lhe

o brao com a palma da mo voltada para cima. Surio olhou-o, descobrindo uma

cicatriz quase invisvel do pulso ao cotovelo.

J no se v? Isto tambm foi ele, uma pequena experincia que fez comigo. Comi

tantas pastilhas para dormir que acabei por entrar toda inteira pelo vidro da varanda.

Surio lana-se para a porta. Atravessa o corredor a olhar para trs. Belle deixa-o

ir. C fora continua a chover. O que prova um postal ilustrado? Surio afasta-se

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depressa, imaginando o olhar do acusador dirigido sua nsia de dizer: a verdade

esta, e admitir, confessar. Para depois escrever em paz, livre dos enredos.

No passeio, agarrado ao candeeiro, o rosto erguido, fechando os olhos, deixa-se

molhar. Parece-lhe o vulto de Boris a passar ao fundo da rua, Surio chama-o, segue-o,

estaca no cruzamento procura. Nas vrias multides, impossvel encontr-lo.

Tanto tempo perdido! diz Surio. E caminha de novo para a porta de vigia,

em frente da casa de Belle.

in O Gmeo Diferente, contos, Difel, 1984.

(Texto rescrito)

Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

Mania - Luísa Costa Gomes

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